Signo e luta de classes Por uma epistemologia da reepresentação no Brasil escravista

June 6, 2017 | Autor: Florence Carboni | Categoria: Language and Ideology, History of Slavery, Linguistics, Marxism and language
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Signo e luta de classes Por uma epistemologia da reepresentação no Brasil escravista

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Florence Carboni1 Mário Maestri2  

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Passado e presente: monopólio e silêncio nas representações dos trabalhadores escravizados

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Em O escravismo colonial, publicado em 1979, o historiador marxista Jacob Gorender lembrava que, nas representações e interpretações historiográficas, o trabalhador escravizado ocupou, antes da Abolição e décadas após ela, status correspondente à situação social que conhecera na escravidão brasileira. Até praticamente os anos 1960, foi abismal a discrepância entre o papel social objetivo do cativo na formação social brasileira e as suas representações na História. (GORENDER: 2013 [1979], p.49.) Paradoxo que contraditava com o papel social dominante do cativo, primeiro americano, a seguir negro-africano, até praticamente 1888. Mesmo quando integrado às reconstruções historiográficas luso-brasileiras, o cativo o foi, em geral, enquanto objeto, sem participar essencialmente dessas explanações. Foi também profunda a desqualificação do trabalhador escravizado na historiografia lusitana, que rara e escassamente referiu-se à contribuição do negro-africano e à importância do tráfico negreiro na história de Portugal. Nas reconstituições gerais portuguesas, a importância dos cativos mouros e negro-africanos foi fortemente ignorada. As duas primeiras obras acadêmicas de referência sobre a escravidão negra em Portugal foram escritas, respectivamente, por um brasileiro, José Ramos Tinhorão, e por um inglês, A.C. Saunders. (TINHORÃO; 1988; SAUNDERS: 1994.) Facilmente observável nos relatos históricos, esse fenômeno foi comum a praticamente todos os outros grandes domínios ideológicos lusitanos, luso-brasileiros e brasileiros. Essa realidade é notável no domínio estético [ficção em prosa e verso; dramaturgia; artes plásticas; música; arqueologia; arquitetura, etc.] e, no campo cognitivo, na historiografia e demais ciências sociais, com destaque para as ciências da linguagem. Tratou-se de fenômeno unitário, geral e duradouro. No relativo ao Brasil, é sintomático não existir até hoje um só romance histórico sobre a escravidão, digno do nome. E que, apenas nos últimos anos, empreendem-se escassos levantamentos arqueológicos referentes ao escravismo – quilombos, senzalas, “cemitérios de negros”, etc. Sobretudo a partir dos anos 1850, nos romances brasileiros, o cativo deixou de ser pano de fundo ou figurante mudo apenas quando a escravidão transformou-se na grande questão políticosocial. Então, a literatura ficcional em prosa propagou o perigo do “escravo”, sobretudo em meio urbano e no seio da família proprietária. Narrativa que participava do esforço para transferir aqueles trabalhadores para a produção cafeeira, sedenta de braços. Apenas ! Florence 1

Carboni, licenciou-se e doutorou-se em Linguística pela UCL, Bélgica. É professora do PPGLet da UFRGS. e-mail: [email protected] 2 !

Mário Maestri, licenciou-se e doutorou-se em Ciências Históricas pela UCL, Bélgica. É professor titular do PPGH da UPF. e-mail: [email protected] CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !1

a partir dos anos 1860, o cativo começou a ser expressado, em algumas de suas necessidades históricas fundamentais, pela narrativa ficcional em verso e prosa, já como parte do esforço emancipacionista e abolicionista. (CONFORTO: 2012.) No relativo às realidades linguageiras e discursivas dos trabalhadores escravizados e sua contribuição na rica variedade do português brasileiro, a ausência de conhecimento histórico é ainda mais abismal, limitando-se para o passado a algumas escassas produções, como a gramática da língua quimbundo, redigida pelo padre jesuíta Pedro Dias em final do século 17, Arte da lingoa de Angola, oferecida a Virgem Senhora N. do Rosario, Mãy, e Senhora dos mesmos Pretos, na época da destruição dos quilombos de Palmares, e a um manual prático da língua mina, Obra nova da lingoa geral de mina, traduzida, ao nosso Idioma por Antonio da Costa Peixoto, Nacional do Reino de Portugal, da Província de Entre Douro e Minho, do concelho de Filgueiras (1741), supostamente dominante entre os cativos da mineração, escrito pelo português Antonio da Costa Peixoto para uso dos escravistas, publicado somente na metade do século 20. Costa Peixoto escrevera, anteriormente, Alguns apontamentos da lingoa Minna com as palavras portuguezas correspondentes” (1731), esboço do primeiro trabalho. Os dois manuscritos foram editados em Portugal, em 1944. (CARBONI: 2009. P. 90-91; ARAÚJO: 2013.) Esse último estudo registrou fenômenos de mescla entre as línguas africanas e dessas línguas com o português. (BONVINI: 2008, p. 33-39.) É revelador as lamentações de intelectuais como Sílvio Romero e Nina Rodrigues, no final do século 19, de que "no Brasil se houvesse descurado completamente o estudo das línguas africanas faladas pelos escravos negros". (RODRIGUES: 1977, p. 122.) No clima de centralismo linguístico que dominou o século 20 no Brasil, os empréstimos, sobretudo lexicais, de línguas africanas na variedade culta da língua nacional, serviram eventualmente e sobretudo para destacar sua diferença em relação à língua portuguesa falada na antiga metrópole. Muitos dos intelectuais que, como Gilberto Freyre, exaltavam "a superioridade de força e […] de beleza de expressão" do português falado e escrito "brasileiramente", "cheio de palavras de origem africana ou tupi-guarani", tendiam a considerar essa mescla nociva para a pureza do português. (FREYRE: 1979, p.7.)

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Caracter Estruturante Mesmo nas últimas décadas, no contexto de políticas afirmativas em relação às comunidades afrodescendentes e, mais especificamente, na política de reconhecimento dos ditos “remanescentes de quilombolas”, os muitos estudos, sobretudo sociolinguísticos, dedicados ao tema, tendem a buscar apenas a influência das línguas africanas em variedades de português pretensamente específicas a afrodescendentes, sem enfatizar o caráter estruturante da escravidão no desenvolvimento dos complexos contatos e mesclas entre as variedades de português e as inúmeras línguas e variedades de línguas africanas que foram faladas no Brasil devido ao tráfico negreiro. (CARBONI: 2009, 86.) Apesar da abolição muito tardia da escravidão no Brasil, em 1888, são extremamente raros depoimentos de trabalhadores escravizados. (MAESTRI: 1988) Não há sequer uma memória [conhecida] escrita por trabalhador escravizado ou liberto, durante a escravidão, ou após ela, no Brasil. Entretanto, temos uma breve auto-biografia de cativo que viveu no Brasil, escrita em inglês, e publicada em Detroit, em 1846. (BAQUAQUA, 1446) CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !2

Gilberto Freyre, suficientemente “sensível para recolher antigos livros de receitas, […] não empreendeu a coleta direta do depoimento dos milhares de ex-cativos ainda vivos antes e após a publicação de Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos, o que faria apenas, e muito tangencialmente, no tardio Ordem e progresso. E isso apesar de abundarem iniciativas semelhantes nos USA, certamente de seu conhecimento”. (MAESTRI: 2004, p.14) Os depoimentos, as descrições, os estudos, as explicações, as justificativas, etc. sobre a escravidão no Brasil, produzidos quando vigiava aquela instituição, são do punho de proprietários ou de intelectuais orgânicos das classes escravistas - sacerdotes, advogados, etc. A enorme hegemonia das representações das classes dominantes sobre a sociedade escravista colonial do Brasil coloca-nos múltiplas questões. As narrativas históricas sobre a escravidão negra no Brasil mantiveram-se por mais de três séculos e, até mesmo, superaram a abolição da instituição, em 1888. De certa forma, espraiaram-se até os dias de hoje, retomadas, não raro, na forma e no conteúdo, por historiografia revisionista e negacionista e pelas ciências da linguagem, ao menos na sua vertente sociolinguística. (MAESTRI, 2015) As últimas, ao assimilar esses relatos, tendem a silenciar a contribuição da escravidão enquanto modo de produção na formação da realidade linguística brasileira. (CARBONI: 2009, P. 85-86.) Essa singular permanência sugere unidade intrínseca daqueles relatos e sua autonomia plena em relação às transformações sociais e materiais, que exigem cerrada discussão. Seria necessário uma melhor compreensão dos objetivos daquelas narrativas. Ou seja, para quem, precisamente, eram produzidas e com quais objetivos. A dominânciapermanência daqueles relatos obrigaria igualmente a uma discussão sobre as razões da muito frágil capacidade dos trabalhadores escravizados de produzirem representações antagônicas e anti-sistêmicas, expressando suas necessidades, mesmo em forma alienada. Exige também resposta ao porquê do caráter tardio, em Portugal e no Brasil, da gênese de relatos anti-sistêmicos, expressando as necessidades históricas dos trabalhadores escravizados, por intelectuais exteriores às classes servis, como ocorreu na França, Inglaterra e mesmo nos Estados Unidos.

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O silenciamento do oprimido pelo opressor: intelectuais orgânicos; coesão escravista

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A representação do fato e suas distorções O fato de não conhecermos, não significa que inexistiram representações antisistêmicas produzidas, em forma ativa ou passiva, pelos trabalhadores escravizados, expressando os níveis diversos de consciência que tinham de seus interesses e necessidades. Esse discurso pode igualmente ser tendencialmente recuperado, através de múltiplos caminhos, entre eles, as próprias apologias dos escravizadores sobre os escravizados. Os linguistas soviéticos M. Bakhtine e V. Volochinov lembravam que as representações culturais descrevem determinações essenciais ou apenas arranham a superfície do fenômeno representado: “Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, serlhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc.” (BAKHTIN CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !3

[VOLOCHINOV], 1995, p.32) No mundo das expressões ideológicas, as distorções entre o ser e sua representação (entre essência e aparência) não são arbitrárias, aleatórias, erráticas, mas, ao contrário, são determinadas e prenhes de conteúdos, mais ou menos substancialmente ligados à essência negada, distorcida, mascarada. As próprias narrativas hegemônicas das classes dominantes são habitualmente fontes de informações preciosas sobre as visões de mundo dos dominados. O conhecimento profundo das formas e sentidos dessas narrações constituem questão de maior importância. No domínio de relações sociais antagônicas, as narrativas científicas, literárias, artísticas, etc., que expressam representações ideológicas hegemônicas, registram, refletem e consolidam as relações dominantes, possuindo funções sociais justificadoras, legitimadoras, solidificadoras e integradoras. Possuem, portanto, também essência performativa. (CARBONI & MAESTRI, 2003, p. 1-3.) No geral, enquanto durou a ordem escravista, as representações dominantes sobre ela expressaram as necessidades dos escravizadores de manterem os produtores escravizados na melhor subordinação possível. Ou seja, de organizar e fazer perdurar as práticas sociais de dominação com o maior benefício e o menor esforço-investimento possível. Tratava-se de visões de mundo que interpretavam as necessidades da produção e da reprodução das relações sociais escravistas, então hegemônicas, nas quais as idiossincrasias pessoais e culturais intervinham apenas em forma dependente e determinada. As representações sobre a escravidão surgiam e dependiam diretamente das condições gerais de produção e de reprodução da existência que lhes davam origem e, portanto, das relações de produção. As representações sobre a escravidão, determinadas pelas relações de produção dominantes, originavam narrativas sobre os explorados, necessariamente contraditórias e, portanto, polifônicas. As condições da produção conformavam representações do mundo social, determinadas e mediadas pela história, pela cultura, pelo desenvolvimento das forças produtivas materiais, etc. M. Bakthine e V.N. Volochinov assinalaram reiteradas vezes a determinação do imaterial pelo material: “A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos.” (BAKHTIN [VOLOCHINOV]: 1995, p. 36) Em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx descrevera, em forma pioneira, o fenômeno apenas enunciado: “[…] sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais de existência, levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos, de ilusões, de modos de pensar e de concepções filosóficas, com expressões infinitamente variadas, que a classe, como um todo, cria e modela a partir de seus fundamentos materiais e de condições sociais correspondentes.” (MARX, 1994, p. 211.) Criação que, como igualmente lembrava Marx, era determinada e orientada pelas necessidades materiais, e não por mera invenção aleatória da classe dominante.

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Deslocamentos Estruturais A dependência [tendencial e mediada] da consciência da base material que ela expressa determina, obrigatoriamente, que deslocamentos na estrutura econômica determinem deslizamentos nas representações e expressões ideológicas. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !4

Reacomodamento à nova realidade através da produção de novos conteúdos, comumente em simbiose, associação, fusão ou superação com os anteriores. Trata-se de um fenômeno de fulcral importância no estudo da escravidão colonial, cuja ignorância tem ensejado graves hiatos de interpretação. O “escravo novo”, arrancado de comunidades aldeãs africanas de cultura particular, passava a ser determinado, nas Américas, de modo soberano, pelas relações sociais escravistas. Sua existência cultural-espiritual passava a depender mais do ser escravo, historicamente determinado, do que do haver sido camponês, comerciante, etc. de dada cultura africana, por além da influência dessa cultura original. Até mesmo as “línguas, dialetos e variedades de língua que formam os repertórios linguísticos de populações envolvidas em processos migratórios tendem a perder completamente o estatuo que tem no país de origem, isto é, suas características geopolíticas, sócio-demográficas, em suma, sua potencialidades de utilização.” (CARBONI, 2009, p.95.) Mesmo quando o africano recém-desembarcado e escravizado nas costas do Brasil escapava e tentava refundar, em quilombo rural, as práticas conhecidas no continente negro, fazia-o mais nas formas do que no conteúdo, já que se reinseria em determinações sócio-econômicas estranhas às sociedades negroafricanas singulares nas quais vivera no além-mar. Realidade ainda mais cabal para cativos nascidos no Novo Mundo ou chegados jovens do continente negro, que viveram por décadas e formaram sua consciência nas Américas, em interações sociais singulares profunda e continuamente condicionadas por relações de produção escravistas. As representações cultas e semi-cultas sobre o trabalhador escravizado negroafricano e a ordem escravista, registradas pela pré-historiografia, proto-historiografia e historiografia lusitanas, luso-brasileiras e brasileiras, abarcam mais de quinhentos e cinqüenta anos, se tomarmos como marco inicial da gênese dessa elocução a chegada dos primeiros negro-africanos em Portugal, em 1444, em Lagos, sucesso descrito, em apologia de singular cinismo, por Fernão de Zurara, em Crónicas de Guine. (ZURARA: 1973, p.44) Um período cronológico cem anos mais longo do que a vigência da ordem escravista brasileira, com início em 1532 e fim em 1888. De 1444 até os dias de hoje, as formações sociais portuguesa, luso-brasileira e brasileira conheceram substanciais transformações econômicas, políticas, socio-demográficas, etc. Em Portugal, nos primórdios da escravidão moura e africana, nos campos, dominavam relações de produção feudais e não escravistas. (SARAIVA, 2003) No Brasil, a escravidão colonial instaurou-se nos anos 1530 e manteve-se dominante até praticamente 1888, quando passaram a reger diversas formas de produção livre. A produção capitalista passaria a ser dominante no Brasil somente a partir dos anos 1930. (GORENDER: 1981) Classes dominantes e dominadas surgiram, desenvolveram-se, entraram em crise, extinguiram-se, metamorfosearam-se, gerando, a partir de novas organizações hegemônicas da exploração, novas representações ideológicas, sobre as velhas e sobre as novas formas de trabalho dominantes. Entretanto, como vimos, apesar daquelas metamorfoses essenciais, a análise das narrativas cultas e semi-cultas sobre o cativo e sobre a escravidão negroafricana, ou seja, das representações produzidas através daquele longo período, parece sugerir uma forte permanência. Na aparente descontinuidade, há uma profunda unidade essencial e, até mesmo, formal daquelas representações. No Brasil, mesmo após 1888, e sobretudo nos anos 1920, quando o trabalhador escravizado conquistou um mais CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !5

significativo espaço nas narrativas dos ideólogos das classes dominantes (sobretudo como reflexo do despontar, mesmo incipiente, das classes trabalhadoras no cenário políticosocial), o cativo continuou, como sugerido, sendo explicado, sem jamais constituir um elemento substancial nas explicações das realidades que, de forma hegemonica, sustentou com seu trabalho. (MAESTRI: 2003, P. 23-75.) A aparente unidade dos relatos, no relativo à forma e ao conteúdo, sobre o negroafricano e seus descendentes escravizados, no longo período referido, sugere diversas explicações. Essa coesão teria nascido da solidez e da permanência, através da história, da realidade material e imaterial que as produziu. O que implicaria a ausência de rupturas nas estruturas das sociedades em questão, mantendo-se aquelas representações na sua forma e conteúdo. Portanto, não haveria modificações materiais qualitativas nas formas de exploração conhecidas no Brasil e em Portugal - doméstica, feudal, escravista, capitalista, etc. O que nos parece improcedente. Afastada essa primeira explicação, é possível pensar que a unidade nas representações surgiria da improcedência da proposta articulação necessária entre o representado e a representação, a partir das determinações materiais. As representações seriam processos independentes da materialidade dos fenômenos em que se geraram, talvez incapazes de serem explicadas, fora de suas estruturas internas. Outra possibilidade ainda seria considerar que a estrutura econômicosocial é determinada pelas suas superestruturas. Isto é, que a cultura-consciência determinaria a existência, e não vice-versa.

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Permanências Culturais Nos últimos anos, a negação de modificações necessárias e essenciais nas representações sobre a escravidão determinadas por transformações na organização social foi retomada com vigor no Brasil, sobretudo por antropólogos estruturalistas. Nesse processo, tem-se minimizado ou ignorado totalmente o caráter epocal da abolição da escravatura, em 1888, enfatizando uma suposta permanência-uniformidade essencial das comunidades com alguma afro-ascendência sob a escravidão e após a sua abolição. A origem das representações encontraria-se nas permanências culturais e não nas condições materiais. Essa concepção materializou-se paradigmaticamente quando comunidades negras rurais, da Abolição até os dias de hoje, passaram a ser chamadas "quilombos", sem que tal proposta se apoiasse em uma mudança semântica espontânea, ensejada através da realidade enunciativa da própria população afro-descendente, após o fim da escravatura. Essa eventual mudança espontânea tornaria o termo quilombo bissêmico e bireferencial, ao significar tanto a comunidade de cativos fugidos, como era antes de 1888, quanto comunidades diversas com alguma afro-ascendência, após 1888. Duas realidades que possuem essências diversas, apesar de eventuais identidades marginais. Que a ressemantização não foi espontânea é sugerido pela falta de evidências históricas de que o termo quilombo fizesse parte do universo lexico-semântico geral dos cativos, fugidos ou não. Ao contrário, tudo indica que ela deu-se a partir de uma identificação arbitrária e abusiva, por parte de antropólogos envolvidos na questão, das comunidades negras rurais anteriores à Abolição [formadas por cativos fugidos] e das posteriores a ela [formadas por indivíduos com alguma afro-ascendência], devido à permanência de eventuais elementos culturais de origem - ou supostamente de origem - africana. (FIABANI: 2008, P. 18 et CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !6

seq.). Elementos não raro definidos através de verdadeira invenção da tradição promovida por membros exteriores às comunidades em questão. Essa proposta colide com a essência diversa dos dois fenômenos históricos: por um lado, a luta permanente dos quilombolas, antes de 1888, pela liberdade, com desprezo pelo domínio da terra, e, por outro, a luta prioritária pela terra, das comunidades negras rurais, após a Abolição, devido à conquista da liberdade civil, mesmo mínima. (REIS & GOMES, 1996) É no seio de interações verbais concretas, dentro das esferas específicas do intercâmbio social e de determinada organização social, que os signos linguísticos nascem, se consolidam, mas também dialogam e se transformam, através do tempo, do espaço e das diversas camadas sociais que deles se servem. Por essa razão, cada palavra remete a um ou diversos contextos, nos quais ela viveu sua existência socialmente subentendida. O analista desavisado pode atribuir conteúdos semânticos anacrônicos a relatos produzidos em contextos histórico-sociais diversos. Pode imaginar, por dedução lógica, ampla comunicação entre comunidades semióticas próximas, que na realidade tem ou tiveram baixa dialogação. A funcionalidade profunda e o caráter socialmente dirigido de enunciados do passado podem ser de difícil compreensão por contemporâneos habituados à enunciação de pressupostos de conteúdos universais. (CARBONI & MAESTRI: 2003, p.3-4.) O conceito árvore, de caráter aparentemente banal, tem referentes diversos para o cidadão urbano paulista do século 20, para o camponês português do século 18, e para o tupinambá do litoral brasílico do século 15. O que dizer de termos relativos ao mundo social, mais especificamente quando produzidos no devir histórico de sociedades material e culturalmente complexas – conceitos como nação, Estado, liberdade, propriedade, exploração, igualdade, etc. “Em carta ao superior […], o padre Manuel da Nóbrega informava que […] procuravam ‘saber a língua deles’ [dos brasis] e ‘tirar em sua língua as orações […]’, deixando explícita sua visão preconceituosa ao afirmar que ‘[…] são eles tão brutos que nem vocabulário têm’.” (CARBONI, 2009, p.88) Produzidas em contexto sócio-cultural superado pelos analistas, as apologias necessitam ser contextualizadas historicamente, para que os signos e os enunciados desvelem seus conteúdos essenciais quando da sua enunciação, revelando seu caráter e objetivo performativo na época de sua produção. Nesse sentido, a “concretização da palavra”, ou seja, a definição de seu sentido no momento de sua enunciação, "só é possível através da sua inserção no contexto histórico real de sua realização primitiva."3 (VOLOCHINOV, 2010 (1929), p. 279). “O documento antigo, como qualquer enunciado monológico, foi concebido", pelo seu locutor, "para ser recebido", pelo ouvinte, "no contexto da vida científica ou da realidade literária de sua época, isto é, no próprio processo de devir da esfera ideológica da qual é parte integrante”4. (VOLOCHINOV, 2010 (1929), p. 267). Não é possível apreender seu sentido fora daquele contexto.  

 

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Um negro não é um negro ! A tradução 3 4 ! A tradução

é nossa

é nossa CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !7

Em 1944, António Brásio propôs o caráter não racista da cultura e sociedade portuguesa. Para o padre africanista lusitano, em Portugal, o “preto era, não um escravo à maneira dos matos do Brasil, das Antilhas, da Reunião […]”. (BRASIO: 1944, p. 9.) No que estava certo, mas não pelas razões que supunha e sugeria. A escravidão em Portugal era produção subordinada, doméstica e pequeno-mercantil, ensejando para o cativo a ela submetido condições, no geral, relativamente superiores às do cativo colonial. (SAUNDERS: 1994; TINHORÃO: 1988.) Tal realidade pode ter implicado, em alguns campos da atividade humana – como a esfera doméstica ou a da produção de determinados bens –, um compartilhamento semiótico, em domínios específicos de sentido, entre escravizados e escravizadores. Isso não significava que houvesse maior humanismo português, já que também os escravistas dos “matos do Brasil” eram lusitanos, nascidos na América portuguesa ou no próprio Reino. (MAESTRI: 1986, p. 40-44.) Exemplificando a benevolência lusitana, ou seja, dos cidadãos portugueses, o jesuíta Brásio lembrava que, em 13 de novembro de 1515, ao saber dom Manuel que “escravos que em Lisboa faleciam não eram suficientemente soterrados”, sendo a “maioria deles”, atirados ao “monturo”, devorados por “cães vadios’, o rei mandou abrir um “poço” – na futura rua do Poço dos Negros – para que os “escravos” fossem atirados à cova e, de “tempos a tempos”, soterrado por “alguma quantidade de cal virgem”. (BRASIO: 1944. p. 9 et seq.) Um leitor contemporâneo desprevenido interpretará o exemplo de Brasio como meta-discurso sobre a violência das elites renascentistas lusitanas para com o cativo. Porém, o bom sacerdote servia-se dele, com seriedade e sem ironia, para propor a magnanimidade do português! Em História social dos escravos e libertos negros em Portugal, A. C. Saunders lembrou que dom Manuel assim procedera para defender a salubridade de Lisboa do desleixo dos comerciantes e escravistas lusitanos com seus cativos mortos. (SAUNDERS: 1994, p. 147) Escrevendo em contexto histórico de grande prestigio das teorias racistas européias, Brásio participava da retórica do necessário domínio lusitano das colônias africanas. Avaliava positivamente o ato de dom Manuel, pois comungava com a desqualificação salazarista do negro. (BRASIO: 1944. p. 9.) Para ele, e na cultura lusitana então amplamente dominante, “negro”, mesmo nascido em Portugal, não era apenas homo sapiens sapiens de pele negra e cultura africana, mas também ser social desprovido de atributos essenciais possuídos pelo europeu e, mais especificamente, pelo português de sangue puro. Em 1515, assim como em 1940, para as classes dominantes lusitanas, um poço e um pouco de cal eram sepulturas dignas e exemplos de bondade para um preto. Porém, não existia simetria plena entre as visões e os discursos de ambas as épocas sobre o preto-africano. O preto de dom Manuel não era o de Brásio. Porém, as relações de exploração feudal-escravistas e capitalistas, e seu objeto, o preto, permitiam que a visão expressa do preto livre, no século 20, recuperasse conteúdos essenciais e se identificasse, se confundindo na aparência, com a visão do preto escravo, no século 16. Identificação que facilitava a submissão do preto do século 20 e justificava sua escravidão no século 16. Consolida a soldadura de discursos separados por tempos socialmente não homogêneos o fato de que a nova justificativa sobre a dominação dialoga e assimila partes de discursos anteriores, historicamente superados, que subsistem, mais ou menos CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !8

ativos, nos estratos freáticos das ideologias e dos discursos dominantes. A ressemantização parcial dos conceitos e o consequente deslocamento dos sentidos, do antigo ao novo, são mais fáceis quando se dão sobre uma base geral comum, por além das determinações históricas. No caso, a exploração do trabalho, escravista e capitalista, de uma população, aparentemente igual, africana e luso-africana. O explorador contemporâneo herda a produção semântica e semiótica de seu ancestral social devido à unidade-identidade, na diversidade, que mantém com ele, quanto à sua oposição ao explorado. A forma de exploração difere, mas a identidade, mesmo aparente, do explorado, permite uma fusão arbitrária que facilita a nova opressão e justifica a anterior. Se há saltos de qualidade nas múltiplas formas de submissão social, mantém-se o elemento geral unificador, a necessária justificativa da opressão.

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Questionando escravidões No mundo ibérico, a consolidação do tráfico de trabalhadores africanos escravizados pôs inicialmente em questão a justiça ou a injustiça, não da escravidão como instituição, mas de sua aplicação aos negro-africanos livres capturados na costa do Continente Negro. A pré-existente servidão do mouro era compreendida como merecido castigo da derrota em “guerra justa”, devido à rejeição, em conhecimento de causa, da fé verdadeira, isto é, do cristianismo. A escravidão era a justa punição terrestre pelas graves ofensas contra o iracundo Criador, da qual se serviam e se locupretavam seus prestativos acólitos. O negro-africano, assim como o americano, era um pagão, mas não um infiel. Era um rústico que, jamais tendo conhecido a Palavra Divina, não podia ser acusado e castigado por negar-se a aceitá-la. Não pecava contra um Verbo que não se fizera ouvir. No mínimo, devia conhecer e rejeitar a doutrina reta para, apenas então, conhecer a servidão, como castigo pela inaceitável rejeição da salvação eterna. Portanto, a justificativa religiosa da escravidão moura não era funcional à escravidão negro-africana. A discrepância entre teoria e realidade, entre doutrina e prática, colocava-se na plenitude de sua contradição também para a cristianíssima coroa lusitana, primeira grande exploradora dos negócios africanos. A escravidão do negro-africano não podia ser justificada com os mesmos critérios que apoiavam a servidão do mouro, que a praticava igualmente contra o cristão que se negava a reconhecer o verdadeiro deus e seu profeta. (MAESTRI: 2006, pp. 101-116) Entretanto, foi sem maiores traumas que a escravidão do negro-africano substituiu a do mouro, em Portugal, e a do nativo, na América. Como assinalado, com maior ou menor dificuldade, com maior ou menor criatividade, as contradições entre as justificativas consolidadas de uma forma de exploração e as realidades objetivas que a superam, geram novas construções apologéticas condizentes com as últimas, em geral a partir da adaptação dos discursos produzidos e estruturados na vigência das realidades superadas. Diante de novas necessidades, constroem-se novos castelos, comumente com as pedras e outros elementos das construções vestustas e inservíveis. A transição entre o velho e o novo é ainda menos dramática quando as rupturas não são essenciais, como no caso da transição da escravidão moura e americana para a negra, na qual o objeto da escravização modificou-se apenas no relativo à etnia e à cultura. Realidade que se expressa na plenitude de sua materialidade, no processo transicional, longo ou breve, em Portugal e no Brasil, no CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !9

relativo à origem do braço escravizado utilizado. A produção de narrativas apologéticas não se dá em forma linear, imediata, mecânica e consciente, ainda que a consciência da necessidade dessa produção não seja inexistente, sobretudo à medida que se desenvolve a riqueza material e imaterial de uma sociedade. A construção e a consolidação das novas justificativas processam-se através de uma seleção, por parte dos intelectuais orgânicos, dos materiais existentes, em geral produzidos no seio das classes exploradoras. Processam-se também, através da avaliação de sua recepção pelos grupos sociais aos quais elas são dirigidas. Nesse processo, muitas apologias são descartadas ou deslocadas para segundo plano.

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A voz do dominado no discurso do dominador: determinação histórica da locução Visões de mundo Como também proposto, a profunda homogeneidade essencial, ainda que não raro aparente, das narrativas sobre a escravidão, no pouco mais de meio milênio daquela instituição, sugeriria igualmente domínio desbordante das representações nascidas das classes dominantes. E, por consequência, a incapacidade essencial das classes escravizadas de gerarem narrativas ideológico-culturais expressando suas necessidades e visões de mundo ou de criarem as condições gerais para a sua expressão por segmentos sociais exteriores a elas, questão pouco abordada pela historiografia especializada. E m 1889, em O que fazer, V.I. Lenin analisou a gênese do pensamento socialista revolucionário, compreendido como materialização das necessidades das classes exploradas, tendo como vanguarda os trabalhadores industrializados. Em sua leitura daquele processo, propôs ser a gênese plena das representações anti-sistêmicas do capitalismo processo intelectual necessariamente exterior ao movimento operário de sua época, que, segundo ele, seria incapaz de elevar-se, por si só, à "consciência da oposição irredutível de seus interesses com toda a ordem política e social existente”. Defendia a incapacidade do proletariado de elevar-se a um nível pleno de extroversão de sua consciência [“consciência social-democrata" (socialista)] sem apoio externo, por parte de "intelectuais burgueses” - termo burguês que procurava definir sobretudo como “não proletário”. A necessidade da consciência revolucionária chegar desde “fora" da classe operária, naquele então, era devida, sobretudo, à falta de tempo e de condições dos trabalhadores de acessarem à cultura institucional, instrumento fundamental na compreensão e solução radical das contradições sociais.(LENIN, 1978, p. 25) Para Lenin, “intelectuais dissidentes” antagonizavam-se teórica e socialmente com os interesses das classes das quais surgiam ou com as quais eram próximos, para interpretar cientificamente o mundo, desde o ponto de vista dos oprimidos, a partir das contradições econômicas e sociais capitalistas. Um processo que, para o líder bolchevique, não se gerava ou se realizava no mundo independente das idéias. Para Lenin, a consciência revolucionária era essencialmente dependente da construção das condições objetivas, pelo mundo do trabalho, para que ela se originasse, desenvolvesse, amadurecesse. E, nessa relação dialética, o polo dominante, necessário, seria, sempre, o mundo da produção. Sem produção manufatureira-industrial e sem luta de classes não haveria consciência proletária, em embrião ou para ser racionalizada. A reflexão leninista CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !10

sobre produção, racionalização e objetivação da consciência revolucionária anticapitalista permite-nos abordar, nos limites próprios ao processo analógico, o mesmo fenômeno da construção da consciência do oprimido sob a escravidão colonial. Sobretudo porque, por razões próprias a esse modo de produção, as condições dos cativos eram ainda mais precárias do que as dos trabalhadores industriais em fins do século 19 inícios do século 20, para alcançar auto-racionalização de suas necessidades históricas. O que determinaria uma ainda maior dependência à sugestão-captação-aliança com intelectuais e segmentos sociais não escravistas, na luta pela superação parcial ou total daquela instituição. Na visão marxiana da revolução, para superação substantiva de uma forma de organização-exploração social, é necessário que estejam dadas, mesmo que em forma embrionária, as condições para alcançar um modo de produção superior. Condição mínima que estava certamente dada, quando da retomada e desenvolvimento do escravismo mercantil no Novo Mundo, devido ao domínio crescente da produção livre na Europa, sob a forma capitalista e outras. Portanto, eram necessárias três condições para a expressão-registro das necessidades dos trabalhadores escravizados:

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1) A expressão ampla e sistemática da oposição dos escravizados americanos às relações e a produção escravista, processo que se realizou através da resistência ininterrupta, explícita ou implícita, àquela forma de exploração, através de atos como a fuga, o suicídio, o aquilombamento, a revolta, a sabotagem, o desamor ao trabalho, a apropriação de bens, etc. Atos que ensejavam representação claramente antagônica à dominação escravista, como dois dos vissungos [cantos de trabalho] dos cativos mineradores das gerais, recolhidos por Aires da Mata Machado Filho, o primeiro, sobre o excesso de trabalho, o segundo, sobre muleque que escapou, com a trouxa às costas, para o quilombo do Dumba, sem que os cantores pudessem acompanhá-lo. Chegaram até nós apenas ínfima parte desses certamente milhares e milhares de cantos, vertidos em códigos linguísticos diversos, segundo as regiões e as épocas. [CARBONI: 2009, 126; MACHADO FILHO, 1994, p. 84.].

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Ei ê lambá [serviço duro] quero me cabá [acabar] no sumidô [sumidouro, morte]. que me cába no sumidô. lambá de 20 dia. ei lambá. quero me cabá no sumidô.

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Muriquino piquinino, ô parente de quissamba no cacunda Purugunta aonde vai, ô parente. Purugunta aonde vai Pru quilombo do Dumbá: coro CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !11

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ei, chora-chora mgongo ê devera chora, mgango, chora (bis)

2) As condições históricas mínimas para a compreensão do anacronismo daquela forma de produção, condições crescentemente materializadas desde que o trabalho livre passou a espraiar-se na Europa.

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3) Intelectuais exteriores às classes escravizadas, capazes e dispostos a racionalizarrefinar, através dos códigos cultos, semi-cultos e populares dos exploradores, as necessidades dos trabalhadores feitorizados.

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Intelectuais orgânicos No que diz respeito a “intelectuais orgânicos” dos escravizados, formados e destacados do interior da classe dos dominadores, deixando de lado a escravidão no Mundo Antigo, investigações históricas mais detidas comprovaram que, desde a gênese do escravismo negro-africano, em meados do século 15, geraram-se narrativas que dissolviam essencialmente os relatos justificadores da exploração escravista colonial. Habitualmente, elas foram produzidas por intelectuais que se separavam e se punham em contradição objetiva-subjetiva com as formas de organização e de dominação feudais e escravistas mercantis dominantes. Intelectuais gerados no seio ou na periferia das ordens sociais às quais se opunham. As performances argumentativas dessas representações, provenientes claramente desde afora das classes escravizadas e, não raro, sem ligação objetiva com elas, aproximaram-se em forma crescente das necessidades essenciais do objeto representado. Ou seja, expressaram visões de mundo que as classes escravizadas não alcançavam a racionalizar. Contraditavam, assim, a própria exploração escravista, opondo-se sobretudo às justificativas do tráfico; à proposta de inferioridade do escravizado e às justificativas da escravidão. Ou seja, às razões invocadas na defesa da reprodução do escravismo colonial. Superavam, portanto, o nível das aparências fenomênicas para aproximar-se da essencialidade do objeto criticado. Entretanto, sobretudo no que se refere aos séculos 15, 16 e 17, esses intelectuais a serviço das classes escravizadas, permaneceram geralmente desconhecidos. No espaço português, salvo engano, os dois mais célebres ideólogos anti-escravistas foram o gramático Fernão de Oliveira, cristão-velho, no início do século 16, e o médico António Sanchez, cristão-novo de judeu, dois séculos mais tarde. Domingo de Soto, em 1556, e Martín de Ledesma, em 1550-60, são também apontados como críticos precoces da escravidão ou do tráfico, ainda que sem a mesma consequência dos dois anteriores. Perseguidos por suas idéias, Fernão de Oliveira e António Sanchez morreram no exílio, sem jamais retornar a Portugal. (MAESTRI, 2010; MAESTRI, 2009, p. 12-29) No entanto, essas visões radicais dissolventes, que foram sistematizadas e registradas materialmente por seus agentes, não alcançaram a frutificar e legitimar-se no mundo das representações oficiais e oficiosas. A razão do silenciamento dessa produção antiescravista deve-se ao fato de ela não ter jamais encontrado setores ibéricos e americanos não-escravistas, capazes de abraçá-la e apoiá-la, mesmo teoricamente, permitindo sua difusão mesmo restrita entre as classes exploradas. Apesar de sua radicalidade, silenciada, CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !12

essas visões jamais se elevaram ao nível de explicações performativas dos fenômenos abordados. Frustradas no objetivo consciente, semi-consciente ou inconsciente de sua produção – a conquista, reconhecimento e determinação dos fatos sociais – conheceram a marginalização, o silenciamento e o esquecimento relativos, organizados cuidadosamente pelos guardiões das mentes de suas épocas. Estudos mais precisos apontarão certamente traços de outros críticos do escravismo moderno, não necessariamente de envergadura intelectual menor do que desses dois célebres humanistas. Como proposto, não foram ainda suficientemente elucidados o sentido da aparente homogeneidade e a indiscutível dominância das narrativas brasileiras sobre o trabalhador escravizado, durante a gênese, consolidação, crise e superação da ordem escravista, com o principal contraponto nas inicialmente frágeis narrativas abolicionistas. (COSTA, 2008) Ou, excepcionalmente, em produções atípicas como a de António Gonçalves Chaves, escravista e abolicionista lusitano, proprietário de charqueada no Rio Grande do Sul. (CHAVES, 2004, p. 97) Não foi igualmente discutida e explicada a contento a dificuldade das negações das justificativas do escravismo de alcançarem repercussão social, mesmo secundária, quando da vigência daquela ordem, desdobrando-se em genealogias explicativas anti-sistêmicas. A dificuldade do pensamento abolicionista de enraizar-se na massa escravizada é, no geral, questão determinante para a compreensão da longa duração e forte coesão da ordem escravista moderna, nas Américas e, sobretudo, no Brasil, último país a superar esse modo de produção no globo. Na América negreira, em forma precoce, apenas em Saint-Domingues/Haiti os cativos alcançaram a derrubar diretamente a ordem escravista, sob a indiscutível influência/apoio dos reflexos da Revolução Francesa. (JAMES, 1968) No Brasil, poucos autores discutiram, em forma sistêmica, as razões da dificuldade da destruição da escravidão. (PÉRET, 2002; FREITAS, 1984) Ao contrário, no Brasil, a escravidão ruiu apenas em 1888, quarenta anos após a revolução democrática européia, de 1848, e dezessete anos após o mundo do trabalho ter tomado o poder, em Paris, pela primeira vez na história! (CONRAD, 1975; PINHEIRO, 2002; BRITO, 2008) Através de toda a história do Brasil escravista, apenas quando da inconfidência de 1798, na Bahia, quando da chamada Revolução dos Alfaiates, teria se articulado o esboço de um bloco inter-classista anti-escravista. (JANCSÓ, 1996)

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Por uma epistemologia da enunciação do discurso do dominador e do dominado

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Contra-representações Na ordem pré-capitalista, temos ricas informações sobre as interpretações dos exploradores sobre a sociedade de classes, registradas na linguística, na literatura, na poética, na historiografia, na iconografia, na arquitetura, etc., com destaque para a escravidão clássica e, sobretudo, colonial. (ANTONIL, 2001; BENCI, 1977; TAUNAY, 2001.) Como vimos, o mesmo não ocorre com as classes oprimidas, com pouquíssimos registros culturais conhecidos, sobretudo para os séculos iniciais do cativeiro. Em 1979, em La libération médiévale, referindo-se à escravidão sobretudo na Idade Média, Pierre Dockes lembrava que são raros os registros das visões dos trabalhadores escravizados sobre sua exploração. Ressaltava igualmente tratar-se de visão de mundo em geral fortemente alienada e, eventualmente, muito determinada pelo mundo e pelas CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !13

representações das classes hegemônicas. “A ideologia dos escravos é profundamente contraditória, difícil de ser conhecida e, além de tudo, ainda pouco estudada.” (DOCKES, 1979, p. 27) Sobretudo no Brasil, essa pobreza de registros sobre as visões de mundo dos escravizados se deve ao não acesso ao mundo da escrita da imensa maioria da população escravizada e liberta; ao desprezo e à vontade das classes dominantes de silenciar a produção ideológica dos escravizados; a um certo desinteresse das ciências sociais em desvelar e recuperar esses registros, devido ao sentido antissistêmico daquelas representações, em antagonismo com produção intelectual crescentemente orientada para a proposta de concorrência e integração social, no passado e no presente. As visões dos oprimidos chegaram até nós sob diversas formas: provérbios populares; canções de trabalho; lendas; memória oral de descendentes de cativos, registradas ou não. O registro de dezenas de depoimentos de velhos e velhas descendentes de cativos de Pelotas, no Rio Grande do Sul, em fins dos anos 1980, exemplificou a riquíssima informação que a nossa geração de estudiosos deixou literalmente escapar, substancialmente, por entre os dedos, com a morte desses valiosos depoentes. (VECCHIA, 1994) Sobretudo, essas visões de mundo nos são acessíveis [traduzidas, vertidas e fixadas] nos discursos dos dominadores, em forma independente da vontade e da decisão dos mesmos. Registros dos frágeis traços do mundo ideológico-cultural dos oprimidos encontram-se incrustados nas narrativas literárias, judiciárias, jornalísticas, historiográficas, arquitetônicas, linguísticas, musicais, etc. deixadas e organizadas pelas classes escravistas. Informação fortemente imbricada, mesmo nas justificativas apologéticas dos escravistas. Em positivo, através da anatematização e condenação diretas, por essas narrativas, dos oprimidos, de seus comportamentos, de suas ações, de seus estados de espírito, etc. Em forma passiva-negativa, através da determinação dos discursos dos exploradores pela produção e existência social e ideológica dos subalternizados, através da pressão-deformação que a ação servil imprimia nas representações dos exploradores, um pouco como os corpos celestes são descobertos devido à força gravitacional que exercem sobre os já conhecidos.

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Mundo espiritual e comportamental A recuperação dessa informação não constitui uma mera démarche mecânica, ainda que essa coleta primária, por si só, já permitiria avançar em forma substantiva nesse conhecimento. A informação obtida deve ser submetida a uma exaustiva crítica, quanto à sua época, região, tipo de produção, origem dos locutores, etc. A documentação escrita produzida pelos escravizadores é certamente uma ponte magnífica em direção ao mundo ideológico e comportamental quase invisível dos trabalhadores escravizados. A necessidade de uma cerrada contextualização da informação obtida sobre as visões de mundo dos escravizados circunscreve a complexidade de tal démarche. Mikhail Bakhtine lembrava que "um dos modos mais importantes da existência histórica e do devir das línguas" é o que ele denominou de "hibridização involuntária, inconsciente": "Pode-se dizer claramente que, no conjunto, a linguagem e as línguas modificam-se historicamente por meio da hibridização, da mescla das diversas 'línguas' que coexistem dentro de um mesmo dialeto, de uma mesma língua nacional, de uma mesma ramificação, de um mesmo ou de diversos grupos de ramificações, tanto no passado histórico das línguas CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !14

quanto no seu passado paleontológico. E é sempre o enunciado que serve de cadinho para essa mescla", na qual não são apenas duas línguas que se misturam, mas dois pontos de vista. Não se trata de uma justaposição e oposição conscientes, mas de uma mescla "densa e obscura" de pontos de vista sobre o mundo, prenhe de novas visões de mundo, novas 'formas interiores' de uma consciência verbal do mundo. O linguista soviético lembrava que o discurso de uma época é determinado profundamente pela história, evocando “cada palavra e cada articulação de palavras uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra precisa, um homem preciso, uma geração, uma idade, um dia, uma hora”, como igualmente assinalado5.(BAKHTINE, 1978, pp. 176-7; 113-4) Mesmo as expressões e os registros verbais das visões de mundo das diversas classes de locutores, em uma época e em um espaço dado, são profundamente determinadas pelas próprias contradições entre essas classes e no interior das mesmas. “As relações de produção e a estrutura sociopolítica que elas condicionam [...] determinam todos os contatos verbais possíveis dos indivíduos, todas as formas e todos os modos de seu intercâmbio verbal […].” (VOLOCHINOV: 1977, p. 38) A exigência da atenção à inevitável heterogeneidade de sentidos da informação obtida em diversas épocas e situações, nos longos anos e nos largos espaços geográficos abrangidos pela escravidão colonial no Brasil, não aponta, em nenhum caso, eventual caráter aleatório, indeterminado, da fala humana. Trata-se de visão que enquadra a diversidade situacional no contexto de sua determinação tendencial por uma mesma forma de produção, no caso, o escravismo colonial. Para Bakhtin-Voloshinov, nenhuma “enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a quem a enunciou”, já que, nos fatos, ela é “o produto da interação entre falantes”. Ou seja, é produto da “situação social em que [...] surgiu”. Assim sendo, “todo produto da linguagem do homem, do simples enunciado a uma complexa obra literária, em todos os momentos essenciais, é determinado não pela vivência subjetiva do falante, mas pela situação social em que se dá a enunciação”. (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 2004, p.79) Nesse contexto, o texto comumente visto pela historiografia como monocórdio, rígido, homogêneo e singular, constitui, ao contrário, registro social e histórico dialógico, plurilíngüe, heterogêneo, social. Querendo ou não querendo, sabendo ou não sabendo, ao falar de si e de seu mundo, o escravista falava também do escravizado e de seu universo, segundo a sua ótica de classe, segundo as percepções deformadas da realidade objetiva com que se encontrava, segundo seus códigos semióticos, etc. “A ruptura com a falsa consciência sobre o caráter aleatório da linguagem escrita e oral permite que a historiografia avance substancialmente na solução de questões cruciais. Entre elas destaca-se o pretenso silêncio que encobriria, no passado, a palavra fraca do explorado, devido à voz altissonante e única do explorador. Um silêncio construído devido ao hábito de se ver no texto apenas o timbre da linguagem única.” (CARBONI & MAESTRI, 2005, P. 130) Porém, se signos dos explorados encontram-se incrustados, em forma implícita, no discurso dos exploradores, eles também se expressam, em forma explícita, sobretudo quando conquistam apoios entre os segmentos médios e, até mesmo, superiores. Nesse contexto, suas visões de mundo explicitam-se, organizam-se, fortalecem-se,  

5 ! A tradução

das citações é nossa. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !15

transformando-se em discurso registrado, ainda que mediado pelo meio de expressão e a ideologia que os cercam, etc. Os depoimentos, as auto-biografias, a ficção em prosa e verso, etc. são algumas dessas expressões diretas das visões de mundo dos escravizados. (DOUGLASS, 1982; BARNET, 1986; MAESTRI, 1988.) Pierre Dockes lembrava: “Descobre-se o aspecto anti-ideologia oficial quando, temporariamente vitoriosos, os escravos se organizaram, tentaram fundar uma comunidade […], reencontrar uma ligação com a terra, com uma linhagem, ser membros de uma cidade […]." (DOCKES, 1979, p. 28.) Emissão e recepção Mas a quem se destinam as narrativas apologéticas dos opressores? No presente, entre os destinatários prioritários da palavra justificativa encontram-se em destaque os exploradores e os explorados. No caso dos primeiros, essas narrativas consolidam a certeza e a confiança nas práticas dominantes. No relativo aos segundos, elas procuram inculcar a razão, a inevitabilidade, a necessidade, etc. da ordem vigente, facilitando sua manutenção. No passado, a religião foi um dos veículos tradicionais desse discurso, como o é, no presente, a grande mídia. Entretanto, esse diálogo da dominação exigiu, sempre, intercomunicação minimamente fluída entre dominados e dominadores, em nenhum caso idêntico em todas as circunstâncias históricas. Essa intercomunicação é realidade crescentemente avançada na ordem capitalista, sobretudo através da construção das línguas nacionais e da alfabetização universal. Ela certamente era muito limitada na escravidão colonial, com destaque para os primeiros tempos daquela instituição e para o mundo rural. (CARBONI: 2009, p. 85 et seq.) V. Voloshinov lembrava a necessidade de possibilidade de interlocução entre oprimidos e opressores, em torno dos mesmos signos, para estabelecer-se a função performativa da própria troca verbal. “[…] o signo e a situação social em que se insere estão indissoluvelmente ligados”, sendo que o signo constitui lugar de confronto permanente de interesses sociais diversamente orientados, sempre que as comunidades pertençam a uma “só e mesma comunidade semiótica”. (BAKHTIN [VOLOCHINOV], 1977, p. 62, 46) No passado, comumente, discursos justificativos visavam as camadas sociais que se reconheciam como possuidoras de essência plena, marginalizando ou ignorando grupos sociais subalternizados que, mesmo qualitativamente fora da esfera de abrangência das suas narrativas apologéticas, as motivavam e as determinavam. O que não quer dizer que tais narrativas fossem incapazes de aceder aos destinatários aparentes, ou sejas, oprimidos, em forma tênue, através de múltiplas mediações. Em célebre sermão, o padre Antônio Vieira se referia às penas dos cativos na escravidão, aconselhando-os à servidão voluntária. “Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Cristo que o vosso em um destes engenhos. […] Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado, porque padeceis em um modo muito semelhante […].” “[…] se for acompanhada [imitação de Cristo] de paciência também terá merecimento de martírio […] Quando servis aos vossos senhores, não os servais como quem serve a homens, senão como quem serve a Deus; porque então não servis como cativos senão como libres, nem obedeceis como escravos senão como filhos.” (VIEIRA, 1951, p. 320) A proposta de que a escravidão do africano justificava-se pela salvação de sua alma, CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !16

destinava-se a consolidar as certezas dos escravizadores cristãos na justiça daquela instituição, mesmo no contexto de sua violência, e não dos africanos pagãos ou quase, que, em sua grande maioria, sequer comungavam com a crença e possuíam conceitos como “salvação espiritual”. O discurso alcançava algum caráter performativo junto aos oprimidos, apenas à medida em que o africano era introduzido, mesmo marginalmente, na comunidade semiótica dos escravizadores. Um processo comumente realizado em forma muito imperfeita, pela própria estrutura da exploração escravista. Sobretudo nos primeiros tempos, a ordem escravista colonial baseava-se no estabelecimento de contatos entre grupos sociais dominantes e dominados pertencentes a comunidades semióticas diversas. As comunidades escravizadas provenientes da África praticavam línguas e concepções e experiências de mundo diversas das dos escravizadores. Entretanto, havia conteúdos tendencialmente aproximados nas comunidades semióticas em confronto desigual, que facilitavam a submissão escravista colonial: a desqualificação das mulheres; o respeito à autoridade patriarcal; as diversas formas de servidão africana, etc. Considerando-se a inicialmente baixa capacidade coesiva das narrativas ideológicas, fortes e fracas, na ausência substancial da referida identidade semiótica, a dificuldade de interlocução contribuiu para que a violência física constituísse o primordial fator de coesão social escravista. Mesmo quando se estabeleceu ampla circulação semântica, o castigo físico permanente, como ameaça ou como execução, jamais perdeu seu caráter dominante, já que as condições gerais materiais de opressão dos cativos produtivos dificultavam a imposição da submissão por meios ideológicos. Ainda que, nesse contexto, esses últimos assumissem maior importância, sobretudo em determinadas circunstâncias sociais e produtivas - cativos domésticos, cativos especializados, etc. Para melhor consecução das necessidades dos escravizadores, os escravizados deviam ser introduzidos na comunidade ideológico-semiótica dominante, na medida suficiente para facilitar a produção e a dominação. Não havia preocupação de homogeneidade cultural, além das exigidas pela produção e dominação. Em verdade, os escravistas impediam fusão semiótico-cultural substancial, entre eles e os cativos, mesmo singulares, por razões múltiplas, entre as quais destacavam-se as referentes à segurança. Foi ínfimo no Brasil o número de cativos alfabetizados.

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Sem jamais falar português Durante a vigência do tráfico transatlântico, dezenas de milhares de cativos, de diversas regiões da África, eram lançados, anualmente, nas costas do Brasil, para substituir os trabalhadores ceifados pela produção. Esse esgotamento produtivo tendencial rápido do trabalhador escravizado assenzalado ensejava que o seu processo de assimilação à comunidade semiótica dos dominadores se desse, comumente, em forma muito parcial. (CONRAD, 1985.) Ainda em “1840, um viajante encontrou, nas margens do rio Paraíba, recém-chegados da África, ‘cerca de vinte moleques que aparentavam dez a quinze anos de idade e que ainda não falavam português.’ O informante não registrou a língua que falavam.” (CARBONI & MAESTRI: 1999, 9.) Possivelmente centenas de milhares de africanos morreram no Brasil sem jamais alcançarem a dominar minimamente a língua portuguesa. Entretanto, esse domínio não era condição imprescindível para a extensão de comunicabilidade entre a sociedade escravista CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !17

dominante e os cativos desembarcados da África. Para a interlocução entre escravizadores e “africanos novos” lançava-se também mão de interpretes, exteriores e interiores ao grupo social oprimido, para realizar a tradução possível dos conteúdos veiculados pelas narrativas dominantes - sacerdotes, capatazes, cativos domésticos, cativos ladinos, etc. Nesse processo, foram produzidos léxicos e gramáticas das línguas africanas faladas no Brasil, como vimos. Os segmentos superiores das classes subalternizadas serviam prioritariamente de correia de transmissão das visões das classes dominantes às classes exploradas. Para materializar a integração dos oprimidos na comunidade semiótica dos opressores, podia-se reprimir os códigos lingüísticos, culturais, simbólicos, religiosos, etc. dos subalternizados, em favor da extensão, sempre chã e aproximativa, do campo ideológico-semiótico dos dominadores. (CARBONI & MAESTRI, 1999, 11 et seq.) Entretanto, não se tratava de prática universal e atemporal. Igualmente, permitiam-se e incentivavam-se práticas originárias, adulteradas necessariamente pela ordem escravista, não raro, para avivar diferenças vividas pelos oprimidos na África. A dissolução e o empobrecimento do universo semântico dos subalternizados, decorrentes da produção escravista, eram igualmente formas de restrição da capacidade de resistência. A redução do africano a cativo rústico pela sociedade escravista, ensejava que sua rusticidade fosse integrada como um seu pretenso atributo essencial, que explicava e justificava a escravidão, na ótica dos opressores. Era a imersão do cativo novo no universo escravista obediência, castigo, produção, alojamento, vestimenta, alimentação, premiação, etc. - que o introduzia no universo semântico dominante dos escravistas. No Brasil, a inexistência ou fragilidade da família escravizada determinava que essa inserção no espaço semiótico dos escravizadores se desse mais comumente em forma concomitante com a perda dos falares africanos, sobretudo em mundo rural, onde dominavam espaços societários restritos e a pluralidade de origens culturais africanas. Com o passar dos anos, e em situações singulares, a construção de comunidade comunicacional única, sempre escalonada e jamais democrática e igualitária, permitia que as narrativas dominantes abrangessem, em forma mais ou menos ampla, também as classes subalternizadas, mesmo e sobretudo quando as últimas eram objeto da desqualificação apologética. Quanto mais estendida a comunidade semiótica, maior importância passavam a assumir as narrativas justificadoras destinadas aos oprimidos. Tratado como inferior na prática social e produtiva, o cativo devia ser informado das boas razões desse tratamento e de sua inferioridade, por atos, narrativas, comportamentos, etc. A partir dos anos 1850, com o fim do tráfico transatlântico, ocorreu uniformização cultural tendencial dos trabalhadores escravizados, fossem crioulos ou ladinizados, já padronizados pelas práticas produtivas. Mantinham-se as diversas inserções na produção cativos domésticos, cativos artesãos, cativos de aluguel, cativos ganhadores, cativos rurais, etc. Uma realidade que impede qualquer uniformização da longa história da escravidão colonial no Brasil, apesar de seu férreo caráter unitário. No novo contexto, a gestão e o controle ideológico dos subalternizados assumiu função crescente, mesmo quando a compulsão física se mantivesse como essencial. Ainda mais que, naquele então, aumentou fortemente a intercomunicação entre os trabalhadores escravizados - e deles com as classes social e geograficamente mais próximas. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. Signo e luta de classes: por uma epistemologia da representação no Brasil escravista. !18

! ! BIBLIOGRAFIA CITADA !

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