“SINTO UMA FALTA DE CONFIANÇA...”. QUANDO AS CÂMERAS DE SEGURANÇA SUBSTITUEM AS POSSIBILIDADES DO COLETIVO

June 2, 2017 | Autor: S. Fernández | Categoria: Cidadania, Gestão Escolar, Relações interpessoais, desconfiança
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Comunicação aceita para apresentação no V Seminário Vozes da Educação, a ser realizado de 02 a 04 de setembro de 2013. Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, São Gonçalo (RJ).
http://www21.rio.rj.gov.br/siso/internet/ouvidoria.htm
Tradução livre: "un nuevo tipo de sujeto, negación del sujeto educativo: el niño social y culturalmente carente, antesala, de no mediar una eficaz acción educativa, del adolescente o joven delincuente (…) A través de la construcción de este sujeto se delinea la existencia de una población. Ésta ocupa un territorio, en un doble sentido. En un sentido geográfico, se agrupa en determinados barrios y zonas, las cuales pueden ser claramente delimitadas en un mapa (…) En un sentido social, ocupan un territorio no ya definible geográficamente, sino social y culturalmente. La pertenencia a ese territorio de lo social tiene que ver con el hecho de carecer de un conjunto de saberes, hábitos y pautas de conducta necesarios para ser parte de la porción integrada de la sociedad. El territorio de la carencia social y cultural es concebido como lindero, pero también superpuesto, con el de la delincuencia".


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"SINTO UMA FALTA DE CONFIANÇA...". QUANDO AS CÂMERAS DE SEGURANÇA SUBSTITUEM AS POSSIBILIDADES DO COLETIVO.

Silvina Julia Fernández (UFRJ)
[email protected]

Introdução.

Este trabalho apresenta reflexões decorrentes da minha tese de doutorado e das discussões com os estudantes da disciplina Prática em Política e Administração Educacional (Pedagogia-UFRJ), a partir das observações dos seus estágios em escolas públicas. As reflexões focalizam o cotidiano da gestão escolar no que se refere aos processos de democratização e do exercício da cidadania nas relações entre as escolas e os diferentes sujeitos que com elas convivem. Cotidiano que, muitas das vezes, se encontra permeado por um sentimento de desconfiança básica na estrutura relacional em que os indivíduos se inserem. Desconfiança que se espalha em forma diretamente proporcional às suas imagens capturadas por câmeras localizadas nos espaços de fluxo e permanência y que se instaura através das pistas que são apreendidas nas diversas interações entre os sujeitos, através das falas, dos gestos, na disposição de objetos e organização do espaço, entre outras.
Nesse contexto, pergunto-me em que medida a disseminação do sentimento de insegurança, da suspeita e sua consequente "falta de confiança" com relação aos "outros" sujeitos que frequentam ou que de alguma ou outra forma se relacionam com as escolas, favorecem ou dificultam as ações potencializadoras da constituição e do exercício da cidadania nas escolas. Portanto, essa comunicação buscar aprofundar uma reflexão que, baseada nos indícios observáveis no cotidiano escolar, possa realizar uma crítica problematizadora dessas observações e compreender não só as suas dinâmicas, mas também com que fluxos e estruturas da produção social essas dinâmicas se relacionam, em função de que projetos sociais e educacionais específicos.

"Sorria, você está sendo filmado".

Nos shoppings e lojas, nos prédios de moradia, até nos ônibus e nas ruas, cada vez em mais cidades, vivemos sendo filmados por câmeras que, supostamente, estão ali para garantir a nossa segurança. Nas escolas, a situação não vem sendo diferente: câmeras e mais câmeras são instaladas para "tomar conta" do portão de entrada, dos corredores, do pátio e, em alguns casos, de outros espaços como o laboratório de informática, o refeitório ou até das salas de aulas. Os pontos em que prevalece a instalação das câmeras costumam serem aqueles locais de fluxo, já que a câmera permitiria um controle visual combinado de todos esses espaços, ao mesmo tempo.
É verdade que a câmera pode evitar o deslocamento desnecessário de quem se encontra na sala de Secretaria ou Direção da escola até o portão, só para ver se a pessoa que tocou a campainha é conhecida ou não e, assim, acionar ou não o equipamento que abre a porta à distância, evitando o deslocamento e o abandono momentâneo do trabalho que se encontra realizando para ir perguntar o que a pessoa deseja. É verdade, também, que assim é possível saber se tem alunos passeando nos corredores em hora de aula ou brigando no pátio, mas para isso precisa de alguém que tenha, como tarefa específica, olhar para as imagens. Em outros âmbitos, como as empresas ou alguns prédios de moradia, por exemplo, têm pessoas dedicadas a esse fim, como os seguranças ou alguns porteiros. Mas, quem se encarrega desse trabalho nas escolas?
As câmeras, aparentemente, estariam "tomando conta" dos espaços da escola, mas quem está, por sua vez, "tomando conta" do que elas produzem? A pergunta faz sentido porque, em muitos casos, as imagens sequer são gravadas, o que permitiria, por exemplo, a geração de provas que evidenciariam fatos. A resposta que, em diversas ocasiões, tenho recebido à pergunta anterior aponta a que a pessoa, ao saber-se filmada, tem mais chances de desistir antes de cometer algum ato incorreto ou delitivo e, assim, as câmeras proporcionariam uma maior segurança. A sensação de sentir-se seguros, de confiar em que os outros não realizarão nenhuma ação "fora do socialmente permitido e esperado", então, é depositada numa câmera que vira um fetiche protetor. Mas quem não se lembra das imagens da chacina das meninas da escola de Realengo, perpetrada por um ex-aluno? Imagens produzidas pelas câmeras da própria escola que serviram para, posteriormente, assistirmos as cenas de horror pela televisão, mas não para que algum esquema de intervenção previamente organizado para dar o alarme e o aviso à polícia pudesse salvar algumas de tão preciosas vidas.
Decerto, para além das situações objetivas de perigo existentes nas escolas, vale a pena atentar para a sensação de insegurança, de medo e desconfiança que se espalha na sociedade. Lembro-me, então, das palavras de Marcele, uma professora da escola municipal carioca em que pesquisei, quando dizia: "Sinto uma falta de confiança...", que dificulta os relacionamentos, a comunicação, os processos educacionais. Falta de confiança que é complementada pela suspeita mútua, e que Elena, outra professora daquela escola, busca entender, pois é uma questão que faz parte das suas preocupações cotidianas:

P - Então é assim, com essas mães eu procuro, mas eu acho assim, há uma certa resistência que não depende só de mim ou só dessa escola, a sociedade hoje, as pessoas não tem mais confiança. Elas deixam na escola, mas aí a televisão, a televisão diz que é cuidado, mas para mim o que a televisão faz é patrulhamento, tipo assim: "olha, veja se tem alguém abusando do seu filho na escola"...
S – Ah! Sim, ou se ele não está caindo pela janela, ou se não está comendo comida estragada...
P – É, que nem o prédio, às vezes tem gente que liga aqui e diz: "tem alunos na janela". Como se a gente deixasse aluno na janela, como se não estivesse prestando atenção. É normal a criança chegar numa janela (ruídos). Não estou dizendo que é só na escola, a diferença é que aqui na escola, sendo criança, muito mais... No escritório não tem essa quantidade de gente, porque criança, a mãe diz: "não corre", "tá", "não...", "tá bom", "tá com o nariz sangrando", "tááá...". É que nem na hora do recreio, a primeira a sair a brincar e a correr é a criança, aí: "ah! Você não olhou!". Nem deu tempo! Quando você pensou em olhar ela já tinha corrido, já estava dando voltas em você. "Você não sabe que tem que ficar quieto?", "Sei", "Por que você foi?" (risos) Porque ele é criança, ele vai... Então, aí se criam alguns tabus, entendeu? Aí botam as famílias para tomar conta da história, então, as pessoas quando vêm, já vêm igual um leão, ninguém quer saber o que aconteceu? Será que a professora é tão displicente? Assim como acontece em casa, "Ah! São maus-tratos!" Mas tem coisa que é acidente, não acontece em casa só com um. (...) eu fazia o curativo na escola, se não tinha em casa, eu fazia, hoje em dia eu não posso mais fazer, e olha que é comum a gente faz sem luva, sem nada, com sangue. A gente do posto [médico] já esteve aqui, uma vez abriu o supercílio de um garoto, aí o sangue jorrava na minha mão, "Ah! No posto ninguém pega em sangue sem luva!". Mas em escola? Se você não pega, você não socorre, se você pega, você tem que ter luva, não tem luva! E aí, o que você faz? Então são essas situações que... Situações humanas, né? São circunstâncias de gente com gente.

As encruzilhadas cotidianas perdem referencialidade, fica difícil saber o que é ou não correto, o que deve ou não ser feito. A previsibilidade de reconhecimento social que outrora oferecia a realização de uma "boa ação", hoje parece esvaída, pulverizada pelos múltiplos olhares de reprovação e suspeita. A resolução da vida individual parece envolver "mais problemas", como afirma Elena, que se apresentam como assuntos apenas de gestão pessoal, em vidas paralelas que se tocam nas "circunstâncias de gente com gente".
Uma falta de confiança básica na estrutura relacional em que os indivíduos se inserem se espalha, enfraquecendo os vínculos que os sujeitam entre si e a essas estruturas. Falta de confiança que se instaura através das pistas que de forma mais ou menos inconsciente são apreendidos nessa interação, como quando os vizinhos denunciam que "tem crianças na janela da escola" ou quando as mães são "evitadas" pela professora ou diretora para conversar. Falta de confiança reforçada por imagens que a mídia ou a memória coletiva erguem como mitos que preenchem a nossa ignorância sobre os outros e outras que coexistem conosco nos espaços pelos que transitamos cotidianamente. Assim, por exemplo, a imagem de uma mãe que "esqueceu" a filha na escola por vários dias, dez anos atrás, ainda hoje predomina na referência à que a agente educacional recorre em relação às mães da escola estudada, substituindo a sua ignorância sobre todas as outras mães que hoje frequentam a instituição. Da mesma forma, a suspeita de Nilda, uma das mães daquela escola, de que as professoras guardam para si mesmas os melhores pratos com os que as crianças contribuem em ocasiões de lanches coletivos ou piqueniques, em lugar de colocá-los à mesa para serem consumidos por todos.
A falta de confiança, o medo, a suspeita, no entanto, não são emoções que circulam de forma errante pelo tecido social. Neste Estado democrático essas emoções navegam por ondas de horizontalidade, diferentemente do que acontece nos Estados autoritários, que segue a via piramidal, do cume para a base. Hoje, a horizontalidade do medo social está em sintonia com o seu caráter difuso e extensivo, já que, como afirma Vera Malaguti Batista (2011), comentando a Eugenio Zaffaroni: "para ele a saída do ciclo das ditaduras militares produziu o deslocamento do paradigma da segurança nacional para o da segurança urbana que tanta letalidade causou em nossas democracias" (p. 7).
As principais bases da Modernidade, cujo valor supremo era a segurança, projetada em torno de uma vida social estável e da ordem e o progresso linear e organizado, vêm sendo demolidas e em seu lugar a velocidade das transformações econômicas, tecnológicas e culturais do cotidiano vão gerando uma profunda instabilidade. A segurança de uma vida social estável que se "garantia" pela manutenção do emprego, pela conservação do jogo das expectativas enquanto sujeito social (mãe, professora, trabalhadora...) e até pela durabilidade dos conhecimentos e as informações em circulação aparece fortemente questionada.
Em muitos destes aspectos, quem garantia a segurança era o Estado que, como escreve Zygmunt Bauman (2008),

havia encontrado a forma de convencer os cidadãos a ser obedientes: oferecia em troca a promessa de proteção contra as ameaças a sua existência. Não mais tendo condições de cumprir tal promessa, esse Estado acaba por mudar a ênfase da proteção contra os perigos à segurança social para os perigos à segurança pessoal - e, assim, "subsidiar" a batalha contra o medo (...) Essa mudança de foco não cura a ansiedade e, portanto, não diminuirá o suprimento de "capital do medo" - mas servirá para que sejam vendidos produtos relacionados à segurança e, por um breve período, reduzirá a tensão. Quando os medos da população se tornam uma tentação comercial, há poucas chances de eliminá-los pela raiz. Pelo contrário, os governos e os mercados têm interesse em manter os medos intactos e, se possível, aumentá-los.

A mudança de ênfase da proteção da segurança social para a segurança pessoal favorece a produção de "bens e serviços" e de todo um mercado específico que ajudará a reduzir a tensão, mas não necessariamente o conflito e, muito menos, as contradições de fundo, deslocando o seu foco para alguns sujeitos específicos que passam a ser olhados como potencialmente perigosos, em um contexto em que "o 'criminal' é um fetiche que encobre a compreensão da conflitividade social" (BATISTA, Opus cit.: 4).
Da mesma forma, dispositivos institucionais que se pretendiam facilitadores de um suposto "controle cidadão" são engolidos pela lógica da suspeita e da desconfiança. Em um outro trecho da entrevista, quando comenta a função da Ouvidoria – que ela chama de "Complicaria" – instalada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro com a função de "acolhe[r] reclamações, críticas e sugestões sobre os serviços públicos municipais" por parte da sociedade civil, a professora Marcele aprofunda este pensamento, destacando a retração da ingerência dos cidadãos e cidadãs dos assuntos públicos e como essa impotência se traduz no cotidiano escola:

Eu vejo assim, você tem que ouvir o acusado, o acusador e ainda tentar perguntar mais. Agora, o pessoal liga lá, "A E. roubou da D." E eu não ouço a E. Então, eu vejo assim, que há responsáveis que mesmo sem razão, ligam pra lá, outros com razão, mas na forma equivocada, outros de pirraça, outros mal resolvidos pessoalmente jogam tudo na escola e no professor, então ligam pra lá, aí as instâncias superiores a nós, para fazer um mau uso político deixam situações que se colocam aparentemente a favor do responsável, aparentemente porque ainda não..., aí as pessoas equivocadamente enchem de razão, de direitos, não pode bater na direção daqui, não pode bater no presidente da república nem no governador, então vem querer bater no professor, na diretora. E a professor e a diretora, em vez de convidar aquele responsável para refletir e ver onde é que se tem razão, onde não tem, e como se cobra a razão, que não é com violência física, verbal, moral, se recolhe. Aí fortalece todos os preconceitos, aí você vê todos os noticiários, é terrível, professores agredidos fisicamente, moralmente, os seus bens materiais, seus carros, ameaçados, acusados e a doença que é a síndrome de burn-out.

Como construir e fortalecer formas democráticas de convivência, não fundadas em medos, desconfianças e suspeitas, considerando a constituição das subjetividades dos sujeitos sociais atuais? Sem dúvida nenhuma, essas emoções vêm corroendo as formas de agregação social, quebrando vínculos entre as pessoas, gerando uma sociedade cada vez mais segregada, ampliando as distâncias que separam as pessoas, reafirmando preconceitos e estereótipos. O problema, como completa Bauman (2000), "é que se fazer algo efetivamente para curar ou mitigar a inquietude e a incerteza exige ação unificada, [no entanto] a maioria das medidas empreendidas sob a bandeira da segurança são divisórias, semeiam a desconfiança mútua, separam as pessoas" (p. 13).
A cidadania, instalada sobre o andaime não apenas de uma hipotética igualdade social, mas também de uma pretendida liberdade individual e de uma solidariedade social como expressão da racionalidade moderna (QUIJANO, 2002: 18), supõe a livre participação individual de iguais no coletivo que fazem ouvir as suas vozes através do representante. No entanto, o critério de igualdade, a partir do qual se habilita à participação numa comunidade política depende, em primeiro lugar, dos graus de inclusão com que essa cidadania se define.
Assim, o pertencimento a uma comunidade política é uma das condições primeiras da cidadania. Nas sociedades atuais, a inclusão numa comunidade política – e, portanto, no seu "contrato" - estaria definido pelo pertencimento a um Estado que, por sua vez, garantiria a inclusão nos sistemas de distribuição de bens e de reconhecimento de direitos, sendo esses, portanto, os primeiros bens a distribuir.
Com efeito, hoje, uma das questões centrais com relação à cidadania consiste no estabelecimento dos critérios de inclusão/exclusão da comunidade política, que dependem das múltiplas relações que se estabelecem entre a sociedade e o Estado. O pertencimento ao Estado-nação em sociedades com tradições institucionais consolidadas garante a cidadania em diversos níveis de atuação e a experiência subjetiva correlativa a esse pertencimento é o sentimento de dignidade da pessoa e o reconhecimento dos direitos próprios e alheios.
Porém, ao considerarmos a situação das sociedades latino-americanas torna-se necessário ponderar outras questões relacionadas a essas garantias e, portanto, à inclusão ou não dos diferentes sujeitos sociais na categoria de "cidadãos". Nas nossas latitudes, para além de um reconhecimento formal da cidadania, em diversas ocasiões, é possível perceber "a exclusão dos/das que pertencem", o que significa que muitos e muitas dos que são nominalmente cidadãos e cidadãs são efetivamente excluídos por diferentes circunstâncias. Isto porque a condição de excluído ou excluída supõe uma carência dos meios (expressivos, econômicos, sociais) necessários para a constituição da cidadania e da participação organizada no cenário político (TENTI FANFANI, 1993: 263).
Nesse sentido, a perda dos supostos de integração econômica e social que sustentavam o ideal do Estado de Bem-Estar, retirou os requisitos básicos da dignidade não apenas material que permitiam a muitos, porém não a todos e todas, exercerem a cidadania. Os nossos países, que queriam construir cidadania, transformaram-se em países de clientes: clientes das empresas privatizadas, clientes da nova ordem econômica e clientes políticos, reeditando uma política personalista e demagógica que já tinha forte tradição na nossa região, por exemplo, na figura do coronelismo e outras formas similares de populismo, em um contexto em que até a imagem de uma cidade segura, limpa e organizada está "à venda" para atrair investimentos de capital, pois: "Temos que entender a transformação da cidade em commodity, cidade-empresa a ser vendida na bolsa de imagens urbanas na disputa desse capital fugaz" (BATISTA, 2011: 23)
Embora a cidadania se constituísse apoiada num tripé de igualdade, liberdade e solidariedade que formaliza um sujeito a partir da racionalidade moderna, a pergunta pela mesma, portanto, não tem uma resposta formalmente única, mas diferentes matizes e graus de habilitação/desabilitação na ingerência do público para os/as diferentes sujeitos sociais. No entanto, não se trata de uma diferença puramente material, nas condições econômicas de vida, pois, como vimos, a diferença é também simbólica.
Na escola esse simbolismo se assenta no discurso da "criança/família carente" que, por sua vez, amarra nele e traz à tona outras "condições", como a raça e o lugar de procedência das pessoas, entre outros. Constituindo-se, assim,

um novo tipo de sujeito social, negação do sujeito educativo: a criança social e culturalmente carente, antessala, de não mediar uma eficaz ação educacional, do adolescente ou jovem delinquente (...) Através da construção desse sujeito delineia-se a existência de uma população. Ela ocupa um território, em um duplo sentido. Em um sentido geográfico, agrupa-se em determinados bairros e zonas, as que podem ser claramente delimitadas em um mapa (...) Em um sentido social, ocupam um território não já definível geograficamente, mas social e cultural. O pertencimento a esse território do social tem a ver com o fato de carecer de um conjunto de saberes, hábitos e pautas de conduta necessários para ser parte da porção integrada da sociedade. O território da carência social e cultural é concebido como fronteiriço, porém também sobreposto, com o da delinquência (MARTINIS, 2006: 25)

Por isso hoje, ao contrário de outrora, tanto a delação quanto a vigilância pormenorizada dos "outros" é aceita sem muito debate, em especial, quando se trata de alguns outros... O processo de policialização, como bem destaca Nilo Batista (2003), tem se instaurado na nossa sociedade com grande apoio da população, alavancado pela mídia, buscando legitimar o dogma penal como instrumento básico de compreensão e resolução dos conflitos sociais. Ou seja, a policialização instaura-se como controle hierarquizado "preventivo" da vida dos pobres, que, pelo simples fato de morarem em territórios marcados por profundas desigualdades passam a ser olhados como potencialmente criminosos, transformando os serviços sociais em instrumento de vigilância e controle das classes "perigosas".
Como complementa Vera Malaguti Batista (2012), referindo-se ás contribuições da sociologia funcionalista para legitimar a criminalização dos pobres e embasar a expansão da policialização: "Nos geoprocessamentos das vulnerabilidades juvenis, a descrição em si da pobreza (desestruturações econômicas e familiares, humanos sempre "em falta") é que vai ser associada ao crime e à periculosidade a serem administradas pelo controle territorial: com prevenção e repressão".

Mudar o foco e desterritorializar a carência.

E nós, entre nós, estamos perdendo essa coisa de nos unirmos, nos ampararmos na hora de um problema seu, que é nosso, de uma alegria sua, que é nossa (Professora Marcele)

Enquanto a mídia e outros dispositivos sócio urbanos se encarregam de balizar e identificar os territórios e sujeitos "carentes e perigosos", algumas instituições são destinadas a lidar essas populações específicas e contê-las para garantir a "paz social". Esse é o caso das escolas públicas, claramente destinadas, a partir das reformas dos anos 90, a atender basicamente àqueles que não poderão pagar pelos serviços prestados pelo novo mercado educacional.
Agora, como pode relacionar-se essa escola com sujeitos considerados carentes e perigosos de antemão? Se assim os/as considerarmos, a única relação possível que pode estabelecer-se com esses sujeitos é uma relação, por um lado, de preenchimento do vazio desse "outro" que se encontra em um nível inferior de humanidade, de suprir a sua carência, ou seja, uma educação bancária, como nos ensinou Paulo Freire; e, por outro lado, uma relação de disciplinamento, de vigilância e controle da sua periculosidade. Pois, como adverte Batista (2011, Opus cit):

Regular coexistências nos territórios da desigualdade não é também uma tarefa fácil, num mundo que já nem deseja transformar-se, já deixou para trás uma utopia de escola onde os jovens possam desfrutar de suas potências, ou de uma sociabilidade prazerosa entre diferentes na construção de redes coletivas de apoio e cuidado" (p. 5-6)

Nesse sentido, entendendo os sujeitos pedagógicos como sujeitos relacionais existentes em função de mediar na formação de sujeitos sociais e políticos específicos, vale a pena lembrar também que cada pedagogia busca definir seu sujeito nos espaços sociais da educação, que são espaços de diferenças, de posições que se definem em e pela sua própria diferença (PUIGGRÓS, 1990: 32). Diferenças que, assim como se manifestam nas salas de aula, emergem também nos âmbitos da gestão institucional, enredando-se nas tramas do exercício do poder e da (con)formação da cidadania.
Nesse contexto, a percepção que se tenha acerca dessas diferenças irá desenhar um sujeito pedagógico ou outro, ou seja, irá configurar uma trama relacional específica e a instalação de dispositivos apropriados à promoção de determinadas relações, no cotidiano institucional. Dentre esses dispositivos contamos, hoje, com as câmeras "de segurança" nas escolas, como dispositivo de vigilância e controle, nas dinâmicas que se pretendem promover, mas em função de quais projetos educacionais e sociais de referência?
Não estou alentando, aqui, à retirada de todas as câmeras das escolas, mas procurando promover uma reflexão sobre as finalidades com que as colocamos e as expectativas que nelas depositamos. Destaco-as já que, assim como as câmeras, tenho a intenção de ressaltar, junto com elas, os sentimentos de insegurança e desconfiança, tão em alta nos últimos tempos. Sentimentos que são coletivamente partilhados e singularmente vividos, pois cada um se projeta nessas emoções e se deixa projetar de acordo com a sua própria história de vida e posição na estrutura das relações sociais, afetando profundamente a gestão micropolítica e das relações intersubjetivas nas escolas e, portanto, a configuração dos sujeitos pedagógicos promovidos pelas instituições. Isto, num contexto paradoxal em que

a um Estado social mínimo corresponda um Estado penal máximo conduz às consequências concomitantes de despolitização dos conflitos sociais e politização da questão criminal. Os faits-divers da antiga página policial migraram para a primeira página, e as páginas políticas recebem um tratamento policialesco. A gigantesca transferência de poder e riqueza do âmbito público para o privado tem no desmerecimento de agentes políticos um poderoso indutor de opinião: serviços públicos são ineficazes, e administrados por gansgters (BATISTA, 2003, Opus cit: 14)

Talvez a partir desse parágrafo consigamos explicar por que os suspeitos não são apenas os estudantes e suas famílias "carentes", mas também as professoras e professores que, por serem funcionários públicos, já são suspeitos de incompetência e desídia, inclusive no olhar das próprias famílias que frequentam as escolas ou dos seus vizinhos ("tem criança na janela da escola!").
Enquanto isso, a primazia e hipervalorização do mercado por sobre o espaço público e tudo o que tenha a ver com ele, corrói o precário andaime institucional republicano, interditando ainda mais as possiblidades de democratização. A suspeita, as desconfianças, a perda de união e de amparo mútuos, impedem aos sujeitos de se projetarem coletivamente, de se constituírem numa relação de reconhecimento mútuo que possa reportá-los ao futuro.
Portanto, talvez não devamos esquecer que, apesar das nossas diferenças, dissidências e conflitos, é a confiança que permite transpor o presente para um futuro possível, pois "permite aos sujeitos terem a sensação de certeza no que concerne ao incognoscível, à imprevisibilidade, sendo assim possível viabilizar a ação presente" (BARBALET 2001 apud DIAS, 2006). Talvez devamos procurar formas de voltar a re-conhecer-mos, buscando renovar a confiança mútua, trazendo para o debate coletivo a necessidade de perceber e de aceitar a cada um(a) de nós no seu desamparo, mas também nos seus saberes, fazeres, ações, sonhos, vidas e possibilidades.
Torna-se fundamental retomar a ideia "de que a segurança reside fora de seu próprio paradigma, reside na gestão coletiva de projetos de vida, incluindo transportes, saúde, educação, saneamento, cultura, lazer, esporte [Pois] Não é a segurança pública, no sentido policialesco, que nos fará seguros". (BATISTA, 2011, Opus cit: 22)
A escola é um espaço de conflito e acreditar no diálogo como possibilidade não significa desconsiderar que este diálogo se dá em meio a tensões, disputas e interesses diferentes. Torna-se necessário superar as generalizações e idealizações destes lugares produzidos por discursos que nos afastam, que pretendem nos manter nos lugares de opositores e adversários e procurar instaurar o diálogo sobre as questões que realmente importam. Como propõe a professora Elena quando diz,

D – Eu não tenho uma sugestão. O que eu acho é que precisava das partes terem, acreditar uma na outra, acreditar que eu boto meu filho na escola, acreditar que a professora vai ensinar alguma coisa e sentar e conversarem com boa vontade. O que está acontecendo? Os dois lados, como a gente pode sair caminhando, com boa vontade. A confiança, acreditar... Eu boto na escola porque eu gosto da escola, estou confiante, porque acredito que vão fazer um bom trabalho e quando eu achar que não está, eu vou à escola e pergunto: mas por que não é assim, por que não é assado? Como é que foi, como é que não foi? E a escola também poder contar, dizer: olha, aconteceu isso aqui, como é que vocês acham que a gente tem que fazer? E aí? Acho que seria o melhor caminho, o mais fácil, porque qualquer outro caminho a gente vai brigar muito para chegar aí, acho que se a gente começasse por aí...

Se começássemos por aí estaríamos, ao mesmo tempo, convidando para o reconhecimento mútuo e o reencontro, reconquistando o diálogo que não nega o conflito, mas não busca o silenciamento e a invisibilidade das outras e outros. Estaríamos reivindicando essa característica tão supostamente feminina da escuta, da compreensão, do acolhimento e do cuidado. Estaríamos apostando a uma mudança necessária no cotidiano escolar, mesmo reconhecendo a escola como um lugar onde talvez não possamos alcançar a justiça, pois essa dimensão implica uma justiça social mais ampla garantida por uma sociedade igualitária, mas que aposte na construção de uma escola decente. Escola na qual, parafraseando a Avishai Margalit (1996), os seus membros não se humilhem reciprocamente, na qual as ações ou omissões dos outros e outras não firam o respeito de si de cada um(a) de nós.
Não se trata, então, do respeito moral que todos nos devemos reciprocamente, nem de um vago sentimento de solidariedade que possa resolver-se em ações de filantropia. Trata-se de uma escola que possa desenvolver uma solidariedade baseada na confiança que os outros e outras merecem, simplesmente por serem nossos concidadãos e concidadãs. Trata-se de uma escola que colabore comunitariamente para que todos e todas possam desenvolver-se e desenvolver o respeito de si mesmo(a).

Referências bibliográficas.
BARBALET, Jack M. Emoção, Teoria Social e Estrutura Social. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, edição 43, Editora Revista dos Tribunais, 2003. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/batista-nilo-midia-sistema-penal.pdf. Acessado em 09/08/2013.
BATISTA, Vera Malaguti. Adesão Subjetiva à Barbárie. In: Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. Disponível em: http://comunicacao.fflch.usp.br/sites/comunicacao.fflch.usp.br/files/Adesaosubjetivaabarbarie.pdf. Acessado em 09/08/2013.
______________________. O Alemão é muito mais complexo. 17º Seminário Internacional de Ciências Criminais em São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.labes.fe.ufrj.br/arquivos/Alemao_complexo_VeraMBatista.pdf. Acessado em 09/08/2013.
BAUMAN, Zygmunt Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
__________________. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
DIAS, Fernando Nogueira. O medo enquanto emoção social: contributos para uma sociologia das emoções. Disponível em http://www.sociuslogia.com/artigos/O_Medo _enquanto_Emocao_Social.pdf. Acessado em dezembro de 2010.
MARGALIT, Avishai. The decent society. Cambridge, Ma: Harvard University Press, 1996. Disponível em: http://books.google.com.br. Acessado em novembro de 2010.
MARTINIS, Pablo. Educación, pobreza e igualdad: del "niño carente" al "sujeto de la educación". In: MARTINIS, Pablo; REDONDO, Patricia (org.). Igualdad y educación: escrituras entre dos orillas. Buenos Aires: Del Estante, 2006.
PUIGGRÓS, Adriana. Sujetos, disciplina y currículum en los orígenes del sistema educativo argentino. Buenos Aires: Galerna, 1990.
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TENTI FANFANI, Emilio. Cuestiones de exclusión social y política. In: Desigualdad y exclusión: desafíos para la política en la Argentina de fin de siglo. Buenos Aires: Unicef, 1993.


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