Sistema De Informações Geográficas como Ferramenta de Análise em Patrimônio Histórico: Inventário de Planaltina

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SISTEMA DE INFORMAÇÕES GEOGRÁFICAS COMO FERRAMENTA DE ANÁLISE EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO: INVENTÁRIO DE PLANALTINA (DF) SISTEMA DE INFORMACIONES GEOGRÁFICAS COMO HIERRAMIENTA DE ANÁLISIS EN PATRIMÓNIO HISTÓRICO: EL INVENTARIO DE PLANALTINA (BRASIL) GEOGRAPHIC INFORMATION SYSTEM AS ANALYTICAL TOOL IN HISTORIC PRESERVATION: SURVEY OF PLANALTINA (BRAZIL) Eixo temático 4. Identificação, intervenção e gestão do patrimônio edificado: instrumentos, metodologias e técnicas

Pedro P. Palazzo e Ana Laterza Doutor em Arquitetura e Urbanismo, Professor Adjunto, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília; Arquiteta e Urbanista

Resumo:

O georreferenciamento de características morfológicas pode auxiliar não apenas na visualização de conjuntos arquitetônicos já protegidos, mas também no processo decisório de delimitação de áreas de interesse. No âmbito do Inventário do conjunto arquitetônico de Planaltina (DF), foi desenvolvida e testada uma matriz de características arquitetônicas cadastradas em base de dados e referenciadas aos imóveis. As características foram pesquisadas espacialmente em programa SIG, resultando na elaboração de mapas temáticos que auxiliam na definição de poligonais de áreas de interesse histórico. O sistema permite um acompanhamento em tempo real do progresso do levantamento. Palavras-chave: Sistema de Informações Geográficas (SIG), Inventário de bens culturais, Morfologia arquitetônica, Base de dados.

Resumen:

La georeferenciación de las características morfológicas no sólo puede ayudar en la visualización de sitios arquitectónicos ya protegidos, sino también en el proceso de definición de áreas de interés histórico. Para el conjunto arquitectónico de Planaltina, ciudad satélite de Brasilia, se concebió y probó una clasificación de elementos arquitectónicos registrados en una base de datos y referidas a las construcciones. Las características se investigaron espacialmente en un programa de SIG, resultando la elaboración de mapas temáticos que ayudan a definir las áreas de interés histórico. El sistema permite la supervisión en tiempo real del avance de la investigación. Palabras-clave: Sistema de Información Geográfica (SIG), Inventario de bienes culturales, Morfología arquitectónica, Base de Datos..

  Abstract:

Georeferencing morphological features can contribute not only to the visualization of currently listed sites, but also to the decision-making for delimiting future areas of interest. In the survey of the architectural fabric of Planaltina, a satellite city of Brasilia, we have developed and tested a matrix of architectural features set up in a database and referenced to building lots. The features were then spatially retrieved in a GIS program, resulting in thematic maps that assist in the definition of limits for historic interest areas. This system allows for a real-time following of the survey progress.. Keywords: Geographic Information System (GIS), Historic preservation survey, Architectural morphology, Database.  

 

SISTEMA DE INFORMAÇÕES GEOGRÁFICAS COMO FERRAMENTA DE ANÁLISE EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO: INVENTÁRIO DE PLANALTINA (DF) INTRODUÇÃO Objeto A pesquisa aqui relatada desenvolveu e aplicou um Sistema de Informações Geográficas (SIG) para realização de um inventário de bens arquitetônicos realizado no centro histórico da cidadesatélite de Planaltina, no Distrito Federal. O desenvolvimento do sistema foi motivado pela necessidade de documentar rapidamente uma área urbana extensa, produzindo dados a serem processados por computador. Mapas foram gerados automaticamente a partir do cruzamento de dados, e, por sua vez, auxiliaram a tomada de decisão quanto ao estabelecimento de um perímetro de tombamento e proteção para o conjunto arquitetônico e urbanístico estudado. Justificativa O interesse pela preservação de sítios urbanos no Brasil tem já há alguns anos transcendido o paradigma inicial, novecentista, da valorização de áreas de estilo e tipologia homogêneas, geralmente coloniais, para abordar conjuntos heterogêneos. Essa transição impõe dificuldades técnicas e interpretativas à tarefa de valorar e estabelecer diretrizes de proteção para aqueles centros históricos que apresentam uma justaposição de características estéticas e tipológicas diversas. O SIG é um modo de conceber a manipulação de dados de longa data entronizado na prática do planejamento urbano, e que tem nos últimos vinte anos comparecido com freqüência crescente na documentação e na gestão de sítios históricos. Entretanto, a aplicação do SIG à preservação do patrimônio imóvel tem geralmente se limitado à localização de bens em mapas, não sendo amplamente difundido o seu uso como ferramenta de análise e produção de conhecimento a respeito dos sítios. Em particular, o método tradicional de caracterização e delimitação de sítios a partir da experiência de campo e da intuição de pesquisadores tarimbados, ainda que componente indispensável de um processo de estudo sério, revela-se, sozinho, insuficiente para atender à demanda de documentação em escala cada vez maior. É possível, no entanto, atender melhor à demanda crescente pelo conhecimento do patrimônio urbano brasileiro por meio da aplicação de Sistemas de Informações Geográficas com bases de dados ricas em informações e capazes de processar digitalmente análises que caracterizem o sítio. Problemática O processo de desenvolvimento e aplicação do SIG nesta pesquisa pretende contribuir com esse desafio, concebendo e testando o sistema num inventário contratado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, 2013). O propósito do sistema é o de informar o processo

  de tomada de decisão quanto ao perímetro e ao caráter da área de interesse histórico em Planaltina. Demonstra-se, nessa tarefa, a possibilidade de se partir de uma base de dados com informações extremamente elementares, e determinar regras combinatórias para que o SIG oferecesse, como insumo para a interpretação dos pesquisadores, indicações acerca das linguagens e dos tipos arquitetônicos presentes no sítio. Para além das especificidades do estudo de caso, é estabelecida uma metodologia de análise morfológica georreferenciada com aplicabilidade geral, ressalvadas as adaptações de conteúdo necessárias para adequar-se a outros casos. Metodologia A pesquisa parte de um conhecimento inicial do centro histórico de Planaltina, de cunho predominantemente empírico, devido à carência de fontes documentais. Com base numa impressão geral da área, verificou-se o desafio representado pela necessidade de inventariar uma extensa área de modo detalhado, porém física e economicamente viável. Decidiu-se, então, desenvolver o inventário na forma de um SIG alimentado por uma base de dados de informações suficientemente simples para serem levantadas com rapidez, porém abrangentes no tocante à representação digital das características arquitetônicas dos bens pesquisados. A concepção do sistema fundamenta-se no campo da tipologia processual, de matriz italiana. A tipologia processual foi desenvolvida pelos pesquisadores Saverio Muratori, Gianfranco Caniggia e seus sucessores a partir da década de 1950 (Caniggia, 1997). Tem como premissa mais significativa o conceito de que a forma edilícia pode ser explicada por uma reconstituição do processo histórico de formação dos tipos arquitetônicos. Para levar a cabo essa reconstituição, as edificações são estudadas do ponto de vista da presença de caracteres simples — implantação, volumetria, distribuição, elementos arquitetônicos — e das interações entre eles. Além da utilidade do instrumental analítico para a documentação histórico-arquitetônica, a tipologia processual oferece outro atrativo no âmbito do patrimônio histórico. O conhecimento morfológico fornecido pelo estudo da tipologia processual pode ser tornado operativo em projetos de intervenção em sítios históricos, como demonstram projetos do próprio Caniggia para vazios urbanos em Roma (Caniggia, 1997, p. 143–149). No Inventário de Planaltina assumiu-se, portanto, o marco teórico da tipologia processual nessa dupla vertente: a de sistematização das informações documentais tendo em vista a produção de conhecimento histórico, bem como a de tradução desse conhecimento em diretrizes operativas para a preservação do conjunto urbano. Devido à escassez de documentos escritos, o suporte cronológico para a pesquisa em Planaltina é mínimo, mas suficiente para mostrar que não se tem uma evolução linear de tipos. Em vez disso, verifica-se sistematicamente a concomitância de características pertencentes a tradições arquitetônicas diversas, do colonial ao modernista passando pelo eclético e pelo art déco. Essa sobreposição corrobora a intenção inicial de se simplificar e fragmentar ao máximo a leitura das características morfológicas das edificações, de modo a se ter o registro da diversidade de aportes perceptíveis em cada imóvel. Apresenta-se a seguir uma breve contextualização do estudo de caso do ponto de vista da história do seu desenvolvimento urbano e arquitetônico, e dos desafios que essa história impõe à caracterização da área de interesse de preservação. Discute-se então as aplicações correntes do SIG no campo do patrimônio histórico, bem como as oportunidades para um emprego mais robusto desse sistema no âmbito dos inventários de conjuntos arquitetônicos e urbanísticos promovidos pelo IPHAN. Em seguida, descreve-se a concepção e aplicação do Sistema de Informações Geográficas desenvolvido pelos autores para a realização do Inventário de Planaltina. Expõem-se as premissas teóricas e os recursos técnicos empregados, e discutem-se

  os resultados obtidos, bem como os ajustes introduzidos no sistema à medida que este ia sendo testado em campo e no processo interpretativo. Por fim, indicam-se possibilidades de aprimoramento do sistema e defende-se a viabilidade de aplicação do mesmo em outros estudos de caso, visando à obtenção de um arcabouço técnico neutro e adaptável às especificidades de conteúdo de cada sítio.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA CIDADE DE PLANALTINA Origens e Desafios A cidade de Planaltina origina-se de uma freguesia estabelecida em 1811 com o nome de São Sebastião de Mestre d’Armas. Situa-se atualmente no Distrito Federal, a quarenta quilômetros do centro do Plano Piloto de Brasília. A pesquisa em Planaltina (Figura 1) oferece desafios típicos de boa parte dos sítios urbanos brasileiros fora do circuito canônico de “cidades históricas” integralmente preservadas. O acervo de edificações de interesse cultural encontra-se ameaçado e disperso entre construções recentes. Apresenta, também, significativa variedade de estilos, e a data de construção da maior parte dos imóveis é desconhecida. Inexiste embasamento bibliográfico consistente acerca da arquitetura do atual Distrito Federal e seu entorno no século XIX e início do XX. São parcos os registros escritos e fotográficos mesmo das edificações públicas importantes — igrejas, prefeitura e casa de câmara e cadeia Tais características exigiam uma estruturação de informações morfológicas que permitisse distinguir as diversas linguagens arquitetônicas e outros aspectos da forma urbana, bem como pudesse sistematizar características do processo de urbanização e adensamento relevantes para a preservação do conjunto urbano. O setor inventariado possui uma área de pouco mais de duzentos hectares; dentro desse setor, cerca de vinte quarteirões têm maior densidade de imóveis históricos e foram documentados com mais detalhe. Esses vinte quarteirões correspondem à parte central do parcelamento oitocentista, bem como à ocupação periférica estabelecida no segundo quartel do século XX em torno da estrada de rodagem que ligou em 1938 Planaltina a Ipameri, então cabeça da ferrovia vinda de São Paulo (Castro, 1986). Urbanização de Planaltina O assentamento urbano inaugural, conhecido como arraial de São Sebastião de Mestre d’Armas — apesar de ser, na verdade, uma freguesia —, tem origem na doação de terras à Igreja por fazendeiros locais em 1811, data de construção da primeira capela no local. Em 1859, o arraial foi elevado a distrito da vila de Couros (atual Formosa), e em 1880 a freguesia foi elevada a paróquia. De 1891 a 1960 foi sede municipal com os nomes de Mestre d’Armas, depois Altamir (1911) e finalmente Planaltina (1917). Não obstante ter sido fundada sem relação com o ciclo do ouro, Planaltina chegou a ser um importante núcleo de economia pecuarista na região leste de Goiás. No início do século XX tinha entre duzentas e trezentas casas, número não desprezível para os padrões locais, contando com cerca de mil habitantes na área urbana (Azevedo, 1910). O centro histórico da cidade compreende o chamado Setor Tradicional, que inclui o assentamento original, e a Vila Vicentina, oficialmente parcelada em 1965 mas com vestígios de ocupação anterior, ao longo de uma estrada.

 

Figura 1: Setor Tradicional de Planaltina. Em azul escuro a área urbanizada até o início da construção de Brasília. Fonte: IPHAN, 2013, Mapa M102.3

A malha urbana do centro histórico (ver Figura 1) é composta por uma centena de quarteirões de aspecto retangular, cada qual tendo entre sessenta e 140 metros de lado. Originalmente, cada quarteirão contava com meia dúzia a uma dúzia de lotes largos e rasos. Estes foram, em sua maioria, subdivididos em parcelas mais estreitas a partir da década de 1960. A cidade contava até 1965 com apenas duas praças: a primeira, periférica, é a Praça de São Sebastião, centrada na capela que deu origem ao arraial; a segunda, a antiga Praça do Jenipapo, hoje Praça Salviano Monteiro Guimarães e afetivamente conhecida como Pracinha do Museu, tem situação central, no eixo da principal avenida de acesso à cidade. A vizinha construção de Brasília, a partir de 1957, ainda alterou brutalmente a dinâmica imobiliária do local, renovando significativamente a população local e dificultando o acesso à história oral. O acervo edificado existente compreende uma predominância de residências unifamiliares térreas, estabelecimentos comerciais de pequeno porte nas avenidas principais, e algumas edificações de até quatro pavimentos na avenida que conecta o centro histórico aos loteamentos modernos. Há edificações representativas das linguagens arquitetônicas colonial, eclética, art déco, modernista e pós-modernista, todas em suas formas vernáculas, sem exemplares particularmente eruditos. Outrossim, além de influenciar a lógica de construção e preservação da arquitetura local, a presença de Brasília teve impacto decisivo na construção de identidades locais. A história de Planaltina passou então a ser definida, inclusive no discurso de cronistas com raízes familiares profundas na cidade, como meramente os “antecedentes da história de Brasília” (Castro, 1986,

  p. 15).

GEORREFERENCIAMENTO NO PATRIMÔNIO HISTÓRICO Conceituação e Aplicações Gerais Chama-se georreferenciamento a qualquer sistema, digital ou não, que estabeleça relações entre um conjunto de dados e sua distribuição no espaço. Um exemplo clássico é o mapeamento do surto de cólera em Londres em 1854, elaborado pelo médico John Snow (Figura 2). Ao suporte técnico para a realização do georreferenciamento dá-se o nome de Sistema de Informações Geográficas (SIG). Nos dias atuais, trata-se predominantemente de sistemas informáticos combinando um ou mais programas de SIG e uma base de dados eletrônica. Ao contrário do mercado de computação gráfica aplicada ao projeto de edificações, dominado por programas comerciais de CAD e BIM, porém, o universo do SIG compreende tanto soluções comerciais, como o ArcView, quanto programas de código livre bastante difundidos, tais como o Grass ou o QuantumGIS (QGIS). Desde o final do século XX, o georreferenciamento digital tem se tornado moeda corrente na organização, análise e visualização de dados na disciplina de planejamento urbano. Por sua vez, a aplicação do geoprocessamento ao campo do patrimônio histórico tem se desenvolvido sobretudo a partir da década de 1990 (Gilbert, 1991, p. 112; Skarmeas, 2010, p. 49; Bryan, 2010, p. 26; Lo, 2007), como um desdobramento de pesquisas advindas da morfologia urbana. O tratamento georreferenciado de dados quantitativos ou qualitativos característico do SIG tem sido aplicado a pesquisas morfológicas nas mais vaiadas escalas, desde o território até interiores de edificação (Matero, 2003). Há que se distinguir, todavia, a simples geolocalização dos dados, seja por meio do registro de coordenadas numéricas ou pela marcação de pontos e polígonos num mapa, do emprego do SIG como ferramenta propriamente analítica, apta a gerar informações a partir do processamento digital de dados e relações espaciais. Nesse aspecto, o campo do patrimônio histórico ainda não alavancou amplamente o poder dos sistemas digitais de georreferenciamento no tocante à análise de dados. Projetos aplicando o SIG ao patrimônio cultural o fazem predominantemente com dois propósitos: primeiro, localizar bens com características já conhecidas de modo a definir áreas de interesse cultural (Ferreira, 2011, p. 4107); segundo, gerenciar os bens já localizados e caracterizados, com base em sua proximidade espacial (Moura, 2008, p. 131). Também esta última etapa inclui as visualizações, para uso de técnicos assim como do público leigo, dos bens documentados. Exemplo dessa aplicação é o Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA) de Portugal (IHRU, 2010) ou o banco de dados do Centro de Preservação Cultural da Universidade de São Paulo (CPC, 2005).

 

Figura 2: Mapa do surto de cólera em Londres em 1854. Fonte: Vinten-Johansen, 2003, Fig. 12.5. Disponível em: http://johnsnow.matrix.msu.edu/images/online_companion/chapter_images/fig12-5.jpg. Acesso em: 8 mar. 2013.

Desafios para a Caracterização de Sítios Heterogêneos Desde a primeira das etapas elencadas acima, todavia, pressupõe-se que a identificação dos bens de interesse esteja dada. Tal situação é característica da proteção a sítios cujo caráter e valor sejam relativamente consensuais, estabelecidos ao menos nas diretrizes de proteção pelos órgãos técnicos, senão entre a comunidade. Em sítios com essas características, tende-se a favorecer um modelo de tutela patrimonial determinando a preservação integral do conjunto urbano e edificado (Figura 3). Ademais, há nesses casos pouca incerteza quanto ao perímetro e aos valores significativos para o sítio, geralmente devido à razoável homogeneidade de tipos e linguagens arquitetônicas, bem como ao sítio ser protegido ou reconhecido de longa data. Em trabalho anterior (Palazzo, 2012, p. 191), propôs-se batizar essa atitude de Paradigma de Ouro Preto. Tal como no primeiro Monumento Nacional brasileiro (1933), a diversos sítios históricos atribui-se uma imagem de homogeneidade estilística e tipológica, bem como um perímetro nitidamente delimitado. Essas características, por sua vez, decorrem da valorização de uma única linguagem arquitetônica — geralmente a colonial — ou de um período histórico específico. Alguns sítios urbanos brasileiros, é verdade, acomodam-se confortavelmente no Paradigma de Ouro Preto: bom número de cidades do ciclo da mineração, tais como Tiradentes e Pilar de Goiás, bem como outros assentamentos cujo período de pujança foi breve, a exemplo de Alcântara ou Pelotas. Ainda assim, tal concepção de um sítio histórico como dotado de homogeneidade pode ser enganosa. Onde figura no imaginário coletivo a herança neoclássica e eclética de Ouro Preto?

  Ou a história pré-moderna de Brasília e seu entorno? Em muitos outros casos, a pretensa homogeneidade do sítio histórico existe tão-somente no discurso legitimador dos valores atribuídos ao conjunto, seja por movimento da sociedade civil ou por profissionais especialistas. Expressões do Paradigma de Ouro Preto tais como a propalada Identidade art déco de Goiânia confrontam-se, na efetiva vivência das cidades, a uma diversidade de linguagens e tipos que não se enquadram nos valores oficialmente privilegiados. Numa perspectiva de gestão de discursos já socialmente consolidados, faz sentido traçar perímetros e políticas de conservação priorizando os valores consagrados junto à sociedade, ainda que seja bem-vindo um olhar mais abrangente. Mas o que fazer em sítios nos quais a construção de identidades ligadas ao patrimônio histórico ainda é incipiente, e a heterogeneidade do conjunto ainda não foi sublimada em uma imagem dominante? Tal situação pode tornar-se mais freqüente à medida que as ações de salvaguarda do patrimônio material se estendem dos monumentos canônicos para cidades de herança indiscutivelmente complexa.

Figura 3: Ouro Preto, caso paradigmático de preservação integral de conjunto urbanístico e arquitetônico. Autoria: Pedro Paulo Palazzo, 20 fev. 2010

Esses sítios apresentam ao pesquisador a necessidade de conceber uma delimitação e caracterização da área de interesse patrimonial, sem contar com a muleta dos discursos e juízos socialmente estabelecidos. Quais critérios são adotados para se fazer esse salto conceitual entre

  um levantamento em estado bruto de imóveis, e uma análise de setores já definidos e, eventualmente, tombados? Trata-se, no mais das vezes, de um processo discursivo, registrado nos memoriais e laudos que informam processos de tombamento, os quais são de grande valia não apenas como insumos para a preservação do patrimônio, mas também como documentos de um modo de pensar esse mesmo patrimônio. Trabalhos inovadores, como o já citado de Ferreira et al. (Ferreira, 2011), buscam inserir o geoprocessamento também naquele estágio intermediário entre a localização e a gestão: ou seja, como ferramenta do processo decisório que leva à definição das poligonais de interesse cultural, introduzindo um instrumental quantitativo num processo antes inteiramente discursivo. O centro histórico de Planaltina apresenta-se como um sítio no qual é impossível depreender uma linguagem arquitetônica dominante. Por outro lado, apesar de um predomínio, na malha urbana central, de habitações unifamiliares com aspecto remetendo ao das casas de meia morada do período colonial, esse tipo está longe de constituir a maioria do acervo edificado no centro histórico. Assim, é a diversidade de linguagens e tipos que se afirma logo num primeiro olhar sobre a cidade; não há um acervo homogêneo ou contínuo de edificações que sugira uma caracterização ou delimitação a priori. É no âmbito dessa proposta que se levanta a questão-chave deste trabalho: como pode o SIG auxiliar no processo decisório da identificação e caracterização de áreas de interesse cultural? Isto é, transcendendo o uso inicial da ferramenta para localizar e visualizar os bens dentro de um marco conceitual e de uma demarcação territorial preestabelecidos, explora-se o papel do sistema de dados georreferenciados na própria caracterização e delimitação do sítio histórico. Geoprocessamento no Inventário de Bens Arquitetônicos O paradigma de documentação de sítios urbanos adotado nesta pesquisa foi o Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG), desenvolvido pelo IPHAN para o cadastro dos bens materiais já tombados e para a documentação e valoração de bens ainda não tombados. O SICG sucede, no âmbito do patrimônio urbanístico e arquitetônico, ao Inventário Nacional de Bens Imóveis e Sítios Urbanos (INBISU), com o intuito de ser mais sistemático e padronizado quanto às informações prestadas. No seu estado atual, o SICG é preenchido por meio de fichas no formato de arquivos do programa Microsoft Word, o que inviabiliza qualquer cruzamento de dados autmatizada. Entretanto, está em curso a conversão do sistema para uma base de dados propriamente dita. O SICG compreende nas suas fichas referentes a bens imóveis a indicação das coordenadas geográficas do bem (Figura 4). Configura-se, assim, uma aplicação bastante rudimentar do SIG remetendo tão-somente à localização espacial do bem. Tal aplicação rudimentar está inserida, outrossim, em fichas de cadastro providas com um sortimento de informações simples a serem preenchidas: declividade do terreno, número de pavimentos, atividades, e assim por diante. Essa combinação de localização geográfica e informações simples se presta bem à estruturação de uma base de dados georreferenciada. No entanto, a ficha de cadastro pede a caracterização morfológica — os aspectos de volumetria e elementos de arquitetura — propriamente dita em campos descritivos, menos apropriados para uma tabulação de caracteres arquitetônicos na base de dados. Assim, foi preciso reformular os campos descritivos na forma de características morfológicas simples, cujas combinações resultariam num esboço da descrição formal de cada edificação.

 

PROCEDIMENTOS Fundamentação e Concepção das Características O principal modelo de referência para organizar o sistema de processamento de dados morfológicos foi o projeto italiano “Napoli in assonometria”, relatado na obra Napoli città in vista (Giusti, 1995). Longe de ser apenas uma representação tridimensional da cidade, esse projeto constituiu uma base de dados sistemática parametrizando cada edificação de acordo com seus elementos arquitetônicos. Assim, cada elemento encontra-se codificado (Giusti, 1995, p. 37–49) e hierarquizado num organograma (Giusti, 1995, p. 75), de modo que o levantamento oferece não apenas uma ilustração do edifício, tratado como um “verbete” de uma enciclopédia urbana, eventualmente associada a desenhos de levantamento detalhado, mas também uma lista de “indicadores” suas características morfológicas: “a cada ‘chave de leitura’, para cada ‘verbete’, corresponde um número seleto de ‘indicadores’ que descreve sinteticamente os caracteres constitutivos do ‘verbete’, em relação à ‘chave de leitura’ predeterminada” (Giusti, 1995, p. 78). O primeiro passo adotado na pesquisa foi a estruturação conceitual de um modelo de cadastramento e recuperação de informações por meio digital. No extremo da inserção de dados, a ferramenta deveria ser de uso simples, de modo que uma equipe de campo com treinamento mínimo pudesse cadastrar rapidamente um grande número de edificações. O produto definido a priori para a pesquisa era uma setorização morfológica do centro histórico, identificando um possível perímetro de tombamento e os valores históricos e arquitetônicos a serem preservados dentro dele. Como premissa teórica, decidiu-se que essa setorização morfológica seria realizada a partir de um mapa de tipos e outro de linguagens arquitetônicas. Esses mapas, por sua vez, seriam obtidos a partir do cruzamento de elementos morfológicos simples levantados em campo. Com base nessa proposta, decidiu-se ampliar o escopo da caracterização morfológica, usando os elementos assim catalogados como chaves para a identificação de “indicadores” de segundo grau, quais sejam as linguagens arquitetônicas representadas no sítio urbano. Tal sistema de identificação hierarquizada tinha dois objetivos. O primeiro era simplificar ao máximo a identificação de características morfológicas, de modo que o levantamento de campo pudesse ser realizado com rapidez por assistentes detentores de um conhecimento arquitetônico razoável mas prescindindo de experiência em preservação patrimonial ou mesmo de maior experiência com arquitetura histórica. De fato, a arquitetura tradicional é algo distante da vivência da maior parte dos estudantes de arquitetura e urbanismo no Distrito Federal. Assim, estimou-se ser mais eficiente fazer um levantamento sistemático, quase mecânico, e posteriormente filtrar os dados brutos.

 

Figura 4: Registro do Inventário de Planaltina para o Casarão Azul.Fonte: IPHAN, 2013, p. 171–176

O segundo objetivo era explicitar os critérios que levassem à identificação de cada imóvel com determinada linguagem arquitetônica ou conjunto morfológico. Desta feita, seria possível, ao final do trabalho, retroceder em todas as etapas de modo a verificar a pertinência das classificações morfológicas e, se necessário, reformular os agrupamentos e as definições dos setores. Conseqüentemente, o essencial do trabalho de reflexão dar-se-ia a partir do segundo estágio, o da montagem de unidades semânticas obtidas pela combinação de características morfológicas individuais em signos compostos. Esses signos seriam inicialmente as diversas linguagens arquitetônicas presentes na cidade, mas num segundo momento poderão representar outras camadas interpretativas também, como por exemplo as dinâmicas econômicas e imobiliárias. As características morfológicas selecionadas para o levantamento de campo foram elaboradas a partir do modelo de ficha de cadastro do SICG e das categorias empregadas na já citada pesquisa “Napoli in assonometria”. A seleção de características também levou em conta a necessidade de se ter uma gama de opções suficientemente completa para cobrir todos os casos morfológicos presentes em Planaltina — situação facilitada pela existência na cidade de um espectro relativamente restrito de soluções arquitetônicas vernáculas — sem causar demora excessiva no fichamento de cada imóvel. A árvore completa das características morfológicas encontra-se na Figura 5.

  Implementação Técnica Todas as características foram mapeadas a priori numa base de dados digital, com a possibilidade dos profissionais responsáveis pelo fichamento acrescentarem a essa base características não originalmente previstas mas que fossem descobertas no próprio levantamento. Qualquer edificação pode, assim, ser caracterizada como a soma de seus elementos morfológicos, entendidos aí não apenas como “peças” isoladas, mas como partes que estabelecem relações definidas com os demais elementos.

Figura 5: Árvore de características morfológicas. Autoria: Ana Laterza, 3 jan. 2012

A portabilidade dos registros e a praticidade da interface para o cadastramento das edificações na base de dados eram prioridade na concepção do sistema, consoante com a atribuição dessas tarefas a estagiários de Arquitetura e Urbanismo sem maior afinidade com tecnologias digitais do que a de um usuário de Internet mediano. Ademais, buscava-se manter o custo de implementação e manutenção do sistema acessível. A solução adotada para conciliar tais exigências, por vezes conflitantes, foi a instalação de um Sistema de Gestão de Conteúdo (Content Management System, CMS) de código livre, acessível online, com uma cópia de segurança offline regularmente atualizada. Optou-se pelo CMS Drupal (Drupal, S.d.), por ser de fácil configuração para implementar os campos específicos da base de dados e para permitir o

  acesso às informações de modo flexível. O CMS permite a inserção das informações na base de dados de modo intuitivo, por meio de um formulário preenchido no site do sistema (Figura 6).

Figura 6: Formulário de inserção de registros no Drupal. Autoria: Ábaco Arquitetura & Design Ambiental Ltda., 6 jan. 2012

No início, cogitou-se a possibilidade do preenchimento ser feito diretamente na base de dados digital, por meio de smartphones (Banta, 2006). Entretanto, foi averiguado que seria mais prático e rápido preencher fichas em papel, e posteriormente transcrevê-las na base digital, conservando o registro original manuscrito por medida de segurança. Para tanto, foram impressas fichas de levantamento de campo em formato A5 (Figura 7) com a lista de todas as características morfológicas previstas, de modo que os membros da equipe marcassem os itens aplicáveis para cada imóvel, sem a necessidade de croquis ou textos explicativos. A ficha contém ainda campos de livre preenchimento para aqueles elementos com grande variação, tais como cores, ou para informações importantes que não se encaixem em nenhuma das características indicadas.

 

Figura 7: Ficha de levantamento. Autoria: Ábaco Arquitetura & Design Ambiental Ltda., 6 jan. 2012

Restava, quanto ao estágio de inserção dos dados, relacionar cada conjunto de registros com o respectivo imóvel no mapa de Planaltina. As coordenadas geográficas que pede o formulário do SICG são pontuais, correspondendo ao centro da fachada principal da edificação. São, portanto, inadequadas para a representação gráfica de uma malha urbana contínua, formada por lotes e edificações. Como alternativa, usou-se a Base Cartográfica do Distrito Federal (Sicad), cujos arquivos em CAD foram corrigidos e atualizados, levando em consideração desmembramentos e demolições recentes, e convertidos no formato Shapefile, para uso nos programas de SIG. Considerando o grau de complexidade pretendido para a manipulação das formas geométricas e para as análises da base de dados, foi adotado o programa de código aberto QGIS, o qual combina recursos eficientes de consulta à base com facilidade de aprendizado e utilização. A vinculação dos registros da base de dados aos lotes correspondentes teve de ser feita manualmente. Análises Até então, o que se obteve foram registros tabulados em base de dados e vinculados a seus respectivos lotes (Figura 8). Nesse estágio, a configuração permite a recuperação de informações simples relacionadas a cada lote, tais como o número de pavimentos ou o tipo de cobertura. No entanto, o propósito do sistema é permitir a produção de informações interpretativas. A partir do grande número de dados registrados para cada imóvel, é possível fazer cruzamentos de

  características que sejam tão ou mais significativos do que os elementos cadastrados separadamente.

Figura 8: Lista de bens inventariados no sistema de gestão de conteúdo

Certas combinações correspondem, numa leitura a priori, a tipos consagrados da edilícia vernácula brasileira: uma construção térrea, compacta, construída em adobe, pau-a-pique ou na combinação, característica da segunda metade do século XVIII, de adobe com gaiola de madeira — conhecida como “frontal” —, com telhado de quatro águas e aberturas verticais, corresponde à descrição externa do tipo da casa colonial, em qualquer uma das suas variantes — meia morada, morada inteira, ou porta e janela. Na prática, todavia, raras construções em Planaltina reúnem todas as características que definem um tipo ideal, tal como ele se expressa em cidades com uma tradição construtiva mais longa — nenhuma estrutura civil hoje existente na cidade pode ser atribuída com certeza a uma data anterior à última década do século XIX. É fato que Planaltina se encontrava em relativo isolamento antes da abertura da estrada de rodagem ligando-a a Ipameri, em 1938. Ainda assim, a persistência da tradição colonial na prática construtiva local até, pelo menos, 1965 — data da mais recente edificação local em adobe — se deu ao preço da incorporação de soluções espaciais, elementos construtivos e proporções que remetem ao ecletismo, ao art déco e ao modernismo. Essa heterogeneidade nem sempre é fruto de alterações, mas muitas vezes pertence à própria concepção inicial das casas (ver pesquisa anterior deste autor (Palazzo, 2011). Por isso, foi preciso ao mesmo tempo ter cautela na definição dos tipos, e estabelecer uma classificação que levasse em conta essa variabilidade inerente ao processo histórico da urbanização de Planaltina. Conseqüentemente, foi feito um primeiro passo interpretativo na definição dos tipos edilícios planaltinenses, consistindo na combinação de atributos característicos. Foram então criadas regras para a conversão das combinações de elementos morfológicos em tipos e linguagens, conforme exemplificado na Tabela 1.

  Tabela 1: Exemplos de regras para identificação de linguagens arquitetônicas

Linguagem “Colonial”

Sistema Construtivo Frontal ou Adobe

Colonial com fachada Art Déco Frontal ou Adobe Art Déco Casas-padrão

Cobertura 4 águas

Platibanda Não

4 águas

Sim

Frontal, Adobe ou Tijolo cozido 2 ou 4 águas Sim Alvenaria ou concreto 2 águas com empena Não

Essas regras foram cadastradas no SIG na forma de legendas. No extremo da recuperação dos dados, fez-se com que o sistema gerasse os mapas de tipos e linguagens a partir do cruzamento de dados do cadastro (Figura 9). Esses mapas introduzem no processo interpretativo a visualização imediata e global, por parte dos pesquisadores, da distribuição de edificações vinculadas a cada um dos tipos ou linguagens. Desse modo, há uma interação entre a interpretação inicial dos pesquisadores quanto à classificação das edificações, a qual por sua vez é potencializada pela automatização do processo de visualização dessa classificação no mapa. Por fim, formataram-se as fichas de cadastro dos bens no sistema SICG diretamente a partir dos registros da base de dados, com o acréscimo das informações descritivas pelos pesquisadores e assistentes. Na maioria dos imóveis, a descrição resumiu-se à expressão das informações simples quanto a volumetria, elementos arquitetônicos, aberturas, registrados na base de dados. Nos edifícios para os quais havia informações históricas, estas foram agregadas pelos pesquisadores.

RESULTADOS Benefícios do Sistema O sistema permitiu a visualização dos dados tanto por intermédio de consultas ao arquivo SIG quanto por meio de páginas web dinâmicas. Assim, além da produção dos mapas necessários à setorização do sítio pesquisado, foi possível gerar as fichas de cadastro individual de cada imóvel inventariado (ver Figura 4). Outro benefício da ferramenta digital foi a possibilidade de retroalimentar o levantamento de campo, identificando ainda durante o processo de coleta de dados as possíveis lacunas ou ambigüidades na árvore morfológica. Devido a essa retroalimentação, o modelo de ficha de levantamento foi corrigido durante o período de visitas a campo, incluindo elementos arquitetônicos que apareciam com freqüência mas que não haviam sido previstos desde o início.

 

Figura 9: Mapa de linguagens arquitetônicas no Setor Norte do centro histórico de Planaltina

De posse dos mapas e das fichas, foi possível identificar as áreas de maior concentração de bens de interesse cultural, bem como as características dominantes de gabarito, implantação e atividades nessas áreas. Com isso, delimitaram-se os setores de preservação tendo em vista não apenas a existência de edificações históricas, como também a inserção das mesmas no conjunto da malha urbana. O padrão de ocorrência espacial dos tipos e dos estilos permitiu distinguir quatro setores de interesse histórico em Planaltina (Figura 10). Com base nessa caracterização arquitetônica e nos padrões dominantes de gabarito e uso do solo em cada setor, os pesquisadores elaboraram as diretrizes de preservação do conjunto e a lista de imóveis aptos a receberem proteção individual (Figura 11). Também foi definido um roteiro patrimonial, com implicações tanto científicas quanto turísticas, indicando uma potencial integração deste com outras cidades históricas na região.

 

Figura 10: Setores morfológicos do centro histórico de Planaltina

Limitações do Sistema Por outro lado, fica claro também que o sucesso do procedimento depende em grande parte da qualidade das fichas de levantamento e da matriz de características previstas para serem registradas. Uma limitação percebida no processo de levantamento foi a da caracterização da casa eclética, cujos elementos característicos, tais como descritos no levantamento, a confundem com a morfologia de habitações mais recentes. Um registro mais apurado do posicionamento dos elementos morfológicos, em particular varandas e acessos, provavelmente teria dado conta dessa dificuldade.

 

Figura 11: Diretrizes de proteção do Setor Norte da área a ser tombada em Planaltina

Na fase do processamento de dados com integração entre a base online e o SIG, verificou-se uma limitação no formato de registro dos dados. O modo de armazenamento das informações no CMS Drupal mostrou-se excessivamente complexo para a construção de buscas eficientes combinando vários campos. Há, portanto, um conflito entre a simplicidade de implementação e de inserção dos dados, oferecida pelo CMS preconfigurado, e a conveniência do processo de cruzamento das informações, que se encontra prejudicada pela estrutura da base de dados. Para resolver esse conflito, que se evidenciou depois da transcrição das fichas de levantamento estar bastante adiantada, optou-se por uma solução de transição na forma de tabelas secundárias, atualizadas por meio de rotinas executadas regularmente. Essas tabelas reuniam informações dispersas em várias outras tabelas, de modo a facilitar a recuperação de dados por parte do programa de SIG. Oportunidades de Expansão O SIG construído para a pesquisa em Planaltina foi, especialmente no tocante à definição a priori dos elementos morfológicos possíveis, concebido tendo em vista as peculiaridades do sítio em questão. Todavia, o mesmo sistema pode ser facilmente ajustado para emprego em locais cujas características arquitetônicas e urbanísticas sejam inteiramente diversas. Os resultados obtidos, na forma de um apoio inestimável ao processo de tomada de decisão quanto ao recorte de um perímetro de proteção, mostram que a aplicação do SIG à preservação do patrimônio histórico não se limita à visualização de dados brutos ou previamente interpretados pelo pesquisador: ela

  pode também compreender um processamento desses dados, de modo que a ferramenta informática apresente ao pesquisador já um primeiro nível de interpretação. Ademais, o produto resultante desse processamento georreferenciado, nesta pesquisa apresentado empregando o gabarito das fichas SICG desenvolvido pelo IPHAN, pode ser formatado de modo a adequar-se a outras formas de apresentação dos dados. Tais alterações de formatação não se configuram apenas como mudanças cosméticas, mas podem indicar ênfases diversas na leitura dos bens pesquisados. Certamente uma apresentação diversa daquela utilizada poderá também evidenciar lacunas na coleta de dados, e permitir a sua correção. Essa possibilidade de ajustes e reformulações na base de dados e nos cruzamentos de informações é reforçada pela escolha de software livre nas etapas de processamento de dados. Desse modo, as informações são armazenadas em arquivos abertos, baseados em texto, podem ser pesquisadas usando uma diversidade de ferramentas e potencialmente sobrevivendo, no longo prazo, à obsolescência dos programas originalmente empregados. Também será possível, numa eventual etapa de divulgação eletrônica do produto, a transposição dos dados coletados e das análises dos programas técnicos para plataformas mais acessíveis a usuários leigos — por exemplo, Com isso, pretende-se explicitar o processo de tomada de decisão, tornando-o mais visível e mais inteligível a observadores externos. Tal visibilidade pode reverberar numa melhor compreensão, por parte da comunidade leiga, do processo decisório e dos critérios a serem adotados na preservação do patrimônio local. Desafios Outrossim, considerando o aspecto predominantemente vernáculo e simples da maior parte das edificações de Planaltina, foi dado pouco destaque, na lista de elementos morfológicos, aos aspectos ornamentais da arquitetura. Tal ênfase é condizente com o foco da morfologia urbana na questão das plantas e da implantação dos imóveis (Lo, 2007, p. 81; Whitehand, 2007, p. 92). Certamente será preciso considerar a questão do ornamento ao pensar a portabilidade do sistema para outros contextos em que se encontrem formas arquitetônicas mais eruditas. De um modo geral, a lista de elementos é de fato uma construção empírica e deve ser repensada no evento de sua transposição para inventários de outros sítios com características diversas, tendo em mente sempre o necessário equilíbrio entre a abrangência do sistema e a praticidade do levantamento de campo.

CONCLUSÕES No inventário de Planaltina, foi elaborado e testado um sistema de processamento de dados que permitisse decompor e explicitar os termos necessários à delimitação das áreas de interesse histórico. A partir dessa decomposição, na forma de mapas interpretativos gerados pelo cruzamento de dados, descreveram-se verbalmente as características morfológicas de cada área. Longe de substituir a interpretação do pesquisador experiente, o SIG assim desenvolvido se oferece como insumo para essa mesma interpretação. O sistema desenvolvido para o Inventário de Planaltina, ao registrar características objetivas e simples, permite reconstituir o processo de coleta de dados de modo transparente. Ele é também aberto à reformulação dos mapas em tempo real de acordo com critérios variáveis, conforme seja do interesse dos pesquisadores cruzar informações diversas. Além disso, permite cobrir com rapidez uma grande área com morfologia heterogênea empregando mão-de-obra com pouca experiência no campo do patrimônio e da arquitetura histórica.

  Espera-se com isso estabelecer um precedente para que futuras pesquisas na área do patrimônio histórico possam se valer de um sistema dados quantificáveis e de registros amplamente acessíveis e tratáveis por meios digitais. Para tanto, será preciso pesquisas futuras que testem os limites do sistema existente e o aprimorem, especialmente no tocante à concepção da matriz de características morfológicas e à estrutura da base de dados. Mais ainda, já existem experiências que levam o processamento de dados georreferenciados a outras escalas e outras categorias de bens históricos (Matero, 2003). Não seria despropositado imaginar uma aplicação desse sistema, devidamente adaptado, a bens móveis ou integrados, por exemplo, e por que não a práticas culturais espacializadas do patrimônio imaterial. De modo mais modesto, um desdobramento claramente viável do sistema dar-se-ia no âmbito da morfologia urbana, muito mais próxima da escala dos inventários de conjuntos arquitetônicos (Boudon, 1975). Por esse viés, concebe-se o mapeamento de caracteres relacionados ao padrão de parcelamento do solo, às formas viárias e a outros elementos de sítio urbano. Por fim, a estruturação conceitual do sistema pode aplicar-se a uma diversidade de ferramentas técnicas. O emprego de software livre na construção do sistema testado nesta pesquisa possibilita uma transposição do mesmo a outros projetos sem maiores desafios técnicos. Todavia, a concepção do sistema não é limitada ao conjunto de ferramentas aqui demonstrado. Essa abertura permite a exploração do conceito em sistemas diversos, bem como a sua integração com plataformas tecnológicas já existentes de acordo com necessidades específicas.

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