Sherlock Holmes: crime e literatura na Era Vitoriana

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SHERLOCK HOLMES: CRIME E LITERATURA NA ERA VITORIANA Por Luiz Henrique Assis Garcia Doutor (2007) em História Social da Cultura pela UFMG. Professor e coordenador do curso de Museologia da ECI-UFMG. Coordena o grupo de pesquisa Observatório de Museus e é membro do Centro de Convergência de Novas Mídias (CCNM) – UFMG.

Acima: Sir Arthur Conan Doyle; Abaixo: Capa do original de Um estudo em vermelho, 1887.

A Era Vitoriana (iniciada em 1837 e encerrada pelo falecimento monarca que lhe deu nome em 1901) assiste a emergência de uma nova figura ordenadora, de alguém que é capaz de reconstruir racionalmente estes acontecimentos a partir dos tênues vestígios que deixam: o detetive urbano. Embora o Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle seja uma personagem literária, seus contemporâneos consideravam que um homem assim não era fantasioso, a ponto de mandar cartas pedindo seu auxílio ao famoso endereço da 221b em Baker Street.

LONDRES E O IMPÉRIO BRITÂNICO

A Inglaterra de então tem nas grandes cidades um símbolo de crescimento e progresso. Quando a Rainha Vitória assumiu o trono, além de Londres apenas cinco cidades possuíam mais de cem mil habitantes, mas em 1891 estas já eram vinte e três. A população de Londres, propriamente, foi de 1,87 a 4,23 milhões neste mesmo período. Sob o impulso da industrialização, dos modernos meios de transporte e do comércio, o Império estendeu seus domínios e o poderio colonial britânico espalhou-se pelo mundo de tal forma que era recorrente celebrar o fato de que nele o sol nunca se punha. Londres consolidou-se como a grande cidade mundial, e uma verdadeira “Babilônia moderna”, na qual gente de todas as partes do mundo entrava e saia, principalmente por suas docas e estações ferroviárias.

The Railway Station by William Powell Frith, 1862. The Crystal Palace, Hyde Park, London, 1851

Mergulhada no nevoeiro, povoada por uma multidão de anônimos que trafega pelos labirintos das ruas, a cidade podia ser amedrontadora. As estatísticas gerais sobre criminalidade permitem estimar seu declínio, porém muitos crimes não eram relatados, especialmente pelos setores mais pobres da comunidade que não confiavam na polícia metropolitana, instituída a partir de 1829, sob a batuta da Scotland Yard. Eventualmente havia a percepção de que os crimes aumentavam, especialmente devido a ocorrências nas ruas, desde pequenos furtos a assaltos à mão armada e assassinatos violentos, sendo os crimes sangrentos os que mais vendiam jornais. A imprensa também noticiava bastante os escândalos financeiros e fraudes, perpetrados por homens de negócios invariavelmente apresentados como exceções à regra. Os vitorianos interpretaram o crime de diversas formas: um desvio moral que costumava se manifestar nas camadas mais baixas da sociedade, um mal com raízes sociais, ou uma sequela de fundo biológico e/ou comportamental, na esteira do discurso científico produzido em campos de estudo emergentes como a psiquiatria ou a antropologia.

DESVENDAR O CRIME: É NA TÉCNICA QUE RESIDE O ESTATUTO DE VERDADE DA FALA DO DETETIVE.

Carlo Ginzburg estabelece uma aproximação dos métodos do crítico de arte Giovanni Morelli, do Holmes de Conan Doyle e do fundador da psicanálise, Sigmund Freud. Nos três, as análises de seus objetos se baseavam na observação cuidadosa de indícios quase imperceptíveis. Ao explicar a analogia, ele aponta para o diagnóstico médico, capaz de identificar doenças pela observação de sintomas invisíveis ao olho do leigo. Há relatos de Doyle que indicam o desdobramento da dupla Holmes-Watson a partir de um de seus professores de medicina, John Bell. Watson – ao mesmo tempo representante da ciência médica e espécie de alter ego do escritor - ao narrar as peripécias de Holmes invariavelmente surpreende-se com seus incríveis poderes de dedução.

A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO

Em contos como A caixa de papelão ou A face amarela o problema que se coloca é justamente o estabelecimento da identidade. Trata-se de afirmar os poderes da dedução e os conhecimentos da nascente ciência criminalística na leitura do corpo do criminoso. A crescente literatura sobre criminologia lançada no início da década de 90 do XIX, como a importante obra de antropologia criminal de Havelock Ellis, O criminoso, e o livro em que Francis Galton descreveu seu método, Impressões digitais. Em 1877, um oficial da administração britânica em Bengala, William Herschel, tirava as impressões digitais de detentos, de pessoas que se apresentavam para o registro civil ou fundo de pensões. era uma técnica conhecida a séculos pelos bengali. Também um médico escocês, Dr. Faulds, tivera contato no Japão com a mesma técnica. Entretanto, suas observações (enviadas à respeitada revista Nature) “passaram batidas”, até que um industrial diletante inglês, Francis Galton, as recuperou em 1888. Galton afirmaria que a dactiloscopia era uma forma de fixar a identidade humana, de modo científico. Sua importância era ainda maior porque permitia identificar a passagem do criminoso no local do crime. Seu limite ficou logo claro: os criminosos passaram a usar luvas.

Em Um caso de identidade, Holmes queixa-se com Watson: “Nunca poderei fazê-lo se dar conta da importância das mangas, da sugestividade da unha do polegar e das grandes questões que podem depender dos laços das botas”.

Essa associação com a caça passa pela adoção do chapéu “de caçar cervo”, nunca mencionado por Doyle mas adotado nas páginas de The Strand Magazine pelo ilustrador Sidney Paget, que viria a influenciar efetivamente a construção da imagem do detetive, inclusive no cinema.

Para Holmes, o verdadeiro prazer não está em prender o culpado, mas em desvendar o crime. Ele raramente prende alguém pessoalmente, e muitas vezes deixa escapar o criminoso propositadamente ao considerar suas razões legítimas. Talvez por isso ele não faça qualquer condenação moralista do submundo pelo contrário, circula livremente nele, mantendo inclusive uma rede de informantes. Ele mesmo não hesita em cometer delitos. Invade casas, mente, forja documentos, usa identidades falsas, disfarça-se de mendigo. Para capturar a presa, imita-a, como os bons caçadores fazem. Para derrotar o transgressor, transgride.

Acima, "Poverty and Wealth", por William Frith. Abaixo, "Houseless and Hungry", por Sir Luke Fildes.

Essa ambigüidade o habilita a percorrer Londres entre os mundos em que se divide, entre a cidade da pujança econômica e da pobreza extrema, entre a metrópole imperial e as vielas imundas, entre trevas e luzes. As moradias de trabalhadores se espremiam entre fábricas, galpões e pátios ferroviários. A ferrovia levava ao seu coração o ruído e a imundície. As deficiências no saneamento, principalmente na primeira metade do século, facilitavam as epidemias. A cólera assolou Londres entre 1848 e 1853. A percepção da grande pobreza como contra-face da riqueza na urbe moderna foi ressaltada por políticos, escritores e estudiosos. Benjamin Disraeli diria em sua novela Sybil que os ingleses estavam literalmente divididos em “duas nações”, publicada no mesmo ano (1845) do clássico estudo de Friedrich Engels sobre as condições da classe trabalhadora na Inglaterra.

As áreas depauperadas, com seus cortiços e pardieiros, eram desconhecidas ou pejorativamente comparadas por parte dos intelectuais e membros da elite aos continentes inóspitos, e seus habitantes, as condenadas “classes perigosas” compostas por bêbados, desordeiros, pedintes e prostitutas, eram associados aos selvagens da Polinésia ou da África Negra. O saber faz-se poder nesse sujeito que atravessa, que se desloca imbuído da autoridade, para criar ordem, desvendar os mistérios, mapear o corpo do Outro, esse desconhecido que ameaça.

CIÊNCIA, CRIME E SOCIEDADE •





O “criminoso nato”, segundo o então influente conceito de Cesare Lombroso, seria marcado por uma série de anomalias atávicas que determinavam seu comportamento selvagem, aproximando-os dos animais e dos povos primitivos. Em 1895, o mesmo Lombroso (em parceria com o Prof. Guillaume Ferrero) publicou A mulher criminosa e a prostituta, a fim de tratar a delinquência feminina à luz de suas teorias. Em Doyle os crimes cometidos por mulheres expressam claramente a percepção vitoriana dominante sobre o gênero feminino.

A separação entre a esfera pública e a privada era um valor caro aos vitorianos, bem como, de resto, as hierarquias de classe, gênero e raça que organizavam a vida social no Império Britânico. O romance policial, na emblemática figura de Sherlock Holmes, representava a reconfortante crença de que a ciência e a razão poderiam restituir a ordem ameaçada pelos criminosos em suas diversas encarnações.

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