Signos no “firmamento da razão”: a significação e alguns de seus enigmas a partir de O Pensamento Selvagem

June 24, 2017 | Autor: Vinícius Dino | Categoria: Logic, Ethnology, Claude Lévi-Strauss, Structuralism
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Signos no “firmamento da razão”: a significação e alguns de seus enigmas a partir de O Pensamento Selvagem Vinícius Dino Fonseca de Castro e Costa

“Nunca ele [Mauss] foi mais fiel a seu pensamento profundo, e jamais traçou melhor para o etnólogo sua missão de astrônomo das constelações humanas, do que nesta fórmula onde reuniu o método, os meios e o objetivo último de nossas ciências, e que todo Instituto de Etnologia poderia inscrever em seu frontispício: ‘É preciso, antes de tudo, fazer o catálogo mais amplo possível de categorias; é preciso partir de todas aquelas das quais se pode saber que os homens se serviram. Ver-se-á então que ainda há muitas luas mortas, ou pálidas, ou obscuras, no firmamento da razão.’" Lévi-Strauss, 1950

Iluminando O Pensamento Selvagem com a Introdução à Obra de Marcel Mauss Publicada em 1950, na ocasião do lançamento dos textos de Marcel Mauss na forma do volume Sociologia e Antropologia, a Introdução à Obra de Marcel Mauss se situa 12 anos antes da publicação dos dois livros (Totemismo Hoje e O Pensamento Selvagem) que marcam o “intervalo” no pensamento de Lévi-Strauss, e sua transição entre os dois programas de pesquisa que, dentre outros aspectos, se diferenciam por privilegiarem objetos diferentes: as lógicas do parentesco, inicialmente, e as do mito, no segundo momento. Com efeito, emergindo apenas um ano após a primeira edição de As estruturas elementares do parentesco, a introdução a Mauss se localiza ainda temporalmente distante do momento em que, nos anos 60, o autor elege os sistemas míticos da América enquanto seu objeto preferencial de reflexão e análise. No entanto, já nesse texto é possível vislumbrar algumas formulações que, em certo sentido, iluminam algumas das preocupações centrais da fase de transição que culmina com O Pensamento Selvagem. De maneira geral, elas dizem respeito a problemas relacionados a temas como simbolismo, significação, linguagem, comunicação; termos esses que se tornam concretos e observáveis em um campo específico, dentre os muitos recantos do universo: o pensamento humano. Pensamento esse que o autor buscou descrever em seu estado “selvagem”, isto é, em sua lógica básica e elementar de funcionamento, por meio

de classificações e significações e, ao efetuar tal descrição, veio a fixar também uma determinada concepção de humano; concepção que, acredito, é o fundamento mesmo da Antropologia de Lévi-Strauss. Texto de importante densidade, a introdução a Mauss trata de aspectos diversos da obra desse autor, que Lévi-Strauss distingue, reavalia e comenta. Um dos aspectos mais sublinhados, nesse contexto, é a complementaridade, ou mútua sobreposição, dos planos psicológico e social/sociológico. Como dois lados da mesma moeda, “as duas ordens não estão, uma frente à outra, numa relação de causa e efeito, mas [...] a formulação psicológica não é senão uma tradução, no plano do psiquismo individual, de uma estrutura propriamente sociológica” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 16-17). Para se posicionar frente ao problema da relação entre as duas dimensões, o autor aposta no simbolismo enquanto elemento unificador. Faz coro à definição de Mauss do social enquanto “um mundo de relações simbólicas” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 16), ressalta o caráter necessariamente coletivo dessas relações - “as condutas individuais normais jamais são simbólicas por elas mesmas: elas são os elementos a partir dos quais um sistema simbólico, que só pode ser coletivo, se constrói” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 16) -, e ainda corrige Mauss por não colocar o simbolismo na posição de, por assim dizer, fundamento ontológico do social: “Mauss julga ainda possível elaborar uma teoria sociológica do simbolismo, quando é preciso evidentemente buscar uma origem simbólica da sociedade.” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 22). Nesse sentido, a mútua sobreposição entre psiquismo e estrutura social tem para uma ciência social consequências metodológicas: se, por um lado, o plano psíquico é um elemento de um simbolismo total que o transcende, e diz respeito a uma realidade social, por outro, é apenas nele que os múltiplos aspectos desse simbolismo se revelam de forma integrada e sintética, sem estarem artificialmente divididos em faculdades. Dessa forma, as instituições sociais podem ser compreendidas na medida em que são observadas nas consciências individuais; é nas mentes, em sua concretude, que o social encontra sua prova e seu meio de verificação. É justamente esse o sentido da célebre noção de fato social total que Lévi-Strauss busca resgatar: mais do que uma integração de diversas facetas da vida social, sua característica é integrar não só a dimensão individual com a social, mas também a psíquica com o nível propriamente fisiológico. A partir disso, pode-se efetuar uma primeira síntese que pode ser relacionada com os pressupostos que informam as análises que Lévi-Strauss faz do pensamento

selvagem: o ser humano tem como característica inexorável o simbolismo, isto é, vive imerso em grandes sistemas de significação que são o que constitui as pontes entre os diversos níveis de sua existência, do orgânico, passando pelo psíquico, até o propriamente social. A centralidade do simbolismo pode ser notada, por exemplo, quando o autor o identifica com o próprio social: “Como a linguagem, o social é uma realidade autônoma (a mesma, aliás) [...]”. (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 29) Um outro aspecto, sobre o qual Lévi-Strauss faz apontamentos na introdução a Mauss, é derivado dessa primeira síntese: trata-se do modo em que a significação se organiza em sistemas, em séries distintas de termos relacionados em suas diferenças. Essas séries de termos compõem diversos planos, que não obstante se interrelacionam e comunicam entre si: Toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos, à frente dos quais situam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião. Todos esses sistemas visam a exprimir certos aspectos da realidade física e da realidade social, e, mais ainda, as relações que esses dois tipos de realidade mantêm entre si e que os próprios sistemas simbólicos mantêm uns com os outros. (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 19)

É essa concepção que permite a Lévi-Strauss falar em uma “tradução” de um sistema em um outro, ou ainda, como é recorrente, empregar o conceito de metáfora para explicar essa propriedade dos sistemas simbólicos de se cruzarem, se exprimirem uns nos termos dos outros e constituírem homologias que relacionam séries aparentemente situadas em ordens apartadas. Dessa forma, a imagem dos diversos planos da significação oferece também um ponto de partida para as questões do pensamento e da classificação com as quais se ocupa O Pensamento Selvagem, constituindo uma segunda síntese já presente na introdução a Mauss e que se faz presente no livro de 12 anos depois. Com efeito, serão as passagens entre as diversas camadas de significado, em seu caráter mais abstrato ou mais concreto, que o autor constatará ser uma das características essenciais do pensamento em seu estado selvagem.

Os muitos planos da significação: o totemismo como via de acesso Para abordar o problema de como os sistemas de significação não somente se constituem, mas também o modo como eles se encadeiam entre si e como se dá a passagem entre esses diversos sistemas, Lévi-Strauss se coloca a tarefa de desconstruir a categoria “totemismo”, que se tratava de um dos principais temas teorizados pela etnologia até sua época. Disso ele se ocupa não somente em O Pensamento Selvagem, mas também ao longo de todo o livro Totemismo Hoje, que é dedicado a esse problema. A intenção central do autor, nesse contexto, é demonstrar justamente como o fenômeno do totemismo, tal como descrito pela etnologia desde seus primórdios, era na verdade um núcleo complexo onde várias séries, ou eixos, de significação se cruzavam, constituindo metáforas uns dos outros. Tal constatação se opõe diametralmente à concepção tradicional do totemismo, que buscava isolar apenas duas entre essas muitas séries, a saber, a série natural e a série social. A primeira dizia respeito a espécies animais e vegetais, formando um eixo onde as diferenças observadas pelos seres humanos na natureza são chamadas a significar um outro eixo de diferenças: aquele formado pelos segmentos sociais opostos, separados pela organização social totêmica (a série social). Dessa forma, os diferentes clãs se expressam por diferentes espécies, de modo que uma série é significante da outra. Porém, nas palavras do autor, Os trabalhos [...] demonstram [...] como categorias totêmicas, primeiro isoladas para obedecer às consignas da etnologia tradicional, tiveram de ser progressivamente relacionadas pelos observadores a fatos de uma outra ordem e agora aparecem apenas como uma das perspectivas sob as quais é apreendido um sistema de várias dimensões. (LÉVISTRAUSS, 1989, p. 185)

Ou ainda: Dito de outra forma, os sistemas de denominação e classificação comumente chamados totêmicos retiram seu valor operatório de seu caráter formal, são códigos aptos a veicular mensagens transponíveis nos termos de outros códigos e a exprimir em seu próprio sistema as mensagens recebidas pelo canal de códigos diferentes. [...] Longe de ser uma instituição autônoma, definível por caracteres intrínsecos, o totemismo ou o que como tal se apresenta corresponde a certas modalidades arbitrariamente isoladas de um sistema formal, cuja

função é garantir a convertibilidade ideal dos diferentes níveis da realidade social. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 93)

Reconstruir um dos exemplos descritos por Lévi-Strauss ajuda a esclarecer as assertivas acima. Se as teorias do totemismo o definiam como o fenômeno de diferenças da organização social, como as divisões clânicas, que se expressavam nos termos das diferenças naturais entre as espécies, o exemplo das proibições alimentares entre os povos melanésios das Ilhas Banks e das Novas Hébridas, analisadas por Frazer, revela como sistemas de outros planos podem também estar relacionados à série natural. Nos sistemas de proibições que Frazer acreditou estarem na origem do totemismo em geral, que também prevê proibições alimentares em relação à espécie que dá nome ao clã, Lévi-Strauss enxerga uma multiplicidade de mensagens que se expressam pelo código das diferenças entre espécies. É assim que, nesse caso, as mulheres grávidas se identificam com algum animal ou planta, que penetra em seu corpo e sai depois em forma de criança. Estabelecida essa identificação, a ingestão da espécie associada à mãe e à criança se torna proibida. De forma semelhante, é comum que ao morrer um homem indique um animal sob a forma do qual reencarnará. A partir daí, tal animal também se torna um tabu a todos os descendentes do morto. No primeiro caso, a identificação entre a mulher e a espécie é feita pela comunidade, coletivamente, e a proibição se aplica de forma individual à mãe. No segundo, é o indivíduo quem determina a espécie, mas a interdição se aplica ao conjunto de seus descendentes. Dessa forma, tratam-se de dois sistemas inversamente simétricos no que se refere às oposições nascimento/morte e individual/coletivo. Ao que Lévi-Strauss conclui que são dois sistemas que não são aplicados ao conjunto de toda a sociedade, mas somente a indivíduos e grupos específicos; não obstante, são “sistemas de classificação que colocam uma homologia entre as diferenças naturais e as diferenças culturais” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 96). Assim, pode-se perceber como o pretenso totemismo, de fato, se desdobra em diversos outros planos que significam e classificam uns aos outros. Como via de acesso, estabelece um bom ponto de partida à proposta de seguir o encadeamento entre esses planos. Um outro exemplo, esse retirado do campo mais estrito da organização social em si, também atesta esse caráter polivalente dos termos que aparentemente se opõem a um outro de forma exclusiva. Trata-se do caso das organizações pretensamente dualistas, citadas em O Pensamento Selvagem e analisadas no artigo anterior As organizações

dualistas existem?, que após exame mais minucioso se revelam na verdade triádicas. Nesse caso, Lévi-Strauss concebe que as organizações ditas dualistas consistam em formas complexas demais para serem descritas por meio de modelos únicos, de modo que a suposta simetria entre duas metades oculte outras formas simultâneas de perceber a mesma estrutura social. Assim, nas aldeias bororo, que constituem um caso paradigmático dessa problemática, não é apenas a aparente divisão em duas metades exogâmicas que determina as alianças matrimoniais: há um outro sistema concomitante que perpassa todos os clãs e os divide em três classes endogâmicas. Essa outra estrutura, nem sempre notada pelos teóricos das organizações dualistas, revela um triadismo onde antes acreditava-se existir apenas uma oposição entre dois termos binários. Mais uma vez, um sistema de classificação “totêmico” se mostra integrado a outra série de classificações, que é formada por signos de outra ordem que, não obstante, se relacionam com a primeira série. Desenvolvendo esse aspecto elucidado pelos exemplos, as classificações totêmicas oferecem um bom ponto de partida, também, para uma outra chave de análise: aquela que se ocupa, para além das relações entre sistemas classificatórios, dos variados tipos desses sistemas, em seus diferentes graus de abstração. Para tanto, Lévi-Strauss parte não apenas das estruturas totêmicas em geral, mas da particularidade lógica da noção de espécie (no geral, animais e vegetais), que permite que ela desempenhe um papel central nessas estruturas. Nelas, a noção de espécie ocupa a posição especial de ser o que o autor nomeia como operador totêmico, e permitir a passagem tanto aos níveis mais abstratos quanto aos mais concretos. Tal operacionalidade é derivada precisamente do que o autor chama de uma estrutura lógica dessa noção, que faz com que ela se constitua como portadora de uma “significação privilegiada”, e por isso mesmo eleita pelos sistemas totêmicos como fornecedora da série significante principal. Para ele, as espécies naturais oferecem uma “distintividade natural”, um conjunto descontínuo dado na natureza que funciona como um meio de acesso a outros sistemas distintivos. Além disso, ela se situa a meio caminho entre o abstrato e o concreto, em uma posição intermediária a igual distância lógica entre as formas extremas (categóricas e singulares) de classificação, na medida em que media multiplicidade e unidade. A primeira aparece na noção de espécie ao passo que esta busca reunir sob seu domínio uma série de indivíduos concretos heterogêneos: ao se reconhecer uma espécie particular, se está necessariamente falando de vários indivíduos distintos que compõem

essa espécie, sendo cada um, de certa forma, irredutível aos outros em sua existência real. Já a segunda é um aspecto que toma relevância por conta da propriedade dessa noção de postular uma semelhança que unifica todos esses indivíduos distintos, os quais constituem uma unidade que se diferencia de todas as outras espécies. Dessa forma, o operador totêmico oferece uma mediação entre diversos sistemas classificatórios, e ele o faz atuando em duas direções diferentes, analisadas por LéviStrauss: a da universalização e a da particularização. Esse “classificador médio” pode, assim, vir a ampliar-se na direção dos classificadores mais abstratos, como os elementos, as categorias e os números, ou dos mais concretos, como os nomes próprios. Um exemplo expressivo de tal universalização são as próprias classificações ditas totêmicas, quando o pensamento estabelece uma relação de significação entre as espécies e determinados grupos sociais. Nesse contexto, as espécies sofrem um alargamento e tornam-se categorias que classificam esses grupos, por vezes constituindo categorias tão gerais que chegam a transcender os limites de uma sociedade determinada, chegando até a localizar animais não-humanos, como animais domésticos, por exemplo, sob o rótulo do totem. Já na direção da particularização, a categorização dos indivíduos nos grupos fornece exemplo de como as classificações também modelam as características individuais, constituindo uma “regra individualizante”. Como analisa Lévi-Strauss, entre os índios sauk uma divisão entre duas metades não determinava a exogamia para as pessoas pertencentes a elas, e sim cumpriam uma função cerimonial de nomear e caracterizar comportamentos relacionados a obrigatoriedade ou possibilidade de renunciar a certos empreendimentos. De direito, se não de fato, uma oposição por categorias influenciava então diretamente o temperamento e a vocação de cada um, e o esquema institucional, que tornava essa ação possível, atestava a ligação entre o aspecto psicológico do destino pessoal e seu aspecto social, que resultava da imposição de um nome a cada indivíduo. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 193)

O autor postula, então, uma homologia entre as diferenças notadas entre os indivíduos dentro de uma mesma classe e as diferenças entre essa mesma classe e o conjunto das outras classes.

Nesse ponto, quando se atinge o “último nível classificatório”, o da individuação, o esquema lévi-straussiano encontra um problema colocado por sua própria proposta de seguir as estruturas de significação em suas diversas camadas abstratas e concretas: a questão de se é possível que as nomeações consistam também em classificações, isto é, se podem significar uma reunião de objetos identificáveis como distintos entre si, ou se o pensamento encontra o limite de um nível em que não pode mais significar uma classe, mas apenas nomear objetos individuais (nesse caso, objetos que só podem significar a si próprios). Ao que o autor responde reafirmando a característica inexorável dos nomes próprios de se constituírem enquanto signos localizados em códigos, “modos de fixar significações, transpondo-as para os termos de outros códigos” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 194). Desse modo, mesmo quando parecem ser autorreferentes, os nomes necessariamente remetem a uma classe; mesmo quando parecem rebelar-se contra qualquer classificação, na verdade estão significando justamente a rebeldia contra a classificação, o que em si, constitui uma classe situada em uma estrutura de oposições (função semelhante à que a fonologia estrutural reservava ao “fonema zero”). É assim que, em sistemas de parentesco como o dos iroqueses, o indivíduo só recebe um nome próprio que não se refere a uma classe de parentes quando uma impossibilidade lógica o impede de figurar no interior dessa classe, porém, ainda assim, sua aspiração é poder nomear-se por meio dela, à qual seu nome próprio provisório se opõe. Dessa forma, observa-se uma circularidade no encadeamento dos signos: onde a relação de significação parece colapsar, novas pontes se estabelecem unindo os diversos sistemas, em suas diferentes semânticas e níveis de abstração.

O “lado de fora” da estrutura: eventos, contingência, história e significante flutuante Muitas das principais críticas dirigidas ao modelo que Lévi-Strauss propõe para explicar o pensamento selvagem giram em torno do problema de uma excessiva rigidez e fechamento dos sistemas analisados pelo autor: nesse contexto, as estruturas que ele expõe seriam tão idealmente formalizadas e coerentes que não abririam espaço para os acontecimentos singulares, a diacronia e a existência concreta das estruturas no tempo, ou na história, com suas vicissitudes e causalidades imprevistas.

No entanto, as estruturas que o autor pretende explicar não se limitam a sistemas estáticos e refratários a transformações; na verdade, no modelo elaborado por LéviStrauss as estruturas são uma tendência geral do pensamento selvagem de colocar em estrutura, isto é, incorporar à sua lógica os eventos que a ela escapam. Em vários momentos esse movimento se deixa observar, e um dos exemplos mais ilustrativos dados pelo autor é o caso da demografia em relação à organização interpretada como totêmica, dividida em clãs. Em um caso imaginário, uma sociedade dividida em três clãs sofre, por conta das contingências da evolução demográfica, o crescimento excessivo de um dos clãs e o desaparecimento de outro. Nesse contexto, a estrutura triádica se preserva ao dividir o maior grupo em dois subclãs, que posteriormente são elevados ao estatuto de clãs. Todavia, os outros planos de significação, os sistemas classificatórios relacionados ao sistema das denominações clânicas, não se alterariam no mesmo ritmo; neles, o pensamento teria que elaborar as transformações sofridas e adaptá-las aos próprios termos dos sistemas anteriores: mito e ritual, por exemplo, teriam que mudar, porém, de maneira relacionada com a inércia que faz com que tudo se passe como se fossem dotados de uma persistência. Assim, [...] esse conjunto reagirá a toda mudança que afete a princípio uma de suas partes, como uma máquina de feed-back: dominada por sua harmonia anterior, ela orientará o órgão desregulado no sentido de um equilíbrio que será, pelo menos, um ajuste entre o estado antigo e a desordem introduzida de fora. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 85)

Essa discussão pode ser relacionada com as afirmações, ainda na introdução a Mauss, em torno do que Lévi-Strauss chama de significante flutuante. Esse conceito diz respeito justamente a um excesso de significante, uma defasagem entre significante e significado que é inerente ao pensamento humano. Essa condição deriva precisamente do fato de os objetos passíveis de assumirem significações estarem sempre em quantidade e extensão maior do que a capacidade do pensamento de ajustá-lo a significados específicos, na forma de conhecimento. Em última instância, o universo inteiro é significante. Como coloca o autor, “uma passagem efetuou-se, de um estágio em que nada tinha um sentido para um outro em que tudo o possuía” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 41), o que também converge com a lógica “totêmica” analisada em O Pensamento Selvagem, que está sempre em busca de totalizações, de sistemas que

organizem os sentidos de forma global. Com efeito, “o princípio do tudo ou nada não tem apenas um valor heurístico, ele exprime uma propriedade do ser: tudo oferece um sentido, senão nada tem sentido” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 194). Por essa razão, pode-se concluir que as estruturas estão sempre de alguma forma incompletas e em transformação, se deparando com novos eventos e organizando-os em relação aos termos já conhecidos.

Enigmas no modelo de Lévi-Strauss: a arte e a “irredutibilidade dos sistemas” Por fim, apesar da abrangência e coerência do modelo elaborado por LéviStrauss ao longo de todo O Pensamento Selvagem, ainda há zonas enigmáticas e sugestivas, de certo modo ainda por se explicarem, que seu esquema engendra. Uma delas diz respeito às formas particulares de significação, nas formas de conhecimento que operam por meio do signo. Mais precisamente, à distinção que o autor busca elaborar entre arte e mito. Se, no final do livro, ele afirma que na cultura ocidental “conhecem-se ainda zonas onde o pensamento selvagem, tal como as espécies selvagens, acha-se relativamente protegido”, e que esse “é o caso da arte, à qual nossa civilização concede o estatuto de parque nacional, com todas as vantagens e os inconvenientes relacionados com uma fórmula tão artificial” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 245), no primeiro capítulo, há um esforço deliberado de estabelecer diferenciações entre a arte e o que seria a lógica mais geral do pensamento selvagem, representada pelo mito. Nesse escopo, tal diferenciação recairia principalmente sobre a relação entre estrutura e evento nas duas formas. Se no mito impera a lógica da bricolage, que é o reaproveitamento dos signos da linguagem já existente de modo a reestruturá-los de forma nova, gerando assim as transformações estruturais, na arte o que autor denomina como contingência, algo como um evento novo, ocupa um papel central: as especificidades do momento da criação são incorporadas à obra, que constitui um modelo reduzido do mundo e que dá sentido, isto é, significa, esta mesma contingência. Porém, se no mito as estruturas podem ser delineadas na medida em que ele traz uma narrativa que organiza e classifica o mundo, na arte as descontinuidades, acredito,

são menos visíveis. Como então, em uma obra que se quer orgânica e total (uma pintura, por exemplo), identificar as descontinuidades que são essenciais a qualquer série de termos que pretenda cumprir a função de série significante? É preciso que se considere, assim, uma forma de significação que não opere na forma de oposições de termos descontínuos. Forjar a estrutura, identificar o eixo de diferenças onde os termos se justapõem, assim, permanece uma dificuldade no caso de uma linguagem como a da arte, ainda que para ela, na forma do modelo reduzido, se coloque a mesma prerrogativa que há para o resto do pensamento simbólico: a de empobrecer as determinações concretas do mundo sensível para que elas possam se tornar significativas. Talvez um norte para essa reflexão possa ser encontrada na própria introdução a Mauss, quando Lévi-Strauss afirma que mesmo numa sociedade teórica imaginada sem relação com nenhuma outra e sem dependência de seu passado, os diferentes sistemas de símbolos

cujo

conjunto

constitui

a

cultura

ou

civilização

permaneceriam irredutíveis entre si (a tradução de um sistema num outro sendo condicionada pela introdução de constantes que são valores irracionais) (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 21).

Em que medida tal irredutibilidade limita a tradução metafórica das mensagens entre os diferentes planos da significação? Como a partir daí pensar a singularidade de uma forma de simbolismo como a arte (ou a do mito, do ritual, da religião)? São questões que, ao serem postas ao modelo teórico de Lévi-Strauss acerca do pensamento e da linguagem humana, podem, possivelmente, vir ajudar a esclarecê-lo.

Referências bibliográficas

LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Campinas, SP: Papirus, 1989. LÉVI-STRAUSS, Claude. “Introdução á Obra de Marcel Mauss”. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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