SÍNDROME DE MaKBeTh: Um ensaio sobre as deficiências estruturais e as patologias sígnicas que a política democrática enfrenta no limiar da idade pós-moderna.

June 2, 2017 | Autor: Eduardo Aydos | Categoria: Epistemology, Epistemología, Sociopathy, Sociopatia
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SÍNDROME DE MaKBeTh Um ensaio sobre as deficiências estruturais e as patologias sígnicas que a política democrática enfrenta no limiar da idade pósmoderna.1

Por Eduardo Dutra Aydos Departamento de Ciência Política Programa de Pós-Graduação em Ciência Política Universidade Federal do Rio Grande do Sul

“O verdadeiro intelectual, quando não sucumbe ao dogmatismo sectário, ou quando não se domestica ao Poder pela covardia, é um ser eternamente abominado e perseguido por todos os tipos de espírito totalitário. Sua vocação torna-se seu estigma; seu estigma sua excreção. Seu crime, o da não entrega total da liberdade a um Partido ou a um Estado dominado pelo espírito totalitário. (...) O totalitarismo, entretanto, não é apenas um regime. Seu exame deve ser levado mais longe, para visualiza-lo enquanto um movimento ou enquanto um estado de espírito, que podem estar presentes dentro de uma sociedade ou de um governo, mesmo quando ausente o terror organizado.” [XAUSA, Leônidas: Oração do Paraninfo, 1966]

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Este texto é uma versão ampliada do Capítulo 8 da Tese de Doutorado em Ciência Política, defendida pelo autor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em dezembro de 1998: “A Planície de Alétheia: Contribuição para a (re)construção teórica de uma epistemologia de síntese e para a compreensão dos fundamentos paradigmáticos do agir e do fazer comunicativos em ciência política”, disponibilizada em A decisão, de empreender essa revisão, ocorreu-me sob o impacto do ataque terrorista aos Estados Unidos em 11 de Setembro de 2001. Posteriormente, este conteúdo foi debatido em comunicação oferecida no Painel: 5 - Cânones em Questão: Aspectos Teóricos e Epistemológicos, do GT-Teoria Política, no 3º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, Niterói, 31/07/02. A luz deste debate, cujas contribuições foram de grande valia, empreendi uma nova revisão e ampliação deste texto. Sou particularmente grato aos comentários e sugestões do Prof. Hector Leis da UFSC, a partir dos quais procedi a incorporação dos conceitos de “ressentimento” e do “populismo” ao modelo teórico aqui trabalhado.

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Resumo

Este texto propõe uma abordagem para os limites que a democracia encontra, na consolidação e radicalização da sua experiência civilizatória. Sua descritiva tipifica as dimensões e os vetores que originam e promovem a degradação da política democrática em manifestações doentias da sociabilidade humana. Como gancho para esta reflexão, recupera-se a trama da telenovela “Porto dos Milagres”, baseada em obra de Gilberto Amado e recentemente veiculada pela Rede Globo, procurando nela um insight para os grandes arquétipos da corrupção do poder e sua dinâmica perversa, atualizando nisso uma abordagem contemporânea da psicopatologia política. A tragédia individual, como trajetória de Édipo, encontra na tragédia política, como trajetória do casal macbethiano, o seu mais típico correspondente. Como Édipo, o casal macbethiano comete um ato de lesa majestade; diferentemente de Édipo, o realiza em plena consciência do alcance dos seus atos. O parricídio inconsciente traduz-se, no ato criminoso originário de MACBETH, em regicídio premeditado. Enquanto o drama de Édipo se resume no justar contas com a sua própria consciência; a saga do casal macbethiano os conduz, na volúpia dos próprios atos, por regressões múltiplas desde o nível do político, e pela via da sua cristalização cumulativa na forma de patologias básicas da personalidade social, a uma derivação trágica de conseqüências, que abrem, no espaço dramático trabalhado pelo gênio de SHAKESPEARE, e de alguma forma encenados no drama televisivo e vivenciados em diferentes episódios da vida real, no tempo presente, todo o espectro da sua manifestação. Na seqüência final deste texto, estarei debruçado sobre a análise política dos três atos de MACBETH, sinalizando a sua reprodução e conseqüência no processo de consolidação e radicalização da democracia. Pretendo, em conclusão, demonstrar como a Arte avançou precocemente, sobre a ignorância da própria Ciência, o conhecimento das “regressões” da personalidade, que caracterizam as patologias sígnicas do regicídio [parricídio e filicídio], do fratricídio e do suicídio. Pretendo sinalizar, também, como o gênio de SHAKESPEARE, nas entrelinhas dessa representação dramática, trabalha os temas correlatos do epistemicídio, genocídio e ecocídio. E como, na tipificação das dramatis personae do casal macbethiano, se atualizam traços comportamentais, que referem e resgatam ao entendimento os traços fundamentais de uma taxionomia das psicopatologias políticas. Dir-se-ia, neste ponto, que o drama vivido pelos personagens de SHAKESPEARE conforma, numa expressão muito própria, o que se poderia designar como a “SÍNDROME DE MaKBeTh”: um conjunto estruturado de causas e efeitos, de sintomas e regressões da personalidade política, que tipificam o GRANDE ARQUÉTIPO DA CORRUPÇÃO DO PODER. Avaliando o papel que o “Complexo de Édipo” desempenhou, na formação teórica da psicanálise freudiana e na consolidação da sua praxiologia terapêutica, este texto propõe, com alguma ousadia, mas com estruturada convicção, que o “Síndrome de MaKBeTh” poderá cumprir idêntica e paradigmática função na construção de uma teoria política da psicopatologia social.

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SUMÁRIO 1 PORTO DOS MILAGRES DA REDE GLOBO: UM CENÁRIO DE JORGE AMADO PARA A TRAMA DE WILLIAM SHAKESPEARE ............................................ 4 2

SÍNDROME DE MaKBeTh: UM PARADIGMA DA PATOLOGIA DO PODER .... 7 2.1 FUNÇÕES ESTRUTURANTES E FUNÇÕES SÍGNICAS NO PROCESSO DO CONHECIMENTO E NA POLÍTICA .................................................................... 8 2.2 OS INTERESSES DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA NA TEORIA DA CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL DE LAWRENCE KOHLBERG .. 10 2.3 A FORMAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NA PERSPECTIVA TEÓRICA DE JEAN PIAGET.......................................................................................... 14

3 CRISE DA CIVILIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: A FALÊNCIA GENERALIZADA DAS FUNÇÕES ESTRUTURANTES DA VIDA POLÍTICA ........................................... 17 4 OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL: A CORRUPÇÃO DAS FUNÇÕES SÍGNICAS DA POLÍTICA ....................... 23 4.1 A TEORIA SOCIOPSICANALÍTICA DE MENDEL E AS TRÊS REGRESSÕES DA PERSONALIDADE FRUSTRADA. .......................................... 27 4.1.1 Paralelismo dos campos de atualização da mente ........................................ 27 4.1.2 Paralelismo dos interesses conformativos da personalidade ........................ 28 4.1.3 Paralelismo da corrupção política................................................................. 28 5 OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À REALIZAÇÃO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA ................................................................................................................. 31 5.1 A CORRUPÇÃO DO PODER DO POLÍTICO: CONFORMAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS AO INTERESSE DA RACIONALIDADE .......................................................................................................... 32 5.2 A CORRUPÇÃO DO PODER DO PSÍQUICO: CONFORMAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS AO INTERESSE DA CREDIBILIDADE ............................................................................................................ 32 5.3 A CORRUPÇÃO DA FANTASIA: CONFORMAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS AO INTERESSE DA GOVERNABILIDADE .... 33 5.4 MANIQUEÍSMO, TERRORISMO E DROGADÍCIO: OS TRÊS VETORES DO CONFRONTO GLOBAL QUE ERODE AS BASES DA CIVILIZAÇÃO DEMOCRÁTICA NA SAGA DO CRIME ORGANIZADO. .......................................................................... 34 5.5 AS PERVERSÕES DA PERSONALIDADE E OS PROSPECTOS DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA. ............................................................................................................. 34

5.6 UM RESGATE NECESSÁRIO: NA DIALÉTICA TRIÁDICA DO PRINCÍPIO DO PRAZER E DO PRINCÍPIO DA REALIDADE, A EMERGÊNCIA DE UMA TAXIONOMIA ESTRUTURAL-FUNCIONAL DAS PSICOPATOLOGIAS. .................................................................................................. 37

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5.7 Um quadro sinóptico da corrupção da política democrática .... Erro! Indicador não definido. 6 SÍNDROME DE MaKBeTh: UMA REPRESENTAÇÃO DAS CORRUPÇÕES SÍGNICA E ESTRUTURANTE DA VIDA POLÍTICA .................................................... 44 6.1 PRIMEIRA REGRESSÃO – RACIONALIZAÇÃO PATOLÓGICA DO DESEJO: O REGICÍDIO [PARRICÍDIO/FILICÍDIO] .................................................................... 44 6.1.1 DESCRIÇÃO SUMÁRIA:................................................................................... 45 6.1.2 ANÁLISE: ......................................................................................................... 45 6.2 SEGUNDA REGRESSÃO – BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA: MÁCONSCIÊNCIA COMO MAIS-REPRESSÃO – FRATRICÍDIO. .................................... 47 6.2.1 DESCRIÇÃO SUMÁRIA:................................................................................... 48 6.2.2 ANÁLISE: ......................................................................................................... 49 6.3 TERCEIRA REGRESSÃO – AUTOPUNIÇÃO DA CONSCIÊNCIA FRUSTRADA – SUICÍDIO E ECOCÍDIO. .............................................................................................. 49 6.3.1 DESCRIÇÃO SUMÁRIA:................................................................................... 49 6.3.2 ANÁLISE: ......................................................................................................... 50 6.4

Atualidade de Shakespeare: uma postura diante do poder. ................................... 51

7 CRISE DA CIVILIZAÇÃO: A SOCIEDADE DEMOCRÁTICA E OS PROSPECTOS DO CRIME ORGANIZADO .................................................................... 54 7.1

O SOLAPAMENTO DA TRADIÇÃO DAS RELIGIÕES PROFUNDAS. ............ 54

7.2 OS RISCOS GLOBAIS DA TECNOLOGIA E A VULNERABILIDADE DA VIDA COTIDIANA ..................................................................................................................... 56 7.3 O ESGOTAMENTO DOS PARADIGMAS NA SAGRAÇÃO DA IRRESPONSABILIDADE ................................................................................................ 57 7.4 A BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO COLETIVO ...................................................................................................................... 58

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CONCLUSÃO .............................................................................................................. 59

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PORTO DOS MILAGRES DA REDE GLOBO: UM CENÁRIO DE JORGE AMADO PARA A TRAMA DE WILLIAM SHAKESPEARE

Na produção da novela Porto dos Milagres, a Rede Globo deu créditos à obra de Jorge Amado, Mar Morto, mas esqueceu-se – consciente ou inconsciente, não interessa aqui afirmar ou julgar – de mencionar uma segunda fonte de inspiração para a estrutura da trama encenada, que remete clara e inequivocamente à obra de William Shakespeare: Macbeth. Não pretendo censurar a omissão da referência ao bardo no trabalho, sem dúvidas magnífico, de montagem, desenvolvimento e interpretação, que a equipe Rede Globo desenvolveu para a televisão. Não pretendo, portanto, com esta observação, cobrar direitos para o autor estrangeiro ou desmerecer a contribuição do autor nacional. O que me interessa é ressaltar, na inteligência do roteiro televisivo, são as características ímpares de uma bem sucedida combinação de estilos (folhetim e tragédia), con4

frontação de perspectivas (das ruas e do palácio) e conflito de valores (amor e ódio, verdade e mentira, certo e errado), que integra o realismo social de Mar Morto e a tragédia política de Macbeth. Condição que Porto dos Milagres atualiza, diga-se de passagem, sem perder a densidade humana. Palmilhando a obra dos grandes gênios da literatura universal, o drama encenado na Bahia para o horário nobre da audiência nacional, tangencia o maniqueísmo, mas interpenetra, em graus variados e assimétricos, o bem e o mal, o normal e o patológico, na interação dos seus personagens. De Jorge Amado a novela recolhe o cenário e a dramaturgia romântica de Mar Morto. O cotidiano da vida, que gira em torno do Farol das Estrelas, emoldura o pranto do amor divino, de Lívia, que não é do cais... mas que incorpora toda a sua força, na paixão de Guma, o pescador valente, iniciado nos mistérios do mar de Iemanjá. Rufino e Esmeralda, o velho Francisco, o Dr. Rodrigo e a Professora Dulce, a personalidade forte e folclórica de Rosa Palmeirão, agregam conteúdo humano e realismo social, típicos da sensibilidade e da pena de Jorge Amado, ao Porto dos Milagres da Rede Globo. No gênio de Jorge Amado, o drama se resolve na natureza de um ciclo. Gumercindo do Mar Morto morre para dar sentido à vida que se cumpre. Lívia é a continuidade, a força que sobrevive e a geração de um recomeço. Assim, nas páginas finais do livro, depois da morte de Guma, salvando dois homens – a morte mais heróica do cais – Lívia fazse ao mar e... “Aves marinhas volteiam em torno do saveiro, passam perto da cabeça de Lívia. Ela vai ereta e pensa que na outra viagem trará seu filho, o destino dele é o mar. (...) E o velho Francisco grita para os outros no cais: - Vejam! Vejam! É Janaína. Olharam e viram. Dona Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda vez que ele a via. Assim contam na beira do cais.” De Macbeth a novela incorpora a trama política, pela qual se escreve, na saga de uma traição, o destino de um potentado de província. A novela adapta, com especial fidelidade à essência do drama shakespeariano, a extensão e a conseqüência de uma paixão macabra, que se projeta num projeto de poder social e político, realizando, voluntaristicamente, um vaticínio de sucesso a qualquer preço. Na mise em scéne de Jorge Amado, contra o pano de fundo do valor humano, que aflora nos seus personagens, e tomando de empréstimo até mesmo o nome de alguns deles, Porto dos Milagres encena, como folhetim televisivo, o grande tema trágico da ação e reação, do crime e do castigo, na trajetória do casal macbethiano. O paralelismo das dramatis personae é inequívoco. Macbeth é Felix Guerreiro. As Bruxas, que lhe profetizam sucesso, confortando-lhe a ambição inescrupulosa, são personificadas por uma Cigana. Lady Macbeth é Dona Atma. Duncan, o Rei, é Bartolomeu, o irmão assassinado de Félix Guerreiro. Os assassinos, a serviço do casal macbethiano, são representados por Eriberto, o capanga e cúmplice de Dona Atma. Banquo, o amigo traído de Macbeth que manda mata-lo por queima de arquivo, com alguma liberdade pode ser visualizado na figura de Otacílio, colaborador fiel de Felix Guerreiro que, eventualmente, tornou-se incômodo e assim deve ser descartado. Malcolm, o filho de Duncan, que vence a batalha final contra o despotismo de Macbeth, é Guma, filho de Bartolomeu, herói do cais e personagem épico que emerge vitorioso no processo cíclico que a tragédia política performa. Macduff, o general dos revoltosos, que dá um fim ao reinado de Macbeth e a este o linimento da própria morte, é figurado em Porto dos Milagres no personagem amadiano da mulher justiceira: Rosa Palmeirão. E o ponto de flexão no reinado de Ma-

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cbeth, que acontece quando a revolta da natureza ultrajada pelos desmandos do tirano, representada pelas forças revolucionárias camufladas com os ramos da floresta de Birnam, assoma o castelo de Dunsinane, é demarcado no drama televisivo pela centralidade temática da questão ecológica, quando a poluição ambiental da fábrica de Félix Guerreiro, atingindo a população, provoca o descontentamento e a revolta popular, que promovem, enfim, a sua derrota política. Naquilo que interessa ao tema do presente ensaio, a novela da Rede Globo, contrastando duas perspectivas e dois métodos de ação política – de Guma e Felix Guerreiro – aflora uma questão essencial e básica que faz a diferença, qualquer que seja nosso ponto de partida teórico, entre os regimes e entre diferentes padrões de liderança e comportamento políticos, entre aqueles que, na expressão de Maquiavel, se escrevem na linguagem da Praça e os que seguem o discurso do Palácio. A dialética platônica da Natureza e da Corrupção, a classificação aristotélica da política no interesse particular e geral, a oposição hobbesiana entre a sociedade civil e o Estado, e a concepção marxista da luta de classes resolvendo-se no confronto de utopia e ideologia, são apenas alguns dos muitos enfoques que a dualidade do agir e do fazer comunicativos vem sugerindo, ao longo dos séculos, aos analistas profundos do fenômeno político. Dois estilos dramáticos abordam o mesmo tema, reproduzindo, nas suas implicações divergentes, essa condição da existência: o épico e o trágico. Três escolas literárias perpassam a antinomia destes estilos dramáticos, desde o ponto de vista do narrador de uma estória de vida: o romantismo, o realismo e o modernismo. A construção do próprio destino, romântica expressão da subjetividade, encontra na condição humana o seu princípio de realidade; e, no reconhecimento dessa tensão inevitável, a ambigüidade moderna do herói sem caráter, é expressão e conseqüência. De alguma forma, com tônica diferenciada, a grande epopéia e a tragédia clássica encenam esse tríplice movimento na trama comunicativa dos seus personagens. Na epopéia, o drama focaliza a vida como ação, cujo significado é visualizado em termos de sucesso e insucesso, realização e frustração. Na tragédia, o drama focaliza a vida como processo de institucionalização, cujo significado é apreendido como norma e transgressão, regularidade e desvio.2 Na seqüência deste texto, se procurará explorar, desde o conteúdo de Macbeth – o drama Shakespeariano – uma via de acesso à dimensão trágica do confronto perene entre o bem e o mal no cotidiano da vida... uma reflexão oportuna, sobre o componente psicopatológico que promove a autofagia política das elites, simbolizada pelo suicídio de Lady Macbeth e o enfrentamento temerário do herói-vilão ao seu próprio destino. Em Porto dos Milagres, este simbolismo é marcado pela cumplicidade macabra e a morte pelos seus próprios artifícios, de Dona Atma e Eriberto.

Nesta concepção, a comédia é um gênero híbrido, como se fora um amálgama dos dois movimentos contraditórios – a exploração do cotidiano como epopéia e tragédia. Nada melhor para expressar este conceito no melhor estado da arte, que a obra de Charles Chaplin: épica e trágica por igual. Ou que a denominação emprestada por Dante à sua obra prima: Comédia Humana. 2

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SÍNDROME DE MaKBeTh: UM PARADIGMA DA PATOLOGIA DO PODER

É familiar e extensa a galeria dos personagens reais que, a qualquer um, emergem à lembrança, ao percorrer-se a taxionomia das psicopatologias sociais, que a tragédia clássica explicita à consciência. É, também, teoricamente desafiante esta reflexão, pela cumulatividade, em diferentes graus e aspectos, dos desvios básicos na formação da personalidade que a análise permite identificar e impõe corrigir. Mas, antes de mergulhar no esforço terapêutico do seu afrontamento mundano, será necessário, ainda que em grandes traços, referir e dar significado ao enquadramento paradigmático desta postulação. Trata-se de traduzí-la, para um contexto contemporâneo, onde se postula o resgate das dimensões estruturais do Saber – entre as quais a Arte – que foram marginalizadas pelo cientificismo. Aqui, a fundamentação ética da atividade política combate a frustração da sua expectativa de resultados no cotidiano da vida. Pretendo experimentar – como um elogio ao maior filósofo - as implicações do método socrático na abordagem da política-ação. O que segue expresso, portanto, é autoreflexão do aprendizado penoso, que me propiciaram o afrontamento da política e a proximidade do poder. A recusa sistemática ao embrutecimento e um olhar fundo na alma das pessoas, que me permitiram articular a sobrevivência com dignidade no mundo da vida, conduziram-me ao veio generoso da inspiração teórica, que anima este texto, em duas áreas ainda pouco exploradas pela ciência política contemporânea: o estudo da formação da consciência moral e o estudo da construção da personalidade social. Quero reencontrar-me, aqui, na lição magistral de Harold LASSWELL3, que abordou o fenômeno político no estudo daquilo que, pela suas conseqüências e pela sua reiteração ao longo do tempo, é provavelmente o seu aspecto mais importante e mais tenebroso: a sua patologia. E, neste sentido, o diálogo com FREUD se impõe, como ponto de partida e de passagem. No ponto de partida, confrontam-se, inexoravelmente, os obstáculos e as resistências que a auto-realização do ser humano encontra na sociedade em que vive. Mas, embora reconheça com Freud que civilização é repressão, a razão de ser do processo civilizatório é a superação dessas assimetrias e dependências, que têm reprimido o desejo de auto-realização, pela imposição da tirania, cujo arquétipo remonta às idades primevas, quando a humanidade submeteu-se à disciplina dos seus pais primordiais premida pela necessidade de assegurar-se as condições de sua própria sobrevivência. No ponto de passagem, no entanto, a possibilidade de superarem-se as contingências que assim estreitam o campo da liberdade, é o fermento da autoconsciência da Humanidade. E, como auto-reflexão comunicativa, marca o sentido de sua presença na história, o que, paradoxalmente, permite afirmar que civilização é liberdade. A solução deste paradoxo implica a apropriação de um aparato conceitual, capaz de alavancar, na compreensão, fundamentação e reconstrução teórica do agir e do fazer comunicativos, o entendimento da questão democrática na sociedade complexa. Identifico esta ferramenta do conhecimento, no paradigma da epistemologia de síntese4, que trato, portanto, de alcançar aos leitores – improvisados auto-analistas do cotidiano trágico da nossa política contemporânea – como o caduceu do conceito capaz de clarificar, nos três níveis de sua inteira abrangência enquanto agir e fazer, tudo aquilo que vai a seguir elaborado para ser, afinal, designado e reconhecido como o “Síndrome de MaKBeTh”5. 3

LASSWELL, Harold: PSYCHO-PATHOLOGY AND POLITICS. No prelo: AYDOS, Eduardo Dutra. A Planície de Alétheia: Contribuição para a (re)construção teórica de uma epistemologia de síntese. Coleção Humanas, nº 4, IFCH/Editora da Universidade, UFRGS, Porto Alegre, 2001. 5 A grafia utilizada neste texto para MaKBeTh [com M, K, B e Th maiúsculos] releva a intenção diferenciar-se o ARQUÉTIPO da interação social, que expressa na grande tragédia, vis a vis da mera denominação do personagem literário de Willi4

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2.1

FUNÇÕES ESTRUTURANTES E FUNÇÕES SÍGNICAS NO PROCESSO DO CONHECIMENTO E NA POLÍTICA

O paradigma da epistemologia de síntese, remonta na história do pensamento ocidental a PLATÃO, consolidando uma tradição teórica que corrobora, em Jean PIAGET, uma abordagem construtivista do processo do conhecimento. Ressalta aqui o paralelismo conceitual destes autores, no entendimento do que proponho designar como FUNÇÕES ESTRUTURANTES DO PROCESSO COGNITIVO, respectivamente: as quatro etapas do conhecimento – percepção das sombras, crença, pensamento e inteligência [PLATÃO: A República]6; e os quatro processos na formação das estruturas matemáticas – assimilação, acomodação, significação e operacionalização [Piaget: Epistemologia Genetica]7. Isso que, por sua vez, corresponde, no paradigma sintético, às quatro divisões estruturais do Saber, respectivamente: RELIGIÃO, CIÊNCIA, FILOSOFIA e ARTE. Referem esses conceitos, que pretendo designar como os quatro pilares estruturais do processo civilizatório, aos diferentes modos da estruturação do conhecimento/entendimento, qualificando-os como as estruturas formais de um significado a ser preenchido, substantivamente, por outros processos da mente. É exatamente aqui, no vazio dessa capacidade estruturada e como um complemento necessário dessa predisposição ao Saber pela consciência – que acede aos diferentes estádios ou, enfim, credencia-se aos diferentes processos que integram o pleno exercício da sua capacidade estrutural-cognitiva – que a compreensão da dialética sígnica em “A Planície de Alétheia”, situa a função desempenhada pelos interesses epistemológicos no processo da auto-reflexão comunicativa. Os interesses epistemológicos designam processos do entendimento, que operam a finalidade intrínseca de si mesmos – ao contrário das funções-estruturantes antes mencionadas - e que apontam destarte, teleologicamente, para os pressupostos necessários à realização/atualização do próprio signo que denotam. Referem, assim, substantivamente, o conteúdo simbólico do agir e do fazer comunicativos e não o aparelhamento da sua mera capacidade de significar. Daí porque designá-los propriamente como FUNÇÕES SÍGNICAS DO PROCESSO DO ENTENDIMENTO. A Tabela 1, a seguir, formaliza uma síntese destas diferenciações conceituais:

am Shakespeare, cuja grafia nos chega como MACBETH. Expressa, também, a etimologia arcana do conceito elaborado pelo dramaturgo esoterista, que o compõe com as 4 letras do alfabeto hebraico: Mem, Kaph, Beth e Thau - as quais designam o sentido do próprio texto, respectivamente: a MORTE como o destino (Arcano 13), a FORÇA como instrumento de poder (Arcano 11), a AMBIGÜIDADE como condição da vida (Arcano 2) e o MUNDO como síntese da Grande Obra (ARCANO 22), em que “Uruboros” - a serpente egípcia - resta dominada e abocanha a sua própria cauda. 6 PLATÃO: A República. Porto Alegre: Globo, 1964. 7 PIAGET, Jean: Epistemologia Genética. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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Tabela 1 – FUNÇÕES ESTRUTURANTES e FUNÇÕES SÍGNICAS no processo do conhecimento e na política. TIPOLOGIA DAS FUNÇÕES

ESTRUTURANTES

SÍGNICAS

NO DESENVOLVIMENTO DAS ESTRUTURAS COGNITIVAS [PIAGET/PEIRCE]8

Assimilação, acomodação, significação e operacionalização

Propriedades do signo: fundamento, objeto, interpretante. Categoriais do processo de comunicação: falante, ouvinte, proferimento

NO PROCESSO DO CONHECIMENTO [AYDOS: A Planície de Alétheia]9

NA CONSTRUÇÃO DA VIDA POLÍTICA [AYDOS: Sob o Signo de Janus]10

Prevenção da tirania, garantia do dissenso na decisão e implementaReligião, ciência, filosofia e ção da escolha pública, arte construção da soberania e engenharia do consenso Interesses epistemológicos: da compreensão participativa do discurso, da fundamentação transcendental do saber e da reconstrução teórica do significado

Interesses políticos: da credibilidade, da racionalidade e da governabilidade

A falta de clareza sobre essa distinção, entre as funções estruturantes e as funções sígnicas da mente, tem dificultado um diálogo transdisciplinar mais fecundo entre psicologia e a pedagogia, entre a política e a moral. Há um certo partis-pris estruturante na psicologia e na política [partilhado, exemplarmente, por PIAGET e, no seu limite, pela abordagem jurídico-formal do constitucionalismo kelseniano, ou pelo institucionalismo de HUNTINGTON] que, ao explicitarem as condições formais necessárias da estrutura cognitiva da mente ou da constituição política no Estado de Direito, pretendem derivar delas, imediata e linearmente, o conteúdo substantivo das respectivas praxiologias - seja como prática pedagógica, seja como projeto político. Obscurecem, nisso, o fato que uma mente ilustrada e arguta (capacitada às mais abstratas e sofisticadas elaborações do raciocínio) e uma Constituição articulada e consistente (coerente aos mais avançados parâmetros da técnica jurídica), nem por isso se constituem em garantia suficiente à realização pessoal e societária dos valores ínsitos à representação de uma vida digna. Há, também, um certo partis-pris significante do lado da pedagogia e da moral, as quais, ao identificarem e valorizarem um determinado conteúdo crítico da experiência, muitas vezes parecem pretender derivar desse Juízo – meramente perceptivo e, às mais das vezes, apriori – por um passe de mágica, a sua própria e imanente sistematização, seja como diretriz curricular ou seja como formulação de política pública. Esquecem que, a mera enunciação de objetivos pedagógicos, não resulta em aprendizado sem a estrutura do método, que conforma a disciplina do entendimento; e que, a mera consciência do bem público, não é suficiente para assegurar a sua realização coletiva, na ausência da lei que assegura universalidade e estabilidade ao processo do desenvolvimento humano. De alguma forma, a passagem problemática – de PIAGET a Paulo FREIRE, de HUNTINGTON aos teólogos da libertação – que envolve a construção da consciência na pedagogia da liberdade, e o desenvolvimento político na emulação da igualdade, são 8

PIAGET, Jean: op. cit./ PEIRCE, Charles Sanders: Semiótica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1977. AYDOS, Eduardo Dutra: A Planície de Alétheia, op. cit. Nota 1. 10 AYDOS, Eduardo Dutra: “Sob o Signo de Janus”: Comunicação apresentada no 2º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, GT: Teoria Política. São Paulo, 23-26 de Novembro, 2000. 9

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questões de fundo a desafiar a consistência teórica e a conseqüência prática das disciplinas ética e política. Trata-se, no primeiro caso, de oferecer conteúdo substantivo a uma teoria do desenvolvimento das estruturas mentais, aplicada à sociedade, sem que isso signifique, simplesmente, a sua “ideologização”. Trata-se, no segundo caso, de buscar sustentação de base estrutural a uma teoria da emancipação, sem que isso signifique, simplesmente, a sua “desideologização”. Felizmente, alguns desenvolvimentos recentes da filosofia oferecem uma base promissora ao afrontamento dessa questão. Nessa perspectiva e nos limites deste texto, pretendo explorar, no pano de fundo do paradigma epistemológico da ciência política que desenvolvi em “A Planície de Alétheia” [AYDOS, 1998], a convergência [compreendendo nisso a sua articulação teórica e diferenciação conceitual], da teoria do desenvolvimento da consciência moral de Lawrence KOHLBERG [1981] nos pressupostos da epistemologia genética de Jean PIAGET [1983].

2.2

OS INTERESSES DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA NA TEORIA DA CONSTRUÇÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL DE LAWRENCE KOHLBERG

O que, efetivamente, KOHLBERG clarifica, na sua obra magistral Essays on Moral Development, é a formulação de uma abordagem, que se propõe, construtivista do desenvolvimento da consciência moral, e que entendo [um pouco além do que vem explícito no pensamento deste autor] constituir-se numa taxionomia das respectivas funções sígnicas. Assim visualizado, o pensamento de KOHLBERG abre espaço para o tratamento teórico da diferença e para a análise da complementaridade entre o processo da cognição e o conteúdo da consciência. Isso, que é sinalizado pela distinção, conceitual e sistemática, do aparelhamento estrutural do processo do conhecimento e da operação dos respectivos interesses epistemológicos. Aqui reside a diferença essencial entre a teoria piagetiana dos estádios de desenvolvimento das estruturas cognitivas e o construto kohlberiano. De um lado, e figurativamente, tem-se em PIAGET um conjunto vazio, formado pela capacitação operacional da mente à realização das operações matemáticas. De outro, em KOHLBERG, refere-se um conjunto cheio, prenhe de significados, de meios-fins, que se encontram intrinsecamente articulados na atualidade do comportamento ético-político. Abordar, em caráter exploratório, as implicações dessa diferença e a sua complementaridade, na elaboração de uma teoria integrada do desenvolvimento da pessoa e da sociedade é a pretensão crucial deste texto. Avançando, nesta perspectiva, a interpretação do pensamento de KOHLBERG, postulo uma correspondência conceitual entre os três níveis e os seis estádios do desenvolvimento da consciência moral e os três interesses epistemológicos e as seis funções sígnicas derivadas, que operam o conteúdo simbólico da auto-reflexão comunicativa nos diferentes campos de estruturação do saber, assim como os figurei no modelo paradigmático da epistemologia de síntese em: “A Planície de Alétheia. A Tabela 2, a seguir formaliza essa correspondência e elabora o seu conteúdo substantivo:

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Tabela 2 – Correspondências conceituais da epistemologia e da política na teoria do desenvolvimento da consciência moral de Kohlberg. Interesses Epistemológicos e Interesses da Política Democrática

Derivações paradigmáticas dos Interesses Epistemológicos

Estágios na teoria do desenvolvimento da consciência moral [KOHLBERG, 1981] – ou, epistemologicamente considerando, funções sígnicas da consciência

Interesse da Fundamentação Transcendental do Entendimento. INTERESSE DA RACIONALIDADE-

Princípio – Razão

ESTÁGIO 6: Princípios Universais Éticos – “decisões de consciência baseadas na escolha autônoma de princípios éticos que apelam à compreensividade lógica, universalidade e consistência“ [KOHLBERG, 1981:19]

Interesse da Compreensão Participativa do Discurso: INTERESSE DA CREDIBILIDADE -

Princípio – Sabedoria Prática

ESTÁGIO 4: Manutenção da Ordem Social – “orientação no sentido da autoridade, das regras estabelecidas, e da manutenção da ordem social” [KOHLBERG, 1981:18]

Arquétipo – Consciência

ESTÁGIO 3: Concordância Interpessoal – “conformidade com as imagens estereotipadas do que é um comportamento majoritário ou “natural” [KOHLBERG, 1981:18]

Interesse da Re-construção Teórica do Significado: INTERESSE DA GOVERNABILIDADE

Arquétipo – Método

ESTÁGIO 2: Orientação Instrumental Relativista: “A ação correta consiste naquela que instrumentalmente satisfaz as necessidades de alguém, e ocasionalmente as necessidades de outros. As relações humanas são vistas em termos semelhantes aquelas do mercado”. KOHLBERG, 1981:17]

Arquétipo – Paradigma

Princípio – Crítica

Níveis da auto-reflexão comunicativa [correspondência aos interesses epistemológicos]

NÍVEL PÓSCONVENCIONAL – “um claro esforço para definir valores e princípios que têm aplicação à parte da autoridade dos grupos ESTÁGIO 5: Contrato-Social –“ação tende ou pessoas que sustena ser definida em termos de direitos individu- tam esses princípios e à ais gerais e em termos de padrões que foram parte da própria identificriticamente examinados e consentidos por cação dos indivíduos toda a sociedade” [KOHLBERG, 1981:18] com esses grupos” [KOHLBERG, 1981:18] NÍVEL CONVENCIONAL – “a manutenção das expectativas da família individual, do grupo, ou nação, é percebida como válida por seu próprio direito, independente das suas imediatas e óbvias conseqüências” [KOHLBERG, 1981:18]

NÍVEL PRÉCONVENCIONAL: a ação responde “a regras culturais e rótulos do bem e do mal, do certo e do errado, mas interpreta esses rótulos em termos das conseqüências físicas ou hedonísticas da ESTÁGIO 1: Obediência e Punição: “As ação (punição, recomconseqüências físicas da ação determinam sua bondade ou maldade a despeito do sen- pensa, troca de favores) tido humano ou valor dessas conseqüências. ou em termos do poder Evitar a punição e uma acrítica submissão ao de quem enuncia as regras e rótulos”. poder tem validade por seu próprio direito”. [KOHLBERG, 1981:17] [KOHLBERG, 1981:17]

O caráter linear desenvolvimentista do pensamento de KOHLBERG releva da sua proposição/formulação de três níveis [pré-convencional, convencional e pósconvencional] e seis estádios do desenvolvimento da consciência moral – os quais pretende sejam seqüenciais, fazendo às vezes de um caminho crítico a ser construtivamente percorrido pelo processo civilizatório. Encarados, por sua vez, desde essa perspectiva, os INTERESSES DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA – GOVERNABILIDADE, CREDIBILIDADE e RACIONALIDADE POLÍTICAS [AYDOS, 1998] – nas suas derivações principiológicas e arquetipais, seriam construções sucessivas, a designar etapas no processo do desenvolvimento político. Tal preten-

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são teórica, entretanto, não se coaduna com os postulados básicos da epistemologia de síntese que visualiza, na articulação destes interesses, a operação de uma lógica triádica, perante a qual cada dimensão do signo – fundamento, objeto e interpretante – é coexistente e interdependente no processo da sua atualização. Embora, sob o ponto de vista da mensagem, na teoria da comunicação, seja possível estabelecer-se uma seqüencialidade, na relação que vai do falante, ao seu proferimento, para finalmente chegar ao ouvinte; do ponto de vista do processo de comunicação, como um todo, essa temporalidade é contrafactual. Não existe falante, se não coexistir um ouvinte na sua fala; e o próprio discurso é uma articulação de sentido que, além de expressar um momento e um significado emergente, na polaridade dos respectivos emissor e receptor, funda na representação semântica do sentido, que é inerente à própria linguagem como capacidade de referenciar a realidade, a própria interação de falante e ouvinte. Para clarificar as implicações desta análise, é oportuno explorar uma propriedade axiomática do modelo paradigmático da epistemologia de síntese: a reprodução do núcleo sígnico – formando totalidades de sentido, que oportunizam o aprofundamento dos respectivos conteúdos – a partir dos princípios e arquétipos, que representam as funções sígnicas derivadas dos três interesses epistemológicos. Os princípios, nesta perspectiva, conformam tríades do agir comunicativo; e os arquétipos, as tríades do respectivo fazer comunicativo. Utilizando-se, assim, os conteúdos trabalhados substantivamente na Tabela 2 – onde figuram como princípios os estádios 1, 4 e 5; e como arquétipos os estádios 2, 3 e 6 – torna-se possível formalizar, com base nos conceitos kohlbergianos, um diagrama paradigmático que representa o núcleo sígnico do processo de formação da consciência moral. O Quadro 1, a seguir, desvela o potencial heurístico do pensamento de KOHLBERG, sinalizando minimamente: a) O lócus paradigmático do interesse da racionalidade, configurado pela realização dos estádios pós-convencionais do desenvolvimento da consciência, compreende as terceiridades do agir [orientação da conduta a princípios éticos universais] e do fazer [regulação da conduta pelo contrato social] comunicativos, que a epistemologia de síntese define como particularidades, respectivamente, abstrata e concreta. Neste sentido, a racionalidade da conduta humana, que corresponde à sua finalidade possível de ser construída, refoge a qualquer concepção fundamentalista ou absolutista da consciência moral – no seu estágio mais avançado de realização, a consciência é mediação, é transuasão, é um estado precário e contingente, portanto, da interação social representada: seja pela dialética do seu fundamento e objeto sígnicos, seja pelo diálogo do falante e do ouvinte no processo de auto-reflexão comunicativa. b) O modelo aponta para o interesse da credibilidade, configurado pela realização dos estádios convencionais do desenvolvimento da consciência, como as primeiridades do agir [manutenção da ordem] e do fazer [concordância interpessoal] comunicativos. Isso é consistente com as postulações do paradigma sintético, que visualizam no falante a condição do empoderamento [a autoridade, como representação concreta de apropriação e, portanto, ordenação do mundo]; e, no fundamento do representámen, como princípio de qualquer significado à vida, a intersubjetividade da consciência [a transcendência, aqui visualizada como o potencial da razão na ilimitada comunidade de comunicação]. c) Finalmente, o modelo aponta para o interesse da governabilidade, configurado pela realização dos estádios pré-convencionais do desenvolvimento da

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consciência, como as secundidades do agir [como internalização de padrões de obediência e punição] e do fazer [na orientação instrumental da conduta] comunicativos. Isso é conseqüente às postulações do paradigma sintético, que visualizam, no grande ouvinte da dramaturgia do mundo, que é a própria Humanidade: de um lado, a ressonância elementar e necessária à conservação da vida, a condição metafísica de ação/reação, e o reflexo primordial de obediência e punição, que é o ponto de partida... e o ponto de chegada, de uma atitude crítica essencial à reconstrução do mundo; e de outro, na propriedade do objeto, como obsistência à imediata conformação da consciência, a orientação instrumental da conduta, que é princípio de regulação isonômica. QUADRO 1: O processo da formação da consciência moral de Kohlberg no modelo paradigmático da epistemologia de síntese. Dimensões do FAZER COMUNICATIVO. Processo secundário de formação da consciência moral: CONSTITUIÇÃO DA POLÍTICA

(Fundamento – CONSCIÊNCIA) KOHLBERG: Estádio 3 - Concordância interpessoal

(Proferimento - RAZÃO) KOHLBERG: Estádio 6 - Princípios éticos universais

(Objeto – MÉTODO) KOHLBERG: Estádio 2 - Orientação instrumental relativista

CONSTITUIÇÃO DA POLÍTICA (triângulo cheio)

CONSCIÊNCIA MORAL Dimensões do AGIR COMUNICATIVO:

CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA Processo primá(triângulo vazado) rio da formação (Falante – SABE(Interpretante - PARADIGMA) da consciência DORIA PRÁTICA) KOHLBERG: Estádio 5 - Contramoral: CONSKOHLBERG: Estáto social TRUÇÃO DA dio 4 Manutenção CIDADANIA da ordem

(Ouvinte – CRÍTICA) KOHLBERG: Estádio 1 – Obediência e punição

Legenda: Funções sígnicas em negrito simples – estágios de Kohlberg; Em fonte normal, as categorias da disciplina política na epistemologia de síntese. (Entre parêntesis: categorias do núcleo sígnico da autoreflexão comunicativa).

Assim configurada, a taxionomia dos estádios de desenvolvimento da consciência moral proposta por KOHLBERG, ganha uma amplitude teórica que extrapola de um linear desenvolvimentismo – algo ingênuo e figurativo de uma mera escala de atitudes morais, dotada das propriedades de cumulatividade/reproducibilidade, remetendo à investigação de atitudes e comportamentos políticos [por exemplo, aos estudos sobre a personalidade autoritária em ADORNO, e à metodologia escalar de GUTTMANN] – para configurar-se no arcabouço de uma teoria das funções sígnicas da consciência.

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Nessa perspectiva, falece a idéia que os primeiros estádios do desenvolvimento da consciência moral – por exemplo, a socialização de padrões de obediência e punição – corresponderiam, simplesmente, a conformações primitivas da consciência moral, que o processo civilizatório haveria de, simplesmente, superar e proscrever na perspectiva do seu desenvolvimento. Há que se substituir uma tal conotação, pelo entendimento que, em cada estádio de desenvolvimento da consciência moral – ou, melhor dito, na realização de cada uma das suas funções sígnicas – incorpora-se uma potencialidade semiológica específica, que lhe é tão necessária como irredutível às demais. O desenvolvimento procede aqui, portanto, pela ativação e pelo equilíbrio de todas essas potencialidades, e o subdesenvolvimento (ou regressão) ocorre pelo seu bloqueio seletivo das respectivas partes ou pelo desequilíbrio dessa totalidade. 2.3

A FORMAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NA PERSPECTIVA TEÓRICA DE JEAN PIAGET

A partir do entendimento até aqui avançado, as implicações teóricas e conseqüências práticas, que diferenciam o construto kohlbergiano da epistemologia genética de PIAGET, tornam-se palpáveis à investigação. PIAGET estudou e conceitualizou funções estruturantes, que denotam diferentes modos de produção do conhecimento na conformação da mente individual (e do saber político, como expressão de uma ciência reconstrutiva da sociedade democrática). Assim, os processos da assimilação, acomodação, significação e operacionalização, podem ser estruturalmente equiparados aos procedimentos através dos quais a civilização democrática tem-se constituído: desde a sua vertente liberal mais essencial, pelo compromisso da prevenção da tirania; e sobre esta base, pelo desenvolvimento de mecanismos eficazes e eficientes para a garantia da convivência plural implementação da escolha pública, para a construção da soberania popular e para a elaboração do consenso sobre os fundamentos da própria sociedade, que asseguram a legitimidade e a estabilidade da respectiva constituição política. KOHLBERG, por sua vez, refere funções sígnicas, como se foram “estádios” ou “etapas” do desenvolvimento moral (e do desenvolvimento político, como o concebemos), denotando nisso a internalização e projeção de valores, subjacentes e transcendentes, ao modo ou estádio de operação das funções estruturantes da mente (e, assim também, das instituições políticas). No entendimento KOHLBERG, estas funções operam como justificações morais, que orientam (semiologicamente) o comportamento dos indivíduos (e da sociedade) na solução de problemas da convivência. Na interpretação que pauta este texto, entretanto, essas funções se articulam em dois movimentos, paradoxalmente, contraditórios e complementares, cujas implicações avançam para além do estatuto que lhes reconhecia aquele autor. De um lado, como agir comunicativo, as etapas de formação da consciência, identificadas por KOHLBERG como os estádios da “obediência e punição”, da “manutenção da ordem social” e dos “princípios éticos universais”, conformam uma totalidade de sentido, como construção da cidadania ativa – ou seja, a tríade sígnica do reconhecimento da dignidade e capacidade civil das pessoas, face aos próprios desígnios e à razão do Estado. De outro lado, como fazer comunicativo, as etapas visualizadas na escala kohlbergiana do desenvolvimento moral, como “princípios universais éticos”, “contrato social” e “manutenção da ordem”, correspondem aos processos institucionais que engendram a constituição da política democrática – ou seja, o reconhecimento de uma esfera de responsabilidade coletiva, sob cuja autoridade se atualiza a consecução do bem comum da sociedade.

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O construto piagetiano corresponde, portanto, no campo de estudos sobre o desenvolvimento da consciência, ao papel desempenhado pela teoria democrática, como explicitação das estruturas institucionais, necessárias e suficientes para assegurar o funcionamento e o avanço do processo civilizatório, em condições tais, que se possam implementar os imperativos éticos mais universais do convívio social. KOHLBERG trata, por sua vez, de explicitar quais são estes imperativos funcionais do convívio regulado e qual é o caminho crítico da auto-reflexão social que nos permitirá realizá-los. PIAGET escreve sobre as condições cognitivas necessárias, como aptidões capazes de nos abrir a mente ao universo das operações formais matemáticas; não está preocupado em nos apontar o caminho crítico a ser percorrido no aprendizado desta arte, para a capacitação do intelecto à elaboração de cálculos infinitesimais e outras formulações avançadas do espírito matemático. KOHLBERG, toma por suposto o efetivo aparelhamento destas condições cognitivas/institucionais no afrontamento político, para nos mapear o caminho que nos conduzirá à formulação e institucionalização dos conteúdos da consciência - individual ou histórica - como universais éticos. A criança, apropriando-se das capacidades intelectuais correspondentes aos quatro estágios do desenvolvimento das estruturas mentais, visualizados por PIAGET, nem por isso dispensa o instrutor de matemática e o respectivo esforço de elaboração teórica, para tornar-se, afinal, apta à atualização do seu potencial cognitivo. A sociedade, ao percorrer os caminhos do desenvolvimento moral, até à atualização dos imperativos morais, que a razão nos permite formular, nem por isso prescinde da construção das estruturas institucionais que viabilizam essa evolução. O desenvolvimento das estruturas mentais em PIAGET, portanto, está para a teoria matemática, assim como a institucionalização da democracia está para a formação da consciência moral em KOHLBERG. Assim conceitualizadas, na conformação de uma teoria geral do desenvolvimento da consciência moral, funções estruturantes e funções sígnicas, são termos irredutíveis do mesmo desenvolvimento pessoal/social, e assim também, necessariamente, se complementam. Por isso mesmo, serão diferenciadas, embora articuladas no modelo conceitual que estamos trabalhando, as conseqüências originárias dos problemas de percurso na atualização da estrutura e do sentido que conformam o processo civilizatório. Essas implicações ficam mais claras, quando se confrontam os problemas estruturais do aprendizado, enquanto processo de cognição, com os problemas sígnicos da educação, enquanto formação de consciência. Relativamente aos processos [eventualmente estágios] descritos por PIAGET, o que ocorre, quando os mesmos não são satisfatoriamente ultrapassados ou “resolvidos”, são déficits de aprendizagem – “doenças” do processo cognitivo, cujos impactos representam bloqueios ao desenvolvimento da estrutura cognitiva nos níveis subseqüentes. Neste sentido, déficits de assimilação, na teoria piagetiana, funcionam como obstáculos à acomodação; e assim sucessivamente nos níveis superiores de formação das estruturas mentais. Disso decorre, também, a irreversibilidade desse processo. Cada etapa, qualitativamente alcançada, representa a superação dos desafios apresentados pelas etapas anteriores. Não há como, nem porque, regredir-se a estrutura da mente às suas condições anteriores, a menos que isso ocorra por um acidente de origem externa, que implique mutilação ou qualquer sorte de degeneração biológica, capaz de afetar os níveis de funcionalidade orgânica (físico-química) alcançados pelo desenvolvimento cumulativo do intelecto. Quando, entretanto, se trata de funções sígnicas [eventualmente concebidas como estádios de desenvolvimento moral] como as compreendidas na teoria do desenvolvimento da consciência moral de KOHLBERG, proponho que o conteúdo substantivo do que foi, eventualmente, mal elaborado (nas fixações de uma consciência “neurótica”) ou omitido (nas derivações de uma consciência “ingênua”) na ultrapassagem de cada etapa,

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não representa um déficit ou bloqueio à elaboração dos desafios que se postulam à consciência nas etapas subseqüentes, mas influi no conteúdo da sua realização possível. Nesse sentido, problemas na ultrapassagem da seqüência evolutiva da formação moral, resultarão em disfuncionalidades dinâmicas, complexos e regressões da personalidade, cuja patologia aponta à frustração dos interesses que promovem a formação da consciência.11 [O Quadro 2, formaliza esta análise no modelo paradigmático da epistemologia de síntese.]

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Psiquiatria e psicanálise correspondem, na sua diferenciação e complementariedade, à terapêutica das patologias que afetam às funções estruturantes da mente e às funções sígnicas da personalidade.

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QUADRO 2: Processos construtivos, da cognição em Piaget e da formação da consciência moral de Kohlberg, no enquadramento categorial da disciplina política, conforme o modelo paradigmático da epistemologia de síntese. Dimensões do FAZER COMUNICATIVO. Processo secundário de formação da consciência moral: CONSTITUIÇÃO DA POLÍTICA

(Fundamento – CONSCIÊNCIA) KOHLBERG: Estádio 3 - Concordância interpessoal

ENGENHARIA DO CONSENSO Piaget: Operacionalização (Proferimento - RAZÃO) KOHLBERG: Estádio 6 - Princípios éticos universais

(Objeto – MÉTODO) KOHLBERG: Estádio 2 - Orientação instrumental relativista

CONSTITUIÇÃO DA POLÍTICA (triângulo cheio)

Dimensões do AGIR COMUNICATIVO: Processo primário da formação da consciência moral: CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA Piaget: Significação

COGNIÇÃO CONSCIÊNCIA

PREVENÇÃO DA TIRANIA Piaget: Assimilação

CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA (triângulo vazado) (Falante – SABE(Interpretante - PARADIGMA) DORIA PRÁTICA) KOHLBERG: Estádio 5 - ContraKOHLBERG: Estáto social dio 4 - Manutenção da ordem GARANTIA DO DISSENSO/PLURALISMO NA IMPLEMENTAÇÃO DA ESCOLHA PÚBLICA Piaget: Acomodação

(Ouvinte - CRÍTICA) KOHLBERG: Estádio 1 Obediência e punição

Legenda: Funções sígnicas em negrito simples – estágios de Kohlberg; Funções estruturantes em negrito itálico – categorias de Piaget. Em fonte normal, as categorias da disciplina política na epistemologia de síntese. (Entre parêntesis: categorias do núcleo sígnico da auto-reflexão comunicativa).

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CRISE DA CIVILIZAÇÃO DEMOCRÁTICA: A FALÊNCIA GENERALIZADA DAS FUNÇÕES ESTRUTURANTES DA VIDA POLÍTICA

Uma vertente, para o estudo das funções estruturantes no processo cognitivo, pode ser visualizada na teoria do desenvolvimento da personalidade elaborada por VICTOR TURNER [La fioresta dei simboli]. O estudo das psicopatologias ganha densidade neste autor, na análise das dificuldades emergentes à ultrapassagem de quatro estádios que demarcam a elaboração pessoal da relação triádica “EU-OBJETO-TU” – quais sejam: arcaísmo, simbiose, diferenciação e consolidação. Déficits emocionais, em cada uma

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destas etapas, apontam para uma taxionomia das doenças mentais, sinalizando respectivamente: o autismo, a paranóia, a depressão e a esquizofrenia.12 Por analogia, no âmbito dos sistemas políticos, à incapacidade de enfrentar satisfatoriamente os desafios especificados pela divisão estrutural do saber – como PREVENÇÃO DA TIRANIA, GARANTIA DO PLURALISMO NA IMPLEMENTAÇÃO DA ESCOLHA PÚBLICA, CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA e ENGENHARIA DO CONSENSO – correspondem déficits de realização política. A estes proponho caracteriza-los, respectivamente, como DÉFICIT DE AUTONOMIA, cuja patologia, no seu limite, é a DITADURA; DÉFICIT DE PARTICIPAÇÃO, cuja patologia é a EXCLUSÃO; DÉFICIT DE RESPONSABILIDADE, cuja patologia é a IMPUNIDADE; e DÉFICIT DE IDENTIDADE, cuja patologia é o CINISMO.13 Na saga dessas deficiências da estrutura político-institucional, toda uma sintomatologia pode ser construída, da qual darei, apenas, alguma indicação, vinculando: à DITADURA, os vícios políticos da apatia e da intolerância; à EXCLUSÃO, os vícios da miséria e do ressentimento; à IMPUNIDADE, os vícios da frustração e da corrupção; e ao CINISMO, os vícios da insegurança e do individualismo. Ditadura, exclusão, impunidade e cinismo, são, portanto, doenças sociopolíticas – que corrompem, no sentido clássico-aristotélico por carência ou excesso, o equilíbrio necessário da vida em sociedade – isso que as torna suscetíveis de uma investigação, capaz de esclarecer a sua etiologia. Pelo que se poderá explicitar a sua sintomatologia, identificar os seus agentes ou vetores patogênicos e, afinal, o que mais interessa, propor os caminhos e as alternativas preventivas e terapêuticas para a manutenção recuperação da saúde do organismo social. São amplas e profundas, nessa perspectiva, as implicações dessa abordagem das funções estruturantes da vida política. Como, também, o são as implicações correlatas das teorias de PIAGET e TURNER. Uma das questões, ainda intrincadas, que o seu desenvolvimento e crítica têm proposto, diz respeito à eventual seqüencialidade dessas etapas, e assim à cumulatividade dos seus desafios; outra, refere à medida em que as deficiências na sua ultrapassagem possam ser quantitativamente flexibilizadas e qualitativamente contingencializadas. Sob o influxo das teorias contemporâneas do inatismo, parece hoje relevante, flexibilizar-se a hipótese piagetiana da seqüencialidade rígida e da ultrapassagem qualitativa das etapas do processo cognitivo [PENNA,1986]. Torna-se, assim, paradoxalmente, mais plausível a extensão dos aportes teóricos da cognição aos processos estruturais da política onde, efetivamente, as questões substanciais da ditadura, da miséria, da impunidade e do cinismo, admitem configurações quantitativamente diferenciadas. Não se pretende, no entanto, nos limites deste texto, adentrar essa controvérsia, bastando sinalizá-la para investigações ulteriores. [A Tabela 3, a seguir, formaliza o quadro conceitual avançado nesta análise das funções estruturantes do sistema político, e da sua correspondência na teoria da personalidade.]

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A referência aqui, é uma palestra proferida pelo Dr. Pe. JORGE TREVISOL, no dia 06/06/98, no Colégio Dom Feliciano, em Gravataí, onde desenvolveu uma belíssima exposição sobre relação entre os quatro estágios de formação da personalidade [trabalhados por VITOR TURNER: La Fioresta dei Simboli] e a formação da consciência religiosa. Foi no contexto teórico dessa reflexão, e nela inspirado, que desenvolvi a inserção das quatro patologias da personalidade no modelo paradigmático da epistemologia de síntese – tema este, que será aprofundado na seqüência deste texto. 13 Muito próxima dessa visão, a teoria platônica dos processos de degradação do governo, constitui uma primeira elaboração da visão construtivista aplicada à análise das estruturas políticas. [A REPÚBLICA, Livro VIII], Ed. Globo, Porto Alegre, 1964]

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Tabela 3 – Funções estruturantes no processo do conhecimento, na política e na psicologia Funções esrtruturantes no processo do conhecimento

Funções estruturantes na política e suas implicações na DIVISÃO ESTRUTURAL DO SABER NA DISCIPLINA POLÍTICA

TAXIONOMIA DOS QUATRO DÉFICITS DE REALIZAÇÃO POLÍTICA

Funções estruturantes na psicologia: TEORIA DOS ESTÁGIOS DO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE [TURNER]

Correspondência das funções estruturantes nos MODOS DA PERCEPÇÃO PSÍQUICA [FREUD] ou ESTÁDIOS COGNITIVOS [PIAGET], configurando uma taxionomia das PSICOPATOLOGIAS

RELIGIÃO

PREVENÇÃO DA TIRANIA: TEORIAS DOS DIREITOS HUMANOS E DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

DÉFICIT DE AUTONOMIA: apatia e intolerância > DITADURA

1º ESTÁGIO DO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE: Eu=objeto -ARCAÍSMO

ATENÇÃO [ASSIMILAÇÃO] - egocentrismo e apatia - polaridade do “eu” - AUTISMO

CIÊNCIA

GARANTIA DO PLURALISMO NA IMPLEMENTAÇÃO DA ESCOLHA PÚBLICA: MODELOS FORMAIS DE TOMADA DE DECISÃO E ANÁLISE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

DÉFICIT DE PARTICIPAÇÃO: miséria e ressentimento > EXCLUSÃO

2º ESTÁGIO DO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE: Eu x objeto - SIMBIOSE

PENSAMENTO [ACOMODAÇÃO] - narcisismo e dependência - incapacidade de lidar com o princípio do prazer - PARANÓIA

CONSTRUÇÃO DA SOBERANIA: TEORIAS DAS FORMAS DE GOVERNO E DO DESENVOLVIMENTO POLÍTICO

DÉFICIT DE RESPONSABILIDADE: frustração e corrupção > IMPUNIDADE

3º ESTÁGIO DO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE: Eu x (objeto=tu) > DIFERENCIAÇÃO

JUÍZO -[SIGNIFICAÇÃO] - perfeccionismo e autoanulação - polaridade do “tu” - DEPRESSÃO

ENGENHARIA DO CONSENSO: CONFORMAÇÃO DAS FÓRMULAS POLÍTICAS E PACTOS CONSTITUCIONAIS

DÉFICIT DE IDENTIDADE: insegurança e individualismo > CINISMO

4º ESTÁGIO DO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE: Eu x objeto x Tu > CONSOLIDAÇÃO

RACIOCÍNIO - [OPERACIONALIZAÇÃO] camaleonismo e midiatismo -incapacidade de lidar com o princípio da realidade - ESQUIZOFRENIA

FILOSOFIA

ARTE

A composição do quadro categorial – explicitado na análise das funções estruturantes e sígnicas que operam no desenvolvimento da pessoa e da sociedade – e, mais especificamente, a caracterização dos déficits de realização e a conformação sociopolítica dos obstáculos epistemológicos, que elaborei nas secções precedentes, pretendem contribuir para o resgate e consolidação da disciplina política, como uma ciência reconstrutiva da sociedade democrática. Isso implica, simultaneamente, no afrontamento consistente da complexidade do social e na formulação de uma teoria normativa da política, face aos paradigmas reducionistas e cientificistas que, embora esgotados, sobrevivem à passagem da modernidade: É oportuno e necessário ancorar-se estas démarches, de um paradigma pósmoderno da ciência política, numa revisão das abordagens teóricas, que se propuseram semelhante enfrentamento – da totalidade sistêmica e da finalidade histórica – no processo da construção da sociedade industrial. Ressalta, aqui, a importância de se aprofundar,

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nos objetivos precípuos dessa investigação, o diálogo com Karl MARX e Sigmund FREUD; até mesmo, e fundamentalmente, para estabelecer-se o contraste com os aportes contemporâneos das teorias da formação e desenvolvimento da consciência de PIAGET e KOHLBERG. Merece atenção, neste sentido, o pano de fundo teórico da crítica à sociedade unidimensional formulada por Herbert MARCUSE [1967]. Em sua obra mais divulgada, a “Ideologia da Sociedade Industrial”, mas também em “Eros e Civilização”, este autor nos oferece um arcabouço conceitual – que atualiza as abordagens teóricas de FREUD e MARX – para compreender e analisar um estado da consciência coletiva [como processo de auto-reflexão comunicativa], essencialmente divergente das constatações empíricas de Lawrence KOHLBERG, sobre o presente estádio contemporâneo do desenvolvimento moral da sociedade americana (tomada como parâmetro para uma análise abrangente do estado atual do processo do industrialismo). MARCUSE descreve as características marcantes da vida nesta sociedade, nos seguintes termos: “A união da produtividade crescente e da destruição crescente; a iminência do aniquilamento; a rendição do pensamento, das esperanças e do temor às decisões dos poderes existentes; a preservação da miséria em face de riqueza sem precedente; constituem a mais imparcial acusação - ainda que não sejam a razão de ser desta sociedade, mas apenas um subproduto, o seu racionalismo arrasador, que impele a eficiência e o crescimento, é, em si, irracional”.[1967:16/17] MARCUSE retira dessa compreensão uma proposição, que é pertinente à linha de questionamentos que pretendo aprofundar: “O fato de a grande maioria da população aceitar e ser levada a aceitar essa sociedade, não a torna menos racional e menos repreeensível. A distinção entre consciência verdadeira e falsa, entre interesse real e imediato, ainda tem significado.” [1967:16/17] O contraste dessa descrição, com a idéia de uma sociedade moralmente desenvolvida e, assim, situada em nível razoavelmente elevado de racionalidade – eis que realizaria atualmente uma transição entre o quarto e o quinto estádios da escala KOHLBERG – é sintomático das interrogações que venho esboçando nesta análise. Isso que, até mesmo como um teste à sua consistência, justifica um momento de atenção às implicações teóricas da sua contradição aparente e da sua eventual convergência. O tema da insatisfação marcusiana, com os traços constitutivos de uma sociedade corporativa, construída sobre os fundamentos da mais-repressão [a repressão que se agrega aos contingenciamentos existenciais da escassez e aos regramentos constitucionais da sociedade política, como decorrência de uma tentativa de eliminação do conflito e pela demissão do pensamento diante das responsabilidades da sua solução proativa], obvia a plasticidade do modelo paradigmático da disciplina política. Na sua conformação teórica, clarificam-se as implicações do pensamento crítico de Herbert MARCUSE [com abrangência da sociedade industrial], possibilitando avançar, sobre as suas premissas, o esclarecimento de questões relevantes ao afrontamento temático da psicopatologia social. A abordagem marcusiana da “ideologia da sociedade industrial” pode ser compreendida na operação de dois processos, dialeticamente articulados, que fazem às vezes do seu agir e fazer comunicativos: a saga dos indivíduos reduzidos à tragédia de uma personalidade unidimensional; e os prospectos de uma sociedade completamente absorvida no mundo organizacional. [Na Tabela 4, a seguir, identifico o lócus das categorias, que a análise marcusiana permite formalizar, na representação conceitual do núcleo sígnico do processo de formação de políticas].

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Tabela 4: Categorias da formação da consciência moral de KOHLBERG e sociedade unidimensional de MARCUSE no núcleo sígnico da disciplina política. Categorias Impactos dos da Epistemologia de interesses episSíntese temológicos

Categorias da formação da consciência moral de KOHLBERG e da sociedade unidimensional de MARCUSE Primeiridades

Terceiridades

Secundidades

NÚCLEO TRIÁDICO DO SIGNO em MARCUSE: “IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL”

Fazer comunicativo: Constituição política - valores fundamentais > MARCUSE: SOCIEDADE CORPORATIVA

Fundamento: Princípio – MARCUSE: SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES MAISREPRESSIVAS

Intepretante: Aplicação – MARCUSE: ALTA PRODUTIVIDADE – A FELICIDADE NO CONSUMISMO

Objeto: Organização – MARCUSE: PADRONIZAÇÃO TECNOLÓGICA E DESIGUALDADE SOCIAL

Agir comunicativo: Construção da cidadania - critérios de realização > MARCUSE: HOMEM UNIDIMENSIONAL

Falante: Representação – MARCUSE: O DESEJO COMO CAPACIDADE AQUISITIVA

Proferimento: Expressão – MARCUSE: THANATOS/COMPETIÇÃO/DESTRUIÇÃO

Ouvinte: Arquétipo – MARCUSE: RENDIÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO À RAZÃO INSTRUMENTAL E AOS PODERES EXISTENTES

Em MARCUSE, o princípio que (co)move o Homem Unidimensional é uma manifestação perversa do desejo – enquanto capacidade aquisitiva – e seu arquétipo, o grande ouvinte da “maioria silenciosa”, é a rendição do pensamento crítico aos limites da razão instrumental e aos desígnios dos poderes existentes. Disso que resulta, precipuamente, um elevado nível de produtividade que se expressa e esgota, entretanto, na felicidade momentânea, superficial e estereotipada do consumo elevado a critério máximo de realização pessoal. O processo complementar e dialeticamente articulado, da conformação da Sociedade Corporativa, por sua vez, adota como fundamento e princípio as necessidades mais-repressivas, engendradas pelo aparato industrial e orientadas ao bloqueio de todas as outras representações da cidadania, potencialmente conflitivas e que não coincidam com o padrão estandardizado de realização e acumulação da sua capacidade aquisitiva. A objetivação deste princípio, conformando o arcabouço organizativo da sociedade, assim visualizada, é a padronização tecnológica, nos patamares de uma acessibilidade artificialmente estimulada – a qual convive, no entanto, com a desigualdade social e a miséria, no limite externo da sua própria riqueza. Disso decorre que, o componente ideológico que estabelece a mediação necessária – o interpretante – entre o fundamento e o objeto dessa sociabilidade perversa é THANATOS: o princípio da destruição, na emulação selvagem de uma competição que representa um tardio retorno ao estado hobbesiano de natureza. [O Quadro 3 formaliza este entendimento].

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QUADRO 3: A “ideologia da sociedade industrial” de MARCUSE, no enquadramento categorial da disciplina política, conforme o modelo paradigmático da epistemologia de síntese.

Engenharia do consenso: DEFICIT DE IDENTIDADE: INSEGURANÇA E INDIVIDUALISMO > CINISMO -

TRIÂNGULO CHEIO: Dimensões do FAZER COMUNICATIVO. MARCUSE: Dinâmica da SOCIEDADE CORPORATIVA

Postulação da liberdade MARCUSE: SATISFAÇÃO DE Sustentabilidade: NECESSIDADES o ideal da eficiência MAIS- MARCUSE: ALTA PRODUTIVIREPRESSIVAS DADE SUSTENTANDO A FELICIDADE NO CONSUMISMO

Disciplina da igualdade MARCUSE: PADRONIZAÇÃO TECNOLÓGICA E DESIGUALDADE SOCIAL

SOCIEDADE CORPORATIVA

TRIÂNGULO

Construção da soberania DÉFICIT DE RESPONSABILIDADE: CORRUPÇÃO E FRUSTRAÇÃO > IMPUNIDADE

IDEOLOGIA DA SOCIEDADE INDUSTRIAL

Prevenção da tirania DÉFICIT DE AUTONOMIA: APATIA E INTOLERÂNCIA > DITADURA

VAZADO: Dimensões do AGIR COMUNICATIVO.

Pulsão da desejabilidade MARCUSE: DinâMARCUSE: mica do HOMEM O DESEJO COMO UNIDIMENSIONAL. CAPACIDADE AQUISITVA

HOMEM UNIDIMENSIONAL Condição da fraternidade MARCUSE: THANATOS= COMPETIÇÃO/DESTRUIÇÃO Garantia do pluralismo na implementação da escolha pública DÉFICIT DE PRODUTIVIDADE E OU DISTRIBUIÇÃO: MISÉRIA E REPRESSÃO > EXCLUSÃO

Constrangimento da viabilidade MARCUSE: RENDIÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO À RAZÃO INSTRUMENTAL E AOS PODERES EXISTENTES

Legenda: Em negrito, categorias de MARCUSE. Em fonte normal, as categorias da disciplina política na epistemologia de síntese.

Na esteira destes postulados, a teoria marcusiana incide no cerne da questão aberta pela análise da teoria de KOHLBERG: constituirão, essa Sociedade Corporativa e seu produto, o Homem Unidimensional, os espectros palpáveis de uma regressão, de um desenvolvimento divergente (desviado) ou as seqüelas de um bloqueio traumático, na formação da consciência individual e coletiva da modernidade? Para avançar-lhe uma tentativa de resposta, obrigo-me a buscar auxílio na teoria dinâmica da sociopsicanálise.

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4

OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL: A CORRUPÇÃO DAS FUNÇÕES SÍGNICAS DA POLÍTICA

Na seqüência dessa reflexão, cabe explorar o aspecto complementar da análise até aqui avançada, que compreende as implicações de uma teoria do desenvolvimento, aplicada às funções sígnicas da consciência e da política. Uma proposição básica desde logo exige clarificação: a possibilidade que as deficiências no enfrentamento dos desafios funcionais – sinalizados pelos diferentes estádios no desenvolvimento da consciência moral em Kohlberg – não impliquem déficits – e que também não impliquem em bloqueios ao processo de formação de consciência ou de institucionalização política; mas que venham a implicar na atualização desses processos com sinais trocados, num sentido “regressivo” ou em direções “divergentes”.14 Até lá não chegou KOHLBERG, cuja teoria do desenvolvimento moral não se beneficiou da clarificação, aqui empreendida, das funções estruturantes e sígnicas no processo da auto-reflexão comunicativa. Por isso mesmo, este autor desenvolve a sua concepção dos estádios na formação da consciência moral, de natureza essencialmente sígnica, como se estruturante fosse. Nessa perspectiva, não contempla a hipótese da regressividade ou da multifinalidade dos respectivos estádios, porquanto reserva para estes, o suposto de uma seqüencialidade condicionada [o acesso a um nível superior implicaria a adoção prévia do ponto de vista previsto no nível inferior - ou seja, a realização do conteúdo substantivo previsto no estágio anterior] e de uma universalidade do respectivo conteúdo moral, que lhes conferem a característica iniludível de uma via de mão única para a formação e o desenvolvimento de consciência: “The concept of stages just described implies something more than age trends. First, stages imply invariant sequence. (...) Second, stages define “structured wholes,” total ways of thinking, not attitudes toward particular situations. (...) Third, a stage concept implies universality of sequence under varying cultural conditions.” [KOHLBERG, 1981:120-122] O conceito de “regressão” parece, portanto, não caber na teoria do desenvolvimento de KOHLBERG, como também parece, não existir nela espaço para a idéia de um desenvolvimento divergente - seja este visualizado, pelo conflito de padrões alternativos de conduta num mesmo estágio, ou por um processo cumulativo de desvios ou patologias mentais ou sociais, correspondendo a vias oblíquas de formação de consciência. Tais questionamentos agregam perplexidade no esforço de derivar da teoria kohlbergiana uma praxiologia da educação moral. Ademais, para o politicólogo militante, que testemunhou e reflete sobre níveis de complexidade e organização crescentes da patologia individual e coletiva na política, a inflexibilidade e a unidirecionalidade, explicitamente assumidas da teoria do desenvolvimento de KOHLBERG, não satisfazem as exigências de uma compreensão totalizante dos processos de formação da consciência moral. Inobstante o importante avanço, representado pela formalização de uma teoria contemporânea, em bases empiricamente sustentáveis, que aponta para uma efetiva maiêutica da consciência moral, corre-se o risco de esquecer, na formulação kohlbergiana, que a tarefa do filósofo, em sua perscrutação do saber, tem os seus lados branco e negro. Afinal, não se diria, socorrendo-se no diálogo do filósofo, “que as almas melhor dotadas se tornam particularmente más quando recebem má educação?” [PLATÃO, 1964] O construto teórico de KOHLBERG representa o ponto de partida, apenas, para uma reflexão capaz de identificar, em seus níveis de complexidade e de responsividade a 14

Referência ao conceito psicanalítico de “regressão”, e à concepção funcionalista dos “desvios” de comportamento.

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valores, os processos alternativos de uma teoria dinâmica da formação da personalidade individual e coletiva. Enquadra-se nessa perspectiva, a visualização e compreensão do caráter – progressivo e regressivo, correto ou normal e desviado, harmônico e traumático – do estágio efetivamente alcançado pela capacidade de auto-reflexão comunicativa em sociedade. Até porque, de fato, “regressão”, “desvio” e “trauma”, são conceitos das teorias dinâmicas da personalidade, que precisam ser enquadrados por uma teoria contemporânea da formação da consciência moral. Em síntese, o que o analista precisa decidir, relativamente à concepção kohlbergiana do processo de formação da consciência moral, é se lhe basta contentar-se em promover a ultrapassagem de cada um dos seus seis estádios de desenvolvimento, ou se precisa preocupar-se sobre as condições como cada uma dessas etapas é efetivamente ultrapassada. Numa primeira alternativa de resposta a essa questão, a teoria de KOHLBERG reproduziria, simplesmente, uma extensão do modelo piagetiano de construção das estruturas cognitivas, para o campo da formação de consciência. Tratar-se-ia de uma tentativa de compreensão das respectivas funções estruturantes. E não haveria, assim, por quê questionar-se sobre o conteúdo substantivo do juízo, em cada estágio do respectivo desenvolvimento. Neste caso, então, os seis estágios de Kohlberg conformariam uma explicação genética das estruturas da consciência - pura e simplesmente - e não de uma teoria da formação da consciência moral. Isso que, por sua vez, implicaria numa restrição ao pressuposto kohlbergiano, de uma aproximação sucessiva à realização de valores éticos universais, a medida em que se galgam os degraus da respectiva escala de desenvolvimento. Contrariamente, uma segunda alternativa de resposta identifica o grande mérito de KOHLBERG, precisamente, no fato que, na elaboração da sua escala de desenvolvimento da consciência, propõe-se ultrapassar os limites de uma análise genéticoestrutural, e implica nisso o aprendizado de valores da convivência universal – ou, melhor dito, de conteúdos substantivos da auto-reflexão participativa. Para consolidar, no entanto, esse ponto de vista, KOHLBERG deveria assumir explicitamente, a par da promessa, o ônus inerente à elaboração de uma teoria das funções sígnicas: a necessidade de aprofundar a análise das contradições possíveis do sentido, no conteúdo simbólico do processo de comunicação, a cada passo realizado, ou seja, a cada estágio ultrapassado. Para decidir entre essas duas alternativas de resposta, torna-se inevitável o afrontamento de algumas outras perguntas: [a] Em que medida seria possível uma regressão, no processo de formação da consciência moral, desde os valores afirmados num determinado estágio do seu desenvolvimento? Em que circunstâncias isso é teoricamente previsível e quais as suas conseqüências na construção da personalidade? [b] Em que medida seria possível, também ou alternativamente, um desvio no processo de formação da consciência moral, relativamente aos valores postulados em cada um dos seus estágios? Em que circunstâncias isso é teoricamente previsível, e quais as suas conseqüências na construção da personalidade? [c] Em que medida o bloqueio do processo de formação da consciência moral, pela estagnação da personalidade num determinado estágio intermediário do seu desenvolvimento, não constituiria um trauma da personalidade? Em que circunstâncias isso é teoricamente previsível e quais as suas conseqüências? [d] Complementarmente, poderia questionar-se, ainda, em que medida um tal bloqueio no desenvolvimento da consciência moral - alternativa [c] - não poderia induzir à incidência de uma das alternativas [a] ou [b] anteriormente citadas:

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ou seja, à regressão a estágios mais primitivos da consciência; ou, ao desvio de uma consciência mal formada? Se estes questionamentos são plausíveis, no que se refere à formação da consciência individual, muito mais ainda o serão, ao deslocar-se o foco de análise para a formação da consciência coletiva. Ressalta a importância desses questionamentos, a evidência empírica, referida por KOHLBERG [1981:237], que a população adulta norte-americana se encontra majoritariamente situada, num estágio de desenvolvimento moral [Estágio 4]; o qual é, por sua vez, diferenciado daquele que informa a engenharia das suas instituições políticas [v.g. - a Declaração da Independência e a Constituição, que se conformam aos princípios do Estágio 5]. Tal possibilidade, remete à necessidade de uma investigação, sobre as possibilidades e conseqüências da influenciação mútua, entre níveis diferenciados de consciência, que possam ser manifestados por distintos grupos numa sociedade. Uma investigação que haverá de esclarecer, também, as conseqüências previsíveis, da assintonia entre o estádio de desenvolvimento da sua consciência coletiva [agregada] vis a vis daquela representada nos processos institucionais [os quais, já se viu, conformam as funções estruturantes da auto-reflexão comunicativa]. Considerando-se, que a consciência moral representa uma modalidade de resposta a problemas de convivência, haverá que especular-se, também, sobre as conseqüências previsíveis da assintonia entre o desenvolvimento desta capacidade coletiva e a solução efetiva aos problemas de sociabilidade, emergentes no quadro civilizatório em que se insere? É relevante perguntar-se, ainda sobre o quê fazer, se a resolução dos problemas sociais estiverem a exigir um nível de desenvolvimento, superior àquele prevalecente no estágio atual da consciência coletiva ou na capacidade institucional das sociedades. Nestes casos, a incapacidade de ver adiante, cumulada com a frustração dos problemas não resolvidos, não poderia determinar um regresso social, ou um desvio no caminho à frente, insuscetíveis de enquadramento no modelo de desenvolvimento da consciência moral elaborado por KOHLBERG? Até onde avançam os limites deste texto, pretendo afirmar a viabilidade de um afrontamento eficaz dessas questões, a partir do enquadramento da teoria kohlbergiana no paradigma sintético da ciência política. Neste sentido, enquanto o jogo dos INTERESSES NA FORMAÇÃO DE POLÍTICAS permite caracterizar três enfoques diferenciados para o empreendimento social da auto-reflexão política [correspondendo aos três níveis da escala de KOHLBERG: préconvencional, convencional e pós-convencional]; e, enquanto os respectivos PRINCÍPIOS e ARQUÉTIPOS correspondem a seis funções sígnicas, em consonância com os estágios da formação de consciência de KOHLBERG; torna-se possível afirmar a plausibilidade teórica daquilo que, de alguma forma, foi contraposto à inflexibilidade e unidirecionalidade do seu construto: a possibilidade da ocorrência de regressões, desvios e bloqueios traumáticos nos processos de formação da personalidade individual e das instituições. Mais do que isso, o enquadramento dessa temática no horizonte do paradigma sintético, aponta para a construção de uma taxionomia dos OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS à realização do potencial emancipatório e regulatório da ciência política. A epistemologia de síntese os encontra e tematiza, exatamente ali, onde o modelo kohlbergiano revela a sua maior fragilidade [e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, o seu maior potencial heurístico]: no enfrentamento das questões substantivas da formação e desenvolvimento da moral coletiva. Exatamente onde se abre, também, o espaço para uma reconstrução teórica do construto kohlbergiano, que se torne compatível com a realidade material da vida política, contemplando, por isso mesmo, os conceitos da “regressão”, “desvio” e “trauma” psicossociais.

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Tabela 5 - Configuração paradigmática dos OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS à realização do potencial emancipatório e regulatório da ciência política. Categorias da Epistemologia de Síntese

Interesse da Fundamentação Transcendental do Entendimento: RACIONALIDADE

Funções sígnicas derivadas Estágios de dos inteKOHLBERG resses epistemológicos

Obstáculos epistemológicos ao nível das categorias sígnicas Primeiridades – Princípios da ação

Conformação sóciopolítica TerceiridaSecundidados obstáculos des – Modos des – Arque- epistemológicos de exprestipos sociais são

ESTÁGIO 6: Princípios Universais Éticos

Parcialização: DOGMA/ SECTARISMO

Justificação: DOUTRINA

Adjudicação: RITUALISMO/ FATALISMO

FUNDAMENTALISMO

ESTÁGIO 5: ArquétipoContratoParadigma Social

Consensualização: DOMINAÇÃO

Formalização: ANTAGONISMO DETERMINISTA

Institucionalização: EXCLUSÃO

MALTHUSIANISMO

ESTÁGIO 4: Manutenção da Ordem Social

Totalização: MONISMO IDEOLÓGICO – “um partido e uma fé comum”

Internalização: LEI DO MOVIMENTO – como expressão de elevada “tensão ideal...”

Reflexão: CONTROLE e REPRESSÃO – “um Estado totalitário...”

ESTÁGIO 3: Concordância Interpessoal

Empatia: REIVINDICAÇÃO/ FISIOLOGISMO

Postulação: MISSÃO ORGANIZACIONAL

Convicção: CONFORMIDADE BUROCRÁTICA

ESTÁGIO 2: Orientação Instrumental Relativista

Demonstração: TECNOLOGIA

Corroboração: ESPECIALIZAÇÃO FUNCIONAL

Observação: NEUTRALIDADE EM RELAÇÃO A VALORES

ESTÁGIO 1: Obediência e Punição

Suspeição: HIERARQUIA/ Interdição da liberdade

Restauração: RETÓRICA/ Instrumentalização da solidariedade

Recolhimento do sentido: RESSENTIMENTO/ POPULISMO Naturalização da igualdade

PrincípioRazão

Princípio Interesse da Sabedoria Compreen- prática são Participativa do Discurso: CREDIBILIDADE Arquétipo – Consciência

ArquétipoInteresse da Método Reconstrução Teórica do Significado: GOVERNABIPrincípioLIDADE Crítica

TOTALITARISMO [Fascismo, Nazismo, Leninismo, Stalinismo, etc.]

CORPORATIVISMO

TECNOCRATISMO

Sinalizando esta démarche teórica, a Tabela 5, acima, formaliza um tentativo insight de algumas das principais mazelas da nossa vida política, que se podem visualizar como obstáculos epistemológicos ao processo comunicativo em ciência política.15 Com O conceito de “obstáculo epistemológico”, aqui utilizado, remete à definição que lhe dão Manuel CASTELLS e Emílio de IPOLA: “Obstáculo epistemológico: todo elemento ou processo extra-científico que, intervindo en el interior de una práctica científica , frena, impide o desnaturaliza la producción de conocimientos. Nota: definimos así a los obstáculos epistemológicos, no por su “orígen” ni por su naturaleza, sino por su funcionamiento y sus efectos. Este conceito, por outro lado, 15

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efeito, FUNDAMENTALISMO, MALTHUSIANISMO, TOTALITARISMO, CORPORATIVISMO, TECNOCRATISMO E POPULISMO, são conceitos que designam - para além das idiosincrasias histórico-contextuais ou teórico-sistemáticas que lhes deram origem - configurações de sentido que podem interferir, como conteúdo das respectivas funções sígnicas, no processo da auto-reflexão comunicativa, como este é visualizado no modelo paradigmático da epistemologia de síntese.

4.1

A TEORIA SOCIOPSICANALÍTICA DE MENDEL E AS TRÊS REGRESSÕES DA PERSONALIDADE FRUSTRADA.

É penetrante, no foco desta investigação, a contribuição teórica de Gerard MENDEL [1973], cuja obra, Sociopsicoanálisis, desvela os mecanismos, através dos quais a questão democrática - e, assim também, a questão referente ao conteúdo substantivo das funções sígnicas - está implicada e decorre do sucesso ou insucesso das soluções oferecidas ao conflito de interesses na sociedade. MENDEL resgata para a psicanálise a dimensão ou esfera do político, que constitui, ao lado da esfera psíquica e da sua base biológica, um terceiro campo de manifestação e desenvolvimento da personalidade humana. Nessa perspectiva, a sociopsicanálise amplia o universo de investigação da escola analítica freudiana - até então limitada à esfera das representações psíquicas e das suas derivações somáticas - para o campo das relações, que se estabelecem entre as classes de indivíduos que se defrontam em luta pelo poder social, no seio das instituições. Assim, para cada um dos três níveis de estruturação da personalidade, visualizados por MENDEL, haverá que corresponder uma função da mente: “No existirían, pues, como pensaba Freud, dos modos de funcionamiento mental (principio de placer y principio de realidad), sino tres. Según el yo-Todo, la fantasía (principio de placer): la omnipotencia imaginaria del arcaísmo; según el yo-acto (principio de realidad individual): el poder de lo psíquico, que funciona con arreglo a un esquema psicofamiliar; y según el yo de lo político, diversificación del segundo (princípio de realidad social), pero que funciona de modo específico: no ya con arreglo a un esquema psicofamiliar, sino a la realidad percibida y actuada de la lucha de clases institucional; este tercer modo de funcionamiento mental da acceso al poder de lo político, única forma de poder social asequible al individuo sin que ese regrese a uno de los dos primeros modos de funcionamiento mental.” [MENDEL, 1973, vol. 2:88/89]

4.1.1 Paralelismo dos campos de atualização da mente Isso posto, um primeiro paralelismo pode se estabelecer, agora, entre as três dimensões da personalidade, emergentes nessa evolução conceitual da sociopsicanálise – as ESFERAS DE ATUALIZAÇÃO DA MENTE, segundo Mendel, constituídas pela: Dimensão do Político, Esfera Psíquica e Base Biológica dos indivíduos – e os três CAMPOS DE ATUALIZAÇÃO DO SABER, que conformam o quadro estrutural do procesnos permite aceitar, como um atributo do conceito de “epistemologia” , que preside nossa investigação, mas sem reduzir-se a ela, a definição que lhes propõem estes dois autores: “Epistemologia: prática de vigilancia de las operaciones (conceptuales y metodológicas) de una prática científica. El objetivo próprio de esta vigilancia es nular o neutralizar a eficacia de los obstáculos epistemológicos que afectan a la producción de conocimientos. [CASTELLS e IPOLA: “Prática Epistemológica y Ciências Sociales, o como desarrllar la lucha de clases en el plano teórico sin internar-se en la metafísica”, mimeo, UFRGS]

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so do entendimento/conhecimento no modelo paradigmático da epistemologia de síntese, respectivamente, o Campo da Fundamentação Transcendental do Entendimento, o Campo da Reconstrução Teórica do Significado e o Campo da Atualização Participativa do Saber. Na disciplina política, por sua vez, estes três campos estruturais correspondem às três subdivisões da ESFERA PÚBLICA GLOBALIZADA, que venho designando, respectivamente, como as Sub-Esferas Política, Jurídico-Institucional e CívicoDeliberativa. 4.1.2

Paralelismo dos interesses conformativos da personalidade

Um segundo paralelismo teórico, permite compreender que, às três esferas de atualização da mente, supramencionadas, corresponderão também três INTERESSES CONFORMATIVOS DA PERSONALIDADE – esses mesmos que MENDEL designa como a fantasia, o poder do psíquico e o poder do político. Na epistemologia de síntese, essa correspondência se estabelece no conceito dos três INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS. Nessa perspectiva, o Interesse da Reconstrução Teórica do Significado, refere, no sistema da mente, o potencial latente da fantasia [correspondência epistemológica da poiésis], representação do eu-todo onipotente e arcaico, que responde à satisfação da libido. A fantasia emula o conhecimento primário [originário] do mundo, e atua na interface da Esfera Familiar, onde se articula criativa e reprodutivamente a estrutura relacional de base normativa dos indivíduos, com a sua Base Biológica, onde se enraízam as pulsões e determinações do seu próprio inconsciente e do meio ambiente. Também designada como a dimensão do comportamento lúdico ou do jogo, a fantasia constitui-se no grande arquétipo da conformação do psiquismo e, por isso mesmo, no código essencial à decifração da sua conduta, que a psicanálise (a freudiana, e mais especificamente ainda, a jungiana) alcançou à ciência cognitiva. O Interesse da Compreensão Participativa do Discurso, por sua vez, refere à representação pré-consciente da energia ligada no eu-ato, que responde à satisfação do afeto – equilíbrio secundário de natureza emocional. O poder do psíquico [correspondência epistemológica da práxis], assim liberado, atua na interface da Base Biológica com a Dimensão do Político – a esfera intersubjetiva da personalidade, onde se promove a elaboração da consciência individual. Finalmente, o Interesse da Fundamentação Transcendental do Entendimento, refere à satisfação da vontade – apropriação terciária de poder social, que estrutura a dimensão da personalidade desvelada por Mendel como eu-político. Desborda-se, como poder do político [correspondência epistemológica da théoria], na interface da Dimensão do Político com a Esfera Familiar, disso que resulta crucial, a sua desocultação, para a análise dos processos institucionais. A repressão ou qualquer sorte de frustração na transparência e efetividade dessa démarche do mente resulta na adoção acrítica de comportamentos e atitudes típicas do quadro autoritativo-familiar na política [paternalismo, sexismo, etc.].

4.1.3 Paralelismo da corrupção política Um terceiro e último paralelismo, trata das proposições de MENDEL, que atendem à frustração do projeto substantivo - ou finalístico - sinalizado pelos três interesses conformativos da personalidade. Isso, que se projeta na elaboração de um paradigma da psicopatologia do poder – contemplando as manifestações REGRESSIVAS da persona-

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lidade neurótica que percorrem o caminho “inverso” - ou melhor dito, irrealizado - da sua atualização desejável: “La regresión de lo político al plano de lo psíquico se produce cuando los conflictos de clases sociales no pueden desarollarse a fondo y en toda su amplitud, ni modificar radicalmente el devenir de esas clases, y cuando se los oculta o suprime por la fuerza. (...) Esa regresión - y en este sentido el término no es del todo correcto - no se produce desde una posición adquirida. No hubo primero conciencia de clase, conflicto de clases. Es una regresión respecto de una posición que habría podido y debido ser alcanzada. (grifei) Cuando el conflicto no puede expresar-se en el nivel político, lo hace recurriendo a los materiales y elementos del nível inmediatamente subyacente, o sea, el nível psíquico.” [MENDEL, 1974, vol. 1:17-19] Este raciocínio, que se elaborou sobre a “regressão” do campo político à esfera do psíquico; aplica-se, também, às regressões da esfera do psíquico ao nível biológico. E torna-se bem clara, nessa formulação, a pertinência dos conceitos de MENDEL às observações registradas neste texto, relativamente aos estágios da formação da consciência moral de KOHLBERG. Emerge, agora, no foco das questões levantadas, uma resposta consistente ao escopo desta investigação: não é gratuita ou desonerosa a não-completação do processo de desenvolvimento da consciência moral. Segundo MENDEL, há um preço a ser pago por isso. E este é cobrado à consciência estagnada, como “regressões” dos desafios à frente - os quais, efetivamente, não podem ser descartados da experiência vivida, mas resultam, então, falseados na sua finalidade. O modo como se produzem essas regressões, entretanto, e suas inteiras implicações e articulações na complexidade temática do desenvolvimento da consciência, constituem um campo teórico ainda muito pouco elaborado. Para avançar um passo no seu esclarecimento, é oportuno reconhecer que os desenvolvimentos teóricos, até aqui avançados, resgatam à disciplina política a noção de complexidade. Não é simples, muito menos linear, o desenvolvimento da consciência moral. De outro lado, sinalizam a crucialidade da noção de obstáculo epistemológico: conceito-chave para a explicação da origem e do modo como procedem as regressões da consciência moral; e foco central de qualquer intervenção praxiológica, orientada ao resgate de uma fundamentação ética para o agir e o fazer comunicativos da Humanidade. Nesta concepção, a corrupção das funções sígnicas da personalidade conforma movimentos regressivos, desde a frustração que a consciência registra, ao não atualizar, por força dos obstáculos epistemológicos, os níveis mais elaborados do seu desenvolvimento, retornando por isso mesmo à reiteração perversa do próprio caminho já percorrido. 4.1.3.1 Regressões do nível psíquico ao biológico Isso não é novidade. A psicanálise tradicional já compreendia, que o indivíduo necessita liberar suas tensões e desejos profundos, construindo-se como uma personalidade equilibrada no adequado manejo da sua esfera familiar; e que, na ausência dessa capacidade de realização, processos regressivos, operando através de manifestações perversas do poder do psíquico, tendem a manifestar-se no campo somático das enfermidades de fundo neurótico - do eu-todo arcaico. Na vida política, estas regressões impactam sobre o interesse da governabilidade, nas pulsões demissionárias da consciência crítica, que conformam virtual suicídio [conformismo, apatia, autofagia] político, e nas aplicações

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predatórias do conhecimento humano, hoje amplificadas à esfera planetária, que podem ser designadas pelo conceito do ecocídio. 4.1.3.2 Regressões do nível político ao psíquico Trilhando essa linha de conseqüência, a sociopsicanálise visualiza, na dimensão do político, uma esfera de idêntica relevância para a construção da personalidade. Afirma, neste sentido, que o equilíbrio da personalidade, para além de um adequado manejo do afeto, impõe a clarificação dos interesses em jogo na sociedade e das forças políticas que os sustentam, de tal forma que sobre eles se possa institucionalizar o conflito e construirse, pela participação na sua solução, a dignidade própria da cidadania. A frustraçãorepressão da personalidade neste patamar, desencadeia processos regressivos, operando através de manifestações perversas do poder do político, que repercutem no o quadro das relações psíquicas - do eu-ato – tomando a forma de projeções neuróticas da esfera familiar sobre a vida política. MENDEL lembra, neste sentido, que na esfera familiar “rige el esquema de la desigualdad y la autoridad, el de la relación tradicional hijos-padres.” [MENDEL, 1973, vol. 1:17 e vol.2:9]. E sinaliza, nisso, uma via de compreensão para o fenômeno psicossocial corriqueiro da corrupção do poder do político, quando o imaginário popular projeta, na figura do governante, o papel do grande pai - fonte primordial de referência e provedor necessário da própria sobrevivência individual. Há nisso, uma transferência espúria da satisfação do afeto e da construção do próprio equilíbrio emocional das pessoas e da sociedade, em relação ao governo ou ao Estado, que oportuniza a manipulação das massas nas sociedades politicamente fechadas. Uma tal regressão do nível do político ao plano do psíquico, faz às vezes de uma transferência das tensões emancipatórias da cidadania - com suas demandas de liberdade, igualdade e fraternidade – pelas relações que integram os processos mais elementares da conformação da personalidade – onde prevalecem as relações de dependência, desigualdade e dominação. Na vida política, estas regressões impactam sobre o interesse da credibilidade, nas pulsões edipianas do desejo de poder que conforma as perversões do regicídio [parricídio] e da usurpação da soberania à cidadania [filicídio]; e se projetam desde máconsciência destes atos decapitados, na originação e satisfação de necessidades repressivas que promovem o terror inter pares, como fratricídio.16 4.1.3.3 Regressões do nível biológico ao político Mas, nem este segundo movimento da consciência frustrada esgota a tipologia das regressões, passíveis de identificação no paradigma teórico da patologia do poder. Na lógica deste modelo, que de alguma forma é circular, o campo teórico não estaria fechado sem uma explicação efetiva às regressões, que correspondem à irrealização das condições possíveis de serem atingidas, na base biológica da sociedade, onde se estrutura, como particularidades concreta e abstrata do ser, a contingência e a transcendência. Ou seja, onde se atualiza, respectivamente, na cristalização da esfera material da existência e na constituição do seu próprio conceito: a condição humana e sua visão de mundo. 16

Ao visualizar a dimensão do político, como o terceiro nível, de uma escala de desenvolvimento da personalidade, Mendel prevê a possibilidade, ainda mais drástica, de uma regressão de caráter secundário e mais radical nas suas conseqüências, quando a frustração-repressão do potencial de desenvolvimento inerente ao eu-político, não encontrando ambiente propício à sua compensaçã, sequer nas projeções perversas da esfera psico-familiar [eu-ato], impacta somaticamente na própria esfera do biológico [eu-todo]. Neste campo, Mendel situa certos comportamentos auto-agressivos que atingem genericamente categorias de indivíduos [a drogadição dos jovens que não atualizam seu potencial de participação política, o alcoolismo dos executivos de meia-idade que atingem o limite de sua mobilidade social, etc.]

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Aqui, a consciência frustrada regride [rigorosamente, se projeta], desde a base biológica, diretamente sobre a dimensão do político. Já neste movimento, percebe-se a inconsistência de uma concepção linear desenvolvimentista da consciência, eis que, de um patamar, supostamente inferior, especulam-se sobre os impactos das funções sígnicas nas instâncias, supostamente mais elevadas e, portanto, ainda não performadas, da constituição moral das pessoas e da sociedade. N É, não obstante, neste terceiro movimento regressivo da formação da personalidade, que se engendram as conseqüências mais terríveis da patologia social. Na vida política, a contingência infeliz, pela opressão da necessidade, e a transcendência bloqueada, pela ignorância do saber, articulam-se aos outros componentes regressivos da personalidade, num coquetel explosivo de frustrações que impactam sobre o interesse da racionalidade. Representam-nas, as atualizações pervertidas da nossa capacidade de agir e de fazer, de existir e de conhecer, que designo pelos conceitos do genocídio e do epistemicídio, pelas praxiologias da guerra e da intolerância, que representam as perversões da fantasia – essa mesma que se constitui, por outro lado, na pulsão mais poderosa que a Humanidade maneja na construção do seu destino. [A Tabela 6 reproduz os nexos teóricos das três grandes regressões da vida política.]

5

OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS À REALIZAÇÃO DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA

A sociopsicanálise designa pelo conceito de regressão, o retorno da consciência a formas que revestiram estágios eventualmente já ultrapassados ou subjacentes do desenvolvimento da personalidade, originando-se nisso uma representação, destarte perversa, de conteúdos não-resolvidos da consciência ética universal. Avançando nesta linha de considerações, esta investigação haverá de se completar pela enunciação - aqui propositiva - das seis manifestações básicas, que configuram as regressões da personalidade, correspondentes aos seis estádios da formação da consciência moral em KOHLBERG. Dessa forma, correspondendo aos três interesses conformativos da personalidade, e correspondendo aos seis estádios no respectivo desenvolvimento, ecocídio, suicídio, parricídio/filicídio, fratricídio, genocídio e epistemicídio, são os atos decapitados - implicações perversas dos interesses conformativos da personalidade, que configuram as manifestações típicas da consciência regressiva. A análise destas regressões sígnicas, por sua vez, refere à conformação sociopolítica dos obstáculos epistemológicos, que bloqueiam a realização das respectivas funções sígnicas no processo de desenvolvimento da consciência moral. Estes, que se designam, respectivamente, como tecnocratismo/cientificismo, populismo, totalitarismo, corporativismo, malthusianismo e fundamentalismo,17 ganham sentido nesta articulação teórica, como expressões do desafio global que a civilização democrática enfrenta no limiar da idade pós-moderna. Por oportuno e necessário à construção teórica que este texto empreende, passo a descrever agora, em rápidos traços, a configuração destes obstáculos e sua articulação aos processos regressivos da consciência. E, na seqüência, proponho a identificação dos três grandes vetores da barbárie, que se promove na sua esteira, como perversões dos interesses conformativos da personalidade individual e social, na seguinte correspondên17

Remeto o leitor a uma primeira abordagem da conformação sociopolítica dos obstáculos epistemológicos que desenvolvi em: AYDOS, Eduardo Dutra: UMA AGENDA POLÍTICA PARA O BRASIL NO SÉCULO XXI, texto apresentado no 2º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ciência Política, São Paulo, 22 a 26 de Novembro de 2000. Disponibilizado no site: http://www.geocities.com/edaydos/Agenda.htm

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cia: a corrupção do poder do político pelo maniqueísmo; a corrupção do poder do psíquico pelo terrorismo; e a corrupção da fantasia pelo drogadício/escapismo. 5.1

A CORRUPÇÃO DO PODER DO POLÍTICO: CONFORMAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS AO INTERESSE DA RACIONALIDADE

Os obstáculos epistemológicos à realização do Interesse da Racionalidade operam o bloqueio da capacidade de apropriação, pelos indivíduos, da sua condição cidadã, a qual requer a desocultação das relações políticas, de tal sorte que, minimamente, os agentes políticos consigam identificar seus interesses, pesar recursos e situarem-se, em bases racionais, na correlação das forças reais que determinam os resultados do jogo do poder social. A incapacidade decorrente, de se desocultarem as pulsões latentes na construção da ordem política, prejudica a validação do Contrato Social e o desenvolvimento de padrões de conduta consistentes aos Princípios Universais Éticos [KOHLBERG]. Toma o seu lugar uma projeção perversa do eu-todo, onipotente e arcaico, na dimensão do político, promovendo-se na sua esteira o enclausuramento do Espírito Humano no estado selvagem de natureza. No primeiro caso, a condição humana se vê reduzida à má consciência de uma estratégia de competição, num mundo dominado pela escassez, onde o único critério da sobrevivência é exclusão/destruição massiva dos eventuais competidores. Essa incapacidade de se equacionar, de forma proativa e sinergética, a cooperação na satisfação das necessidades sociais, travestida em representação teórica da inevitabilidade e radicalidade do conflito e da exclusão sociais, toma a forma desse princípio incivilizatório que se convencionou designar por MALTHUSIANISMO. Na esteira deste obstáculo epistemológico, coonesta-se a violência bárbara do genocídio, na retórica do “destino manifesto”, “depuração étnica”, “patrulhamento ideológico” ou qualquer outra forma de má consciência, que implique em transgressão essencial ao compromisso da convivência regrada na sociedade política. No segundo caso, configura-se uma efetiva inviabilização da conduta ética. O entendimento e o conhecimento, condições essenciais do agir e do fazer comunicativos, são reduzidos ao conteúdo estático de uma crença religiosa ou de uma concepção ideológica; e, como é assim bebido o Saber, é também reificado ou dogmatizado, sendo proscritas as démarches cognitivas, que avançam a busca da Verdade nos patamares mais elevados e universais da compreensão e da inteligência [no sentido que lhes confere PLATÃO]. Essa vertente do sectarismo político, que se costuma designar pelo conceito do FUNDAMENTALISMO, desencadeia, no seu limite, conseqüências típicas de um efetivo epistemicídio, como aniquilação, pela força e a intolerância, da diferença de pensamento. Inviabilizados, assim o discernimento político e a autonomia ética das pessoas, engendra-se a falência de uma solução democrática – racional e pluralista – aos problemas da convivência no processo civilizatório. 5.2

A CORRUPÇÃO DO PODER DO PSÍQUICO: CONFORMAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS AO INTERESSE DA CREDIBILIDADE

Os obstáculos epistemológicos à realização do Interesse da Credibilidade operam o bloqueio das relações institucionais, de sorte a constituir-se uma personalidade politicamente equilibrada em suas necessidades de proteção e afeto. Neste plano, a incapacidade sociopolítica de se lograr o controle da violência e a institucionalização da autoridade, deriva-se em perversões da consciência individual e coletiva, que não logram performar os parâmetros eficientes da solução de problemas pela via da Concordância Inter32

pessoal, e muito menos implementar as condições suficientes da Manutenção da Ordem social. Sob o influxo dessa frustração, a formação da consciência coletiva torna-se presa fácil às projeções da personalidade, assim afetivamente castrada, nas práticas manipulatórias e repressivas, que tipificam os TOTALITARISMOS de vária estirpe (nazismo, fascismo, comunismo). Sua marca registrada é a tomada do poder pela estratégia da violência, correspondendo à decapitação da autoridade estabelecida (regicídio). Sua justificação, de um lado, remete às projeções políticas do desejo edipiano reprimido da conquista incestuosa da nação, que fomenta a derrubada e substituição da autoridade paternal do governo (parricídio); e de outro, à necessidade, que os novos incumbentes logo desenvolvem, de prevenir-se igual reação, por parte da população submetida, quando se obvia o fato que a estratégia da violência é incapaz de promover a paz, induzindo à decapitação da própria cidadania emergente no processo da tomada do Estado. Neste sentido, compreende a dinâmica da repressão, como reprodução do autoritarismo, que promove o filicídio - tema que encontra a sua representação figurada na tragédia grega, pela abdicação do poder e o auto-exílio, que simboliza a expiação/castração política, que o resgate da própria consciência impõe a Édipo-Rei. Por sua vez, a incapacidade de assegurar-se o controle da violência, e assim a conformação da ordem pública, implica numa outra linha de projeção das relações afetivas sobre a dimensão do político, que se pode designar pelo conceito do CORPORATIVISMO. A desintegração das lealdades sociais horizontais na competição intrainstitucional pela aprovação das hierarquias e a apropriação institucional-burocrática e particularista do interesse público, integram a conformação sociopolítica deste obstáculo epistemológico. O expurgo político, o patrulhismo ideológico, a agudização do conflito político na esfera intra-partidário, são exemplos da perversão da personalidade neste plano, que opera a internalização da violência e seu direcionamento inter pares no processo da vida organizacional, aqui designada pelo conceito do fratricídio. 5.3

A CORRUPÇÃO DA FANTASIA: CONFORMAÇÃO SOCIOPOLÍTICA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS AO INTERESSE DA GOVERNABILIDADE

Os obstáculos epistemológicos à realização do Interesse da Governabilidade operam o bloqueio do conhecimento e manejo primário das condições da existência, da produção, distribuição e reprodução dos recursos sociais. Sua característica básica remete à dificuldade de se lidar satisfatória e racionalmente com desejos e temores, necessidades materiais e expectativas de vida, e deriva-se em perversões que afetam a manutenção do próprio equilíbrio orgânico da personalidade política, afetando seus padrões de Obediência e Punição e bloqueando sua capacidade de Orientação Instrumental Relativista. No primeiro caso, essa incapacidade de partilhar o poder de realização pessoal gerado pela fantasia, como capacidade de viver duplamente a realidade repressiva e a o sonho libertário, a produção da vida e a incumbência da autoridade, constitui e alimenta os escapismos de vário matiz, que se podem denotar no conceito do CONFORMISMO político, levando o indivíduo a cometer, conscientemente ou não, suicídio – isso que vem resultar da somatização destas frustrações. No segundo caso, a incapacidade de se aproveitar satisfatoriamente os recursos acessíveis à intervenção social, e de reproduzi-los com eficiência, caracterizando uma implementação deficiente do potencial produtivo e gestionário da personalidade política, encontra a sua tipificação, no obstáculo epistemológico designado pelo conceito do CIENTIFICISMO. A extensão e a profundidade dessa doença coletiva, que engendra o mal estar de nossa civilização representado pelo reducionismo do processo cognitivo ao limites de uma razão meramente instrumental, repercute perversamente na base biológica da

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sociedade, sob a forma da agressão e destruição do meio ambiente, que podemos designar pelo conceito genérico do ecocídio. No processo da modernidade, os processo autofágicos que se originam na corrupção dessa função sígnica, têm bloqueado à subjetividade humana a apropriação plena da capacidade de controle sobre a agenda básica da sua própria sobrevivência. 5.4

MANIQUEÍSMO, TERRORISMO E DROGADÍCIO: OS TRÊS VETORES DO CONFRONTO GLOBAL QUE ERODE AS BASES DA CIVILIZAÇÃO DEMOCRÁTICA NA SAGA DO CRIME ORGANIZADO.

Formulados, os seis obstáculos à conformação sociopolítica da personalidade e, assim derivadas as seis regressões das funções sígnicas no processo de formação da consciência moral, numa convergência teórica de KOHLBERG e MENDEL, abre-se um vasto boqueirão de implicações e conseqüências. Uma conclusão preliminar e necessária, desde logo se impõe: que uma sociedade, surpreendida pela investigação empírica em estádio avançado de formação de consciência [segundo a escala KOHLBERG], nem por isso estará implicitamente prevenida da possibilidade de se manifestarem graves e profundas irracionalidades no seu modo de vida. De um lado, é uma decorrência teoria do conceito sociopsicanalítico que venho trabalhando, que a dificuldade experimentada por uma sociedade em avançar até o estágio final da escala proposta, redundando em “frustração” do comportamento ético não performado, afete regressivamente o seu modo de ser nos estádios subjacentes. De outro lado, a crítica do linear desenvolvimentismo no pensamento de KOHLBERG, implícita na abordagem que venho elaborando, alerta para a necessidade de investigar-se, a cada estádio performado no processo do desenvolvimento da consciência, sobre as condições efetivas desta realização – eis que haverá de se agregar à análise a distinção essencial do modo sadio ou perverso [desviado ou divergente], como se processa o seu afrontamento. Ao mesmo tempo, percebe-se que a gravidade dos desafios, num crescendo de repercussões civilizatórias, em cada nível do desenvolvimento de consciência performado, aumenta a responsabilidade daqueles que assomam aos estádios superiores na formação da consciência moral. Isso que, afinal, corrobora a filosofia grega clássica, na sua antecipação de NIETZSCHE, que “os grandes crimes e a maldade refinada” não brotam de “alguma inferioridade”, mas sim da “plenitude da educação que recebeu”. E assim as consciências mais “desenvolvidas”, que se enquadram nesta analogia, são como “uma planta que, recebendo alimento adequado, deve necessariamente desenvolver-se e produzir todo gênero de virtudes; mas quando é semeada e cria raízes em solo impróprio, converte-se na mais daninha de todas as ervas daninhas...” [PLATÃO, 1964:179]. 5.5

AS PERVERSÕES DA PERSONALIDADE E OS PROSPECTOS DA POLÍTICA DEMOCRÁTICA.

Isso posto, caberia ainda enunciar-se, na esteira destas considerações teóricas, uma designação própria à correspondência conceitual entre: a conformação sociopolítica dos interesses epistemológicos [INTERESSES DA RACIONALIDADE, CREDIBILIDADE e GOVERNABILIDADE]; os três interesses conformativos da consciência moral [PODER DO POLÍTICO ou Eu-Político, PODER DO PSÍQUICO ou Eu-Ato, e FANTASIA ou EuTodo Arcaico e Onipontente], e as formas corruptas de sua manifestação no processo de formação da consciência moral, que passo a designar, respectivamente, como MANIQUEÍSMO, TERRORISMO e DROGADÍCIO.

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MANIQUEÍSMO: é o conceito que proponho, para designar o signo-interpretante das duas corrupções do Interesse da Racionalidade, que se representam nos obstáculos epistemológico do MALTHUSIANISMO e do FUNDAMENTALISMO. No que respeita ao processo da consciência moral, como forma desviada de realização do “eupolítico”, o MANIQUEÍSMO corresponde à irrealização do seu desenvolvimento esperado, no nível pós-convencional [5º e 6º estádios de Kohlberg], como a convivência política regulada pelo Contrato Social e como orientação da conduta a Princípios Éticos Universais, tendo por conseqüências regressivas, no seu limite, o GENOCÍDIO e o EPISTEMICÍDIO. Assim esboçada a sua etiologia, o MANIQUEÍSMO designa essa degradação máxima do poder do político que é o irracionalismo – esse afrontamento à vida em sociedade que implica na absoluta negação do conteúdo racional-normativo da disciplina política – seja como recusa à tolerância do Com(viver) – pela separação absoluta entre os bons e os maus, os filhos da luz e os filhos das trevas; seja como recusa à humildade do Saber, pela invocação sectária de uma Verdade absolutista e infalsificável, e pela condenação, de tudo e de todos que navegam além da sua fronteira, à execração religiosa, política ou ideológica.



TERRORISMO: é o conceito que proponho, para designar o signo-interpretante das duas corrupções do Interesse da Credibilidade, que se representam nos obstáculos epistemológicos do TOTALITARISMO e do CORPORATIVISMO. No que respeita ao processo da consciência moral, como forma desviada de realização do “eu-ato”, o OBSCURANTISMO corresponde à irrealização do seu desenvolvimento esperado, no nível convencional [3º e 4º estádios de Kohlberg], como Concordância Interpessoal e como Manutenção da Ordem Social, tendo por conseqüências regressivas, no seu limite, o PARRICÍDIO/FILICÍDIO e o FRATRICÍDIO. Neste patamar do processo de formação da consciência moral, o TERRORISMO designa essa corrupção máxima do poder do psíquico, que implica a neutralização absoluta da possibilidade de defesa ou reação pessoal diante da agressão física e moral, operando cumulativamente: o apriori e gratuidade da respectiva condenação; o uso ou ameaça de uso de violência imediata, generalizada e ilimitada; e a imprevisibilidade de movimentos do agente agressor.



DROGADÍCIO: é o conceito que proponho, para designar o signo-interpretante das duas corrupções do Interesse da Governabilidade, que se representam nos obstáculos epistemológicos do POPULISMO/CONFORMISMO e do TECNOCRATISMO/CIENTIFICISMO. No que respeita ao processo da consciência moral, como forma desviada de realização do “eu-todo”, o DROGADÍCIO corresponde à irrealização do seu desenvolvimento esperado, no nível pré-convencional [1º e 2º estádios de Kohlberg], como assimilação primária de um regramento universal da conduta, enquanto Obediência e Punição e como capacidade de apropriação dos recursos necessários à produção/reprodução da vida, figurada pelo conceito de Orientação Instrumental Relativista. Suas manifestações regressivas configuram, no seu limite, os conceitos paradigmáticos do SUICÍDIO e do ECOCÍDIO. Nesta instância da formação da consciência moral, o DROGADÍCIO designa a morte biológica da fantasia, como demissão da capacidade de entendimento do mundo. Designa a regressão da mente à satisfação imediata e autofágica das necessidades biológicas mais elementares. Na esfera pública, instaura domínio da realpolitik, a fria lógica do poder pelo poder – seja na conformação de um Estado Delinqüente (no seu limite, as milícias do terror), que representa o virtual suicídio da cidadania; seja na condição de um Industrialismo Predador (no seu limite a indústria e o tráfico da droga), que promove a sistemática destruição da personalidade e da natureza – resultando, de qualquer forma,

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numa consciência demissionária diante dos processos e agentes de destruição da vida no planeta. Assim compreendidas as categorias que designam as perversões da POLÍTICA DEMOCRÁTICA, resulta articulada, também, a visualização dos instrumentos simbólicos essenciais ao seu enfrentamento, que introduzem na agenda deste limiar do Século XXI, a defesa necessária dos postulados radicais da TOLERÂNCIA, da AUTONOMIA e do DISCERNIMENTO políticos. No postulado da TOLERÂNCIA, estabelece-se um ponto de convergência no processo civilizatório – uma decorrência necessária da humildade do Saber que se reconhece sempre, particular e contingente – cuja contradição é o maniqueísmo, essa vã e delirante absolutização de qualquer fragmento do Saber que se desvela no discurso dos homens, acarretando a separação radical e a incompreensão entre o bem e o mal, os filhos da Luz e os filhos das Trevas, o capital e o trabalho, os incluídos e os excluídos, os oprimidos e os opressores, como o único e decisivo critério de valor. No postulado da AUTONOMIA, radica a estratégia da liberdade que nos permite compreender e consentir para conviver – cuja contradição é o terrorismo, essa truculenta e ensandecida perversão da consciência, que se arroga, no solipsismo das próprias convicções, a dominação do outro pelo medo (ou pelo mal) radical – a capacidade unilateral de patrulhar, condenar e punir, na absoluta ausência de limites à escolha dos meios e no absoluto desprezo à dignidade da pessoa humana convivente e parceira desta aventura planetária. No postulado do DISCERNIMENTO, define-se a equação proativa, que nos impõe o empreendimento e a responsabilidade da escolha, dos meios eficazes à realização do bem comum – cuja contradição, é o drogadício, como a recusa virtual e real da participação política na construção da vida, patologia de uma inteligência demissionária face à opacidade do mundo e escapista das dificuldades do seu afrontamento. Por oposição a estes postulados, na sua especificidade e articulação, o MANIQUEÍSMO, o TERRORISMO e o DROGADÍCIO, que se interpenetram nas redes do CRIME ORGANIZADO, projetam no horizonte as sombras do que poderá significar o fim desta civilização e da política democrática que é a sua identidade própria e a sua promessas em realização.

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Tabela 6: Configuração paradigmática das REGRESSÕES SÍGNICAS e da CORRUPÇÃO DOS INTERESSES CONFORMATIVOS da consciência.

Funções sígnicas dos interesses epistemológicos

Interesse da Fundamentação Transcendental do Entendimento: RACIONALIDADE

PODER DO POEstádio 6: LÍTICO – NecesPrincípios Princípio: sidades do euRazão Universais político [satisfaÉticos ção da vontade – apropriação terciária de poder Estádio 5: Arquétipo: social] – POSTUContratoParadigma LADO DA TOLESocial RÂNCIA

Interesse da Compreensão Participativa do Discurso: CREDIBILIDADE

Interesse da Reconstrução Teórica do Significado: GOVERNABILIDADE

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Estádios do desenvolvimento da consciência moral [Kohlberg]

Categorias da Epistemologia de Síntese na conformação da POLÍTICA DEMOCRÁTICA

Princípio: Sabedoria Prática

Estádio 4: Manutenção da Ordem

Arquétipo: Consciência

Estádio 3: Concordância Interpessoal

Arquétipo: Método

Estádio: 2 Orientação Instrumental Relativista

Princípio: Crítica

Estádio 1: Obediência e Punição

Interesses conformativos da personalidade [Mendel] – e respectivos postulados

PODER DO PSÍQUICO – Necessidades do euato [satisfação do afeto – equilíbrio secundário de natureza emocional] – POSTULADO DA AUTONOMIA FANTASIA – Necessidades do eu-todo arcaico [satisfação da libido – conhecimento primário do mundo] – POSTULADO DO DISCERNIMENTO

Conformação sociopolítica dos obstáculos epistemológicos FUNDAMENTALISMO

MALTHUSIANISMO

Regressões sígnicas da personalidade

EPISTEMICÍDIO

GENOCÍDIO

CORFRAPORATRICÍTIVISMO DIIO

TOTALITARISMO

PARRICÍDIO/ FILICÍDIO

TECNOCRATISMO/CIE NTIFICISMO

ECOCÍDIO

POPULISMO/ CONFORMISMO

SUICÍDIO

Corruptelas da política democrática na configuração do CRIME ORGANIZADO

MANIQUEÍSMO – degradação máxima do poder político no irracionalismo

TERRORISMO corrupção máxima do poder do psíquico pela neutralização absoluta da possibilidade de defesa ou reação pessoal diante de agressão física e moral

DROGADÍCIO morte biológica da fantasia, pela demissão do entendimento do mundo ao domínio da realpolitik

UM RESGATE NECESSÁRIO: NA DIALÉTICA TRIÁDICA DO PRINCÍPIO DO PRAZER E DO PRINCÍPIO DA REALIDADE, A EMERGÊNCIA DE UMA TAXIONOMIA ESTRUTURAL-FUNCIONAL DAS PSICOPATOLOGIAS.

A confusão teórica entre as funções estruturantes do processo de comunicação e suas funções sígnicas, que venho clarificando ao longo deste texto, é responsável por um equívoco, que se impõe resgatar, nas conclusões que MENDEL sobre a esfera do político, como um terceiro campo de interações significativas na formação da personalidade. Pretende, a partir dessa proposição, ter superado e, assim descartado e substituído

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– pela sua compreensão triádica do político, psíquico e biológico – o construto central da analítica freudiana, na dinâmica do princípio do prazer e do princípio da realidade. Ao contrário de MENDEL, no entanto, não vejo, na introdução do componente triádico das funções sígnicas da mente, a superação da dialética freudiana do princípio do prazer e do princípio da realidade, que, efetivamente, constituem o núcleo da elaboração das suas funções estruturais. De fato, é sobre a interpenetração diádica e dinâmica desses dois princípios (cada um deles composto por uma tríade sígnica), genialmente formulados por FREUD, que se poderá identificar as bases para uma taxionomia das doenças mentais, consistente com a estrutura do paradigma sintético e sua clarificação das funções sígnicas e estruturantes do psiquismo. É complexa a analítica freudiana neste particular, até mesmo pela sua evolução conceitual, que evolui significativamente na passagem da primeira tópica (onde o aparato psíquico é visualizado pelas relações de três sistemas: Inconsciente, Pré-consciente e Consciente) à segunda tópica por volta de 1920 (onde o psiquismo passa a ser visualizado em termos de Id, Ego e Superego). A indisponibilidade do paradigma triádico - como se encontra aqui formalizado - ao tempo em que FREUD desenvolveu a sua analítica, certamente dificultou-lhe a clarificação dessa passagem conceitual, de forma que viesse a esclarecer-se o locus da tensão diádica dos processos primários e secundários no núcleo sígnico da mente, das suas funções estruturantes. O paradigma da epistemologia de síntese clarifica o pensamento de FREUD, sobre a interação das duas tríades que conformam o núcleo central do psiquismo, evidenciando o modo como se realiza a sua complementaridade dialética: [a] como um fazer comunicativo - uma primeira tríade constitui o processo primário da mente [Energia livre - Inconsciente - Princípio do prazer]; e [b] como um agir comunicativo - uma segunda tríade elabora o seu processo secundário [Energia ligada - Pré-consciente - Princípio da realidade]. Compreende-se, dessa forma como o Sistema Consciente (PSIQUISMO) da personalidade, na formulação que lhe é proposta por Freud, conforma-se na interação dialética desses dois processos constitutivos [constituídos pelas funções sígnicas da mente], e atualiza-se nas quatro manifestações ou modos de percepção psíquica – que identifiquei como as suas funções estruturantes: ATENÇÃO, PENSAMENTO, JUÍZO E RACIOCÍNIO. Estas, por sua vez, correspondem aos quatro estágios de formação da personalidade de TURNER, também trabalhados por TREVISOL18, e caracterizados pelos conceitos de: [a] arcaísmo [ou momento arcaico-autista do “Eu-objeto”]; [b] simbiose [ou momento simbiótico - que caracteriza a primeira percepção da ambigüidade na relação “Eu x objeto” - reconhecimento da autonomia do objeto]; [c] diferenciação [marcada pelo reconhecimento da subjetividade do objeto primeira etapa da relação Eu x Tu - marcada pela sua imediatividade]; e [d] consolidação [quando a personalidade constrói, afinal, a sua configuração triádica: Eu-objeto-Tu ou Eu-mediação-Tu]. Correspondem essas quatro manifestações da personalidade, também, a uma taxionomia básica das patologias da personalidade, que identificam déficits de realização no afrontamento dos desafios propostos pela configuração das funções estruturantes, que integram cada um dos quatro estágios da formação da personalidade. Essas patologias estão consistentemente figuradas no modelo paradigmático do Quadro 4, e são, respectivamente: o autismo, a paranóia, a depressão e a esquizofrenia. 18

TERVISOL, Jorge: cfr. Nota 12: palestra proferida no dia 06/06/98, Colégio Dom Feliciano, Gravataí-RS.

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Quadro 4: PRINCÍPIOS DO PRAZER e DA REALIDADE [Freud] na conformação de uma teoria geral da PSICOPATOLOGIA DO PODER Interesse da Fundamentação Transcendental do Saber - théoria Mendel: PODER DO POLÍTICO Necessidades do eu-politico - satisfação da vontade (apropriação terciária de poder social)

RACIOCÍNIO

CAMPO DA FUNDAMENTAÇÃO DO SABER Sociedade Mendel: DIMENSÃO DA POLÍTICA Freud: CONSCIENTE

Turner: CONSOLIDAÇÃO (4º Estágio do Desenvolvimento da Personalidade) PATOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA (2ª patologia da ambigüidade)

ENERGIA LIVRE Fundamento (Referência)

JUÍZO Turner: DIFERENCIAÇÃO (3º Estágio do Desenvolvimento da Personalidade) PATOLOGIA DA DEPRESSÃO (2ª Patologia de polaridade) Interesse da ENERGIA LIGADA Compreensão Ouvinte Participativa do Discurso – práxis Mendel: PODER DO PSÍQUICO Necessidades do eu-ato satisfação do afeto (equilíbrio secundário de natureza emocional) CAMPO DA REALIZAÇÃO PARTICIPATIVA DO SABER (Mundo natural) Mendel: MATRIZ BIOLÓGICA Freud: INCONSCIENTE

PRINCÍPIO DA REALIDADE PROCESSO PRIMÁRIO (triângulo vazado)

Sistema consciente PSIQUISMO PROCESSO SECUNDÁRIO (triângulo cheio) Interpretante

PRINCÍPIO DO PRAZER Turner: SIMBIOSE (2º Estágio do Desenvolvimento da Personalidade) PATOLOGIA DA PARANÓIA (1ª Patologia da ambigüidade)

PENSAMENTO

CAMPO DA ESTRUTURAÇÃO TEÓRICA DO SABER Natureza interna Mendel: ESFERA FAMILIAR Freud: PRÉ-CONSCIENTE

SISTEMA INCONSCIENTE Objeto (Referente)

ATENÇÃO Turner: ARCAÍSMO (1º Estágio do Desenvolvimento da Personalidade) PATOLOGIA DO AUTISMO (1ª Patologia de polaridade) SISTEMA PRÉ-CONSCIENTE Falante

Interesse da Reconstrução Teórica do Significado -poiésis Mendel: FANTASIA Necessidades do Eu-TODO arcaico (satisfação da libido conhecimento primário do mundo)

O autismo, nessa figuração teórica, ressalta uma rejeição primária à elaboração da tensão diádica - Eu x objeto - a qual se constitui no mecanismo elementar de formação da personalidade. Nesse caso, manifesta-se uma incapacidade do Sistema Consciente (ou PSIQUISMO) em decodificar, ou assimilar, o impacto da totalidade refletida do Sistema Inconsciente pela totalidade vivida do Sistema Pré-consciente. Exatamente por isso, o

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Eu-Todo não consegue voltar-se sobre os objetos... que lhe são externos, nem mesmo para deles se apropriar, o que se reflete na sintomatologia externa do autismo como patologia da atenção. Fixações de personalidade, por conflitos irresolutos neste período arcaico, tenderão a manifestar-se na idade adulta sob a forma de egocentrismos de toda espécie. Na política, os déficits de realização da personalidade no período arcaico, se projetam na formação de um grande contingente - a maioria silenciosa nas democracia, os apáticos de toda sorte. E, de outro lado, se manifestam na cristalização de preconceitos e discrimes; de tudo aquilo que recusa ao Outro a própria dignidade de tornar-se um interlocutor ou protagonista legitimado no grande drama social. Seus portadores são marcados pela característica típica da impaciência - como incapacidade de ouvir... e da autosuficiência, que emula a arrogância e a truculência no exercício do poder. A paranóia surge na etapa seguinte de formação da personalidade: a simbiótica. Não se trata, aqui de um curto circuito na polaridade dos processos primário e secundário - trata-se sim, de uma dificuldade em processar o reconhecimento do Eu na autonomia do seu próprio objeto. O narcisismo, de um lado, como excesso de valorização do Eu, devido a uma ansiedade irresolvida pelo afastamento de um objeto de prazer; e, de outro lado, uma inequívoca sintomatologia de dependência, como devoção exagerada ao objeto que se teme perder - seja este um artigo de consumo, o parceiro sexual, o líder político ou religioso, o ídolo esportivo, enfim qualquer outro objeto de fixação midiático; são estes os componentes brutos dessa primeira patologia da ambigüidade. Disso decorre que o tipo clássico do paranóico é duplamente: um narcisista e, também, um dependente. Encontram-se, nesse contingente humano, ambivalentes de toda a sorte, generosos e covardes, valentes e mesquinhos - mas, em qualquer hipótese, perniciosos quando investidos de poder: como o Imperador NERO, um narcisista fixado na própria mãe. Figura típica do paranóico clássico que, tendo mandado incendiar a cidade, e sucedendo libertar-se da sanha dos cidadãos enfurecidos, pela caridade de um punhal assassino, ainda haveria de balbuciar, em seu último alento, na exaltação do amor próprio embevecido: que grande poeta Roma está perdendo! Inseguros da própria condição humana e fantoches das suas fixações objetais, os paranóicos serão capazes de enfrentamentos heróicos e rendições patéticas - de condenações arbitrárias e embevecidas juras de amor. Formam um contingente humano, grandiloqüente e ativo, cumprindo missões e defendendo consignas, conseguindo tornar-se simpáticos e cativantes, na exaltação das próprias virtudes... até o momento que se tornam fastidiosos e desdenham do próprio interlocutor. Porque no seu aspecto mais insidioso, essa patologia da ambigüidade é supressora do pensamento, como o discorrer das idéias sobre um tema - porque não se autonomiza o tema em relação ao amor de si próprio e sua projeção nos objetos. O paranóico - sendo um narcisista-dependente - não reserva espaço, entre a sua desesperada necessidade de auto-afirmação e sua, não menos absoluta, necessidade de confirmação, para a investigação de uma hipótese ou para o acontecimento de um diálogo. Na política, isso os torna monocórdios... não recuando diante do próprio ridículo, porque dele não possuem a capacidade de discernimento. Confundirão sempre, em torno de si mesmo, o público e o privado, a responsabilidade e a paixão, o palácio e o prostíbulo... E a sua volta acolherão os áulicos, afastando os críticos, até o momento em que a ingenuidade de uma criança, o sacrifício de um inocente, ou o genocídio de um povo, se torne capaz de gritar às consciências que os sustentam, que o rei está nu... explicitando, assim, a realidade dos fatos e a sua tragédia, nas implicações sociais da sua loucura.

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A depressão é uma segunda patologia da polaridade. Dá-se aqui, um curtocircuito no fluxo de energia mental - mais propriamente no processo de canalização da energia livre ao processo secundário do vivido. Ocorre no estágio de formação da personalidade designado como o momento da diferenciação do Eu e do seu objeto; no momento da subjetivação deste objeto como Tu. A projeção da própria energia na dimensão do objeto - ao subjetivá-lo, numa relação em que o Eu se torna objeto, bloqueia a formação do juízo, como capacidade de se confrontarem argumentos e interesses, de origem interna e externa, à consciência dos próprios sentimentos. Em virtude disso, recusa-se ao Eu o movimento da vontade, que plasma o objeto e, como ato, estabelece relações intersubjetivas, na direção da sua auto-realização. Transfere-se todo o potencial de autoreflexão comunicativa da relação diádica, para uma atitude de autocomiseração - construída sobre sentimentos de culpa e frustração - projetando-se fantasiosamente no grande Tu, que passa a ocupar a posição do sujeito, a capacidade e a responsabilidade pela sua regeneração. No cotidiano da vida, o depressivo clássico se deixará anular pelo perfeccionismo da obra que pretenda realizar, que restará sempre, por isso mesmo, inacabada. Fonte de frustração e culpa, sua incapacidade de liberar a energia mental, como ato de uma realização concreta, os tornará intrigantes e bajuladores. Na política, os tipos depressivos clássicos, prestar-se-ão às tarefas mais humilhantes e despersonalizadas - como beatas de sacristia, numa relação de proximidade e sujeição à autoridade do padre; áulicos e alcagüetes do poder - formarão o complemento ideal dos paranóicos, no coquetel fascista de uma relação patológica entre líder e massa nas sociedades afluentes, entre dirigentes inescrupulosos e burocratas competitivos, no ritualismo das grandes corporações. Finalmente, a esquizofrenia comparece nesse esquema teórico, como uma segunda patologia da ambigüidade. Já não se trata aqui, da ambivalência - narcisista e objetal - que revelava, na paranóia, uma incapacidade básica de lidar com o princípio do prazer na formação da própria consciência. Trata-se da incapacidade de articular o mundo da vida no princípio da realidade, como um espaço próprio, distinto do Eu e do Tu, estabelecendo-se os limites de sua vigência para cada uma dessas polaridades. A ambigüidade persiste, no fato que a personalidade balança entre uma identificação midiática com o(s) mundo(s) do(s) outro(s) e a construção embrionária da própria realidade, ao ponto de confundirem-se critérios de julgamento, projetarem-se expectativas, repetirem-se slogans, que nada dizem das próprias razões. Na política e na sociedade, a esquizofrenia é a componente patológica mais flagrante da sociedade de consumo, com suas técnicas de propaganda e efeitos de demonstração. Caracteriza a instabilidade dos movimentos da opinião pública e se reflete na ambigüidade das relações pessoais, pela deslealdade intrínseca dos comportamentos estereotipados numa tipificação de “camaleonismo” - de “Maria-vai-com-as-outras”, como nos folguedos infantis - que faz da política mera arte da retórica e, do apelo populista aos interesses de cada auditório, uma bem estabelecida “profissão”. Ao tipo esquizofrênico clássico dessa reincidiva sofística, não interessa quais as inconsistências - que os seus discursos contemplam - entre os interesses dos públicos que cativa; e não importa quais as dificuldades que estes interesses apresentem, relativamente à realidade própria e objetiva da sociedade e do Estado, em cuja dinâmica se inserem. A esquizofrenia, como patologia do raciocínio, suprime essas contradições. Num estágio avançado do desenvolvimento da personalidade, quando se tornou viável a elaboração de um discurso autônomo sobre a realidade, cultiva a arte do descompromisso... com o próprio discurso.

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Assim, esboçado este quadro teórico, desvela-se o desafio da complexidade que paira sobre o ofício do analista político. A superposição, até como reforço mútuo, dos comportamentos regressivos na atualização das funções sígnicas, e sua articulação com as patologias originárias da realização deficitária das funções estruturantes da mente, configuram um campo de estudo, cuja exploração ainda é incipiente, a exigir aprofundamento, via estudos de caso, e interpolação mediante o desenvolvimento e validação de teorias de médio alcance. É minha pretensão, tão somente, sugerir que o modelo paradigmático da epistemologia de síntese oferece um caminho para esse afrontamento. E, mais além, ensaiar um primeiro passo, neste percurso, lançando mãos de um último conceito – a idéia de um síndrome – que permita traduzir, para a esfera das manifestações praxiológicas periféricas ao núcleo sígnico do psiquismo, o risco de frustração das respectivas funções sígnicas e estruturantes, avançando conteúdos para uma etiologia das doenças da mente. [O Quadro 5, esboça a complexidade deste desafio no modelo paradigmático da epistemologia de síntese.]

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Quadro 5: O PARADIGMA DA PATOLOGIA DO PODER E O DESAFIO CIVILIZATÓRIO DO CRIME ORGANIZADO RACIONALIDADE X MANIQUEÍSMO Interesse da Fundamentação Transcedental do Entendimento (théoria) Mendel: PODER DO POLÍTICO (necessidades do eu-político) CAMPO DA FUNDAMENTAÇÃO DO SABER

Mendel: DIMENSÃO DO POLÍTICO

PATOLOGIA REGRESSIVA DO EPISTEMICÍDIO Princípio: RAZÃO - KOLHBERG Estágio 6: princípios éticos universais x FUNDAMENTALISMO

PATOLOGIA DA ESQUIZOFRENIA

PATOLOGIA REGRESSIVA DO GENOCÍDIO Arquétipo: PARADIGMA KOHLBERG - Estágio 5: contrato social x

MALTHUSIANISMO

CAMPO DA ESTRUTURAÇÃO TEÓRICA DO SABER

Mendel: ESFERA FAMILIAR

Engenharia do consenso x déficit de identidade = individualismo e insegurança >

CINISMO PATOLOGIA REGRESSIVA DO FRATRICÍDIO Arquétipo: CONSCIÊNCIA -Conformação do espaço público KOHLBERG Estágio 4: manutenção da ordem-social x

CORPORATI VISMO

EFICIÊNCIA x ALTA LIBERDADE x PRODUTIVIDADE SATISFAÇÃO DAS NECES- SUSTENTANDO A FELICISIDADES MAIS- DADE NO CONSUMISMO (Proferimento) REPRESSIVAS (Fundamento) SOCIEDADE CORPORATIVA PATOLOGIA DA (triângulo vazado) DEPRESSÃO

Construção da soberania x déficit de responsabilidade = corrupção e frustração >

IMPUNIDADE

CREDIBILIDADE X TERRORISMO Mendel: DESEJABILIDADE x PODER DO DESEJO COMO PSÍQUICO CAPACIDADE Interesse da ComAQUISITIVA Preensão Participativa (Falante) do discurso (práxis) PATOLOGIA REGRESSIVA DO PARRICÍDIO/FILICÍDIO Princípio: SABEDORIA PRÁTICA KOHLBERG - Estágio 3: concordância interpessoal x TOTALITARISMO

CRIME ORGANIZADO HOMEM UNIDIMENSIONAL (triângulo cheio) FRATERNIDADE x THANATOS = COMPETIÇÃO /DESTRUIÇÃO (Interpretante) PATOLOGIA DA PARANÓIA

IGUALDADE x PADRONIZAÇÃO TECNOLÓGICA e DESIGUALDADE SOCIAL (Objeto) PATOLOGIA DO AUTISMO Prevenção Da tirania x déficit de Autonomia = Intolerância e apatia >

DITADURA

VIABILIDADE x RENDIÇÃO DO PENSAMENTO CRÍTICO À RAZÃO INSTRUMENTAL E AOS PODERES EXISTENTES (Ouvinte)

Garantia do dissenso na implementação da escolha pública x déficit de produtividade = exclusão e repressão > MISÉRIA

PATOLOGIA REGRESSIVA DO ECOCÍDIO

PATOLOGIA REGRESSIVA DO SUICÍDIO Princípio: CRÍTICA - KOHLBERG Estágio 1: obediência e punição x

CONFORMISMO

Arquétipo: MÉTODO

CAMPO DA REALIZAÇÃO PARTICIPATIVA DO SABER

Mendel: BASE BIOLÓGICA

KOHLBERG - Estágio 2: instrumental relativismo x CIENTIFICISMO

GOVERNABILIDADE X DROGADÍCIO Interesse da Reconstrução Teórica do Significado (poiésis) Mendel: FANTASIA (necessidades do eu-todo)

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7

SÍNDROME DE MaKBeTh: UMA REPRESENTAÇÃO DAS CORRUPÇÕES SÍGNICA E ESTRUTURANTE DA VIDA POLÍTICA

Na psicanálise tradicional, as regressões das funções sígnicas do psiquismo ganharam relevo e se cristalizaram na figuração típica dos “complexos”, cuja explicitação e conseqüência é central nas formulações teóricas de base freudiana ou jungiana. Na sociopsicanálise, proponho que essa fenomênica seja articulada pelo conceito do “síndrome”. Neste caso, os processos regressivos [primário e secundário] podem compreendem derivações cumulativas, em esferas diferenciadas da personalidade [do psiquismo e da própria base biológica] e integram, portanto, uma sintomatologia mais abrangentemente estruturada e funcionalmente articulada [até mesmo como configurações múltiplas de “complexos”]. Avaliando, destarte, o papel que o “Complexo de Édipo” desempenhou, na formação teórica da psicanálise freudiana - como na estrutura dorsal da sua construção e consolidação paradigmática, até mesmo pelas suas implicações clínicas; tenho, por seguro, que essa mesma função, o “Síndrome de MaKBeTh” está destinado a cumprir no desenvolvimento da sociopsicanálise, à luz do paradigma sintético e das suas implicações políticas e sociais. A tragédia individual, como trajetória de Édipo, encontra na tragédia política, como trajetória do casal macbethiano, o seu mais típico correspondente. Como Édipo, o casal macbethiano comete um ato de lesa majestade; diferentemente de Édipo, o realiza em plena consciência do alcance dos seus atos. O parricídio inconsciente traduz-se, no ato criminoso originário de MACBETH, em regicídio premeditado. Enquanto o drama de Édipo se resume no justar contas com a sua própria consciência; a saga do casal macbethiano os conduz, na volúpia dos próprios atos, por regressões múltiplas do nível do político, e pela via da sua cristalização cumulativa nas patologias básicas da personalidade, a uma derivação trágica de conseqüências, que abrem, no espaço dramático trabalhado pelo gênio de SHAKESPEARE, todo o espectro da sua manifestação. Na seqüência final deste texto, estarei debruçado sobre as três regressões de MACBETH, a grande tragédia da vida política. Na sua análise, pretendo demonstrar como a Arte avançou, sobre a ignorância da própria Ciência, o conhecimento das “regressões” da personalidade, que caracterizam as patologias sígnicas do regicídio [parricídio e filicídio], do fratricídio e do suicídio. Pretendo sinalizar, também, como o gênio de SHAKESPEARE, nas entrelinhas dessa representação dramática, trabalha os temas correlatos do epistemicídio, malthusianismo e ecocídio. Como, na tipificação das dramatis personae do casal macbethiano, se atualizam traços comportamentais, que referem e resgatam ao entendimento os traços fundamentais da psicopatologia política, compreendidos pela tipologia das doenças mentais – do autismo, paranóia, depressão e esquizofrenia. Dir-se-ia, neste ponto e antecipando a conclusão desta análise, que o drama vivido pelos personagens de SHAKESPEARE conforma, numa expressão muito própria, o que se poderia designar como o “SÍNDROME DE MaKBeTh”: o GRANDE ARQUÉTIPO DA CORRUPÇÃO DO PODER.

7.1

PRIMEIRA REGRESSÃO – RACIONALIZAÇÃO PATOLÓGICA DO DESEJO: O REGICÍDIO [PARRICÍDIO/FILICÍDIO]

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A primeira regressão do drama macbethiano é marcada pelo regicídio cometido por Macbeth. Opera-se aqui uma modalidade de realização patológica da dimensão política da personalidade humana. Na sua esteira, a investidura ilegítima da soberania projeta-se na conformação doentia da conduta do herói-vilão. 7.1.1

DESCRIÇÃO SUMÁRIA:

MACBETH, general do Rei DUNCAN, de volta de uma campanha vitoriosa contra os inimigos do trono, em companhia de seu “irmão-de-armas” BANQUO, é afrontado pelas BRUXAS, que vaticinam sua ascensão ao trono. Entusiasmado, MACBETH envia correspondência à sua esposa LADY MACBETH, relatando o fato. LADY MACBETH atualiza o desejo secreto, originário da ambição em MACBETH: concebe friamente - e exige de MACBETH - o assassinato do Rei DUNCAN. O plano é surpreendê-lo, quando estiver hospedado no castelo de MACBETH, para onde o Soberano se dirige, com a finalidade de honrá-lo com as prebendas, merecidas por seu desempenho na guerra. MACBETH vacila na execução do plano execrável, mas LADY MACBETH é implacável e lhe impõe a escolha entre ela mesmo e o assassinato político que, afinal, será perpetrado. Na seqüência dos acontecimentos, LADY MACBETH prepara a cena, tendo colocado a dormir os sentinelas do Rei com um sonífero, alcança a MACBETH o punhal assassino. Perpetra-se o regicídio e, depois de tudo consumado, a nefanda esposa auxilia MACBETH a livrar-se dos vestígios de sangue do seu ato nefando. Finalmente, ao alvorecer daquela noite de horrores, tendo já sido descoberto o crime no palácio, MACBETH adianta-se a todos os súditos estarrecidos e, numa cínica manifestação de indignação, joga sobre os sentinelas - ainda bêbados pelos efeitos do soporífero - toda a culpa pelo acontecido. E vinga neles, ao fio da sua própria espada, a morte do soberano. Num golpe de poder arbitrário, elimina as testemunhas passivas do seu próprio ultraje e afasta de si mesmo a cobrança dos súditos presentes, tornados inermes, pelo terror da violência sem limites. O gesto simbólico desvela o outro lado da moeda, na usurpação criminosa do poder, que é a sua sustentação pela mesma via da repressão – agora filicida. Traços de uma regressão que se confirma, eis que o casal no condomínio do poder haverá de desencadear, seletivamente, a repressão sobre a cidadania indignada. Isso que é simbolizado pela perseguição de MACDUFF - um outro general leal ao soberano, que foge para o exílio - e pelo assassinato de sua esposa e filho. Isso posto, cumpre-se a profecia: MACBETH é Rei! 7.1.2

ANÁLISE:

A análise desta primeira regressão, que configura a investidura iníqua de Macbeth numa dignidade que não lhe pertence e sua conseqüência, desenvolve-se em três movimentos, que se podem, assim qualificar: a tentação esquizofrênica que a aparição fantasmagórica das bruxas simboliza; o seu reforço pela fragilidade de Macbeth à ambição paranoide de sua esposa; e, finalmente, a projeção depressiva em que sucumbe o autor do gesto infame. 7.1.2.1 Primeiro movimento: a tentação esquizofrênica de MACBETH

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MACBETH, que, aparentemente goza das suas faculdades - no pleno desenvolvimento da personalidade, de um bem sucedido senhor da guerra - é defrontado, repentinamente, pela expectativa de uma ambição, que a ambigüidade da profecia, na saudação das BRUXAS, lhe descortina: a conquista do REINO... Diante da promessa: “Tu serás rei...” - instaura-se em MACBETH uma patologia da ambigüidade, que desequilibra sua percepção da realidade e lhe abre a guarda da sua personalidade própria. Diante do vaticínio, que lhe aproxima o objeto do desejo - de forma tão abrupta e fatal, como aparentemente irreal... o RACIOCÍNIO - que haveria de pesar as várias e legítimas formas de realizá-lo - falece em MACBETH. E assim a capacidade de articular os sentimentos e os interesses que, eventualmente, poderiam conduzi-lo ao poder pelo caminho da GLÓRIA. Na TENSÃO-IDEAL dessa frustração, a impotência em visualizar o caminho à frente - na ultrapassagem da meta-realização que lhe fora proposta - alimenta a fantasia esquizóide da agressão. MACBETH projeta-se todo na realidade da sua própria ambição, que lhe sabe acessível pela traição - ao alcance do seu punhal - bastando para isso RITUALIZAR o ato decapitado da própria consciência, na justificativa do destino fatal. MACBETH, em caminho de uma clara “regressão desde a dimensão do político”, operada pela atualização perversa do poder do psíquico, que lhe sugere a satisfação da ambição pelo regicídio. Não ousa, entretanto, entregar-se por si próprio aos desígnios da sua fantasia esquizóide... pelo que haverá de reprimí-la e afinal cristalizá-la na patologia estrutural de um delírio esquizofrênico. Isso que, mais adiante, haverá de se manifestar, numa saga de crimes e alucinações. 7.1.2.2 Segundo movimento: o reforço paranóico de LADY MACBETH A psicopatologia social constrói-se numa complementariedade de atos e processos, que podem envolver múltiplo atores sociais, e por isso mesmo designam o conceito próprio de um SÍNDROME. É nesse sentido, que a tragédia focaliza o destino do casal macbethiano. Fria e eficaz, LADY MACBETH manipula com habilidade a fantasia esquizóide de MACBETH, reforçando-a, em regresso à ambigüidade de uma patologia anterior - essa mesma que se revela na fragilidade de caráter do general do Rei: suas fixações paranóides. Numa terrível carta que lhe envia, LADY MACBETH emula a fantasia narcisista de quem já alimenta o projeto de um fascínora, e lhe confronta o sentimento de dependência, ameaçando abandoná-lo, caso não venha a cometer o regicídio. Consuma-se, assim, o PRIMEIRO ATO, desta fisiografia da corrupção do poder, que nos legou o gênio de SHAKESPEARE. A DRAMATURGIA DO AMOR, que caracteriza a união bem sucedida de almas gêmeas, no processo gerativo da natureza humana, desfigura-se na AMBIÇÃO PELO PODER, numa REGRESSÃO de ambigüidades irresolvidas, que arma a mão assassina de MACBETH e o leva a violar o princípio da lealdade política [na sua expressão mais radical, como dever de hospitalidade]. A racionalização patológica do desejo cumpre o seu destino fatídico e compromete, definitivamente, a trajetória dos seus personagens na engrenagem clássica que alimenta o gênero literário da tragédia: a transgressão moral e sua punição exemplar.

7.1.2.3 Terceiro movimento: a projeção depressiva do tirano. A personalidade ambígua de MACBETH vestiu-se do seu próprio cinismo; mas não lhe consegue impedir a repercussão culposa. Resolve-a, pela projeção desse sentimento

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depressivo, em acusação a terceiros - aos subalternos: os sentinelas a quem LADY MACBETH havia embebedado, sobre os quais descarrega a fúria do seu ressentimento, eliminando-os brutalmente, ainda estupefatos e tontos pelo vinho, sem lhes dar tempo à contestação. A representação é clara: o parricídio-regicídio [ou, mesmo, o tiranicídio como alguns o queiram19], como o pecado original de uma nova ordem, projeta, como seqüela, a repressão aos que vem de baixo [e, imaginariamente, ameaçam de igual destino ao soberano auto-imposto]. O filicídio, que lhe segue, constitui-se uma conseqüência previsível da má-consciência - alimentada pelo ressentimento culposo e pelo ciúme narcisista do casal macbethiano. Na tragédia shakespeariana, expressa-se pela perseguição aos amigos do rei e seus familiares - atinge a MACDUFF, que foge para o exílio, mas terá, sua esposa e filho, assassinados por determinação dos tiranos. O interesse corrupto do equilíbrio secundário de natureza emocional desencadeia sua conseqüência, que pode ser aqui teoricamente apreendida como a ESTRATÉGIA DO TERROR. Surpreende-se nisso a expressão figurada da violência de escalão, que atinge o próximo-imediatamente-abaixo numa escala hierárquica - como o assassinato uraniano dos próprios filhos [é uma alusão da tragédia à opressão dos súditos pelo governante, à repressão da cidadania pelo poder de Estado]. E assim, haveria de percorrer, o casal tenebroso, o caminho dessa complementariedade patológica do parricídio-filicídio, como um desvio do fluxo de energia, originariamente destinada – pelo vaticínio das bruxas – à satisfação da vontade, que se constituiria na apropriação legítima do poder. O assassinato do pai-governante, no entanto - deslegitima o ato do desejo, que passa a ser experienciado culposamente num processo regressivo, no qual se bloqueia, também, a liberação de energia positiva necessária ao reconhecimento dos filhoscidadãos. Para o tirano auto-imposto, os filhos da cidadania serão sempre imperfeitos, indignos da sucessão... E sobre eles - como representações de um afrontamento possível à própria tirania - se desencadeia, secundariamente, a fúria do ressentimento, acumulado pela personalidade depressiva, no recalque culposo de sua agressão ao pai arquetipal. 7.2

SEGUNDA REGRESSÃO – BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA: MÁ-CONSCIÊNCIA COMO MAIS-REPRESSÃO – FRATRICÍDIO.

A segunda regressão da personalidade política, figurada pelo drama shakespeariano é demarcada pelo fratricídio, como prática de poder. O crime político projeta-se, como realização patológica, na dimensão psíquica do seu agente. Na sua conseqüência, o Para uma abordagem deste tema específico, remeto o leitor à discussão do Capítulo 5 de “Democracia Plebiscitária”, onde concluo: “É difícil aceitar como justificativa para a condenação dos tiranos à morte a condição de um novo começo. Robespierre, que sustentava o direito de não se julgar o rei, e sim matá-lo, para que a Pátria possa viver (apud Aydos 1992, p. 53) sucumbiu à lógica do próprio argumento e foi guilhotinado para que a Convenção pudesse governar. Pelo ângulo de sua conseqüência, esse argumento condiciona o governo da cidadania à morte dos seus inimigos públicos, notórios e incontestáveis. É significativo que, com Robespierre e o tiranicídio, positivado como direito da cidadania, se instaure, em tempos modernos o terror das execuções burocráticas, do que os assassinatos de Sócrates e Cristo, e os Tribunais da Inquisição, foram prenúncio e advertência. A experiência dos povos tem demonstrado que o terror não sustenta a democracia, ao mesmo tempo que a institucionalização da democracia não prescinde da contribuição dos seus próprios inimigos. (...) Se o regícídio (como parricídio) é a reação impulsiva da condenação de um tirano (filicida), ambos estes comprotamentos são regressões do nível do político, que deveria presidir as relações de autoridade numa sociedade sadia. Rotinizar essa patologia abriria espaço para uma regressão de segundo grau: a instauração do terror no seio da cidadania (fratricídio). (...) Para além do direito de resistência, que justifica o estado de beligerância contra os opressores da cidadania, e nisso esgota o campo de legitimação da excepcionalidade, o tiranicídio é o primeiro ato de uma nova ordem - da cidadania vitoriosa. Nào há de ser legitimada como fundação, a manifestação direta da sobernia, que não puder ser rotinizada como prática de decisão plebiscitária. Há nisso que ser consistente e radical - como, efetivamente o foi a Convenção do Terror com Robespierre. Ou se introduz critério de eleição para condenar à morte os inimigos da democracia e da humanidade (aceitando o risco de cometer injustiças e a certeza de sistematicamente absolver os poderosos e os vencedores), ou se abstém de assim legitimar o tiranicídio... ” [AYDOS, 1995: 50/51] 19

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exercício tirânico do governo movimenta as engrenagens que acabarão por promover a sua própria dissolução. 7.2.1

DESCRIÇÃO SUMÁRIA:

BANQUO, o fiel companheiro de armas de MACBETH, foi a única testemunha do primeiro encontro com a BRUXAS e, assim também, dos motivos, que a sua truculência poderia originar, para o assassinato DUNCAN. E de BANQUO, por sua vez, foi dito, naquela mesma ocasião, pelas BRUXAS - e na presença de MACBETH - que seria menor e, no entanto, maior do MACBETH; nem tão feliz e, no entanto, muito mais feliz; e que não chegaria a tornar-se Rei, mas que engendraria monarcas. Foi o bastante para que o tirano tramasse a sua morte e de seu filho. MACBETH sentiu-se ameaçado - de igual para igual - pelo testemunho de BANQUO ao vaticínio das bruxas e pela afirmação da sua consciência no enfrentamento moral e político, calcado na profecia, que o distanciaria do usurpador. MACBETH, então, mais uma vez prepara a cena do crime, pelo expediente da traição. Oferece uma festa, na qual BANQUO é o principal convidado... e manda executálo, e a seu filho, por dois mercenários, no caminho percorrido, antes que cheguem ao Palácio. [BANQUO é morto, mas, até porque o ato criminoso nunca haverá de prevalecer sobre a estirpe dos justos, o destino invocado pelo Bardo, impôs que o seu filho lograsse escapar à sanha dos assassinos, fugindo para a Inglaterra onde se começa a articular a resistência à tirania.] Depois do fratricídio, perpetrado contra o irmão de armas, e no banquete que havia preparado para BANQUO, onde se reúnem os lordes do Conselho de Estado, MACBETH será perseguido por alucinações, visualizando a figura do amigo morto, ocupando o seu próprio lugar à mesa. De viva voz - e numa clara manifestação de demência - MACBETH mantém com o espectro do morto um diálogo, que revela o seu envolvimento no crime. É quando se abre a oportunidade para o exercício supletivo do poder pela esposacúmplice-competidora. Na expressão do segundo vaticínio das BRUXAS - que seria BANQUO e não MACBETH, que daria origem a uma estirpe de reis - o gênio de SHAKESPEARE caracterizou, de um lado, a esterilidade do casal macbethiano - como um estigma do respectivo “síndrome”; e de outro, o processo da regressão secundária, na conformação da máconsciência, da expiação perversa da própria culpa, que os conduz à saga da banalização da violência - isso que vai caracterizar a saga dos seus crimes, como um estado psicopatológico avançado de regressão desde a dimensão do político. O fratricídio, simbolizado no assassinato de BANQUO, é a representação dessa patologia sígnica. Trata-se, aqui, da tipificação de um comportamento regressivo desde a dimensão do político, que se atualiza numa perversão do poder do psíquico e se manifesta pelo assassinato de membros do mesmo clã, cuja diferença - mesmo a mais irrelevante e precária - se torna intolerável à personalidade psicótica. De fato, o narcisismo de MACBETH, não lhe permite tolerar esse fato, muito simples, de olhar-se no espelho mágico da profecia e ali defrontar-se com seu leal amigo BANQUO, como o progenitor de uma dinastia. O “Complexo de Branca de Neve”, 20 que faz do rei, naquele conto de fadas, um pai débil e fracassado - e da madrasta uma rainha

Aqui já se antecipa o epílogo de Macbeth, eis que:“os pais que, como a rainha, atualizam seus ciúmes edípicos paternos quase destroem seus filhos e certamente se destroem”. BETELHEIM, Bruno: A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978: 254. 20

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assassina - assoma os domínios da política mundana e reproduz-se, exemplarmente, na dramaturgia de MACBETH. O vaticínio das bruxas expõe o condomínio de poder do casal-Estado, à emergência e à força legitimada dos filhos de BANQUO. MACBETH - como o pai débil de Branca de Neve - projeta em BANQUO toda sua frustração e despeito - isso mesmo, que haverá de revelar a sua fragilidade de caráter, como o amigo desleal - a figura arquetípica de um traidor entre iguais. E LADY MACBETH, sua “esposa infernal”, encena uma representação da BRUXA-MADRASTA do conto de fadas. 7.2.2

ANÁLISE:

Na análise desta segunda regressão de Macbeth, o gênio de Shakespeare conforma a fixação autista que promove, analogamente ao isolamento, desequilíbrio e ruptura das interações fraterno-familiares, a arrogância e a truculência no exercício do poder político. Consumado o segundo crime – no assassinato de BANQUO – o TIRANO-DÉBIL torna-se vítima de alucinações culposas. Visualizará o amigo morto ocupando o seu assento nas reuniões do Conselho de Estado, e sobre ele projetará a culpa e o ressentimento pelo seu fracasso na gestão do Reino. Demonstrará nisso, a extrema fragilidade de sua personalidade e os efeitos do processo regressivo neste plano, como desestruturação do próprio equilíbrio psíquico. Isso que, de alguma forma, lhe faz escorregar o poder de entre os dedos e revela, por detrás do grotesco e do truculento – como recusa à alteridade de BANQUO – a face oculta de uma fixação autista, que destila arrogância e auto-suficiência, sintomas claros de incompetência governativa. O controle do Conselho de Estado flui, então, às habilidades “diplomáticas” de LADY MACBETH e, nesse episódio, o gênio de SHAKESPEARE revela, com sutileza, a emergência de um novo tipo de agressão, disruptiva agora do próprio conluio criminoso. É quando LADY MACBETH, ferinamente, desfaz sobre a demência de MACBETH, perante os lordes do Conselho de Estado. É o começo do fim, que será antecipado pela separação do casal-Estado, e virá por obra de MACDUFF, e dos filhos de BANQUO e DUNCAN. 7.3

TERCEIRA REGRESSÃO – AUTOPUNIÇÃO DA CONSCIÊNCIA FRUSTRADA – SUICÍDIO E ECOCÍDIO.

A terceira regressão da dimensão do político encenada no drama shakespeariano, repercute patologicamente sobre o nível biológico dos respectivos agentes, figurada pelo suicídio de Lady Macbeth e pelo enfrentamento auto-suficiente e arrogante do próprio destino, que antecipa o fim do tirano. 7.3.1

DESCRIÇÃO SUMÁRIA:

O Estado macbethiano entra em decadência. Desfalece o condomínio do poder. LADY MACBETH, vítima de enfermidade mental, gradativamente aliena-se do exercício do poder e da própria realidade. Ao final comete suicídio. MACBETH descansa sobre uma terceira profecia das Bruxas: que não será derrotado por filho de mulher e nem enquanto a floresta de Birnam não subir a colina de Dunsinane e marchar contra ele. Nesse meio tempo, os excluídos do Reino planejam e desencadeiam a revolução para tomada do poder. Comandados por MACDUFF, que é nascido do ventre de uma

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mulher morta; e disfarçados com os ramos das árvores da floresta de Birnam, os revolucionários chegam ao castelo de MACBETH. Expondo-se, temerariamente, porque se acreditava invencível, MACBETH parte para o enfrentamento pessoal da rebelião, onde mata ao filho do nobre SIWARD, que comandou a invasão; e, depois de conhecer, na identidade de seu oponente, o despojamento da sua invencibilidade, arrisca o próprio destino no confronto armado, e nele é morto por MACDUFF. O crime é castigado e a ordem é reconstruída. 7.3.2

ANÁLISE:

O assassinato primordial de DUNCAN, cobra do casal macbethiano suas derradeiras regressões. De um lado, a enfermidade mental, gradativamente, aliena a percepção da realidade em LADY MACBETH, fixando ritualisticamente a sua atenção numa imaginária impureza, que lhe teria manchado o corpo. O gênio de SHAKESPEARE reconstitui, aqui, a regressão dessa personagem ao momento arcaico da evolução da sua personalidade; assim, sob a forma de uma doença autista, LADY MACBETH somatiza o crime, numa reconstrução alienada do seu Eu-Todo. É o primeiro momento do epílogo, que SHAKESPEARE conduz como uma saga de auto-destruição. ELA, a feiticeira da ambição alheia, termina pondo um fim, pelas próprias mãos, ao sofrimento do corpo, indelevelmente manchado pelo crime primordial. ELE, o fantoche da própria ambição manipulada, havendo um tempo passado, e confiante na terceira profecia das bruxas, repousa o fim dos seus dias, na decadente autoconfiança, que se expressa na ilusão da sua invencibilidade. “Não haverá filho de mulher que o derrote”, disseram-lhe as BRUXAS... “e nem isso acontecerá antes que a floresta alcance ao seu castelo!” Genialidade de SHAKESPEARE, ou mera coincidência, o fato é que o destino do tirano revela e cumpre, em todos os seus detalhes, uma terceira e definitiva regressão do político, agora ao nível da própria matriz biológica [e, por que não, ecológica] da existência humana. Onde a Justiça humana não socorre os degredados do poder, uma outra JUSTIÇA, que não é geração da própria humanidade; mas que é tão consentânea ao seu destino, como a imortalidade da PHÊNIX, que renasce das cinzas da sua matéria sem vida - e tão exuberante como a força da natureza que alimenta a vida de uma floresta - haverá de cumprir os seus desígnios! MACBETH, o contra-herói dessa tragédia, refugia-se inutilmente em seu castelo, contra a revolta da própria vida, cuja destruição promoveu no seu entorno; pelo que, se vai submetendo inconscientemente, no isolamento da sua condição, ao corte dos laços do poder e do destino, que haverá de exaurir a sua força. A revolução, que se estrutura na Inglaterra, representa, na intuição genial da SHAKESPEARE, uma desforra da natureza contra quem a violentou. MACDUFF, que assume o comando, é filho retirado às entranhas de uma mulher morta; e a revolução, cujas tropas assomam às muralhas do castelo de MACBETH, veste a camuflagem dos ramos cortados à floresta, que, certamente, o domínio ilusionário de MACBETH procura manter afastada do seu castelo. HUMANIDADE, que se renova desde a própria morte da sua natureza, e NATUREZA que se rebela contra a repressão da sua FORÇA, unem seus esforços contra o aleijão moral desse pequeno déspota... que nem sequer percebe os sinais da sua condenação. O delírio terminal de MACBETH, cuja força ainda lhe permite cobrar a vida de um filho a SIWARD, o vencedor de Dunsinane, antecipa, pelo gênio de SHAKESPEARE, a encenação de um drama muito contemporâneo. Julgando-se indestrutível, o protagonista da grande tragédia da corrupção do poder, no derradeiro estágio do seu comportamento

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regressivo, investe contra a NATUREZA que invade o seu castelo. É a figuração profética do ecocídio, o crime da destruição do seu meio-ambiente pelo ser humano. Mas, ao fim dessa derradeira invectiva, reduzido apenas à impunidade que ainda lhe sustenta a vida, haveria o tirano de conhecer o seu destino e desencadear, pela sua recusa de a ele render-se, a provocação tácita da própria morte. É o que se configura no seu enfrentamento com MACDUFF, que lhe revelou não ter nascido das entranhas de uma mulher viva, tornando-se, por isso mesmo, capaz de oferecer-lhe em combate o Juízo e o Castigo. A ordália guerreira de MACBETH, que então joga contra MACDUFF o desafio das maldições, que deixou conduzir o seu próprio destino, decide pela vitória da VIDA, que assim renasce das energias liberadas pela MORTE. No seu limite, como manifestação no plano da consciência coletiva e em escala massiva, contempla-se, aqui, o conceito do genocídio, como assassinato dos membros da mesma espécie, que diferem por raça, cor, etnia, gênero, religião, enfim, por quaisquer discrimes reais ou imaginários, que os tornem alvos do auto-amor desenfreado de uma personalidade narcisista, e/ou do ressentimento culposo de uma personalidade depressiva. 7.4

Atualidade de Shakespeare: uma postura diante do poder.21

O sentido trágico da obra shakespeariana é, antes de qualquer coisa, a preparação da cena, para o desenrolar de uma reflexão contemporânea, diante das regressões do poder, que nos alerta sobre como isso acontece e nos adverte das suas implicações morais. Com MENDEL, a sociopsicanálise estabelece a ponte necessária para o estudo da originação e das implicações sociais das regressões da personalidade política, que se manifestam como: “parricídio/regicídio” [ou tiranicídio], “fratricídio-filicídio”, “genocídio e epistemicídio”, “suicídio e ecocídio”. De fato, a ocultação do político nas relações cotidianas, manipuladas pelo imediatismo das opções e o descompromisso das decisões, nutrem precipuamente esses três momentos regressivos: no abuso e degradação da autoridade que se expressa nos autoritarismos de vária índole; na conspiração da mediocridade, que o complementa no enquadramento repressivo das burocracias; e, assim, também, no sentimento de impotência e no ressentimento das massas alienadas, que Nietzsche proclamou em definitivo. Tem origem, nesses processos regressivos, como privações de uma equilibrada apropriação de poder pela cidadania, o tão propalado desprestígio da política em nosso meio. No seu limite, a ocultação do político alimenta os movimentos pendulares de opinião que, oscilando da frustração/apatia para a agressão/ativismo, constituem maiorias silenciosas e passivas e, paradoxalmente, explodem na catarse de maiorias plebiscitárias ou punitivas. Estes conceitos denotam o campo atitudinal dos descamisados rebentos de uma sociedade autoritária. Aqui, a percepção drástica de ineficácia política, que alimenta o individualismo conformista do povo e a clandestinidade da sociedade em relação ao Estado, combina-se com a irrupção sazonal dos movimentos populares em nossa vida política, marchando pelas Diretas Já, ou mostrando as Caras Pintadas no impeachment do Presidente COLLOR. No desenrolar das suas conseqüências, a ocultação do político nutre e explica práticas regressivas de governo, e, na sua esteira, a degradação moral e o sentimento de 21

Versão revista e significativamente amplificada do Capítulo 4 de: AYDOS, Eduardo Dutra, Democracia Plebiscitária: Utopia e Simulacro da Reforma Política no Brasil, co-edição Ed.UFRGS/LaSalle, Porto Alegre, 1995.

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onipotência dos prestidigitadores da desesperança a que dá origem. Sustenta, mesmo, uma dinâmica de autodestruição, que deturpa as práticas institucionais, inviabiliza a organização de base da sociedade e subsume a lógica de uns e de outros - agressores e agredidos, na inexorabilidade da crise que vivemos. A dimensão de análise, que aqui afloramos, encontra na literatura universal os seus clichês, para os três níveis de regressão do político, que este século teve a ingrata oportunidade de ver reunidos na trajetória política e pessoal de Adolff HITLER. A análise sistemática desses processos obedece, consoante essa abordagem, um crescendo de irracionalidade e violência que se desloca: a) das relações assimétricas de autoridade (filho x pai, líder x massa); b) para aquelas que envolvem relações de maior igualdade (irmão x irmão, correligionário x correligionário, povo x povo); c) para chegar finalmente ao estágio do conflito que demarca a perda da própria identidade (o mecanismo perverso da auto-agressão). Na ausência de uma concepção integrada e de uma visão sensata, que respeite a irredutibilidade dos fins e a dignidade dos meios, na elaboração de uma política democrática, o afrontamento dos desafios propostos à formação da personalidade e à apropriação social do poder, em cada um destes níveis, tende a cristalizar-se em atitudes que retroagem sobre as suas próprias conquistas, reiterando os mesmos padrões indesejáveis de comportamento que se propunham combater. Os marcos evolutivos recentes da teoria política - e sua imbricação no desencadear dos acontecimentos históricos - testemunham à saciedade os padrões aqui apontados para essa dinâmica regressiva, que se caracteriza pela ocultação da esfera do político. Foi assim, que o liberalismo nascente hipostasiou o Contrato Social no absolutismo das razões de Estado, sacralizando-o no construto kelseniano. No extremado formalismo dessa abordagem, o Contrato na forma de Constituição, e tendo por critério de validade a sua efetividade, independente de origem ou conteúdo, se cristaliza numa concepção tutelar do Estado. Em reação, a teoria marxista e o neoliberalismo, figurativamente, assassinaram o conceito de Estado, na tentativa de dessacralizá-lo, reeditando-o, no entanto, da forma mais degradada e odiosa, nos regimes autoritários de esquerda e direita, pela ausência de uma compreensão clara da liberdade, como implicação estratégica da política democrática. Foi assim, também, que os revolucionários de 14 de julho de 1789 e do 3 de outubro de 1917, muito concretamente, executaram os usurpadores da soberania popular, na tentativa de quebrar o monopólio do poder político, restaurando no entanto a tirania, pela ausência de uma estratégia da liberdade e do respectivo compromisso ético e social, deixando irresoluta nestes episódios a questão democrática subjacente. Numa outra perspectiva, a proposição da ditadura do proletariado, no campo teórico, e a tirania filicida do stalinismo, na prática, correspondem aos dois primeiros estágios de uma dinâmica regressiva de ocultação do político, que desencadeou os vetores da contemporânea crise de identidade da sociedade soviética. A inexorabilidade desses arquétipos, como condições gerais da personalidade, que devem ser equacionadas, no plano psíquico e socio-político, é o grande tema da figuração bíblica e da tragédia grega. O amor filial reprimido (parricídio/filicídio) de CAIM armou a sua mão assassina, e o fratricídio o levou ao desterro do Éden. JUDAS, traindo o MESTRE - e assim cometendo parricídio - inicia a saga de uma regressão que o levará ao suicídio. O crime de ÉDIPO precisa ser resolvido pela abdicação e exílio, no afrontamento das Fúrias da sua própria consciência culpada. Em SHAKESPEARE, o tema da regressão psicossocial, figura-se nos arquétipos da sua dramaturgia política. O assassinato de DUNCAN, o Rei, por instigação de LADY MACBETH, inicia [numa regressão de primeiro grau marcada pela simbologia do regicí-

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dio] a trajetória criminosa de MACBETH, que o fará voltar-se contra BANQUO, seu antigo companheiro de armas [numa regressão de segundo grau, como fratricídio], e que o levará, afinal, ao isolamento e ao delírio, que desencadeia a sua autodestruição [como uma regressão de terceiro grau redundando em suicídio]. Todos esses exemplos e figurações querem, simplesmente, plasmar a autoconsciência da humanidade, que a prepotência de uma ambição, destituída de senso crítico e de limites éticos, condena seus infelizes e sequiosos postulantes, à encenação trágica desse grande arquétipo da corrupção do poder, que SHAKESPEARE imortalizou na interação fatídica das personalidades regressivas do casal macbethiano.22 A política democrática, como estratégia da liberdade, vem a ser, fundamentalmente, o exorcismo, pelo auto-esclarecimento social, de semelhantes padrões de comportamento regressivo, que resultam, no entanto, protegidos e reforçados pela estrutura e funcionamento do Estado contemporâneo, em relações originárias de sentido, que compete à análise política esclarecer. No seu confronto, o que a política democrática deverá propor, é a substituição do elemento subjetivo da frustração/agressão - cristalizado nas relações institucionais, que mascaram uma efetiva extração de mais-valia de poder - pelas condiçõe efetivas da autorealização de uma soberania-partilhada exercitada como ato emancipatório da cidadania na engenharia dos consensos que conformarão uma sociedade desejada. Quando então, como postula Gérard MENDEL: “a partir del momento en que la dimensión de lo político se establezca solidamente, el Estado se verá obligado a deshacer-se de sus poderes. La esfera de lo político y un Estado poderoso no son compatibles”. [1973, vol.1:.55] Na conclusão destas reflexões, o conteúdo que pretendo transmitir é de uma profunda certeza - que se declina como Esperança... Porque as BRUXAS que vaticinaram a glória passageira do truculento MACBETH, também sinalizaram a imortalidade do valente BANQUO, na aparição dos oito23 reis, seguidos do Espírito triunfante de BANQUO. Profetizaram que, o leal companheiro de MACBETH, mesmo assassinado, se projetaria no tempo, pelo caminho reto e fecundo da originação de uma nova estirpe de reis... É, por conseqüência, em memória dos que tombaram nessa luta e em testemunho da vida que eles haverão de renascer, na expectativa de assim tocar a generosidade dos meus alunos... - extensivamente dos meus leitores - para juntos contribuirmos nessa humilde e necessária tarefa de trabalhar a consciência social e o perfil moral do antiMaKBeTh, na geração de uma nova estirpe política, que eu escrevo esse texto.

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Foi exatamente a desconsideração dessa advertência que contaminou de um conteúdo perverso, numa efetiva reprodução do SÍNDROME DE MaKBeTH, a experiência ainda recente do governo imperial do PDT no Rio Grande do Sul [Administração Collares - 1991-1994]; essa mesma que, não fora a tragicidade das suas conseqüências, teria lugar e expressão, apenas, numa antologia do anedotário político local. Os elementos fáticos e analíticos, que justificam essa afirmação encontram-se amplamente descritos e analisados em “Pequenos MaKBeTh” - ANEXO I. 23 Importante ressaltar aqui a simbologia do número oito, que designa o ARCANO VIII do Tarô, cujo tema é a JUSTIÇA, a LEI e o KARMA.

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CRISE DA CIVILIZAÇÃO: A SOCIEDADE DEMOCRÁTICA E OS PROSPECTOS DO CRIME ORGANIZADO

A destruição das torres do World Trade Center e o golpe desferido sobre o Pentágono em 11 de setembro de 2001, relevam a importância do estudo sobre as interfaces da política com a psicopatologia social. Clarificam-se, nestes episódios, as duas grandes dimensões contemporâneas, articuladas e interdependentes, desta problemática: as deficiências estruturais do desenvolvimento global, que projetam a crise da civilização democrática; e os obstáculos sóciopolíticos à política democrática, que se consubstanciam em desafio à segurança global na saga do crime organizado. A crise da civilização democrática, como a visualizo, refoge à idéia de um conflito “de civilizações”, que parece emergir na oposição, tão superficial quanto maniqueísta, de blocos [Ocidente e Oriente] ou culturas [judeu-cristã ou islâmica]. Embora, seja forçoso reconhecer que este é, provavelmente, o “desideratum” da “causa” terrorista – que assim resta tão genérica, quanto inegociável. Recuso, portanto, a redução estruturalista do conflito civilizatório à oposição de modelos, ou quaisquer outras formas de conceber esta crise, como oposição de totalidades práticas ou teóricas, estanques, assépticas e alternativas. Isso implicaria em cair na própria armadilha do terrorismo e condenar-nos à ampliação da violência até patamares inimagináveis de desumanidade. Método, eventualmente aplicável ao estudo de comunidades isoladas e a padrões endógenos de comportamento social, a tentativa estruturalista de reduzir toda explicação das diferenças e, afinal, das vantagens comparativas das comunidades humanas, a configurações de sentido, no seu limite, antagônicas redunda sempre em etnocentrismo e instrumentaliza a dominação de umas sobre outras. Ademais, carece de sentido falar-se em conflito “de civilizações” nesta era planetária, marcada pelo fenômeno da globalização. Muito mais significativo será identificarem-se as linhas de conflito, que permeiam o cadinho cultural da civilização contemporânea, rastreando as suas vertentes prático-teóricas e projetando as suas conseqüências teórico-poiéticas.24 A idéia de uma crise da civilização democrática, como a pretendo trabalhar, remete aos processos internos da nossa sociedade global, que implicam em erosão dos pilares do conhecimento e do entendimento sobre os quais se tem desenvolvido, e que podem ser representados na divisão estrutural do Saber como RELIGIÃO, CIÊNCIA, FILOSOFIA e ARTE – isso que, de alguma forma, se escancara à consciência na visão dantesca do genocídio novaiorquino. Não pretendo aqui aprofundar a sua investigação, mas tão somente sinalizar algumas direções desta tarefa à frente. 8.1

O SOLAPAMENTO DA TRADIÇÃO DAS RELIGIÕES PROFUNDAS.

No campo da RELIGIÃO, o que está posto em questão, pelo fanatismo que inspira os ataques suicidas, em operações de guerra total, movidos pelo terrorismo contemporâneo, são os próprios fundamentos – no sentido mais pleno e arcano deste conceito – e a eventual convergência do Saber Religioso, como se expressa na vertente profunda de todos os credos.

Para uma análise mais detalhada dos conceitos de “praxis”, “theoria” e “poiésis”, remeto o leitor à “Planície de Alétheia”. No momento basta-nos a noção intuitiva que a dialética da práxis e da theoria remete aos fundamentos de uma determinada configuração de sentido, enquanto a dialética de “théoria” e “poiésis” remetem ao seu potencial reconstrutivo do sentido da vida. 24

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O próprio conceito de fundamentalismo, que aceito por convenção, para designar o processo da politização acrítica dos preceitos religiosos-ideológicos, que insipiram o maniqueísmo dos movimentos sociais contemporâneos, é literalmente inadequado para representar a natureza – superficial, descontextualizada e, sobretudo, inculta – desta nova exegese, sectária e iconoclasta, que vem armando o braço nefando da intolerância na exploração das fragilidades e dos vícios da nossa civilização. Não há axioma mais universal, evidenciado pelo entendimento e partilhado pelo conhecimento de todas as religiões do mundo, senão aquele que parte da distinção entre Deus e os homens. Deus é O Infinito, O Onisciente e O Onipotente, Nele reside a Verdade e o Bem. Nós homens, somos finitos, limitados no nosso conhecimento e na nossa capacidade de realização, pelas contingências da própria matéria que nos reveste. Por isso que, também, alcançamos, apenas, uma compreensão particular da Verdade e somos capazes de expressar, apenas, uma dimensão relativa do Bem. Toda Revelação Divina, mesmo aquela contida nos livros sagrados de todas as religiões profundas, por isso mesmo, alcança-nos, apenas, uma visão particular do Saber – sujeita à contingência humana dos respectivos profetas e intérpretes, até mesmo e radicalmente, limitada pela insuficiência da própria estrutura da linguagem na tradução do Verbo Absoluto. Disso que deriva, também, e por conseqüência lógica da Razão, que reflete o incomensurável da Presença de Deus na humanidade, a humildade diante do Saber. Este postulado foi magistralmente consignado na obra de Reinhold NIEBUHR [Os Filhos da Luz e os Filhos da Treva]25: “Existe uma solução religiosa para o problema da diversidade religiosa. Essa solução torna a diversidade religiosa e cultural possível dentro das pressuposições de uma sociedade livre, sem destruir a profundidade religiosa da cultura. A solução requer uma forma muito avançada de prática religiosa. Exige que cada religião ou cada versão de uma única fé se empenhe em proclamar suas conclusões mais elevadas, embora conservando um reconhecimento humilde e contrito do fato de que todas as expressões da fé religiosa estão sujeitas à contingência e à relatividade históricas. Tal reconhecimento cria um espírito de tolerância e torna qualquer movimento religioso ou cultural hesitante em exigir validade oficial para sua forma de religião ou monopólio oficial para seu culto.” Essa concepção de mundo encontra a sua expressão na civilização democrática, cuja ruptura com o monismo epistemológico da teocracia medieval representa, portanto, uma forma avançada de se postular uma solução religiosa para a diversidade dos credos, preservando-lhes, ao mesmo tempo, a respectiva fé, como um atributo inalienável da condição humana. É exatamente este alicerce, de uma secularidade parturiente do próprio Saber religioso, que ora está em cheque, pelo recrudescimento e empoderamento do dogmatismo político-ideológico-religioso, como instrumento de articulação e sustentação de um velho e surrado arquétipo do poder: a tirania. Sinônimo de auto-suficiência na interpretação do mundo e de submissão da razão às suas manifestações parcelares, absolutizando-as e originando nisso antagonismos insuperáveis na convivência entre culturas diferenciadas, ressalta a sua modalidade mais aparente, na conformação das ditaduras fundamentalistas contemporâneas, algumas das quais, hospedeiras confessas do terrorismo internacional.

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NIEBUHR, Reinhold: Os Filhos da Luz e os Filhos das Trevas. Rio de Janeiro: Record, 1965.

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8.2

OS RISCOS GLOBAIS DA TECNOLOGIA E A VULNERABILIDADE DA VIDA COTIDIANA

No campo da CIÊNCIA, o que está posto em cheque, nas dimensões da catástrofe americana, e mais ainda nas ameaças emergentes do terrorismo químico, biológico e nuclear que relevam neste contexto, é a vulnerabilidade da própria espécie à sua razão instrumental, na forma e conteúdo do conhecimento que temos produzido e disseminado. Mais ainda ressalta, a vulnerabilidade da sociedade de massas a recursos tecnológicos de destruição, os quais não se elencam nos arsenais da guerra convencional ou nuclear. De um lado, reiteram-se as ameaças produzidas pela manipulação ideológica e midiática das consciências, produzindo – no seu limite – o empacotamento do ódio na própria carne e osso dos fanáticos-suicidas, que se explodiram nos alvos americanos. Tema que, entretanto, já pertence ao repertório clássico dos estudos políticos, pelo menos, desde os estudos clássicos sobre a guerra da propaganda no III Reich. Mas, de outro lado, denunciando o aspecto “inovador” da agressão terrorista do 11 de Setembro, ressalta a exposição da sociedade urbana, com seu padrão de ocupação intensiva do espaço, ao potencial destrutivo do próprio aparato civil que viabiliza a sua existência cotidiana. O uso de aeronaves de carreira, como se foram artefatos militares, é um paradigma do risco – em dimensões de catástrofe – representado pela sabotagem dos processos tecnológicos normais – dos serviços e da indústria que asseguram a nossa convivência regulada. Não conseguimos ainda avançar metas significativas de desarmamento, para dar-nos conta, que os meios tecnológicos mais ingênuos da nossa interação civilizada, podem ser corrompidos em instrumentos de insana e massiva destruição. Mas, nem isso, completa uma análise, ainda superficial, do desafio que nos está posto, como se foram cargas aleatórias de efeito implosivo, neste pilar do processo civilizatório, que é o desenvolvimento da ciência. Talvez a maior ameaça recaia sobre nós mesmos, quando se impõe considerar que os padrões de vulnerabilidade antes considerados, tornam-se irreversíveis e crescem exponencialmente, nas projeções mais conservadoras da bomba populacional que estamos jogando sobre as gerações futuras. Somos mais de 6 bilhões de pessoas hoje, e estamos crescendo no estado atual desta arte, impulsionada pelos avanços da medicina e da civilização, cerca de 2 bilhões de almas a cada quarto de século. Fixando o horizonte de análise no curto prazo do ano 2.025, quando, na ausência de algum cataclisma natural ou social, seremos cerca de 8 bilhões de almas. Não quero entrar em especulações, sobre as expectativas de flexão ou estabilização dessa curva de crescimento populacional, para além deste horizonte próximo – até porque, para além deste patamar, no médio e longo prazo, essa tendência poderá ser significativamente afetada por fatores tecnológicos ainda desçonhecidos. E, nem pretendo deter-me em controvérsias, sobre a possibilidade tecnológica, desta humanidade produzir e distribuir os meios de subsistência necessários à vida digna de todos os seus filhos. Parto, ingênua e otimisticamente, deste suposto. Mas não posso desconhecer, como tragédia, que essas expectativas de auto-contenção da reprodução irresponsável e da construção do bem estar das gerações futuras, não encontram sustentação empírica, no quadro das desigualdades e nos bolsões de pobreza absoluta que o mundo contemporâneo nos apresenta. A modernidade iluminista fecha o seu ciclo sem ter cumprido sua promessa essencial, de reverter o conhecimento avançado sobre a natureza e a própria sociedade, nos meios de produção da felicidade para os habitantes do planeta. Os fatos pungentes, agora, nos confrontam drasticamente os riscos globais de uma civilização que concentrou conhecimento, tecnologia e riqueza, sinalizando a miséria presente da nossa condição humana. Sem falar (mas sem desconhecer...) nos obstáculos políticos e sociais a serem defrontados, torna-se cada vez mais inviável a dispersão des-

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se desenvolvimento, e do contingente populacional que dele se beneficia, reconstituindose padrões não intensivos de ocupação do espaço, isso que acarretaria, entre outras dificuldades, o risco de um total desequilíbrio e destruição dos eco-sistemas remanescentes no planeta. E, ao mesmo tempo, as externalidades dessa concentração de poder humano sobre a Terra, crescem exponencialmente. Obvia-se agora, como a outra face da saga predatória da espécie sapiens, a vulnerabilidade da colméia humana à auto-agressão e autodestruição, que encontram no tamanho, na complexidade, mas, principalmente, na fragilidade do World Trade Center e do cenário urbano destroçado de Nova Iorque, a sua representação simbólica mais completa. 8.3

O ESGOTAMENTO DOS PARADIGMAS NA SAGRAÇÃO DA IRRESPONSABILIDADE

No campo da FILOSOFIA, o que se defronta, numa primeira aproximação, e já vem sendo sinalizado pelos principais analistas da transição pós-moderna: é a crise dos paradigmas teóricos que marcaram a trajetória da modernidade no antagonismo irresolvido entre indivíduo e sociedade, liberdade e igualdade, Estado e Mercado. A insuficiência dos velhos estereótipos da compreensão do mundo, que se polarizam em torno destas consignas, é flagrante na sua convergência para a auto-destruição da espécie – ou pelo menos de uma parte substancial dela – ao reduzir a capacidade humana de interpretação e afrontamento da realidade histórica, à lógica da sua anti-sociabilidade: à lei do mais forte, seja enquando indivíduo ou empresa, seja enquanto classe social ou partido. Não temos sido suficientemente capazes de perceber a falsidade deste dilema, na sua equifinalidade que nos conduz ao abismo. Os paradigmas em conflito na modernidade – da competição selvagem, que nos regressa ao arquétipo do homem predador, no estado de natureza hobbesiano; e da luta de classes, que nos projeta aos poderes leviatânicos de uma dominação aparelhada – são vinhos da mesma pipa. São componentes concentrados de uma mesma matriz ideológica, corporativa e totalitária, que alimenta, na sua dinâmica própria, antagonista e interdependente, a diferença e a semelhança dos extremos, da direita fascista e da esquerda comunista. Numa segunda aproximação, o que releva no episódio de 11 de Setembro é a sagração da irresponsabilidade em face das prerrogativas da cidadania e dos princípios éticos universais, que abala os alicerces civilizatórios da idéia Republicana, de uma violência inaudita e generalizada. Sua liturgia é a da impunidade, que se pretende justificar pelos argumentos, factualmente irrespondíveis da frustração da vida e da corrupção do mundo, conformando, não obstante, o inadmissível na expressão ideológica e maniqueísta do fanatismo contemporâneo. No seu esforço de auto-justificação, os agentes desta nova ortodoxia, não hesitam sequer diante desse recurso limite de um proselitismo extremo, que é o próprio suicídio dos agentes diretamente envolvidos nos crimes contra a Humanidade, na saga do seu irracionalismo. Isso que, em última instância e muito convenientemente à auto-confirmação da consciência perversa, os subtrai à crítica e ao Juízo pelos seus atos na comunidade das Nações. No debate acadêmico e intelectual vai mais longe, ainda, a justificação da violência: contamina de um escapismo acrítico a visão conspiratorial do mundo emergente nos escombros do desastre novaiorquino. Na metafísica do terror que a consubstancia, o bem e o mal existem - conformam um ser-no-mundo, mas de forma absolutamente diferenciada, originária e irredutível: de um lado os justos, de outro os infiéis - de um lado as falanges angélicas, de outro as hostes do demônio. De um lado, as limitações e a contingência, que nos constrangem no mundo da vida - e, assim, a opressão e a miséria; de outro lado, a ortodoxia do pensamento, que opera a negação da nossa própria finitude, e nos permite, assim, superá-la de forma tão inexorável quanto imponderável, ao conceber-nos como

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instrumentos da Consciência Universal, da Verdade, do Bem, em última instância, como instrumentos de Deus, da Sua Onisciência e da Sua Onipotência. Processa-se, neste desvairio iconoclasta da própria condição humana, o mecanismo perverso da transferência, de todos os atributos de Deus à absoluta justificação dos nossos atos, como se deuses fôssemos, e assim destinados a exercer o Poder e desfrutar a Glória, nesta passagem terrena, ainda que no seu limite extremo, como capacidade de destruição e de autodestruição. Na teoria do conhecimento, por outro lado, os reflexos desta metafísica totalitária, promovem o reducionismo do significado: da política à sociologia; da sociologia à economia; da economia à dialética - das forças da natureza, do bem e do mal. Conforma-se neste processo, o surgimento da militância terrorista contemporânea, que reflete, radicalmente, como opção de direita ou de esquerda, a liberdade possível no conceito ontológico dessa divisão brutal do mundo entre as forças da mudança ou da estagnação, da revolução ou da reação – ou como se costuma dizer, mais proximamente, entre a ótica dos excluídos ou dos incluídos. Nesta dicotomia, obviamente, não se reserva lugar para a ingenuidade ou para a inocência: somos todos culpados de carregar, como um estigma indefectível, a condição do nosso pertencimento a um dos lados em conflito - não importa se crianças ou adultos, civis ou militares - nosso ser-no-mundo existencializa a guerra destes pólos antagônicos e nos tornamos os alvos elegíveis das suas operações estratégicas. 8.4

A BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO COLETIVO

No campo da ARTE, por sua vez, a crise da civilização encontra a sua expressão mais flagrante no modo, como antecipamos a tragédia do World Trade Center, projetada nas cenas de violência, que povoam nosso ambiente de vida. Não pretendo, aqui, adotar uma postura normativista da arte, exigindo-lhe cumprir funções instrumentais orientadas a valores ou desígnios pedagógicos. Não obstante, será necessário reconhecer que a crise da civilização, obviando as deficiências estruturais que afetam os Saberes religioso, científico e tecnológico, realiza-se de forma abstrata, na construção do imaginário coletivo, que a ARTE nos permite aceder. A violência banalizada nos pacotes da indústria cinematográfica, no desafio sádico dos jogos de estratégia, no grotesco dos programas de auditório, nos detalhes sinistros da tragédia explorada como notícia e, last but not least, na mentira institucionalizada da propaganda comercial, institucional e política, ganha assim foros de uma projeção auto-confirmatória e mórbida da consciência, nos fatos que a realidade da vida nos confronta. Quando, afinal, nos comove o acontecimento real do genocídio novaiorquino, já estamos preparados para absorve-lo e até mesmo para, eventualmente, absolve-lo. Conforma-se nisso, uma expressão cínica da realidade que, de alguma forma, instalou-se em nosso imaginário coletivo. O que a investigação desse aspecto da crise civilizatória nos poderá dizer, é que existem formas e modos da expressão do real, através das quais, a condição transcendente, que opera o potencial criativo e dignificante da produção artística, e assim a fruição estética da sua universalidade, pode resultar corrompida, na mera justificação da imanência e do particularismo. Uma possibilidade, aliás, que se estende a todo discurso, que opera o campo semântico da comunicação humana, onde, muitas vezes, uma condenação formal do terrorismo ou até mesmo um manifesto em favor da Paz, podem resultar envolucrados na conseqüência prática da sua própria e concreta negação. Esclarecer as circunstâncias e os mecanismos, através dos quais se opera essa perversão do sentido na comunicação, de alguma forma nos introduz a segunda grande dimensão das relações entre a política e a patologia social, que será objeto de uma deta-

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lhada análise ao longo deste texto: a identificação dos obstáculos socio-políticos que operam ao nível das funções sígnicas do agir e do fazer comunicativos. Também aqui, é fulcral a referência ao episódio de 11 de setembro, onde a expressão manifesta do TERRORISMO contemporâneo desvela sua motivação latente, nos fundamentos do MANIQUEÍSMO POLÍTICO-IDEOLÓGICO-RELIGIOSO, e sua articulação logística ao complexo industrial-comercial do DROGADÍCIO. Conformam-se, destarte, a par da crise, que erode os pilares estruturais da civilização global, as três grandes dimensões da corrupção da política democrática, representada pelos desafios que nos confronta contemporaneamente a saga do CRIME ORGANIZADO.

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CONCLUSÃO

O esforço teórico empreendido neste texto sugere uma conclusão – demasiado singela, talvez, face à complexidade dos temas aqui submetidos à reflexão – mas crucial no enfrentamento da crise da civilização e no repto à política democrática, que assomam à ordem do dia. São de duas ordens os desafios que nos confrontam. Há déficits estruturais gritantes que precisam ser corrigidos nas próprias bases em que se estrutura a civilização contemporânea, mas existem também questões simbólicas a serem enfrentadas, com especificidade e conseqüência, que interagem na produção desta crise, como um repto à política democrática e, assim, à cidadania que a consubstancia. Não se pode reduzir uma ordem de problemas à outra, e obviamente torna-se inviável compor uma solução genérica e unívoca para a complexidade das suas interações dinâmicas. Mas, sobretudo, não se pode ficar a margem do seu enfrentamento e urge reverter o quadro das derrotas que nos têm imposto. É preciso ter-se clareza que, no enfrentamento da crise global que ameaça os eco-sistemas da vida planetária, nossa capacidade de resposta tem ficado aquém das expectativas que nos permitam encarar o futuro com otimismo. E, de outro lado, na guerra suja do crime organizado, que movimenta recursos fantásticos de dinheiro e poder, vimos amargando pesadas derrotas e perdemos terreno sistematicamente para o tráfico e a desagregação social produzida pela violência. Por tudo que está posto neste estudo, os acontecimentos de Washington e Nova Iorque, e a guerra no Afeganistão, têm raízes no cotidiano da vida que nos cerca e nos envolvem a todos. Nutrem sua virulência nas deficiências estruturais e nas patologias da personalidade que cultivamos em nosso entorno. E reforçam-se da insuficiência das respostas articuladas, na inconsistência das nossas próprias convicções democráticas. Por isso mesmo, se trata de um conflito de caráter global, e que tem por conseqüência a mobilização das pessoas e as nações, dentro e fora dos teatros de guerra convencional. Nos seus desdobramentos, até mesmo como condição de sobrevivência pessoal e preservação dos valores da civilização que prezamos, haverá que se redefinirem padrões de convivência regrada e se articular a defesa intransigente da esfera pública democrática, desde os círculos mais íntimos até os mais distantes, no enfrentamento das patologias do poder que esta análise permitiu identificar. Como declarou o personagem central no final de Traffic, esta é uma luta que envolve muito mais do que Governos e Estados: exige instituições, exige comunidades, exige famílias, exige cidadãos e nos cobra humanidade em retorno. Mais que isso, é um conflito que, tanto quanto me alcança o entendimento e a convicção, já se encontra deflagrado e perante o qual não existe neutralidade possível.

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