SILVA, F. M. G. \"Questão agrária e democracia: uma releitura de José de Souza Martins\"

May 28, 2017 | Autor: Felipe Maia | Categoria: Pensamento Social Brasileiro, Questão Agrária
Share Embed


Descrição do Produto

40º Encontro Anual da ANPOCS

ST 15 Intelectuais, democracia e dilemas contemporâneos

“Questão agrária e democracia: uma releitura de José de Souza Martins”

Felipe Maia Guimarães da Silva

Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected]

1

Questão agrária e democracia: uma releitura de José de Souza Martins Felipe Maia Guimarães da Silva

“Certa pobreza de perspectiva tem sustentado a suposição, mesmo entre os sociólogos, de que a questão da terra interessa aos trabalhadores rurais e a mais ninguém. Problema residual do passado seria resolvido com o progresso e o desenvolvimento urbano inevitáveis. Assim pensam os que não conseguem ver que no problema fundiário está o núcleo das dificuldades para que o país se modernize e se democratize. Não só em consequência do rentismo parasitário envolvido no que é propriamente o latifúndio não empresarial, mas também em consequência de sua contrapartida no autoritarismo popular e antidemocrático” (MARTINS, 2011, p. 17).

José de Souza Martins possui uma das produções mais longevas a respeito da questão agrária nas ciências sociais brasileiras. Seus primeiros escritos datam dos anos 1960 e como ele ainda está ativo, escrevendo e reescrevendo seus livros, ainda podemos esperar novidades. Neste trabalho, que reflete os resultados intermediários de uma pesquisa em andamento, procuro reconstruir ao menos parte de sua contribuição para a compreensão da questão agrária, vista como um tema central dos processos de modernização e democratização no Brasil. Procuro mostrar como ele articulou uma “sociologia histórica” com pesquisas que poderíamos chamar de “situacionais” talvez na linha do Henri Lefebvre, uma de suas principais referências, chamava de um corte vertical e outro horizontal de tempo. A partir dessa combinação pode-se encontrar a presença de estruturas de longa duração ao lado de escolhas, ações, controvérsias e disputas situadas em contextos específicos. Revela-se aí os problemas de uma modernização que Martins compreende como anômala, que não generaliza valores e instituições centrais da modernidade e talvez por isso não seja capaz de substituir plenamente a antiga ordem social, que subsiste em alguns dos traços centrais do ordenamento atual. Divido o texto em três partes, uma breve nota e uma breve conclusão. A primeira parte é uma reconstrução do que chamo de uma sociologia histórica da questão agrária, valorizando sua compreensão de como a longa transição para o trabalho livre no Brasil implicou em um certo tipo de estrutura agrária e seus efeitos de longa duração. Na segunda, procuro mostrar sua concepção de mudança social e da relação entre tradição e modernidade no Brasil, que ajudam a compreender o lugar que Martins concebe para o quadro de valores oriundo da tradição na crítica aos efeitos socialmente desagregadores da modernização capitalista. Na terceira parte, procuro reconstruir sua visão a respeito da questão agrária no período da redemocratização política, contrastando sua 2

posição com a de outros intérpretes que tendem a secundarizar o problema no quadro interpretativo da sociedade brasileira contemporânea. Por fim, levanto em uma breve nota alguns apontamentos sobre a concepção de trabalho intelectual defendida pelo autor e procuro situar quais as esperanças de transformação social sugeridas por ele, à guisa de uma breve conclusão. Uma sociologia histórica da questão agrária no Brasil Uma característica da produção intelectual de Martins é que, desde muito cedo, ele produziu tanto pesquisas de cunho histórico como estudos de caso conjunturais, como se pode ver em seus trabalhos sobre a imigração italiana em São Paulo e nos estudos sobre a cultura e a economia “caipiras” em processos de modernização. Nesta seção, vou procurar reconstruir sua sociologia histórica da modernização brasileira e desvendar uma teoria sociológica da mudança social no Brasil que, se não pretende validade geral, opera no nível de processos sociais localizados no tempo e no espaço. Nelas, a questão agrária ocupa lugar central pois é a partir das transformações ocorridas no mundo rural que se pode compreender melhor as características da modernização brasileira. Por isso, Martins recorre à longa duração da questão agrária de forma a estabelecer a gênese histórica da estrutura de propriedade e das relações de trabalho. Martins não é adepto da tese dos cinco séculos de latifúndio, que remete a concentração da propriedade à colonização portuguesa do território brasileiro. Ao contrário, ele vê na legislação das sesmarias vantagens em relação ao regime que lhe sucedeu, por manter o domínio dos poderes públicos sobre o território separado da posse útil, conferida aos agentes privados, o que permitiria intervenções corretivas por parte do Estado em momentos de concentração da terra ou de uso improdutivo. O regime de sesmarias foi abolido com a proclamação da independência e, a rigor, o novo Estado nacional permaneceu alguns anos sem regulamentação formal da propriedade da terra. É efetivamente no Império que se dá a construção de um regime de propriedade privada da terra, orientado por pressupostos capitalistas, a partir da publicação da Lei de Terras de 1850, que antecipa os problemas que adviriam da abolição do trabalho escravo na perspectiva das elites fundiárias de então. Como se sabe, esta legislação reconhecia os direitos de propriedade das terras já ocupadas e registradas oficialmente, ao mesmo tempo tornava todas as demais terras propriedade do Império, sendo que o acesso a elas só poderia se dar mediante compra. A medida visava menos a proteção das grandes fazendas, que não dependiam das forças públicas e sim de poderes privados, e muito mais o veto ao reconhecimento de propriedade da terra aos potenciais formadores de uma força de trabalho livre, especialmente os imigrantes estrangeiros que as elites cafeicultoras desejavam atrair ao Brasil. Era a fórmula trabalho livre, terra cativa, solução oposta à constituída no 3

mesmo período nos Estados Unidos, que fez da terra livre um instrumento para a colonização do Oeste americano, atraindo migrantes e oferecendo uma alternativa para a população pobre da costa leste (MARTINS, 2010). A Lei de Terras constituiu o marco legal no qual se deu a transição para o trabalho livre no Brasil, processo que representou um forte impulso modernizador, por seus efeitos potenciais nas relações sociais e para o desenvolvimento da economia capitalista. A relação entre terra e trabalho passava por uma inversão, a terra que no período colonial havia sido livre na prática, torna-se sujeita ao controle legal, enquanto o trabalho antes cativo, tornava-se formalmente livre com a Abolição. É nesta passagem que a terra se torna efetivamente uma mercadoria, podendo inclusive substituir os escravos como garantia bancária. Nos quadros de uma economia voltada para o comércio externo, a renda, que estava capitalizada na força de trabalho escrava, passaria a ser capitalizada na terra, que assume funções centrais no processo produtivo, tornando a renda da terra o mecanismo regulador da expansão econômica, não mais a aquisição de escravos, não ainda o capital propriamente dito (MARTINS, 2010). O resultado da abolição não era a criação de uma força de trabalho plenamente assalariada, nem mesmo uma transformação muito nítida na organização dos processos de trabalho. A abolição representa a separação formal entre a pessoa do trabalhador e sua força de trabalho, fundamento do trabalho livre, porém as condições periféricas e subordinadas da grande lavoura brasileira não permitiam a generalização da forma assalariada nas relações de trabalho livres. A dinâmica desta economia se deslocava da aquisição de escravos que iriam trabalhar em cafezais já plantados para a atividade de formação de cafezais novos, atividade que contava com a participação de imigrantes e da força “nacional”. O fazendeiro podia estabelecer um contrato de empreitada para o plantio e o trato do cafezal até que se tornasse produtivo, período que podia durar entre 4 e 5 anos. Nesse tempo, os colonos podiam plantar milho e outros gêneros alimentícios nas leiras do cafezal, o que assegurava o auto-consumo e podia permitir a venda de excedentes. O único pagamento em dinheiro era ao empreiteiro arregimentador da força de trabalho, de modo que ao final do período de formação da fazenda, o capital produzido era bastante superior ao dinheiro investido. É por esta razão que Martins pode recorrer à teoria da “acumulação primitiva” de capital para compreender o período, pois o capital acumulado ao final do ciclo não é resultado de relações de produção estritamente capitalistas, mas tem sua origem em relações não-capitalistas (MARTINS, 2010). A modalidade de trabalho dominante no setor economicamente mais desenvolvido desta agricultura é o regime de colonato, por meio do qual foram engajados muitos dos imigrantes estrangeiros que chegaram a São Paulo entre as últimas décadas do séc. XIX e as primeiras do séc. XX. Com a fazenda estabelecida, o regime tinha por base um contrato de trabalho anual 4

estabelecido entre o fazendeiro e a família de colonos prevendo o trato do cafezal e permitindo a produção de gêneros alimentícios para auto-consumo e venda de excedentes. Contrato coletivo porque envolve a unidade de trabalho familiar e que caracteriza menos a venda da força de trabalho e mais o pagamento de renda pelo uso da terra por parte dos colonos. Contrato anual para garantir a oferta de trabalho durante todo o ano agrícola, configurando em seu conjunto uma relação de trabalho que estaria no meio termo entre o escravismo e o assalariamento capitalista, nem a coerção direta, nem a coerção puramente econômica, uma modalidade “não-capitalista” de trabalho produzida no processo de expansão do capitalismo no Brasil. Contradição que não se resolve em si mesma, mas exigirá o remanejamento do capital aí produzido para outra esfera mais tipicamente capitalistas de reprodução, o que acontecerá com a industrialização. De acordo com Martins, no Brasil, o capital cria contraditoriamente formas sociais não capitalistas, porém determinadas pela reprodução do capital, assim o latifúndio em vez de transitar para a fragmentação e a exploração indireta do trabalho, como em outros processos de transição, segurou o campesinato dentro da propriedade. No Nordeste, os senhores de engenho tiveram sucesso em garantir a imobilização da força de trabalho com o regime de “morada” ou mesmo transitar para formas mais modernas de produção com a criação das usinas de cana-de-açuar. Guardadas as devidas proporções, o colonato paulista cumpriu funções semelhantes, pois em ambos os casos, a propriedade da terra era uma condição para a sujeição do trabalho livre, de modo que os fazendeiros evitavam a separação entre capital e propriedade da terra, base de um capitalismo singular em que não se estabelece contradição entre eles (MARTINS, 2010, p. 140–1). É neste sentido que Martins pode interpretar a singularidade da modernização brasileira, na qual o capital não antagoniza a propriedade territorial e com isso não “preside” a transição, não desfaz os fundamentos sociais e econômicos da sociedade colonial e escravista, ao contrário das referências clássicas das teorias da emergência do capitalismo, que estão voltadas para a Inglaterra, a França ou os Estados Unidos, onde a separação entre propriedade da terra e capital determinou curso distinto (idem, p. 10). Nesses países, emergiram formas modernas de propriedade familiar integradas ao mercado capitalista, com efeitos positivos para a dinamização do mercado interno para produtos industriais e para a integração política da população rural na sociedade nacional. A subordinação da terra ao capital esvaziou os sentidos politicamente mais conservadores da propriedade agrária, facilitando o caminho das modernas democracias liberais. Todavia, o desenvolvimento global do capitalismo não produz em todo lugar os mesmos efeitos, nem exige as mesmas formas, é “desenvolvimento desigual” e não desenvolvimento linear e homogêneo. Esta categoria analítica é um recurso da teoria marxista para lidar com a particularidade histórica sem perder uma concepção global de desenvolvimento do capitalismo. Ela põe em relevo a diferença de 5

ritmo, a heterogeneidade das relações sociais e produtivas, a diversidade de caminhos para a formação do modo de produção capitalista. O que importa são os processos históricos e sociais concretos, não uma teoria abstrata da sucessão de modos de produção. Nesse processo “temporalidades históricas” distintas se sobrepõem, gerando as contradições do presente. Pensado a partir do processo global de acumulação do capital, o desenvolvimento é sempre desigual, as relações sociais e econômicas que compõem a totalidade da “formação econômico-social” não avançam no mesmo ritmo, no entanto não deixam de conformar uma unidade. Muito significativa é a discrepância entre a economia e a sociedade, com o avanço mais rápido da primeira, anunciando possibilidades que a sociedade nem sempre realiza1. Em São Paulo, o colonato entraria em decadência no curso do séc. XX, de início com a crise da imigração subsidiada, em seguida pelos efeitos da crise do café em 1929-30, que levariam a sua dissolução. Desapareciam então as condições de produção direta dos meios de vida que sustentavam aquele regime, enquanto no Nordeste, o mesmo acontece na década de 1950, com consequências políticas bem mais explosivas. Em São Paulo, esse processo levou à fragmentação de grandes fazendas, muitas vendidas a antigos colonos, e em consequência, a separação de trabalho e terra, com a criação de pequenas propriedades que produziam para o autoconsumo e podiam ofertar trabalho sazonal assalariado. Ao mesmo tempo, a liberação da terra de suas funções de controle repressivo da força de trabalho podia estimular o mercado de terras. O trabalhador temporário que emerge desse processo, o “bóia-fria”, não é o operário assalariado agrícola permanente, mas permanece um camponês, que recria a agricultura familiar com funções de autoconsumo e venda de excedentes (MARTINS, 2010, cap. 3). No conjunto, os interesses agrários e industriais não estiveram claramente diferenciados durante a modernização, configurando uma aliança entre capital e propriedade da terra, cuja origem está na transição para o trabalho livre e na importância da agricultura para a industrialização paulista, conexão que foi fundamental para a acumulação capitalista e para a diversificação da atividade econômica. A aliança se renovou em contextos distintos, como na articulação entre a dominação patrimonial rural e o populismo urbano característica do varguismo conformando um pacto político tácito em que o Estado se absteve de interferir nas relações de trabalho no campo, ao contrário do que fez nas cidades, e com isso manteve uma enorme força eleitoral conservadora que ajudou Vargas a enfrentar as instabilidades políticas do período (MARTINS, 2011, p. 85). São as redes de clientelismo político que recriam no período republicano antigas práticas de 1

Martins construiu esse argumento em polêmica com o estruturalismo althusseriano, cuja ênfase estava na determinação estrutural dos modos de produção e que pensava o conceito de “formação econômico-social” com referência a espaços delimitados (nações ou regiões). Sua principal referência é Henri Lefebvre e interpretação dos textos de Marx e de Lênin, ver Martins (1996, p. 17 e ss., 2010, p. 21–2).

6

subordinação política pessoal, a política do “favor” pré-republicana, característica das transações em torno de privilégios em uma sociedade patriarcal e estamental, na qual os domínios público e privado não estão plenamente separados. É este clientelismo que permite a sobrevivência política de camadas oligárquicas mesmo em períodos de forte modernização e estabelece limites à generalização da cidadania entre os trabalhadores rurais, diferentemente dos trabalhadores urbanos que experimentaram a generalização da forma contratual de organização do trabalho, da participação sindical e de direitos trabalhistas com ao menos três décadas de antecedência. Também o regime militar reproduziu as bases da aliança terra – capital, tanto ao alimentar as redes de poder político organizadas pelas oligarquias, quanto por sua política econômica. O regime, mesmo estimulando políticas que com o tempo enfraqueceriam as redes de controle oligárquico, serviu-se do clientelismo para assegurar uma base de cooperação servil nos municípios, especialmente onde havia conflitos agrários (MARTINS, 2011, p. 86). Mais importante foi a política de colonização da Amazônia, quando o Estado por meio de incentivos fiscais subsidiou a expansão do capitalismo nas regiões de “fronteira”, com a aquisição de imensas extensões de terras “griladas” e com a recriação de relações coercitivas de trabalho por meio da “peonagem”, favorecendo um processo de acumulação primitiva que guarda analogia com a produção das fazendas de café no século anterior, pois em ambos os casos a agricultura não se expande pela inversão de capital novo em setores novos, mas pela produção de capital por meios não capitalistas (MARTINS, 2009b, cap. 4). Deste modo, no curso da longa modernização brasileira, a renda da terra não sofre o antagonismo do capital. Ocorre que do ponto de vista da acumulação do capital, a renda da terra é vista como uma “irracionalidade”, na medida em que se constitui na remuneração de um título de propriedade, cujo efeito é diminuir os recursos disponíveis para o investimento em bens de capital ou para a arregimentação de força de trabalho. A teoria marxiana clássica mostrou que a renda da terra tem origem pré-capitalista nos processos de acumulação primitiva e na transição do modo de produção feudal que constituiu a moderna propriedade capitalista. Tendo-a como uma barreira ao investimento produtivo, os processos de expansão do capitalismo procuraram enfraquecer a remuneração da renda da terra e por consequência o peso da propriedade agrária na nova economia, o que muitas vezes favoreceu a pequena e a média propriedade, tal como nos Estados Unidos e na França. No Brasil, a conexão entre capital e renda da terra evitou que a questão agrária se constituísse historicamente como um obstáculo ao desenvolvimento do capitalismo, ao contrário do que imaginavam boa parte dos intérpretes do tema nas décadas de 1950 e 1960. Em vez disso, a questão agrária se apresentou historicamente como questão social, ou seja, relacionada aos problemas sociais gerados pelo desenvolvimento do capitalismo (MARTINS, 2012, cap. 6). Ponto 7

que será importante para entender seus deslocamentos na contemporaneidade. História lenta, tradição e modernidade No conjunto, os temas da singularidade (ou da anomalia) da modernização brasileira e da forma como o desenvolvimento desigual se expressa no Brasil, cuja explicação estrutural está no fraco antagonismo entre o capital e a propriedade da terra, vão conformando uma teoria da mudança social2 no Brasil na qual a história é lenta e a modernidade é superficial. História lenta porque as mudanças sociais não são profundas, as relações socialmente arcaicas mediatizam e viabilizam o desenvolvimento das relações modernas, ao mesmo tempo em que ralentam o ritmo e tolhem suas virtualidades, “é o Brasil moderno pagando propina ao Brasil arcaico” (MARTINS, 2011, p. 8). O argumento não é inteiramente novo nas ciências sociais, remetendo a um conjunto de estudos sobre modernizações periféricas nas quais estruturas da velha sociedade permanecem ativas nas sociedades modernas, tal como Gramsci já havia apresentado em sua interpretação do Risorgimento italiano, fartamente acolhida na bibliografia brasileira, porém pouco valorizada por Martins. A contribuição original de Martins está na densidade com que a questão agrária aparece como determinante da história lenta no Brasil, com efeitos duradouros na formação desta sociedade, em sua institucionalidade política, nas relações econômicas e nas formas de consciência social. É também singular o aparato teórico mobilizado pelo autor, cuja referência principal está nos textos de Henri Lefebvre. Para Martins, os processos de modernização no Brasil têm sido sempre incompletos, parciais e inconclusos, conformando uma relação singular entre modernidade e tradição. A modernidade, conceito que se refere mais diretamente à experiência europeia, opõe-se à consciência tradicionalista e afirma a racionalidade típica do capitalismo e de suas formas de sociabilidade, a transitoriedade e a incerteza. Por outro lado, opõe os homens enquanto protagonistas de sua história aos processos de objetificação e alienação engendrados pela própria difusão da racionalidade abstrativa e impessoal, assim como das estruturas de acumulação do capital. Esta modernidade não se apresenta desta mesma maneira em casos como o do Brasil ou da América Latina, seguindo o 2

Joas e Knobel (2009) argumentam que toda teoria social deve responder a três perguntas: o que é a ação? O que é estrutura? Como se dá a mudança social? No Brasil, a terceira pergunta foi privilegiada, talvez por considerar que as outras duas remetiam a formulações de validade mais universal. A ênfase na mudança social remete nossa formulação aos processos sociais, o que nos aproxima mais da noção de uma “teoria sociológica” que de uma “teoria social” ou da “metateoria”, para usar as categoria propostas por Vandenberghe (2012). A atenção ao nível sociológico dos processos implica que a mudança não é concebida em abstrato como parte de uma teoria abrangente, mas situada. A produção de Martins se insere nessa perspectiva, cujas origens estão nos debates que marcaram a sociologia brasileira nos anos 1950 (VILLAS BÔAS, 2006), e que ganharia nova interpretação nos anos 1970 (WERNECK VIANNA; CARVALHO; MELO, 2004).

8

argumento de Néstor Canclini, que a vê pelo signo da hibridez. Para Martins, a modernidade nos chega como “estrangeira”, “epidérmica”, expressão mais de um modo de “ver” que um modo de “ser”, talvez porque ao não se generalizar, mantém o mundo dos valores tradicionais como o quadro de referência dominante. Entre os intelectuais, o hibridismo leva a uma consciência dupla, tal como no Macunaíma de Mário de Andrade, herói híbrido, indefinido, ou na imagem da “travessia” de Guimarães Rosa, percurso sempre difícil, incerto, inacabado. Os sertões e as formas de vida que ficaram à margem da racionalidade do capital se tornam um refúgio para a busca das raízes, da autenticidade, formas pelas quais a tradição vai sendo incorporada à modernidade, porém com força crítica atenuada. Na vida popular opera-se o inverso, é a tradição que incorpora os signos do moderno, evidenciando as dificuldades de enraizamento da modernidade, pois os signos são desviados de suas funções, tornam-se símbolos fora de contexto, como na pequena história relatada por Martins do sertanejo que utiliza um óculos escuro “ray-ban” sem retirar sua etiqueta. Uma modernidade que aparece como máscara, onde parecer moderno seria mais importante que efetivamente sê-lo (MARTINS, 2013a, p. 33). A questão é a força que o mundo tradicional opõe aos processos de modernização e que não deve ser lida apenas na chave da “resistência à mudança”, pois há na tradição uma consciência que pode se estabelecer como crítica efetiva e transformadora, para além da mera “recusa ao moderno”. Para Martins, este mundo tradicional pode funcionar ao mesmo tempo como contraponto crítico e integrante da modernidade, em analogia com as funções socialmente inovadoras do pensamento conservador encontradas por E. P. Thompson ou por Marshall na modernização inglesa, ou seja, como um repertório crítico aos efeitos socialmente desagregadores da expansão capitalista que proveram uma base de direitos de cidadania e proteção social a populações desfavorecidas. No Brasil, é a tradição que fornece o quadro de referência para o protesto social contra os efeitos da modernização, o que se pode acompanhar na trajetória das lutas camponesas ou na forma como a Igreja católica desempenhou funções críticas na questão agrária brasileira. As longas reconstruções da história do campesinato apontam para a valorização de movimentos como o cangaço, lido pela chave do protesto de classe contra os efeitos perversos da desgregação da dominação tradicional, ou mesmo do “messianismo” religioso que, a princípio, não confronta a ordem, mas é por ela confrontado. Ao longo do séc. XX, o protesto camponês se amplia, são rebeliões contra a deterioração das condições tradicionais de vida e de uso da terra que envolveram “posseiros”, “parceiros”, “foreiros” em torno de problemas de expulsão e expropriação, que podem ser compreendidas tanto em sua dimensão material como na simbólica ou social, vividas como desenraizamento de modos de vida tradicionais pela expansão da modernização (MARTINS, 1981, cap. 1). 9

O pensamento conservador possui então um potencial crítico em relação à modernização, o que explica o papel desempenhado pelas igrejas cristãs, católica e protestante, na questão agrária. De acordo com Martins, houve no Brasil uma reorientação na doutrina da Igreja, mas não uma ruptura com os valores ou uma “conversão” dos religiosos. A Igreja católica chega ao tema agrário mais diretamente nos anos 1950, por meio de bispos nitidamente conservadores e preocupados com a influência comunista no campo. Sua interpretação era que os processos de desagregação social no campo deviam-se não à modernização capitalista em si mesma, mas à ganância dos fazendeiros, o que justificaria políticas estatais de “distribuição justa” da terra e da riqueza, como forma de favorecer a permanência do trabalhador na terra e combater a “agitação” política. A reforma agrária se tornava defensável por critérios morais e sociais, não meramente políticos ou econômicos e deveria estar combinada com outras políticas sociais, notadamente de voltadas para a educação. Opondo-se aos comunistas e disputando com eles a influência entre os trabalhadores camponeses, não é de se estranhar o apoio dos católicos ao golpe de 1964 (MARTINS, 2011, p. 149 e ss.). Martins sustenta que enquanto a questão agrária se apresentava nos problemas sociais vividos pelos trabalhadores nordestinos, podia ser interpretada no quadro das políticas socialmente modernizadoras, mas no decorrer do regime militar, com a política de colonização da Amazônia, a tragédia humana criada pela expansão do capitalismo ganhava outra dimensão, a Igreja passaria a se opor ao Estado, pelas próprias condições nas quais se desenvolvia o trabalho missionário. Em um período de tempo muito curto, chocaram-se na Amazônia grupos sociais muito diversos, as correntes migratórias de camponeses pobres nordestinos e as de colonos gaúchos, as grandes empresas capitalistas envolvidas em mega-projetos agropecuários, que implicavam em devastação florestal, expulsão de posseiros ou trabalhos de peonagem, sem falar em antigos posseiros e nas populações indígenas que já estavam lá. O “idílico trabalho missionário” de séculos na Amazônia chegava ao fim, os conflitos sociais adquiram imensas proporções. Ao se defrontarem com os processos de expulsão e expropriação de índios e camponeses, os bispos agiram de forma conservadora, “no sentido de corrigir os desvios de uma realidade social dramática” (MARTINS, 2011, p. 162). Com isso, envolviam-se na realidade dos pobres do campo e abriam caminho para uma mudança do sujeito social em que se referencia o pensamento conservador, não mais a elite territorial pré-capitalista, que sequer se opunha à expansão capitalista, e sim os índios e camponeses. Permanece a vocação crítica ao capitalismo, em nome das relações comunitárias e da integralidade da pessoa humana frente a processos individualizantes e alienadores, que tornam a “pessoa” humana “descartável”. A Igreja assumia a perspectiva das vítimas do capitalismo, de modo que a tradição conservadora ganha consistência no enfrentamento à expansão do capitalismo:

10

“O que aconteceu com a Igreja foi que, na contradição desse processo, não encontrou na sociedade brasileira a mesma base social que, na origem, dava sentido ao pensamento conservador. Viu-se, portanto, lançada num jogo de conflitos em que os que anelam pela preservação da integridade da pessoa contra as forças sociais, econômicas e políticas que querem fragmentá-la, aliená-la e marginalizá-la, são os pobres e não as elites. A tradição conservadora ganha consistência no confronto com a forma subdesenvolvida do capitalismo no país. E ganha consistência como desafio e contestação desse capitalismo. Daí que a ação pastoral e a ação política de inspiração conservadora, na contradição desse confronto, tornem-se ações constestadoras e tranformadoras” (MARTINS, 2011, p. 163). Esta revolução no trabalho pastoral da Igreja aparece com clareza nos documentos redigidos pelos bispos católicos em 1973, criticando a “Igreja assistencialista” identificada com os dominadores, denunciando a expansão capitalista como obstáculo e não meio para a emancipação dos pobres. As críticas têm por base uma concepção de “justiça social”, de distribuição de riquezas, de precedência da pessoa em relação ao dinheiro, valores mais “humanos” e mais “evangélicos”. Em 1980, o documento aprovado por toda a CNBB “Igreja e problemas da terra” afirmaria a precedência do trabalho como fonte de direito sobre a terra, expresso na oposição entre “terra de trabalho” e “terra de exploração”, posicionando-se não só a favor da reforma agrária, mas também das formas alternativas de apropriação do solo pelos camponeses e indígenas. Também nesse movimento muda a orientação em relação aos povos indígenas, reconhecendo seus direitos ao território e à autodeterminação. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) são organizações desse período que cumpririam funções socialmente inovadoras. No enfrentamento ao Estado, os católicos desenvolvem uma concepção forte de “libertação”, como “transformação social promovida em nome daqueles e por aqueles que vivem no limiar do direito, da possibilidade de sobrevivência e da justiça. Algo como sair do cativeiro.” (MARTINS, 2011, p. 174). Libertação da pessoa humana frente às formas de alienação produzidas por esta modernidade periférica. Crítica, poderíamos dizer, que não resiste à mudança social em si mesma, e que portanto não é antagônica à modernização, mas que resiste a suas anomalias, a partir dos efeitos concretos experimentados em situações de conflito. A tradição não seria assim um obstáculo, mas um recurso para a condução de uma modernidade alternativa, centrada em valores de justiça social, que neste quadro assume dimensões até radicais. Com isso, a interpretação da relação entre tradição e modernidade em Martins pode ser aproximada de um conjunto de autores que procuraram na tradição instrumentos de crítica e de transformação da modernidade. Não haveria entre esses dois polos um antagonismo irredutível, mas uma tensão que pode ter soluções socialmente criativas, como na interpretação de Karl Polanyi 11

(1980) a respeito dos requisitos de proteção social como corretivos à expansão do capitalismo liberal, ou na proposição durkheimiana das corporações como produtoras de normas e valores capazes de conectar os indivíduos dispersos em uma sociedade heterogênea e plural (DURKHEIM, 1999) . Em todos os casos, a expansão desordenada do capitalismo e de sua racionalidade típica constituem uma ameaça ao próprio tecido social e é em nome da sociedade, não do interesse das classes ou de grupos parciais, que se estabelece a crítica. Daí a potência do pensamento cristão que, a partir dos grupos mais vulneráveis, torna-se capaz de produzir uma crítica transformadora do processo como um todo. Para Martins, a modernização brasileira é anômala porque desagrega os contextos de vida tradicionais, especialmente da população mais vulnerável (ou mais pobre), e é incapaz de substituir a velha ordem, que permanece no imaginário, porém não encontra correspondência nas relações sociais reais, espécie de anomia brasileira, cuja origem não é a mesma da que decorre de sociedades de capitalismo desenvolvido, mas de uma modernização incompleta. É contra essa desagregação que a consciência conservadora se bate e pode oferecer soluções criativas, como é o caso da experiência católica no campo, ou da experiência ressocializadora de assentamentos de reforma agrária. De outro lado, por vezes o protesto contra a desagregação das normas tradicionais assume forma hostil e destrutiva, como revelado em suas pesquisas acerca dos linchamentos como formas de justiçamento popular. Questão agrária e democratização A conjuntura do final do regime militar, conforme Martins, foi marcada por uma tentativa do regime de retomar o controle sobre os conflitos agrários, especialmente nas regiões de “fronteira”, por meio de iniciativas de “militarização” da gestão governamental, transferindo-a a ministros militares, em torno dos conflitos, cujo objetivo era justamente esvaziar as agências mediadoras oriundas da sociedade civil, partidos, sindicatos e igrejas, ou mais precisamente, afastar delas o campesinato e numa última tentativa aproximá-los do regime (MARTINS, 1985, cap. 1). A política era coerente com a orientação que predominou no curso do regime em relação aos conflitos agrários, que admitia medidas reformistas, mas não admitia a mediação política, nem a autoorganização ou a participação camponesa nos processos decisórios. Contudo, as parcas iniciativas reformistas dos militares, com base no Estatuto da Terra de 1964, foram secundarizadas ao longo dos anos 1970 em prol de uma política de subsídio à modernização da grande propriedade e sua expansão na Amazônia. A escalada de conflitos decorrente da expansão do capitalismo agrário e da expropriação de camponeses levou justamente ao fortalecimento das agências de mediação, a Igreja 12

envolveu-se profundamente com as lutas camponesas, os sindicatos, com destaque para a Contag, souberam se posicionar com habilidade e desde o final da década de 1970 cresciam as greves e as iniciativas judiciais contra a expropriação ou em defesa de direitos trabalhistas. A redemocratização não foi politicamente favorável à agenda reformista. O arranjo político da eleição de Tancredo Neves e da organização da Nova República deixou de fora os principais atores sociais de luta contra a ditadura, trabalhadores urbanos e camponeses, e assimilou em grande medida as oligarquias tradicionais, intransigentes com relação ao direito de propriedade. Os reformistas tiveram vida curta no governo, não conseguindo produzir nenhuma iniciativa de destaque. Tampouco a Constituição de 1988 seria favorável a uma revisão da legislação favorável à reforma ou ao reconhecimento de direitos camponeses sobre a terra (GOMES DA SILVA, 1987, 1989). Nesta conjuntura, uma parte da bibliografia das ciências sociais, e especialmente entre os economistas, interpretou a questão agrária como um problema historicamente superado pelas políticas de modernização da agricultura, problema que estaria a se tornar residual no novo ordenamento social. Deixando de ser compreendida como um entrave para a expansão econômica, a questão agrária teria perdido seu caráter de “necessidade” abrangente e passaria a problema localizado, sujeito a medidas tópicas. O argumento de Martins caminha em sentido diverso, por um lado porque, como já exposto, a questão agrária está no centro de seu argumento sobre os limites históricos e estruturais de um processo de modernização assentado na reprodução da renda da terra com efeitos políticos e sociais duradouros. Por outro, por conta dos desencontros e das limitações inscritas na luta pela terra e nos programas de reforma agrária existentes. Ambos os fatores concorrem para um certo bloqueio da generalização da cidadania. Para ele, teorias da modernização centradas na oposição entre atraso e moderno e que tendem a identificar na empresa agrícola tecnologicamente modernizada uma expressão do “atual” contraposto ao suposto tradicionalismo ou à “resistência à mudança” das formas diversas assumidas pelos camponeses são expressões de concepções lineares do tempo histórico, que expelem para fora do tempo contemporâneo a heterogeneidade das relações sociais, tornando-se ideologias do progresso técnico. Aquilo que obtém os melhores resultados econômicos imediatos pode produzir catástrofes sociais no médio prazo, produzindo uma série de perdas sociais no que diz respeito a saberes e práticas agrícolas, valores e relações sociais de populações que se tornam objeto de projetos modernizadores que podem levar a desenraizamento e anomia3 (MARTINS, 2014). Para Martins, após a redemocratização, houve uma inversão na relação usual entre Estado e 3

Martins produziu um importante debate crítico com o extensionismo rural e com a sociologia rural. Para tanto, ver entre outros Martins (MARTINS, 2012, cap. 7).

13

sociedade civil no Brasil, com a possibilidade de um inédito protagonismo desta última. Isto porque o Estado viria se modernizando, concentrando suas funções em serviços públicos, ao passo que a sociedade torna-se mais complexa e heterogênea, dificultando a dominação de classe sobre o aparato estatal. Nesse sentido, as grandes reformas sociais devem obedecer ao protagonismo dos movimentos sociais e não à ação demiúrgica do Estado. Há dois problemas, primeiro, a modernização estatal encontra limites na permanência de antigas oligarquias proprietárias nas alianças políticas governantes – e também nas oposições. Não se estabelece na política brasileira uma frente modernizadora ou anti-oligárquica, mas um sistema de “alianças cruzadas” entre os dois partidos políticos mais modernos e as várias oligarquias, de modo que as práticas políticas tradicionais de clientelismo têm permanência, especialmente nos níveis locais. Haveria contudo uma ambiguidade nessa aliança que incorpora as oligarquias ao ordenamento democrático, pois ao mesmo tempo que o conflito direto é contornado, a conciliação politica permitiria abrir vias de modernização econômica e social para essas camadas sociais. A ameaça clientelista existiria, mas ficaria atenuada por políticas mais gerais de modernização, pois a aliança permitiria domesticar o “rentismo” (MARTINS, 2000, p. 116–119). Neste quadro, o avanço da reforma dependeria sobretudo da política desenvolvida pelos movimentos sociais e de seu encontro com um Estado moderno e capaz de abrigar suas demandas. Entretanto, Martins considera que houve forte incompreensão dos movimentos quanto às possibilidades da reforma, resultado de uma exacerbação ideológica de seus programas, promovida pelas lideranças e consultores, cuja origem em geral está em setores de classe média e não do campesinato. Eles estariam tolhendo a “autenticidade interpretativa das lutas”, sobrepondo seu modo de ver às necessidades camponesas, mais concretas e imediatas. É como se a reforma se tornasse um programa abstrato, mensurável pela quantidade de terras desapropriadas em curto espaço de tempo, justificada por suas virtualidades para o desenvolvimento econômico e social mais abrangente. Os agentes de mediação estariam a disputar a “forma da reforma”, enquanto do ponto de vista camponês, a reforma atende a requisitos imediatos de sobrevivência 4. Já do ponto de vista do Estado, a reforma estaria ligada a uma progressiva recuperação do domínio público sobre o território, atacando uma das fontes mais persistentes de acumulação primitiva e da renda da terra, que é a “grilagem” de terras (MARTINS, 2000, p. 65). Ou simplesmente de suprimir fatores de 4

“O problema agrário tende agora a aparecer com maior clareza e maior pureza: a reforma agrária aparece através das necessidades dos próprios trabalhadores. Não aparece como pretexto (e meio) para outras transformações sociais que poderiam ser do interesse de outras classes e grupos sociais (…) não aparece no primeiro plano enquanto problema agrário. Aparece como condição para que outras necessidades sejam atendidas: necessidades de saúde, de educação, de justiça, de futuro, de paz para as novas gerações, de respeito por seus costumes e sua própria lógica (camponesa) anticapitalista (isto é, por seu modo de pensar e de interpretar a vida com base nos valores do conservadorismo popular), necessidade de integração política, de emancipação (...)” (MARTINS, 2011, p. 193–4).

14

conflito social e favorecer alguma modernização econômica, objetivos que já estavam estabelecidos no Estatuto da Terra de 1964 (MARTINS, 2003a, p. 41). Nessa perspectiva, a reforma se justificaria por um duplo objetivo, a abertura de uma alternativa de integração social plena para as vítimas da modernização capitalista e a recuperação do domínio sobre o território. Há contudo um desencontro entre esses pontos de vista, que estariam todos de algum modo interessados na reforma, o que terminaria por bloquear a própria reforma. Martins considera que a responsabilidade maior é dos movimentos sociais e de suas lideranças, que recusariam o diálogo e a participação na condução da reforma agrária durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Quanto ao governo, sua avaliação era favorável, identificando aí uma agenda modernizante, interessada na reforma e no combate à “grilagem” de terras, cujo sentido seria “confinar o rentismo nos limites da lei”. Os conflitos poderiam ser institucionalizados, fazendo prevalecer mecanismos de negociação, abrindo um espaço significativo para a emergência da agricultura familiar. O resultado ao longo do tempo seria ao mesmo tempo a confrontação e a domesticação dos poderes tradicionais, o que atenuaria o caráter estrutural da questão agrária. Na impossibilidade de uma intervenção definitiva na estrutura de propriedade, o Estado poderia sustentar mecanismos para intervenções cíclicas e corretivas, que assegurassem o lugar da agricultura familiar na economia e na sociedade (MARTINS, 2000, p. 120 e ss.). Neste momento, Martins aposta na possibilidade do que viemos chamando de uma “domesticação” da questão agrária, como resultado do processo de democratização política e de modernização social. Diferentemente dos economistas que apostaram na modernização da base técnica, esse processo não está relacionado à expansão do capitalismo agrário, mas à regulação de seus efeitos sobre o território e em relação ao campesinato. Diferentemente também de outros sociólogos, a aposta não dependeria de um processo mais geral de “urbanização” identificado com a migração da população rural para os centros urbanos, mas de uma boa integração do campesinato na ordem social por meio da agricultura familiar. Contudo, os desencontros entre Estado e sociedade civil perturbam a reforma agrária, tolhendo seus efeitos, restringindo suas possibilidades. A questão central é a ressocialização do campesinato na nova ordem social, processo dificultado por uma modernização “anômala” que tende a gerar, como vimos, situações de anomia. Deste modo, a reforma se configura menos como uma reestruturação do regime de propriedade em função de objetivos econômicos mais abrangentes e mais como uma solução para problemas de integração e participação de populações marginalizadas pela modernização. Ao compreender a integração como um processo de ressocialização, Martins oferece contribuição original que permite explorar as tensões e ambiguidades da situação social vivida pelas 15

famílias que participam de assentamentos de reforma agrária ou que estão mobilizadas em acampamentos organizados pelos movimentos sociais. É possível deslocar o foco para o terreno próprio da sociabilidade e das situações concretas, em vez de privilegiar apenas a análise estrutural. Esta, contudo, não desaparece da interpretação do autor, pois é ainda a “renda da terra” o “sujeito oculto” da questão agrária, que “governa sem se dar a ver”, que se faz presente na prática cotidiana e que é engendrado ao longo do processo; que não chega com nitidez à consciência, mas se manifesta quando a terra é objeto de transação mercantil; que não tem face coerente e unívoca, mas se oculta nas relações sociais (MARTINS, 2003b, p. 10). Teoricamente há um jogo entre estrutura e situação, no qual a renda da terra aparece como uma dimensão estrutural, com seu nível próprio de determinação, oculta nas relações sociais, acessível apenas pela interpretação sociológica, esta, porém, não esgota as possibilidades de compreensão. Há uma dimensão situacional que remete à vida cotidiana, ao quadro dos atores, de sua experiência, de suas categorias de compreensão da realidade, mais acessível por uma observação de viés, digamos, antropológico. Dito de outra forma, é uma combinação sutil entre o que a teoria social convencionou chamar de dimensões “macro” e “micro”, entre estrutura e situação, cada qual com um nível próprio de determinação, conferindo complexidade e riqueza à pesquisa. Para Martins, a ressocialização do campesinato no mundo moderno por meio da reforma é um processo conflitivo e por vezes incompleto, no qual os valores tradicionais permanecem orientando a experiência. O projeto camponês é marcado por uma lógica distinta dos projetos estatais e mesmo dos movimentos sociais, ambos com referência no mundo moderno, da economia capitalista, ainda que sob a forma de agricultura familiar. O campesinato que se engaja na luta por reforma é um “resíduo” da modernização, das alternativas historicamente não-realizadas deste processo e dos efeitos de profundo desenraizamento decorrentes da desagregação dos sistemas de “morada” que ligavam lugar de viver e de trabalhar, “morar” que é mais do que “habitar”, modo de vida que remete a valores camponeses e da sociedade tradicional na qual o mercado é lateral. Não se resolve portanto no quadro das soluções econômicas ou de integração pelo mercado de trabalho. A luta contra o desenraizamento é o sentido da aspiração camponesa (MARTINS, 2003, p. 61). Na verdade, há grande heterogeneidade na composição do sujeito social da reforma, fruto da diversidade de processos que gestaram a “massa residual” decorrente da desagregação da economia agrícola de exportação. São portanto categorias distintas de reivindicantes de acesso à terra, ao contrário do que sugerem os programas governamentais ou o discurso dos movimentos sociais centrados na categoria abstrata de “sem-terra”. E esta heterogeneidade se faz presente nos acampamentos e nos assentamentos, o que é fonte de conflitos. A identidade deste sujeito é difusa, não é política, embora tenha como traço comum dimensões familísticas e vicinais, nas quais a 16

família extensa, rede de parentesco e agregações, tem importância fundamental para a configuração de suas formas de sociabilidade. É uma coletividade que se estrutura em um sistema de obrigações e reciprocidades, não na lógica abstrata do direito formal e do trabalho individual, que valoriza a reprodução da família, um encontro de pelo menos três gerações, e que dá sentido ao trabalho para a família e às formas de herança (MARTINS, 2003a). Daí que a “morada” esteja no centro das aspirações e seja o referencial de seu imaginário e de sua utopia, pois é nela que estão as condições de reprodução da família. A terra tem assim uma valorização extraeconômica, como mediação da vida, em um sistema de valores que remete à sociedade tradicional. Esse sistema foi reforçado pela experiência de instabilidade e sofrimento vivida em terra alheia, com a consciência do vínculo precário com a terra. Morar e ter terra reforçam os vínculos entre lugar de viver e de trabalhar, resistência à separação típica do urbano que implica na monetarização dos meios de vida. Um morar que é mais do que habitar pois refere-se a relações amplas com o espaço, a natureza, a família ou os vizinhos. Para Martins, “esses são os demarcadores da consciência do desenraizamento e da consciência do que é o enraizamento” a que aspiram os sujeitos reais da reforma (MARTINS, 2003a, p. 23). Todavia, a busca dessa utopia familística e comunitária é “difícil”, em verdade a comunidade é frágil e as tendências desagregadoras são fortes. Há muito conflito, há muita desistência, mesmo a memória do passado é precária. A condição de “assentado” por sua vez não é suficiente para gerar uma nova identidade que assegure a inserção social, nem para a criação da “comunidade” no assentamento, o que ajuda a entender a importância que a família extensa exerce na sociabilidade dessas populações. As condições econômicas da integração da agricultura familiar ao mercado não são muito favoráveis, ela “não é um terreno seguro de oportunidades constituído pela própria dinâmica do mercado” (MARTINS, 2003b, p. 107), mas criado pelo Estado e pelos próprios movimentos. São vários os casos de arrendamento de terra por agricultores assentados a terceiros, outra anomalia gestada ao longo do processo, marca da força da renda da terra como categoria de orientação mesmo entre os que foram vitimados pelo rentismo. Como agravante, há um déficit de legitimação da reforma como via de acesso à terra, mesmo entre os camponeses, um estigma (p. 112), ou um “sentimento de culpa” (p. 98), que vincula a ocupação de terra a uma transgressão da ordem, “vergonha” e “preconceito” de quem e com quem não chegou à propriedade pelo esforço próprio do trabalho (p. 133 e ss.). Há portanto insegurança e não certeza de direito, que fragiliza a situação do campesinato e, por vezes, impele a estratégias de “lavagem da propriedade” (p. 134). Outra consequência é que a ocupação de terras públicas é percebida de maneira mais confortável, menos conflitiva e mais atrelada ao direito de “posse” fundamentado no trabalho, no “fazer a roça”, saída 17

que não confronta diretamente o direito de propriedade e indica certo “conformismo” com a ordem social. São muitos os conflitos dessa ressocialização incompleta, nas relações entre funcionários estatais, líderes dos movimentos e agricultores, por vezes marcadas por práticas tradicionais de clientelismo e autoritarismo; nas relações entre as gerações, pais e filhos, com expectativas diversas quanto à educação, ao trabalho rural, à reprodução da família; entre grupos socialmente heterogêneos no interior dos assentamentos ou entre projetos de coletivização ou de produção familiar (MARTINS, 2003b, p. 70). O que Martins indica é que a “vivência” da reforma é conflitiva e “penosa”. Ao contrário do que sustentam os governos e os movimentos sociais, não basta oferecer as condições materiais, a vida no assentamento é um “novo modo de vida”, mas experimentado ainda como parte do desenraizamento prévio, decorrente da modernização capitalista, acentuado pela passagem pelos acampamentos. Transição inconclusa, na qual “não é o novo que articula os valores de orientação da experiência e sim o velho, o que já não pode ser” (MARTINS, 2003b, p. 145). A reforma não conseguiria efetivamente romper com os quadros de referência da sociedade tradicional e representar uma ressocialização plena no mundo moderno. A sociedade tradicional permanece nos valores, vide sua peculiar ética do trabalho, e nas relações sociais e políticas. Resulta em um amálgama, até porque o mundo tradicional não se mantém tal como era, a experiência do desenraizamento é sentida como perda, espécie de “dessocialização” que não sendo revertida em ressocialização leva a estados de “anomia”5. Em seus escritos sobre a reforma agrária nos governos petistas, Martins identificou um agravamento do problema, por conta do tipo de relação estabelecida pelo governo com os movimentos sociais e da natureza de sua política social para esta população marginalizada da modernização capitalista, especialmente o Bolsa Família. A ascensão de Lula ao governo, embora lastreada em uma aliança com os movimentos de luta pela terra, “não confirmou a viabilidade política do proclamado radicalismo popular e agrário” característico dos grupos de mediação. Lula e o PT compreenderam que a questão agrária não afetava o cerne da governabilidade e preferiram 5

Uma pista que pode ser seguida, a partir das hipóteses de Martins, seria a reinterpretação das lutas sociais no campo nos quadros de uma teoria do reconhecimento (HONNETH, 2009), como lutas que implicam em uma reconstrução identitária, processo de ressocialização que depende de mudança de status dos grupos em conflito por meio de uma transformação do quadro normativo estabelecido na sociedade abrangente. Uma mudança no paradigma de compreensão da luta pela terra em direção a uma luta contra o desenraizamento, uma luta por reconhecimento, que envolve elementos materiais e simbólicos, redistributivos e de reconhecimento, poderia ajudar a compreender como o problema agrário não se esgota em si mesmo, mas deve ser entendido em conexão mais ampla com os problemas da modernização e da democratização brasileiras. Nesse sentido, poderiam se revelar as carências de compreensão da “sociedade nacional” quanto ao status do campesinato e suas dificuldades de compreender sua integração em seus próprios termos, o que amplia as fraturas no tecido social e produz desigualdades que extrapolam as carências materiais.

18

adotar políticas para amenizar a pobreza, inclusive com a extensão do Bolsa Família para os acampamentos de luta pela terra, bem como políticas preferenciais de estímulo ao “agronegócio” da grande propriedade6. “Na verdade, foram derrotados os mediadores, que traduziram mal e insuficientemente as necessidades e os projetos implícitos na prática e nas lutas dos trabalhadores rurais. Os trabalhadores foram derrotados também por seus aliados. A contida reforma agrária do governo Lula, um governo que é culminância também das lutas do campo, é indicativa desse declínio de protagonismo dos trabalhadores rurais e da redução do alcance de suas potenciais propostas de mudança” (MARTINS, 2011, p. 193). No governo, o PT opta pela tutela dos movimentos sociais, o que representaria um modo de controle social e político e de cerceamento de suas demandas, que redunda em esvaziamento e debilitamento de suas organizações. Ao mesmo tempo, Lula se distanciou, por um lado, dos setores mais radicais da militância católica, por outro, da própria hierarquia da Igreja – na verdade, os bispos já se afastavam dos agentes de pastorais desde meados dos anos 1990, buscando recuperar para si o protagonismo na orientação da Igreja e neutralizar a aproximação partidária. A opção pelo formato do Bolsa Família, em vez do programa Fome Zero, concebido pelo grupo católico no governo, simboliza esses afastamentos e consolida, conforme Martins, uma estratégia de estatização do clientelismo político, que serve aos objetivos eleitorais do PT e não ao fortalecimento dos movimentos ou a uma boa solução do problema social (MARTINS, 2011, p. 7–29). A crítica de Martins aos movimentos de luta pela terra revela uma preocupação com o esgotamento das energias transformadoras das quais eram portadores, oriundas do período de redemocratização do país nos anos 1980, quando se anunciava a possibilidade de reversão da relação histórica entre Estado e sociedade civil no Brasil. A crise dos movimentos sociais é vista como fruto de estratégias de partidarização e tutela, fortalecidas nos governos petistas, mas também de uma dissociação entre os objetivos propalados – usualmente reformistas – e as regras de conduta que levariam a eles, que significariam a recusa prática do reformismo, sugerindo um estado anômico também nos movimentos sociais. Os movimentos se institucionalizam e perdem a função de crítica social que poderiam cumprir no regime democrático. O intelectual, as ciências sociais e a modernização Por fim, uma observação importante diz respeito ao lugar dos intelectuais, das ciências sociais e do conhecimento produzido – não só por eles, mas também pelos agentes sociais – nos 6

Ver Martins (MARTINS, 2009a, 2011, p. 192 e ss.)

19

processos de modernização, tema que articula diversos aspectos dos textos de Martins e sua própria intervenção7. A princípio, sua atuação enquanto intelectual consagra uma visão que remete aos primórdios da “escola paulista” de sociologia, um ethos que já foi chamado de “mertoniano” (WERNECK VIANNA; CARVALHO; MELO, 2004), mas que não dispensa o seu Mannheim. Nele a “neutralidade” axiológica da ciência social é pressuposto irredutível para a produção de conhecimento verdadeiro, entretanto o intelectual não se torna um “scholar” afastado de qualquer envolvimento em relações práticas com o objeto de seu conhecimento. Martins recusou as concepções de “intelectual orgânico” e de “intelectual militante” em nome da neutralidade axiológica, mas nem por isso concebeu sua atividade como a de intelectual “inorgânico” 8 ou isolouse em uma postura vulgarmente chamada de “academicista”. Enquanto intelectuais “mannheimianos” preferiram o engajamento na esfera pública por meio do Estado, Martins voltou-se para os movimentos sociais, sem contudo tornar-se um militante. A descrição que oferece de suas atividades valoriza funções pedagógicas e reflexivas, tendo o cuidado de não substituir o protagonismo dos verdadeiros militantes, grupo do qual o sociólogo não faz parte, sob pena de comprometer o conhecimento que produz. Aliás, boa parte dos escritos de Martins são uma crítica ao conhecimento produzido e agenciado pelos intelectuais militantes nos movimentos populares, oriundos em geral das camadas médias, que revelam mais as aspirações destes que daqueles. Mesmo quando vai às instituições, Martins não ocupa funções administrativas ou de planejamento do projeto de desenvolvimento, tendo contudo exercido funções importantes no combate ao trabalho escravo. Sintomático da diferença de Martins com a tradição dos intelectuais mannheimianos é que sua “intervenção”, embora situada no campo da modernidade, porque tem como base a ciência social, é desconfiada dos grandes processos de modernização, especialmente quando empreendidos pelo Estado, cujos efeitos costumam ser distantes das intenções de seus funcionários. Sua abertura é para a incorporação dos saberes dos agentes sociais na pesquisa sociológica e, poderíamos dizer, nos processos de mudança social. O intelectual não planeja, nem provoca a mudança social, não exerce aí protagonismo, que deve permanecer centrado nos movimentos e na sociedade civil. A rigor, nem mesmo o Estado – agência típica dos intelectuais planejadores – deveria procurar protagonizar a mudança social numa sociedade democrática, sendo diversa sua função. 7 8

Esta é sem dúvida uma questão que mereceria abordagem mais sistemática do que empreendida aqui, opto entretanto por incluí-la neste texto como um apontamento, ainda que provisório, que auxilia a compreender o sentido das proposições de Martins e que pode ser retomado em trabalhos futuros. Em entrevista, ele argumenta que “não sou orgânico, mas também não sou inorgânico. Sou um intelectual à disposição dos movimentos e grupos que lutam por justiça, pelos direitos do cidadão, pelas reformas sociais. Essa é uma das funções do intelectual, de um interlocutor crítico da sociedade. A sociedade pensa com a ajuda dele e não sob ordens dele. A função do intelectual é educar, para que as pessoas não dependam dos intelectuais quando lutem por esses direitos” (MARTINS, 2013b, p. 114).

20

Notas finais A decadência das propostas de reforma radical ou revolucionária e os dilemas enfrentados pelos grupos que a defendiam nos governos petistas estaria a indicar, para Martins, uma tendência a devolver o protagonismo da questão agrária aos próprios trabalhadores e a suas necessidades. A reforma deixaria de ser “pretexto para outras transformações sociais” e por esta razão poderia ser mais bem identificada como condição para que necessidades mais imediatas fossem atendidas, as de “sobrevivência” das populações marginalizadas, de emprego, saúde, justiça e paz, conjunto que pode ser bem descrito por direitos de cidadania. Não é assim a dimensão “agrária” clássica, referida a estrutura de propriedade da terra, que remete a um conflito social e político em torno de projetos mais abrangentes, porém uma dimensão talvez menos agônica, mas nem por isso desprovida de virtualidades emancipadoras e transformadoras. É reforma mais propriamente social que econômica, que poderia ser concebida como parte de estratégias de autoproteção da sociedade contra as consequências socialmente desagregadoras da modernização capitalista. Nesta formulação, poderia ser concebida politicamente em uma perspectiva mais multipartidária porque referida a um interesse geral, o da autoproteção da sociedade frente a tendências desagregadoras9, e não a projetos específicos de classes ou grupos sociais, em consonância com a tradição do conservadorismo socialmente inovador, à qual Martins reputa a emergência dos direitos de cidadania modernos, e que poderia ser compatibilizada com mudanças graduais que poderiam servir à “construção da alternativa movida e determinada por necessidades urgentes, reais e imediatas, cotidianas” (MARTINS, 2011, p. 199). A persistência dessas necessidades revela um problema agrário não inteiramente domesticado pela modernização capitalista brasileira. Por vezes, Martins sugere que essas necessidades poderiam ser pensadas como “necessidades radicais” no sentido sugerido por Agnes Heller e Henri Lefebvre, de necessidades que não podem ser satisfeitas sem mudanças sociais profundas. Elas emergem das contradições inscritas nas relações sociais, dos “resíduos”, vistos como fragmentos de alternativas não-realizadas no processo histórico, mas com potencial utópico 10. 9

“A reforma deve se constituir numa reforma social e não apenas em reforma econômica. Por isso, não pode, em primeiro lugar, ser remetida à questão do abastecimento. Deve ser remetida à questão que foi anunciada ali pelos grupos de trabalho por meio dos quais se debateu diferentes aspectos de seu entendimento atual da questão agrária; a questão que vem sendo anunciada pelos trabalhadores: a da sobrevivência da sociedade no destino de suas novas gerações” (MARTINS, 2011, p. 195). 10 São “concepções e relações residuais que não foram capturadas pelo poder, que permaneceram nos subterrâneos da vida social, virtualidades bloqueadas. Alternativas do processo de humanização do homem imobilizadas pelo bloqueio do poder que domina a superfície (…) Nos resíduos e no virtual estão as necessidades radicais, necessidades que não podem ser resolvidas sem mudar a sociedade, necessidades insuportáveis, que agem em favor das transformações sociais, que anunciam as possibilidades contidas nas utopias (...)” (MARTINS, 1996, p. 23).

21

Mas essa transformação não é concebida como revolução camponesa, mas como reforma social que se realizaria em benefício da própria sociedade, ameaçada de desarticulação. A articulação entre tradição e modernidade ajuda a compreender as possibilidades socialmente inovadoras da possibilidade da superação dos estados de anomia vividos pelo campesinato, de sua integração sem a destruição do mundo dos valores e dos projetos camponeses; paradoxalmente, é esta combinação que poderia tornar a modernidade autêntica e enraizada, ao mesmo tempo que verdadeiramente singular e não anômala. O mundo da tradição exerceria funções críticas das patologias típicas da modernidade, da alienação e da anomia, dos efeitos desumanizadores da expansão da racionalidade abstrata e impessoal do capitalismo. Mas esta transformação não é concebida como ruptura, nem como volta ao passado, porque por um lado implica em inovação social para a ressocialização do campesinato no mundo moderno. Por outro, sua roupagem positivamente “conservadora” combina com a democracia política, pela ênfase na reforma, na busca de solução de problemas imediatos, na admissão do gradualismo, na concepção de reforma articulada a interesses gerais. Referências bibliográficas DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GOMES DA SILVA, José. Buraco negro: a reforma agrária na Constituinte. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. GOMES DA SILVA, José. Caindo por terra: crises da reforma agrária na Nova República. São Paulo: Busca Vida, 1987. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009. JOAS, Hans; KNÖBEL, Wolfgang. Social theory: twenty introductory lectures. Tradução Alex Skinner. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. MARTINS, José de Souza. A militarização da questão agrária no Brasil. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1985. _____________________. A modernidade do “passado” do meio rural. In: BUAINAIN, A. M. et al. (Org.). O mundo rural no Brasil do século 21: a formação de um novo padrão agrário e agrícola. Brasília: Embrapa, 2014. . _____________________. A política do Brasil: lúmpem e místico. São Paulo: Contexto, 2011. _____________________. A reforma agrária bifocal. Política democrática, v. 24, p. 87–90, 2009a. _____________________. A sociabilidade do homem simples. 3a ed. São Paulo: Contexto, 2013a. 22

_____________________. A sociedade vista do abismo: Novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 2012. _____________________. A sociologia como aventura: memórias. São Paulo: Contexto, 2013b. _____________________. As temporalidades da história na dialética de Lefebvre. Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996. . _____________________. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. 2a ed. São Paulo, SP: Editora Contexto, 2009b. _____________________. O cativeiro da terra. 9a ed. São Paulo, SP: Editora Contexto, 2010. _____________________. O sujeito da reforma agrária (estudo comparativo de cinco assentamentos). Travessias: estudo de caso sobre a vivência da reforma agrária nos assentamentos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003a. . _____________________. O sujeito oculto: ordem e trangressão na reforma agrária. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003b. _____________________. Os camponeses e a política no Brasil: As lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. Petrópolis: Vozes, 1981. _____________________. Reforma agrária : o impossível diálogo. São Paulo, SP, Brasil: Edusp, 2000. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980. VANDENBERGHE, Frédéric. Uma história filosófica da sociologia alemã: Alienação e reificação. São Paulo: Annablume, 2012. v. 1. VILLAS BÔAS, Glaucia. Mudança provocada: passado e futuro no pensamento sociológico brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2006. WERNECK VIANNA, Luiz; CARVALHO, Maria Alice Rezende De; MELO, Manuel Palácios Cunha. A institucionalização das ciências sociais e a reforma social: do pensamento social à agenda americana de pesquisa. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. p. 195–242.

23

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.