Significado de Dialética em Hegel

July 22, 2017 | Autor: Rogério Teza | Categoria: German Idealism, Hegel, G.W.F. Hegel, Idealismo Alemão, Dialética
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SIGNIFICADO DE DIALÉTICA PARA HEGEL

Rogério de Souza Teza

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Significado de Dialética para Hegel

Segundo o Novo Dicionário Aurélio (2009), a dialética é a “arte do diálogo ou da discussão, quer num sentido laudativo, como força de argumentação, quer num sentido pejorativo, como excessivo emprego de sutilezas”. De acordo com a mesma fonte, a palavra “dialética” tem origem etimológica grega: . Ou seja, une o prefixo “dia”, que denota “caminho através”, e “lektike”, que, derivado de logos, é remissão àquilo que se faz por palavras, verbalmente. Quanto ao seu emprego, segundo narra Diógenes de Laércio, a dialética foi uma técnica cujo uso foi impulsionado por um grupo de filósofos gregos, por volta dos séculos IV e III A.C., que, por isso, era designado Escola Dialética, que também cultivava especial interesse por paradoxos lógicos e pela lógica proposicional. (BOBZIEN, 2011). O trecho a seguir de Platão em “A República” (2010, pp. 50-51) traz um exemplo da aplicação da dialética – ao mesmo tempo em que a distingue da retórica: Se portanto armando nossas forças contra ele e opondo discurso contra discurso, enumerarmos os bens que a justiça fornece, ainda que ele replique, a seu turno e nós novamente, será mister contar e medir as vantagens de parte a parte, em cada discurso e necessitaremos de juízes para decidir; se, ao contrário, como ainda há pouco, debatermos a questão até um mútuo acordo, seremos nós próprios em conjunto juízes e advogados.

Obviamente que na distinção que apresenta, Platão tem em mente salvá-la do uso que os sofistas depois fizeram dela. Se a retórica dos sofistas é um discurso que se põe contra outro e cujo objetivo é persuadir e vencer; na verdadeira dialética, cara ao filósofo, visa-se o consenso. O primeiro, assim, precisa de juízes; o segundo prescinde deles, pois a validade dos argumentos é garantida pelo rigor lógico dos participantes. Portanto, para os gregos, a dialética significa separar fatos, dividir ideias a fim de melhor debatê-las com mais clareza. Significa, pois, a arte do diálogo, do debate, em que há confronto de ideias, onde um posicionamento é defendido e contradito logo depois. É, logo, uma maneira de filosofar, que se procurou não se confundir com aquele significado pejorativo que o dicionário também aponta, isto é, a dialética do sofístico condenado por Kant por visar apenas “dar aos conhecimentos uma aparência de verdade e sabedoria” (KANT, 2003, p. 43). Mas a dialética nunca se viu livre de ser um embate de ideias e um procedimento para solução de polêmicas. Disso, talvez, que tenha se fortalecido a noção de que a dialética é sempre a oposição de uma ideia ou conceito a outro a fim de obter um

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terceiro. Ou, em outros termos, de que dialética seja um método em que primeiro se põe uma tese, em seguida se contrapõe uma antítese, e por fim se alcança um terceiro termo, mais elevado, que seria a síntese. Que, por sua vez, viu-se relacionada à figura de Hegel1. Embora comumente se encontre referências entre o autor de a Fenomenologia do Espírito ao mais bem sucedido uso moderno do método dialético, quem quer que se depare com suas obras tem razões de sobra para colocar sob suspeita a extensão dessa associação. O objetivo desse trabalho é apresentar algumas evidências de que a obra de Hegel não é redutível à fórmula de dissertação prescrita para a dialética, no formato de tese, antítese e síntese. O método e o pensamento de Hegel são, sem dúvida, muito mais nuançados e ulteriores de propósitos de puro método. Com este propósito, a exposição divide-se em três partes. Na primeira, recorre-se a menções que Hegel faz do uso da dialética entre filósofos da Grécia Antiga. Depois, a alusão é à filosofia alemã de Fichte e o emprego que este recomenda da dialética, e ao uso próprio que Hegel mesmo teria feito dela. Por fim, tomam-se os apontamentos que comentadores de Hegel fizeram sobre sua dialética. Assim, se acredita poder mostrar que reduzir a filosofia hegeliana à tese, antítese e síntese é não só simplificá-la, mas também, principalmente, corrompê-la. O USO DA DIALÉTICA NA ANTIGUIDADE SEGUNDO HEGEL Segundo Hegel (1978, p. 68), o começo da dialética se encontra na Escola Eleática, “e com isto a oposição do pensamento e parecer ou do ser sensível – daquilo que é em si oposto ao que é para outro deste em si, e na essência objetiva a contradição que carrega em si mesmo [a dialética propriamente dita]”. A partir desse trecho, sendo isto a dialética, não há dúvidas de que fosse a dialética assaz cara aos Eleatas, pois é o que facilmente se reconhece nos três momentos apresentados no próprio poema do ser de Parmênides, o principal representante da escola de Eleia. Este sentido de dialética também parece concordar com aquilo que Platão afirmava acerca dela. Pois seria o confronto de opostos. Na sequência do texto, deve-se frisar, Hegel (idem, ibidem) expõe como a marcha do pensamento deve progredir segundo a formação dos Eleatas em três etapas, complementando o que foi anteriormente dito: O Novo Dicionário Aurélio (2009) mesmo, na terceira acepção para “dialética”, pertencente à História da Filosofia, faz essa associação: “Conforme Hegel (v. hegelianismo), a natureza verdadeira e única da razão e do ser que são identificados um ao outro e se definem segundo o processo racional que procede pela união incessante de contrários — tese e antítese — numa categoria superior, a síntese” (grifos meus). 1

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a) o puro pensamento puro (o puro ser, o um, o noúmenon) põe-se, imediatamente, em sua simplicidade e auto-identidade paralisadas – e a todo o resto como sem importância; b) o pensamento de início tímido – o qual, depois de fortalecido, deixa valer o outro e então dele se acerca – esclarece que ele então concebe o outro, do mesmo modo em sua simplicidade, mostrando neste mesmo a sua nulidade; c) afirmando o outro na multiplicidade de suas determinações.

Esta sequência, todavia, apresenta-se mais complexa que a tradicional fórmula. Pois, ainda que seja mesmo um movimento de pensamento, ele aparece relacionado ao “puro ser” e ao “um”. A dialética já não se põe como um mero diálogo ou um debate, mas como uma forma de pensamento especulativo e próprio desenvolvimento do ser, como uno, como nada, como múltiplo. E o segundo termo não é apenas a oposição do primeiro que o confronta, mas se desenvolve na figura do fortalecimento. De qualquer maneira, cabe apenas notar que tal narrativa faz dos Eleatas, como o próprio Hegel reconhece explicitamente pouco mais a frente no texto, os primeiros a ter uma filosofia física que não põe mais a verdade na imediatez do mundo sensível. Lança-a fora, e faz o pensamento pela primeira vez livre. Hegel, nas mesmas Preleções sobre a História da Filosofia2, coloca Zenão de Eleia, também membro da Escola Eleática, como o iniciador da dialética (HEGEL, 1978, p. 198). Ele o é, aos olhos de Hegel, porque afirma a destruição, e nela se tranquiliza; porque diz, ao contrário de Parmênides, afirma a mudança, que é o não-ser daquilo que é. Assim, Zenão é o verdadeiro começador da dialética, porque contraria os Eleatas que o antecederam, porque afirma a contradição do não-ser que é. É isso que é apresentado no resumo de trecho do diálogo de Platão, “Parmênides”, no qual “Sócrates diz que Parmênides afirma em seu poema que tudo é um: Zenão, pelo contrário, que o múltiplo não é” (idem, ibidem). Essa é a estratégia de Zenão para combater aqueles que afirmam o ser do múltiplo, isto é, tornar ridícula e pôr em contradição aqueles que procuram tornar ridícula a proposição de Parmênides. É nisto que consiste essa primeira versão da dialética e a inovação de Zenão e do Eleatas: não “afirmar o pensamento simples para si mesmo, mas, fortalecido, levar a guerra para o território inimigo” (idem, ibidem). 2

As Preleções sobre História da Filosofia de Hegel, também conhecidas como Lições sobre História da Filosofia, foram, para a elaboração deste trabalho, obtidas de duas fontes. Uma delas é a coleção Os Pensadores, edição de 1978, publicada pela Abril Cultural em fragmentos sobre os filósofos PréSocráticos. A partir de Sócrates e de seus contemporâneos, os Sofistas, a edição é a publicação mexicana do Fondo de Cultura Económica, editada em três volumes, das quais foram consultados e citados os dois últimos. 3

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Ainda nos comentários sobre Zenão, Hegel (idem, p. 202) apresenta o que então ele aponta como “a determinação mais exata da dialética objetiva”. “Eles [os Eleatas]”, comenta, “afirmam um dos predicados que se opõem, como a essência. Eles põem-no fixamente: onde encontram, numa determinação o oposto, suprimem com isto essa determinação.” (idem, p. 201). Mas, se dialética eleática, como apontado, é uma maneira de fazer dissolver aquilo que se determina, nela resta o zero, o negativo. É por isso que as escolas dialéticas se dobram sobre seus paradoxos, apresentados como a forma mais firme do indecidível. Mas os Eleatas pararam “na ideia de que através da contradição o objeto se torna nulo” (idem, ibidem). Essa é a maneira eleática para afirmar que o sensível não pode ser verdadeiro, onde aquilo que se fixa se fixa para então dissolvido. A dialética objetiva procede sucessivamente por meio de um procedimento atualmente conhecido como redução ao absurdo, procedimento que até hoje é associado à figura de Zenão. Mais longe na dialética negativa, afirma Hegel (idem, p. 201) por sua vez, caminhou Heráclito, quando a verdade permanece como certeza da consciência individual e a certeza como refutação. No pensamento de Zenão e de Parmênides, o que subsiste é um entendimento abstrato. Isso havia sido destacado pelo pensamento livre que a Escola Eleática inaugurara, mas ela sempre se situa sem dissolver a essência da coisa por si mesma, ou permanece sempre na pura contemplação. Heráclito, afirma Hegel (1978, pp. 92-93) não se prende ao rigor do raciocínio e não para na nulidade da contradição e, por isso, Hegel pode dizer que a filosofia de Heráclito foi inteiramente absorvida em sua Lógica. Pois, com o filósofo obscuro de Éfeso surge a unidade das determinações opostas. Esta afirmação pode, é claro, trazer à tona de novo, a confusão de que a dialética é o consenso entre o princípio e sua oposição apenas amalgamados para formar um consenso. Porém, a dialética de Heráclito vai muito mais fundo. O que Heráclito faz é estabelecer a dialética como o próprio princípio, e o absoluto se converte em progresso. “O ser é o um, o primeiro; o segundo é o devir” (idem, ibidem). Heráclito realmente atribui um ser à mudança e, desta maneira, põe em marcha o próprio mundo. A profundidade de Heráclito pode não ser bem compreendida, ao dizer que o ser não é mais do que o não-ser, mas ela fica perfeitamente clara, ao se dizer que o ser também não é menos que o não-ser, pois não é nessa oposição que reside a essência, e sim na mudança. Aí se encontra o lema de Heráclito: Panta rhei, isto é, "tudo flui, nada persiste, nada permanece o mesmo". Ao unir os opostos e colocá-los 4

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como motor de todo o progresso, dado que este é também mudança, Hegel não tinha porque não assumir esta dialética como aquela entre os antigos que melhor expressa sua filosofia moderna, como se verá adiante. Considerando a dialética entre os sofistas, Hegel destaca a de Górgias. Afirma ele que “o forte deste pensador era a dialética da eloquência; no entanto, se destacava por sua dialética pura, que girava em torno das categorias gerais do ser e o não-ser e se separava, portanto da maneira dos sofistas” (HEGEL, 1997, p. 34). Por dialética da eloquência entenda-se a retórica, as batalhas verbais que tanto Platão quanto Kant condenava entre os sofistas. Entretanto, Hegel faz concessão à dialética de Górgias. E aqui a distinção entre a dialética da eloquência e a dialética pura é bastante esclarecedora. Mostra, pois, que a dialética pura para Hegel é aquela que confronta o ser e o não-ser e não apenas se faz como um caminho entre as palavras. Neste caso, afirma Hegel (idem, p. 35), “a dialética de Górgias é de tipo absolutamente objetivo, e tem um conteúdo extraordinariamente interessante”. Górgias sustenta uma polêmica contra o realismo absoluto e se deixa levar pelo idealismo no qual o pensado é sempre simplesmente subjetivo. “Sobre isto repousa também [...] a dialética no que se refere ao [seguinte] ponto: o de que o conhecimento não é comunicação do conhecido” (idem, p. 38).” Diria Górgias, citado por Hegel (idem, p. 39): “as palavras mediante as quais poderíamos expressar o que é não são o ente; o que se comunica não é, portanto, o ente, mas somente aquelas palavras”. E nisso há total superação daquele sentido de que a dialética seria apenas o confronto de palavras. Eis a razão para Hegel tratar também este sofista como um pensador profundo. Por fim, cabe mencionar o uso da dialética por Sócrates. De acordo com Hegel (idem, p. 51), o método socrático era “por sua natureza, dialético”. Ora, a maneira de filosofar de Sócrates coincide plenamente com seu método de diálogos. Pois, o princípio de sua maneira de filosofar se trata de fazer o interlocutor se dar conta de que não sabe nada para induzi-lo a meditar. E o método, por um lado, se apresenta como o desenvolvimento do geral a partir do caso concreto e, de outro, a desintegrar as determinações fixas da representação e do pensamento incorporadas na consciência (idem, p. 52). É parte indissociável também do método, associada à desintegração da fixidez, a ironia socrática. Esta “não é senão um modo de se relacionar com cada interlocutor, ou seja, uma forma subjetiva da dialética somente, enquanto a verdadeira 5

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dialética lida sempre com os fundamentos da coisa mesma.” (idem, ibidem) É a dialética socrática, segundo Hegel, apenas uma forma de elocução. Logo, no máximo, pode buscar pelo consenso entre as palavras. Destarte, a dialética socrática é a que mais se distancia das ideias hegelianas de dialética. Em suma, nas referências aos pensadores antigos e nas preferências apontadas, já é possível esboçar algumas características da dialética hegeliana. Primeiro, como se encontra em Zenão de Eleia, o papel da negação, da contradição e do nada, como os impulsos primordiais do movimento dialético. Em segundo lugar, com Heráclito de Éfeso, a importância da junção entre os opostos na dialética, e o lugar de destaque da mudança e do devir. Por último, com a exaltação da dialética de Górgias e a depreciação da de Sócrates, o lugar privilegiado que recebe a dialética verdadeira, enquanto movimento das coisas mesmas em detrimento do palavreado e da abstração vocabular. A DIALÉTICA MODERNA: FICHTE E HEGEL A dialética encontrou o seu último impulso na antiguidade com Aristóteles e só pelo seu estudo que se manteve minimamente viva até a Era Moderna. Praticamente passada a Época das Luzes é que Kant ressurgirá com uma dialética que ele trata como “lógica das aparências, uma arte sofística de dar um verniz de verdade à ignorância [...] não pode redundar em oco palavreado” (KANT, 2010, p. 95). Mas, enquanto dialética transcendental dialética, é crítica da lógica da aparência e serve para salvar o entendimento da ilusão e dos erros momentâneos. (idem, p. 298). Isso é aplicado especialmente no caso das antinomias – apresentações emparelhadas de tese e antítese. É necessário, portanto, outro pensador para trazer à tona novamente, com mais força e propósito mais ousados, o método dialético. Fichte, em sua Doutrina-da-ciência de 1794, expõe um método que, segundo ele, vai além de teria permitido Kant fazer outra dedução das categorias do entendimento, mas desta vez partindo do grau zero da consciência, do eu absolutamente puro. A Doutrina-da-ciência de 1794 de Fichte conta, pode-se dizer, com uma exposição dialética. O primeiro princípio, “Eu = Eu”, é “pura e simplesmente incondicionado, de todo o saber humano [...], não se deixa provar nem determinar” (FICHTE, 1988, p. 44). Este princípio é a tese, que se põe a si própria pela autoidentidade e como o próprio Fichte o adjetiva: princípio tético. O segundo princípio, 6

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condicionado segundo seu conteúdo, é o “Eu ≠ não-Eu”. Ele não poderia ser obtido senão a partir do primeiro princípio, e ocorre pela ação da contraposição. Isto é a antítese, pois, como afirma o próprio Fichte (idem, p. 56), “a ação de procurar nos comparados o índice em são opostos chama-se método antitético”. Fichte faz a ressalva de que na filosofia até Kant, esse método era chamado habitualmente de analítico. Os juízos analíticos, portanto, poderiam ser chamados então de antitéticos, ou negativos (idem, ibidem). O terceiro princípio, que é o condicionado segundo a forma, permite tomar um “Eu = não-Eu, e não-Eu = Eu” (idem, p. 53), quando se constata que nele “o segundo princípio se suprime; e também não se suprime" (idem, ibidem). Apesar disso, Fichte não vê uma contradição, mas o ponto de partida da dedução das categorias kantianas, uma vez que já tinha em mãos a realidade do primeiro princípio, a negação do segundo, e agora chega à limitação, dado que essa significaria “suprimir sua realidade por negação, não inteiramente, mas apenas em parte” (idem, p. 54). Ora, no terceiro princípio se encontra, portanto, a síntese, que “consiste em procurar nos opostos índice em que são iguais”. Não obstante a diferença de nomes entre análise e antítese, Fichte se encaminha daí por diante a um trabalho parelho ao de Kant na Dedução Transcendental. E o próprio Fichte reconhece que é essa a tarefa. Mas se for possível resumir como se desenvolve a filosofia de Fichte, aparte da obra kantiana, ela é marcada pelo movimento de tese, antítese e síntese; e, depois, com a síntese tornando-se a tese, um novo movimento de antítese e síntese; e assim sucessivamente. O que surpreende é que a obra de Fichte, apesar de muito cara a Hegel3, nas Preleções de História da Filosofia, este em momento algum se refere à filosofia primitiva daquele – a qual pertence à Doutrina-daciência de 1794 – como dialética. Esta palavra, dialética, não aparece nenhuma vez na descrição que é feita de Fichte, muito embora Hegel (2002, p. 472) tenha escrito que, em Fichte, “vemos a contraposição adotar diversas formas: Eu e não-Eu, as teses e as antíteses, a dupla atividade do Eu, etc.” (grifos meus). Isto serve de forte indício para

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Ainda que Hegel tenha se mostrado muitas vezes combativo e se postando contra Fichte, como se dá, por exemplo, no “Escrito sobre a diferença...”, em que toma partido ao lado de Schelling, Hegel compartilha de alguns pontos em comum com Fichte, como é o caso da construção de sistemas e de determinação do Absoluto, mas, especialmente se encontra no que tange aos resultados que ambos procuram obter. Hegel descreve o projeto fichteano como a tentativa de determinar “a filosofia como a consciência artificial, como a consciência da consciência” (HEGEL, 2002, p. 465). Esse mesmo objetivo se encontra na base do projeto de Sistema das Ciências e na construção levada a cabo na Fenomenologia do Espírito, em busca do Saber Absoluto e o exame das figuras da consciência a partir de uma consciência filosófica. 7

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considerar que Hegel não via o método tese, antítese e síntese como uma forma verdadeira de dialética. Na Introdução de “A Fenomenologia do Espírito”, Hegel (2013, p. 77) se refere no §86 ao “movimento dialético” como o exercício da consciência sobre si mesma, deste movimento surgindo o novo objeto verdadeiro para a consciência, “justamente o que se chama de experiência”. A dialética é para Hegel, portanto, manifesta através de um movimento, que poderíamos estender à mudança, a fim de abarcar aquilo que havia sido comentado sobre Heráclito e Zenão. À dialética corresponde o movimento de mudança do saber do objeto que em um momento é em-si e vem a ser para-aconsciência (idem, ibidem). Ou seja, a dialética é, de fato, fundamental para a filosofia hegeliana, uma vez que participa indissociavelmente do seu núcleo mais duro: da ciência da experiência da consciência. O movimento dialético pode ser visto posto em marcha já no primeiro capítulo de “A Fenomenologia do Espírito”, por exemplo, no movimento para encontrar a verdade do “Agora”. Hegel (2013, p. 89) escreve: Vemos, pois, nesse indicar só um movimento e o seu curso – que é o seguinte: 1) Indico o agora, que é afirmado como o verdadeiro; mas o indico como o-que-já-foi, ou como um suprimido4. Suprimo a primeira verdade, e: 2) Agora afirmo como segunda verdade que ele foi, que está suprimido. 3) Mas o-que-foi não é. Suprassumo o ser-que-foi ou o ser-suprimido – a segunda verdade; nego com isso a negação do agora e retorno à primeira afirmação de que o agora é. O agora e o indicar do agora são assim constituídos que nem o agora e nem o indicar do agora são um Simples imediato, e sim um movimento que contém momentos diversos.

Este é um caso modelar da aplicação que Hegel faz da dialética. Em primeiro lugar, algo é posto, para em seguida mostrar que o que realmente foi posto suprime o primeiro. São ambos opostos, momentos que se contrapõem, mas que no terceiro momento são postos juntos. Essa amálgama final que significa uma elevação. Os dois primeiros momentos são suprimidos, mas depois unidos constituem justamente um Na tradução consultada e citada (HEGEL, A Fenomenologia do Espírito, 2013), onde se lê “suprimido” se encontra sempre a palavra “suprassumido”, e o mesmo para os verbos suprimir e suprassumir. Essa é uma das dificuldades da tradução de Hegel, uma vez que o filósofo justamente joga com o termo alemão “aufheben” que significa tanto “suprimir” quanto “conservar”. Hegel, portanto, o usa o verbo – como também o substantivo “Aufhebung” – às vezes no sentido de suprimir apenas, às vezes no sentido de suprimir conservando. 4

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movimento, em “um resultado ou uma pluralidade de agora rejuntados”, que ao mesmo tempo em que suprime, também conserva, e que Hegel chama de suprassumido (cf. nota 4). É por isso que se torna tão importante a nova configuração que Hegel dá ao negativo, à contradição e à mudança, se afastando da dialética eleática. A negação, diferentemente da que se encontra, por exemplo, no ceticismo, não resulta no puro nada. “O nada tomado daquilo donde procede, só é de fato o resultado verdadeiro: é assim um nada determinado e tem um conteúdo” (idem, p. 74). Também Hegel precisa lidar com a diversidade e entendê-la de modo mais profundo, e não ver na diversidade apenas a contradição, mas como o movimento de progresso em direção ao verdadeiro (idem, p. 24). Por isso que “a Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua atualização, nem o resultado é o todo efetivo, mas sim o resultado junto com o seu vir-a-ser” (idem, ibidem). E, neste vir-a-ser, retoma-se a mudança tão presente e penetrante da filosofia de Heráclito. Deste modo, em sucessivas negações determinadas, em uma trajetória de certo modo espiralada, o Prefácio e a Introdução de “A Fenomenologia do Espírito” colocam o desenvolvimento da filosofia hegeliana mais propriamente no modelo sernada-vir a ser (idem, especialmente pp. 52 e 54). É possível notar assim que, se tomada as palavras de Fichte sobre tese, antítese e síntese, em nada elas são capazes de esclarecer sobre a filosofia de Hegel. Apesar da estrutura triádica que põe em movimento o progresso da verdade, essa associação de ideias não passa da simplificação da verdadeira tríade hegeliana, a saber, Ser, Nada e Vir-a-Ser, feita equivocadamente por Heinrich Moritz Chalybäus em meados do século XIX e popularizada por Marx (MUELLER, 1996, p. 304). A dialética de Fichte pode ser vista como uma dialética limitativa do sujeito humano, não metafísica, oposta, assim, à dialética especulativa hegeliana baseada numa infinitude atingida circularmente (LIMNATIS, 2010, p. 39). COMENTÁRIOS RECENTES ACERCA DA DIALÉTICA HEGELIANA Com a exceção do marxismo e de comentadores menores, a fórmula teseantítese-síntese nunca foi sinônimo de Hegel. Tanto a escola francesa, com Hyppolite e Kojève, quanto a alemã de Frankfurt, com destaque para Adorno, sempre fizeram muito mais justiça ao verdadeiro Hegel que os primeiros.

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A começar por Hyppolite, que é bastante feliz ao escrever em seu livro dedicado a “A Fenomenologia do Espírito” que Hegel “faz com que compreendamos que a dialética,

sobretudo

na

Fenomenologia,

é

propriamente

uma

experiência”

(HYPPOLITE, 2003, p. 40). Ou seja, a dialética hegeliana não é também para o comentador apenas a arte do diálogo e do confronto com palavras. Ela é muito mais complexa e se apresenta com muito mais necessidade do que a forma encontrada nos diálogos de Sócrates, por exemplo. Contudo, Hyppolite quando comenta sobre a dialética operando propriamente na primeira parte de “A Fenomenologia do Espírito” observa que ela “não é tão diferente da dialética de Fichte” (idem, p. 93). Mas o que ele aponta como semelhança são os pontos de partida e de chegada, isto é, o fato de ambos partirem da consciência (empírica para Fichte, ingênua para Hegel) à consciência de si (ou pura como chamaria Fichte). Além disso, Hyppolite aponta também o fato de o movimento de ambas dialéticas efetuarem-se em três etapas. Kojève, por sua vez, dedica um texto inteiro intitulado “A Dialética do Real e o Método Fenomenológico de Hegel” (2014). Ora, pelo próprio título já se percebe a separação entre dialética e método. A dialética pertence ao real, e “o pensamento só será dialético se revelar corretamente a dialética do Ser que é e do real que existe.” (KOJÈVE, 2014, p. 422). O método de Hegel, por outro lado, “consiste em não ter método ou modo de pensar próprios da sua ciência [...] Hegel olha o real e descreve o que vê, tudo o que vê e nada além do que vê” (idem, p. 426). Isto significa que para Kojève, Hegel adota uma postura positivista e empirista, pois nada faz além da experiência pura e do ser real. Como citado supra a respeito de Hyppolite, a dialética está na experiência. Por isso que as palavras de Kojève mais adiante se coadunam exatamente com o que foi dito até agora de que “para ele [Hegel], a dialética é coisa bem diversa de um método de pensamento ou de demonstração”, pois, enquanto método, isto é, método do diálogo e da discussão foi utilizado pela primeira vez, consciente e sistematicamente por Sócrates-Platão (idem, p. 429). E também já foi mostrado anteriormente que Hegel não via nisso a verdadeira dialética, que ele de fato foi buscar em Heráclito. Finalmente, Adorno dedica um ensaio ao discurso hegeliano. Ele se chama “Skoteinos ou como ler”. Skoteinos, para quem não sabe, é o apelido dado a Heráclito de Éfeso e significa o “Obscuro” (PENSADORES, 1978, p. 73, dados biográficos). Quer dizer que Adorno escreve um ensaio no qual supostamente se ensinaria a ler 10

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Hegel, pois, tal como o seu admirado filósofo da antiguidade, ele também é obscuro. De fato, o texto hegeliano é árido. Sem embargo, o aspecto que Adorno aponta e que cabe destacar é que na dialética hegeliana subsiste uma duplicidade: nada pode ser compreendido isoladamente, mas apenas no todo, com a dificuldade de que o todo, com a dificuldade de que o todo em compensação possui vida somente nos momentos singulares [...] essa duplicidade da dialética escapa na verdade à apresentação literária. (ADORNO, 2013, p. 178)

Isso significa justamente que a dialética de Hegel realmente não se encontra na arte das palavras. Aliás, jamais poderia se encontrar nela. Pelo contrário, ela insiste me escapar a essa apresentação. Ademais, pode-se dizer que a dialética hegeliana apresentada por Adorno também está no real, como dizia Kojève, mas acrescida de um aspecto que lhe é fundamental. Ela é marcada por momentos distintos, e assim, singulares, mas trata-se ao mesmo tempo de uma rejunção, e, por isso, só pode ser compreendida no todo. Aí se capta aquilo que Hegel mesmo afirmava sobre a dialética para a compreensão da verdade do “agora”. Outro ponto que Adorno relevantemente frisa é que, largado à dialética das Coisas mesmas, a linguagem, como os objetos, não podem se “solidificarem num emsi” (idem, p. 188). Os conceitos fluem (“Tudo flui”), e, consequentemente, as contradições da união de opostos, em vez de paralisadora, é justamente o elemento motor. Isso conduz à inexistência de univocidade no discurso hegeliano, à completa ausência de “clareza e distinção” cartesianas, que leva Adorno (idem, pp. 175-6, grifos meus) a cunhar uma famosa frase de que “Hegel é sem dúvida o único diante do qual por vezes literalmente não se sabe, e não se pode decidir conclusivamente, do que ele está falando”. Assim, não pairam dúvidas de que Hegel não pode estar procedendo ao modo cartesiano de análise como separação nem ao modo dos melhores gregos da Escola Dialética do rigor das definições para melhor compreensão da questão. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ora, ainda seriam necessárias considerações finais para poder verificar que a dialética de Hegel nem com muito esforço se encontra refletida na forma tese-antítesesíntese? Definitivamente, a dialética hegeliana não é só mais nuançada, mas também marca uma distância considerável contra essa asserção.

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Decerto que foi possível nas três partes que compuseram este trabalho que a filosofia de Hegel tampouco se resume apenas à dialética. Ela é absolutamente essencial a toda filosofia, metafísica e lógica de Hegel. Mas se ela é a essência é porque nela se encontra a própria essência de tudo aquilo que Hegel descreve. A dialética está na experiência, está no real, está no Ser e, na medida do possível, está também na letra de Hegel. Mesmo com grande dose de boa vontade é possível ainda reler as relações triádicas encontradas nas grandes obras de Hegel como uma tese, a que se contrapõe uma antítese, e de uma certa espécie de impasse (a contradição muitas vezes costuma-se conceber desse modo) se obter um grau mais elevado de verdade. Por isso, por fim, deixa-se aqui a dialética da flor de Hegel, para que sirva de lembrança a nunca se adotar a definição 3 de dialética do Novo Dicionário Aurélio: O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo. (HEGEL, 2013, p. 24)

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Rogério de Souza Teza

Significado de Dialética para Hegel

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Rogério de Souza Teza

Significado de Dialética para Hegel

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