SISTEMA FAXINAL E TERRAS DE USO COMUM NA REGIÃO DO CONTESTADO

July 8, 2017 | Autor: Nilson Cesar Fraga | Categoria: War Studies, Territoriality, Territory, Faxinais, Territorio, Guerra Do Contestado
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SISTEMA FAXINAL E TERRAS DE USO COMUM NA REGIÃO DO CONTESTADO1 FAXINAL SYSTEM AND LANDS OF COMMON USING IN THE CONTESTADO REGION

Alcimara Aparecida Föetsch UFPR/UNESPAR-FAFIUVA2 E-mail: [email protected]

Vanessa Maria Ludka UENP/UFPR3 E-mail: [email protected]

Nilson Cesar Fraga UEL-DGEO/ UFPR-PPGEO4 Produtividade em Pesquisa CNPq E-mail: [email protected]

RESUMO: No Estado do Paraná os povos dos faxinais pertencem às populações tradicionais e são reconhecidos por sua singular relação com a terra. Entretanto, em Santa Catarina estudos mencionam terras de uso comum, uma racionalidade ligada originalmente aos faxinais, mas que evoluiu distintamente. Dessa forma, o presente ensaio objetiva refletir acerca das semelhanças (e distinções!) entre o sistema faxinal paranaense e as terras de uso comum catarinenses, na região do Contestado. Para tanto, discute-se a Guerra do Contestado enquanto conflito definidor dos atuais limites entre Paraná e Santa Catarina, o modo de vida caboclo da época do conflito, a chegada da imigração e as “áreas de caívas” como possíveis remanescentes de antigos faxinais na porção catarinense da região do Contestado. PALAVRAS-CHAVE: Sistema faxinal, terras de uso comum, região do Contestado.

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Artigo resultante das pesquisas do projeto: “Sistema faxinal na região de União da Vitória” (UNESPAR-FAFIUVA) e dos trabalhos de campo do Grupo de Pesquisa: “A(s) Geografia(s) Territoriais Paranaenses: Territórios, Redes, Políticas Públicas e Conflitos na Formação do Paraná”, na linha de pesquisa: Geografia, Rede, Território e Poder. 2 Licenciada em Geografia pela FAFIUVA. Especialista em Gestão Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela FAFIUVA. Mestre em Geografia pela UFPR (2006). Doutoranda em Geografia (UFPR/2011) na Linha de Pesquisa: Território, Cultura e Representação. Professora do Colegiado de Geografia da UNESPAR/FAFIUVA. 3 Licenciada em Geografia pela FAFIUV. Turismóloga pela UNIUV. Especialista em Turismo: Planejamento e Gestão pela FAFIUV. Especialista em Geografia: Gestão Ambiental e Biodiversidade pela FAFIUV. Mestranda em Geografia na Linha de pesquisa: Paisagem e Análise Ambiental – Bolsista Reuni. 4 Produtividade em Pesquisa CNPq. Universidade Estadual de Londrina – UEL-DGEO e Universidade Federal do Paraná – UFPR- PPGEO. Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento – UFPR. 1

ABSTRACT: In Paraná State the people from “faxinais” belong to the traditional population and are recognized for its unique relation with land. Although in Santa Catarina studies mention lands of common using, a rationality connected with originally to the “faxinais”, but that evolved distinctly. Thus, this present essay aims to reflect around the similarities (and distinctions!) between the “faxinal” System of Paraná and the lands of common using from Santa Catarina, at the Contestado region. For that, it is debated the Contestado War while the defining conflict from the current borders between Paraná and Santa Catarina the “cabloco” way of life from the conflict moment, the immigration coming and the “caívas” areas as possible remainings from the old “faxinais” in Santa Catarina portion of the Contestado region. KEY-WORDS: Faxinal system, lands of common using, Contestado region.

1. INTRODUÇÃO “Estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do obsoleto tear manual, o artesão utópico (...). Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência.” (THOMPSON, 1987, p.13).

As palavras acima auxiliam na definição do objeto de análise do presente ensaio. Propõe-se refletir sobre as insistentes estruturas camponesas que ainda teimam em existir numa atualidade voltada ao agronegócio, à industrialização e à produtividade em larga escala – que precisa alimentar o consumismo capitalista. Trata-se de um pensar a história dos que não são lembrados nesse processo hegemônico predominante, “uma vista de baixo” ou “dos de baixo”, os quais são obscurecidos pelos olhares de muitos. São os povos tradicionais brasileiros que a duras penas buscam sair da invisibilidade a que foram submetidos e coexistir numa sociedade altamente excludente. Dentre os povos que compõe a classificação “tradicional” temos os indígenas, quilombolas, caiçaras, quebradeiras de coco, seringueiros, pescadores, ribeirinhos e, no centro-sul paranaense, os faxinalenses. Ao observar a distribuição dos povos dos faxinais no estado do Paraná uma reflexão que surge é sobre a existência e/ou evolução desse modo de vida no estado de Santa Catarina, dada a proximidade geográfica entre ambos. Sabe-se que o estado do Paraná já possui dispositivos legais (leis e decretos, entre outros) para o reconhecimento destes povos enquanto populações tradicionais, além de existir uma série valorosa de contributos acadêmicos e profissionais acerca da temática. Entretanto, estudos catarinenses versam mais enfaticamente acerca das terras de uso comum, o que não é exclusividade do sistema faxinal. Dadas certas 2

similaridades,

pretende-se

discutir

algumas

proximidades

(bem

como

distanciamentos) entre as terras de uso comum no planalto norte-catarinense e as características gerais do sistema faxinal existente, sobretudo, na região centro-sul do estado do Paraná. A reflexão parte de observações e leituras sobre a região do planalto norte catarinense, onde muitos retratam a existência do sistema faxinal no passado, porém, atualmente não se percebe mais essa forma de organização camponesa tão em evidência. Assim sendo, num primeiro momento, definem-se os limites da região conhecida no sul do Brasil como região do Contestado. Em seguida, discute-se a população local que deu origem ao conflito: os caboclos, e, sua relação com os imigrantes, notadamente europeus. A discussão elenca questionamentos sobre as relações econômicas e sociais que se deram a partir deste contato. Por fim, coloca-se a existência das “áreas de caívas” na região norte de Santa Catarina, as quais são conhecidas localmente por associar a conservação ambiental integrada à economia familiar – característica notável no sistema faxinal. A questão discutida parte de colocações acerca da origem da prática existente nestas áreas, apresentadas como originárias de antigas áreas de invernadas ou faxinais que se distribuíram pelo centro-sul do Paraná, norte de Santa Catarina e norte do Rio grande do Sul. O intuito é sugerir uma discussão futura sobre o que ocorreu com o sistema faxinal na região do Contestado, é existente? Desagregou-se por completo? Ou converteu-se em novas formas de uso comum da terra?

2. A REGIÃO DA GUERRA DO CONTESTADO – DEFININDO OS LIMITES “As bandeiras brancas de cruz verde não mais tremulavam no sertão; as canções e as rezas dos fanáticos não mais ecoavam nas pradarias; nas matas, não mais se ouviam os silvos das balas das espingardas jagunças; os coágulos de sangue caboclo derramado, não mais mancham os solos e tornavam rubras as águas. A guerra civil nos sertões catarinense começava a ser passado.” (THOMÉ, N. Guerra Civil em Caçador. 1ª edição: Caçador: Fearpe, 1984. – parágrafo final do livro.)

Após quatro anos de conflito (1912-1916) em 20 de outubro de 1916, no Rio do Janeiro, no Palácio do Catete, os governadores de Santa Catarina, Felipe Schmidt, e do Paraná, Affonso Camargo, na presença do presidente da República, 3

Wenceslau Braz, assinaram o “Acordo de Limites” pondo fim ao litígio no Contestado. Os versos acima descritos – de forma melancólica – afirmam que a guerra civil catarinense começava a ser passado. Entretanto, o término do conflito não significou o fim dos embates sobre a posse das terras. O capital estrangeiro e a imigração alteraram o modo de vida local, imprimiram novas marcas na paisagem e contribuíram para a constante modificação do território. Nesta perspectiva, na presente discussão pretende-se definir a região do Contestado com o propósito de delimitar a porção do espaço geográfico a ser analisada sob o prisma das terras de uso comum e dos faxinais. Dessa forma, inicialmente, caracteriza-se o local e o conflito, para em seguida, refletir sobre as distintas formas de uso coletivo das terras da região. Ressalta-se que é impossível desvincular o conflito do Contestado da evolução histórica dos estados do Paraná e de Santa Catarina. Não se pretende, neste momento e na inocência destas reflexões, superar os escritos sobre o conflito, suas motivações e consequências. O que se almeja é definir uma área de pesquisa, propondo uma relação entre a Guerra do Contestado e a evolução das terras de uso comum na região buscando similaridades e distintas evoluções com o sistema faxinal paranaense.

2.1 CONTESTADO: MOTIVAÇÕES E ASPECTOS GEOGRÁFICOS

Acerca da Guerra do Contestado (1912-1916), sabe-se que foi um episódio complexo, alimentado por vários fatores: religiosos, culturais, econômicos, políticos e sociais. O conflito foi definidor dos territórios atuais do Paraná e de Santa Catarina (FRAGA, 2005). Tratou-se de um conflito de ideias, representações e também embates armados, do qual foram sujeitos: “sitiantes, agregados, coronéis, políticos das esferas estaduais e federais, forças policiais militares estaduais, exército, vaqueanos, trabalhadores da ferrovia, operários da Lumber e imigrantes” (TONON, 2010, p.39)5.

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Por vaqueanos se entendem homens contratados como mercenários e que compunham igualmente o corpo de capangas ou jagunços dos coronéis, eram pequenos proprietários expropriados, pequenos sitiantes, remanescentes da Revolução Federalista e trabalhadores da estrada de ferro que foram abandonadas após a conclusão da obra. (TONON, 2010, p.39). 4

Vários foram os motivos que contribuíram para desencadear da Guerra: a índole guerreira do homem local, a estratificação social e os modos de vida, a pregação dos monges, o combate de Irani, a questão de limites entre Paraná e Santa Catarina e, sobretudo, a invasão estrangeira através da construção da estrada-deferro e a instalação da Lumber6 (THOMÉ, 1992). Fraga (2010) aponta os municípios – hoje paranaenses e catarinenses – que foram palco da guerra: Palmas, União da Vitória, Canoinhas, Mafra, Caçador, Fraiburgo, Videira, Curitibanos, Campos Novos, Irani, General Carneiro, Matos Costa, Três Barras, Lebon Régis, São Cristovão do Sul e Timbó Grande. Além destes, inclui-se o município catarinense de Bela Vista do Toldo. A imagem abaixo retrata os limites da área contestada entre o Paraná e Santa Catarina:

IMAGEM 01: Palco da Guerra do Contestado, entre os estados do Paraná e Santa Catarina. Fonte: Fraga (2006, p.79).

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“Estando ligadas a Holding Brazil Railway Company e à Companhia da Estrada de Ferro São PauloRio Grande, Farquar criou duas empresas:- a Brazil Development and Colonization Company, para povoar as terras devolutas recebidas pela Estrada de Ferro, e a mais importante - a Southern Brazil Lumber Colonization, que além de comprar pinheirais no Planalto Norte, ainda obteve autorização para instalar serrarias em terrenos devolutos e depois vender as terras, já sem árvores, para imigrantes se fixarem”. (SACHET; SACHET, 2001, p. 71-72). Após concluir, em 1910 a ligação ferroviária entre o estado de São Paulo e o Rio Grande do Sul, a Brazil Railway iniciou um plano de colonização na faixa que lhe fora concedida de 15 quilômetros de cada lado da linha. 5

Acerca das características geográficas da região, tem-se: com altitude oscilante entre 600 e 1.200 metros, na maior porção de solo sílico-argiloso, tipo terraroxa, “[...] predomina a floresta de araucárias, na qual se intercalam capões, faxinais e taquarais, entre as matas dos pinhais e os campos de gramíneas” (ibidem, p.14). Este território do Contestado compreendia uma vasta área geográfica, em torno de 48 mil quilômetros quadrados, a qual era disputada entre Paraná e Santa Catarina desde 1853 com a criação da Província do Paraná desmembrada de São Paulo (TONON, 2010), tendo como fronteiras: ao Norte, os rios Negro e Iguaçu; ao Sul, os campos de Curitibanos, Lages e Campos Novos; a Leste, a Serra Geral; e a Oeste, os campos de Irani – o que a caracterizou como „Região do Contestado‟” (THOMÉ, 1992, p.14). Vinhas de Queiroz (1981) também caracteriza a extensão espacial do conflito: [...] no auge no movimento, o território ocupado pelo jaguncismo compreendia 28.000 quilômetros quadrados, ou seja, uma extensão [...] aproximadamente igual a Alagoas; ou, ainda, 0,3% do território nacional. Fazia limites, ao norte, pelo Rio Iguaçu e a Estrada de Ferro de São Francisco, desde perto de União da Vitória, envolvendo Canoinhas, até junto à Vila de Rio Negro; ao sul, inflectia sobre Lages, aproximava-se de Curitibanos e de Campos Novos, a leste, compreendia Itaiópolis, Papanduva, as picadas da colônia Moema e Iracema, os contrafortes da Serra do Mirador e as demais cabeceiras da Bacia do Itajaí; a oeste, a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande (p.177).

Tavares (2008) afirma que durante a guerra dos camponeses rebeldes do Contestado, no auge do movimento, estes ocupavam uma área de 28.000 quilômetros quadrados, cujos limites eram: “ao norte, pelo Rio Iguaçu e a Estrada de Ferro de São Francisco, desde as proximidades de União da Vitória (PR), incluindo o município de Canoinhas (SC), até próximo do atual município de Rio Negro (PR); ao sul, incluía-se as terras de Lajes (SC), de lá se seguia até as proximidades de Curitibanos e de Campos Novos, ambos em Santa Catarina; a leste, incorporavamse as terras dos municípios de Itaiópolis e Papanduva (SC), seguidas das picadas das colônias Moema e Irecema até as cadeias de montanhas da Serra do Mirador e as demais nascentes dos rios que conformam a bacia do Itajaí; a oeste, a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande” (p.518). Porém, Thomé (1992) afirma: “Contestado, nesta região catarinense, é hoje nome de ruas, de praças e outros logradouros em diversas cidades, título de jornal, de livros, marcas de produtos industrializados, denominação de empresas, de 6

museu, de instituto histórico e cultural, de teatro, da associação microrregional de municípios e de Universidade” (p.15).

2.2 CONTESTADO: POR ENTRE AS LACUNAS DO TERRITÓRIO

Enquanto território, o Contestado, para muitos pode não mais existir como produção

exclusivamente

cabocla.

Talvez

tenha

dado

lugar

a

uma

multiterritorialidade, expressa pelos distintos territórios que coexistem, numa sobreposição, em forma de uma identidade híbrida. Embora, silenciado e esquecido na história enquanto acontecimento resulta em uma tessitura das mais entrelaçadas onde o caboclo resiste, a paisagem evidencia as marcas da exploração estrangeira e a imigração europeia transforma seu espaço em lugar – valendo-se dos atrativos naturais e de seu próprio modo de vida “importado”. Tudo, sob o chamamento de região do “Contestado”. Enquanto assunto, se apresenta passível de muita discussão. Observando as leituras acerca da definição de “Contestado” percebe-se que o próprio termo já se revestiu de uma polissemia, sendo um objeto plural de significações (TONON, 2010, p.39). Várias são as abordagens acerca do Contestado: econômicas, políticas, sociais, culturais, históricas, artísticas, cada qual com sua visão e inegável contribuição. O território enquanto espaço dominado e/ou apropriado passa a assumir um sentido multidimensional e multi-escalar, o qual só pode ser apreendido dentro

de

uma

multiterritorialidade,

numa

concepção

de

multiplicidade

(HAESBAERT, 2008, p.34). Realmente muito há para se descobrir, pois nem tudo foi revelado e há muitas lacunas do passado a se preencher. E, são nessas lacunas que os questionamentos acerca da relação entre o conflito do Contestado e o sistema faxinal se inserem, sobretudo pautados na figura do caboclo que desencadeou a guerra, do imigrante que fixou residência na região e na exploração natural pelo capital estrangeiro. Os propósitos são vinculados à relação espaço-tempo, que na Geografia, ajudam a explicar a emergência das territorialidades.

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3. A POPULAÇÃO CABOCLA DA REGIÃO DO CONTESTADO “Era o caboclo, o cidadão [...], desde o século passado proletário do campo, do sertão e da roça; era o sertanejo, o caipira, matuto e acanhado, lento no pensar e no falar, bastante místico, homem desconfiado. Face queimada pelo sol, mãos calejadas pelo trabalho, desajeitado no andar, afeiçoado à caça e à pesca, de pele pardacenta, nela corria o sangue do alegre, afeito, trabalhador e justo negro escravo; do bravo, indolente e sempre temido guerreiro indígena; e tinha dentro de si o alto sentimento de justiça, do bem, e do coletivismo do desbravadores e povoadores.” Extraído de: Contestado. Estado de Santa Catarina, 2000, p.112.

Ao se analisar a literatura acerca dos faxinais percebe-se que a população tradicional intitulada cabocla é apontada como precursora do desenvolvimento desse sistema na região sul do Brasil. Alguns autores, entretanto, afirmam que na consolidação deste, os imigrantes europeus tiveram papel preponderante. Assim sendo e considerando toda a relação espaço-tempo, nos propósitos geográficos, pretende-se sugerir alguns questionamentos acerca das semelhanças e das diferenças entre o sistema faxinal e as terras de uso comum na porção meridional brasileira, mais especificamente na região do Contestado. Löwen Sahr e Cunha (2005) chamam a atenção para uma população tradicional do sul do Brasil: os caboclos, ressaltando que estes – apesar de considerável pressão – vêm conseguindo se manter relativamente afastados dos processos de modernização, preservando seu modo de vida, nas palavras dos autores: “uma população autóctone” (p.93). Segundo Löwen Sahr e Cunha (2005), os “caboclos vivem há mais de dois séculos nos sertões do Sul, nas matas tropicais dos planaltos do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná” (p.90), onde praticam, sobretudo nos vales dos rios, um sistema integrado de atividade silvopastoril comunitária, extração de madeira, agricultura de subsistência e produção de erva-mate. A esse sistema dá-se nome de faxinal ou sistema faxinal. Brandt e Campos (2008) ao caracterizar a região do planalto sul brasileiro o apresentam dominado por “uma vegetação nativa de campos e floresta de araucárias, ora um misto de ambas, com presença ainda de ervais (erva-mate) e misto de arbustos e vegetação rasteira regionalmente conhecidos por faxinais” (p.44), ou seja, além da presença dos proprietários das fazendas e agregados, havia 8

uma “considerável população posseira, vivendo às margens das grandes fazendas e áreas de matas e faxinais, de pouca valia para o fazendeiro” (p.47). Esta população era fortemente miscigenada e ficou conhecida como “cabocla”. População esta que daria origem ao conflito do Contestado. Martins (1995) demonstra a impossibilidade em caracterizar biologicamente o caboclo ao afirmar que “a população do Planalto Catarinense é notadamente mestiça, consistindo principalmente do tipo definido como caboclo – que pode ser alguém de olhos azuis ou mesmo um índio destribalizado” (p.131). Em meio a um embate de possibilidades analíticas acerca das origens, desenrolar, representações e consequências da Guerra, evidencia-se a figura do homem local, o qual é caracterizado mais pelo padrão sócio-cultural do que pela composição racial de seus membros. É entendido também como o “caboclo do Contestado”, o qual “era corajoso, instintivo e violento, ao mesmo tempo em que era franco, leal e honrado” (SANTA CATARINA, 2000, p.112). Este “Homem do Contestado”, não era de uma lida só, exercia múltiplas atividades, era criador, serrador, caçador, peão, agregado, mateiro, lavrador, lenhador. A denominação que recebeu, o “caboclo”, abrangia vários tipos humanos, desde o branco (lusitano ou castelhano), o índio (Tupi-Guarani, Kaigang e Xokleng), o negro (escravo africano), o mameluco (da mesclagem do branco com o índio), o cafuzo (descendente do cruzamento de negro com índio), o mulato (mestiço negro e branco), ou, ainda, o produto final das misturas de todas essas etnias, tornando-o inconfundível onde quer que se apresente (THOMÉ, 1992, p.19-21). Ao discutir as “Lideranças do Contestado”, Machado (2004) ao se referir à palavra “caboclo” afirma que não há uma conotação étnica nesta e frequentemente o caboclo “era mestiço, muitas vezes negro. Mas a principal característica desta palavra é que distingue uma condição social e cultual, ou seja, são caboclos os homens pobres, pequenos lavradores posseiros, agregados ou peões” (p.48). Em sua abordagem afirma ainda que os imigrantes (sobretudo eslavos e alemães) ao entrarem em contato com o modo de vida local se “acaboclaram”, ou seja, adquiriram hábitos e costumes da população, como a crença no Monge João Maria e também algumas técnicas agrícolas. Entretanto atualmente, em muitos locais que foram palco da guerra, não se percebe em tão evidência este elemento que deu vida e sentido ao conflito do 9

Contestado. O caboclo, ou ainda sertanejo, ou ainda fanático, se esconde nos lugares mais distantes ou é escondido pela paisagem construída que remete a um não-lugar. Locais onde entre os anos de 1912 e 1916 batalhas ocorreram, ceifaram vidas e ajudaram a construir o território sul paranaense e norte catarinense, atualmente estão cobertos (ou encobertos?!) pela mata reconstituída ou por cidades construídas. É a inegável relação espaço-tempo.

3.1 AS NOVAS TERRITORIALIDADES NO CONTESTADO

Nos descompassos deste conflito, insere-se a questão da imigração. Antes mesmo do início oficial da Guerra em 1912, topógrafos, agrimensores e agentes da Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande iniciaram as medições nas marginais dos trilhos para demarcar os espaços de colonização para os imigrantes estrangeiros. Próximos às estações ferroviárias eram instalados armazéns para atender aos “recém-chegados” (THOMÉ, 1992, p.78). Através da Brazil Development and Colonization Company, que fazia parte da Holding Brazil Railway Company, a Lumber promoveu a vinda de imigrantes europeus, especialmente da Polônia e da Ucrânia para atuarem no setor agrícola (LIMA, 2008). Nas palavras de Fraga (2005), este território outrora contestado passou a ser rapidamente ocupado por milhares de migrantes europeus e excedentes das colônias do Rio Grande do Sul, ocupando as terras de posse e vivência dos caboclos, sob domínio e direito de colonização da Cia. Lumber. Trata-se das novas territorialidades no Contestado, uma ruptura ao território do caboclo. Nota-se que algumas cidades apagam a história do conflito, e numa limpeza histórica o tornam invisível, negando os acontecimentos anteriores à presença da imigração. É o caso dos municípios catarinenses de Friburgo, Videira, Iomerê, Salto Veloso, Treze Tílias, por exemplo, onde a guerra do Contestado parece não ter existido e a figura do Homem do Contestado praticamente não é mais vista, nem no imaginário, nem na materialidade. É a constante reconstrução do território. O que se questiona é o que ocorreu com as formas coletivas de uso das terras nestes lugares – caso tenham realmente existido.

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Entretanto, este ator social que desencadeou uma guerra sobrevive na memória de alguns, onde a necessidade da população ajudou a materializar as passagens do conflito, como Porto União (SC), União da Vitória (PR), e as cidades catarinenses de Matos Costa, Calmon, Caçador e Irani. Entretanto, inegavelmente, a construção da estrada de ferro, a exploração madeireira e a imigração, juntando-se à dinâmica capitalista agrária modificaram o território do caboclo, restando a este conviver com a invisibilidade a qual foi submetido e coexistir apagado por uma modernidade pautada na exploração e no estrangeirismo. Porém, “se a legitimidade da posse da terra dependesse da cronologia das civilizações que dela se apropriaram, as Américas seriam só dos índios” (YÁZIGI, 2001, p. 224), dessa forma, compreende-se que a ocupação dos espaços relacionase com a evolução temporal. São diversos tempos no mesmo território, e é impossível romper o tempo. Nesta ótica, o território hoje passa a possuir um sentido multi-escalar e multidimensional que só pode ser apreendido devidamente dentro de uma

concepção

de

multiplicidade,

multiterritorialidade.

São

as

distintas

“territorialidades” que se imprimem no Contestado, onde a territorialidade é uma estratégia para dotar o mundo de significado. Dessa forma, não se pode falar em invasão imigrante em um território de caboclo. Trata-se de identidades distintas que atualmente dividem o espaço e ajudam a formar a identidade territorial da região do Contestado, na perspectiva de “sobreposição e/ou descontinuidade”. Com o fim do conflito do Contestado, restou a muitos se inserir a um novo molde que se instaurava na região, ou seja, a derrubada da mata e a demarcação e entrega das terras à imigração. Brandt (2007) ao analisar essa nova modificação econômica e social afirma que a população cabocla da região teve duas opções: “adaptar-se ou ficar excluída” (p.247). Os que não se adaptaram, procuraram novas áreas nos sertões do Paraná. Neste sentido, questiona-se: o que ocorreu como os que adaptaram-se? E, neste sentido, percebe-se certa similaridade entre os modos de vida do caboclo do Contestado, entre os moradores dos faxinais paranaenses e entre os habitantes das terras de uso comum em Santa Catarina, relações abordadas a seguir.

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4. ENTRE O MODO DE VIDA FAXINALENSE E AS TERRAS DE USO COMUM “Num mundo em crise de valores e sentido como é o nosso, a questão da identidade volta ao centro das atenções.” (HAESBAERT, 1999, p.170).

Em alguns casos, os termos “faxinal” e “sistema faxinal” são tidos como sinônimos. Para Chang (1988) o “Sistema Faxinal” é uma forma de organização camponesa que associa a criação extensiva de animais em áreas comuns com a policultura alimentar de subsistência e ainda com a extração florestal. Já Domingues (1999) coloca que o “Faxinal” é um sistema secular agrossilvopastoril com características seculares de uso da terra. Muitos trabalhos acerca da distinção entre os termos já foram elaborados, ressalta-se apenas que na presente reflexão, opta-se por utilizar os termos como sinônimos para se referir a essa forma de apropriação do espaço peculiar da região sul do Brasil, tradicionalmente, e de acordo com Chang (1988) dividida em “terras de plantar” e “terras de criar”. Afirma-se, contudo, que o enfoque principal encontra-se na relação dos sujeitos sociais com a terra, inicialmente os caboclos e, mais tarde, os imigrantes. Löwen Sahr e Cunha (2005) afirmam ainda, que nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, os faxinais já pertencem ao passado, sobretudo devido à influência cultural dos colonos imigrantes e “também a guerra civil que foi conduzida contra os caboclos entre os anos 1912-1916 (Questão do Contestado)” (p.90). Nestes posicionamentos, se torna interessante avaliar esta influência imigrante, no sentido de averiguar se houve um processo de desagregação dos faxinais ou se houve uma evolução distinta das terras de uso comum. Da mesma forma, a questão do Contestado – enquanto guerra civil – também precisa ser mais bem trabalhada numa relação com os usos da terra. Tradicionalmente são apresentadas e discutidas quatro abordagens acerca da origem dos faxinais: a) Chang (1998) que acredita que o fator determinante para o surgimento do modo de vida dos faxinalenses está relacionado à criação de porcos às soltas, tido como costume amplamente praticado na região de abrangência dos faxinais; b) Nerone (2000), onde a autora vincula a origem destes às antigas reduções jesuíticas; c) Löwen Sahr (2008) que admite a influência das reduções jesuíticas, mas acredita que a origem desta organização se encontra na ocupação territorial da região da mata de Araucárias pelos caboclos; d) Tavares (2008) que 12

defende como ponto importante para o surgimento dos faxinais o contato entre negros e índios fugitivos, além de destacar a influência de colonos europeus e dos camponeses fugitivos da revolta do Contestado. Pontos comuns nas abordagens acima mencionadas são: a presença da mata de Araucárias e do caboclo. Esta região da mata de Araucárias foi o palco da Guerra do Contestado, conflito desencadeado, sobretudo, pelos caboclos da região, os quais são responsáveis pela criação dos faxinais. Dessa maneira, o presente ensaio objetiva questionar as relações entre os faxinais do Paraná, a Guerra do Contestado e a evolução das terras de uso comum em Santa Catarina. O intuito é, sobretudo, fornecer bases para uma investigação acerca da evolução histórica e situação atual das terras de uso comum em Santa Catarina, suas semelhanças e diferenças para com o sistema faxinal conhecido no estado do Paraná.

4.1 RELAÇÕES ENTRE A GUERRA DO CONTESTADO E OS FAXINAIS – UMA ANÁLISE DE BIBLIOGRAFIAS

Tavares (2008) ao discutir a gênese dos faxinais no Paraná, afirma que esta se encontra na aliança entre índios fugitivos do sistema de peonagem – das missões ou reduções jesuíticas –, da escravidão (bandeirantes paulistas) e dos negros africanos fugitivos que ao se dispersarem não formaram quilombos e se encontraram nas matas de Araucárias do Paraná. Na estrutura, houve a junção da prática de terras de uso comum dos índios, a prática da criação de animais do escravo negro africano e, ainda, a prática da extração de erva-mate de ambos os sujeitos sociais. Além disso, nesta constituição dos elementos fundantes na construção dos faxinais (início do século XVII), soma-se a contribuição dos imigrantes europeus, sobretudo camponeses do leste da Europa (Ucrânia e Polônia) e “da fração dos camponeses que participaram da Guerra ou Revolta do Contestado para a sua consolidação” (p.383). Campigoto e Sochodolak (2009) acreditam que a história dos faxinais vinculase também a guerra “sertaneja do Contestado, que teve como palco a região mais ao sul do que é hoje o estado do Paraná” (p.206). Nasce nesta proposição questionamentos acerca da relação entre a Guerra do Contestado, o atual sistema 13

faxinal e as terras de uso comum em Santa Catarina. Os autores ressaltam que o combate do Irani, ocorreu nos chamados faxinais de Irani, onde o faxinal é definido como arraial de posseiros e caboclos, entretanto, não se pode concluir que “os chamados redutos dos caboclos do Contestado adotavam o sistema faxinal” (ibidem). No caso do Irani, Miranda (1987) também escreveu que “prevendo um ataque ao seu antro, José Maria [...] resolveu abalar com sua gente para o Faxinal do Irani, então jurisdição do Paraná” (p.30). Dessa maneira, notam-se algumas associações com os atuais faxinais, seja nas nomenclaturas, seja no modo de vida. Afirma-se que, não se pode concluir a existência de um modo de vida faxinalense somente a partir das nomenclaturas das localidades, fato comum na época e na região. Entretanto, estas relações precisam ser mais bem avaliadas. Ao analisar a Guerra do Contestado, Tonon (2009) coloca que os “sertanejos” possuíam uma forte tradição na região, uma área de cerca de oito mil quilômetros quadrados onde estes sujeitos sociais defendiam suas práticas religiosas e populares fundamentadas em uma ética de fraternidade e espírito comunitário, afirmando também que “o espírito e a prática comunitária dos sertanejos remete aos faxinais, com a existência de inúmeros, situados ao norte de Santa Catarina e o centro-sul do Paraná” (p.322), afirmando que a prática do “puxirão” também era presente. O autor estabelece ainda uma relação entre o sistema faxinal e o surgimento das Irmandades Místicas do Contestado. Para ele, os membros desta Irmandade “herdaram a força da tradição, a autonomia econômica e administrativa do faxinal que os sertanejos conheciam, sendo que muitos deles integravam” (p.332), dessa forma, faziam o uso compartilhado comunitariamente das terras, das pastagens, das florestas e de outros bens. Assim sendo, “o sistema faxinal, ao norte da região do Contestado, apresentava uma característica marcante na sobrevivência de muitos sertanejos” (ibidem), onde o espaço das Irmandades Místicas não era somente o lócus das práticas religiosas, mas também espaço de vivência da profunda solidariedade advinda dos faxinais. Muitos militares percorreram a região do Contestado, antes, durante e depois do conflito. O Capitão Vieira da Rosa, sob o título de “Reminiscências da Campanha do Contestado – Subsídios para a História”, em notas publicadas no jornal Terra Livre (Florianópolis) mencionava na região a criação de animais soltos e relatava também a paisagem, destacando os campos, faxinais, butiazais e florestas. 14

Entretanto, na leitura acerca das diferenças entre os redutos dos caboclos do Contestado e o que se denomina hoje de sistema faxinal, Campigoto e Sochodolak (2009) utilizam-se dos relatos sobre as incursões do capitão Tertuliano de Albuquerque Potyguara (janeiro de 1915, na região de Canoinhas-SC) para eliminar qualquer dúvida acerca da relação entre os redutos de Canoinhas com o sistema faxinal – não excluindo a possibilidade da existência de faxinais fora dos redutos. Os autores afirmam que os redutos de Santo Antônio e Timbozinho eram “aglomerações de casas em torno de uma pequena igreja, com um grande cruzeiro no centro da praça” (p.208). Acrescentam ainda que as áreas das plantações bem como o número de animais necessários para a alimentação variavam de acordo com o tamanho dos redutos durante a guerra. Por outro lado, ao analisarem as proposições de Peixoto (1995), os autores afirmam que podem ser evidenciadas semelhanças entre alguns redutos e o sistema faxinal, sendo que no caso do Timbozinho são tomados inclusive como sinônimos. Peixoto (1995) já se referia a um “Faxinal do Timbozinho” (p.36) na mesma região. Fato é que os caboclos criavam animais em cercamento e aproveitavam limites naturais como barreiras, conclui-se assim, que o sistema faxinal modifica-se ao longo da história, e “os redutos dos sertanejos do Contestado, também, podem ser considerados como variações do sistema de criação extensiva, praticada nas matas de pinheirais” (p.211). Carvalho (2008) afirma que se pode dizer que existia entre os “moradores da região do Contestado uma „economia moral‟, baseada no apossamento das terras, no aproveitamento dos ervais e da floresta” (p.284) que permitia aos caboclos uma subsistência calcada em práticas que ficaram consagradas pelo tempo como direitos. O autor ainda propõe olhar a história “sob a ótica dos de baixo” (p.289) notando assim que os pequenos posseiros ocupavam terrenos devolutos em regiões de fronteira como a do Contestado no século XIX. Certamente, o movimento do Contestado não era formado apenas por camponeses. Tavares (2008) coloca que analisar a contribuição dos camponeses que participaram deste movimento na consolidação da formação social dos faxinais não é uma tarefa das menores. Para ele, várias são as razões: a dificuldade em compreender o episódio complexo que foi a Guerra do Contestado; a vasta literatura existente atualmente acerca desta região nas mais diferentes áreas das ciências, 15

traduzindo assim diferentes visões de mundo a respeito do que ocorreu neste conflito. Machado (2004) acrescenta que nos redutos do Contestado, a cultura da criação em compáscuo no sistema extensivo sofreu modificações porque “[...] no interior dos redutos, os recursos considerados posse de todo o grupo eram formados pelas terras circunvizinhas, o gado grande (bois e vacas) e miúdo (galinhas e porcos) trazidos pelos sertanejos ou capturados nas fazendas dos inimigos” (p.210), características parecidas com o atual sistema faxinal, diferindo apenas a questão da posse da terra. Numa associação ao modo de vida faxinalense, Breves (1985) coloca que os caboclos que habitavam a região de Chapecó (SC), geralmente “[...] iam fazer suas roças à beira de uma sanga ou rio há léguas de distância. Isto para não serem obrigados a fazer cercas e poderem ter seus cavalos e vaca (quanto a tinham) perto de casa” (p.21-22). Tonon (2009) afirma que o modo de vida faxinalense – na época do Contestado – contrariava o ideário das elites republicanas. A Proclamação da República, o governo controlado por coronéis, a chegada dos imigrantes, a implantação da ferrovia e a extração madeireira contribuíram para gerar uma nova conjuntura política, econômica e social que era desfavorável e excludente para o sertanejo, ao qual restava resistir e morrer ou fugir “para outros rincões, com poucas quinquinharias e muita esperança” (p.324). Tonon (2009) ainda questiona: e os descendentes? Segundo ele, “estão pulverizados em todo o território do acontecimento, nas cercanias das cidades, empobrecidos, nas áreas rurais como meeiros, agregados, bóias-frias, em algum faxinal que ainda sobrevive às duras penas” (p.339). Martins (1995) no livro “Anjos de cara suja” descreve, através do resgate etnográfico da comunidade cafuza de José Boiteux (SC) a trajetória de construção de um grupo étnico. Segundo ele, em 1916, com o final da Guerra do Contestado um grupo de caboclos foge à perseguição imposta aos vencidos, embrenhando-se no sertão e vivendo em condições de isolamento até a década de 1940. Esta “saga” da família de Jesuíno Dias de Oliveira e Antônia Loteria de Oliveira é contada entremeio a Guerra do Contestado, partindo do município – hoje catarinense – de Canoinhas até a ocupação do Rio Laeisz. Neste resgate, por inúmeras vezes o 16

faxinal é referenciado, entretanto, sem um aprofundamento que permita identificar o modo de vida. É sabido que no estado do Paraná os faxinalenses já foram reconhecidos como populações tradicionais, ao passo que no estado de Santa Catarina, fala-se mais em terras de uso comum. Porém, a proximidade geográfica e o processo de ocupação e colonização de ambos os estados reforçam o questionamento acerca da atual situação dos “faxinais” catarinenses, sugerindo assim uma relação com a Guerra do Contestado, que certamente foi mais sentida no atual lado catarinense. Neste sentido, Marques, Hanisch e Bona (200?) ao abordarem as inovações agroecológicas através de processos participativos apontam que o uso das áreas de caíva “nas regiões Norte de SC e Centro-Sul do PR remonta à época do uso de faxinais e está incorporada à cultura local” (p.02). Os autores realizaram um estudo em quatro propriedades localizadas nos municípios de Canoinhas, Bela Vista do Toldo, Major Vieira, ressaltando que “as áreas de caíva, historicamente já existem devido a sua forma de uso associar conservação ambiental integrada às diversas economias da Agricultura Familiar” (p.08). Novak e Fajardo (2008) ao analisar a desintegração e resistência do faxinal de Itapará, em Irati/PR já relacionam as áreas de caíva com os faxinais, para eles foi “nas matas limpas, onde se desenvolvia a erva-mate, as frutíferas silvestres, os pinheiros, algumas madeiras de lei, e as gramíneas, sendo ótimo meio natural, denominado pela população de “caíva” que se desenvolveu o criadouro comum (Faxinal)” (p.04). Segundo os autores, a criação andava sem dificuldades em meio a essa vegetação e este pastejo dos animais diminuía o serviço de limpeza, sobretudo nos ervais. Este meio era farto em alimentos poupando aos criadores o custo da alimentação, essa racionalidade, para Chang (1988) “levou a construção das cercas coletivas que abrangessem as terras de caíva contígua de todos da mesma localidade” (p.37). De acordo com Hanisch et.al. (2010), as caívas são remanescentes de Floresta Ombrófila Mista, trata-se de uma denominação regional do Planalto Norte Catarinense onde se encontram diferentes densidades arbóreas, cujos estratos herbáceos são compostos por pastagem nativa ou naturalizada. Os autores afirmam que quanto a estas áreas há uma escassez significativa de informações, afirmando que do ponto de vista produtivo, são bastante peculiares e que “considerando-se 17

que as caívas existem há muitas décadas com esse manejo, seu uso pode ser considerado uma estratégia de sucesso no uso e manejo sustentável dos remanescentes florestais” (p.304). Estas áreas são originárias “das antigas áreas de invernadas ou faxinais que se distribuíram pelo Centro-Sul do Paraná, Norte de Santa Catarina e Norte do Rio Grande do Sul” (CHANG, 1988).Seriam estas áreas de caívas locais remanescentes de antigos faxinais? Certamente há muito para se descobrir, buscar fontes históricas – literatura teórica, arquivos documentais e fontes orais – e tentar reconstruir a evolução têmporo-espacial na tentativa de buscar similaridades entre o sistema faxinal paranaense e o manejo integrado e sustentável destas áreas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em todas as ciências rigorosas, um pensamento inquieto desconfia das identidades mais ou menos aparentes e exige sem cessar mais precisão e mais ocasiões de distinguir. Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas, para, imediatamente, melhor questionar. (BACHELARD, 1996).

Conclui-se o presente ensaio reforçando-se os questionamentos propostos e não poderia ser diferente uma vez que as leituras e interpretações ainda estão no campo das especulações. É fato que o sistema faxinal existe enquanto forma de organização camponesa no estado do Paraná, possuindo legislação própria, estudos acadêmicos acerca da temática, além logicamente, da mobilização dos próprios faxinalenses em busca de seus direitos, através da Cartografia Social, por exemplo. Porém, percebe-se que o estado de Santa Catarina pouco menciona sobre essa forma de organização. Os principais estudos versam sobre as terras de uso comum. Assim, questiona-se: o sistema faxinal existiu em Santa Catarina? É fato também que os caboclos que – segundo a literatura clássica acerca dos faxinais – deram vida ao sistema também estiveram presentes no lado catarinense, em tão grande número que ocasionaram uma guerra civil: a Guerra do Contestado. A proximidade entre ambos os estados também deve ser considerada, o centro-sul paranaense (onde se localizam inúmeros faxinais) faz limite diretamente com o norte-catarinense, entretanto, neste último, parecem não existir. Assim, questiona-se: Existe uma relação entre o sistema faxinal e a Guerra do Contestado? 18

Os caboclos que originalmente desenvolveram os faxinais no Paraná têm relação com os caboclos catarinenses? Outra questão a se considerar repousa sobre os imigrantes. Grandes levas de europeus se deslocaram ao Paraná e à Santa Catarina, as nacionalidades e etnias são as mesmas: poloneses, ucranianos e alemães – especialmente. Sabe-se da existência de faxinais mistos, como o Faxinal Lageado dos Mello (caboclos, no município de Rio Azul) e o Faxinal Lageado de Baixo (ucranianos, no município de Mallet), ambos separados apenas por um rio e que ainda conservam as características próprias do sistema. Se houve uma assimilação do modo de vida local (caboclo) por imigrantes europeus que deram continuidade ao sistema no estado do Paraná, o que ocorreu em Santa Catarina? Como já mencionado, nos propósitos geográficos, a relação espaço-tempo é evidente. Teria o sistema faxinal evoluído de uma maneira distinta em Santa Catarina? Acerca das terras de uso comum, cuja temática é discutida no estado catarinense, quais as distinções e ou aproximações com o sistema faxinal paranaense? Trata-se de relações polêmicas, que envolvem interesses distintos e abordagens diferenciadas. Entretanto, as pesquisas devem surgir de divergências, pois só assim, a construção científica é alimentada. O caboclo existiu tanto no Paraná quanto em Santa Catarina, a Guerra do Contestado definiu os limites entre estes dois estados, a imigração chegou aos dois territórios, a exploração estrangeira dizimou as florestas nativas de ambos, entretanto, “parece” que o sistema faxinal só existiu e existe no Paraná. Será?

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