Sim, os Juízes Criam Direito!

May 30, 2017 | Autor: J. Pinheiro Faro ... | Categoria: Legal Theory, Hans Kelsen, Teoria do Direito, Richard Posner, Teoría General Del Derecho
Share Embed


Descrição do Produto

Doutrina

Sim, os Juízes Criam Direito!

JULIO PINHEIRO FARO HOMEM DE SIQUEIRA Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH), Advogado. RESUMO: O presente estudo demonstra a atualidade do entendimento de Kelsen sobre a possibilidade de os juízes criarem direito, afastando as críticas que, porventura, podem ser feitas a uma pretensa limitação no entendimento do autor. À conclusão de que Kelsen considera possível a criação tanto de normas individuais como de normas gerais pelos juízes são trazidas outras questões que estão na ordem do dia sobre o atual papel do Judiciário: a independência judicial e o comportamento dos juízes, o que se faz, principalmente, a partir da obra de Richard Posner. PALAVRAS-CHAVE: Criação do direito; normas individuais; normas gerais; papel do Judiciário; independência judicial; comportamento dos juízes. SUMÁRIO: Introdução; 1 O juízo de Kelsen sobre o papel dos juízes; 2 O atual papel do Judiciário; 3 A questão da independência judicial; 4 Como os juízes se comportam; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO Em fins do século XVIII, duas revoluções movimentaram as costas leste e oeste do Atlântico. Em 1776, a revolução americana selou o surgimento de uma nova nação: os Estados Unidos da América. Em 1789, a revolução francesa destituiu o antigo regime do poder. A relação entre uma e outra é que, além de terem sido pretensamente liberais, já que é indubitável a influência de pensadores franceses no processo estadunidense e de pensadores norte-americanos no processo francês, ambas firmaram dois modos distintos de enxergar o papel do Judiciário. Do lado francês, pelo menos desde o século anterior, era vedado aos juízes interpretar o Direito, devendo dirigir-se ao monarca

sempre que tivesse dúvida sobre o sentido das leis. A revolução francesa, em virtude do temor das arbitrariedades cometidas pelos reis durante o antigo regime, trocou apenas a quem os juízes deveriam se reportar em caso de dúvida quanto ao espírito das leis. Assim, ao Legislativo caberia elaborar, por meio da codificação, as leis e estabelecer a sua correta interpretação, cabendo ao Judiciário tão só repeti-la e aplicá-la ao caso concreto, como uma verdadeira bouche de la loi. Do lado norte-americano, foi importada a tradição inglesa, na qual os juízes protegiam o cidadão e punham freios ao governo.

102

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

Havia, assim, uma oposição, embora não necessariamente inconci-liável, entre o civil law e o common law. Oposição que persiste até a atualidade. Na tradição do civil law, a vontade de criação do direito nasce no Legislativo, cabendo aos juízes apenas aplicá-lo. Na tradição do common law, a vontade de criação do direito nasce tanto no Legislativo quando no Judiciário, cabendo a este, também, a aplicação do direito criado por aquele. De maneira bem geral, formaram-se duas concepções distintas: a do juge bouche de la loi e a do judge make law. Com o tempo, mostrou-se mais acertada a aposta do common law. Embora o Code Napoléon fosse bastante preciso em muitas de suas previsões, sendo fonte de erudição, aliás, para muitos escritores franceses, pelo menos duas razões deram ganho de causa à iniciativa do common law. A primeira é que precisão não quer dizer esgotamento, isto é, o legislador não tinha a capacidade de ser onisciente nem de ser adivinho, de maneira que, inevitavelmente, surgiram, no mundo real, novas situações não contempladas pelas codificações. A segunda é que precisão nem sempre quer dizer a possibilidade de uma única interpretação para a mesma norma ou para o mesmo conjunto normativo; aliás, a existência de juízes, mesmo que tão só aplicadores, já era um forte indício disso, de que é sempre preciso que alguém, na falta de acordo entre as partes, substitua suas vontades e estabeleça a vontade da lei. Portanto, a doutrina tradicional, que estabelece uma exata repartição de funções entre os Poderes, tem perdido espaço. E a nova teoria da separação dos Poderes enxerga muito bem um paradoxo da antiga. Ora, se as leis esgotassem todas as possibilidades ou se fossem claras, não admitindo mais de uma interpretação possível, então desnecessária seria a existência de juízes. E, mesmo que se argua que na doutrina tradicional os juízes existiriam para intermediar a dúvida que os indivíduos porventura tivessem acerca da interpretação das normas jurídicas e o órgão autorizado a

interpretá-las, continuaria a ser patente a desnecessidade de um órgão judiciário, sendo talvez mais interessante que o Legislativo contasse com um corpo de burocratas em sua estrutura interna. Nesse sentido, em um sistema legal completo e coerente como supostamente é o de direito codificado, especialmente os influenciados pelas codificações napoleônicas, o juiz nunca se depararia com uma lacuna no direito (inexistência de norma jurídica para solucionar o caso) ou com um conflito de normas (existência de duas ou mais normas jurídicas aplicáveis ao caso, porém incompatíveis). A existência de apenas uma dessas situações poria por terra a completude (ausência de lacunas) ou a coerência (ausência de conflitos) de um sistema jurídico baseado na precisão das leis.

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

103

As respostas que surgiram para tentar sustentar os sistemas legais baseados na completude e na coerência (e, por conseguinte, a doutrina tradicional) foram as mais variadas. Porém, como o escopo do presente estudo não é discorrer sobre tais respostas e sobre sua validade ou invalidade, faz-se apenas um apontamento geral e genérico. A resposta se encontra mais ou menos da mesma forma em diversos ordenamentos jurídicos, podendo-se indicar o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil brasileira - que prescreve que, nos casos de omissão legal, "o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" - e o art. 5º da mesma lei - no qual se encontra que, "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". Isso mais parece um tiro saído pela culatra do que propriamente uma defesa da doutrina tradicional. Ora, se com tal tipo de normas o legislador reconheceu que não pode prever todos os tipos de condutas e que as leis, portanto, podem não ser completas, mas que o sistema é completo, já que a inexistência de normas para um determinado caso pode ser suprida pela analogia, pelos costumes e pelos princípios gerais de direito, então seria preciso que o sistema definisse que tipos de analogia poderiam ocorrer para evitar, por exemplo, analogias prejudiciais, quando e que costumes poderiam ser adotados para evitar uma superposição de costumes contraditórios e quais são os princípios gerais do direito, isto é, uma lista taxativa deles, a fim de evitar a criação de princípios por juízes. A questão é tormentosa, porque o não esclarecimento do uso desse tipo elementos de interpretação ensejaria nova omissão do sistema jurídico e novamente duvidar-se-á de sua completude e coerência. Outra possibilidade é um tiro no pé. Se o juiz, ao aplicar uma norma, pretensamente contida em um sistema completo e coerente, deve atender aos seus fins sociais e às exigências do bem comum, então ele poderá modificar o direito existente. Explica-se. As normas jurídicas são normalmente criadas pelo legislador sob um contexto

social e histórico que, muitas vezes, não dura muito tempo. Assim, com o passar do tempo, pode ser que o bem comum passe a ter outro tipo de exigência não mais contemplada pela lei então existente. Dessa maneira, ou a aplicação de tal lei seria injusta, ou seria ineficiente. O resultado não seria a incompletude do sistema jurídico, mas uma contrariedade entre ele e o seu fim, que é conformar condutas, o que parece ser muito mais desastroso. A solução seria um legislador mais atuante; mas como o próprio legislador reconheceu a sua morosidade, aos juízes caberia criar o direito.

104

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

A proposta desse estudo, ora introduzido, é demonstrar como a nova teoria da separação dos Poderes propugna um Judiciário mais ativo, não apenas envolvido com a aplicação do direito, como também com sua criação. Não se pretende esgotar o assunto, e sim apenas revisitar a crítica de Hans Kelsen à doutrina tradicional, atualizando-a com algumas questões sobre a independência judicial e o comportamento dos juízes. Dessa maneira, o trabalho inicia-se com o entendimento de Kelsen sobre o papel dos juízes; em seguida, traz uma releitura dele a partir da análise de Richard Posner, para, então, se ocupar com os delineamentos sobre o atual papel do Judiciário, sobre a independência judicial e sobre o comportamento dos juízes, utilizando-se, principalmente, as leituras de Posner e, adicionalmente, algumas outras contribuições. 1 O JUÍZO DE KELSEN SOBRE O PAPEL DOS JUÍZES De acordo com Eugenio Bulygin, Kelsen, ao criticar a doutrina tradicional, sustentou que "todos os atos jurídicos são atos de aplicação e de criação do Direito", salvo nos casos da "primeira constituição, que é apenas criação, e da execução de sentença, que é pura aplicação" do Direito (2003, p. 10). De fato, de acordo com o jurista de Praga, é errônea a opinião de que apenas o Legislativo criaria, produzindo o direito, enquanto que o Judiciário apenas aplicaria, reproduzindo o Direito (Kelsen, 2007, p. 251). Para ele, tanto o Legislativo quanto o Judiciário criariam e aplicariam o Direito. No entanto, ao expor o juízo de Kelsen sobre o papel dos juízes, Bulygin comete um equívoco. Para o jurista argentino, o entendimento de Kelsen era de que "o legislador aplica a constituição e cria normas gerais e o juiz aplica a lei e cria sentenças, é dizer, normas individuais" (2003, p. 10). Na obra do próprio Kelsen, é possível encontrar tal tese: "Uma decisão judicial, por exemplo, é um ato pelo qual uma norma geral, um estatuto, é aplicada, mas, ao mesmo tempo, uma norma individual é criada obrigando uma ou

ambas as partes que estão em conflito", de modo que a diferença entre a função legislativa e a função jurisdicional é que aquela é limitada diretamente pela constituição e a outra, pela legislação (1998a, p. 194 e 196). Todavia, o entendimento de Kelsen sobre a questão não se reduz à conclusão de que os juízes, para ele, criariam apenas normas individuais. Em sua Teoria geral do direito e do estado, Kelsen afirma que "a decisão judicial também pode criar uma norma geral", caso em que, ao contrário da norma individual criada pelo juiz, tal decisão teria "força de obrigatoriedade não apenas para o caso em questão, mas também para outros casos similares que os Tribunais tenham eventualmente de decidir" (1998a, p. 216). Ora, o que Kelsen quer dizer, então, é que os juízes criam direito, podendo, de acordo com o caso, criar normas individuais ou normas gerais (chamadas por ele de precedentes). Mais especificamente: os juízes podem criar normas individuais e os Tribunais podem criar normas gerais - de modo que o equívoco de Bulygin parece, então, ser apenas parcial.

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

105

Para entender o juízo de Kelsen sobre a possibilidade de os juízes criarem direito, duas coisas devem ser esclarecidas. Primeiro: o que o jurista austríaco entende por norma geral e por norma individual. Segundo: de onde o jurista de Praga deriva a norma jurídica que permite que os juízes criem direito. As normas jurídicas são mandamentos, prescrições de conduta, que ordenam, proíbem ou permitem um determinado comportamento. Para Kelsen, as normas podem ter caráter individual ou caráter geral. Serão consideradas individuais as normas que prescrevem uma conduta particular individualmente obrigada, enquanto que gerais serão aquelas que prescrevem uma conduta universal que obriga a todos (1986, p. 10). Ampliando isso para a criação judicial de normas, tem-se que normas individuais serão produzidas em casos individuais, ao passo que normas gerais são produzidas em casos gerais. A implicação é intuitiva: se as normas jurídicas são prescrições de condutas, então uma norma individual criada judicialmente obrigará apenas as partes envolvidas no conflito, enquanto que uma norma geral, judicialmente criada, produzirá efeitos em relação a todos que poderiam entrar em conflito por conta de um determinado caso. Bulygin, ao criticar a concepção de Kelsen de que os juízes criam normas individuais, qualifica-a de duvidosa. Para o jurista argentino, quando Kelsen afirma que a sentença judicial é uma norma individual, ele estaria fazendo uma simplificação que não pode ser feita, já que uma sentença seria constituída por um relatório, por uma fundamentação e por uma parte dispositiva. Na verdade, Bulygin reconhece que o dispositivo da sentença pode ser chamado de norma individual, mas aponta que nem a fundamentação, nem o relatório, que são partes também essenciais à sentença, podem ser considerados como partes integrantes da norma individual. E atesta: enquanto a fundamentação e o relatório são partes imprescindíveis de uma sentença, são prescindíveis na criação de uma lei; ou seja, uma sentença sem fundamentação é arbitrária, mas uma lei não é. A isso Bulygin junta sua crítica de que normas individuais não são normas,

porque o termo "norma" em si requer a generalidade, de modo que se algo é individualizado, não pode ser geral, de modo que a parte dispositiva da sentença deveria ser chamada de mandado e não de norma individual (2003, p. 12-13). Mais uma vez não se pode concordar com Bulygin. Em primeiro lugar, porque, embora a fundamentação de uma sentença seja essencial, ela não tem força vinculante alguma, servindo apenas para justificar a tomada de decisão do juiz, isto é, para sustentar o dispositivo, que é o que faz coisa julgada. E, em segundo lugar, a palavra "norma" não carrega em si, intrinsecamente, o sentido de generalidade, o que poderia haver, quando muito, é um sentido de abstração - pela natureza mesma do direito como dever-ser, e não como ser -, podendo, portanto, o dispositivo da sentença ser chamado de norma individual, ou de mandado, prescrição de conduta particular, individualmente obrigada.

106

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

Pois bem. Kelsen, ao formular a sua teoria pura do direito, estabeleceu que o que os sistemas jurídicos têm em comum é a propriedade de ser um sistema normativo coativo, baseando-se na legitimidade do uso da força física contra as situações consideradas indesejáveis, contra aqueles que violarem as normas jurídicas, o que confere, por tabela, a tais sistemas a sua eficácia (1998b, p. 35). A validade de um sistema desse tipo está no que Kelsen chamou de Grundnorm, a norma (hipotética) fundamental, cuja existência é logicamente necessária em todo sistema jurídico e que estabelece a validade de todas as normas, isto é, a sua existência enquanto norma jurídica (Raz, 1974, p. 94). Portanto, todas as normas jurídicas, gerais e individuais, de um ordenamento jurídico buscam o seu fundamento, o seu princípio originário único na Grundnorm. Assim, pode-se dizer que todas as normas de uma ordem jurídica são autorizadas pela norma fundamental. Supondo que a Grundnorm tenha estabelecido que no topo do escalonamento legal estivesse a constituição, então seria possível, e também válido, dizer que a Grundnorm autorizou a constituição a estabelecer o conteúdo de todas as outras normas constantes do sistema jurídico. Tem-se, portanto, que uma norma autoriza a criação de outra. Com isso, fica fácil compreender onde Kelsen busca a norma jurídica que autoriza os juízes a criarem direito. Mediatamente, a origem de tal norma está na Grundnorm, enquanto que imediatamente a sua origem está na constituição - na Constituição Federal brasileira, por exemplo, diversos dispositivos estabelecem a função dos juízes de decidirem os casos que lhe forem submetidos ou em uma norma derivada da Constituição - no Código de Processo Civil brasileiro, por exemplo, há norma que atribui ao juiz o dever de velar pela rápida solução dos litígios postos a seu juízo. É nesse sentido que se manifesta Kelsen, ao dizer que o Legislativo está subordinado à Constituição e que o Judiciário está subordinado à legislação. Afirmando, em seguida, que "a ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais relacionadas

entre si de acordo com o princípio de que o Direito regula a sua própria criação", ou seja, que cada norma "é criada de acordo com as estipulações de outra norma e, em última análise - de acordo com as estipulações da norma fundamental que constitui a unidade desse sistema de normas -, da ordem jurídica" (2007, p. 151 e 193). No final das contas, o entendimento de Kelsen permite que se faça uma escolha: ou bem só há criação de direito com o estabelecimento da primeira constituição - porque "uma norma que regula a criação de outra norma é 'aplicada' na criação de outra norma", ou seja, "a criação de Direito é sempre aplicação de direito" (1998a, p. 193) - ou bem Legislativo, Executivo e Judiciário, além de aplicarem normas, também criam normas em menor ou maior profusão. Pelo uso das aspas na primeira possibilidade para o termo "aplicação", não se erra em concluir que a escolha de Kelsen, e, assim, o seu juízo, é de que todos os poderes aplicam e criam normas.

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

107

2 O ATUAL PAPEL DO JUDICIÁRIO Portanto, pelo dito na seção anterior, os juízes podem tanto aplicar normas quanto criar normas, sejam individuais, sejam gerais. De uma forma ou de outra, os juízes estão fazendo direito, criando ou aplicando normas. Ademais, como bem indica Posner, os juízes, ao exercerem o seu papel, não fazem uma separação física nem mesmo mental entre situações em que eles aplicam o direito e situações em que eles criam o direito (2001, p. 22). A revisitada ao entendimento de Kelsen e a constatação de Posner, que poderia muito bem ter sido feita pelo primeiro, permitem que se conclua que a um bom tempo se entende que o Judiciário, além de aplicar normas, também cria normas. Nesse sentido, Michael Boudin, ao discorrer sobre o papel dos juízes federais ingleses, afirma que eles têm três funções clássicas, sendo que duas delas, que estão meio que em declínio, são a resolução de litígios privados (private disputes) e a imposição da lei penal (imposition of criminal justice), enquanto que a terceira foi negada durante muito tempo, que é a função de legislar de um modo peculiar (lawmaking in miniature) (2006, p. 1097). Da mesma forma, Posner, quando fala sobre os Tribunais recursais (appellate judges) americanos, esclarece que, em certos casos, eles agem como legisladores sui generis, estando limitados por certos fatores (operating under certain constraints) que não limitam os legisladores oficiais, mas que, em certos casos, têm alguma margem de manobra (leeways) não concedida aos legisladores, com a grande diferença de que os juízes só podem dizer o que fazer ao Executivo, mas não ao Legislativo (2006, p. 1049 e 1054-1055). Boudin e Posner, entre vários outros autores, chegam à mesma conclusão: o Judiciário legisla e, quando o faz, faz pelos mais diversificados motivos. Acontece que essa maneira peculiar de criar o Direito, pelo menos no Brasil, tem transbordado para uma criação do Direito tal

qual o Judiciário fosse legislador. E isso decorre, como aponta Dalmo Dallari, do fato de que o Legislativo está a algum tempo desajustado, já que "não participa na fixação das prioridades do governo, não exerce o controle sobre o Executivo e quase só aprova projetos de lei originários de iniciativas do chefe do Executivo" (2002, p. 5), muito menos mantém um acompanhamento das leis que cria, seja quanto à sua atualidade, seja quanto à sua constitucionalidade. Mas o problema não parece ser apenas em solo brasileiro. Redish e Pudelski afirmam que também nos Estados Unidos há uma decepção em relação ao órgão legislativo, em relação àquilo que ele faz, ou melhor, sobre aquilo que ele não faz direito, porque não legislar ou legislar mal, com leis imprecisas e vagas, tem o mesmo efeito, decepciona do mesmo jeito (2006, p. 437).

108

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

Ora, mesmo que não se veja uma grande evolução em relação aos processos de tomada de decisão (decisionmaking), o Judiciário, em seu duplo papel, tem atuado de forma até que razoável. Essa constatação poderia muito bem ser documentada com algum tipo de pesquisa para demonstrar, empiricamente, a correção da ilação de que parlamentares demais só importam em maior gasto público, sem nenhum retorno para a sociedade, o que ocorreria com a criação de melhores e mais eficientes leis, de controle mais eficiente sobre a Administração Pública e de maior participação nas prioridades do governo, para indicar apenas alguns exemplos. Já dizia Kelsen que "uma norma apenas vale contanto que possa ser cumprida ou violada. A possibilidade de cumprimento ou violação de uma norma é uma condição de sua validade" (1986, p. 27). Dessa maneira, de acordo com o jurista austríaco, o que os sistemas jurídicos têm em comum é a legitimidade da coação, isto é, do uso da força física para a aplicação de sanções ao descumprimento ou à violação das normas jurídicas (1986, p. 30); é preciso que as normas jurídicas, enquanto mandamentos, prescrições de conduta permitidas, proibidas ou obrigatórias, tenham alguma carga cogente (Stigler, 1974, p. 55). Assim, além de o Legislativo funcionar corretamente, é preciso também que as leis sejam aceitas pela sociedade - o que se chama de eficácia social e que se tem, em geral, apenas quando os direitos fundamentais das pessoas são respeitados e efetivados - e que o Executivo e a Administração Pública, em geral, cumpram com o seu papel, que é duplo, de administrar com transparência e satisfatoriamente e de conferir real eficácia aos direitos fundamentais. Contudo, dado ao atual papel que o Judiciário tem desempenhado, verifica-se que pelo menos este último papel não está sendo cumprido da forma como deveria, seja com a realização de políticas públicas adequadas, seja coagindo adequadamente a sociedade ao correto cumprimento da lei. Assim é que ao Judiciário, que deveria ser tratado apenas como um órgão subsidiário (daí a

ideia, por exemplo, de ultima ratio), tem sido dado outro papel, o de proferir decisões para suprir o inadimplemento estatal com os seus deveres constitucionais e legais, já que, em tese, as decisões judiciais vinculariam o Executivo.

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

109

Portanto, pelo que se pode perceber por essa superficial análise, o Judiciário tem tido um papel triplo, prestando serviços que, na teoria tradicional de separação dos Poderes, não estão no gibi. E a consequência disso, embora haja outras causas, é uma redução da eficiência do Judiciário no desempenho de seu próprio papel. Ou seja, mesmo que haja a necessidade premente de revisão da teoria da separação dos Poderes, não se pode fazer a mera migração de funções e olvidar-se da razão de ser de cada poder, já que, se houver o esvaziamento da funcionalidade dos Poderes, a sua manutenção será desnecessária. Pois bem, enquanto não se faz tal revisão institucional, o exercício insatisfatório e ineficiente das funções estatais só tende a se manter ou, infelizmente, a aumentar. Nesse sentido, entre as implicações proporcionadas pelo atual papel desempenhado pelo Judiciário, estão duas questões: o comportamento dos juízes quando eles decidem casos, aplicando ou criando o direito, e a independência judicial. 3 A QUESTÃO DA INDEPENDÊNCIA JUDICIAL Antes de tratar, porém, sobre a questão do comportamento dos juízes ao decidirem os casos que lhes são apresentados, é preciso que se trate sobre a questão da independência judicial. Dizer que determinado comportamento judicial tem a ver com a independência judicial é, no entanto, um lugar-comum, e, como todo lugar-comum, é um argumento muito citado, porém pouco entendido. Nesse sentido, Lydia Tiede afirma que parte do problema se deve ao fato de que a expressão independência judicial é amórfica, ou seja, seu significado muda de acordo com o contexto em que é usado, por assim dizer, de acordo com as conveniências dos utentes, de maneira que a questão é "de quem ou de quê o Judiciário é 'independente'" (2006, p. 130). É, portanto, necessário apurar qual o sentido de independência judicial. Pode-ser definir os contornos do significado de independência

judicial a partir de dois prismas. O primeiro considera que ele possa ser definido a partir da independência entre o Judiciário e o Executivo. O segundo considera que, dada a independência em relação ao Poder Executivo, os juízes têm liberdade (discretion) para julgar causas sobre áreas específicas do Direito, liberdade esta que varia (fluctuates) de acordo com a composição política e com a interação estratégica entre os três Poderes (Mcnollgast, 2006). De aí que, a princípio, parece não haver independência entre o Judiciário e o Legislativo, já que este poderá, de acordo com arranjos institucionais ou com questões do jogo político, expandir o campo de atuação ou limitá-lo por meio de leis ou de emendas constitucionais (Tiede, 2006, p. 133-135), como, aliás, ocorreu com a Reforma do Judiciário, gestada no Congresso Nacional brasileiro no regime de emenda constitucional (EC 45/2004). E mesmo as interpretações de Tribunais Superiores ou do Supremo sobre as normas de competência do próprio Judiciário estão sujeitas ao comportamento do Legislativo. Assim, hipoteticamente, se o constituinte derivado não tivesse concordado com a interpretação restritiva dada pelo STF ao art. 114, I, da Constituição Federal (reformado pela EC 45/2004), poderia muito bem ter estabelecido, por nova emenda constitucional, que a vontade do constituinte, à qual se submete o STF, é a de que a Justiça Trabalhista teria, a partir de então, competência para apreciar causas que sejam instauradas entre o Poder Público e os seus servidores ou mesmo para processar e julgar ações penais que envolvam questões de direito trabalhista.

110

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

O sentido de independência judicial que prevalece na teoria é o de que o Judiciário é independente do Executivo, mas não do Legislativo. Tanto isso faz sentido que, se não fosse assim, as decisões de efeito vinculante previstas no Texto Constitucional não vinculariam apenas o próprio Judiciário e a Administração Pública (aí incluído o Executivo), mas não o Legislativo no exercício de sua função típica (legislar), que pode, aliás, criar leis contrárias a enunciados das súmulas dos Tribunais. Daí a afirmação de Lydia Tiede de que estabelecer que a independência judicial dependa de que a quantidade de discrição, de discricionariedade dada aos juízes (amount of discretion afforded to individual judges), é vantajosa por pelo menos três razões: (1) deixa claro que os Tribunais e sua organização dependem do comportamento e das escolhas dos outros Poderes, em especial da criação legislativa, que deve ser interpretada pelos juízes; (2) permite que os cientistas sociais especializados no assunto estudem como os juízes tomam decisões dentro da liberdade (discricionariedade) que lhes é dada; (3) permite que os cientistas sociais analisem, por meio de comparações com outros sistemas legais, o modo como os juízes utilizam sua discrição para decidir. Outra questão que se situa ao lado da independência judicial é a responsabilidade judicial. Em tese, um Judiciário independente deveria ser irresponsável, enquanto que um Judiciário responsável deveria ser dependente. Porém, na prática e segundo a Constituição Federal, o link entre independência e irresponsabilidade não é necessariamente existente. Dito de outra maneira, independência e responsabilidade podem conviver tranquilamente. Bem assim, não pode o juiz, utilizando-se de sua independência proferir decisões contrárias à lei, ou, no caso de omissão legal, contrária à possível analogia, aplicação de costumes ou aos princípios gerais do Direito.

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

111

Pode-se extrair, por exemplo, do art. 95, I, da Constituição Federal brasileira que o juiz de primeiro grau deve passar por um estágio probatório, em que, em tese, seu comportamento - incluindo o teor, a eficácia e a consequência de suas decisões - será observado por uma junta especializada, podendo perder o cargo se o Tribunal a que estiver vinculado assim deliberar. Depois desse estágio, o juiz adquire uma vitaliciedade relativa, já que poderá perder o cargo se contra ele pender decisão judicial transitada em julgado. Portanto, a Constituição Federal permite que os juízes sejam removidos de seus cargos, mas não só os juízes, como também os desembargadores (juízes de Tribunais recursais) e os ministros (juízes de Tribunais superiores). Além disso, para verificar se os juízes estão agindo dentro dos limites de sua independência, isto é, com responsabilidade, há o Conselho Nacional de Justiça, que, entre outras funções, recebe e conhece das reclamações contra membros ou órgãos do Judiciário e representa o Ministério Público no caso de crime contra a Administração Pública ou no caso de abuso de autoridade. A inter-relação entre independência e responsabilidade é, portanto, clara no ordenamento jurídico brasileiro, a ela juntando-se a questão se os juízes são meros aplicadores do Direito ou se também criam o Direito. A essa altura, é induvidoso que aqui se compartilhe com o entendimento de Kelsen de que os juízes aplicam o direito e criam normas jurídicas, sejam elas individuais, sejam elas gerais, conforme o caso. Porém, apesar de toda discricionariedade conferida aos juízes em razão de sua independência, há restrições a como eles decidem os casos que lhes são apresentados, ou seja, em razão da responsabilidade, os juízes não podem aplicar nem criar o direito de qualquer maneira. Nesse sentido, há que se analisar a questão sobre o comportamento dos juízes quando eles têm de decidir um caso, tendo em vista, principalmente, aquelas decisões dadas em sede de hard cases, ou seja, nas decisões a serem proferidas em casos para os quais não haja uma resposta legal muito clara. E essa necessidade

decorre, como afirmam Shafir, Simonson e Tversky, do fato de que o processo de tomada de decisões é frequentemente muito difícil, em virtude das incertezas e dos conflitos dos mais variados tipos, além do fato de que, em geral, as pessoas não estão muito certas de quais consequências as suas ações podem ter, já que existe uma variedade imensa de fatores, previsíveis e imprevisíveis, que influenciam nos resultados (1993, p. 12). 4 COMO OS JUÍZES SE COMPORTAM Falar sobre o comportamento dos juízes depende da análise de um conjunto de fatores, como, por exemplo, psicologia, ideologia, mercado de trabalho, critérios econômicos, que não se pretende abordar aqui individualmente nem com pretensão de esgotamento. O que se pretende fazer aqui, muito modestamente, é uma análise, embora não muito aprofundada, das teorias apresentadas por Richard A. Posner em seu recentíssimo livro How judges think, publicado pela Harvard University Press em 2008, sobre o comportamento dos juízes.

112

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

Embora os críticos, ao resenharem a obra de Posner, tenham apontado que na referida obra o autor não extrai suas conclusões de pesquisas empíricas, a não ser que se possa considerar a "empiria de poltrona" (armchair empiricism), consistindo, pois, muito mais em experiências de Posner como juiz e de suas próprias crenças (Levi, 2009, p. 1792-1793). Não há, no entanto, nenhuma novidade nisso, já que o mesmo Posner destaca na introdução de seu livro que, "assim como outros escritos de juízes sobre como juízes julgam, este livro é fortemente influenciado por minhas próprias experiências como juiz", embora seu propósito "seja muito mais acadêmico que confessional" (2008, p. 6). Isso comprova a empiria de poltrona, mas não retira o interesse na e da obra, que, aliás, como aponta Frank Cross, um de seus críticos, tem uma grande virtude, "uma proposta que pode parecer muito óbvia, mas que é comumente deixada de lado na literatura jurídica: o descritivo (descriptive) é essencial para o normativo (normative)" (2008, p. 184). Posner aponta nove teorias sobre o comportamento dos juízes: (1) teoria da motivação política (attitudinal theory), pela qual as decisões dos juízes dependem de suas preferências políticas, ou seja, baseiam-se em seus objetivos políticos ou naqueles de quem os indicou; (2) teoria da estratégia política (strategic theory), pela qual o comportamento dos juízes depende da avaliação que os outros juízes podem fazer sobre suas decisões; (3) teoria sociológica (sociological theory), de acordo com a qual os juízes se comportam conforme o que é aceito em seus círculos sociais; (4) teoria econômica (economic theory), pela qual o juiz procura maximizar, pelo menos, alguma utilidade, obviamente em proveito próprio, com suas decisões, como, por exemplo, renda, poder, prestígio e respeito; (5) teoria psicológica (psychological theory), segundo a qual os juízes se comportam conforme suas pré-concepções, especialmente para decidir questões duvidosas (hard cases); (6) teoria organizacional (organizational theory), consoante a qual os juízes e o governo têm interesses divergentes, e que, então, o comportamento dos juízes visa a

minimizar essas divergências para não lhes criar impasses; (7) teoria pragmática (pragmatic theory), pela qual os juízes sopesam suas decisões com as consequências que delas podem advir; (8) teoria fenomenológica (phenomenological theory), a partir da qual o que influencia no comportamento dos juízes é as suas experiências; (9) teoria legalista (legalist theory), consoante a qual o comportamento dos juízes é determinado pelas leis, pelos precedentes ou pelas operações lógicas que decorrem dessas fontes (2008, p. 19-41).

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

113

Há, portanto, nove interessantes teorias acerca do comportamento dos juízes, e que serão sucintamente analisadas, de maneira a assentar o entendimento aqui adotado de que há tempos os juízes tanto aplicam quanto criam o direito, e também de maneira a demonstrar, ainda que muito superficialmente, com base em que eles agem ou podem agir no desempenho de suas funções. As teorias político-motivacional, político-estratégica e sociológica têm muito em comum. Pode-se dizer que a última combina as duas primeiras e que a segunda é um meio para atingir um fim, que é a primeira. De acordo com esse trio, o Judiciário pode ser visto como um órgão político (Posner, 2005; George e Yoon, 2008, p. 3-4). Vale dizer, o comportamento dos juízes é fortemente influenciado pelo ambiente político em que ele se situa e do qual ele provém, especialmente na hipótese daqueles juízes que são escolhidos pelo Executivo e que passam pelo crivo do Legislativo, bem como no caso de promoções por merecimento. Ora, de acordo com esta perspectiva, as escolhas dos juízes a partir de critérios subjetivos (notório saber jurídico, desempenho, reputação ilibada, etc.) - por mais que estejam objetivamente estabelecidos nas leis - são praticamente políticas. Há que se observar, todavia, que vincular a ideologia dos juízes com a ideologia (do partido político) do chefe do Executivo que o escolheu não é um bom indicativo para estas teorias (Posner, 2008, p. 26; Revesz, 2001, p. 1102). Talvez, melhor seria dizer que a origem dos juízes escolhidos pelo Executivo é que tem influência em suas decisões, o que não abandona a ideia de se tratar de uma escolha de viés político. Geralmente, embora nem sempre, as decisões cujo pano de fundo pode ser explicado a partir dessas teorias são justamente aquelas em que há uma maior discricionariedade dos juízes. Trata-se de um grupo de decisões em que os juízes mais criam do que aplicam o Direito. Isto é, decisões que decorrem da análise de casos em que há omissão legal no que se refere ao seu tratamento, ou mesmo quando a decisão vise a justificar alguma política pública estatal. No

entanto, tais teorias não andam sozinhas. Elas conduzem a análise do comportamento judicial às teorias econômica e psicológica (esta, em razão de uma proximidade maior, será tratada com a teoria fenomenológica). A teoria econômica trabalha no sentido de que os juízes realizam maximizações racionais, ou seja, tendem a maximizar algum fator para realizar suas próprias preferências (Posner, 2008, p. 35; Siegel, 1999, p. 1583; Simon, 1955, p. 99). Assim, ao decidirem as demandas que lhes são submetidas, os juízes procuram sempre um tipo de decisão que lhes traga algum benefício em curto, médio ou longo prazo. Podem ser citados, como exemplos de benefícios, o prestígio, o poder e o reconhecimento. Em uma síntese bem fácil de entender: se perguntarem o que os juízes maximizam, a resposta seria: as mesmas coisas que qualquer outra pessoa (Posner, 1993).

114

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

Por mais que o adágio popularmente repetido diga que dinheiro não compra felicidade, e apesar de pairarem dúvidas sobre tal dito, dinheiro, em geral, isto é, se bem empregado, traz estabilidade e tranquilidade. Daí que todo reconhecimento que uma pessoa possa receber geralmente tem como fim, direto ou indireto, um ganho econômico ou o atingimento de um interesse próprio. Não se quer afirmar com isso que referida teoria justifica a venda de decisões pelos juízes; esse tipo de conduta não pode ser justificada em hipótese alguma. Por outra, é claramente visível que a teoria econômica se liga fortemente às três teorias anteriores, especialmente à teoria político-estratégica, a qual pode ser encarada como um meio para que se possam atingir fins econômicos. A teoria econômica parte, pois, especialmente da análise econômica do Direito (economic analysis of law). Contudo, tem recebido críticas procedentes. Por exemplo, para Neil Siegel (1999, p. 1583), tal teoria apresenta falhas em duas situações. A primeira decorre da existência de precedentes: se os juízes se comportassem estritamente em função de ganhos econômicos ou de estratégias políticas e não observassem os precedentes dos Tribunais Superiores que os vinculam em suas tomadas de decisão - é claro que não se tratando de decisões em que seja possível afastar a aplicação dos precedentes -, as tomadas de decisões de tais juízes seriam postas em dúvida e eles se sujeitariam à correição dos órgãos competentes, o que se imagina não seja o objetivo de nenhum juiz em sã consciência. A segunda consiste na possibilidade de que mesmo o juiz, ao proferir uma decisão baseada em suas preferências, ao tentar maximizar algo em seu benefício, sujeitando-se ou não a uma eventual ação corretiva, pode acabar por ter suas expectativas frustradas, pois pode ser que a decisão seja vista como o cumprimento de suas obrigações judiciais. Ligadas às quatro teorias acima enunciadas estão a teoria organizacional e a pragmática. A primeira lida com a tentativa de se

criar um equilíbrio entre as posições adotadas pelo juiz e pelo governo, ou seja, trata-se da procura pelo arranjo que não frustre ou não frustre tanto as regras do jogo, a ponto de não revelar as divergências entre o Judiciário e o Executivo, a fim de não serem criados impasses. De toda forma, a teoria organizacional é muito próxima à teoria político-estratégica e, de algum modo, à teoria econômica. Por sua vez, a segunda teoria (pragmática) trabalha com o equilíbrio entre a decisão e as consequências que dela poderão advir. Luís Roberto Barroso bem resume o que seria uma decisão pragmática: aquela que tem a aptidão para gerar as melhores consequências práticas de acordo com o contexto no qual está inserida, e não simplesmente em virtude de sua coerência com o Texto Legal (2009, p. 283).

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

115

Na sequência, vêm as teorias psicológica e fenomenológica. A conexão entre elas está em que a primeira contempla a influência das pré--concepções, dos pré-conceitos dos juízes, e a segunda lida com as suas experiências enquanto cidadão, e não enquanto servidor público. A junção delas bem poderia resultar em uma teoria do juiz enquanto ser humano, porque, como avalia Frederick Schauer, para o comportamento judicial, segundo a literatura especializada, e com poucas exceções, tem muito valor o fato de o juiz ser um ser humano, agindo conforme suas pré-concepções e experiências (2007, p. 1-2). Por tais teorias, o juiz age de acordo com as doutrinas (filosóficas, religiosas, etc.) com as quais tem maior afinidade, com as experiências de vida (parcialmente) similares com o objeto da causa, entre outras possíveis influências. Tal tipo de comportamento, geralmente, transparece nos casos em que a atuação discricionária do juiz é maior (open cases ou hard cases). Por fim, há que se tratar sobre a teoria legalista que se liga, retilinea-mente, com a teoria pragmática, passando pela teoria psicológica e pela fenomenológica. Pela teoria legalista, o comportamento dos juízes pauta-se, basicamente, pelos preceitos legais, podendo também ser pautado pelos precedentes ou pelas operações lógicas alcançáveis a partir dessas fontes. Essas nove teorias e tantas outras que possam surgir para classificar o comportamento dos juízes permitem explicar como os juízes atuam e como eles pensam. Especialmente naquelas situações em que não é suficiente a mera aplicação do Direito, incumbindo-lhes a criação do Direito, seja por meio de normas individuais, seja por meio de normas gerais. Tal tipo de conduta não seria possível se não se entendesse que os juízes possuem tanto independência como são responsáveis em sua atuação; do contrário, seriam apenas bouches de la loi. CONCLUSÃO

116

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

Ante tais constatações, ainda que preliminares, verifica-se que o Judiciário, inclusive o dos países de tradição da civil law que adotaram a precisão outrora aludida por Stendhal do Code Napoléon, já largou a mão da teoria tradicional da separação dos Poderes e se algemou com a (necessidade de uma) nova teoria da separação dos Poderes. Kelsen, que já defendia que os juízes tanto aplicam quanto criam Direito - aí inclusas as criações de normas individuais e de normas gerais - e certamente outros autores antes dele, principalmente aqueles inseridos na tradição da common law, tranquilamente defenderiam uma revisão na doutrina da separação dos Poderes. Uma revisão que criasse efetivos mecanismos de controle interno e de controle externo das atividades (a serem) desempenhadas pelos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. Mas não só. Revisão esta que deixasse bem claras as sanções ao legislador que não exercer as suas funções - e.g., legislar de acordo com os interesses de seus eleitores; editar leis claras, mesmo que omissas; revisar a atualidade das leis em vigor; participar nas prioridades do governo; exercer o controle sobre a Administração Pública. Revisão esta que colocasse preto no branco as sanções aplicáveis aos administradores públicos quando estes não cumprissem com as suas funções também constitucional e legalmente estabelecidas - e.g., regulamentar a legislação, quando for necessário; realizar políticas públicas que realmente efetivem direitos; gerir e aplicar corretamente os recursos públicos. Revisão esta que, por fim, mostre claramente aos membros do Judiciário as sanções a que eles estarão sujeitos se não cumprirem com as suas funções de punir legisladores e administradores públicos ou com sua função de julgar e de decidir, seja ao atuarem como aplicadores, seja ao atuarem como criadores do Direito. Além disso, não se pode deixar de incluir nessa revisão o importante papel que o Judiciário tem desempenhado. Um verdadeiro ativismo judicial, que traz ínsita a ideia de que o juiz não é apenas um aplicador da norma jurídica ao caso concreto, mas também um

intérprete das leis, especialmente daquelas que derem margem à sua atuação discricionária, tomando-se sempre o cuidado - e isso é papel do controle interno e do controle externo - para que os juízes, em sua atuação pragmática, não resolvam maximizar o que não devem. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BOUDIN, Michael. The real roles of judges. Boston University Law Review, v. 86, 2006. BULYGIN, Eugenio. Los jueces ¿crean derecho? Isonomía, n. 18, 2003. CROSS, Frank B. Book review: what judges want? Texas Law Review, v. 87, 2008. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. GEORGE, Tracey E.; YOON, Albert H. Chief judges: the limits of attitudinal theory and possible paradox of managerial judging. Vanderbilt Law Review, v. 61, 2008. KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Trad. Alexandre Krug, Eduardo Brandão e Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ______. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Safe, 1986. ______. Teoria geral do direito e do estado. Trad. Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998a. ______. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998b.

RDC Nº 71 - Mai-Jun/2011 - PARTE GERAL - DOUTRINA

117

LEVI, David F. Book review: autocrat of the armchair. Duke Law Journal, v. 58, 2009. MCNOLLGAST. Conditions for judicial independence. Legal Studies Research Paper Series, Research Paper n. 07-43, 2006. POSNER, Richard A. How judges think. Cambridge: Harvard University Press, 2008. ______. Kelsen, Hayek, and the economic analysis of law. Lecture of the 18th Annual Meeting of the European Association of Law and Economics, 2001. ______. The role of the judge in the twenty-first century. Boston University Law Review, v. 86, 2006. ______. The Supreme Court, 2004 term. Foreword: a political Court. Harvard Law Review, v. 119, 2005. ______. What do judges maximize? (The same thing everybody else does). John M. Olin Law & Economics Working Paper n. 15, 1993. RAZ, Joseph. Kelsen's theory of the basic norm. The American Journal of Jurisprudence, n. 19, 1974. REDISH, Martin H.; PUDELSKI, Christopher R. Legislative deception, separation of powers, and the democratic process: harnessing the political theory of "United States v. Klein". Northwestern University Law Review, v. 100, 2006. REVESZ, Richard L. Congressional influence on judicial behavior? An empirical examination of challenges to agency action in the D.C. Circuit. New York University Law Review, v. 76, 2001. SCHAUER, Frederick. Is there a psychology of judging? KSG Faculty Research Working Paper Series, 2007. SHAFIR, Eldar; SIMONSON, Itamar; TVERSKY, Reason-based choice. Cognition, n. 49, 1993.

Amos.

SIEGEL, Neil S. Sen and the Hart jurisprudence: a critique of the economic analysis of judicial behavior. California Law Review, v. 87, 1999.

SIMON, Herbert A. A behavioral model of rational choice. The Quarterly Journal of Economics, v. 69, 1955. STIGLER, George J. The optimum enforcement of laws. In: BECKER, Gary S.; LANDES, William M. Essays in the economics of crime and punishment (human behavior and social institutions). Nova York: Columbia University Press/NBER, 1974. TIEDE, Lydia Brashear. Judicial independence: often cited, rarely understood. Journal of Contemporary Legal Issues, v. 15, n. 129, 2006.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.