SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA ESCRITURA DE JACQUES ROUBAUD

May 22, 2017 | Autor: Rodrigo Araujo | Categoria: Oulipo, Jacques Roubaud, Silêncio, Filosofia, Poesia francesa
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II Encontro Nacional e I Internacional de Linguística e Literatura O Canto da Palavra

SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA ESCRITURA DE JACQUES ROUBAUD Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)1 Resumo: Este artigo investiga o tema do silêncio e da contemplação na escritura do poeta francês Jacques Roubaud, tomando-se como corpus de análise a obra Algo: preto (2005). Membro do grupo OULIPO (Ouvroir de Littérature Potentielle), cuja proposta central é criar novas possibilidades para a literatura, como laboratório de linguagem, Roubaud foi, na poesia, ao lado de Georges Perec, na prosa, um dos mais expressivos nomes da literatura francesa pós década de 1960. Ao resgatar o liame da literatura com o real, não mais a obra como organismo fechado e sim como iniciação à vida, se assim seguirmos com a crítica de Antonio Candido (2006), tomamos como fio condutor as possibilidade de a literatura dialogar com outros campos, e assim propomos, na obra de Roubaud, um trânsito do poético com o pensamento neoplatônico de Plotino para argumentarmos ser a escritura de Roubaud uma experiência do silêncio primordial, possibilidade de contemplação; quando a palavra, em silêncio, propõe a verdadeira comunicação. Do encontro entre a literatura e o desembocar místico da metafísica plotiniana, a palavra roubaudiana é theoría, contemplação no silêncio. Palavras-chave: silêncio; meditação; contemplação; poesia; filosofia. QUESTÕES DE CRÍTICA, FUNDAMENTAÇÃO DE DIÁLOGO Que os isolamentos e amarras na obra literária tenham sido afastados, isso parece ficar evidente quando se desatam nós formalistas2, e quando trazemos ao cenário da crítica uma abordagem plural, de vários enfoques, isto é, quando falamos de crítica comparada, de crítica biográfica, de crítica genética etc. Esse é o trabalho a que vem se dedicando, por exemplo, a professora de crítica literária Eneida Maria de Souza, ao abordar a expansão da crítica literária. Em um trabalho sobre crítica biográfica, é-nos esclarecedora sua colocação salutar dos rumos da crítica que, ao "se expandir em várias vertentes [...], torna-se às vezes difícil impor limites de sua prática. Diante do aspecto abrangente das disciplinas e de sua abertura transdisciplinar, revela-se inoperante e retrógrada a separação entre domínios específicos" (SOUZA, 2011, p. 20). A sagacidade da palavra da autora nos revela a incapacidade de fechar o diálogo interdisciplinar e a necessidade de operação transdisciplinar, como dirá a autora em um ensaio-provocação: a "rigidez disciplinar nos discursos críticos contemporâneos é uma aventura destinada ao fracasso, uma vez que a particularidade desses discursos reside justamente no rompimento de princípios reguladores 1

Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UFS. Bolsista pela Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe, FAPITEC/SE, e integrante do Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura (GeFeLit/UFS). E-mail: [email protected] 2 Cf. especialmente COHEN, 1975; TINIANOV, 1975; E. PRADO COELHO, s/d; L. COSTA LIMA, 1975. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 784

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da racionalidade moderna" (SOUZA, 2012, p. 40). Deste modo é que se fazem necessários e precisos estudos como o da literatura comparada e abordagens como as intertextuais3. Com efeito, intenta-nos aqui tomar a obra não como organismo fechado, mas como um organismo aberto a outros discursos, outras possibilidades, outros caminhos. Uma casa aberta, se assim tomarmos a imagem de uma casa aberta, cheia de possibilidades, utilizada pelo cineasta sul-coreano Kim Ki-Duk, em seu filme Casa Vazia (2004), onde um desconhecido destina-se sempre a errantes caminhos do possível, habitando casas vazias e tecendo moradas. Assim também faremos, como o solitário personagem andante sulcoreano, fazendo outros discursos assim habitarem a literatura. Antes de tudo, propor um enfoque plural na abordagem da obra literária, nas trilhas de Eneida Souza, é resgatar o liame entre a obra literária e a realidade. É fazer do pensamento crítico literário algo tão vivaz quanto a obra possibilita ser, isto é, "é a necessidade de um pensamento poéticocrítico-teórico a partir da literatura não ser e nem se querer cinzento, mas tão verdejante e áureo, tão colorido, quanto a obra que ele aborda", diz Alberto Pucheu (2012, p. 114) em um ensaio de releitura da crítica. Um ensaio que chama e convida para a crítica levantada e seguida por Antonio Candido, crítico de "conversação glosada" (ARRIGUCCI JR, 1999, p. 238), este que se inscreve o maior crítico brasileiro, com a razão do título. Candido, que toma a literatura como manifestação universal, objeto construído que é instrutor e "de papel formador de personalidade" (CANDIDO, 2004a, p. 175-6), já nos mostra em um artigo de 1988, "O direito à literatura" (2004a), o papel que tem a literatura de tangenciar a realidade. Já em um artigo de 1957 para o "Suplemento Literário" do Estado de S. Paulo, Antonio Candido introduz a discussão que levará à máxima nos textos seguintes: a introjeção do mundo na obra literária, obras que "manifestam simultaneamente os dois aspectos da realidade - interior e exterior" (CANDIDO, 2004b, p. 33). Tal manifestação terá ênfase na crítica de Candido no ensaio de 1961 "Crítica e Sociologia", onde a integridade da obra pode ser apreendida no entrelace do texto e do contexto. Externo e interno. Pois o externo (social) "importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno" (CANDIDO, 2000, p. 6)4. O caminho que Candido persegue não é crítica sociológica, nem mera sociologia da literatura (no sentido unilateral), mas uma crítica em que o elemento 3 4

Cf. SAMOYAULT, 2008; NITRINI, 1997. Grifo do autor. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 785

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social influencia a obra, que "ajuda a compreender a formação e o destino das obras" (Idem, p. 34)5, onde um (externo) está no outro (interno), ou um se torna outro. O que nos interessa concluir na crítica de Candido está em um trecho de entrevista de 1974, onde Candido fala da obra literária enquanto múltiplos sistemas, e que uma leitura puramente formal da obra é sempre fecunda, pois quando "nos colocamos no piano da correlação dos signos, dos sinais do texto, com os sinais de outros sistemas, a leitura formalista se torna insatisfatória" (CANDIDO, 2011, p. 9). Se, com Candido, podemos tomar a obra literária como um organismo vivo, tão vivo quanto a própria literatura - e lembrando que é o próprio Candido que diz que a "literatura é um sistema vivo de obras" (CANDIDO, 2000, p. 74) -, o intuito deste artigo é situarmo-nos nas paragens pós-Candido, isto é, tomar o seu método de crítica e sua compreensão de literatura e seguir nas veredas da interdisciplinaridade, fazer uma crítica tão viva quanto a obra, para reafirmar as palavras de Pucheu (2012). Nossa proposta é, portanto, um diálogo com o campo filosófico, ou melhor, a construção de um espaço interdisciplinar onde as práticas discursivas, literária e filosófica, possam dialogar. Construir uma intersecção. Entre filosofia e literatura, dois campos disciplinares tão distintos e tão próximos, com seus diálogos e querelas de longas datas, desde os primórdios do pensamento filosófico ocidental, indispensável para nossa proposta de trânsito é a presença do crítico literário e filósofo paraense Benedito Nunes (2010), para o qual centraliza em seu trabalho crítico a questão do diálogo entre os dois campos, dedicando-se aos dois com mesma intensidade da palavra. A engenhosidade da crítica de Benedito Nunes é a fundamentação de seu método ao qual chama de "método transacional", uma transa "sem que cada qual esteja acima ou abaixo de sua parceira, numa posição de superioridade ou inferioridade do ponto de vista do conhecimento alcançado" (NUNES, 2010, p. 13). Corpos entrelaçando-se, linhas que se encontram. Doação mútua. Trânsitos frenéticos. Aprendizado, como dirá o crítico em Hermenêutica e poesia (1999, p. 15). Entre filosofia e literatura, tensões já sentidas pela agulha da crítica literária, como fez perceber Luiz Costa Lima em recente livro, A Ficção e o poema (2012), ao circunvizinhar o pensamento heideggeriano6. Uma aproximação

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Grifo nosso. Faz-se importante tomar conhecimento, por exemplo, da leitura que Luiz Costa Lima faz da poesia, que tem por matéria a irradiação do abissal, a partir de um grupo de poetas incluindo o nosso poeta francês Jacques Roubaud. Ver capítulo 2 da segunda seção do livro A Ficção e o poema (2012, p. 184-209). SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 786 6

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compreensiva7 em que da paixão do diálogo desvelem-se textos-mundo na possibilidade das tessituras vivificantes da obra literária. Nosso corpus de análise, no horizonte da literatura, é um poema do poeta francês Jacques Roubaud - vale-se deixar claro que, na proposta de diálogo entre filosofia e literatura, o nosso texto-base é a literatura. Do outro lado do rio, olharemos para a filosofia antiga, especificamente em um filósofo alexandrino Plotino, e do neoplatonismo faremos posse de algumas assertivas para no espaço cambiante tecer uma crítica original. Ou melhor, justificarmos a tese de que, do encontro entre o poeta francês e o filósofo neoplatônico, a escritura roubaudiana faz-se no silêncio e está em estado de contemplação.

1. NAS FLORESTAS DA FILOSOFIA NEOPLATÔNICA Por que nosso interesse na filosofia antiga, especialmente o neoplatonismo? E o que vem a ser Neoplatonismo? Voltando-nos para a Antiguidade Clássica, temos os dois grandes paradigmas da metafísica ocidental: de um lado, a ontologia (o sentido do Ser); do outro, a henologia (o Uno superior a todo ser, o princípio de toda causa)8. "Por que este mundo existe?", "por que o mundo incorpóreo gerou o mundo corpóreo?", essas são algumas das grandes perguntas da ontologia e da metafísica. Em História da filosofia: filosofia pagã antiga (2003), do filósofo italiano Giovanni Reale, pode-se fazer um trajeto desde Tales de Mileto, passando pelos pitagóricos entre os séculos V e IV a.C., por Platão, até o fechamento da escola platônica em 86 a.C., e ainda, pelos dois séculos depois de Cristo, pelo médioplatonismo, movimento que fez ressurgir as ideias platônicas, neopitagorismo, até chegarmos no século III d.C. A corrente chamada Neoplatônica é conhecida por fazer exegese do pensamento de Platão9 e por hierarquizar sua ideia de "real". Na busca por respostas às grandes perguntas metafísicas, nosso filósofo neoplatônico Plotino parte tecendo épuras, voando por galáxias. Dos cinquenta e quatro tratados deixados por Plotino, o seu discípulo e biógrafo Porfírio reúne-os em seis tomos, tendo em cada tomo nove tratados, dispostos por temas afins e que vai do mais fácil (os primeiros tratados) ao mais

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Cf. NUNES, 1993. Optaremos pela tradução do termo grego hen por Uno, mantendo na palavra a ideia de princípio superior, unidade. 9 Pode-se conferir: HAVELOCK, 1963; 1996; REALE; ANTISERI, 2003; BRÉHIER, 1944. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 787 8

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complexo (últimos dos nove tratados). E deu o título da única obra capital de Plotino de Enéadas (do grego ennea, nove)10. Ao partir de Platão para tecer sua filosofia, Plotino apresenta uma estrutura triádica chamada "as três hipóstases principais". A primeira hipóstase é o Uno, o princípio (arché), unidade primeira, incorporal e ausente de qualquer desejo, vontade ou necessidade: o "perfeitíssimo Bem" (PLOTINO, 2002, p. 57)11, uma "potência que engendra os seres, mas permanece em si mesma, sem ser diminuída e sem estar ela mesma nos seres que engendrou, pois é anterior a eles" (Idem, p. 131)12. Potência (dýnamis), fonte que transbordará as outras hipóstases, não por vontade, mas por um ato espontâneo. Gera, mas permanece em si mesmo e livre de qualquer predicação - ponto peculiar na filosofia de Plotino, pois não se pode predicar este princípio superior a todas as coisas e todo ser chamado Uno, a linguagem é insuficiente e assim só podemos ter uma parcial compreensão dessa fonte que irradia luz. Diz-nos na Enéada VI, que mais verte sobre o tema do Uno: "Mesmo quando dizemos que ele é a causa, não é a ele que atribuímos um predicado, mas a nós mesmos, pois somos nós que temos em nós algo que vem d'ele, enquanto ele está sempre em si mesmo" (PLOTINO, 2002, p. 127)13. Abaixo do Uno está a segunda hipóstases, a Inteligência (noûs), "uno-muitos" (PLOTINO, 1998, p. 90)14, pois recebe unidade daquele que a gerou, mas é diversa, porque o Uno produz algo que é diverso de sua extrema simplicidade. Múltipla na unidade, a atividade da Inteligência é contemplar o princípio que lhe gerou e pensar a si mesma. O noûs gera a terceira hipóstase, a Alma (psykhé), que estruturará em três tipos de Alma15. Veja-se que a estrutura triádica plotiniana encerra-se no mundo inteligível, que está acima deste nosso (Plotino, na trilha do mestre Platão, pensa dois tipos de realidade: a realidade inteligível, das ordens superiores, e a realidade sensível, este mundo físico dos seres corpóreos). A natureza do mundo sensível (phýsis), gerada por uma parte da Alma, é fruto de um estado contemplativo da atividade contemplativa da Alma, contemplando o 10

Cf. PORFÍRIO, 1982. Para a referenciação à obra de Plotino, utilizaremos uma ordenação que consiste em apontar o volume da Enéada primeiro, depois o número do tratado dentre os nove, depois o capítulo do tratado. Neste caso, tem-se Enéada V, 4, 1. 12 Enéada VI, 9, 5. As citações do ano de 2002 correspondem à edição Tratado das Enéadas, com tradução de Américo Sommerman. 13 Enéada VI, 9, 3. 14 "Uni-múltiple", Enéada V, 4, 1. Tradução nossa. As traduções, tanto em espanhol quanto em francês, são 11

traduções literais nossa. 15 Cf. REALE, 2012, p. 75-86. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 788

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noûs, este que está contemplando o Uno. Este movimento de contemplação e produção, Plotino denominou de "processão" (próodos) e conversão (epistrophé). Para Plotino, toda produção (as hipóstases, uma produzindo a outra) traz em si algo de contemplação. O mundo físico é resultado direto de uma atividade contemplativa. Vejamos o que diz Plotino na Enéada III, no oitavo tratado - certamente um dos mais belos tratados de Plotino: "a natureza possui [contemplação], e porque possui, também produz. Ser o que é, [...]. Ela é contemplação e objeto de contemplação. Um logos, portanto" (PLOTINO, 2008, p. 59)16. Olhando para o alto, o movimento epistrófico para Plotino é justamente o "desejo intelectivo de retornar ao princípio" (PLOTINO, 2002, p. 88), para o Uno de onde as coisas foram geradas. Logo, o pensamento plotiniano "compreende a realidade como um ciclo onde a vida produz vida e onde todo ser gerado é uma razão potencialmente vivificante" (BEZERRA, 2006, p. 91). Simplicidade, iluminação, produção, retorno, unificação, natureza, beleza, bem, virtudes, contemplação. Eis os alguns dos grandes temas da filosofia plotiniana. A genialidade de Plotino, e que aqui nos interessa para seguir movimento, é tomar a realidade como contemplação. E nas boas ditas palavras de Giovanni Reale (2012, p. 134), "a contemplação é silêncio". E é nesta realidade contemplativa que partimos para nosso espaço de entremeio, para o entre-dois, como quer Maurice Blanchot (2001, p. 35).

2. QUANDO FALA O SILÊNCIO DA POESIA Jacques Roubaud, poeta, professor, tradutor, matemático por formação, membro do OULIPO (Ouvroir de Littérature Potentielle)17 desde 1966 a convite dos dois grandes mentores do grupo, Raymond Queneau e François Le Lionnais, é, sem dúvida, um dos grandes nomes da literatura francesa contemporânea, autor de uma intensa obra. Poesia, prosa, matemática, tudo posto em movimento na escritura roubaudiana, numa obra de extremo rigor e fascínio. Jacques Roubaud, um "Orfeu no inferno moderno", diz Véronique Montémont (2004, p. 281), em Jacques Roubaud: l'amour du nombre, um livro introdutório ao poeta.

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Tradução de José Baracat Jr. Traduzido literalmente para o português seria "oficina de literatura potencial". O substantivo ouvroir (oficina) já remete a ideia de trabalho. Assim o grupo OULIPO buscou explorar as possibilidades do fazer literário por meio de diversas formas combinatórias. Neste jogo, a literatura se pôs frente à matemática. Duas atividades em si distantes, díspares, mas que na oficina oulipiana se encontram, confluem, trocam olhares. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 789 17

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Embora pouco conhecido no Brasil, Roubaud desde suas primeiras obras transita do verso à prosa (embora sendo mais conhecido pela prosa). Sua poesia traz uma tentação de prosa. Versos soltos na profundidade da página em branco, da pagina abissal (a tal da "crise do verso" como vociferam os concretistas brasileiros). Na poesia de Roubaud, "o sujeito lírico oscila entre vários polos enunciativos e ocupa toda uma gama de posições possíveis, da mais clássica a mais biográfica, para tornar-se um raio de vozes múltiplas" (MONTÉMONT, 2004, 290)18. Como diz Inês Oseki-Dépré (2009, p. 390), "uma poética original"19, ou ainda, "um puzzle literário", como diz Jacques Fux (2010, p. 294). O poema que visamos análise encontra-se no livro de poesias Quelque chose noir, livro publicado em 1986 e traduzido por Inês Oseki-Dépré, e já apresenta uma estranheza no título - em Português Algo : Preto (2005). Algo: Preto: um livro de luto, escrito após a morte de sua esposa, a fotógrafa Alix Cleo Roubaud; uma escritura que tenta romper o silêncio da morte. O que é a morte senão esta que atesta a nossa finitude? A "musa da filosofia" como diz Schopenhauer em Metafísica do Amor, Metafísica da morte (2000, p. 59), pois vários foram os poetas que filosofaram a morte; como também vários foram os poetas que a cantaram. Citemos, então, o poema "Nuvens": Simplicidade do ser distinção numérica conhecimento da tarde Formas subtraídas à hesitação Natureza iniciadora, na luz hierárquica Purificações iluminações perfeições Contemplações imitações em três modalidades Percepções deliberações decisões Recepções revelações união Conformidade descendente Glórias. equivalentes (ROUBAUD, 2005, p. 97).

O poema "Nuvens" (e podemos dizer que todos os poemas de Algo : Preto) tem como traço característico a quebra do verso, o voo livre em nebulosa das palavras pela totalidade da página em branco. Uma página-palco de natureza búdica20 onde lá as palavras habitam. Palavras soltas, velozes como em um lance mallarmaico. Como um poema concreto, olho por olho, pulsando num ritmo orgânico - como disse o poeta Augusto de Campos num manifesto da poesia concreta: "tensão de palavras-coisas no espaço-tempo"

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Le sujet lyrique oscille entre plusieurs pôles énonciatifs et occupe toute la gamme des positions possibiles, de

plus classique à la plus biographique, pour devenir ce faisceau de voix multiples". Tradução nossa. "Une poétique originale". Tradução nossa. Cf. RODRÍGUEZ-IZQUIERDO, 2010. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 790

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(CAMPOS, 2006, p. 72)21. O poema, logo no início, é então disposto de forma triádica. O primeiro verso, com suas aliterações22 e dilações espacejadas, é mais um estendal tríbraco. Temos: (i) simplicidade; (ii) números (matemática); e (iii) tarde (natureza, phýsis). Três asserções, três motes, três balaustradas que nos conduzem ao pensamento antigo grecoromano. O lance roubaudiano convida o neoplatonismo para a valsa no entremeio. Para desvelar a simplicidade do ser, para inscrever o número um (a unidade) e o número dois (a multiplicidade). Para ver a tarde no horizonte da natureza (phýsis) e contemplá-la. E na simplicidade do movimento amarelado de fim de tarde, sentir o entardecer para contemplálo e depois alçar voo: subir aos céus sem cordas pra segurar23. Contemplação (theoría). Dilatar-se no amarelo da tarde, como os pássaros voando em amarelo nas veredas rosianas24. E como contemplar a tarde na simplicidade? Ou a simplicidade da tarde? Não foi um poeta brasileiro, o curitibano Paulo Leminski que já chamava atenção para o olhar contemplativo? Dizia: "lembrem de mim/ como de um/ que ouvia a chuva" (LEMINSKI, 1983, p. 58). Ver e ouvir: sentir. E em silêncio. Os versos seguintes do poema nos levam a esse estado contemplativo: "natureza iniciadora" que nos conduz à valsa epistrófica. E outra disposição triádica: (i) purificações; (ii) iluminações; (iii) perfeições. A origem da natureza está no alto, no bem, no belo25. No alto também está a iluminação e a perfeição: virtudes superiores26. Mais adiante, nos dois versos seguintes, a simetria usada no poema é reveladora: a utilização de homeoptotos27 sugere uma cadência ondulada de sons que desencadeia o desejo de conversão, de busca, de retorno ao princípio, de contemplação das virtudes superiores - a única palavra que não se encaixa no homeoptoto é o substantivo união: proposital. O desejo das almas não é a união com aquele que o gerou, o Uno? O Uno está acima de todas as coisas e não se enquadra em qualquer predicação. O substantivo "união" em não "conformidade" com as palavras nas mesmas funções assume o caráter de não-enquadramento que confere à unidade primeira. Logo, os versos simétricos do poema estão atentos à contemplação, olhando para o alto, 21

Grifo nosso. Cf. MOISÉS, 2004. 23 Fazemos aqui uso de um verso de canção de Gilberto Gil, "Se eu quiser falar com Deus". 24 Referência a um trecho do conto de Guimarães Rosa, "O Recado do Morro", no livro No Urubuquaquá, no pinhém (1969, p. 8): "papagaios roucos gritam: voam em amarelo, verdes...". 25 É o que Plotino irá dissertar no tratado "Sobre o Amor", cf. Enéada III, 5, 1, p. 99-118. Tradução de José Baracat Jr. 26 "Iluminação" e "perfeição" são as virtudes superiores que Plotino fala no segundo tratado da Enéada I sobre as virtudes, "Sobre las virtudes", Enéada I, 2 p.207-219. 27 Cf. TAVARES, 1981, p. 223. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 791 22

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desejando o retorno à unidade fundadora e encontro com as virtudes superiores. Está carregado de experiência mística, de desejo de êxtase. Carregado de virtudes, de beleza. E por isso está carregada de felicidade, conglomerado de bens28. Glórias.

3. QUANDO FALA A CONCLUSÃO Com o poema "Nuvens" podemos concluir que a escritura roubaudiana é theoría (contemplação). Uma contemplação que não tem limites e, como quer Plotino, que ocorre em todos os níveis da vida29. O ato contemplativo resulta, em Plotino, em um theórema, e quanto mais perfeito for o theórema, mais perfeita será a theoría. Eis a peculiaridade ontológica de Plotino. E a poesia de Jacques Roubaud, ao contemplar, marcada de experiência mísitica, faz-se silêncio30. Silêncio rumo ao nada absoluto que tudo é31. O silêncio aqui fala, comunica. O silêncio primordial. Ao escrever o silêncio, "a literatura pretende fazer da linguagem um absoluto e reconhecer nesse absoluto o equivalente do silêncio" (BLANCHOT, 1997, p. 67). Um silêncio que só se alcança "a partir das palavras e como o sinal essencial de sua realização" (Idem, ibid). A conclusão desta tese feita por Maurice Blanchot cabe para a escritura de Jacques Roubaud, pois "só há linguagem no silêncio" (Idem, p. 70). Partir com Jacques Roubaud, Blanchot, Plotino para fazer da escritura aquela que emerge do silêncio, mas um silêncio tão vivaz e comunicador que qualquer signo verbal. Uma escritura que nos leva à contemplação, que nos conduz à simplicidade e, quem sabe, não nos joga num profundo fundo sem fundo em que despertamos um outro olho, um olho que, fechado, tudo vê. Em torno da mística plotiniana e em torno da escritura roubaudiana, quem sabe não seremos lembrados como quem olha para as nuvens?

REFERÊNCIAS ARRIGUCCI JR., Davi. Outros Achados e Perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. BEZERRA, Cicero Cunha. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis: Vozes, 2006. BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

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Tese de Plotino em Enéada I, 4, p. 239-261. Cf. PLOTINO (2008), capítulo 5 da Enéada III, 8, p. 61-65. Tradução José Baracat Jr. Cf. PLOTINO (2008), capítulo 4, idem. p. 59. Cf. especialmente a obra Pensar desde la nada (2006), do filósofo oriental Kitaro Nishida. SILÊNCIO E CONTEMPLAÇÃO NA... p. 792

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