Sínteses, guias e estados da arte

July 6, 2017 | Autor: J. Gonçalves de F... | Categoria: History of Historiography, Medieval Historiography in 20th century
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[ O texto encontra-se publicado em inglês em: The Historiography of Medieval Portugal c. 1950-2010, dir. José Mattoso, Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, col. Estudos 2, 2011, pp. 607625 ].

Sínteses, guias e estados da arte Synthesis, guides and stat of art * Judite A. Gonçalves de Freitas * * Constituindo um reflexo da evolução da pesquisa histórica em Portugal nos últimos noventa anos, as nove Histórias de Portugal gerais publicadas entre 1922 e 2011, se bem que não esgotem por si só as vertentes temáticas e metodológicas da historiografia medieval portuguesa, traduzem o que de mais relevante se foi fazendo nesta área do saber ao longo da última centúria. Produzidas e publicadas em contextos políticos, ideológicos e universitários diversos, e sustentadas em projectos conceptuais distintos, em quase todas se constata uma preocupação com o rigor factológico (datas, nomes, lugares…) e a «objectividade» histórica. O balanço efectuado nortear-se-á por um conjunto de questões relacionadas entre si, designadamente a importância conferida à Idade Média nas sínteses e nos manuais de História de Portugal, o interesse por determinados domínios da História em detrimento de outros, a periodização e o alinhamento temático, os temas e os núcleos preferencialmente tratados pelos colaboradores especialistas, as formas textuais e expositivas privilegiadas (tratado, ensaio, texto interpretativo, texto descritivo ou súmula de recapitulação), as concepções historiográficas subjacentes (ideias e discursos) e, finalmente, trataremos do estado da arte. Dada a extensão das questões, e visto que não poderemos aprofundar os principais pontos de cada uma delas, optaremos por chamar a atenção ao longo da exposição para alguns desses assuntos nas diferentes sínteses analisadas. Por considerarmos que a análise dos progressos da hodierna historiografia deve ser feita à luz do confronto com a levada a cabo nos finais do século

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Agradeço à minha colega e amiga Maria de Lurdes Rosa (FCSH-UNL), que impulsionou e acompanhou o delinear deste texto, tendo com ela trocado algumas impressões que contribuíram para melhorá-lo. Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (CEPESE - Universidade do Porto). Universidade Fernando Pessoa / Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. [email protected] **

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XIX e primeira metade do século XX, sem o qual não serão compreendidas as mudanças mais recentes, pensamos que é ajustado incluir nesta análise uma breve apreciação das sínteses editadas na primeira metade do século XX. Em Portugal não existe nenhuma história geral dedicada exclusivamente ao período medieval na sua totalidade1. É sintomático que das nove sínteses generalistas publicadas entre 1922 e 2011, apenas duas tenham sido publicadas nos anos 20 e 30 e meio século depois, nos anos 70, arranque um novo ciclo de edição que chega aos nossos dias, com a impressão de sete compêndios de História de Portugal. No total das nove sínteses, quatro têm autoria única e seis são obras colectivas, projectos desenvolvidos sob a responsabilidade de um ou dois coordenadores científicos e uma equipa de colaboradores especialistas em diferentes períodos históricos e em distintas matérias. O incremento da publicação de manuais e de sínteses corresponde a uma época de afirmação e aumento da produção científica, mormente a partir de finais dos anos 70. 1. Os anos 20 e 30 do século XX: o paradigma tradicionalista e nacionalista Nos anos 20 do século passado, Fortunato de Almeida (1869-1933), professor liceal, concebe e edita sob sua responsabilidade uma História de Portugal em seis volumes2. Repousando na corrente historiográfica que, de forma algo exagerada, alguns designam de historiografia metódico-documental3 e outros de história positivista; considerando nesta última etiqueta a concepção historiográfica que envolve todo o texto de cariz essencialmente episódico, narrativo e descritivo e que persegue uma divisão políticodinástica da Idade Média. A obra insere-se num modelo historiográfico desenvolvido e praticado essencialmente na segunda metade do século XIX4, modelo que valoriza o tratamento do suporte documental e bibliográfico. A erudição histórica revelada pelo 1

Alexandre Herculano (1810-1877), um dos mais preeminentes historiadores da Idade Média da segunda metade do século XIX, destina a História de Portugal apenas à primeira época da Idade Média, desde o começo da monarquia até ao final do reinado de Afonso III. A pioneira edição (1846-1853) é composta por quatro volumes. Todas as sínteses posteriores são generalistas, cobrindo, com maior ou menor incidência, as épocas medieval, moderna e contemporânea. 2 ALMEIDA, Fortunato (1922-1929), História de Portugal, 6 vols., Coimbra, Edição do Autor. A reedição de 2005 é da responsabilidade da editora Bertrand e é composta por três volumes. 3 Sobre o assunto cfr. neste volume HOMEM, Armando Luís de Carvalho ”A História Institucional e Política dos séculos XIII-XV (I): o poder central”, pp. 179-208. 4 Na segunda metade do século XIX aparecem os primeiros compêndios gerais de História de Portugal. Com desígnios culturais e científicos muito distintos da História de Portugal de Alexandre Herculano, destacamos a História de Portugal, edição popular e ilustrada da autoria de Manuel Joaquim Pinheiro Chagas (1842-1895), uma obra de divulgação; e a História de Portugal de Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1845-1894), apostado em defender um modelo interpretativo, integrador e relacional da história pátria na história peninsular e global, representa um modelo mais próximo do ensaio.

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autor é de tipo tradicionalista e pouco fecunda, pois não se vislumbra qualquer “rasgo interpretativo”5. Cobrem o período medieval os três primeiros volumes, remetendo o I volume a um extenso período que parte da Lusitânia pré-histórica e termina na aclamação de João I (1385); o II volume, arranca com a aclamação de João I prosseguindo até à morte do cardeal-rei D. Henrique (1580) e, finalmente, o III tomo trata das instituições políticas e sociais ao tempo da segunda dinastia (1385-1580). A periodização da História de Portugal e da Idade Média em particular, fica assim dividida numa primeira época até ao termo da dinastia da Borgonha e num segundo período que abre e fecha (muito para além da Idade Média [1580]) com o começo e o termo da dinastia de Avis. Seguindo um modelo praticado no século XIX, trata das culturas, dos factos e dos processos que tiveram lugar no território que virá a constituir muito mais tarde Portugal6, perpassando pelos aspectos artísticos e de carácter cultural e linguístico. São sobretudo patenteados, de forma cronológica, os acontecimentos políticos e a caracterização das instituições, suportados numa cuidada erudição. Não obstante o autor apresentar capacidade de síntese e revelar uma preocupação em reunir informação documental e bibliográfica de enorme valor historiográfico, por regra, descura o debate, a discussão, a comparação e o questionamento dos dados apresentados. De qualquer modo, pelas fontes mencionadas tornou-se uma obra de consulta regular para os estudiosos da Idade Média. Ainda nos finais dos anos 20, no contexto das celebrações do 8º centenário da fundação da nacionalidade (1928), sob a direcção de Damião Peres (1889-1976)7, professor universitário, deu-se início à publicação de uma primeira «grande» síntese que reuniu a colaboração de especialistas de história medieval e principalmente modernistas8. O intuito é apresentar uma perspectiva genérica sobre a História de Portugal, tratando sucessivamente os acontecimentos políticos, aspectos da evolução económica, social, artística e cultural. Os quatro primeiros volumes publicados entre 1928 e 1932 abrangem o período habitualmente consignado à Idade Média, mas não exclusivamente. 5

GODINHO, Vitorino Magalhães – “A historiografia portuguesa do século XX – orientações, problemas e perspectivas”, In Ensaios III sobre teoria da História e Historiografia, Lisboa, Sá da Costa, p. 236. 6 Referência aos aspectos culturais e civilizacionais de alguns dos principais povos que habitaram o território: lusitanos, romanos, germanos e árabes. 7 Professor da disciplina de História de Portugal nas Faculdades de Letras da Universidade do Porto (1919-1930) e Director do Arquivo Histórico do Porto (1925-1930). Em 1926, foi-lhe atribuído o grau de Doutor em Letras – ramo Ciências Históricas. A partir de 1930 até à data da sua jubilação (1959) exerceu funções docentes na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. 8 História de Portugal, dir. literária de Damião Peres e artística de Eleutério Cerdeira, vols. I-VIII, e I suplemento, Barcelos, Portucalense Editora, 1928-1953; II suplemento, Porto, Livraria Civilização, 1974.

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A obra reflecte maior desequilíbrio do que a anterior, dado que reúne um grupo de estudiosos bastante ecléctico, com distinta formação cultural e científica. É, por isso mesmo, uma obra mais ‘interdisciplinar’. No entanto, mantém-se o predomínio da história política, dinástica e événementielle, envolvida por um «novo» quadro interpretativo. A obra é composta por um total de oito volumes e dois suplementos, editados em tempo posterior ao arranque da publicação, 1954 e 1974, respectivamente. No prefácio ao primeiro volume alude-se à necessidade de contestar as teses Oitocentistas de carácter nacionalista, cujo primeiro opositor terá sido Alexandre Herculano, por se considerarem afastadas da formação da Nação as raízes lusitanas, romanas, germanas e árabes. Alexandre Herculano tinha há muito deixado claro que o processo de independência não se deveu às gerações de povos que habitaram o território de onde nascerá Portugal no século XII. Aliás, do I volume, subdividido em oito partes, apenas duas se aproximam cronologicamente das origens da nacionalidade, podendo contribuir para a sua explicação: “A reconquista cristã” assinada por Damião Peres e “O Condado Portucalense” da responsabilidade de Manuel Ramos (1862-1931)9. Esta compartimentação em termos temáticos inviabiliza o desenvolvimento de uma visão integradora da história nacional. Os II e III volumes abrem com uma extensa primeira parte dedicada à história política assinada por Manuel Ramos, Ângelo Ribeiro (18861936)10, Damião Peres e António Baião (1878-1961)11. O II volume cobre o período de 1128 a 1411, da Batalha de S. Mamede12 à assinatura da paz com Castela; o III e o IV volumes, do Tratado de Paz de Segóvia (1411) até à morte de João III (1557). Merecenos a pena ressalvar as colaborações de David Lopes (1867-1942)13 sobre “O domínio árabe” e “os Portugueses em Marrocos”; de Manoel Paulo Mêrea (1889-1977)14 sobre a “Organização social e administração pública” e de João Lúcio de Azevedo (1855-

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Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Regeu cadeiras de História em geral e de História de Arte. Foi tradutor, filólogo e crítico literário. 10 Professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Regeu múltiplas disciplinas na área da História e da Literatura. Em 1926, recebeu o grau de Doutor em Letras – Filologia Germânica. 11 Estudioso da História Moderna, Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo (1908-1948); publicou estudos sobre o estabelecimento da Inquisição em Portugal, no Brasil e em Goa. 12 Que opôs Afonso Henriques e os barões portucalenses à autoridade de D. Teresa e à influência dos nobres galegos. 13 Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde ensinou Língua e Literatura árabes, áreas de investigação que sempre privilegiou. Entre 1889 e 1992, estudou em Paris na École Nationale des Langues Orientales Vivantes e na École Pratique des Hautes Études. 14 Doutor em Direito (1914), exerceu funções docentes na Faculdade de Direito de Coimbra desde 1915 até 1947, data da jubilação, com excepção do período de 1924 a 1932, em que ensinou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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1933)15 sobre a “Organização Económica”, se bem que defenda a ideia de uma “monarquia agrária” (talvez devido ao facto de ser um modernista), para todo o período medieval, concepção pouco tempo depois contestada por Jaime Cortesão16 (1884-1960) e António Sérgio17 (1983-1969). A obra é profusamente ilustrada (no primeiro volume tem ca. de seiscentas gravuras, fotografias e imagens), mas por outro lado, manifesta uma ausência total de referência a fontes e bibliografia especializadas, excepção feita aos capítulos da autoria de David Lopes, circunstância que, actualmente, dispensa a consulta por parte dos investigadores e especialistas. As duas Histórias gerais de Portugal, publicadas na primeira metade do século XX, estão marcadas por uma urdidura da história nacional onde impera a referência às datas, aos acontecimentos sociais, aos episódios políticos e militares, falhando no âmbito interpretativo e no estabelecimento de uma visão de conjunto do evoluir da sociedade medieval. Por tudo isto, Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011) considera que “Nenhuma destas histórias serviu de trampolim para qualquer movimento vasto e intenso de investigação”18. 2. Dos anos 60/70 à actualidade: no trilho de nova história medieval portuguesa? Constitui um marco no panorama editorial e historiográfico português a publicação nos anos 60 do Dicionário de História de Portugal, sob a direcção do historiador Joel Serrão (1919-2008), num total de seis volumes19. Trata-se da mais importante compilação temática da História de Portugal, na qual participaram dezenas de especialistas na redacção de múltiplos artigos dedicados a conceitos, terras, acontecimentos históricos, personalidades, sistemas e doutrinas. O Dicionário constitui até aos dias de hoje uma obra de referência pela actualidade e rigor científicos do conjunto de informações ai reunidas. Alguns dos artigos constituem excelentes sinopses da pesquisa

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Autodidacta, consagrou grande parte dos seus trabalhos históricos à História Moderna. Publicou estudos sobre história económica de Portugal, os cristãos–novos, a vida e a obra do padre António Vieira e a época do Marquês de Pombal. 16 Na obra intitulada: Os factores democráticos na formação de Portugal, Lisboa, 1930. Este mesmo autor participa nesta síntese com duas colaborações sobre os “Descobrimentos e conquistas” portugueses no século XV e sobre o “Domínio Ultramarino” no século XVI. 17 Na Introdução geográfico-sociológica à História de Portugal, Lisboa, s/d. Trata-se do I volume da História de Portugal que António Sérgio nunca concluiu. 18 Godinho, Vitorino Magalhães, ob. cit., p. 226. 19 Porto, Livraria Figueirinhas, 1960. Posteriormente, a obra conheceu várias reedições, a última das quais sob a coord. António BARRETO e Maria Filomena MÓNICA, no biénio de 1999-2000, tendo sofrido uma actualização em três volumes relativos ao período de 1926-1974.

6 histórica que até então se havia realizado, de modo que permitem descortinar o «estado da

arte» sobre o assunto ao tempo da respectiva elaboração. No que toca o período medieval, merecem-nos referência as contribuições de Vitorino Magalhães Godinho sobre “Finanças Públicas e Estrutura do Estado”, de Orlando Ribeiro (1911-1997) sobre “Formação de Portugal”, de Jorge Borges de Macedo (1921-1996) sobre “Absolutismo”, ou de A. H. de Oliveira Marques (1933-2007) sobre “Pesos e Medidas”, “Diplomática”, “Paleografia”, entre muitos outros. Na mesma década, A. H. de Oliveira Marques edita o Guia do Estudante de História Medieval Portuguesa20, composto por sete capítulos onde sucessivamente dá indicações sobre bibliografias, Atlas e Dicionários, obras de síntese gerais, regionais e locais, bem como bibliografias disponíveis nas áreas da história económica e social, história institucional e do direito, história militar e naval, história de arte, história biográfica, história dos descobrimentos e expansão e nas, tradicionalmente, designadas «ciências auxiliares» da História. Na verdade trata-se do primeiro roteiro detalhado dos estudos disponíveis sobre cada uma das matérias e o conjunto de fontes medievais portuguesas (impressas, narrativas, literárias e jurídicas). Oliveira Marques para além de apresentar o elenco de todo o material disponível nas Bibliotecas e Arquivos portugueses efectua um diagnóstico do que está por fazer, propondo o estudo de temas e assuntos e novos rumos de investigação. Em resumo, as duas obras de referência publicadas na década de 60 preparam os destinos da historiografia medieval portuguesa, não só pela adopção de novas abordagens e conceitos, mas também por representarem o estado de ‘desenvolvimento’ alcançado pela nossa historiografia no tempo definido. Reiterando as preocupações de actualização historiográfica, Maria Helena da Cruz Coelho, a exemplo do anterior, publica posteriormente um novo guia de iniciação à investigação em História Medieval, onde propõe áreas e domínios de análise adicionais e procede à actualização bibliográfica21. Nos alvores da década de 70, é dada ao prelo uma síntese da autoria de A. H. de Oliveira Marques22. Medievalista de formação, conhecedor e estudioso de vários temas 20

Lisboa, 1964. COELHO, Maria Helena da Cruz – História Medieval de Portugal. Guia de Estudo, Porto, Universidade Portucalense, 1991. 22 História de Portugal, 2 vols., Lisboa, 1972. A obra teve publicação simultânea nos Estados Unidos, pela Columbia University Press, e em Portugal e em Inglaterra. Posteriormente, conheceu edições em francês, italiano, polaco, espanhol, chinês entre outras. Em português conheceu pelo menos 18 edições, tendo sido objecto de actualizações e correcções posteriores. 21

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e problemas da nossa história23, Oliveira Marques concretiza em dois volumes um novo modelo de síntese - manual -, assente no desenvolvimento e relacionação de uma variedade de temas que incluem as áreas da economia à cultura e mentalidades, passando pelos aspectos artísticos e a análise dos factores políticos, integrando-os na explicação global do evoluir das sociedades medieval, moderna e contemporânea. Foi um dos investigadores portugueses a revelar uma especial propensão para desenvolver uma visão de conjunto da história portuguesa numa perspectiva historiográfica moderna, permeável à corrente historiográfica dos Annales. Na edição original (1972), o I volume incide sobre um longo período, desde as origens remotas do território às revoluções liberais, procurando fugir às questões ideológicas. Nas páginas que revertem à Idade Média são aclaradas algumas questões, explanados sob um novo ângulo velhos temas e problemas e indicadas fontes bibliográficas e fontes originais. O autor adverte que “Antes da formação de Portugal como Estado separado no ocidente da Península, diversas outras unidades políticas surgiram (…) Entre elas nunca existiu continuidade. (…) Mas as provas são dúbias, e à serena objectividade histórica têm-se sempre sobreposto objectivos patrióticos de encontrar tradições antigas para o novo reino”24. Do mesmo modo, no que diz respeito a um tema que à época não seria fácil abordar - o «feudalismo» -, o autor tem especial preocupação em proceder a uma caracterização das especificidades do Portugal feudal comparando-o com outros reinos peninsulares, mormente Castela, e da Europa de além-Pirinéus. De igual modo, para explicar o processo histórico de organização, povoamento e colonização do território concebe como indispensável a referência à presença árabe na Península Ibérica. Aliás, esta é uma das virtudes da obra - o apelo à história comparada. Oliveira Marques conjuga síntese, interpretação e erudição, resultando um balanço bastante equilibrado. Guiado pela objectividade histórica, o autor não dispensa a referência a trabalhos especializados e às fontes. Estes atributos garantiram um impacto imediato da obra junto dos círculos académicos, no ensino secundário e no público em geral. A obra depressa veio a transformar-se num manual de consulta obrigatória.

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Sobre a obra do autor pode ver-se Na Jubilação Universitária de A. H. de Oliveira Marques, dir. Armando Luís de Carvalho HOMEM, Coimbra, Minerva, 2003 e uma biografia intelectual em FREITAS, Judite A. Gonçalves de – “A. H. de Oliveira Marques (1933-2007)”, In Rewriting the Middle Ages in the Twentieth Century, vol. II: National Traditions, ed. Jaume AURELL & Julia PAVÓN, Turnhout, Brepols, 2009, pp. 183-205. 24 MARQUES, A. H. de Oliveira – História de Portugal, I vol., Lisboa, Palas Editores, p. 48.

Comentário [YUN1]: Inseri, em baixo, a referência ao mundo islâmico.

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Em 1977 é dada à estampa uma nova síntese da inteira autoria de Joaquim Veríssimo Serrão25, que representa em termos temáticos, metodológicos e estruturais um regresso ao paradigma da primeira metade do século XX. Efectivamente, os pressupostos epistemológicos de que parte Veríssimo Serrão encontram-se mais próximos da História de Portugal de Fortunato de Almeida do que da de Oliveira Marques. De um total de dezassete volumes até hoje publicados, apenas os dois primeiros volumes interessam à Idade Média. O I volume tem por título “Estado, Pátria e Nação (1085-1415)” e o II: “ A formação do Estado Moderno (1415-1495)”. De acentuada vertente tradicionalista, esta síntese recua aos tempos do Paleolítico antigo e às primeiras instalações de povos nas regiões do Ocidente peninsular para explicar as raízes da formação da nação, perspectiva que hoje não nos merece atenção. Não obstante, a abundância de dados cronológicos, factuais e as profusas referências bibliográficas e de fontes, o autor não consegue diluir a desproporcionalidade da dimensão consignada à abordagem da Idade Média, com um volume principal, e todos os restantes à Idade Moderna e Contemporânea, épocas que, por certo, conhecerá melhor. Ainda assim, numa tentativa de conciliar a síntese e a interpretação, o autor procede à resenha das teses sobre alguns dos temas e problemas da história medieval, como por exemplo a «reconquista cristã», a teoria hoje praticamente posta de lado do «ermamento»26, que colheu adeptos fervorosos durante a segunda metade do século XIX (Alexandre Herculano) e ainda no século XX (Claudio Sanchez-Albornoz [18931984] e, mormente, Torquato de Sousa Soares [1903-1988] que a apelidou de «despovoamento»), «a crise de 1383-1385» entre outros fenómenos, numa perspectiva cronológica e factológica, onde predomina a quantidade de informações sobre a leitura crítica do passado medieval. Sob a direcção de José Hermano Saraiva, entre 1983 e 1985, é publicada nova síntese da história pátria em sete volumes27, três dos quais abordam o período medieval, muito embora não exclusivamente. As grandes virtudes desta obra residem na circunstância dos artigos terem sido assinados, numa maioria dos casos, por medievalistas de formação ou por especialistas. Não obstante, no I volume, mais uma vez, voltamos a encontrar uma resenha desde o Paleolítico à instalação do Islão no

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História de Portugal, vols. I-XVII, Lisboa, Verbo, 1977-2007. Apenas os dois primeiros volumes dizem respeito à Idade Média. 26 Como resultado da retirada total das populações após os primeiros anos da conquista árabe. 27 História de Portugal, dir. de José Hermano SARAIVA, vols. I-VII, Lisboa, Alfa, 1983-1985.

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ocidente peninsular, passando pela descrição da Idade dos Metais, dominação romana, invasões bárbaras, tudo serve para justificar os antecedentes pré-históricos e protohistóricos da nacionalidade! O destaque vai para os artigos de António Cruz (19111989) “Do início da reconquista à fundação do condado portucalense”, de J. A. Nogueira sobre “As instituições e o Direito”, e de José Mattoso, que é responsável pela maior parte do II volume, onde procede a uma análise crítica das questões relacionadas com a afirmação do “Condado Portucalense” e a subsequente evolução política do reino, desde Afonso Henriques a Sancho II, concluindo com uma abordagem dos movimentos sociais. Da autoria do economista e historiador Armando de Castro (19181999) são todos os tópicos de análise da evolução da económica medieval, do mesmo modo que as três conjunturas monetárias são tratadas por Maria José Ferro Tavares, respectivamente 1128-1245, 1245-1383 e 1383-1481. Os três volumes dedicados à Idade Média apresentam uma súmula dos tópicos apresentados e uma lista final com as principais referências bibliográficas. Nos anos de 1987 a 1996 foi editada a Nova História de Portugal, em doze volumes, dirigida por Joel Serrão, historiador responsável pela edição do Dicionário de História de Portugal de que já falámos, e A. H. de Oliveira Marques, um dos promotores da renovação da nossa historiografia, sobretudo a partir dos anos 70 do século XX28. Seguindo um modelo praticado em colecções precedentes, um ou dois coordenadores e vários colaboradores especialistas em Idade Média, esta síntese afirmase como uma história nova de Portugal que “aspira a sugerir hipóteses, a colocar problemas, a suscitar trabalhos de investigação”29, mais do que apresentar dados conclusivos sobre a evolução do processo histórico português. O III volume30, publicado em 1996, define o quadro de desenvolvimento do «Portugal» de 1096 a 1325. A. H. de

Oliveira Marques debruça-se sobre as condições de emergência do condado Portucalense e o processo de desenvolvimento do reino de Portugal, Maria Helena da Cruz Coelho caracteriza a configuração das estruturas da sociedade medieval e Armando Luís de Carvalho Homem analisa as condicionantes do exercício do poder régio e a criação dos órgãos centrais da administração. O IV volume que, curiosamente, 28

Nova História de Portugal, dir. de Joel SERRÃO e A. H. de Oliveira MARQUES, vols. I-XII, Lisboa, Presença, 1987-1996.

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MARQUES, A. H. de Oliveira – “Prefácio”, in Nova História de Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. IV, Lisboa, Presença, 1987, p. 9. 30 Tem por título: Portugal em definição de Fronteiras (1096-1325). Do Condado portucalense à Crise do Século XIV, Lisboa, Editorial Presença, 1996.

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marcou o início da edição desta síntese em 1987, é inteiramente redigido por A. H. de Oliveira Marques31. Ficam nele definidos os pressupostos metodológicos e conceptuais, bem como a periodização correspondente a uma longa fase de crise de 1320 a 1470/1480. A menção de fontes e a divulgação de listagens bibliográficas exaustivas fazem desta obra um objecto de pesquisa e um imprescindível instrumento de trabalho. Nos anos de 1992-1993, José Mattoso, dirige a edição de uma síntese da História de Portugal que rompe, de algum modo, com o paradigma anterior ao preencher algumas lacunas e apresentar um «novo olhar» sobre a complexidade do processo identitário de Portugal. Com uma vincada linha interpretativa e analítica do fenómeno da nacionalidade portuguesa, linha que o autor havia desenvolvido na década anterior na Identificação de um País32, a História de Portugal surge como reflexo da inovação introduzida por aquela obra basilar, colando a tónica na abordagem das idiossincrasias e dos contextos de afirmação dos Poderes (régio, senhorial, eclesiástico e concelhio) inserindo-os num quadro peninsular e mais geral33. Justapondo as hodiernas concepções historiográficas que promovem o diálogo interdisciplinar entre a História e a Antropologia ou entre a História e a Sociologia política, este reconhecido trabalho destaca-se pelo distinto conteúdo interpretativo, sustentado numa interpretação actualizada das fontes e dos estudos mais recentes. Trata-se de uma “«nova história» com a preocupação de cobrir todos os campos do passado humano [considerando] as suas manifestações políticas e mentais, que são, é claro, os dois quadros mais directamente relacionados, um com a actuação do Poder no espaço que ele próprio domina, o outro com a consciência que os habitantes desse espaço têm de pertencer a uma colectividade diferenciada de qualquer outra”34. O I volume intitulado “Antes de Portugal” apresenta um balanço da fase proto-histórica e romana, prosseguindo com a caracterização do Al-Andaluz desde a conquista territorial (século VIII) à fase final da presença islâmica em território nacional (1250) assinada por Cláudio Torres e, por último, José Mattoso procede à inserção da emergência do reino de Portugal no contexto asturiano-leonês, abordando sucessivamente as “Origens”, os “Espaços”, os 31

Com o título: Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, Lisboa, Editorial Presença, 1987. MATTOSO, José – A identificação de um país. I vol. Oposição, II vol. Composição, Mem Martins, Círculo de Leitores, 2001. A 1ª edição tem por título: Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal 1096-1325, vol. I Oposição, vol. II Composição, Lisboa, Editorial Estampa, 1985. 33 História de Portugal, coord. de José MATTOSO, vols. I-VIII, Mem Martins, Círculo de Leitores, 1992-1993. 34 MATTOSO, José – “Apresentação”, in História de Portugal. A Monarquia Feudal (1096-1480), vol. II, coord. de IDEM, Mem Martins, Círculo de Leitores, 1993, p. 12. 32

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“Poderes”, a “Religião e Cultura” e as “Transformações do século XI”. O II volume intitulado “A Monarquia Feudal (1096-1480)”compreende praticamente todo o período medieval português desde a formação da nacionalidade até inícios do reinado de João II. Este longo período é subdividido em duas unidades cronológicas distintas, um tempo inicial de formação e consolidação da monarquia e identidade política (1096-1325), da responsabilidade de José Mattoso, e um segundo momento de afirmação da autoridade régia (1325-1480), da autoria de Armindo de Sousa (1941-1998). Combinando os critérios rigor, interpretação e actualidade científicos todos os títulos são apoiados em referências bibliográficas e de fontes. No final dos volumes é disponibilizada uma lista das fontes impressas e da bibliografia referenciada. Sob a coordenação de Rui Ramos foi, mais recentemente, publicada uma nova síntese problematizante, de marcado cunho académico, na qual se condensa, de forma narrativa e sequencial, o percurso político, social, cultural e económico de Portugal, desde a identificação territorial condal (Condado Portucalense) à actualidade, inserindoa num contexto europeu e universal35. Publicada num só volume, esta síntese insere-se num perfil editorial fundado por A. H. de Oliveira Marques em 1972, numa altura em que a produção historiográfica nacional e, mormente, a historiografia medieval, não tinham alcançado a dimensão quantitativa e a maturidade científica actuais. Nesta visão geral da História de Portugal segue-se a divisão consagrada em três unidades temporais distintas (Idade Média, séculos XI-XV; Idade Moderna, séculos XVI-XVIII e Idade Contemporânea, séculos XIX-XXI), da responsabilidade respectivamente de Bernardo Vasconcelos e Sousa, Nuno Gonçalves Monteiro e Rui Ramos. No que toca o período medieval, as conjunturas consideradas correspondem às cesuras adoptadas nas sínteses imediatamente precedentes. Intentou-se a elaboração de uma síntese, que combinasse a narrativa explicativa dos fenómenos históricos patentes nos estudos e nas análises mais recentes com a interpretação, no intuito de promover a respectiva divulgação junto dos estudiosos e do público em geral. Com distinto perfil em termos organizacionais, de conteúdo e valor explicativo é o segundo volume da mais recente História de Portugal da autoria de António Borges

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RAMOS, Rui (coord.) - História de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009. Toda a primeira dedicada à análise do período medieval é da responsabilidade de Bernardo VASCONCELOS E SOUSA, intitula-se “Idade Média (séculos XI-XV)”, pp. 17-197.

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Coelho que “abraça o tempo da formação e da refundação do Estado português”36, desde Afonso Henriques até à aclamação de João I (1385). Seguindo de perto um modelo ensaístico, de pendor didáctico, o autor expende as suas próprias ideias, profere críticas e reflexões a respeito de diferentes factos, temas e problemas, assumindo uma posição menos formal que os anteriores modelos de síntese. De facto, esta parece-nos ser a síntese em que mais se nota a defesa de um ponto de vista pessoal, sem as formalidades naturais do discurso científico. São praticamente dispensadas as notas de pé-de-página, a menção de fontes documentais e bibliográficas. Valoriza-se a interpretação pessoal do processo de formação da identidade nacional, apontando e interpretando dados, expondo reflexões de maior ou menor rigor científico. Em paralelo com esta intensa actividade de renovação, interpretação actualizada e divulgação da História geral de Portugal, a partir dos anos 90, deparamos com a publicação de importantes histórias gerais sectoriais37, como resultado da intensificação da produção científica pelas universidades portuguesas. Desde as precursoras sínteses sobre a expansão e descobrimentos portugueses38, passando pela história do poder local39, a história religiosa40, a história social da guerra (história militar)41, e, mais recentemente, a história da vida quotidiana42, atestando um renovado dinamismo da nossa historiografia. A este movimento científico subjaz o incremento da especialização da investigação histórica medieval em particular e a internacionalização da historiografia portuguesa em geral. No que se refere à divulgação internacional, merece

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A época da designada «refundação» coincide com a aclamação de D. João, Mestre de Avis, para rei de Portugal. Ver por todos, COELHO, António, Borges – Portugal Medievo. História de Portugal, vol. II, Lisboa, Caminho, 2011, p. 13. O I volume tem por título Donde viemos. História de Portugal, Lisboa, Caminho, 2010. 37 A apreciação d as sínteses sectoriais consta dos respectivos domínios abordados nesta obra pelo que nos escusamos de as submeter a um exame detalhado. 38 Nos anos 80 é editada a Nova História da Expansão Portuguesa, dir. de Joel SERRÃO e A.H. de Oliveira MARQUES, 12 vols. e vários tomos, Lisboa, Editorial Presença, 1996-2004 e a História da Expansão Portuguesa, dir. de F. BETHENCOURT e Kirti CHAUDHURI, 5 vols., Mem Martins, Círculo de Leitores, 1998–1999. 39 História dos Municípios e do Poder local. Dos finais da Idade Média à União Europeia, dir. de César OLIVEIRA, Mem Martins, Círculo de Leitores, 1996. 40 História Religiosa de Portugal, coord. de Carlos Moreira de AZEVEDO, 3 vols., Mem Martins, Círculo de Leitores, 2002. 41 Nova História Militar de Portugal, dir. geral de Manuel Themudo BARATA e Nuno Severiano TEIXEIRA, 5 vols., Mem Martins, Círculo de Leitores, 2003-2004. 42 História da Vida Privada em Portugal, coord. de José MATTOSO, 4 vols., Mem Martins, Círculo de Leitores, 2010-2011.

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a pena destacar o mais recente balanço sobre historiografia portuguesa publicado em língua inglesa numa revista de referência43. 3. O Medievalismo Hoje: raízes da identidade disciplinar e estado da arte O lugar ocupado pela história medieval nos curricula universitários foi, desde a implantação da I República (1910-1926) até finais dos anos 50, muito diminuto44, em resultado de condicionantes derivadas da estrutura universitária dos cursos (designadamente a associação da História à Geografia e posteriormente da História à Filosofia45), das dificuldades do ensino, de clichés preconceituosos que repousavam no atraso cultural do país e de factores ideológicos de regime que, em conjunto, levaram a considerar durante muito tempo a Idade Média como uma época de obscurantismo e de superstição. Por consequência, sempre se foi dando maior importância na estrutura curricular dos cursos superiores de letras à Antiguidade Clássica e à História Moderna e Contemporânea. Não obstante esta tendência geral, ao longo da primeira metade do século XX, é de sublinhar o interesse por determinadas temáticas de origem medieval, de entre as quais se conta, nomeadamente, a epopeia das descobertas ultramarinas portuguesas, a fundação da nacionalidade e a afirmação da monarquia portuguesa, no âmbito das comemorações que celebravam os movimentos históricos de afirmação da identidade nacional, recuando, inevitavelmente, ao passado medieval português46. Foram sobretudo circunstâncias políticas e ideológicas particulares que, durante o Estado Novo (192643

E-journal of Portuguese History, vol. 8, nº 2, Winter 2010. Ver por todos, especialmente, as contribuições de José Mattoso, José Augusto Sottomayor-Pizarro e Hermínia Vasconcelos Vilar. Disponível em: < http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/current.html>. 44 Em 1911 com a criação das Faculdades de Letras das Universidades de Coimbra e de Lisboa surge pela primeira vez a disciplina de História Medieval no 2º ano da licenciatura em Ciências Históricas e Geográficas. Sobre o assunto ver por todos, HOMEM, Armando Luís de Carvalho – “A Idade Média nas Universidades Portuguesas (1911-1987). Legislação, Ensino, Investigação”, Revista da Faculdade de Letras [UP], História, II série, vol. X, pp. 351-361; reed. in Anais da Universidade Autónoma de Lisboa, série História, I (1994), pp. 331-338. 45 Somente com a reforma curricular de 1957 que autonomiza, designadamente, a História da Filosofia passam a constar duas disciplinas específicas anuais de História da Idade Média e História da Cultura Medieval, no 3º ano da licenciatura em História. Ver por todos, HOMEM, Armando Luís de Carvalho – “A Idade Média nas Universidades Portuguesas (1911-1987)”, p. 353 e FREITAS, Judite A. Gonçalves de – “O ensino universitário da História nas décadas de 50 e 60: as reformas curriculares”, in (Re)visão das Ditaduras Europeias da segunda metade do século XX, Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa, pp. 46-55. 46 O Estado Novo (1926-1974) promoveu o desenvolvimento de uma historiografia oficial do regime, assente num programa de celebrações iniciado nos anos 40 com o duplo centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). Ver por todos, TORGAL, Luís Reis, MENDES - “A História em tempo de «Ditadura»”, in História da História em Portugal. Sécs. XIX-XX, coord. IDEM, José Amado MENDES e Fernando CATROGA, Mem Martins, Círculo de Leitores, 1996, pp. 241-275.

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1974), permitiram a realização de estudos sobre a Idade Média e a publicação de importantes colecções de fontes medievais47. No entanto, o ‘medievalismo’ carecia de afirmar a sua autonomia científica e de libertar-se da função legitimadora que lhe era tradicionalmente atribuída, designadamente, pelos historiadores do regime48. O estudo da Idade Média, na primeira metade do século XX, deveu-se sobretudo ao interesse individual e à participação pontual em obras colectivas de alguns eruditos voluntariosos. A primeira aproximação às correntes historiográficas europeias do pós-guerra, mormente à revista francesa Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, é consumada de forma algo tímida por docentes universitários das escolas de Coimbra, Lisboa e Porto nos finais dos anos 50. Os anos 60 são anos de maior abertura às correntes historiográficas internacionais nas universidades portuguesas. Começa a constituir-se um núcleo de docentes universitários estudiosos do passado medieval português, empenhados em formar alunos com capacidade para investigar e prosseguir uma carreira no ensino. Nos anos 70 é definitivamente firmada a legitimidade científica do medievalismo com a criação da especialidade de doutoramento em História da Idade Média49. Finalmente a Idade Média assume-se como um território interpretativo e científico autónomos, afastando-se em definitivo da imagem romântica, erudita e demasiado estreita herdada do século XIX e promovida durante a primeira metade do século XX. Nos últimos quarenta anos o número crescente de especialistas pósgraduados50 permitiu a afirmação disciplinar, a renovação, a actualização e a

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A publicação de colectâneas de documentos medievais constitui um dos principais legados do Estado Novo (1926-1974), de entre as quais destacamos, nomeadamente: os Descobrimentos Portugueses (19441971), os Monumenta Henricina (1960-1974) e o Chartularium Universitatis Portucalensis (1966- 1985), a cargo de eruditos, paleógrafos e entusiastas de arquivo. Sobre o programa oficial das comemorações e a respectiva associação à publicação de colectâneas,ver por todos CATROGA, Fernando – “Ritualizações da História. As Comemorações como liturgias cívicas”, in História da História em Portugal. Sécs. XIXXX, coord. Luís Reis TORGAL, José Amado MENDES e IDEM, Mem Martins, Círculo de Leitores, 1996, pp. 547-671. 48 Durante o Estado Novo (1926-1974), a História em geral e a História Medieval em particular mantiveram uma função ideológica e legitimadora dos valores nacionalistas e integracionistas, facto que, de algum modo, impediu a afirmação científica da disciplina. Ver por todos, TORGAL, Luís Reis – História e Ideologia, Coimbra, Minerva, 1989. 49 O ministro Veiga Simão, em 1970, criou as especialidades de doutoramento em Pré-História e Arqueologia, História da Arte, História da Idade Média e História Moderna e Contemporânea, em vigor até aos anos 90. No nosso país, o reconhecimento da Idade Média como área científica distinta foi bastante tardio, devido ao conjunto de factores políticos e ideológicos expostos. 50 Nos anos 80, em consequência da criação da especialidade de doutoramento em História Medieval na década anterior, surge uma nova geração de especialistas em Idade Média. Ver por todos HOMEM, Armando Luís de Carvalho – “O medievismo em liberdade (anos 70/anos 90)”, Signum. Revista da ABREM: Associação Brasileira de Estudos Medievais, 3 (2001), pp. 173-197; Reed. in M. C. PROENÇA (coord.), Um século de Ensino da História, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp. 183-213.

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internacionalização científicas da nossa área do saber, promovendo o desenvolvimento de uma relação estreita entre ensino e investigação. A identidade da historiografia medieval portuguesa nos últimos anos pode ser vista como uma articulação contínua entre dois processos: de um lado, a constituição de um stock de memória da produção historiográfica medieval nacional com uma estrutura específica e individualmente incorporada, por outro lado, como uma área de estudo reconhecida cientificamente que lhe confere um sentido. Um momento de superior consciência identitária dos medievalistas inscreve-se num quadro institucional e político marcado pela implantação do regime democrático e o subsequente estímulo ao aprofundamento da relação ensino-investigação-divulgação. Num primeiro momento, assiste-se ao desenvolvimento da reflexão e formulação do todo, num momento subsequente (mormente nos anos 90), em virtude do processo de individualização de linhas de investigação e da criação de campos de estudo estáveis e autónomos nas unidades produtoras de saber - as universidades -, vemos explodir a produção de sínteses temáticas. Em quarenta anos foram produzidas perto de meia centena de sínteses generalistas e temáticas, um claro sinal de afirmação da maturidade científica alcançada pela História Medieval como área do saber. A maioria dos balanços dá conta das principais vertentes de desenvolvimento dos estudos medievais nas universidades portuguesas sobretudo desde os anos 70, uns poucos são exclusivamente dedicados ao ensino da Idade Média nos diferentes níveis de ensino51 e à evolução do peso da História Medieval nos curricula das licenciaturas de História das universidades portuguesas52. Os balanços efectuados nos anos 80 inauguram um modelo difusor da produção científica medieval, tocando as principais vertentes de evolução dos estudos medievais em Portugal53. Tal é o caso da síntese pioneira de José Mattoso que 51 MATTOSO, José – “A História que se ensina aos futuros professores de História”, in O Estudo da História. A Reforma Educativa e o Ensino da História, Boletim da Associação dos Professores de História, 2ª série, 1/12-25 (1990-1993), p. 303-331; IDEM -– “A História hoje: que história ensinar ?“, in M. C. PROENÇA (coord.), Um Século de Ensino da História, Lisboa, 2001, p. 223-236; DUARTE, Luís Miguel – “A investigação e o ensino da História Medieval na Faculdade de Letras do Porto: passado recente, presente e dúvidas quanto ao futuro”, Anais, série História, II (1995), pp. 235-241. 52

HOMEM, Armando Luís de Carvalho - “A História que nos fez e a História que se faz: da primeira à segunda fase da Faculdade de Letras da Universidade do Porto”, Revista de História, 11 (1991), p. 227240; IDEM – “A Idade Média nas Universidades Portuguesas (1911-1987)…”, pp. 351-361; IDEM – “O medievismo em liberdade anos 70/anos 90)”, pp. 183-213. 53 Esta síntese não pode ter preocupações de exaustividade dado o elevado número dos balanços historiográficos efectuados desde inícios dos anos 80 aos nossos dias. Concederemos, por isso, maior ênfase aos que nos parece terem tido superior impacto (temático, metodológico e internacional).

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procede a uma análise e avaliação dos avanços e das fragilidades da historiografia medieval portuguesa até aos inícios dos anos 8054. Em 1988 surge uma nova síntese com o título indagador – “Por onde vem o medievismo em Portugal?”55 – estabelecendo uma ponte entre os estados da questão e o horizonte de possibilidades de desenvolvimento de linhas de investigação no futuro próximo. Transcorrendo os âmbitos temáticos da investigação e publicação nos anos 80, os autores destacam sequencialmente a edição de fontes, os momentos-chave das pesquisas no âmbito história rural e da história urbana56, o despontar do estudo dos movimentos sociais nos séculos XIV-XV, bem como perspectivam o arranque de hodiernas linhas de investigação, mormente a história dos poderes, domínio de investigação que merecerá um ano mais tarde tratamento autónomo57. Parece ter-se criado o hábito científico de auto-reflexão patente na multiplicação de balanços gerais e de sínteses autónomas, desde inícios da década de 90, incidindo sobre distintos domínios temáticos e cronológicos. Neste contexto, surgem mais dois novos pontos da situação na viragem para os anos 9058. A década de 90 traz-nos um aumento exponencial das sínteses, numa articulação, mais ou menos equilibrada, entre balanços gerais e específicos de edição nacional e internacional. Por comodidade de exposição iremos agrupá-las de acordo com as incidências temáticas, salientando o crescente peso da internacionalização da historiografia medieval portuguesa. Na sequência dos estudos desenvolvidos sobre as cidades medievais portuguesas, impulsionados por A. H. de Oliveira Marques da Universidade Nova de Lisboa, a partir dos anos 70, foi editado no estrangeiro um

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MATTOSO, José – “Perspectivas actuais da investigação e da síntese na Historiografia medieval portuguesa (1128-1383)”, Revista de História Económica e Social, 9 (Jan.-Jun., 1982), pp. 145-162. 55 HOMEM, Armando Luís de Carvalho; ANDRADE, Amélia Aguiar e AMARAL, Luís Carlos – “Por onde vem o medievismo em Portugal”, Revista de História Económica e Social, 22 (Jan.-Abr., 1988), pp. 115-138. 56 Com especial incidência nos avanços promovidos e destacados por MARQUES, A. H. de Oliveira – Ensaios de Historiografia Portuguesa, Lisboa, Palas Editores, 1988. 57 GOMES, Rita Costa – «L’émergence du politique dans le Portugal du Bas Moyen Age», La recherche en Histoire du Portugal, 1 (1989), pp. 24-32. 58 COELHO, Maria Helena da Cruz – “A História Medieval Portuguesa: caminhos percorridos e a percorrer”, Media Aetas. Boletim do Núcleo de História Medieval, 1 (1991), p. 53-68, EAD. – “Historiografia na Idade Média”, in Portugal Moderno: Artes e Letras, coord. José Augusto FRANÇA, Lisboa, 1991, p. 192-195; MARQUES, A. H. de Oliveira – “Historiografia Portuguesa”, in Portugal Moderno: Artes e Letras, coord. José Augusto FRANÇA, Lisboa, 1991, pp. 189-190 e VELOSO, M. T. S. – “Para uma bibliografia crítica da História Medieval de Portugal: algumas notas”, A Historiografia Portuguesa Hoje, 21 (1991), p. 24-34.

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primeiro balanço sobre a história das cidades medievais portuguesas59 que virá a ser ampliado por sínteses autónomas posteriores60. No âmbito dos estudos de história do parlamento português é publicado em 1990 um balanço bibliográfico61. No ano seguinte prossegue a actividade de auto-reflexão com uma síntese sobre história da administração medieval portuguesa, na dimensão régia, municipal e parlamentar62 e um pioneiro balanço sobre Diplomática, uma “ciência de incidência histórica”63. Na sequência do aumento da produção científica em história social da nobreza, fomentada especialmente por José Mattoso, durante os anos 80 e 90, surgem duas sínteses que dão conta dos avanços produzidos neste domínio específico, sublinhando as hodiernas perspectivas de abordagem sobre percursos linhagísticos, estruturas de parentesco, identidade e poder daquele grupo social64. Na década de noventa são igualmente produzidos balanços historiográficos sobre concelhos65, governo municipal66 e diplomática municipal67. As pesquisas recentes de história rural68 mereceram tratamento 59

ANDRADE, Amélia Aguiar – “Un bilan de l’histoire des villes médiévales portugaises », Information historique, 51 [2] (1989), pp. 90-92. 60 ANDRADE, Amélia Aguiar de – “O Mundo Urbano Medieval: uma bibliografia, O estudo da História”, Boletim da Associação de Professores de História, 12-15 (1990-1993), 2ª série, pp. 75-89 e mais recentemente “O ensino da História Urbana nas universidades portuguesas; práticas e perspectivas”, in Avelino de Freitas de MENESES e João Paulo Oliveira e COSTA, coords. O reino, as ilhas e o mar oceano. Estudos em homenagem a Artur Teodoro de Matos, vol. I, Lisboa - Ponta Delgada, Universidade dos Açores – Centro de História de Além-Mar – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2007, pp. 265-283. 61

SOUSA, Armindo de – “As Cortes Medievais Portuguesas: panorama bibliográfico”, Penélope. Fazer e desfazer a História, 4 (1990), pp. 139-155. 62 MORENO, Humberto Baquero; DUARTE, Luís Miguel e AMARAL, Luís Carlos – “História da Administração Portuguesa na Idade Média: um balanço”, Ler História, 21 (1991), pp. 35-45. 63 A expressão é de Armando Luís de Carvalho Homem, cfr. infra, texto citado na n. 83. COELHO, Maria Helena da Cruz – “A Diplomática em Portugal: balanço e estado actual”, Revista Portuguesa de História, XXVI (1991), pp. 125 -155. Reed. com o título «A Diplomática em Portugal: caminhos mais antigos e mais recentes», in EADEM et al., Estudos de Diplomática Portuguesa, Lisboa/Coimbra, Colibri/ Faculdade de Letras, 2001, pp. 13-40. 64 MATTOSO, José “A investigacão da heráldica e da genealogia Medieval em Portugal na década de 1980”, In Las Armerías en la Europa al comenzar la Edad Moderna y su proyección al Nuevo Mundo, éd. F. Menéndez Pidal de Navasqués, Madrid, 1993, pp. 263-275 e PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor - “O género genealógico na Historiografia medievística portuguesa”, in Temas de Genealogia e de História da Família, Porto, 1988, pp. 103-132. 65 Incidindo, designadamente, sobre os aspectos da administração política (na relação com o poder régio e o poder eclesiástico), social, económico e fiscal. 66 COELHO, Maria Helena da Cruz – “O Poder Concelhio em Tempos Medievais. Balanço Historiográfico”, in O Município Português. Seminário Internacional, Funchal, 1998, p. 49-62. 67 ROSA, Isaías Pereira da; MARQUES, José; COELHO, Maria Helena Da Cruz e HOMEM, Armando Luís de Carvalho, «Diplomatique municipale portugaise (XIIIe-XVe siècle)», in W. PREVIENIER et Th. DE HEMPTINE, Diplomatique urbaine en Europe au Moyen Âge, Louvain/Apledoon, 1998, pp. 281305. 68 COELHO, Maria Helena da Cruz – “Balanço sobre a História Rural produzida em Portugal nas últimas décadas”, História. Revista. Revista do Departamento de História, vol. II, n.1, Universidade Federal de Goiás, 1997, pp. 7-32; reed. in A Cidade e o Campo. Colectânea de Estudos, Coimbra, 2000, pp. 23-40.

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autónomo. A difusão do método prosopográfico aplicado ao estudo das elites e das sociedades políticas da Idade Média portuguesa é objecto de uma síntese de divulgação internacional69, complementada, com o fechar da década, por um exame crítico das pesquisas sobre o Estado moderno no Portugal tardo-medievo70. O regresso às sínteses gerais prende-se, por um lado, com a necessidade de actualização em função do aumento da produção historiográfica medieval em geral e, por outro lado, deve-se ao reconhecimento e divulgação internacionais dos estudos medievais portugueses. Assim, surgem nos anos de 200171, 200472, 200573, 200674 e 201075, cinco balanços de carácter generalista editados, respectivamente no Brasil (1), Canadá (1), Itália (1) e França (2). Num movimento geral de auto-reflexão, projecta-se internacionalmente a actualização dos estados da arte ao inventariar as tendências recentes do medievismo nacional. Na primeira década do século XXI, assistimos a uma

69 HOMEM; Armando Luís de Carvalho – “Prosopographie et Histoire de l’Etat: La bureaucratie des rois portugais aux XIVe et XVe siècles – recherches faites, recherches à faire», in L’Etat Moderne et les Élites. Apports et limites de la méthode prosopographique, ed. Jean-Philippe GENET e Günther LOTTES, Paris, Publications de la Sorbonne, 1996, pp. 29-37. A renovação da História política e institucional coube, desde meados dos anos 80, a Armando Luís de Carvalho Homem que procedeu a algumas das principais sínteses sobre a «nova» História do político medieval, sínteses referenciadas ao longo deste texto. 70 HOMEM, Armando Luís de Carvalho - “O Estado Moderno na recente Historiografia Portuguesa: historiadores do Direito e historiadores “tout court”. 2. Uma “nova História política” da Idade Média portuguesa”, in Maria Helena da Cruz COELHO e Armando Luís de Carvalho HOMEM (coord.), A Génese do Estado Moderno no Portugal Tardo-medievo (séc. XIII-XV), Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 1999, p. 63-76. Entre nós, o debate sobre as raízes do Estado moderno foi consumado nos finais dos anos 90 ao abrigo de um ciclo de conferências de que resultou a publicação: A Génese do Estado Moderno no Portugal Tardo-medievo (séc. XIII-XV), Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 1999. 71

Numa síntese geral publicada pela ABREM / S. Paulo - Brasil, Armando Luís de Carvalho Homem, reflecte sobre os desenvolvimentos do medievismo português desde a implantação da democracia aos tempos recentes. O autor analisa a importância da consolidação das Escolas (mormente em Lisboa, Porto e Coimbra), destacando os rumos de investigação e as modernas práticas historiográficas que privilegiam a relação ensino-investigação. Ver por todos, HOMEM Armando Luís de Carvalho – “O Medievismo em liberdade: Portugal, anos 70 / anos 90”, Signum. Revista da ABREM, Associação Brasileira de Estudos Medievais, 3 (2001), pp. 173-197. 72 COSTA; Paula Pinto – “Os estudos medievais em Portugal (1970-2000): organização dos estudos e principais linhas de orientação”, Bullettino dell’ Istituto Storico Italiano per il Médio Evo, 106/2 (2004), pp. 248-272. 73 COELHO, Maria Helena da Cruz – “Historiographie et état actuel de la recherche sur le Portugal au Moyen Age », Memini. Trauvaux et Documents, Montréal, 9-10 (2005/2006), pp. 9-60. Trabalho produzido no âmbito de um seminário de divulgação internacional do estado actual da historiografia medieval portuguesa. 74 VASCONCELOS E SOUSA, Bernardo e BOISSELIER, Stéphane – “Pour un bilan de l’historiographie sur le Moyen Âge portugais au XXe siècle », Cahiers de civilisation médiévale. Xe-XIIe siècles. La Médiévistique au XXe siècle. Bilan et perspectives, 49 (2006), pp. 213-256. 75 FREITAS, Judite A. Gonçalves de – “Le Médiévisme au Portugal (1970-2005): genèses, héritages et innovations», Le Moyen Âge vu d’ailleurs. Voix croisées d’Amérique latine et d’Europe, dir. Eliana MAGNANI, Ed. Universitaires de Dijon, 2010, pp. 151-173.

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tendência para a diversificação dos temas e problemas que constituem objecto de síntese, reflectindo os avanços entretanto produzidos em determinadas áreas de estudo que mereciam um tratamento diferenciado. Neste grupo compete-nos destacar, nomeadamente, o balanço sobre casas senhoriais76, história religiosa e da Igreja77, história dos poderes (régio, senhorial, eclesiástico e concelhio)78, tal como os balanços sobre ordens militares79, as relações entre sociedade e economia80, a prosopografia e elites urbanas81, as perspectivas actuais sobre vida social e religiosa na Idade Média82 e, finalmente, o aprofundamento das relações entre Diplomática e história do direito83, bem como Diplomática e chancelarias régias84. Todos estes domínios historiográficos vieram a revelar-se nos anos 80 e 90 como muito sustentáveis, tanto a nível 76 SOUSA, João Silva de – «A Casa Senhorial em Portugal na Idade Média», Revue portugaise d’histoire, 36/1 (2002-2003), pp. 267-284. 77 Um primeiro balanço sobre as dimensões hodiernas de abordagem do campo religioso é elaborado por VILAR, Hermínia Vasconcelos – “História da Igreja Medieval em Portugal: um percurso possível pelas provas académicas (1995-2000), Lusitania Sacra, 2ª série, ts. XIII-XIV (2001-2002), pp. 13-14; muito recentemente, a mesma autora procede a nova síntese sobre “Estruturas e protagonistas religiosos na historiografia medieval portuguesa”, Lusitania Sacra, 2ª série, t. XXI (2009), pp. 125-153. Sobre a viragem da história institucional eclesiástica para a história religiosa em Portugal, dos anos 80 aos nossos dias, pode ver-se AZEVEDO; Carlos A. Moreira – “Introdução geral”, in História Religiosa de Portugal, dir. de IDEM, vol. I, Formação e Limites da Cristandade, coord. de Ana Maria C. M. JORGE e Ana Maria S. A. RODRIGUES, Mem Martins, Círculo de Leitores, 2000, pp. IX-XVIII e COELHO, Maria Helena da Cruz – “O que se vem investigando em História da Igreja em Portugal em tempos medievais”, Medievalismo. Boletín de la Sociedad Española de Estudios Medievales, nº 16 (2006), pp. 205-223. 78 FREITAS, Judite A. Gonçalves de – “Les chemins de l’histoire du pouvoir dans le médiévisme portugais (ca 1970-ca2000)”, Le Moyen Âge vu d’ailleurs. Bulletin du Centre d’ d’Études Médiévales d’Auxerre, 8 (2003-2004), pp. 81-98. Trabalho desenvolvido no âmbito do projecto internacional Le Moyen Âge vu d’ailleurs - II, dirigido por Eliana Magnani, que teve lugar na Universidade de S. PauloBrasil. 79 A promoção das pesquisas sobre Ordens Militares, desde inícios dos anos 80, deve-se a Luís Adão da Fonseca da Escola do Porto. Uma panorâmica do desenvolvimento dos estudos pós-graduados pode verse em COSTA, Paula Pinto – “The Military Orders established in Portugal in the Middle Ages: A Historiographical Overview”, E-journal of Portuguese History, vol. 2, nº 1 (2004), Disponível em: «1 http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue3/pdf/ppcosta.pdf.e» 80 DUARTE¸ Luís Miguel – “Sociedade e Economia Medievais: fraquezas e forças da historiografia portuguesa”, Bullettino dell’Istituto Storico Italiano per il Médio Evo, 106/2 (2004), p. 273-298. 81 DUARTE, Luís Miguel – “Prosopografia e elites urbanas: a investigação portuguesa”, La prosopografía como método de investigación sobre la Edad Media, Universidade de Zaragoza, 2006, pp. 105-118. 82 Um domínio tradicionalmente pouco explorado entre nós, mas que tem merecido uma especial atenção de Maria de Lurdes Rosa que reflecte sobre as fontes, os conceitos e o modelo de inquérito a aplicar na compreensão das funções sociais das organizações religiosas e de leigos medievais. Ver por todos ROSA, Maria de Lurdes - “Sociabilidades e espiritualidades na Idade Média: A historiografia portuguesa sobre os comportamentos religiosos dos leigos medievais”, Lusitania Sacra, t. XXI (2009), pp. 75-124. 83 Como resultado de uma tendência actual favorável ao aprofundamento do diálogo interdisciplinar entre a Diplomática régia, a História do direito e a História dos poderes medievais. Ver por todos HOMEM, Armando Luís de Carvalho – “Diplomática e História do Direito, raízes da «nova» História política”, Cuadernos de Historia del Derecho, 12 (2005), pp. 43-56. 84 Salientando a evolução dos estudos sobre sociedades políticas a partir dos registos da Chancelaria régia na Idade Média final em Portugal. Uma súmula das pesquisas pode ver-se em FREITAS, Judite A. Gonçalves – The Royal Chancellery at the end of the Portuguese Middle Ages: diplomacy and political societies (1970-2005), E-journal of Portuguese History, vol. 7, nº 2 (2009), pp. 1-23. Disponível em: .

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metodológico como conceptual, permitindo a confirmação da história medieval portuguesa como um métier autónomo, distinto e reconhecido científica e internacionalmente. Concluindo. De uma história tradicionalista assente no traçado de quadros institucionais delimitados por uma erudição, de algum modo, seca, caminhou-se, desde os anos 60, no sentido da edificação e exploração de um amplo conjunto de domínios investigativos. A actualização dos temas, dos problemas, a incorporação de novos métodos e a adopção de hodiernas perspectivas de abordagem apoiadas na análise crítica de fontes conhecidas ou inéditas permitiram a afirmação do nosso ramo disciplinar. A maioria das sínteses publicadas dos anos 80 em diante justifica-se pela necessidade de actualização dos conhecimentos, dado o aumento exponencial da produção historiográfica medieval a cargo de investigadores profissionais (docentes e estudantes) com formação avançada. Por seu turno, os balanços correspondem a momentos de forte percepção identitária: inscritos num determinado quadro institucional e político, estruturam centros de interesse e permitem o aprofundar das relações entre indivíduos e grupos de especialistas em áreas e domínios de investigação que se foram consolidando na Historiografia medieval portuguesa. Alguns dos actuais temas explorados pelos medievalistas portugueses, constituem assuntos antigos vistos sob um novo prisma em resultado da influência das correntes historiográficas modernas e da adopção de uma postura sensível à interdisciplinaridade. Nos últimos vinte e cinco anos, é de assinalar a notável internacionalização da Historiografia medieval portuguesa. A historicidade da identidade do medievalismo português demonstra o dinamismo deste território do saber que tem ousado avaliar, reajustar e construir os seus caminhos e as próprias condições de acção.

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