Silêncio e fala: \"Retrato calado\" de Luiz Roberto Salinas Fortes
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SILÊNCIO E FALA O livro Retrato Calado de Luiz Roberto Salinas Fortes
Retrato Calado é um livro sobre o qual é difícil falar, mas também sobre o qual é difícil não falar. Isso ocorre porque é um relato autobiográfico trágico, cuja escrita oscila entre a necessidade de falar e as dificuldades de fazê-‐lo. Além disso, envolve um momento traumático da nossa história, cujo conflito entre nomear ou silenciar permanece aberto. O próprio título já cifra esses problemas, já que toma a designação retrato falado -‐ a imagem dos procurados pela polícia – e refaz seu significado. A associação sonora entre as palavras falado e calado é retrabalhada em chave dolorosamente irônica, apresentando uma imagem que não fala, que é calada, simultaneamente silenciosa e silenciada. O livro começa com o autor no elevador da Operação Bandeirante, criada durante a ditadura militar para exterminar a esquerda no Brasil. Ele leva em suas mãos, sem saber, o aparelho de choque ao qual será submetido em seguida num pau de arara. Tal situação inicial – estar com algo que não se sabe o que é – vai ecoar sobre parte do que virá, como se houvesse sempre um fundo envolto em
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silêncio que cabe às palavras simbolizar. “Quando sair daqui você vai escrever um livro”, diz um coronel durante os interrogatórios, tal como o autor relembra, mais uma vez num diapasão que mescla ironia e dor. O autor, Luiz Roberto Salinas Fortes, nasceu em Araraquara em 1937. Segundo ele, sua vida no interior foi “normal”, “sem sobressaltos”, na qual se empenhava em praticar sua fé católica “da melhor maneira possível”. Na década de 50, veio para São Paulo estudar, onde se formou em Direito e Filosofia. Entre o interior e a capital, aos poucos, trocou a fé católica por outras leituras de mundo, tais como Jean Paul Sartre. Em 59, com vinte e poucos anos, ele se descreve como um outsider: “O futuro me parece um abismo. Tenho medo. Acho que sempre fui assim, pensando bem. O mundo sempre me pareceu um pouco hostil (...) Não sei qual é o meu lugar certo. Sempre fiquei meio de fora, como um estranho, mesmo entre os amigos mais próximos”. Em 1960, ele ciceroneou o casal Sartre e Beauvoir no Brasil. Na mesma década, tornou-‐se professor do Departamento de Filosofia da USP, e um dos maiores especialistas em Jean-‐Jacques Rousseau do país. Estudou textos fundamentais de crítica social, mas -‐ nas suas palavras -‐ teve “indigente carreira de militante”, com “falta de firmeza”, a ponto de perguntar-‐se mais de uma vez nos porões da ditadura: “Que crimes cometi, afinal?”. Naquela época, como se sabe, ninguém precisava ter cometido crime para ser preso e torturado. Bastava ser suspeito, mesmo que de algo que não se sabe, para ser submetido a horrores que não se esquecem: “A dor que continua doendo até hoje e que vai acabar por me matar”, escreve o autor, é uma “ferida aberta latejando na memória”. Dessa forma, a escrita do Retrato Calado é uma forma de exorcismo, um modo de simbolizar os “fantasmas polimorfos”, que é como as sessões de tortura voltam à sua consciência dilacerada. As palavras
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tentam dar conta das assombrações traumáticas que afetam, delimitam, despedaçam, corroem e doem a consciência: “(...) hoje o exorcismo se renova a cada instante, a cada semana, a cada mês, a cada ano, a esperança que rejuvenesce de quebrar as grades, voar, essas grades que continuam, imaginárias, a me comprimir o cérebro. Sonho em reconquistar a integridade e a liberdade, será possível? Como contornar a lógica da tendência se o sabotador, com toda sua malícia, instalou-‐se dentro da sua cabeça, enfiou-‐se no interior do interior, sugando os esforços e comprometendo a objetividade do pensamento?” Um diário no meio da repressão O livro é dividido em três partes. Na inicial, o autor descreve duas prisões no início dos anos 70, por suspeita de atividades contrárias à ditadura. Na parte intermediária, lemos trechos de seu diário entre 59 e 65, escritos com vinte e poucos anos, quando ele veio para São Paulo estudar. Na parte final, o autor tira sua matéria de duas novas detenções, ocorridas já em meados dos 70: uma vez acusado de participação no tráfico de drogas, outra vez por conta da tentativa de extermínio da esquerda promovida pelos militares. Disposto dessa maneira, com um diário no meio de prisões, o livro já foi lido como se simbolicamente houvesse “uma pessoa apertada entre duas conjunturas repressivas”. De fato, a colocação do diário dos vinte e poucos anos após o pau de arara, dá uma outra ductilidade ao texto de juventude, alargando a sensação de angústia durante a leitura em mais de um momento. Um exemplo: quando ele conta no diário que por volta dos 8 anos os “terrores do inferno” lhe pareciam “menos terríveis do que a perspectiva de uma prisão perpétua dentro da cova”. Como não ficar angustiado ao ler isso depois do relato da prisão? São
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passagens aparentemente inocentes, que – colocadas nesse ponto do livro – ganham outra força. Entre a literatura e o choque Há várias maneiras de ler o livro, pois é um texto que tem muitas camadas. Pode se ler como autobiografia, como relato pessoal, como interiorização dolorosa de um tempo cruel, mas também – como é a especialidade do autor – como filosofia. Logo nas páginas iniciais, por exemplo, ele diz que seus torturadores são herdeiros de Trasímaco, personagem da República que nega a justiça como valor e a virtude do diálogo. Uma vez feita a comparação, no entanto, o autor reflete sobre a diferença entre o personagem grego e seus herdeiros da Operação Bandeirante, pois haveria um abismo imenso ”entre a literatura e o choque, entre o argumento e a porrada”. O que se coloca aí é o modo como a filosofia encontra palavras para falar de uma tragédia: uma questão difícil, que atravessa as catástrofes do século XX, e que o autor vai resolver ao seu modo, com uma consciência dilacerada. A leitura deste curto livro é densa porque fala e silêncio, remédio e veneno, andam juntos. Não há um ponto de vista seguro capaz de nos acalmar em suas temporadas no inferno. A ferida está aberta nas palavras, sem um narrador que assuma a personalidade de herói ou vítima, que seriam figuras capazes de esconder a consciência dilacerada. O narrador pergunta quem efetivamente é, quem são seus opositores, por que a injustiça, entrelaçando tudo numa espécie de doença: “há algo que se rompe”, diz ele, “pois não é impunemente que se passa pela experiência da prisão, assim como não se passa impune pela experiência de prender e torturar. Contaminação recíproca. Perda da ‘inocência’ de um e outro lado, e profunda crise ideológica de ambos lados, cujas repercussões até hoje persistem”.
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Haveria ainda muito a falar sobre esse livro: seu estilo (que eventualmente chama os leitores de “amigos”, por exemplo), sua ironia (que chama os invasores de sua casa de “convidados”), seus predicados sobre a formação e culpa cristã (que possivelmente agravaram uma situação em que o autor não tinha feito nada de efetivamente grave), a alternância entre proximidade e distância com que o narrador fala de si, entre outras qualidades. No entanto, para encerrar aqui, vou ater-‐me a um ponto que não deixou minha cabeça durante toda a leitura: enquanto carregarmos o silêncio sobre nosso passado recente, algo em nosso presente corre o risco de desandar. O Brasil tem uma longa história não contada de violência, e a experiência mostra que tudo que não é simbolizado retorna. É difícil falar de certas coisas, mas é necessário falar. Nota final O livro foi publicado pela primeira vez após a morte de Salinas, e ganhou atenção de alguns dos leitores mais agudos do Brasil. Já foi descrito como a trajetória de “um homem em busca de si mesmo” (por Antonio Candido, autor da observação que citei acima sobre a posição do diário), “vertigem lúcida” (Marilena Chaui), “conversão laica” (Olgária Matos), entre outras definições certeiras. Para escrever o texto acima, utilizei-‐me da edição lançada pela Cosac Naify, que contém – além do Retrato Calado – alguns desses textos luminosos sobre o autor (o de Candido, Chaui e um de Franklin de Matos). Também li uma matéria inspiradora de Olgária Matos no Estadão, e dois artigos na Folha, de Vladimir Safatle (que fez a excelente sugestão de adotar o livro nas escolas de ensino médio) e de Lucas Ferraz. Tudo isso deve estar de algum modo presente nas minhas anotações acima.
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Acima, a imagem de uma instalação do artista plástico James Turrell, na qual a luz é tratada como algo material. Segundo ele, "a luz não precisa revelar nada; é ela mesma uma revelação". Escrito por Daniel Augusto Link da publicação original (15/10/2012): http://danielaugustoblog.com/2012/10/15/silencio-‐e-‐fala/
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