SINHÁ PRETA: AFRICANA DE \"SANGUE NO OLHO\" - um estudo das relações sociais em Cachoeira Bahia

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Miria Alves da Silva1 Universidade Federal da Bahia /FACOM Rua Simplício da Silva, n.29-A, Pernambués, Salvador-Ba. 41100-530

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SINHÁ PRETA: AFRICANA DE “SANGUE NO OLHO” UM

ESTUDO

DAS

RELAÇÕES

SOCIAIS EM CACHOEIRA BAHIA

Resumo Este artigo analisa aspectos sobre a quebra de paradigmas nas relações sociais de uma africana na cidade de Cachoeira na Bahia. Ser mulher, viúva e religiosa eram características suficientes para ser exigido, no século XIX, o cumprimento de determinadas regras comportamentais. Levar vida de resignação e recato era exigências para essas mulheres serem respeitadas. Contrapor-se aos padrões e manter-se respeitável demandava habilidade e inteligência, como as encontradas na africana, Maria da Motta. Estudiosos sobre os africanos em Cachoeira descrevem Maria da Motta como pertencente à elite negra da cidade e uma das fundadoras da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. As Irmandades foram organizações utilizadas também como instrumento de ascensão de africanos e crioulos na sociedade economicamente privilegiada do Recôncavo Baiano. O fato de ser africana e sinhá - forma de tratamento usado pelos escravos para sua dona, e por outras pessoas em sinal de respeito - no interior da Província, já se constituíam diferencial nas relações interpessoais com outros africanos e demais habitantes da cidade. Quebrar padrões em suas relações sociais com pessoas de poder econômico, político e jurídico, fez dela uma figura a perfilar. A síntese do relato biográfico de Sinhá Maria da Motta será “tecido” através de análise do Inventário de partilha da herança deixada em Testamento por seu marido, Belchior Rodrigues de Moura, com recorte temporal para o período do documento em questão (1855-1869). Segundo BRANDÃO (2013), o inventário era um documento em que as mulheres, viúvas, naturalmente ofuscadas no sistema patriarcal, protagonizavam sua historia de vida, a pesar que “por longos anos, vão se identificar, comercial e socialmente, apenas como a „viúva de fulano‟”. Como Testamenteiras e herdeiras, elas tinham que tomar decisões burocráticas que, ao longo de suas vidas estavam a cargo do marido; como o sustento da casa, dos filhos e no trato com os escravos. Muitas vezes elas não eram indicadas no Inventário como primeira Testamenteira, como acontecera com nossa personagem Maria da Motta. Seu Marido, Belchior Rodrigues de Moura colocou o amigo Manoel Joaquim Ricardo como primeiro Testamenteiro e Tutor de seus filhos, e a esposa Maria da Motta como segunda Testamenteira. Para ter direito a esse protagonismo Maria da Motta descumpriu regras legais, além de fazer com que o primeiro Testamenteiro não aceitasse a obrigação, sendo um dos primeiros paradigmas por ela quebrado. 1

Bacharelanda do Curso de Comunicação Social-Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicação, 2016. Artigo desenvolvido a partir do projeto de pesquisa para elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Comunicação Social - Jornalismo, TCC “Biografia de Maria da Motta”.

1 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

O Inventário revela que a relação de Maria da Motta com seus escravos não era das melhores, pois, perdera uma escrava para a justiça sob a alegação de maus tratos. Esse comportamento era natural entre os senhores de escravos, porém, contrapunha com os ideais da instituição a qual Maria da Motta fora uma das fundadoras, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, que tinha a compra de alforria de escravizados como um dos seus objetivos. O presente artigo será subdividido de forma a contextualizar geograficamente a personagem, e uma breve análise através das teorias sociológicas das elites.

Palavra chave; Relato biográfico, Relações interétnicas, Elite negra, Século XIX.

2 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

“O vapor de Cachoeira não navega mais no mar”

A Heróica Cidade de Cachoeira (Título dado pelo Presidente da Província da Bahia Francisco de Souza Paraíso, através da Lei n. 43 de 13 de Março de 1837) que elevou a Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira, à categoria de “Heróica” Cidade da Cachoeira, situada às margens do rio Paraguaçu. No século XIX, foi ponto de ligação entre Salvador e o interior da Província. O transporte marítimo de pessoas e cargas era feito por saveiros e navios a vapor, sendo a primeira linha de transporte regular de navio vapor no País. Pelas águas tranquilas do Paraguaçu navegavam os vapores: Santa Cruz, Paraná, Cotinguibá, D. Pedro II, Bonfim entre outros. Pertencentes à Companhia Bahiana de Navegação, os navios a vapor percorreram o mar entre Salvador e Cachoeira de 1840a 1885 2, sendo Catharina Paraguassu, o mais conhecido, e um dos últimos que funcionaram até o final do século XIX. Com seu clima de temperaturas amenas durante o dia e clima frio durante a noite, a cidade de Cachoeira foi, no século XVIII, um dos maiores produtores de cana-de-açúcar do Recôncavo. Os casarões, sobrados coloniais, ruas calçadas de pedras, e a suntuosidade das igrejas refletiam a nobreza dos Senhores de Engenho que residiam na cidade. Eram tempos áureos, e Cachoeira despontava como principal centro de poder econômico da Bahia. Os Barões dos engenhos de açúcar, após crise que atingiu a Europa, principal compradora da produção açucareira, se voltaram para o cultivo do fumo. Era o início do chamado “Império fumageiro”. O século XIX foi o período de formação da indústria fumageira. As folhas de fumo usadas como moeda para compra de escravos trazidos da África assumem o papel de produto principal da manufatura do tabaco. Com o fim do tráfico negreiro, marcado pelo rigor da Lei 581 de 1850, conhecida como Lei Euzébio de Queirós, contribuiu para o surgimento das fábricas de beneficiamento do fumo. Ao final do séc. XIX já havia no Recôncavo Baiano, seis fábricas de charutos, sendo elas: Dannemann, Suerdieck S/A, Leite & Alves, Costa e Penna, Paraguaçu, Costa Ferreira e C. Pimentel & Cia que formavam o que se denominou de “Império fumageiro”. A expansão econômica 2

SAMPAIO, Marcos G. V. Uma Contribuição à História Dos Transportes No Brasil: A Companhia Bahiana de Navegação a Vapor (1839-1894). São Paulo, 2016, p74.

3 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

possibilitou o escoamento das mercadorias oriundas do interior da Província para a capital. A Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro transportava minério da Chapada Diamantina até o porto marítimo de Cachoeira, para seguir através dos navios a vapor até Salvador. Também o fumo em folha e os charutos eram transportados para a capital e depois exportados para a Europa. De acordo com o historiador FRAGA (2006, p.328), o centro urbano de Cachoeira “atraia população devido às atividades portuárias, comerciais e, principalmente, à concentração de indústria fumageira”. Para SILVA (2009), as cidades de Cachoeira, Maragogipe, São Félix e Muritiba formavam o centro de produção do fumo, exportando e abastecendo outras áreas do país, o que movimentava cerca de 80% da economia baiana. À beira do cais de Cachoeira ficavam os galpões e armazéns de fumo. Na cidade, casas comerciais se espalhavam na Rua Entrepontes (atual Rua Ruy Barbosa), e na Rua de Baixo (atual Rua 13 de Maio). Até inicio do século XIX “o único trecho urbanizado em contato direto com o rio era aquele situado nas proximidades do porto, entre a Praça dos Arcos (atual Teixeira de Freitas) e a rampa dos saveiros” 3. No meado do século, toda a região central próxima ao rio Paraguaçu já era urbanizada. A Praça da Câmara e Cadeia (atual Aclamação) ligada à Rua da Matriz de Nossa Senhora do Rosário (atual Ana Nery), encontrava-se, no seu final, com a Praça do Hospital (atual Dr. Aristides Milton). Nas praças e ruas centrais de Cachoeira, espalhavam-se escravos de ganho com seus tabuleiros, as feiras livres, a venda de escravos e os pregões. A Praça Dr. Aristides Milton, uma das maiores da cidade, tinha em seus lados monumentos importantes e acesso para ruas e vias centrais da cidade. Ali existia, em um dos lados, o Chafariz Imperial com sete trombas d´água que abastecia o centro da cidade com água potável. Em outro lado da praça, o hospital da Santa Casa de Misericórdia com a Igreja de Santa Bárbara anexa. Ao lado direito do hospital, ligados pela ponte do riacho da Pitanga, o Mercado Municipal, ponto de interseção da Rua dos Remédios, Barão de Nagé e a Rua Corta Jaca, local onde morava a africana por nome Maria da Motta, figura central, que empresta

3

Atlas de Centros Históricos do Brasil, org. José Pessoa e Giorgio Piccinato. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.

4 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

seu nome e sua história, a este trabalho de análise sobre relações interétnicas na cidade de Cachoeira. O fato de ser africana e cognominada de Sinhá (forma de tratamento usado pelos escravos para suas proprietárias, especialmente as que pertenciam à alta classe econômica e/ou de respeitabilidade4), em uma cidade do interior da província, por si mesmo, já se constituía em diferencial nas relações interpessoais com os outros africanos e demais habitantes. Ser mulher, viúva e religiosa eram características suficientes para ser exigido no século XIX, o cumprimento de determinadas regras comportamentais. Levar vida de resignação e recato era exigências para essas mulheres serem respeitadas. Contrapor-se aos padrões e manter-se respeitável demandava habilidade e inteligência, como as encontradas na africana Maria da Motta. Apresentação Declaro que me conservando sempre no estado de solteiro, quer como escravo quer como liberto, por minha fragilidade, tive cinco filhos de nomez Joze, Antonio, Maria, Magdalena, Juliana, todos havidos da Africana Maria da Motta, mulher solteira, que nenhum impedimento tivera para que se não podesse cazar commigo, cujos filhos desde já como meo os reconheço.

Maria da Motta, africana, não há registro de qual região da África foi oriunda,

assim

como,

não há

informação

que tenha sido

escrava.

NASCIMENTO (2010) supõe que Maria da Motta tenha sido escrava de algum engenho do Iguape ou pertencente à família do jornalista descendente de italianos, Augusto Ferreira Motta5. Seu marido Belchior Rodrigues de Moura, africano, declara em Testamento6 ser oriundo da Costa da África, trazido para Salvador como escravo, ainda menor de idade, declara ter comprado alforria em mil oitocentos e quarenta e um. Declaro que sendo natural da Costa d‟ África vindo para esta Capital, ainda de menor idade, como escravo fui comprado em lotte pelo Senhor Joze Rodrigues de Moura, de cujo poder me libertei pela quantia de seis centos mil reis, na data do primeiro de fevereiro de mil oito centos e cinco, digo mil oito centos e quarenta e um. (APEB, SJ 2/602/1056/10) 4

Para BIDERMAN (1973) a forma de tratamento era usada pelo povo, ou de classe baixa, para com os Nobres da classe alta. 5 “Essas discrepâncias não permitem também saber como se conheceram, porque eles uniram-se efetivamente ainda escravos e 6

diferentemente escravos estabeleciam relações conjugais quando sujeitos a senhores diferentes, senão quando usufruíam relativa liberdade e moravam fora da residência do senhor, o que era comum para os escravos urbanos”. (NASCIMENTO 2010, P. 87-88)

Documento elaborado e autenticado em vida, onde a pessoa dispõe suas vontades, bens no todo ou em parte, para que se proceda conforme designado, pelo testamenteiro, após sua morte.

5 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

O relato de Belchior Rodrigues de Moura contrapõe-se à história oral contada na Cidade de Cachoeira. Segundo a qual, Maria da Motta e Belchior Rodrigues nunca foram escravos; e sim pertencentes a Família Real da África. Os argumentos detectados na história oral parecem ser verdadeiros. Pois, até a presente data, ainda não foram encontrados registros nas fazendas da região, nem registro da referida carta de alforria de Belchior Rodrigues de Moura e da alforria de Maria da Motta. Analisando o contexto jurídico, se Maria da Motta tivesse sido escravizada no mesmo período que Belchior Rodrigues de Moura, seus filhos já com idade superior a doze anos, seriam peças (escravos) pertencentes ao dono da mãe. Em mil oitocentos e quarenta e um quando Belchior declarou ter comprado sua liberdade, seus três filhos mais velhos já eram nascidos. A Lei do Ventre Livre, determinava que filhos nascidos de escravas fossem entregues ao Império, ou só deixariam de estar sob tutela do dono da mãe após vinte e um anos de idade. Isto não valeria para nenhum dos cinco filhos do casal. A Lei entrou em vigor em mil oitocentos e setenta e um, e nesta data, todos os filhos de Belchior Rodrigues e Maria da Motta já eram maiores de idade. Autores7que estudaram os africanos no Recôncavo Baiano descrevem Maria da Motta como, africana pertencente a uma elite negra no século XIX e uma das fundadoras da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Essas mulheres africanas faziam parte de uma elite social negra com relativo acesso às camadas sociais privilegiadas de Cachoeira e eram conhecidas como “negras do partido alto”. Essas mulheres foram responsáveis pela institucionalização da Irmandade da Boa Morte em cachoeira e eram membros dos principais terreiros de candomblé de Cachoeira, São Félix e Maragogipe. (NASCIMENTO, 2010. P. 98)

O termo elite tem diversos significados dependendo da situação em que for empregado. Desde a designação de produtos de excelente qualidade, como significava no século XVII, à denotação de pessoas ou grupos sociais considerados superiores, tais como: políticos, intelectuais, militares, artistas, entre outros grupos de prestígio. A expressão também se refere às categorias 7

PARÉS (2007), SANTOS (2009), NASCIMENTO (2010) e IPAC (2012).

6 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

ou grupos que ocupam o “topo” de “estruturas de autoridade ou de distribuição de recursos” 8, “o que há de mais valorizado e de melhor qualidade; minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social” 9. Maria da Motta pertencia à elite econômica, além de possuir prestígio entre os africanos e demais habitantes da cidade. Sua importância pode ser comprovada em situações relatadas no Inventário 10, onde sua influência e respeitabilidade foram decisivas para mudanças de deliberações jurídicas ao seu favor. Como no caso da venda e avaliação de um dos seus escravos, de nome João, assunto sobre o qual discutiremos em parte deste estudo. Apesar de Maria da Motta não saber ler e escrever, todos os filhos e filhas eram instruídos11, e assumiram lugar de proeminência social ainda no século XIX. Maria da Motta e Belchior Rodrigues de Moura, ambos ligados ao candomblé, na localidade denominada Bitedô12, zona urbana da cidade da Cachoeira. Em seu Testamento Belchior Rodrigues de Moura declara ser católico “batizado nos dogmas da Religião de Jesus Cristo, e seguindo desde então seus preceitos, espero como Cristão morrer, implorando ao Supremo Altíssimo o perdão de minhas culpas, pela sua infinita Misericórdia” 13. O Candomblé em Cachoeira, assim como em Salvador, reorganizou-se através das irmandades cristãs e aplicou-se o sistema classificatório de parentes usual na sociedade maior, para a família extensa dos escravos, somente se valendo do conceito de “nação” para definir as diferentes contribuições étnicas à formação da religião afro-brasileira.

8

BUSINO, apud BORGES, Notas sobre o conceito de elite para Brasil do oitocentos. ANPUH/SP – UNESP-Franca. 2010. 9 Para o Cientista Político PARETO apud BORGES (2010), elite é qualquer grupo que se destaque dos demais em suas atividades específicas, seja elite religiosa, econômica, política, não apenas a aristocracia. Para o cientista político MOSCA apud BORGES (2010), elite é uma minoria organizada que comanda a massa - maioria dominada e desorganizada. BORGES (2010) apresenta a “circulação das elites”, - diferenciando o ser/de estar - ser elite é estar em uma posição de destaque dentre os demais, possuindo um “status”. “Os processos de substituição das elites compõem-se de elementos fundamentais para se compreender a posição de elites políticas e sua mudança ao longo de gerações”. (BORGES, 2010, p.3) 10 Descrição e avaliação detalhada do patrimônio deixado em Testamento, a fim de que se faça a partilha dos mesmos para os herdeiros. 11 Oito anos após a morte de Belchior Moura o segundo filho do casal, Antônio Maria Belchior foi inventariante e testamenteiro (1863) de Luiz Borges de Carvalho, que se declarou no registro de votantes da comarca de Cachoeira em 1862 comerciante e dono de açougues, residente em São Félix. “Inventário de Luiz Borges de Carvalho”, 1863, (APEB SJ 5/133). 12 NASCIMNTO, L.C. 2010. P. 89-91 Atual “alto do Cruzeiro (Bitedô)”. 13 “Inventário de Belchior Rodrigues de Moura”, (1855-1869), Série Judiciária, 2/602/1056/10, APEB.

7 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

O termo “nação” foi perdendo a sua conotação política para se transformar num conceito quase exclusivamente ideológico. Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia. Em outras palavras, nação passou a designar uma “modalidade de rito”, ou uma “forma organizacional definida em bases religiosas”. (PARÉS, 2007. P. 102)

Pertencendo à Nação Jêje Savalu14, a relação de Maria da Motta com o candomblé está predominantemente na memória coletiva da cidade de Cachoeira. Segundo HALBWACHS (apud BURKE 2006, p.70), “as memórias são constituídas por grupos sociais. São os indivíduos que lembram, no sentido literal, físico, mas são os grupos sociais que determinam o que é „memorável‟, e também como será lembrado”. (...) se considera a memória coletiva como uma coletânea dos rastros deixados pelos acontecimentos que afetaram o curso da história dos grupos envolvidos, e que se reconhece o poder de encenar essas lembranças comuns. (RICOEUR, 2007, p.129)

Africana de “sangue no olho” 15 Nestta Heroica Cidade da Cachoeira e Cartório em que interinamente sirvo por parte da Testamenteira e Inventariante Maria da Motta mi foi entregue huma sua petição com despacho do Doutor Juiz de Orphãos Ricardo Pinheiro de Vasconcellos e com ella Certidão do testamento com que fallecera o Inventariado pedindo-me e requerendo-me a acceitasse e autoasse affim de que fizessens as citaçoens requeridas para se poder prosseguir nos termos do inventario; o que satisfazen observancia ao despacho em adita Petição exarado a cumprimento de meo officio.

Era uma segunda feira, dia dezenove de novembro de mil oitocentos e cinquenta e cinco. Sinhá Maria da Motta adentrou no Cartório da cidade de Cachoeira demonstrando irritação. Trazia nas mãos dois documentos: uma petição com o despacho do Juiz de Órfãos, o senhor Ricardo Pinheiro de Vasconsellos e a Certidão do Testamento do seu falecido marido Belchior Rodrigues de Moura. Requeria do Escrivão interino Antônio Francisco do Nascimento Vianna que a aceitasse e lavrasse como Testamenteira e Inventariante do marido. Acompanhada do advogado e procurador, Virginio Jozé de Almeida 16, Bacharel atuante e requisitado para processos de partilha, exigia que se 14

Culto aos voduns da família real do Daomé até o período do Rei Agongonu (1789-97). A Casa da Mina no Maranhão é a mais conhecida no Brasil na pratica deste culto. Segundo FERRETTI (2006), são cultuados cerca de sessenta Voduns (Orixá para os iorubanos), distribuídos em quatro famílias. 15 A expressão “sangue no olho” é comumente usada no Nordeste do País, em especial na Bahia para designar pessoas corajosas, que enfrentam tudo e todos.

8 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

fizessem as devidas solicitações para a audiência de partilha dos bens. Morto no dia vinte e sete de setembro daquele ano, vítima da cólera morbus17, que falaremos em outra parte deste trabalho, Belchior Rodrigues de Moura deixou viúva, e cinco filhos menores por nomes: Jozé Maria Belchior, Antônio Maria Belchior, Maria Aniseta Belchior, Magdalena e Juliana18. Cinquenta e dois dias se passaram da morte de Belchior Rodrigues Moura e não se havia iniciado os trâmites para a partilha da herança, causando impaciência a Maria da Motta. O senhor Antônio Francisco Nascimento Vianna, Escrivão de Órfãos interino, atendendo a exigência da reclamante, fez as citações requeridas pela mesma, deixando registrado na Petição, que estava fazendo em cumprimento do seu ofício. O Escrivão de Órfãos, Antônio Francisco Nascimento Vianna, era “Capitão e Secretário da Guarda Nacional sob comando do Coronel Francisco Vianna Tosta”19. Apesar da ressalva inicial, o Escrivão agendou para o dia seguinte a data início do inventário: Ilustríssimo Senhor Doutor Juiz de Orphoens. Diz Maria da Motta, que quer proceder o inventario dos bens que ficarao por fallecimento de Belchior Rodrigues de Moura, affim de dar partilhas a seos filhos menores, de que he a Supplicante Mãe e Tutora Testamentária, como se vê do incluzo testamento, que por Certidão o fizesse. Requer a vossa senhoria se digme designar dia para se lhe tomar o juramento da inventariante, e se proceder na avaliação dos escravos do Cazal, procedendo citação ao Curador Geral para assistir a ditta avaliação, e aos termos do inventario; assim como os menores de doze, digo, aos menores que forem maiores de doze e quatorze annos. Pede a vossa senhoria deferimento. Espera receber merce. A rogo da supplicante, que não sabe escrever Virginio Joze de Almeida. (APEB, SJ 2/602/1056/10)

No dia seguinte, vinte de novembro de mil oitocentos e cinquenta e cinco, Maria da Motta e seu procurador Virginio Jozé de Almeida foram recebidos na residência do Juiz de Órfãos, o Dr. Ricardo Pinheiro de Vasconsellos. Na casa do Juiz já os aguardavam os avalistas, Tito Tavares D‟Oliveira, Joaquim Tavares da Gama e o Escrivão interino o Capitão Antônio Francisco de Nascimento Vianna, para o juramento de Maria da Motta.

16

Residente em são Félix e “procurador do foro de São Felix”. Almanak Administrativo Mercantil. 18541863, p. 433. 17 Doença epidêmica contagiosa, que tem por sintomas, diarreia profunda, vômito e desidratação. 18 “Inventário de Belchior Rodrigues de Moura”, (1855-1869), Série Judiciária, 2/602/1056/10, APEB. 19 Almanak Administrativo Mercantil e Industrial da Bahia. 1858, Ed.0004, pg432. Disponível em: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx, acesso em 12/06/2016 às 20:30

9 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

(...) o juramento dos Santos Evangelhos, sob cargo do qual lhe encarregou, que fosse boa Inventariante, sem dolo, malicia, sam consciência, dando a discripção de todos os bens d‟este Cazal como fosse bens de raiz, moveis, semoventes, ouro, prata, dinheiro, dividas activas e passivas e tudo mais que ao mesmo pertencesse, sem ocultar couza alguma, para em tempo competente dar-se partilha aos Interessados tudo sob pena da Lei.(APEB, SJ 2/602/1056/10)

Belchior Rodrigues de Moura temia a morte pela cólera morbus, como consta em seu Testamento: “estando com perfeita saúde, e no gozo necessário entendimento, porém temendo a morte, em consequência da epidemia reinante delibero este meu Testamento” 20. A doença já havia ceifado centenas de vidas no Recôncavo, por isso, Senhor Belchior foi à Capital da Província, São Salvador, no dia quatorze de agosto de mil oitocentos e cinquenta e cinco em companhia do seu amigo Manoel Joaquim Ricardo21 e lá redigiu o seu Testamento. Era o começo do avanço da epidemia. Boa parte dos baianos só teve conhecimento da epidemia quando, a partir de agosto de 1855, o número de casos na Bahia começou a multiplicar. De Salvador para o Recôncavo e daí para o centro-oeste e o litoral sul, o cólera seguiria deixando um rastro de morte. Como diria o próprio presidente da Província: “Vêde a sua chegada anunciada pelas victimas que cahem instantaneamente a seus golpes”. (REIS, 1993. P. 44)

A morte por epidemia da cólera na Província da Bahia fez suas primeiras vítimas no dia vinte e um de julho de mil oitocentos e cinquenta e cinco, acometendo por morte, dois pescadores de baleia, uma mulher e um menino, moradores da Freguesia de Santo Antônio em São Salvador 22. No centro da Cidade de Cachoeira a primeira vítima foi uma lavadeira23 que morava na localidade do Caquende em primeiro de agosto de mil oitocentos e cinquenta e cinco. Cento e sessenta e uma pessoas morreram nos primeiros onze dias do mês de agosto em Cachoeira24. O prazo entre a contaminação da vítima até a sua morte durava entre um a dois dias. O que exigia o sepultamento dos mortos de imediato, pois, 20

“Inventário de Belchior Rodrigues de Moura”, (1855-1869), Série Judiciária, 2/602/1056/10, APEB. Personagem de estudo do historiador REIS, João José. De escravo a rico liberto: a trajetória do africano Manoel Joaquim Ricardo na Bahia oitocentista, rev. Hist. São Paulo, 2016. 22 REIS, David Onildo. O inimigo invisível: Epidemia do Cólera na Bahia em 1855-56.Salvador, 1993. P.7. 23 “No dia 1º de agosto de 1855, manifestou-se na cidade o primeiro caso de cólera-morbo, provocando a morte de uma lavadeira de nome Brizida”. (MELLO, 2001. P. 68-69.) 24 MELLO, F. J. História da Cidade de cachoeira. Ed. Radami, 2001. P. 68-69. 21

10 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

cada hora em que o defunto ficasse na residência, aumentava o risco de contaminar os demais moradores. “Depois de morto, o colérico muitas vezes era abandonado. Deixavam-se cadáveres nas portas das igrejas, nos cemitérios, ou mesmo nas ruas”. A Santa Casa de Misericórdia estava cheia de cadáveres. O Médico Joaquim Antônio d‟ Oliveira Botelho foi enviado para Cachoeira, e em visita ao hospital “encontrou alguns cadáveres espalhados pelo chão e um gordo enfermeiro que, observando a tudo impassível, disse-lhe que já eram passados cinco dias sem algum médico” 25. Belchior Rodrigues de Moura morreu em vinte e sete de setembro de mil oitocentos e cinquenta e cinco. Em seu Testamento colocou o senhor Manoel Joaquim Ricardo como primeiro Testamenteiro e Tutor de seus filhos, e como segunda Testamenteira sua esposa, a senhora Maria da Motta, e em terceiro o Senhor Manoel Nogueira. Como Testamenteiras e herdeiras, as viúvas tinham que tomar decisões burocráticas que, ao longo de suas vidas estavam a cargo dos seus maridos. Na situação de morte de seus companheiros, muitas às vezes elas não eram indicadas no Inventário como primeira Testamenteira e Inventariante, como acontecera com Maria da Motta. Para BRANDÃO (2013), O inventário era um documento em que as mulheres,

viúvas,

naturalmente

ofuscadas

no

sistema

patriarcal,

protagonizavam sua historia de vida. Porém, “por longos anos, vão se identificar, comercial e socialmente, apenas como a “viúva de fulano”26. Para ter direito a esse “protagonismo”, Maria da Motta descumpriu regras legais, fazendo a abertura do Testamento no mesmo dia de morte do marido. Abertura, e cumpra-se. Abri. Cumpra-se, salva alguma nullidade ou prejuízo de terceiro; registre-se e aprezente-se na santa caza e onde mais for necessário. Cachoeira vinte e sete de Setembro de mil oito centos e cincoenta e cinco.(APEB, SJ 2/602/1056/10)

Como segunda Testamenteira, não poderia Maria da Motta ter procedido à abertura do Testamento do marido, salvo se o primeiro Testamenteiro Manoel Joaquim Ricardo se negasse a fazê-lo, registrando sua posição em cartório. O Testamento foi aberto pelo “Doutor Juiz Municipal Provedor de Capellas e

25 26

REIS, David Onildo. O inimigo invisível: Epidemia do Cólera na Bahia em 1855-56.Salvador, 1993. P. 9. BRANDÃO (2013, p.56)

11 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

Rezidous João Jozé d‟ Oliveira Junqueira27, Fidalgo Cavalheiro da Caza Imperial” 28. É importante salientar a influência de Maria da Motta para proceder tramites de abertura do testamento do marido no dia da morte dele, pois, vários fatores poderiam ser considerados adversos. Era ápice da epidemia que já havia vitimado três mil pessoas só na sede da cidade de Cachoeira 29. O dia vinte e sete de setembro daquele ano caiu numa sexta feira, além de ser o dia de comemoração dos santos Gêmeos, São Cosme e São Damião, dia de louvor aos Ibejis no Candomblé. No documento que é base para essas descrições, o Inventário (18551869) de Belchior Rodrigues de Moura não oferece elementos suficientes para sabermos por que Maria da Motta se antecipou em proceder à partilha dos bens do marido, em lugar do primeiro Testamenteiro. Porém, conforme situações ocorridas no decorrer do processo de partilha, tais como as cobranças de Manoel Joaquim Ricardo da possível dívida do morto no valor superior a 800$000 mil rés, lançando este mão de processo para impugnação da partilha por diversas vezes, é bem provável que a relações de Maria da Motta com Manoel Joaquim Ricardo já não eram tão amistosas. Registrando apenas: - “Não acceito”

30

. Seis dias após a morte de

Belchior Rodrigues de Moura em três de outubro de mil oitocentos e cinquenta e cinco, Manoel Joaquim Ricardo recusa ser Testamenteiro. Um dia antes, em dois de outubro daquele ano, Maria da Motta comparece ao cartório junto com seu procurador Virginio Jozé de Almeida. Informou que sendo ela a segunda Testamenteira de seu marido, aceitaria conduzir o processo já que o primeiro Testamenteiro Manoel Joaquim Ricardo, não aceitou a designação do falecido. A relação entre Belchior Rodrigues de Moura e o rico africano de etnia haussá31, Manoel Joaquim Ricardo, era de amizade, comercial e religiosa. Em Testamento Belchior de Moura, de comum acordo com Maria da Motta, nomeia 27

Foi Suplente na Câmara de Deputado da Bahia (1854), diretor da Escola Normal Primária em Cachoeira (1854-56) e Fidalgo Cavaleiro lotado em Salvador comarca São Pedro. Almanak Administrativo Mercantil (1854-1863, P.203). 28 “Inventário de Belchior Rodrigues de Moura”, (1855-1869), Série Judiciária, 2/602/1056/10, APEB,fl.6. 29 “porém a mortalidade em toda a comarca atingiu um número terrível de 8.500 pessoas” MELLO, 2001. P. 70. 30 “Inventário de Belchior Rodrigues de Moura”, (1855-1869), Série Judiciária, 2/602/1056/10, APEB, fl.16 31 “Ricardo era haussá, e fora provavelmente vítima em sua terra natal do jihad liderado por Usuman dan Fodio, movimento de reforma ortodoxa do Islã”. (REIS, João José. 2016. P. 10)

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seu amigo Manoel Joaquim Ricardo como Tutor dos seus filhos recomendando a necessária educação desses 32. Tutela que nunca ocorreu devido à recusa de ser Testamenteiro. Maria da Motta requer à Justiça o direito de ser Tutora dos filhos, abrindo mão de quaisquer benefícios financeiros resultantes dessa guarda, em vinte e sete de março de mil oitocentos e cinquenta e sete. Quase dois anos depois da recusa de Manoel Joaquim Ricardo. Diz Maria da Motta que quer assignar termo de Tutora dos menores seus filhos, herdeiros de seu finado Pai Belchior Rodrigues de Moura independente de prestar fiança idônea em consequencia de estar para semelhante fim abonada na verba testamentária de sua nomeação como consta dos autos de Inventario dos bens deichados pelo ditto finado a folhas requer a Vossa Senhoria se digme mandar tomar-lhe termo de Tutela para assignar por si ou por seu Procurador, renunciando o beneficio e quaesquer privilegio que lhe outorgao as Leis. (APEB, SJ 2/602/1056/10)

A relação de Manoel Joaquim Ricardo com o candomblé33é apontada em registro do subdelegado da Capital da província, Pompilho Manuel do Carmo, como “comparsa” do africano Domingos Sodré34 “o principal da ordem dos sortilégios e feitiços, entretém relações intimas com africano Manoel Joaquim Ricardo, que também tem casa para estas reuniões” 35. A relação comercial entre Manoel Joaquim Ricardo e Belchior Rodrigues de Moura foi registrada em Testamento nos seguintes termos: “fiquei a dever a quantia de oitocentos vinte e quatro mil cento e quarenta rés, proveniente de dinheiro de empréstimo para meu negocio”

36

. A dívida era de 824$140 rés,

referente ao empréstimo, mais a soma de 400$000 mil rés, deixado por Belchior ao amigo em sinal de gratidão: “quero que lhe seja entregue mais a quantia de quatro centos mil rés, que lhe deixo em signal de gratidão”. Totalizando 1:224$140 (um conto duzentos e vinte e quatro mil cento e quarenta rés). Apesar de Manoel Ricardo recorrer diversas vezes para impugnar a partilha, a dívida não foi paga na íntegra pelos herdeiros. Manoel Joaquim 32 33

34

“Inventário de Belchior Rodrigues de Moura”, (1855-1869), Série Judiciária, 2/602/1056/10, APEB. “Embora no final da vida se declarasse mui católico, ele também parecia ter um pé na religião de origem africana conhecida como candomblé na Bahia. Os indícios vêm de seus vínculos com pessoas profundamente envolvidas nessa religião. José Pedro Autran, de nação nagô, parceiro de negócios de Ricardo em Uidá, era casado com Francisca da Silva, também conhecida como IyaNassô, sacerdotisa de Xangô .(...) Existe outro indício do envolvimento de Ricardo com o candomblé, que era sua amizade com dois outros especialistas na religião africana. Um era o nagô Domingos Sodré, adivinho, talvez babalaô, título do sacerdote de Ifá, deus iorubá do destino. Quando este homem foi preso, em 1862, por adivinhação, curandeirismo, feitiçaria e receptação de bens roubados, a polícia encontrou um jovem escravo de Ricardo em sua casa.”(REIS, J.J. 2016, p.38-39)

REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. “Carta do subdelegado Pompilho Manuel do Carmo”, 1862. Polícia, maço 6234, APEB. 36 “Inventário de Belchior Rodrigues de Moura”, (1855-1869), Série Judiciária, 2/602/1056/10, APEB. 35

13 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

Ricardo foi derrotado quatro vezes, sendo o penúltimo veredicto em primeiro de maio de mil oitocentos e cinquenta e sete, assim lavrados: Não tendo o embargante apresentado outro titulo de sua divida para a prova se não a verba testamentária por essa razão não foi ela atendida porque o arphanalogista dizem e com razão que a divida que só tem por tipo a declaração de defucto a ainda que esta em testamento solene não he prova atendível.(APEB, SJ 2/602/1056/10, fl. 52)

No dia vinte e dois de maio de mil oitocentos e cinquenta e sete, Manoel Joaquim Ricardo interpela seu último recurso para que a dívida fosse quitada. Dois meses antes, no dia sete de março de mil oitocentos e cinquenta e sete, Maria da Motta já havia subtraído parte do que lhe ficou por herança o valor de 400$000 rés, e passou para Manoel Joaquim Ricardo. Cumprindo o pedido do marido Belchior Rodrigues que solicitou em Testamento que fosse dado o referido valor ao amigo em sinal de gratidão. Dezenove de Outubro de mil oitocentos e cinquenta e sete, Maria da Motta põe em penhora os escravos: Fellipe avaliado em 450$000 rés, dado em partilha para Jozé Maria Belchior, seu filho mais velho; a escrava Maria, pertencente à sinhá avaliada em 300$000 rés para quitar a dívida com Manoel Joaquim Ricardo. Sendo que a soma do valor dos dois escravos, mais a gratificação não chegou ao montante do débito que era de 1:224$140 rés. REIS, João. J. (2016. P. 33), afirma que a dívida com Manoel Joaquim Ricardo foi paga pelos herdeiros: “Os herdeiros reconheceram a dívida e o legado, mas só a pagaram depois de demanda judicial encetada pelo credor”. Apresentando como referência as folhas 24-25 do Inventário de Belchior Rodrigues de Moura. Porém, não encontramos registro de pagamento completo da dívida no referido Inventário. Manoel Joaquim Ricardo morreu em junho de mil oitocentos e sessenta e cinco37, quatro anos antes do término da partilha do Inventário (1855-1869) de Belchior Rodrigues de Moura, e não há registro que o valor restante da dívida tenha sido quitado para o mesmo, ou a seus herdeiros.

A sinhá

37

REIS, João José (2016. P.3). “Em 20 de junho de 1865, Manoel Joaquim Ricardo morreu em Salvador, Bahia, com estimados 90 anos de idade. Deixou viúva, três filhos e uma filha.”

14 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

(...) na qualidade de Inspector, aproximando-se de sua senhora a Inventariante d’este Cazal Maria da Motta a maltratava com castigos rigorozos, e que sendo ouvida pelo ditto Juiz, e verificado pelas perguntas feitas a referida escrava, e pelas contuzões que a mesma mostrou, e que também por mim Escrevem foram vistas, do que dou fé, em consequencia mandou que fosse depozitada a mesma escrava em poder de Francisco Ludgero Tavares da Gama.

Excluídas das instâncias de poder, algumas mulheres no século XIX viviam à sombra do pai, dos irmãos e depois do marido. Quando viúvas, boa parte dessas mulheres passava “de viúvas abandonadas e desamparadas se transmutaram em provedoras da família, exercendo o papel de pai e mãe, além de manterem a atividade comercial no trato diário com clientes, fornecedores, empregados e escravos” (BRANDÃO, 2007. P.10). O caráter contestativo de Maria da Motta em suas relações sociais foi relatado ao longo do Inventário, porém destacamos dois fatos que geraram recursos judiciais mais prolongados: a anulação da compra do escravo João, arrematado em Leilão público; e o depósito da escrava Maria, ao fiscal de quarteirão Francisco Ludgero Tavares da Gama, sob alegação de maus tratos. Onze de novembro de mil oitocentos e cinquenta e sete, Maria da Motta recorre à justiça para anular a compra de um dos seus escravos João, africano, arrematado em Leilão Público no terceiro dia de pregão. Sem interessados, foi arrematado pelo Capitão Joviniano José da Silva e Almeida em um único lance de 510$000 mil rés. O escravo foi avaliado em Testamento em 500$000 mil rés. Maria da Motta alegou que o Capitão usou de má fé arrematando a peça abaixo do valor de mercado, segundo ela, o valor real seria 1:200$000 (hum conto e duzentos mil rés). Enquanto aguardava o processo de impugnação da compra na justiça, Maria da Motta sequestra o escravo João e o mantém em casa de amigos na vizinha cidade de São Félix. Sendo que o escravo estava depositado sob tutela de Virginio Jozé de Almeida, advogado de Maria da Motta, desde quatro de novembro de mil oitocentos e cinquenta e sete: Certifico que pessoalmente n'esta Cidade intimei ao Depozitario Virginio Jozé de Almeida para não entregar o escravo João africano, de que é dopozitario, sem expressa ordem d'este Juizo, sob pena da Lei. (APEB, SJ 2/602/1056/10)

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Em quatorze de dezembro de mil oitocentos e cinquenta e sete, o escravo João solicita do Juiz de Órfãos, autorização para comprar a própria alforria pelo valor um quinto superior a que foi arrematado em leilão. Vem este, humilde, e respeitozamente, requerer à Vossa Excellencia se digme mandar, que recolhida á Juízo a referida quantia de quinhentos e dez mil res, e mais a quinta parte d‟ella, se lhe passe Carta de Liberdade Judicial, e uma vez, que a quantia que por sua pessoa, offerece o Supplicante he maior que aquella por que foi arrematado. (APEB, SJ 2/602/1056/10)

Proposta que Maria da Motta não aceitou, levando o escravo para nova avaliação, quase dois meses depois. Em quatro de fevereiro de mil oitocentos e cinquenta e oito, o escravo João foi avaliado pelo Capitão Firmino Pereira da Costa e Antônio Vieira de Souza

38

em 1:200$000 (hum conto e duzentos mil

rés), exato valor que queria Maria da Motta. Fazendo com que o escravo não pudesse mais comprar alforria. No mesmo dia Maria da Motta através de seu procurador Virginio Jozé de Almeida coloca o escravo na cadeia pública. Sete dias depois o Capitão Joviniano José da Silva e Almeida é intimado a retirar o escravo João, já que o mesmo pagou ao advogado de Maria Motta a quantia que ela solicitou: Eu Frederico Jose da Cunha, Tabellião, que por impedimento do Escrivao de Orphaons o escreve. Certifico que por carta de que tive resposta, intimei o Despacho in fronte, por todo seu contheudo ao Capitao Joviniano Jose da Silva e Almeida, para receber o escravo João que havia arrematado do Depozitario do mesmo, Virginio Jozé de Almeida, de que ficou sciente, e dou fé. (APEB, SJ 2/602/1056/10)

Após a morte de Belchior Rodrigues de Moura, os seis escravos do casal, se recusam a servir a Maria da Motta e seus filhos. Maria, africana, que fora tomada pela justiça sob a alegação de maus tratos, declara em juízo que se afogaria com a filha a ter de voltar para sua sinhá: “antes se affogar e a filha do que voltar para seu domínio”. Maria era a escrava que foi dada em penhora para a quitação da dívida com Manoel Joaquim Ricardo. As atitudes e ações de maus tratos eram naturais entre os senhores de escravos. Porém, contrapunha-se com os ideais da instituição a qual Maria da Motta fora uma 38

De acordo com o Almanak Administrativo e Mercantil (1854-1863), Capitão Firmino Pereira da Costa era mestre geral na Guarda Nacional e Antônio Vieira de Souza era dono de “taverna”- botequim, bodega - na praça principal, atual Jardim Grande.

16 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

das fundadoras, a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte 39, que tinha a compra de alforria como um dos seus objetivos. Para ser oficializada e reconhecida pela Igreja e pelo Estado, toda e qualquer irmandade deveria redigir um estatuto, chamado, também, de compromisso e encaminhar às suas instâncias superiores para tê-lo sancionado. Nele, estavam contidos o calendário festivo, os direitos (assistência jurídica e médica, ajuda na compra de alforria ou necessidade financeira, enterro decente na igreja), deveres e obrigações (boa conduta, bom comportamento [grifo nosso], participação nas cerimônias religiosas e civis, pagamento da anuidade), além das formas de admissão de novos membros (condição racial ou social) e critérios para compor a mesa. (IPAC, 2012)

As Irmandades foram organizações utilizadas também como instrumento de inserção de negros, e negras nas cúpulas da sociedade aristocrata do Recôncavo Baiano. Irmandades como a do Rosário das Portas do Carmo, Irmandade do Nosso Senhor dos Martírios, Irmandade dos Nagôs em salvador, tinham membros considerados ricos. No interior da Província destacava-se a Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, criada pelas negras da elite cachoeirana. Conclusão Este artigo procurou relatar, de maneira exploratória, excertos da história de vida de Maria da Motta, que era africana, viúva, religiosa e pertencente à elite social no interior da Província da Bahia no século XIX. Os fatos relatos foram extraídos do Inventário (1855-1869) de seu marido Belchior Rodrigues de Moura. Mantemos nas citações a forma gramatical conforme documento. A sequência dos fatos apresentados foi tal como aparecem no Inventário que, aliás, nem sempre segue à forma cronológica de datação. Abordamos

aspectos

que

remetem

à

quebra

de

paradigmas

consuetudinários que ordenavam as relações interpessoais de Maria da Motta com os demais habitantes, pertencentes às camadas privilegiadas da cidade, e com africanos escravos ou livres em Cachoeira na Bahia. O comportamento de Maria da Motta com seus escravos se contrapunha aos ideais da Confraria religiosa que criara; a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte em 39

“Maria Motta foi irmã fundadora da Irmandade da Boa Morte”, IPAC. Festa da Boa Morte. Salvador: Fundação Pedro Calmon. 2012. P.49.

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Cachoeira. Os deveres básicos no estatuto da Boa Morte eram: “boa conduta, bom comportamento” e “auxílio na compra de alforrias”. Este artigo é uma apresentação de parte do conteúdo da pesquisa biográfica em andamento, desenvolvida em profundidade sobre a história de vida de Maria da Motta. Um trabalho exploratório das relações socioculturais de uma africana de “sangue no olho” no século XIX.

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19 Artigo aprovado para os Anais da ADHILAC-BR, XV Semana de História do Dpto. De História da PUC-SP 2016

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