SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS A efetivação dos direitos da personalidade pela interconstitucionalidade

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Da Contextualização do Conceito de Meio Ambiente do Trabalho // 3

SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS A efetivação dos direitos da personalidade pela interconstitucionalidade

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Da Contextualização do Conceito de Meio Ambiente do Trabalho // 5

Daniela Menengoti Ribeiro Malu Romancini

SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS A efetivação dos direitos da personalidade pela interconstitucionalidade

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida! Maringá – PR 2015

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Sistema interamericano de direitos humanos... Copyright 2015 by Daniela Menengoti Ribeiro; Malu Romancini EDITORA: Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL: Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR Dr. Lorella Congiunti – PUU - Roma Dr. Ivan Dias da Motta - UNICESUMAR REVISÃO ORTOGRÁFICA: Prof. Antonio Eduardo Gabriel DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Editora Vivens CAPA: Leandro Correia

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) R484s

Ribeiro, Daniela Menengoti. Sistema interamericano de direitos humanos: a efetivação dos direitos da personalidade pela nterconstitucionalidade. / Daniela Menengoti Ribeiro, Malu Romancini. - 1. ed. e-book - Maringá,PR : Vivens, 2015. 224 p. Modo de Acesso: World Wide Web: ISBN 978-85-8401-055-4 1.Direito humanos. 2. Direitos da personalidade. 3. Direito internacional. I.Título. CDD 22.ed.341.481

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610 Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (44) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO................................................................... 09 PREFÁCIO................................................................................ 11 INTRODUÇÃO........................................................................... 21 1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO CLÁSSICO.........................................23 1.1 DO CONSTITUCIONALISMO ANTIGO AO CONSTITUCIONALISMO MODERNO................................ 24 1.2 DO CONSTITUCIONALISMO MODERNO AO CONSTITUCIONALISMO DO BEM-ESTAR..................... 35 1.3 DO CONSTITUCIONALISMO DO BEM-ESTAR AO CONSTITUCIONALISMO NEOLIBERAL............................. 38 1.4 O NEOCONSTITUCIONALISMO E O CONSTITUCIONALISMO PLURINACIONAL LATINO-AMERICANO............................................................. 43 1.4.1 O constitucionalismo latino-americano..........................50 2 TENDÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO GLOBAL................................................................................... 60 2.1 GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO................... 68 2.2 DA CRIAÇÃO DE UM CONSTITUCIONALISMO GLOBAL.................................................................................... 74 2.3 INTERCONSTITUCIONALIDADE E TRANSCONSTITUCIONALISMO............................................ 86 2.3.1 A ideia da Europa unida............................................. 96 2.3.2 A Interconstitucionalidade da Europa........................... 99 2.4 A INTERCONSTITUCIONALIDADE NA AMÉRICA LATINA.................................................................... 108 2.4.1 A Organização dos Estados Americanos – OEA.........108 2.4.2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos.........113 2.4.3 A Interconstitucionalidade e suas razões de existir na América Latina.................................................... 119

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3 CASOS DE INTERCONSTITUCIONALIDADE ENVOLVENDO DIREITOS DA PERSONALIDADE NA AMÉRICA LATINA................................................................128 3.1 DO DIREITO DA PERSONALIDADE NAS PRINCIPAIS CONSTITUIÇÕES DA AMÉRICA LATINA............... 134 3.2 DA ANÁLISE DOS CASOS DE EFETIVAÇÃO DA INTERCONSTITUCIONALIDADE ENVOLVENDO DIREITOS DA PERSONALIDADE NA AMÉRICA LATINA........... 143 3.2.1 O caso 11.552 – Gomes Lund e Outros (Guerrilha do Araguaia) Vs. Brasil............................................ 143 3.2.2 O caso 12.465 – Povo Indígena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador............................................ 147 3.2.3 O caso 12.051 – Maria da Penha Maia Fernandes Vs. Brasil.................................................................................150 3.2.4 O caso 12.051 – Karen Atala e filhas Vs. Chile................ 152 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................159 REFERÊNCIAS............................................................................ 161 ANEXOS......................................................................................173

APRESENTAÇÃO

O período pós-Segunda Guerra Mundial, os documentos internacionais e o sentimento da necessidade de mudança global trouxeram uma evolução positiva em relação aos direitos humanos. Consequentemente, iniciou-se um processo de acentuada integração da sociedade, e assim, os problemas relacionados aos direitos humanos tornaram-se impossíveis de serem amparados somente no âmbito doméstico dos Estados. Este novo desafio passou a ser uma preocupação constante dos juristas, em especial dos constitucionalistas. Neste contexto, nota-se o surgimento de um direito constitucional que transcende as fronteiras dos Estados e busca resolver problemas constitucionais comuns por meio da inter-relação entre ordens jurídicas diversas, denominada interconstitucionalidade. Este fenômeno estuda as relações de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de ordens jurídicas constitucionais e de poderes constituintes no mesmo espaço político, visando uma solução mais efetiva e protetiva para os casos concretos. Neste sentido, a pesquisa busca identificar a ocorrência e analisar esta abordagem interconstitucional no âmbito da América Latina, por meio dos julgados e recomendações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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PREFÁCIO Sobre a proteção de direitos humanos/fundamentais em rede Prof.ª Dr.ª Alessandra Silveira*

A teoria da interconstitucionalidade surgiu da necessidade de captar o fenómeno da interação reflexiva entre normas constitucionais de distintas fontes que convivem no mesmo espaço político – aquele da União Europeia. Tal convivência implica a atuação em rede para a solução de problemas constitucionais comuns, sobretudo aqueles relacionados com a proteção direitos fundamentais, ditos “jusfundamentais”. A metáfora das redes traduz a ausência de hierarquia e é utilizada para explicar que os instrumentos do direito constitucional nacional já não conseguem captar o sentido, os limites, nem fornecer compreensões juridicamente adequadas para os problemas da integração europeia, o que exige o desenvolvimento de uma teoria da interconstitucionalidade que explique o que se está a passar.1 Como explica Gomes Canotilho, a teoria da inteconstitucionalidade enfrenta o intrincado problema da articulação entre constituições e da afirmação de poderes constituintes e legitimidades diversas, a partir de uma perspectiva amiga do pluralismo de ordenamentos e de normatividades. O termo interconstitucionalidade foi, portanto, originariamente cunhado pela academia portuguesa – e reproduz, de forma porventura mais feliz do que a conhecida expressão anglo-saxónica multilevel constitutionalism (constitucionalismo multinível),2 a ideia de um modelo de *

Titular da Cátedra Jean Monnet em Direito da União Europeia. Diretora do Centro de Estudos em Direito da União Europeia (CEDU) da Universidade do Minho, Portugal. 1 Sobre o tema da interconstitucionalidade cfr. J. J. Gomes Canotilho, “Brancosos” e interconstitucionalidade. Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional, Almedina, Coimbra, 2006; Alessandra Silveira, “Interconstitucionalidade: normas constitucionais em rede e integração europeia na sociedade mundial”, in Alexandre Walmott Borges/Saulo Pinto Coelho (coords.), Interconstitucionalidade e interdisciplinaridade: desafios, âmbitos e níveis de interação no mundo global, LAECC, Uberlândia, 2015. 2 Para a compreensão do conceito cfr. Ingolf Pernice, “Multilevel constitutionalism in the European Union”, in European Law Review, 27, 2002; “Today’s

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interconexão onde não há espaço para níveis que pressupõem hierarquia.3 Tal ideia de interconstitucionalidade, brilhantemente recuperada por Gomes Canotilho, foi primeiramente avançada por outro insigne Mestre da academia coimbrã e grande europeísta, Francisco Lucas Pires (entretanto falecido) numa obra publicada em 1998 e intitulada “Introdução ao direito constitucional europeu”. Diz-se que a originalidade do pensamento de Lucas Pires assenta numa particular conceção do constitucionalismo tendente a permitir a sua reconstrução num contexto de pluralismo de fontes constitucionais nacionais e europeias.4 Por isso Poiares Maduro explica que o pensamento constitucional europeu de Lucas Pires foi marcado por duas questões fundamentais: i) a relação entre o constitucionalismo nacional e o constitucionalismo europeu e ii) o modelo que o constitucionalismo europeu podia e devia assumir num contexto não estadual. Não se tratava só de teorizar uma Constituição que admita o pluralismo de ordenamentos (oficiais, oficiosos e marginais), mas de teorizar o próprio “pluralismo de constituições”. 5 Por isso Lucas Pires multilayered legal order: current issues and perspectives”, in Liber Amicorum in honour of Arjen W. H. Meij, Paris Legal Publishers, Zutphen, 2011. 3 Em inglês a expressão corrente para identificar o fenómeno seria «multilevel constitutionalism». Sobre a pertinência da expressão portuguesa cfr. Leonard Besselink, “Multiple political identities: revisiting the maximum standard”, in Alessandra Silveira/Mariana Canotilho/Pedro Froufe (eds.), Citizenship and solidarity in the European Union – from the Charter of Fundamental Rights to the crisis, the state of the art, Peter Lang, Bruxelles/Bern/Berlin/Frankfurt am Main/New York/Oxford/Wien, 2013, p. 236, onde se lê: «In Portuguese, the equivalent expression lacks the adjective “multilevel”: it speaks of “interconstitucionalidade”, literally “interconstitutionality”. I strongly prefer this over the expression “multilevel constitutionalism”. The metaphor “multilevel” presupposes the existence of “levels”. In turn, levels imply hierarchy: one level is by definition higher than, i.e., superior to the other; the other is subordinate to the one. In the day and age of globalization, hierarchy has become a contested concept also in constitutional law. It may no longer adequately explain the relationship between constitutional orders». 4 Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Um constitucionalismo para várias constituições: o pensamento constitucional europeu de Francisco Lucas Pires”, in A revolução europeia por Francisco Lucas Pires – antologia de textos, Publicação do Gabinete em Portugal do Parlamento Europeu, maio/2008, p. 121. 5 Cfr. Paulo Castro Rangel, “Uma teoria da «interconstitucionalidade»: pluralismo e constituição no pensamento de Francisco Lucas Pires”, in O estado do Estado. Ensaios de política constitucional sobre justiça e democracia, Dom Quixote, Alfragide, 2009, p. 164.

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colocava a tónica mais numa espécie de teoria da interconstitucionalidade do que num novo constitucionalismo. 6 Assim, a teoria da interconstitucionalidade surgiu para captar i) o fenómeno da pluralidade/interação de distintas fontes constitucionais e reivindicações de autoridade constitucional, bem como ii) as tentativas judiciais de as acomodar num contexto jurídico-constitucional não hierarquicamente estruturado. Por isso o mote daquela teoria foi originariamente fornecido pelos riscos de conflito/disputa pela última instância decisória em matéria jurídico-constitucional no espaço da União (entre Tribunal de Justiça da União Europeia e os tribunais constitucionais dos Estados-Membros).7 Todavia, a teoria da interconstitucionalidade tem revelado outras virtualidades – e são estas que importa agora destacar e prosseguir – quer na definição da identidade do constitucionalismo europeu, quer na atualização da teoria do constitucionalismo em geral. Como explica Poiares Maduro, a interconstitucionalidade emerge hoje como uma teoria do pluralismo constitucional na União Europeia (ou a mais bem-sucedida hipótese teorética sobre a natureza do constitucionalismo europeu) e não apenas como um remédio para a solução de conflitos constitucionais de autoridade (ou uma teoria sobre a natureza das relações entre a ordem 6

Cfr. Francisco Lucas Pires, Introdução ao direito constitucional europeu, Almedina, Coimbra, 1997, p. 18. Eis, no entendimento de Paulo Rangel, o que difere a proposta de “interconstitucionalidade” daquela de “transconstitucionalismo”, na medida em que a última parece sugerir “um momento de transcendência ou superação do direito constitucional clássico”, fazendo “deslocar o objecto do direito constitucional da ‘constituição’ (…) para a dinâmica das ‘relações jurídico-constitucionais’. Cfr. Paulo Castro Rangel, “Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. Uma leitura crítica do pensamento ‘transconstitucional’ de Marcelo Neves”, in Tribunal Constitucional 35.º aniversário da Constituição de 1976, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 152-157. 7 Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Constitutional pluralism as the theory of European constitutionalism”, in Fernando Alves Correia/Jónatas Machado/João Loureiro (coords.), Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, vol. III, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade d e Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 451, onde se lê: «It has been stated that constitutional pluralism has emerged as a response to the Maastricht Judgment of the German Constitutional Court. This judgment brougt to the fore the risks of constitutional conflicts between EU law and national constitutions emerging from the claims of final authority embodied in the case law of the European Court of Justice and national constitutional courts. Constitutional pluralism is often presented as a reaction to this judgment, attempting simultaneously to describe that reality and accommodate those competing constitutional claims».

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constitucional da União e outras ordens constitucionais, nacionais e internacional). Originariamente serviu para isso, mas pode e deve fazer mais. Ou seja, a teoria que nos ocupa está antes focada na legitimidade do constitucionalismo europeu e no seu modelo de organização do poder – ou noutras palavras, na própria natureza da União Europeia enquanto comunidade jurídico-política.8 Mas para além disso, a “galáxia conceitual da interconstitucionalidade”9 – como lhe chama Paulo Rangel – não suscita questões e ensaia respostas apenas para problemas constitucionais próprios e exclusivos da União Europeia, o que aparentemente teria levado Marcelo Neves a recusá-la e propor a ideia de transconstitucionalismo.10 Ao contrário, na medida em que fornece um arsenal teórico para lidar com a fenomenologia da pluralidade de ordenamentos que são reconhecidamente paralelos, desiguais e concorrentes, a teoria da interconstitucionalidade abre as portas à renovação da teoria da constituição, facilitando a tarefa de a redesenhar para um universo político em que o Estado deixou de ser o referente exclusivo dos materiais constitucionais. A teoria da interconstitucionalidade não convoca propriamente a superação do conceito de constituição enquanto tal, isto é, não o transcende (como porventura o prefixo “trans” possa sugerir), apenas o renova porque o desliga da referência exclusiva ao modo político estadual e o abre ao “mundo-da-vida” pósvestefaliano.11 Neste sentido, a interconstitucionalidade apenas adapta o constitucionalismo à mudança da natureza da autoridade política e do espaço político. 12 Eis a razão do crescente interesse por esta teoria em quadrantes científicos não europeus, pois fornece um modelo de integração jurídicoconstitucional.

Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Constitutional pluralism as the theory of European constitutionalism”, cit., pp. 450-451. 9 Cfr. Paulo Castro Rangel, “Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. Uma leitura crítica do pensamento ‘transconstitucional’ de Marcelo Neves”, cit., p. 155. 10 Marcelo Neves, Transconstitucionalismo, Martins Fontes, São Paulo, 2009. 11 Cfr. Paulo Castro Rangel, “Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade, cit., pp. 153 e155. 12 Cfr. Miguel Poiares Maduro, “Constitutional pluralism as the theory of European constitutionalism”, cit., p. 469. 8

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É nesta perspetiva que Gomes Canotilho tem falado da crise do método no direito constitucional, manifestando dúvidas sobre a bondade de uma metódica que, não obstante responder aos apelos da praxis ou aos desafios da realidade à hermenêutica aplicativa, insiste em reduzir os problemas constitucionais a problemas de aplicação das normas constitucionais. Aqui cabem os tópicos centrados na efetividade das normas constitucionais, no aprofundamento hermenêutico da concretização constitucional, ou na reiterada dilucidação dogmática da distinção entre princípios e regras. É certo que o direito constitucional, tal como as outras disciplinas jurídicas, é uma ciência de aplicação de normas, sejam elas normas em forma de princípios, sejam elas normas em forma de regras. Todavia, diante da erosão da substantividade própria do direito constitucional, importa saber se o que está em causa não serão antes problemas epistemológicos em vez de problemas dogmáticos de aplicação de normas constitucionais. Ou em jeito de inquietações: Que oportunidades a teoria constitucional oferece à reflexão sobre a crise económico-financeira? Em que medida a crise pode ter um impacto no pensamento jurídicoconstitucional? Em que medida as relações entre o económico, o político, e o jurídico-constitucional são compreendidos e tematizados num contexto de crise em termos de causas e soluções? Qual o valor específico e autónomo do direito constitucional nos dias que correm? O que resta da Constituição depois da globalização?13 Tudo isso interpela o tema do controlo democrático dos processos políticos e económicos num contexto globalitário (ou numa ambiência pós-estatal). Os problemas constitucionais que atualmente aproximam o constitucionalismo português e o brasileiro derivam da globalização em curso – e por isso importam, neste contexto, as implicações do constitucionalismo em rede e as soluções partilhadas, em termos de políticas públicas, no contexto da União Europeia. O certo é que as Constituições estão em rede – em discussão, em tensão, em convivência com outras normas constitucionais –, o que nos obriga a interagir com as Constituições alheias e afinar os Cfr. J. J. Gomes Canotilho, “Da Constituição dirigente à jurisprudência dirigente”, in Newton De Lucca/Samantha Meyer-Pflug/Mariana Baeta Neves (coords.), Direito Constitucional Contemporâneo – Homenagem ao Professor Michel Temer, Editora Quartier Latin do Brasil, São Paulo, 2012., p.549. 13

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nossos esquemas organizativos e a nossa praxis jurídico-política a partir do programa normativo de outras ordens jurídicas. Talvez seja esta a questão mais relevante para a linguagem hermenêutica e a discussão teorética entre o constitucionalismo português e brasileiro nos dias que correm, pois enquanto a conceção de Constituição dirigente assentava na centralidade do sujeito (capaz de ordenar a realidade através da vontade e da racionalidade conformadora), a interconstitucionalidade acompanha a progressiva descentração do sujeito globalitário (incapaz de garantir a centralidade constitucional por um ato de consciência, de razão ou de vontade). 14 Por isso importa refletir se mais vale uma Constituição cidadã enclausurada ou uma Constituição cidadã em rede. Em busca dos pressupostos filosóficos dessa teoria, diríamos que o diálogo intersubjetivo proposto pela interconstitucionalidade exige a capacidade de pôr-se na posição do outro e deixar-se afetar/motivar por razões aceitáveis por todas as ordens jurídicas envolvidas. Neste sentido, busca arrimo na proposta filosófica da intersubjetividade, segundo a qual a racionalidade não depende diretamente do sujeito, mas sim do confronto discursivo com as posições dos outros, num exercício que conduz ao que Piaget entendia por descentração progressiva da compreensão egocêntrica e etnocêntrica que cada qual tem de si mesmo e do mundo.15 Habermas explica que não há como desenvolver a conceção de subjetividade independentemente das suas relações com a intersubjetividade, sendo ambas noções complementares. Por isso aquele Autor sugere a reestruturação intersubjetiva da racionalidade – ou seja, que lancemos sobre novos fundamentos toda a nossa compreensão da razão, do ser humano, da sociedade. Daí que tentar esclarecer as condições da intercompreensão normativa

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Cfr. Agostinho Ramalho Marques Neto, in Canotilho e a Constituição dirigente, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (coord.), Renovar, Rio de Janeiro/São Paulo, 2003, p. 52. 15 Sobre o tema da intersubjetividade cfr. Jürgen Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, Martins Fontes, São Paulo, 2004; Alessandra Silveira, “Intersubjectividade, interdemocraticidade, interconstitucionalidade – filosofia política e juridicidade europeia”, in João Cardoso Rosas/Vitor Moura (coords..), Pensar radicalmente a humanidade, Ensaios em Homenagem ao Prof. Doutor Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, Edições Húmus, Vila Nova de Famalicão, 2011.

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e identificar os termos de uma fundamentação intersubjetiva de normas jurídicas seja tão relevante no presente momento histórico – algo em que a teoria da interconstitucionalidade está empenhada. Tem de ser assim porque, num sistema de pluralismo constitucional, as ordens jurídicas envolvidas não podem ignorar-se umas às outras e decidir, unilateralmente, sobre dimensões materiais que a todas afetam. Em jeito de conclusão, cumpre-me agradecer, penhoradamente, pela generosidade e empenho com que a Professora Daniela Menengoti Ribeiro e a Mestre Malu Romancini transpuseram os fundamentos da interconstitucionalidade para o contexto/sistema interamericano de direitos humanos. Os europeus carecem de evoluir a partir da expertise de outras partes do mundo, numa espécie de partilha criativa de conhecimento, pois a União Europeia precisa desesperadamente aprender com o que os outros pensam dela e com o que estiverem dispostos a lhe ensinar. Em ambos os lados do Atlântico as expectativas dos cidadãos deixaram de ser compatíveis com os arranjos institucionais que deveriam satisfazê-los, sendo necessário reorganizar tudo novamente, contra resistências e contradições. E aqui a teoria da interconstitucionalidade pode dar o seu contributo, sempre numa abordagem prospetiva, projetando o futuro, pois a academia deve ser o lugar da crítica, mas também o espaço onde se engendram soluções – credíveis, viáveis, tendencialmente consensuais.

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LISTA DE ABREVIATURAS OU SIGLAS ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental AL – América Latina CADH – Convenção Americana de Direitos Humanos CECA – Comunidade Europeia do Carvão e do Aço CEE – Comunidade Econômica Europeia CF – Constituição Federal de 1988 CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos Corte IDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos EUA – Estados Unidos da América OEA – Organização dos Estados Americanos OI – Organização Internacional OIT – Organização Internacional do Trabalho OMC – Organização Mundial do Comércio ONU – Organização das Nações Unidas PCdoB – Partido Comunista do Brasil SIDH – Sistema Interamericano de Direitos Humanos TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia UE – União Europeia VS. – Versus

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INTRODUÇÃO

A globalização e o consequente fortalecimento do direito internacional, juntamente com o sentimento de mudança e troca de experiências que se instauraram no globo trouxeram uma evolução positiva considerável em relação aos direitos humanos, e dentro destes, os direitos da personalidade. Em razão disto, iniciou-se um processo de acentuada integração da sociedade mundial, e assim, os problemas relacionados aos direitos da personalidade – aqueles que são inerentes aos seres humanos – tornaram-se impossíveis de serem amparados somente no âmbito doméstico dos Estados devido à importância de sua efetivação e tutela. É neste contexto que surge o interconstitucionalidade que pode ser compreendido, de maneira breve, como a utilização de conversações constitucionais, bem como o estudo das relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político. Partir desta proposição, a pesquisa realizada propôs-se a analisar se a teoria interconstitucionalidade apresentada por J. J. Canotilho é utilizada no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como uma forma de fortalecimento e efetivação da tutela de problemas constitucionais envolvendo os direitos da personalidade. Para tanto, o presente estudo fora dividido em três capítulos. No primeiro analisar-se-á a evolução do constitucionalismo, desde suas origens – com o constitucionalismo antigo – até que se chegue à esta nova forma de constitucionalismo que assola os Estados da América Latina, denominado constitucionalismo latino-americano. No segundo capítulo, a pesquisa voltar-se-á às tendências do Constitucionalismo global. Assim, abordar-se-á a mudança no Direito Constitucional tradicional e no Direito Internacional clássico, para tentar encontrar um direito intermediário, que melhor se encaixe com os problemas globais atuais. Para tal, tratar-se-á de duas hipóteses para solucionar a questão e melhor tutelar os direitos da personalidade. A primeira delas seria a construção de um constitucionalismo global, e a

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segunda, por sua vez, é a intensificação e a legitimação da interconstitucionalidade para a tutela dos direitos inerentes aos seres humanos. Por fim, dentro do mesmo capítulo, será analisada a presença deste fenômeno na Europa – dentro da União Europeia – e na América Latina – dentro da Organização dos Estados Americanos. A terceira e última parte deste estudo tratará da análise de casos práticos que envolvam os direitos da personalidade, em que se percebe a presença da interconstitucionalidade na América Latina, dentro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Para chegar a este fim, a pesquisa voltar-se-á a priori ao exame de períodos históricos que marcaram o constitucionalismo latino americano, bem como à análise das Constituições dos principais países que fazem parte da América Latina, objetivando encontrar pontos de convergência acerca dos direitos da personalidade, que servirão como elementos para abertura de “conversações” com outras ordens jurídicas. Posteriormente, far-se-á uma análise jurisprudencial para se chegar ao objeto principal desta pesquisa: investigar se efetivamente ocorre a abordagem interconstitucional no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos e se esta dinâmica favorece a tutela mais efetiva dos direitos da personalidade dos indivíduos.

1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO CLÁSSICO

O termo “constitucionalismo” é utilizado para caracterizar um sistema jurídico que tenha uma Constituição para regulamentar o poder do Estado. Nas palavras de Fachin, o vocábulo permite dupla interpretação. Em sentido amplo, significa que todos os Estados têm uma Constituição, que independe do regime político adotado ou do momento histórico em que vivem. Em sentido estrito, diz respeito a uma técnica jurídica de proteção das liberdades dos indivíduos, que surgiu no final do século XVIII, com o intuito de proteger os cidadãos das arbitrariedades dos governos absolutistas1. Canotilho conceitua constitucionalismo como “a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma sociedade”2. Sobre a função do constitucionalismo, Riccitelli esclarece que “é fundamentar os princípios ideológicos, alicerce de organização interna de qualquer Constituição” 3. É possível identificar várias definições para o constitucionalismo, mas a principal característica dessa diversidade terminológica é a evolução que o instituto sofre com o passar dos tempos. Sendo assim, buscar-se-á, neste capítulo, analisar esse desenvolvimento do constitucionalismo, desde o antigo até ao novo constitucionalismo latino-americano.

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FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 35. 2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 51. 3 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 45.

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1.1 DO CONSTITUCIONALISMO CONSTITUCIONALISMO MODERNO

ANTIGO

AO

Desde os primórdios, os homens vêm se organizando em grupos, que mais tarde, seriam denominadas sociedades. Para que isso fosse possível, era necessário que houvesse uma certa “ordem”, que surgiu com a figura da Constituição e do Estado. O termo Constituição, advém da conjunção do prefixo originado do latim cum com o verbo stituire forma o termo Constituição, que, em sentido comum, significa o conjunto dos caracteres morfológicos, físicos ou psicológicos de cada indivíduo ou a formação material das coisas. Também pode ter dois significados: em sentido lato sensu, para a ciência do direito, Constituição representa o conjunto dos elementos estruturais do Estado, sua organização básica, abrangendo sua composição geográfica, política, jurídica, administrativa, econômica e social. O sentido stricto sensu define a palavra Constituição como a lei fundamental de um Estado que organiza e limita o exercício do poder estatal.4 Canotilho, remetendo-se à origem da Constituição, afirma que “de uma forma historicamente mutável, a Constituição de uma comunidade organizada assentou sempre em três pilares: poder, dinheiro e entendimento”5. Há ainda uma preocupação em estabelecer um conceito de Constituição que se adapte tanto ao sistema de common law6

4

RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 68. 5 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 21. 6 No sistema jurídico denominado common law, também conhecido como sistema jurídico anglo-saxão, o direito se revela e se legitima não através de normas escritas, mas por meio dos costumes e pela jurisdição. Ou seja, no common law o direito é misto, costumeiro e jurisprudencial, portanto, é um direito coordenado por precedentes. “As fontes do direito britânico são, em ordem crescente de importância, o costume, a lei e os precedentes judiciários [...] Como todos os grandes sistemas jurídicos, também o Common Law absorve e organiza os costumes [...] admitindo, porém, a prova em contrário [...] Como o precedente jurisdicional é a principal fonte da Common Law, os juízes sempre interpretaram de modo restritivo a legislação (Statute Law), limitando ao máximo a incidência desta na Common Law.” In: LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. Tradução de

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quanto ao sistema civil law7. Dessa forma, Canotilho afirma que se deve ter em mente um conceito histórico de constituição, que seria “o conjunto de regras (escritas ou consuetudinárias) e de estruturas institucionais conformadoras de uma dada ordem jurídico-política num determinado sistema político-social”8. Para Canotilho, haveria primeiramente um constitucionalismo antigo, que seria caracterizado como simplesmente um conjunto de princípios, escritos ou não, que alicerçavam os direitos do povo perante o monarca e, ao mesmo tempo, limitavam o poder deste9. Na segunda metade do século XV, surge o denominado Estado Moderno10, que emerge, lógica e historicamente, como um tipo de organização básica e originária, devendo a Constituição articular-se com este modelo pré-constitucional. Como primeiro fim e o único adequado à sua essência, o Estado tinha por fim garantir a paz e a segurança11. Como elementos indispensáveis para a existência desse Estado Moderno, Dallari aponta a soberania, o território, o povo e a finalidade12, sendo a soberania a sua base e característica indispensável à constituição do Estado. A soberania é a qualidade que faz com que o poder do Estado seja supremo internamente, e que, seja igual e independente em relação aos demais Estados, externamente. Marcela Varejão. Revisão da tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 333-334. 7 O sistema civil law, também chamado de sistema romano-germânico é o sistema jurídico mais comumente encontrado no mundo. Ele tem origem no direito romano por meio da interpretação feita pelos glosadores a partir do século XI, e posteriormente, manifestou-se através do fenômeno da codificação do direito, a partir do século XVIII. Em outras palavras, o direito manifesta-se primordialmente, através da lei escrita e dos códigos, não dispensando a aplicação de costumes e jurisprudências, também consideradas fontes do direito. 8 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 53. 9 Ibidem, p. 52. 10 O Estado Moderno nasceu na segunda metade do século XV, a partir do desenvolvimento do capitalismo mercantil nos países como a França, Inglaterra e Espanha, e mais tarde na Itália. 11 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 114. 12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p.70

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Nesse contexto, tem-se que o absolutismo é a primeira forma de Estado moderno. Sendo assim, durante a existência deste constitucionalismo rudimentar – o constitucionalismo antigo – o Estado que se via na época, era o Estado absoluto monárquico, no qual o monarca governava de maneira plena e o fazia em nome de Deus13. Na vigência deste tipo de Estado, o excessivo poder do monarca era justificado por teorias que isentavam o rei de qualquer tipo de responsabilidade, tais como a teoria do the king can do no wrong14, advinda da Inglaterra, na qual a falta de responsabilização do monarca estava assentada no fato de ele ser o representante de Deus na terra 15. O Estado absoluto monárquico contou com monarcas conhecidos, tais como Luiz XIV da França, conhecido como Rei Sol16, que representou o símbolo do absolutismo monárquico com sua célebre frase “O Estado sou Eu” 17. Neste momento histórico, em razão do absolutismo latente, o povo estava excluído de toda participação pública. O pensamento predominante era o de que o poder emanava diretamente de Deus, portanto, a Igreja poderia exercer uma grande influência nas decisões políticas. No entanto, tal intervenção caracteriza veemente e insuportável afronta à tentativa de instituir-se um poder absoluto – e indiretamente um

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RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 27. 14 Se tratava de uma teoria/fórmula que orientava o espírito norteador da irresponsabilidade estatal face os atos cometidos em contrariedade ao direito dos súditos. 15 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 27. 16 É considerado o maior dos reis absolutistas. Durante seu reinado, extinguiu o cargo de primeiro-ministro, governando apenas com um chanceler, quatro secretários e um administrador das finanças, submetidos a seu controle. Seu reinado durou mais de 50 anos e destacou-se politicamente pelo absolutismo monárquico, no qual o monarca controlava até os detalhes mais insignificantes do governo. Luiz XIV incentivou as atividades culturais, pois para ele era assunto do Estado. Construiu o Palácio de Versalhes, onde viveu a corte francesa. Em seu governo, reorganizou o exército dando ao país o maior poderio militar da Europa. Ficou conhecido como Rei Sol por escolher a imagem do astro-rei como seu emblema. Ao morrer, em Versalhes, deixou o país em péssima situação econômica. 17 RICCITELLI, Antonio. Direito constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 4. ed. Manole: Barueri, SP, 2007, p. 28.

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atentado ao poder soberano do monarca –, o que fatalmente gerou o rompimento entre o clero e a nobreza. 18 Assim, em razão da oposição existente, este cenário foi se modificando com o advento das publicações de documentos com conteúdo constitucional – como a Magna Carta (1215), a Petição de Direito (1628) e a Lei do Habeas Corpus (1679). A faísca do parlamentarismo surgiu no ano de 1213, quando, o “João sem Terra” convocou cavaleiros de cada condado, para com eles conversar sobre os assuntos do reino. Bem sabe que somente reuniam pessoas de igual condição política, econômica e social, mas com o propósito de poderem influenciar nas decisões do Estado. 19 Com a criação do parlamentarismo inglês, o povo passaria, nesse momento histórico, a ser representado, por meio de uma constituição mista, pela qual o poder não está concentrado somente nas mãos de um monarca, mas está partilhado com o Parlamento.20 O filósofo inglês John Locke21 é a figura que representa o antiabsolutismo, mas que foi também sustentada por inúmeros filósofos, tal como Charles de Secondat, o Conde de

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BERLOFFA, Ricardo Ribas da Costa. Introdução ao curso de teoria geral do Estado e Ciências Políticas. Campinas: Bookseller, 2004, p. 139-141. 19 DALLARI, Dalmo de Abreu, Elementos da Teoria Geral do Estado, Saraiva, 19º edição, São Paulo, 1995, p. 195. 20 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 55-56 21 Conhecido como o “pai do liberalismo”, e um dos principais teóricos do contrato social. Suas ideias ajudaram a combater o absolutismo na Inglaterra. Isso porque, Locke acreditava que todos os homens, quando do nascimento, tinham direitos naturais, quais sejam, direito à vida, à liberdade e à propriedade. Assim, para que esses direitos naturais fossem garantidos, os homens criaram os governos. No entanto, se esses governos, não respeitassem a vida, a liberdade e a propriedade, o povo tinha o direito de se revoltar contra eles. Nesse caso, as pessoas podiam contestar um governo injusto e não eram obrigadas a aceitar suas decisões.

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Montesquieu22, e Jean-Jacques Rousseau23. O antiabsolutismo serviu como combustível aos acontecimentos mais marcantes que viriam a ocorrer na história da humanidade: as Revoluções Americana e Francesa. As Constituições, que ocorreu a partir destes marcos, buscavam conferir aos direitos uma dimensão permanente e segura, que se consolida na ideia de solidariedade e de fraternidade. O constitucionalismo moderno, por sua vez, é caracterizado por Canotilho como o movimento político, social e cultural que se manifestou na Inglaterra, no século XVII, na França e nos Estados Unidos, no século XVIII e que “[...] questiona nos planos político, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo ao mesmo tempo, a invenção de uma nova fase de ordenação e fundamentação do poder político”24. A negociação da Paz de Westfália25 iniciou-se em 1644, e colocou fim a guerras religiosas entre católicos e protestantes, 22

Montesquieu foi um dos primeiros sociólogos e cientista político a tentar descobrir as conexões existentes entre as leis e a realidade social de cada grupo humano. Durante os últimos anos de vida, lançou as bases das ciências sociais e econômicas, inspirando as constituições francesa (1791) e espanhola (1812), que serviram de modelo para todas as constituições liberal-democráticas posteriores. Suas teorias exerceram inspiraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), durante a revolução francesa, e a constituição dos Estados Unidos (1787), que criou o presidencialismo. Sua obra De l'esprit des lois (1748), tratou do princípio da separação dos poderes e foi considerada a mais influente publicação do século XVIII, na Europa, influenciando especialmente o direito constitucional da época. 23 Rousseau foi um importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço. Foi considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo. Acreditava e defendia um Estado social legítimo, próximo da vontade geral e distante da corrupção. Para Rousseau, a soberania do poder deveria estar concentrada nas mãos do povo. Pensava que a população tem que ser cuidadosa ao transformar seus direitos naturais em direitos civis, porque, segundo ele, o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. 24 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 52. 25 Entre os dias de 15 de maio a 24 de outubro de 1648, os principais plenipotenciários europeus assinaram nas cidades alemãs de Münster e Osnabrück um grande tratado de paz que fez história: a Paz de Westfália. Com ela puseram fim a desastrosa Guerra dos Trinta anos, tida como a primeira guerra civil generalizada da Europa, como igualmente lançaram as bases de um novo sistema de relações internacionais. Acordo este baseado no respeito ao equilíbrio dos poderes entre os estados europeus que passou a imperar no mundo desde então.

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tendo sido negociada por três anos por representantes destas religiões. O tratado significou a dissolução da antiga ordem imperial e permitiu o crescimento de novas potências em suas partes componentes. Firmada em Münster e Osnabrück, em 1648, trouxe a primeira previsão positivada da concepção de igualdade soberana entre os Estados. Desvincularam-se da Santa Sé os nascentes Estados europeus, iniciando-se um processo de identidade própria. [...] a denominada Paz de Westafália consagraria a regra que passaria a ser conhecida em sua formulação no latim cartorário da época: hujus regio, ejus religio, traduzido, literalmente, ‘na região dele, a religião dele’. Na verdade, a regra da Westfália nada mais quer significar do que: na região (leia-se, no território) sob império de um príncipe, esteja vigente unicamente uma ordem jurídica, sua ordem jurídica [...] o próprio Estado, como uma forma de organização da sociedade, nasceria, assim, com a marca indelével de possuir, como condição essencial para sua existência, uma base territorial, e o sistema jurídico nacional que dele se origina, por outro lado, passaria a ser eminentemente territorial.26

As conversações de paz envolviam o fim da guerra de oitenta anos entre Espanha e Países Baixos e da guerra dos trinta anos na Alemanha. O tratado de paz entre Espanha e Países Baixos foi assinado em 30 de janeiro de 1648. Já em 24 de outubro do mesmo ano foi assinado o tratado de paz entre o Sacro Império Romano-Germânico, os outros príncipes alemães, a França e a Suécia. Todos estes diplomas foram depois reunidos no Ato Geral de Vestfália em Münster em 24 de outubro de 1648. Os três tratados que fazem parte da Paz de Westfália – Tratado Hispano-Holandês, Tratado de Westfália e o Tratado dos Pirineus – inauguraram o moderno Sistema Internacional, ao cristalizar consensualmente noções e princípios como o de soberania estatal e o de Estado nação. Assim, se estabelecia um paradigma realista nas relações internacionais, no qual os Estados realizavam acordos entre si seguindo suas próprias vontades soberanas. E, ao mesmo tempo eram concebidos como iguais juridicamente e 26

SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2002, pp. 30-31.

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independentes entre si, como Estados Soberanos, traçando o surgimento do Estado Nacional Europeu, e a supremacia do poder temporal sobre o religioso.27 Por essa razão, a Paz de Westfália marcou o fim do primeiro grande conflito europeu e costuma ser considerada como o marco inicial dos estudos de Relações Internacionais. Este contexto gera repercussões em toda a Europa, que iniciou a busca por mudanças em seu constitucionalismo com o fim de que o ordenamento melhor se adequasse à situação vivenciada pela população. Apesar da Inglaterra ser regida sob o sistema do common law, e de não ter uma Constituição escrita, o constitucionalismo deste país foi sendo construído pouco a pouco. Já a França era considerada o centro dos debates, tendo presenciado aquilo que seria uma das maiores revoluções de todos os tempos. Por meio da Revolução Francesa, o povo tomou o poder, em uma tentativa de liquidar com o absolutismo e elaborou uma Constituição em que, pela primeira vez, teoricamente, não fazia distinção entre indivíduos, tornando todos iguais perante a lei. O povo, antes rechaçado da vida política francesa, passou a assumir o poder através da representação na Assembleia Nacional. 28 No entanto, há que se frisar que a Revolução Francesa representou mais certeiramente um golpe ao monarca, o rei Luís XVI, do que um ataque ao absolutismo propriamente dito. Ademais, deve-se atentar ao fato de que a suposta igualdade positivada na Constituição Francesa foi tramada pela burguesia, como um ato para chegar ao poder. Em outras palavras, a burguesia afirmava que todos eram iguais para ganhar o apoio popular que a levou ao poder. No entanto, a igualdade tal qual conhecemos nos dias atuais não se verificava no período pósRevolução Francesa. Deve-se ainda destacar, neste período, a figura importantíssima de Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), que foi o autor do famoso Qu’est-ce que le Tiers État (O que é o Terceiro Estado), panfleto que circulou pelas ruas parisienses e 27

DA SILVA, Caíque Tomaz Leite. PICININI, Guilherme Lélis. Paz de Vestefália & soberania absoluta. Revista do Direito Público, Londrina, v.10, n.1, p.127-150, jan./abr.2015, p. 131. 28 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 141.

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influenciou certeiramente a Revolução Francesa com seus trinta mil exemplares vendidos. Sieyés reafirma a doutrina da soberania da Nação, dizendo que “em toda Nação livre – e toda Nação deve ser livre – só há uma forma de acabar com as diferenças que se produzem com respeito à Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria Nação” 29. Este grande nome da Revolução Francesa escreveu que o povo “quer ter verdadeiros representantes nos Estados Gerais, ou seja, deputados oriundos de sua ordem, hábeis em interpretar sua vontade e defender seus interesses” 30. Sieyès também criticou e afirmou categoricamente que “o Terceiro Estado pede, pois, que os votos sejam emitidos por cabeça e não por ordem”31. No que concerne ao constitucionalismo francês, podese afirmar que este ocorreu de forma diferenciada do inglês. Isso porque, em primeiro lugar, o constitucionalismo inglês foi gradativo e não rompeu de forma definitiva com os esquemas dos “direitos dos estamentos”32, enquanto que o constitucionalismo francês se deu por meio de revoluções, principalmente, pela Revolução Francesa, que tinha por objeto edificar uma nova ordem sobre os direitos naturais das pessoas – de todos os indivíduos – e não de indivíduos enquanto integrantes de alguma ordem jurídica estamental33. No entanto, o que se percebe é que, mesmo no constitucionalismo francês, as castas permaneceram, porém, com outra roupagem. Suscintamente, o que ocorreu foi a extinção das castas, entretanto, os pertencentes de uma casta – a burguesia – governavam e detinham o poder em detrimento dos demais. Em segundo lugar, tem-se a diferença na legitimação do novo poder político. Em outras palavras, enquanto que na Inglaterra, os homens deram a si próprios uma lei fundamental,

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SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 113. 30 Ibidem, p. 78. 31 Ibidem. 32 A sociedade estamental era o tipo de estrutura social existente antes da Sociedade Industrial; era dividida em estamentos (grupos sociais) e não permitia a ascensão social. No caso, o constitucionalismo inglês ocorreu de forma gradativa e não rompeu totalmente com esta divisão da sociedade. 33 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 57-58.

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através de um contrato social, na França isto foi feito de modo revolucionário – através do surgimento do Poder Constituinte 34. O constitucionalismo francês culminou na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela Assembleia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, e tinha como o lema a liberté, égalité, fraternité – liberdade, igualdade, fraternidade. A Declaração trouxe importante renovação institucional, possibilitando o surgimento do primeiro Estado jurídico, guardião das liberdades individuais e da separação dos poderes, e influenciou as Constituições democráticas contemporâneas ocidentais. O povo francês tinha urgência em divulgar a Declaração para legitimar o governo que se iniciava com o afastamento do rei Luís XVI, decapitado35 quatro anos depois, em 21 de janeiro de 1793. Existia uma necessidade de fundamentar o exercício do poder, não mais na suposta ligação dos reis com Deus, mas em normas que justificassem e guiassem legisladores e governantes. A igualdade era o mais importante dos direitos para os revolucionários, uma vez que no turbulento período que se seguiu à revolução, sempre que fosse necessário optar, os cidadãos estavam dispostos a sacrificar a liberdade em detrimento de ter sua igualdade garantida. Nota-se que os direitos sociais não são sequer mencionados no texto do documento, pois o mesmo trata com mais prioridade os direitos civis, que garantem a liberdade 34

Ibidem. A primeira parte do governo de Luís XVI foi marcada por tentativas de reformar a França, de acordo com os ideais iluministas. A nobreza reagiu com hostilidade e em ferrenha oposição às reformas propostas. Após este fato, houve o descontentamento do povo em geral. Em 1776, Luís XVI apoiou os colonos norte-americanos que buscavam sua independência da Grã-Bretanha, gerando dívida e crise financeira na França. Tudo isto contribuiu para a impopularidade do Antigo Regime, que culminou no Estado Geral de 1789. O descontentamento entre os membros das classes média e baixa da França resultou em reforçada oposição à aristocracia francesa e à monarquia absoluta, das quais Luís e sua esposa, a rainha Maria Antonieta, eram vistos como representantes. A credibilidade do rei foi extremamente comprometida. Em um contexto de guerra civil e internacional, Luís XVI fugiu, porém, foi suspenso e preso na época da insurreição de 10 de agosto de 1792, um mês antes da monarquia constitucional ser abolida e a Primeira República Francesa ser proclamada em 21 de setembro do mesmo ano. O monarca foi julgado pela Convenção Nacional (auto-instituída como um tribunal para a ocasião), considerado culpado de alta traição e executado na guilhotina em 21 de janeiro de 1793. 35

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individual e os direitos políticos, relativos à igualdade de participação política. Isso porque, o grupo que assumiu o poder, qual seja, a burguesia não possuía interesse em garantir tais direitos. São, pois, direitos individuais a) quanto ao modo de exercício, pois é individualmente que se afirma, por exemplo, a liberdade de opinião; b) quanto ao sujeito passivo do direito, uma vez que o titular do direito individual pode afirmá-lo em relação a todos os demais indivíduos, já que estes direitos têm como limite o reconhecimento do direito do outro 36; e c) quanto ao titular do direito, que é o homem na sua individualidade. 37 Por fim, o constitucionalismo americano, também integrante do período do constitucionalismo moderno, surgiu da mesma forma, por meio de revolução, mas diferenciava-se do francês, uma vez que não se pretendia reinventar uma Nação, mas tinha como objetivo “permitir ao corpo constituinte do povo fixar num texto escrito as regras disciplinadoras e domesticadoras do poder, oponíveis, se necessário, aos governantes que actuassem em violação da constituição, concebida como lei superior”38. O estopim se deu quando as Treze Colônias resolveram construir seu caminho próprio, rompendo com o poder central, que estava na Inglaterra. O movimento foi formalizado com a Declaração de Direitos da Virgínia 39, que declarou sua Neste sentido afirma o artigo 4º da Declaração francesa de 1789: “[...] l’exitence des droits naturels de chaque homme n’a de bornes que celles qui assurent aux autres membres de La societé La jouissance de ces mêmes droits.” In: ASSEMBLEE NATIONALE. Déclaration des droits de l’homme et du citoyen de 1789. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2014. 37 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 126127. 38 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 59. 39 Reza o artigo 1º do documento, de inspiração iluminista, no qual as Treze Colônias da América do Norte declararam sua independência do Reino Unido: “Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança.” (tradução livre) In: CONSTITUTION SOCIETY. The Virginia Declaration of Rights, 1776. Disponível em: . Acesso em: 31 jan. 2015. 36

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independência, e consequentemente fez com que as ex-colônias elaborassem cada uma a sua própria Constituição. Por fim, em 1787, foi aprovada a Constituição dos Estados Unidos da América, a qual vige até os dias de hoje40. No que se refere às diferenças entre as revoluções francesa e americana, tem-se em Luhmann: Em 1789, a França recepciona o conceito inglês de constitution conjuntamente com todas as suas imprecisões e, sobre essa matriz, limita-se simplesmente a discutir as dimensões da redistribuição sempre (ormai) necessária dos pesos. Na América, ao contrário, em contraposição à situação jurídica inglesa, acentuava-se a unidade do texto constitucional redigido de forma escrita. O que requeria uma determinação conceitual que introduzisse uma distinção entre a constitution e o demais Direito, em clara discrepância com o uso linguístico inglês41.

Pode-se afirmar que o constitucionalismo é, portanto, um produto das revoluções liberais norte-americanas e francesas e tinham um mesmo objetivo: [...] controlar o poder através da vigência do princípio democrático e, com isso, pôr fim ao absolutismo, produto de acumulação dos poderes feudais na figura do rei como soberano. Quando a soberania do rei é substituída pela soberania do povo e a vontade geral se impõe ao interesse particular dos privilegiados, nesse momento podemos começar a referir-nos à Constituição42.

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FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucionaal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 38-39. 41 LUHMANN, Niklas. A constituição como Aquisição Evolutiva. Tradução realizada a partir do original (“Verfassung als evolutionäre Errungenschaft”. In: Rechthistorisches Journal . Vol. IX, 1990, pp. 176 a 220), cotejada com a tradução italiana de F. Fiore (“La costituzione come acquisizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione . Torino: Einaudi, 1996), por Menelick de Carvalho Netto, Giancarlo Corsi e Raffaele De Giorgi. Notas de rodapé traduzidas da versão em italiano por Paulo Sávio Peixoto Maia (texto não revisado pelo tradutor), p. 06. 42 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 45.

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As revoluções liberais burgueses pavimentaram o Estado liberal de direito, restringindo o excesso de poder atribuído ao monarca decorrente das teorias divinas absolutistas, que foram então substituídas pela teoria democrática. É nesse contexto que surgem as primeiras raízes do constitucionalismo, quando o poder se desloca das mãos do monarca, onde tinha lugar exclusivo, e começa a aparecer nas mãos do povo e da vontade geral. 1.2 DO CONSTITUCIONALISMO MODERNO CONSTITUCIONALISMO DO BEM-ESTAR

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O constitucionalismo moderno, explanado no tópico anterior, iniciou-se na Inglaterra, com repercussões na França e Estados Unidos, porém, somente se pode falar em constitucionalismo – e de suas origens – quando a soberania do rei é substituída pela soberania do povo.43 Com a evolução da sociedade e das ideias, foi-se criando uma conscientização de que haveria a necessidade se buscar uma unidade, que seria, ao final, concretizada pelo poder soberano, reconhecido como o mais alto dentro de uma precisa delimitação territorial. Após as Revoluções, começou-se a tomar consciência de que sem uma Assembleia Nacional Constituinte, escolhida pelo povo, que era o titular do Poder Constituinte Originário, uma verdadeira Constituição não poderia ser aprovada. O Poder Constituinte é compreendido por Canotilho como “soberania constituinte do povo, ou seja, o poder de o povo, através de um acto constituinte criar uma lei superior juridicamente ordenadora da ordem política, parece hoje uma evidência”44. Assim, a origem do constitucionalismo clássico representa a transferência do poder soberano de uma elite ou de uma só pessoa para uma coletividade nacional ou Estado nação, e ainda implicaria na sujeição de todos a este poder, inclusive dos governantes45. 43

Ibidem. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da constituição. 7. ed. Almedina: Coimbra, 2012, p. 48. 45 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). 44

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As mudanças ocorridas no século XV e XVI, com o advento do capitalismo mercantil e a superação do modo de produção ligada ao feudalismo, culminaram na redefinição do Estado. Foram profundas mudanças nessa nova sociedade, e o Estado precisou se tornar forte e centralizado, culminando no surgimento do Estado Liberal. O Estado Moderno, em sua fase liberal, pode ser considerado em três níveis: jurídico, político e sociológico, exercendo, respectivamente, funções de soberania, de concentração do poder e de administração. 46 Neste sentido temse que: Do ponto de vista jurídico, o liberalismo por estar intimamente ligado ao constitucionalismo, sempre se manteve fiel ao princípio (medieval) da limitação do poder político mediante o direito, de tal forma que somente as leis são soberanas, justamente aquelas leis limitadoras do poder do Governo. Do ponto de vista político, o Liberalismo sempre se apresentou como defensor das autonomias e das liberdades da sociedade civil, em contraposição, como valor positivo, ao poder central, que opera de maneira minuciosa, uniforme e sistemática.47

O pressuposto do Estado Liberal é o de proporcionar o máximo de bem-estar comum em todos os campos com a menor presença possível do Estado48, não negando que a natureza humana é egoísta e ambiciosa, mas acreditando que essas características são capazes de fazer com que o homem, buscando o seu bem-estar individual, alcançará o bem-estar coletivo. Esse período era regido pelo constitucionalismo clássico, que “compreendiam e tratavam o direito como um

Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 45. 46 MATTEUCCI, Nicola. Liberalismo. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Trad. Carmen Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira. Brasília: UnB, 1998, v.1, p. 698. 47 Ibidem. 48 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6 ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p. 212.

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sistema de legislatio, [...] ou seja, como instituição de dois sistemas – o jurídico e o político”49. Registra-se, igualmente, que o indivíduo do liberalismo do século XIX, quedou-se cada vez mais racional e atomizado, e calculador de custos e benefícios da maximização material. Em outras palavras, as pessoas esqueceram-se dos direitos humanos em detrimento do crescimento econômico. No século XX, o capitalismo puro tornou-se absolutamente incompatível com os preceitos de dignidade humana, situação da qual adveio a necessidade de nova modificação do Estado, que culminou na organização do Welfare State50 ou Estado do Bem-Estar Social51. Assim, o princípio democrático teve seu auge na história da humanidade até o momento, o fenômeno constitucional surgia como uma solução efetiva para os problemas sociais que afligiam os povos.52 Após este momento de esplendor, o constitucionalismo passou por um período obscuro, mormente porque a teoria democrática de Constituição limitou-se somente às primeiras experiências constituintes do período pós-guerra.

CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, pp.188-189. 50 Welfare State (termo em inglês), Estado de Bem-estar Social, também conhecido como Estado-Providência, é a organização política e econômica que coloca o Estado como agente da promoção social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda vida social, política e econômica do país, em parceria com sindicatos e empresas privadas. Cabe, no entanto, ao Estado do Bem-estar Social garantir os serviços públicos e a proteção à população. 51 MACPHERSON, Crawford Brough. Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios: o papel do Estado, das classes e da propriedade na democracia do século XX. Trad. Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 69. 52 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 46. 49

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1.3 DO CONSTITUCIONALISMO DO CONSTITUCIONALISMO NEOLIBERAL

BEM-ESTAR

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Infortunadamente, a teoria democrática de Constituição quedou-se limitada às primeiras experiências do período pós Segunda Guerra Mundial. Nessa época, deu-se conta de que sem uma Assembleia Constituinte escolhida livremente pelo povo, uma verdadeira constituição não poderia ser aprovada. A esse texto que organizava as instituições do país deu-se o nome de Lei Fundamental.53 Conscientes deste fato, nesse período, os franceses votaram negativamente um referendo sobre a lei constitucional proposta pela Assembleia Constituinte francesa, a qual entenderam não refletir o interesse de seu povo. Ademais, na Itália, houve um correto processo constitucional que determinou a forma de Estado, além de incluir no rol de proteção, os direitos políticos e individuais, bem como alguns direitos econômicos e sociais54. Assim, surgia uma nova fase do constitucionalismo, que foi denominada de “Constitucionalismo do Bem-estar”, definido como um constitucionalismo normativo, de profunda articulação com o princípio democrático55, resultado da estagnação da concepção liberal56. Durante o período do pós-Segunda Guerra, além da democracia que se destacava no mundo, também ganharam evidência os países com regimes comunistas da União Soviética. O confronto entre capitalismo e comunismo na Europa provocou novamente o enfraquecimento do incipiente constitucionalismo democrático.57 53

Ibidem. Ibidem, p. 46-47. 55 Ibidem, p. 47. 56 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Os desafios da justiça brasileira frente ao novo constitucionalismo latino-americano: diversidade e minorias. In: MORAIS, Jose Luis Bolzan de; BARROS, Flaviane de Magalhães. (Orgs.). Novo constitucionalismo latino-americano: o debate sobre novos sistemas de justiça, ativismo judicial e formação de juízes. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014, p. 121. 57 PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 47. 54

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Nesse sentido, duas foram as situações que levaram ao abafamento do constitucionalismo do bem-estar. O primeiro, os setores empresariais enxergaram este novo regime como impedimento para a obtenção de maiores lucros. E, o segundo, o choque entre os partidos de esquerda e os partidos conservadores fizeram com que a classe média demonstrasse preocupação em perder o recém-conquistado bem-estar. Ainda na década de quarenta, John Maynard Keynes propôs uma política intervencionista que consistia na intervenção estatal na vida econômica com o objetivo de conduzir a um regime de pleno emprego. A política keynesiana foi abordada mais detalhadamente no último capítulo de sua obra “A Teoria Geral do Emprego, Juros e Moeda”, no qual Keynes afirma que há dois problemas centrais no capitalismo da época. O primeiro problema tratado por Keynes seria a excessiva concentração de renda e riqueza que separava as classes sociais. A concentração excessiva dificultava em sustentar a política do pleno emprego nas economias modernas. Isso porque, os ricos, que se beneficiavam da concentração, consumiam relativamente pouco em proporção à sua renda, enquanto que os pobres, que consumiriam proporcionalmente mais, eram privados dessa possibilidade. O resultado desse sistema era uma demanda total por bens de consumo mais fraca, que desestimulava a produção de bens de consumo e, indiretamente, a de bens de investimento. Ademais, a concentração de renda excessiva abalava a legitimidade do capitalismo, pois criava grupos sociais que desfrutavam da riqueza social sem terem contribuído para sua criação 58. Já o segundo dilema do capitalismo moderno era a impossibilidade desse sistema em gerar nível de demanda agregada capaz de sustentar o pleno emprego e a plena utilização da capacidade produtiva disponível. Dessa forma, Keynes acreditava que o combate ao desemprego exigiria uma postura ativa do Estado. 59 Considerando os elementos do pensamento keynesiano, pode-se afirmar que suas propostas prejudicam os direitos dos indivíduos, uma vez que a economia prevalece sob 58

KEYNES, John Maynard. A Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Tradução de Mário R. da Cruz. São Paulo: Editora Nova Cultural LTDA, 1996, p. 341-349. 59 Ibidem.

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o Estado de Bem-Estar social e sobre os direitos por ele consagrados. Nesse sentido, alega-se que [...] durante o período compreendido entre as décadas de quarenta e setenta do século passado, ocorreu o auge da aplicação das medidas keynesianas, mas as políticas do bemestar foram desenvolvidas de costas para a lógica constitucional, já que os direitos econômicos, sociais e culturais foram excluídos dos sistemas gerais de proteção, nos quais cabiam sim, os direitos civis e políticos.60

Dessa forma, não se pode falar em Estado de Bem-Estar social antes de 195061, considerando-se, ainda, a necessidade de pelo menos quatro grandes pilares sobre os quais assentaram sua viabilidade. O primeiro pilar é constituído por fatores materiais e econômicos, tais como: a) a generalização do paradigma fordista; b) valores e crescimento do pleno emprego; c) consenso paralelo em torno das políticas keynesianas; d) manutenção de um ritmo de crescimento econômico constante e sem precedentes na história capitalista; e, e) ganhos fiscais crescentes que foram alocados por coalizões políticas socialmente orientadas.62 O segundo pilar é constituído pelo “ambiente econômico global” criado pelos acordos de Bretton Woods63 e que ocasionou a abertura de um espaço de conciliação entre o 60

PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 48. 61 MISHRA, Ramesh. The Welfare State in Capitalist Society: policies of retrenchment and maintenance. In: Europe, North America And Australia, studies in international social policy and welfare. London: Harvester/Wheatsheaf, 1990. Disponível em: . Acesso em: 08.abr.2015. 62 FIORI, José Luís. Estado de Bem-Estar Social: Padrões e Crises. In: PHISIS: Revista Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 7(2), 1997, p. 134. 63 Acordo de Bretton Woods ou ainda “Acordos de Bretton Woods” é o nome com que ficou conhecida uma série de disposições acertadas por cerca de 45 países aliados em julho de 1944, na mesma cidade norte-americana que deu nome ao acordo, no estado de New Hampshire, no hotel Mount Washington. O objetivo de tal concerto de nações era definir os parâmetros que iriam reger a economia mundial após a Segunda Guerra Mundial.

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desenvolvimento do welfare e a estabilidade da economia internacional64. A terceira base que Fiori aponta é referente ao “clima de solidariedade nacional” que se inaugurou no período pós Segunda Guerra Mundial entre países vencedores e vencidos, e, posteriormente, pela solidariedade supranacional gerada pelo novo quadro geopolítico65. Por fim, a quarta e última pilastra foi o avanço das democracias partidárias e de massa que, pelo menos nos países centrais, “permitiu que a concorrência eleitoral aumentasse o peso e a importância das reivindicações dos trabalhadores” 66. O constitucionalismo do Bem-Estar perdeu forças, já que as ideias neoconservadoras é que acabaram politicamente vitoriosas, alavancando os projetos neoliberais de reforma dos Estados, desacelerando a expansão ou desativando muitos de seus programas do Estado de Bem-Estar Social.67 Este enfraquecimento aconteceu paulatinamente, como assevera Fiori: [...] a verdade é que se a desmontagem dos welfare states não ocorreu de forma abrupta e estrondosa, são inúmeros os sinais que indicam uma lenta transformação a transição de quase todos os casos ou tipos em direção às formas mais atenuadas ou menos inclusivas de cobertura dos vários sistemas que compuseram o welfare em seu período áureo. Lenta desativação que acompanhou os processos de estabilização e desindustrialização dos países periféricos68.

O que se conclui é que o “constitucionalismo do bemestar” jamais se consolidou na forma pela qual se pretendia, por meio das revoluções. Ou seja, o Estado do Bem-Estar social que deveria atuar como agente da promoção social e organizador da economia, saúde social, política do país, bem como garantir serviços públicos e proteção à população não se concretizou por inteiro.

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FIORI, José Luís. Estado de Bem-Estar Social: Padrões e Crises. In: PHISIS: Revista Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 7(2), 1997, p. 134. 65 Ibidem. 66 Ibidem, pp. 134-135. 67 Ibidem, p. 142. 68 Ibidem.

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Todas estas razões levaram a promoção e retorno do Estado liberal, agora denominado de “Estado Neoliberal”, que se fortaleceram nos anos setenta e oitenta, fazendo com que suas políticas se multiplicaram quase sem obstáculos. A doutrina do neoliberalismo surgiu em 1944 com Fridrich Hayek 69 e fortaleceu-se com os governos de Margareth Tatcher70, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos 71, tendo sido difundido pelo mundo nos anos 80 e 90, sobretudo por influência do Banco Mundial e do FMI. O neoliberalismo se apresentou como um modelo que retiraria do Estado funções que haviam sido adquiridas junto com o Estado Social – como a de garantia de todos os direitos sociais e a intervenção fervorosa na economia – mas que não estavam sendo devidamente cumpridas. Isso porque, inúmeros problemas insurgiam-se dessa modalidade de Estado, dentre os quais cita-se a hiperinflação, o elevado déficit público, o aumento da dívida pública, o excesso de burocracia, a corrupção, o desemprego e, sobretudo, a alta carga tributária 72. Em outras palavras, havia uma dificuldade de harmonizar os gastos públicos com o crescimento da economia capitalista. Basicamente, o neoliberalismo se transparecia como um pensamento antagônico ao Estado do Bem-Estar social. O Estado neoliberal tornar-se mais leve do o anterior, mais enxuto, e desempenha apenas as funções básicas que se esperam dele: educação e saúde. Para os neoliberais, o termo “menos Estado” deveria ser enxergado como um “Estado diferente”. Isso porque, o Estado teria menos responsabilidade no que se refere aos direitos sociais, porém, jamais conseguirá o Estado, ainda que se criem 69

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 30 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 326. 70 Segundo Wallerstein, Margaret Thatcher lançou o chamado neoliberalismo, que era na realidade um conservadorismo agressivo de um tipo que não era visto desde 1848, e que envolveu uma tentativa de reverter a redistribuição do Estado de Bem-Estar, de modo a beneficiar as classes superiores e não as classes mais baixas. WALLERSTEIN, I. O declínio do poder americano. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p. 61. 71 De acordo com Bastos, nestes países inclusive, à época, acreditava-se que a crise era ocasionada em razão dos excessivos benefícios sociais. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6 ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p. 220. 72 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. 6 ed. São Paulo: Celso Bastos Editora, 2004, p. 218.

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fundos de pensões mantidos por particulares, se desvincular totalmente de seus encargos sociais, pois sempre hão de existir pessoas carentes, que necessitarão de ajuda estatal.73 No âmbito da América Latina, o Chile adotou um dos primeiros sistemas neoliberais, denominando tal ação de “Chicago Boys”, em referência à Escola de Chicago 74, nos Estados Unidos, conhecida pelo viés liberalista. Já no Brasil, pode-se afirmar que algumas premissas na Constituição Federal de 1988 sofreram influência desse novo. Muito embora os dispositivos constitucionais vigentes na América Latina ressaltem um liberalismo formal, não se pode falar em neoliberalismo, que pressupõe, por certo, necessários controles até para que sejam evitados abusos de toda ordem, inclusive para as empresas, concorrentes entre si.75 Nesse contexto, pouco a pouco, percebe-se a transição do constitucionalismo do Bem-Estar para o “constitucionalismo neoliberal”, no qual os cidadãos não têm seus direitos básicos garantidos pelo Estado – que é a função do Estado de BemEstar em sua essência –, mas são obrigados a pagar se quiserem ter acesso a tais direitos, como educação, saúde, moradia ou até mesmo, em muitos casos, exigir judicialmente uma provisão do Estado para fazer valer tais direitos. 1.4 O NEOCONSTITUCIONALISMO CONSTITUCIONALISMO PLURINACIONAL AMERICANO

E O LATINO-

A forma pela qual a América Latina foi colonizada e explorada reforça o projeto uniformizador da modernidade, que tinha por objetivo a homogeneização econômica e social, o qual possibilita melhores condições de vida àqueles que nada ou pouco têm, porém, dificulta a diversidade. Nesse sentido, existe

73

Ibidem, p. 220-221. Essas teorias refletiram-se fortemente nas políticas do Banco Mundial e de outras instituições financeiras baseadas em Washington, tais como o Departamento do Tesouro americano e o Fundo Monetário Internacional, que passaram a adotar o fundamentalismo de livre mercado como receita para os países em dificuldades econômicas, como expresso pelo Consenso de Washington. 75 FILOMENO, José Geraldo. Manual de Teoria Geral do Estado e Ciência Política. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 158. 74

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uma problemática envolvida, vez que a sociedade não é homogênea, e por isso, não deve ser tratada como se fosse. Há teorias que buscam resolver esta problemática, ao criar um novo tipo de constitucionalismo que melhor se adequaria ao modelo latino-americano. No entanto, para que se possa compreender este “novo” constitucionalismo, deve-se fazer uma rápida retrospectiva histórica e perpassar brevemente pelo neoconstitucionalismo, que deu início à discussão acerca do modelo latino-americano de constitucionalismo. Durante o Estado Liberal, o que se tinha era uma versão formal dos direitos que era feita para quem encontrava-se no poder, excluindo-se desta prestação as minorias. Com o advento do Estado de Bem-estar social, o objetivo era outro, no caso, a garantia dos direitos básicos às minorias. No entanto, este objetivo não foi cumprido, uma vez que as prestações positivas do Estado aconteciam de forma burocrática e tinham como objetivo homogeneizar social e economicamente os cidadãos, deixando novamente de lado as minorias. 76 A consolidação do Estado Neoliberal passou a pregar que as políticas sociais seriam direcionadas àqueles realmente necessitados, afastando a socialização e universalização destes direitos. No entanto, este viés mostrou-se inadequado às expectativas da sociedade global atual. E, visando achar uma solução para esta questão, é que se chegou ao que os autores denominam de neoconstitucionalismo. A corrente neoconstitucionalista foi defendida e divulgada no Brasil por meio dos escritos de Lênio Streck. Após os textos lenianos, vieram os textos acerca do constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo do italiano Luigi Ferrajoli. Ferrajoli acredita que o neoconstitucionalismo se distanciaria do positivismo e se aproxima de uma visão jusnaturalista do direito. Com a incorporação nas Constituições de princípios de justiça de caráter ético-político, como a igualdade, a dignidade das pessoas e os direitos fundamentais, desaparece o principal traço distintivo do positivismo jurídico: a separação entre

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DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito administrativo pós-moderno: novos paradigmas do direito administrativo a partir do estudo da relação entre o estado e a sociedade. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 144.

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direito e moral, ou seja, entre validade e justiça. Segundo esta tese, a moral, que no velho paradigma juspositivista correspondia a um ponto de vista externo ao direito, agora faria parte do seu ponto de vista interno.77

Baseando-se em Ronald Dworkin e Robert Alexy e seus escritos sobre princípios e ponderação, Ferrajoli defende um neoconstitucionalismo com os seguintes aspectos: normas constitucionais não como simples regras suscetíveis de observância e de aplicação, mas como princípios suscetíveis a ponderações e balanceamentos; e, por consequência, a centralidade conferida à argumentação na própria concepção de direito78. Möler, por sua vez, conceitua o neoconstitucionalismo como “um movimento jurídico que abarca grande parte das práticas judiciais do constitucionalismo contemporâneo e que aproximam ordenamentos jurídicos do civil law de algumas características do direito constitucional próprio do sistema do common law”79, citando algumas características do neoconstitucionalismo: A aplicação direta de princípios – ao invés da restrição ao modelo normativo de regra – determina uma adaptação da solução da norma ao caso concreto, porquanto esta não é estática, mas pode ser construída pela ponderação. A indeterminabilidade dos princípios também permite que o direito incorpore discussões sobre o sentido de termos relacionados a valores morais, trazendo ao âmbito jurídico discussões antes reservadas aos entes políticos. A ampliação do controle da constitucionalidade permite um controle da livre disposição do legislador, ao mesmo tempo em que a lei cede um pouco de seu espaço como doente de direito à sentença. A posição de supremacia da constituição permite que os microssistemas dos códigos não estejam isolados, mas também submetem-se a uma regulação hierarquicamente

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FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo. Trad. de André Karam Trindade In: Anais do IX Simpósio de Direito Constitucional da ABDConst. Curitiba: ABDConst., 2011, p. 96. 78 Ibidem, p. 97. 79 MÖLER, Max. Teoria geral do neoconstitucionalismo: bases teóricas do constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 43.

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Sistema interamericano de direitos humanos... superior, tal como a sua necessidade de adequação e por respeito aos direitos fundamentais80.

Em outras palavras, o “neoconstitucionalismo” mais significa um movimento do “constitucionalismo contemporâneo” que tem por objetivo a mudança de atitude dos operadores jurídicos.81 Assim, o neoconstitucionalismo, teoricamente, surge como uma alternativa diante da insuficiência do positivismo jurídico. Isso porque, [...] o positivismo jurídico seria incapaz de explicar os métodos de interpretação que demanda o direito constitucional contemporâneo. O positivismo jurídico seria caracterizado por reconhecer a subsunção como único método de interpretação e, por isso, deixaria de fora de suas considerações a aplicabilidade dos princípios, que somente seriam aplicáveis a partir do método de ponderação.82

De acordo com a concepção neoconstitucionalista, é o texto normativo máximo, ou seja, a constituição – através da previsão de valores e princípios – que permite trazer para dentro do ordenamento jurídico essa discussão sobre a necessária adequação das normas jurídicas a esses conteúdos materiais relacionados à moral.83 A discussão acerca do neoconstitucionalismo continua no Brasil com Luís Roberto Barroso, que aponta as principais inovações do novo direito constitucional, a saber, a) o reconhecimento da força normativa da Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; e, c) a nova interpretação constitucional.84 O neoconstitucionalismo foi um dos fenômenos mais visíveis nos últimos 20 anos no Brasil e, resumidamente, consiste em: aplicar mais princípios do que regras; ponderação em substituição à subsunção; incentivar a justiça particular, por meio da análise do caso concreto em detrimento da justiça geral; 80

Ibidem. Ibidem. 43-44. Ibidem, p. 44. 83 Ibidem, p. 47. 84 BARROSO, Luíz Roberto. Neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito: o trunfo tardio do direito constitucional no Brasil. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (Orgs.) A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 203-249. 81 82

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supervalorização do Poder Judiciário; aplicação da Constituição em substituição da lei.85 O neoconstitucionalismo pode ser considerado como [...] um conjunto de abordagens teóricas que produziram uma certa convergência de sentido ao analisar e buscar definir os novos delineamentos do direito contemporâneo, particularmente naqueles Estados que, a partir do segundo pós-guerra, adotaram constituições caracterizadas pela forte presença de princípios, valores, direitos fundamentais e mecanismos de controle de constitucionalidade atuados por órgãos jurisdicionais especializados [...].86

Consiste, pois em uma tendência teórica, ideológica ou um método de análise do direito; ou para designar alguns elementos estruturais de um sistema jurídico e político, ou um modelo de Estado de direito87, ou ainda para se referir as tendências comuns entre os países latino-americanos que conformam uma nova cultura jurídica. Dentre os novos traços do constitucionalismo contemporâneo, tem-se que as constituições possuem mais princípios que regras, mais ponderação do que subsunção, mais Constituição do que lei, mais juiz do que legislador, e pela coexistência de uma miríade de valores em contraponto com a homogeneidade ideológica.88 No entanto, alerta-se que, “o paradigma da ponderação, se aceito como critério geral de aplicação do ordenamento jurídico, gera [...] um “anti-escalonamento” da ordem jurídica”89. Ou seja, o ordenamento jurídico, da forma pela qual se apresenta hoje, possui vários níveis hierárquicos – ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. In: Revista eletrônica de direito do Estado (REDE). Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, jan./mar. 2009, pp. 2-3. 86 MELO, Milena Petters. As recentes evoluções do constituicionalismo na América Latina: neoconstitucionalismo?. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 62. 87 RUFINO, André. Aspectos do Neoconstitucionalismo. In: Revista brasileira de direito constitucional – RBDC. n. 09 – jan./jun. 2007, p. 67. 88 SANCHÍS, Luis Pietro. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, p. 107. 89 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 81. 85

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compreendendo a Constituição, a lei, os regulamentos, os decretos, os contratos – e que, cada qual exerce uma função específica. Em contrapartida, tem-se o positivismo jurídico, no qual “o conceito de direito só admite um objeto: o direito positivado. O direito natural não é concebido como direito, mas lago com pretensão de um dia vir a ser positivado e, somente assim, tornar-se direito”90, e que surgiu como resposta a liberalburguesa, que buscava no direito uma forma de proteção não apenas contra a incerteza do direito natural, mas também, contra o próprio Estado91. O positivismo clássico, segundo Bobbio possui primordialmente sete características, a saber: 1) o direito deve ser visto como um fato e não como um valor; 2) o direito deve estar ligado à ideia de se fazer cumprir através de coação e não pelo cumprimento voluntário; 3) a principal fonte do direito é a lei; 4) a norma jurídica deve ser vista como um mandado; 5) cada norma jurídica deve ser vista como parte de um todo – o ordenamento jurídico – e é justamente isto que lhe dá validade e compatibilidade; 6) a atividade jurídica é vista como mero ato de declaração do direito; 7) teoria da obediência, na qual a lei deve ser obedecida, seja qual for seu conteúdo. 92 A teoria do positivismo do austríaco Hans Kelsen 93 parte de uma concepção normativa de direito, na qual toda a norma encontra seu critério de pertencimento a um determinado sistema jurídico. Sempre uma norma será hierarquicamente superior ou inferior quando comparada a outra. A única exceção à regra diz respeito à denominada norma fundamental (grundnorm), que é caracterizada como uma norma que não encontra critério de validade em nenhuma outra.

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MÖLER, Max. Teoria geral do neoconstitucionalismo: bases teóricas do constitucionalismo contemporâneo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 75. 91 Ibidem, p. 77. 92 BOBBIO, Norberto. El positivismo jurídico. Madrid: Editorial Debate, 1993, pp. 141-143. 93 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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No que se refere ao positivismo defendido por Hart 94, pode-se dizer que com esta teoria, o positivismo ganhou uma nova perspectiva. Isso porque o direito, para Hart, é visto como um fato social. Por conta disso, Hart despertou o interesse pelo positivismo nos sistemas anglo-saxões, uma vez que conseguiu inserir pitadas de formalismo legal em um sistema que, anteriormente, era baseado exclusivamente em jurisprudências e costumes. Se por um lado, o neoconstitucionalismo sustenta uma Constituição principiológia, de outro, a teoria do positivismo de Hart influenciou as teorias do positivismo clássico, fazendo com que o mesmo tomasse outro rumo, diferente daquele que tratava simplesmente do formalismo legal. Apesar do neoconstitucionalismo ser defendido por diversos autores, existem aqueles que possuem opinião divergente. Nesse sentido, Sarmento formaliza severas críticas ao neoconstitucionalismo, descrevendo três principais objeções: 1) a de que a supervalorização do judiciário seria antidemocrática; 2) a de que a preferência por princípios, ao invés de regras, é perigosa, especialmente no Brasil, pelas peculiaridades da cultura; 3) a de que pode acabar por gerar uma panconstitucionalização do Direito.95 O constitucionalista que tece críticas mais fervorosas contra o neoconstitucionalismo é o próprio Lenio Streck, que, inusitadamente, foi um dos primeiros autores a defender esta corrente quando esta teoria surgiu. E, ao falar da mudança de posicionamento, explica o porquê, começando pela concepção de que até o termo utilizado estaria incorreto: [...] a adoção do nomen juris “neoconstitucionalismo” certamente é motivo de ambiguidades teóricas e até (ou sobremodo) de mal-entendidos. Em um primeiro momento, foi de importância estratégica a importação do termo e de algumas das propostas trabalhadas pelos autores da Europa Ibérica. Isto porque o Brasil — assim como a América Latina 94

HART, Herbert L. A. Positivism and the searation of law and moral. In: Essays in jurisprudence and philosophy. Oxford: Oxford University Press, 1983, pp. 5859. 95 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: QUARESMA, Regina; OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula; OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (Orgs.) Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 288.

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Sistema interamericano de direitos humanos... — ingressou tardiamente nesse “novo mundo constitucional”, fator que, aliás, é similar ao da realidade europeia, que, antes da segunda metade do século XX, não conhecia o conceito de constituição normativa. Portanto, em países como o Brasil, falar de neoconstitucionalismo implicava ir além de um constitucionalismo de feições liberais — que, no Brasil, sempre foi um simulacro em anos intercalados por regimes autoritários — na direção de um constitucionalismo compromissório que possibilitasse, em todos os níveis, a efetivação de um regime democrático96.

Streck acredita que, a bandeira neoconstitucionalista defende, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade, um direito assombrado pela ponderação ilimitada de valores, uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento, a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo. Sendo assim, não haveria sentido nessa teoria, até porque, como justifica o autor, muitos se utilizaram de expressões de justiça e ponderação para propagar e impor teorias extremistas, sem qualquer controle, assim como fez Hitler.97 1.4.1 O constitucionalismo latino-americano Esta noção da teoria neoconstitucionalista se fez necessária à medida que, foi a partir dela, que se começou a esboçar um constitucionalismo latino-americano. Este fenômeno que ocorre atualmente na América Latina, evoluiu para um “novo” constitucionalismo inerente aos povos latinos que vem sendo construído. No entanto, para se chegar a um pensamento epistemológico e verificar o avanço em direção à um constitucionalismo pluralista e intercultural, deve-se analisar a trajetória do constitucionalismo desde a colonização da América98. STRECK, Lenio Luiz. Eis porque abandonei o “neoconstitucionalismo”. Consultor Jurídico, São Paulo/SP, 13 mar. 2014. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015. 97 Ibidem. 98 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 21. 96

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Wolkmer explica que a independência das colônias da América Latina não representou no início do século XIX uma mudança total e definitiva com relação à Espanha e Portugal, mas tão somente uma reestruturação, sem uma ruptura significativa na ordem social, econômica e políticoconstitucional99. Isso porque, [...] na América Latina, tanto a cultura jurídica imposta pelas metrópoles ao longo do período colonial, quanto as instituições jurídicas formadas após o processo de independência (tribunais, codificações e constituições) derivam da tradição legal europeia, representada, no âmbito privado, pelas fontes clássicas dos Direitos romano, germânico e canônico100.

A América Latina como um todo construiu sua história com identidades culturais, uma vez que todos possuem colonizações ou Espanholas ou Portuguesas, e os antecedentes do regionalismo na América do Sul são encontrados ainda no século XIX, quando da realização do processo de integração política e proposta de unidade entre os países das Américas apresentada por Simón Bolívar101, o qual pregava a necessidade de independência de várias províncias espanholas da América Latina102. Por consequência, o constitucionalismo do século XX se caracterizou por constituições que incorporaram o novo comunitarismo internacional admitindo a celebração de tratados de integração entre Estados para conformar organizações supraestatais e interestatais, mediante normas de maior ou menor exigência que possibilitem o ingresso de associados. Os textos constitucionais que exigem requisitos mais qualificados, em geral, impõem a aprovação de adesão no âmbito legislativo.

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Ibidem. Ibidem, p. 22. 101 Por tal motivo, tornou-se mundialmente respeitado como gênio político, líder e figura mítica dessa época. Além de Simón Bolívar, José de San Martín teve proeminente atuação nas revoluções, outros três patriotas merecem destaque por imaginarem uma pátria americana para os hispanoamericanos, são eles: Miranda, Sucre, O’Higgins e Artigas. 102 LOPRESTI, Roberto Pedro. Constituciones del Mercosur. 2. ed. Buenos Aires: La Ley, 2007, p. 03. 100

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Para Peter Häberle, a Constituição deve ser concebida como cultural, pois não é somente um ordenamento jurídico voltado aos juristas, tampouco um mero texto jurídico, mas sim uma expressão de uma situação cultural e instrumento de autorrepresentação do povo.103 Logo, a interpretação constitucional sendo concebida como um produto cultural e aberto deve pressupor um exercício de participação democrática.104 De acordo com Peter Häberle, vivemos um Estado constitucional cooperativo que se apresenta como um Estado constitucional voltado não mais para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros Estados constitucionais membros de uma comunidade e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos.105 A teoria constitucional häberiana volta-se para “aceitar o outro” dentro da realidade da sociedade mundial hodierna. Contribui de modo expressivo para o fortalecimento do Estado constitucional, principalmente nos países de transição democrática.106 Sua teoria do desenvolvimento do direito transcendeu o continente europeu e chegou à América Latina com o objetivo de ajudar o processo não somente de integração política, mas também cultural, buscando desenvolver a concepção de um “direito constitucional comum”. Para Gilmar Mendes “a concepção de um direito constitucional comum se relaciona diretamente à ideia de um Estado constitucional cooperativo” 107. O direito constitucional inicia, assim, um processo de transformação desde o século passado, que começaram a 103

HÄBERLE, Peter; HABERMAS; Jürgen; FERRAJOLI, Luigi. VITALE, Ermanno. La constitucionalización de Europa. México: Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM, 2004, p. 25. 104 LEAL, Mônia Clarissa Hennig. La noción de constitución abierta de peter haberle como fundamento de una jurisdicción constitucional abierta y como presupuesto para la intervención del amicus curiae en el derecho brasileño. In: Estudios Constitucionales, Año 8, Nº 1, 2010, pp. 283 – 304. 105 Ver a respeito em: HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 106 MENDES, Gilmar. Homenagem à doutrina de Peter Häberle e sua influência no Brasil. Disponível em: http://www.stf.jus.br/repositorio/cms/portalStfInternacional/portalStfAgenda_pt_ br/anexo/Homenagem_a_Peter_Haberle__Pronunciamento__3_1.pdf>. Acesso em: 26.ago.2014. 107 Ibidem.

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preocupar-se com os novos desafios de um direito que transcendeu as fronteiras dos Estados para diversas ordens jurídicas. Sob este aspecto, Peter Häberle já afirmou que os diversos Estados constitucionais não existem mais “para si próprio”, e sim, constituem uma comunidade universal aberta. 108 Quanto ao contexto histórico da região, Flávia Piovesan destaca a existência de dois períodos que marcaram o cenário latino americano: a) os regimes ditatoriais e b) a transição política de tais regimes à democracia. O primeiro período foi marcado por inúmeras violações de direitos e liberdades, bem como por execuções sumárias, desaparecimentos forçados, torturas, prisões ilegais, perseguições políticas, abolições de certos tipos de liberdades, entre outros. No segundo período, mesmo que os países latino-americanos tenham abolido o regime ditatorial, ainda se tenta consolidar o efetivo respeito aos direitos humanos, haja vista que a região é marcada tanto pelo elevado grau de desigualdade social, quanto pela cultura de violência e impunidade no âmbito doméstico.109 Com o advento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) em 1978, dos onze Estados que ratificaram a Convenção na época, menos da metade possuíam governos eleitos de forma democrática. Dessa forma, a dificuldade encontrada no sistema interamericano era lidar com o paradoxo de ser instituído em um período em que havia o regime ditatorial que não possuía abertura para a tríade “Democracia - Estado de Direito - Direitos Humanos”.110 É nesse sentido que as semelhanças culturais fazem com que a vertente constitucionalista nos Estados da América Latina se assemelhe. Isso porque, a história comum dos povos colonizados na América reflete traços significativos nas culturas. O Estado [na América Latina] surge, nesse sentido, como instrumento de imposição de uma cultura às demais, como local para a concretização de um planejamento moderno, que ia desde o reconhecimento de direitos jurídicos e políticos aos 108

HÄBERLE, Peter. El estado constitucional. Traducción de Héctor Fix-Fierro. Distrito Federal: Universidad Autónoma de México, 2003, p. 75. 109 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 123-124. 110 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e diálogo entre jurisdições. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC, n. 19, jan-jun, 2012, pp. 67-93.

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Sistema interamericano de direitos humanos... diferentes que aceirassem o julgo europeu, enquadrando-se como “cidadãos”, às práticas de etnocídio e epistemocídio111.

Os Estados latino-americanos, em sua maioria foram explorados e viram suas riquezas serem levadas à Coroa Europeia, tiveram seus povos indígenas massacrados, domados ou escravizados.112 Este cenário começa a se modificar no final do século XX, refletindo no constitucionalismo latino-americano. Durante este período, “a América Latina passa por um novo processo constitucional que busca superar não apenas os problemas dos paradigmas social e liberal, mas também que busca superar o ranço autoritário que lhe marcou”113. O chamado “novo” constitucionalismo latino-americano tem por objetivo priorizar as construções teóricas que contemplam as pretensões histórico-jurídicas da região, e não meramente buscar a reprodução da cultura eurocêntrica repleta de ambiguidades. Esta nova versão do constitucionalismo deriva da identidade sul americana caracterizada pelas comunidades indígenas e dos povos originários da região dos Andes, os quais fazem com que o estereótipo de “inferioridade” dos povos colonizados seja definitivamente substituído. 114 Pode-se dizer que a primeira etapa de reformas constitucionais visando aproximar-se de um constitucionalismo latino-americano deu-se com o constitucionalismo pluralista, do final dos anos 80 e ao longo dos anos 90, com as Constituições brasileira (1988) e colombiana (1991).115 111

SILVA, Heleno Florindo da. Teoria do estado plurinacional: o novo constitucionalismo latino-americano e os direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2014, p.46. 112 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da personalidade: disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 28. 113 BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Os desafios da justiça brasileira frente ao novo constitucionalismo latino-americano: diversidade e minorias. In: MORAIS, Jose Luis Bolzan de; BARROS, Flaviane de Magalhães. (Orgs.). Novo constitucionalismo latino-americano: o debate sobre novos sistemas de justiça, ativismo judicial e formação de juízes. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014, p. 121. 114 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 10. 115 Ibidem, p. 30.

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Na sequência, adveio a Constituição da Venezuela com a constituição de 1999, que foi o exemplo mais rotundo deste novo fenômeno observado na América Latina, que passou a ser chamado de “novo constitucionalismo latino-americano”.116 Por fim, a terceira e última etapa deste constitucionalismo veio com as constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) 117. Para Samantha Ribeiro Meyer-Pflug, é possível identificar alguns elementos de um direito constitucional comum na América Latina, tais como: [...] a) direitos humanos como princípios; b) supremacia da Constituição; c) estados democráticos de direito; d) jurisdição constitucional; e) proteção às minorias culturais e étnicas; f) desenvolvimento da educação com vistas a erradicar o analfabetismo; g) um tribunal constitucional que auxilie nesse processo de integração; h) processo de recepção dos tratados internacionais expresso nos textos constitucionais; i) criação de uma esfera pública comum e proteção e promoção da arte, da cultura e do meio ambiente; j) paulatina integração econômica; k) separação dos poderes.118

Melo afirma que, nas últimas três décadas, sob o impulso dos movimentos de “abertura democrática” percebe-se, indubitavelmente, uma nova fase da história constitucional e política na América Latina, caracterizada por sistemas orientados à tutelar os direitos fundamentais.119 Nesse sentido, é possível afirmar que:

116

PASTOR, Roberto Viciano; DALMAU, Rúben Martinez. O Processo Constituinte venezuelano no marco do novo constitucionalismo latino-americano. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 53. 117 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 32. 118 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. A internacionalização do direito constitucional brasileiro. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (Coord.). Direito constitucional e internacional dos direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 280. 119 MELO, Milena Petters. As recentes evoluções do constituicionalismo na América Latina: neoconstitucionalismo?. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 59-60.

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[...] já no final dos anos 90 o constitucionalismo latinoamericano se caracterizava por uma difusa adesão à forma de Estado Constitucional, social e democrático de direito, radicada na ideia de força normativa da Constituição, que supera a concepção semântica da Constituição, como documento predominantemente político e programático e propende pela sua imediata e direta aplicação120.

O Estado passou a ocupar uma perspectiva diferenciada dentro deste novo constitucionalismo latino-americano. Isso porque, o Estado democrático de direito é um paradigma de administração, planificação e promoção da vida social – que encontra os seus delineamentos, de forma e conteúdo, na positividade da constituição, na tutela dos direitos humanos e dos direitos fundamentais e na promoção da justiça social, do desenvolvimento e do pluralismo democrático, e não um modelo de Estado abstrato.121 Canotilho afirma que O problema central do constitucionalismo moderno é, porém, o de se poder transformar numa aporia científica e numa ilusão político-constitucional, pelo facto de assentarem – e viverem de – pressupostos estatais que o Estado não pode garantir. Em palavras luhmannianas: as constituições dos Estados deixarão de desempenhar a sua função quando não conseguirem estabilizar as expectativas normativas122.

Para Wolkmer, A constituição não deve ser tão somente uma matriz geradora de processos políticos, mas uma resultante de correlações de forças e de lutas sociais em um dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade. Enquanto pacto político que expressa a pluralidade, ela materializa uma forma de poder que se legitima pela convivência e coexistência de concepções divergentes, diversas e participativas123. 120

Ibidem, p. 71. Ibidem. 122 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 27-28. 123 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, 121

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Wolkmer aduz que a constituição em si não só disciplina e limita o exercício do poder institucional, mas também busca compor as bases de uma organização social e cultural. A norma constitucional deve ainda, reconhecer e garantir os direitos conquistados por seus cidadãos, materializando o quadro real das forças sociais hegemônicas e das forças não dominantes.124. Assim, pode-se afirmar que a Constituição de um Estado congrega e reflete seu pluralismo. É nesse sentido que surge o constitucionalismo latino-americano e o Estado Plurinacional verificado atualmente na América Latina. O constitucionalismo latino-americano surge uma vez que ainda hoje os movimentos neoconstitucionalistas, partindo da mesma lógica constitucional do Estado nacional moderno, não conseguem resolver os problemas inerentes a diversidade cultural existente dentro de uma mesma sociedade [...].125

Essa diversidade, originária de inúmeros fatores culturais e sociais, como os explanados neste estudo, coloca “em xeque” conceitos que foram forjados para serem as bases do Estado nacional na modernidade (nação, soberania, democracia, cidadania, identidade, e outros), deflagra a impotência desse paradigma moderno em dar respostas satisfatórias aos anseios sociais. 126 Assim, o paradigma moderno, de matiz liberal, capitalista, europeizado, de Estado não responde mais – se é que algum dia já respondeu – às necessidades inerentes à pluralidade epistemológico-cultural que vivencia-se na sociedade global e na sociedade latinoamericana.127 Nesse contexto surge o novo constitucionalismo LatinoAmericano,

Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 19. 124 Ibidem, p. 20. 125 SILVA, Heleno Florindo da. Teoria do estado plurinacional: o novo constitucionalismo latino-americano e os direitos humanos. Curitiba: Juruá, 2014, p. 22. 126 Ibidem. 127 Ibidem, p. 24-25.

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Sistema interamericano de direitos humanos... [..] que emerge junto ao Estado Plurinacional, promove um diálogo entre o Eu/Nós e os Eles/Outros não por mecanismos de reconhecimento por aquilo que o Eles tem de igual ao Nós, mas por aquilo que o Eles tem em si, ou seja, por aquilo que lhes caracterizam enquanto diferente – uma identidade cultural128.

Esse novo constitucionalismo latino-americano, também denominado de constitucionalismo andino, plurinacional ou transformador, é marcado pela proteção aos povos originários e pelos direitos aos bens comuns.129 As Constituições mais recentes que vislumbram esse novo constitucionalismo latino-americano, como do Equador e da Bolívia trazem uma série de inovações. Dentre elas, pode-se citar a consagração de direitos acerca da biodiversidade e recursos naturais, tidos como direitos próprios da natureza e direito ao desenvolvimento do bem viver, garantidos pela Constituição equatoriana. A Constituição Equatoriana rompe com a tradição constitucional clássica do Ocidente que atribui aos seres humanos a fonte exclusiva de direitos subjetivos e direitos fundamentais para introduzir a natureza como sujeito de direitos130. O direito ao bem viver, por sua vez, traduz-se em uma vida harmoniosa entre todas as comunidades humanas e a natureza. Em outras palavras, trata-se de ver a natureza não como um objeto, mas como um espaço de vida, expressando uma visão integral da convivência humana e social com a natureza, da justiça com o meio ambiente. Assim, não há como ter um direito do bem viver sem que haja uma natureza – ou Pachamama – protegida e conservada.131 Já a Constituição boliviana prevê direitos como o igualitarismo jurisdicional entre a jurisdição ordinária e a indígena; consagra o direito ao diálogo intercultural; e, quanto ao direito aos bens comuns, consagra direitos como o direito ao 128

Ibidem, p. 30. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo crítico e perspectivas para um novo constitucionalismo na América Latina. In: WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters. (Orgs.). Constitucionalismo latino-americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 29. 130 Ibidem, p. 33. 131 Ibidem, p. 35. 129

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meio ambiente saudável, proteção e conservação dos recursos naturais, subsolo, terra, biodiversidade, entre outros. Assim, pode-se concluir que, nos primórdios, no tempo da colonização da América, os modelos de Estados latinoamericanos nasceram a partir da sobreposição de uma cultura – a europeia – sobre as demais. Houve a imposição de uma vontade, de um querer, de um modelo de sociedade, entendida como a única possível. E, a partir dessas características e perspectivas sociopolíticas, que os Estados latino-americanos insurgem-se em busca da construção de um constitucionalismo representativo de seu povo e suas culturas.

2 TENDÊNCIAS DO CONSTITUCIONALISMO GLOBAL

O cenário que se instaurou pós Segunda Guerra Mundial fez com que se buscasse um ambiente baseado na paz, na harmonia e na proteção mais efetiva dos direitos das pessoas, principalmente aqueles ligados à sua personalidade. Com isso, emergiu a necessidade premente de cooperação internacional para alcançar interesses comuns, e neste contexto, começou a se delinear o fenômeno da globalização. Com o passar dos anos, houve o fortalecimento da globalização e das relações internacionais, e consequentemente, do direito internacional. Em um contexto atual, em razão da globalização e da modificação do cenário mundial, vive-se uma crise no Estado nacional à medida que as organizações supra-estatais ganham força. Ferrajoli aduz que se estabeleceu juntamente com estas mudanças, um quadro em que a globalização causa um “vazio de direito público internacional”, devendo se repensar a ordem internacional a partir dessas premissas: A crise do Estado nacional e o déficit de democracia e do Estado de direito que caracterizam os novos poderes extra e supra-estatais não exigem repensar apenas o Estado, mas também, e diria que inclusive mais, a ordem (ou desordem) internacional; ou melhor, repensar o Estado dentro da nova ordem internacional e repensar a ordem internacional sobre a base da crise do Estado. Repensar a ordem internacional quer dizer dar-se conta da ausência de uma esfera pública internacional à altura dos novos poderes extra e supraestatais, entendendo como “esfera pública” o conjunto das instituições e das funções que estão destinadas à tutela de interesses gerais, como a paz, a segurança e os direitos fundamentais e que formam, portanto, o espaço e o pressuposto tanto da política como da democracia.147 “La criris del Estado nacional y el déficit de democracia y de Estado de derecho que caracteriza a los nuevos poderes extra y supraestatales, nos pbligan a termatizar, junto a la crisis del Estado, el orden (y el desorden) internacional; o mejor dicho, a redefinir al Estado dentro del nuevo orden internacional y redefinir el orden internacional sobre la base de la crisis del 147

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Em outras palavras, este vazio significaria que há uma falta de regras, limites e vínculos que garantam a paz e os direitos humanos – e dentre eles, os direitos da personalidade – diante dos novos poderes transnacionais, tanto públicos quanto privados, que destronaram os velhos poderes estatais ou que perderam o seu papel de governo e de controle. 148 Estas mudanças trazem um problema de direito constitucional, vez que Canotilho 149 explica que a questão atual que se coloca à Constituição e ao direito constitucional é saber se pode-se continuar a considerar adequado um conceito de Constituição nos moldes de Luhmann, qual seja, pura e simplesmente como um horizonte de sentido dotado de instruções para uso suficiente de prática. A tese de Luhmann é a de que, o conceito de Constituição é simplesmente uma reação à diferenciação entre direito e política, ou, em outras palavras, à total separação de ambos os sistemas de funções e à consequente necessidade de uma religação entre eles.150 Ademais afirma que a Constituição Estado. Y redefinir el ordem internacional significa tomar consciência de la ausência de uma esfera pública internacional a la altura de los nuevos poderes extra y supraestatales: entendiéndose por “esfera pública” al conjunto de las instituciones y funciones a cargo dela seguridade y los derechos fundamentales, ya que forman el espacio y la premissa tanto de la política quanto de la democracia.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, pp. 116-117. 148 FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, p. 117. 149 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p.190. 150 LUHMANN, Niklas. A constituição como Aquisição Evolutiva. Tradução realizada a partir do original (“Verfassung als evolutionäre Errungenschaft”. In: Rechthistorisches Journal . Vol. IX, 1990, pp. 176 a 220), cotejada com a tradução italiana de F. Fiore (“La costituzione come acquisizione evolutiva”. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il Futuro della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996), por Menelick de Carvalho Netto, Giancarlo Corsi e Raffaele De Giorgi. Notas de rodapé traduzidas da versão em italiano por Paulo Sávio Peixoto Maia (texto não revisado pelo tradutor), p. 04.

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deve ser entendida como “uma inovação de origem política no interior do próprio sistema do direito”151. O autor explica que pode haver confusão ao se pensar que, no passado, havia a ideia apenas de leis particularmente importante e fundamentais, mas não a ideia de que houvesse uma lei que serviria de medida da conformidade ou nãoconformidade ao direito de todas as outras leis e atos jurídicos. Essa posição particular, entretanto, somente adveio após a Declaração da Independência Americana de 1776. 152 Nesse sentido, Canotilho afirma que o “risco de a Constituição não estar em condições de continuar a ser compreendida como estatuto jurídico do político torna-se agora indisfarçável”153. E continua explicando que “mesmo que haja um Legal Transplant154 da ideia constitucional a nível global, nem por isso a Constituição poderá aspirar a ser mais do que é: um texto útil para direitos e políticas simbólicas”155. Ferrajoli concorda que há um problema de salvaguarda dos direitos dos indivíduos a nível global, uma vez que, segundo ele, o mundo vive atualmente à mercê de um “vazio de direito público internacional”. A falta de uma esfera pública internacional no sentido aqui definido é a grande lacuna dramaticamente revelada pelas tragédias desses anos: pelas guerras, por tantos crimes contra a humanidade, pelo crescimento das desigualdades e pelas devastações ambientais. À crise dos Estados e, portanto, ao papel das esferas públicas nacionais, não correspondeu a construção de uma esfera pública à altura dos processos de globalização em curso. Faltam, ou são de todo débeis, não somente as garantias dos direitos solenemente proclamados, ou seja, a previsão de proibições e obrigações a eles correspondentes, mas também as instituições internacionais dedicadas às funções de garantia, quer dizer, à salvaguarda

151

Ibidem, p. 06. Ibidem. 153 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 190. 154 Traduzido de forma livre como um transplante legal/legitimado. 155 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 190. 152

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da paz, à mediação dos conflitos, à regulação do mercado e à tutela dos direitos e dos bens fundamentais de todos156.

Pode-se notar a preocupação do autor quanto à questão da efetividade do direito internacional, de modo que se difere do direito interno, principalmente porque este tem formas de imposição, e possui coercibilidade, enquanto que aquele se funda na voluntariedade dos Estados. Em outras palavras, o direito interno dos Estados possui meios de coação, meios de ser respeitado, e, o direito internacional é uma jurisdição voluntária, isto é, os Estados não são obrigados a se submeterem às suas normas, a não ser que seja de sua livre vontade fazê-lo. E, uma vez submetidos à uma jurisdição internacional, o Estado fica vinculado e pode ser repreendido por meio de embargos econômicos, dentre outras sanções. Nesse contexto, deve-se repensar a ordem internacional, em um cenário em que a globalização gerou efeitos tão significativos. O que se percebe é que o direito constitucional se viu obrigado a andar conjuntamente com o direito internacional, conforme assevera Canotilho: No mundo globalizado, [...] a “eticização” do discurso constitucional andaria a par com a eticização do direito internacional e possibilitaria a observação e valoração da política – interna e externa – lá onde ela pudesse ferir o

“Por lo tanto, es la falta de una esfera pública internacional en el sentido antes definido, la gran laguna dramáticamente subrayada por las tragédias de estos años: las guerras, los muchos crímenes contra la humanidad, el crecimiento de las desigualdades, las de vastaciones ambientales. A la crisis de los Estados, y por consiguien te del papel de las esferas públicas nacionales, no le correspondió la construcción de una esfera pública a la altura de los procesos de globalización que se están verificando. Faltan, o son muy débiles, no só lo las garantías de los derechos proclamados incluso solemnemente, o sea la previsión de las prohibiciones y de las obligaciones que a éstos corresponden, pero faltan sobretodo las instituciones internacionales encargadas de las funciones de garantía, es decir, de la protección de la paz, de la mediación de los conflictos, de la regulación del mercado y de la tutela de los derechos y de los bienes fundamentales de todos.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, p. 118 156

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Sistema interamericano de direitos humanos... inviolated level157 de qualquer acção político-comunitária (genocídio, grave violação dos direitos humanos)158.

A preocupação de Ferrajoli é a de que este “vazio de direito público internacional”, defendido por ele, ocasione a longo prazo “uma espiral sem controle de guerras, de violências e de terrorismo que colocam em perigo a sobrevivência mesma de nossas democracias”159. Diante desta problemática, tentou-se conduzir este estudo de modo a encontrar uma solução para este “vazio de direito público”. Primeiramente, deve-se modificar o direito constitucional, para o fim de que o constitucionalismo se adapte ao cenário jurídico global verificado atualmente. Canotilho afirma que o problema é que, o direito constitucional, no mundo atual, tornou-se vítima de vários positivismos. Do positivismo normativista, em primeiro lugar. O resultado disto foi a marginalização da Constituição face aos “Códigos”, continuando a velha ideia do direito constitucional como direito programático ou como direito da organização do poder, ou a aplicação acrítica de cânones interpretativos pouco operativos em face de normas tendencialmente principais160.

157

Pode ser traduzido como nível inviolável da ações dos países. CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 191-192. 159 “Éste es, precisamente, el enorme y dramático problema que actualmente tenemos frente a nosotros. De hecho, creo que este vacío de derecho público – en una sociedad global cada vez más frágil e interdependiente – no se puede sostener por mucho tiempo sin ir hacia un futuro de guerras, violencia y terrorismo que pondría en peligro la supervivencia de nuestras mismas democracias.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, p. 121. 160 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 163-164. 158

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O direito constitucional é muito mais do que mero direito programático. Essa era a visão das constituições dirigentes 161, explica Canotilho. Como exemplo de constituições com textos carregados de programaticidade, tem-se desde a velha Constituição Mexicana de 1917, até à Constituição Brasileira de 1988, passando pela magna Carta Portuguesa de 1976. Este tipo de constituição estão sendo alvo de muitos escárnios e maldizeres162. O constitucionalista português explica que “[...] os olhares políticos, doutrinários e teoréticos [...] não se cansam de proclamar a falência dos “códigos dirigentes” num mundo caracterizado pela conjuntura, a circularidade, os particularismos e os riscos”163. Isso porque, estas constituições “dirigentes”, também conhecidas como constituições programático-estatais, fizeram com que o Estado se tornasse o “homem de direção” exclusiva (ou quase exclusiva) da sociedade e converteram o direito em instrumento funcional dessa direção164. Neste cenário, “[...] o dirigismo normativo-constitucional repousa no dogma “Estado Soberano”, constituindo a “soberania constitucional” um corolário lógico deste mesmo dogma”165. E sabe-se que, no mundo em que se vive atualmente, a soberania estatal não ocupa mais o mesmo espaço que ocupava no passado, graças a diversos fatores, dentre eles, a globalização. Jean Bodin166 foi o primeiro autor a dar um tratamento sistematizado à soberania e definiu-a como um poder perpétuo

161

Segundo Canotilho, as constituições dirigentes, também denominadas como constituições programático-estatais são aquelas que fazem do Estado a “homem de direção” exclusiva, ou seja, todas as atribuições político, econômicas e sociais devem ser de responsabilidade do Estado. 162 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 104. 163 Ibidem, p. 105. 164 Ibidem, p. 107. 165 Ibidem, p. 109. 166 Antes de Bodin, as obras do teólogo espanhol Francisco de Vitoria (1483 a 1546) traziam a tese da ordem mundial como communitas orbis, ou seja, como sociedades de repúblicas ou Estados Soberanos, igualmente livres e independentes, na qual estavam englobados não apenas os Estados cristãos, mas também todas as sociedades humanas organizadas. A ideia de Soberania de Vitoria era a dos Estados como sujeitos externamente a um mesmo direito das gentes e internamente às leis constitucionais que eles mesmos se deram.

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tem como únicas limitações a lei divina e a lei natural. A soberania era, para ele, absoluta dentro dos limites estabelecidos por essas leis. Além disso, Bodin foi o primeiro a dar a real importância da soberania na formação do Estado Moderno, fixando sua natureza, essência e fundamento. Acreditava ainda, que a soberania era o poder absoluto dentro de um governo, e através deste poder supremo, o Estado possuía autorização para dar as leis, anulá-las e interpretá-las, sem limitações e obstáculos. A soberania pode ser entendida “como a qualidade que o Estado possui, na esfera de sua competência jurídica, de ser supremo, independente e definitivo, dispondo, portanto, de decisões ditadas em último grau pela sua própria vontade” 167. Em outras palavras, a soberania passa a ser a negação de toda subordinação ou limitação do Estado por qualquer outro poder. Há quem a defenda como um conceito que advém da fusão de estudos de Ciência Jurídica, Política e Economia. Para ele, a soberania é “um conjunto autônomo de princípios jurídicos, de regras e institutos sociais e políticos justificadores do poder nacional”168. Analisando os conceitos produzidos pela doutrina, percebe-se que a soberania está, de uma forma ou outra, ligada à ideia de supremacia, independência, de não limitação de poder e de não subordinação, que se transcreve pelos princípios jurídicos e pelos institutos sociais e políticos que cada Estado se utiliza. Assim, Norberto Bobbio afirma que, [...] o conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra este poder supremo, exclusivo e não derivado.169 In: FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes. 2007, p. 5. 167 MENEZES, Anderson de. Teoria geral do estado. Rio de Janeiro: Forense, 1993.p. 149. 168 LEAL, Rosemiro Pereira. Soberania e mercado mundial: a crise jurídica das economias nacionais. 2. ed. São Paulo: LED, 1999.p. 22. 169 MATTEUCCI, Nicola. O eclipse da soberania. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Trad. Carmen Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira. Brasília: UnB, 1998, v.1, p.1179.

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Bobbio acredita, ainda, que, este conceito está intimamente ligado ao Poder Político, pois, evidentemente, a soberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, ou seja, a transformação do que não se é certo, não está formalizado, caracterizado pelo poder de fato, em poder legítimo ou de direito. Conforme entende Paulo Bonavides, o conceito de soberania, como qualquer outro conceito, passou por desdobramentos e por uma minuciosa revisão. Ainda segundo o mesmo autor, há juristas, doutrinadores e pensadores que acreditam que é um conceito em declínio. Atualmente, este tipo de ideologia pesa mais nas relações existentes entre os Estados e não mais em relação ao próprio sentimento nacional de soberania.170

O que ocorre é uma mudança no conceito e na apresentação da soberania clássica tal qual era conhecida. Outra razão pela qual o conceito de soberania nacional vem sendo modificado, é a constante necessidade e a pressão mundial que os Estados vêm sofrendo para que se crie uma ordem internacional, vindo essa ordem a ter um primado sobre a ordem nacional. Canotilho afirma que as fronteiras entre o direito constitucional e o direito internacional estreitaram-se a tal ponto que hoje se trata do direito constitucional internacional e do direito internacional constitucional171. Assim, o conceito clássico de soberania está hoje submetido a um processo de questionamentos que apresentam dupla origem: uma de âmbito supranacional e outra infranacional.172 O que significa dizer que a soberania clássica, como já se observou, expressa a ideia de não ser delegada de nenhuma fonte, e sim origina-se nela mesma, caracterizando-se como um poder supremo. Verifica-se que atualmente, este conceito está sob questionamento, por um lado, pela existência de uma ordem 170

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p.133. 171 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 285. 172 DIAS, Reinaldo. Ciência política. 1.ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.123.

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internacional que vem limitando os poderes dos Estados; e, por outro lado, pela crescente importância de outros atores políticos que até então, não possuíam grande destaque, como organizações não governamentais e empresas. Paulo Bonavides sustenta que os internacionalistas são adversos a esta soberania clássica, pois os mesmos a enxergam como obstáculo para a realização de uma comunidade internacional, à passagem do direito internacional, de um direito de bases meramente contratuais, com fundamentos de direito natural, a um direito que se pudesse, coercitivamente, impor a todos os Estados.173 Enfim, na era da globalização, o conceito e a aplicação do termo “soberania” vem sendo modificado. De fato, este conceito foi vítima de diversas mudanças provocadas pela inconstante dinâmica da vida na sociedade moderna. Com a intensificação do fenômeno da globalização, as fronteiras e capacidade de ação do Estado vêm sendo suplantadas pela dinâmica das relações internacionais. Sendo assim, a consequência gerada é a restrição ou limitação do seu poder supremo, ou seja, a soberania. 2.1 GLOBALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO Por globalização, tem-se a ação positiva, um processo, um esforço ou ato comissivo para completar um sistema inteiro que dele aproveitará a todos. A essência da globalização é o movimento rápido. O espaço deixou de ser obstáculo e não existem mais fronteiras naturais nem lugares óbvios a ocupar. 174 Teubner, afirma que a globalização deve ser percebida não como uma sociedade que gradativa e paulatinamente movese na direção de integrar-se a uma sociedade mundial, mas sim como uma sociedade mundial que é resultado da crescente abrangência da comunicação que ultrapassa barreiras culturais ou geográficas. Nesta perspectiva, as organizações internas dos

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BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p.133. 174 BAUMANN, Zygmunt. Globalização, as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 85.

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Estados-nações nada mais são do que meras expressões localizadas de uma sociedade mundial.175 Para Zygmunt Bauman, a globalização está na ordem do dia, um termo da moda que se transforma, e, independente do significado atribuído a palavra em si, o inegável é que todos estão sendo globalizados: Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino mediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na mesma medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo “globalizados” – e isso significa basicamente o mesmo para todos.176

Acerca da globalização, Canotilho assevera: A globalização é [...] um processo policêntrico, que envolve vários domínios da atividade (economia, política, tecnologia, militar, cultural, ambiental). O policentrismo explica a função de vários subsistemas autónomos, articulados com a política internacional e em rede com outros subsistemas parciais globais177.

Ao corroborar com o pensamento de Baumann e Canotilho, Ferrajoli também se preocupa com os efeitos da globalização: O efeito mais visível da globalização, na ausência de uma esfera pública mundial, é de fato o crescimento exponencial da desigualdade, signo de um novo racismo que ignora a miséria, a fome, as doenças e a morte de milhões de seres humanos sem valor. É uma desigualdade que não tem precedentes na história. A humanidade é, hoje, em seu conjunto, incomparavelmente mais rica do que no passado. Pior, é também, se se leva em conta as massas exterminadas e crescentes de seres humanos, incomparavelmente mais 175

TEUBNER, Günther. A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico Transnacional. In: Impulso. Revista de Ciências Sociais e Humanas. v. 14, n. 33, jan./abr. 2003, p. 12. 176 BAUMANN, Zygmunt. Globalização, as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 7. 177 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 294-295.

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Sistema interamericano de direitos humanos... pobre. Os homens são certamente, no plano jurídico, incomparavelmente mais iguais do que em qualquer outra época, graças às inumeráveis cartas, Constituições e declarações de direitos. Porém são também incomparavelmente mais desiguais na prática. O “tempo dos direitos”, para utilizar a expressão de Norberto Bobbio, é também o tempo de sua massiva violação e da mais profunda e intolerável desigualdade178.

Duarte, nesse sentido, aduz que: Talvez o maior desafio para uma contextualização atual da noção de soberania seja aquele de conciliar este conceito com a aspiração da comunidade internacional em garantir que a cada cidadão de cada Estado lhe sejam concedidos direitos humanos e que estes sejam respeitados por todos os Estados. O problema reside na busca pela forma como a comunidade internacional pode assegurar o respeito dos direitos humanos em face dos corolários de interdependência e não-intervenção nos assuntos internos de um Estado, naqueles casos em que este não tenha adquirido obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.179

Eis aqui a questão central deste estudo: como resolver este problema? Diante da globalização e da modificação da “El efecto más vistoso de la globalización, en ausencia de una esfera pública mundial, es un crecimiento exponencial de la desigualdad, signo de um nuevo racismo que da por hecho la miseria, el hambre, las en fermedades y la muerte de millones de seres humanos sin valor. Es una desigualdade que no tiene precedentes en la historia. Hoy la humanidad es, en su conjunto, in comparablemente más rica que en el pasado. Pero, si se toman en cuenta las inmensas y crecientes masas de seres humanos, es también incomparablemente más pobre. Los hombres, sobre el plano jurídico, ciertamente son incomparablemente más iguales que en cualquier otra época, gracias a las innumerables cartas, constituciones y declaraciones de derechos. Pero en realidad, son también inmensamente más desiguales en lo concreto. El “tiem po de los derechos”, para usar la expresión de Norberto Bobbio, es también la época de su mayor violación masiva y dela más profunda e intolerable desigualdad.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, pp. 122-123. 179 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 180. 178

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condição da soberania estatal frente ao direito internacional, o interconstitucionalidade se mostra uma alternativa eficaz para o fim de tutelar os direitos dos cidadãos – em especial os direitos da personalidade – em um âmbito internacional? Canotilho traz à análise o seguinte problema, ao asseverar que: [...] mesmo na era da globalização, o problema de constitucionalizar uma ordem política e econômica através do direito continua a residir na assimetria entre a “responsabilidade” imposta pelo Estado de direito democrático no plano político, social e econômico, e as suas reais capacidades de actuação, agora num contexto global crescentemente compressor da modelação jurídico-política estatal em matéria de segurança, de liberdade e do próprio direito180.

Nesse contexto, Duarte afirma que as transformações global ou comunitariamente (pela Comunidade/União Europeia) impostas aos mecanismos estatais culminam em um necessário repensamento do próprio Estado181. Wilson Engelmann sustenta ainda que, apesar das mudanças, o Estado continuará forte e necessário, porque as entidades transnacionais não possuem força para impor sozinhas as suas vontades. Assim, Estado e Constituição jogam um jogo onde aparecem influências externas e realidades internas182. Deve haver conjuntamente, uma reflexão sobre as constituições dos Estados que deverão modificar-se no sentido de fornecer “o conjunto de parâmetros básicos. Isso é o que se pensa em termos de Constituição, como um mecanismo capaz

CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 22. 181 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 16. 182 ENGELMANN, Wilson. A crise constitucional: a linguagem e os direitos humanos como condição de possibilidade para preservar o papel da Constituição no mundo globalizado. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (Org.) O Estado e suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 243. 180

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de lidar com os influxos gerados pela globalização” 183. Alerta-se, no entanto, que as Constituições deverão conter o conteúdo mínimo, ou seja, prever os parâmetros básicos, se tornando um mecanismo flexível para lidar com as inquietações que possam vir a aparecer no mundo globalizado184. Com a globalização e o fortalecimento do direito internacional, e consequentemente, o enfraquecimento do direito interno dos Estados, Ferrajoli sustenta que “desapareceu o nexo democracia-povo e poder de decisão-Estado de direito, tradicionalmente mediado pela representação e pelo primado da lei e da política através da qual a lei se produzia” 185. Com esta afirmação, o autor refere-se à crise inegável e irreversível dos Estados nacionais e de sua soberania, ao fim do monopólio estatal da produção jurídica, o que se vê pela grande quantidade de leis internacionais permeando os diversos ordenamentos jurídicos. Duarte assevera que esta constatação deve servir como um alerta, uma vez que [...] os organismos transnacionais acabam interferindo na produção das normas jurídicas implementadas pelo Estado, Assim, além de não se submeterem às regras comuns, acabam influindo na tomada de decisão sobre o conteúdo do Direito que o Estado deverá tornar obrigatório. Por outro lado, tal situação está demonstrando a necessidade de revisar a concepção acerca de/da Constituição, que não poderá mais

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DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 120. 184 ENGELMANN, Wilson. A crise constitucional: a linguagem e os direitos humanos como condição de possibilidade para preservar o papel da Constituição no mundo globalizado. In: MORAIS, José Luis Bolzan de (Org.) O Estado e suas crises. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 242. 185 “De modo que ha desaparecido el nexo democracia-pueblo y poderes de decisión-Estado de derecho, tradicionalmente mediado por la representación y por la primacía de la ley y de la política queda origen a dicha ley” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, pp. 110-111.

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estar preocupada exclusivamente aos limites territoriais de cada Estado186.

O que se percebe é que o Estado, mesmo que lhe sejam dadas atribuições, tem sua ação prejudicada no âmbito internacional, em um contexto globalmente interligado. Ferrajoli sustenta que, dessa forma, diminuem as possibilidades de controle dos Estados sobre a economia, sempre mais autônoma no mercado global.187 Canotilho, corroborando com o pensamento de Ferrajoli, assevera que o Estado se tornou um “herói local”, uma vez que [...] quem quiser compreender o lugar e o sentido da Constituição terá de apelar para um patriotismo constitucional de inclusividade. Isso significa uma Constituição aberta a outros espaços, aberta a outras pessoas, aberta a outras normas, aberta a conflitos e consensos, aberta à sobreposição experiencial de consensos188.

Nessa conjuntura, bem assinala Duarte Constata-se atualmente como o Estado-nação está perdendo paulatinamente sua capacidade de iniciativa e de controle com respeito às decisões políticas e econômicas que concernem à vida diária dos cidadãos, e que emanam principalmente das entidades financeiros e comerciais189.

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DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 120. 187 FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, p. 116. 188 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p.197. 189 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 108.

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Em meio a esta problemática, Canotilho trata de três temas190 a respeito das discussões sobre o constitucionalismo global: o primeiro deles é o constitucionalismo multilevel – ao qual o autor se refere como interconstitucionalidade; o segundo é a transnacional governance – ou governação transnacional; e o terceiro, o constitucionalismo internético191. Tratar-se- à neste estudo acerca do primeiro e do segundo tema trazidos por Canotilho, ou seja, a hipótese de elaboração de um constitucionalismo regional ou global, e a aplicação do fenômeno da interconstitucionalidade, para abarcar e proteger mais eficazmente os direitos dos cidadãos. 2.2 DA CRIAÇÃO DE UM CONSTITUCIONALISMO GLOBAL Em relação a hipótese de elaboração de um constitucionalismo regional ou global, Ferrajoli propõe o desafio de construir uma esfera pública internacional. [...] a perspectiva de uma extensão às relações internacionais do paradigma do Estado constitucional de direito – em breve, da construção de uma esfera pública mundial – é hoje o principal desafio lançado pela crise do Estado para a razão jurídica e para a razão política192.

CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 261. 191 O constituicionalismo internético não será abordado nesta pesquisa. Ver mais em: CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008. 192 “Creo que la perspectiva de semejante expansión de las relaciones internacionales, del paradigma del Estado constitucional de derecho y de la jurisdicción —en resumen, la creación de una esfera pública mundial— representa hoy el principal reto que plantea la crisis del Estado a la razón jurídica y a la razón política.” (tradução livre) In: FERRAJOLI, Luigi. Democracia, estado de derecho y jurisdicción en la crisis del estado nacional. Conferencia impartida en el Tribunal Electorial del Poder Judicial de la Federación el 22 de mayo de 2003 en el Seminario “Estado de derecho y función judicial”. Disponível em: . Acesso em: 03.jun.2015, p. 131. 190

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As constituições dos Estados “supranacionalizaram-se” ou “internacionalizaram-se”.193 Ou seja, os Estados se integraram em comunidades políticas supranacionais, ou em sistemas políticos internacionais globalmente considerados, como é o caso dos blocos econômicos. Consequentemente, suas constituições tiveram que adaptar-se à esta nova “posição” e flexibilizar-se, aceitando e recepcionando as normas criadas por estes blocos econômicos. Primeiramente, para que qualquer das duas hipóteses que se abordará se torne viável, afirma Canotilho, que os Estados devem lançar mão de qualquer patriotismo constitucional. Isso porque: Qualquer “patriotismo constitucional” será, aqui, um sentimento débil, pois, com a recusa e rejeição, por parte dos Estados, de uma “soberania nacional” e de um “poder soberano exclusivo”, também a magna carta de um país perde uma parte de seu simbolismo, da sua força normativa e do seu papel identificador. A “internacionalização” e a “europeização”, no caso português, e a internacionalização e a “mercosulização”, no contexto do Brasil, tornam evidente a transformação das ordens jurídicas parciais, nas quais as constituições são relegadas para um plano mais modesto de “leis fundamentais regionais”. Mesmo que as constituições continuem a ser simbolicamente a magna carta da identidade nacional, a sua força normativa terá parcialmente de ceder perante novos fenótipos político-organizatórios, e adequar-se, no plano político e no plano normativo, aos esquemas regulativos das novas “associações abertas de estados nacionais abertos”194.

O constitucionalista português pretende, com essa assertiva, esclarecer que os Estados devem relativizar sua soberania frente aos novos fenótipos político-organizatórios. Ou seja, nesta comunidade internacionalmente interligada, os Estados devem subordinar-se e adequar-se às normativas

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DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 107. 194 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 109-110.

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internacionais para que o novo sistema funcione da forma pela qual foi criado. Nessa conjuntura que o direito constitucional está inserido num contexto de mundialização econômica, ocasião em que se tornou incapaz de responder eficazmente aos problemas que suscitam.195 Deve haver a substituição da ideologia do constitucionalismo, na qual o Estado Constitucional fundamentou sua estrutura, pela ideologia de Constituição, de onde dificilmente se extraem critérios eficazes contra os demolidores efeitos da globalização. Canotilho expressa sua preocupação com os rumos que o direito constitucional vem tomando, pois aduz que [...] hoje, o direito constitucional corre o risco não apenas de perder a dimensão nuclear de um direito do político para o político, mas também o de ser relegado para um direito residual. Eis, aqui, uma primeira nota da presente récita discursiva: o direito constitucional é um “direito de restos”. “Direito do resto do Estado”, depois da transferência de competências e atribuições deste, a favor de organizações supranacionais (União Europeia, Mercosul). Direito do resto do “nacionalismo jurídico”, depois das consistentes e persistentes internacionalização e globalização terem reduzido o Estado a um simples “herói local”. “Direito dos restos da autoregulação”, depois de os esquemas reguláticos haverem mostrado a eficácia superior da auto-regulação privada e corporativa relativamente à programática estatal196.

Para Bercovici, o que está ocorrendo é uma substituição da Teoria Geral do Estado por uma Teoria da Constituição, em especial a teoria da Constituição Dirigente – de Canotilho – que, para Bercovici, é uma teoria ‘autossuficiente’ da Constituição. Em outras palavras, seria um Teoria da Constituição sem Teoria do Estado e sem política197. Até porque, se se pretende criar um

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GARCÍA, Pedro de Vega. Mundialização e direito constitucional: a crise do princípio democrático no constitucionalismo atual. In: ALMEIDA FILHO, Agassiz; PINTO FILHO, Francisco Bilac Moreira (Orgs.) Constitucionalismo e Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 498. 196 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 185. 197 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 119.

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constitucionalismo global, este não teria um Estado correspondente, mas sim, vários Estados envolvidos. Neste sentido, Canotilho aduz que “vários processos referentes à mudança de funções da estatalidade moderna – a internacionalização/globalização e a europeização – obrigam a um repensamento da constituição aberta ao tempo”198. A respeito do tema, Julios-Campuzano199 afirma que Com efeito, os elementos caracterizadores desse paradigma podem ser sintetizados nos seguintes aspectos: em primeiro lugar, a crise do modelo westfaliano das relações horizontais ente Estados; em segundo lugar, a progressiva imperatividade do direito internacional, que redimensiona princípios, valores e regras através de acordos, protocolos e convênios internacionais; e por último, a consagração da dignidade humana como pedra angular de todos os constitucionalismos.200

Dessa forma, tem-se que a globalização e a mudança no constitucionalismo vêm caminhando, nos dias de hoje, de modo a culminar em uma nova dimensão do constitucionalismo que perpassa os âmbitos internos dos Estados. No que se refere à primeira hipótese levantada por Canotilho, com referência à criação de um constitucionalismo transnacional – ou seja, que perpassa os limites territoriais do Estado –, tem-se que os primeiros indícios que demonstravam essa vontade surgiram juntamente com a Carta das Nações Unidas, conforme explica o autor português. Alguns autores procuraram recortar a constituição global de uma forma muito semelhante à utilizada para as constituições internas. É o que se passa com a tentativa de erigir a Carta

CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 27. 199 JULIOS-CAMPUZANO, Alfonso de. La transición paradigmática de la teoria jurídica: el derecho ante la globalización. Madrid: Dykinson, 2009. 200 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 98. 198

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Sistema interamericano de direitos humanos... das Nações Unidas, criada pela international community201 no exercício de um poder político mundialmente legitimado202.

A ideia de um constitucionalismo global evoca a utopia de um Direito cosmopolita, de uma paz perpétua sob um governo mundial assentado no respeito universal dos direitos humanos e na cooperação entre os povos.203 A singularidade da contribuição do filósofo alemão reside em sua fé em uma paz perpétua que se constrói uma vez que a razão tem mais força do que o poder, e a razão [...] condena absolutamente a guerra como procedimento de direito e torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato, que, porém, não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si [...].204

Kant parte do pressuposto que o poder inevitavelmente corrompe o livre julgamento da razão, e que, os dois segredos para a manutenção da paz perpétua são a natureza e a consulta aos filósofos, porque eles são incapazes de perder a razão diante do poder.205 Quanto ao direito cosmopolita em Kant, tem-se que a ideia de uma comunidade universal pacífica, ainda que não seja amigável, de todas as nações da Terra que possam entreter relações que as afetam mutuamente, não parte de um princípio filantrópico – ou ético –, mas de um princípio jurídico206. Sobre a questão, Kant esclarece: Uma constituição segundo o direito cosmopolita (Weltbürgerrecht), enquanto importa considerar os homens e os Estados, na sua relação externa de influência recíproca, como cidadãos de um estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum). Esta divisão não é arbitrária, mas necessária 201

Termo em português: comunidade internacional. CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 286-287. 203 PRIETO SANCHÍS, Luis. Constitucionalismo y glbalización. In: JULIOSCAMPUZANO, Alfonso de (Ed.). Dimensiones jurídicas de la globalización. Madrid: Dykinson, 2007, p. 47. 204 KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1989, p. 40-41. 205 Ibidem, p. 57. 206 KANT, Metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 162. 202

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em relação à ideia da paz perpétua. Pois, se um destes Estados numa relação de influência física com os outros estivesse em estado da natureza, isso implicaria o estado de guerra, de que é justamente nosso propósito libertar-se207.

Essa possível “união” de todas as nações diz respeito a certas leis universais para o possível comércio entre elas, Kant denomina direito cosmopolita. Frisando que, na concepção do filósofo, o direito cosmopolita estaria limitado a condições de hospitalidade universal208. Habermas, ao comentar a ideia de Kant acerca de paz perpétua, sustenta que, esta construção não seria apropriada para nossas experiências históricas. Isso porque, existe um problema do qual Kant não trata, que reside na problemática em garantir a permanência de uma associação de Estados Soberanos sem que haja um caráter próprio de uma instituição semelhante à uma Constituição (da ordem internacional) 209. Essa ideia de paz perpétua começou a permear os textos internacionais em meados de 1940 somente, no período pós Segunda Guerra Mundial. Kant jamais poderia prever um fenômeno como a globalização e seus efeitos, e sendo assim, Habermas aduz que se torna insustentável a ideia de associação de Estados com sua soberania intacta, nos dias atuais. Isso porque, Kant concebeu a associação cosmopolita como uma federação entre Estados e não entre cidadãos do mundo.210 Entretanto, deixando a filosofia de lado por hora, Duarte sustenta que a dialética entre soberania nacional e globalização deve ser o ponto de partida no estudo de um possível constitucionalismo global, uma vez que a problemática entre esses dois conceitos ilustra com precisão o dilema da verificado na ordem internacional: de um lado, o particular, que busca manter a sua própria estrutura interna, e de outro, o universal, que busca derrubar as fronteiras e consolidar uma verdadeira 207

IDEM. Trad. Artur Morão. A Paz Perpétua: um projecto filosófico. Covilhã: LusoSofia Press, 2008, p. 11. 208 IDEM, Metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 194. 209 HABERMAS, Jürgen. La inclusión del otro: estudios de Teoría Política. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo y Gerard Vilar Roca. Barcelona: Paidós, 1999, p. 150-151. 210 Ibidem, p. 163.

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“sociedade global”211. Assim, na opinião de Duarte, seria possível a formação de uma sociedade global. Isso porque, para ele, [...] somente com a criação de um Estado supranacional seria possível encerrar o estado de nações, uma vez que, mediante a transferência da autoridade soberana dos Estados a um modelo de Estado mundial supranacional, estar-se-ia criando estruturas de controle e repreensão das ações dos Estadosnação212.

Duarte defende tal posicionamento com base nas transformações que o Estado constitucional contemporâneo vem sofrendo, pois “têm sido hoje referenciado categoricamente diferentes concepções sobre o contexto em que se encontra o Estado e a busca de sua identidade”213. O autor se refere ao impacto do neoliberalismo, bem como as consequências da globalização sobre a instituição do Estado. Nesse contexto, a política interna de cada Estado passa a ter menor importância diante das ações transnacionais. Assim, [...] nas últimas décadas se desenvolveu um novo âmbito de ação política transnacional. Neste âmbito, atuam, por um lado, os Estados e, por outro, as novas uniões de Estados (UE), os organismos internacionais e as organizações que compõem a nova “sociedade civil global”: uma multidão de atores transnacionais [...]214.

Desse modo, como enfatiza Duarte, o que interessa é verificar como acontece a interação entre os Estados e a miríade de tratados internacionais, acordos e organizações que foram criadas para gerenciar as áreas de atividade transnacional e os problemas globais215. Duarte traz as organizações internacionais e os blocos econômicos como órgão com papéis importantes neste cenário:

211

DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 99. 212 Ibidem, p. 99-100. 213 Ibidem, p. 107. 214 Ibidem. 215 Ibidem.

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Com tudo isso, dentro deste contexto se encontram também os organismos quem confiam nos Estados e promovem sua democratização como as instâncias encarregadas de gerar uma sociedade internacional pacífica e que promova a cooperação justa. Em todos estes modelos, as exigências normativas de democratização se situam nos Estados e se desdenha a criação de instituições de governo mundial que estejam por cima deles (ou das uniões de Estados, como a União Europeia). As instituições propostas parecem as mais adequadas para fazer a efetiva cooperação mundial, mas obtém sua legitimidade a partir da presença de representantes dos Estados216.

Desse modo, Duarte afirma haver uma relativização do conceito de soberania estatal, que foi iniciada sorrateiramente durante rodo o curso do século XX e agravada nas últimas décadas deste, tem se constituído por uma série de processos que não visam somente uma mera crise decorrente da limitação do poder estatal. Este processo busca remover determinadas prerrogativas que historicamente caracterizam o Estado moderno desde a sua gênese e atribuí-las a agentes que supostamente seriam impessoais ou indefinidos [...] 217. Nesse contexto, Teixeira218 sustenta que, pelo fato de que os Estados não têm a capacidade de atuar direta e fisicamente no território, os fenômenos inerentes ao globalismo político e jurídico aparecem e criam uma série de estruturas pluriestratificadas destinadas a condicionar e envolver os Estados nacionais em políticas públicas globais, tratando de assuntos que incluem temas como a manutenção da paz mundial, desenvolvimento econômico, repreensão ao crime internacional, proteção do meio ambiente e a tutela dos direitos humanos219. Com essas transformações, durante os séculos XIX e XX, foram se formando grandes grupos de integração supranacionais – os blocos econômicos. Dentro deste conceito, encontra-se a denominada “metassoberania” de Zigmunt 216

Ibidem, p. 114. Ibidem, p. 131. 218 TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Teoria pluriversalista do direito internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 138. 219 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 131. 217

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Bauman. Essa metassoberania significaria mais do que uma limitação da soberania clássica do Estado; ela leciona que algumas das prerrogativas próprias da soberania interna e externa do Estado foram transferidas para uma instância supranacional. Isso porque, agora, o Estado deveria se submeter às políticas públicas e econômicas determinadas pelo bloco, e suas alianças políticas teriam de estar condicionadas à “metassoberania” do bloco220. Porém, não se deve esquecer que este novo desenho institucional inerente às relações internacionais na ordem global deve ficar sob o guarda-chuva protetor da legitimidade democrática. Assim, essa tarefa se desdobra em dois compromissos, conforme assevera Duarte: Difícil tarefa que requer um duplo compromisso: a) o desenvolvimento de uma estrutura institucional supraestatal dotada de mecanismos adequados de representação em condições de paridade; b) a abertura do cenário supranacional a novos atores transnacionais, cuja participação nos processos de tomada de decisão pode refletir as demandas, iniciativas e inquietudes de uma sociedade civil transnacional em status nascendi221.

Por outro lado, visão positiva acerca da criação de uma instituição global é trazida por Rosenau, um dos principais teóricos da “governança global”. Ele pensa que [...] o positivo do novo sistema internacional é a presença de múltiplas esferas de poder e de controles que constituem um freio à acumulação e ao abuso de poder e que já estão operando. Por um lado, essas novas esferas de poder contribuem a neutralizar o poder tradicional dos Estados e sua pluralidade (pluriverso político) evitando a potencial concentração em mãos de um centro de poder mundial (o que se vislumbra como uma ameaça).222

220

BAUMANN, Zygmunt. Individualized society. Cambridge: Polity Press, 2001. DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 156. 222 Ibidem, p. 114-115. 221

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Entretanto, Zolo223 afirma que para que houvesse um “Leviatã Constitucional”, três providências se fariam necessárias: 1) uma deslegitimação das entidades políticas existentes, essencialmente dos Estados e a consequente legitimação das atuais instituições internacionais em uma genuína expressão que correspondesse à “sociedade civil global”; 2) uma tendência à homogeneização cultural do planeta; e 3) uma atenuação dos conflitos e desigualdades. Quanto à primeira premissa indicada por Zolo – a de deslegitimação do Estado, entende-se neste estudo que seria praticamente impossível, porque tudo o que se conhece e se tem atualmente tem como centro a figura do Estado. Portanto, seria impossível criar um Estado mundial, tendo como início a desconstituição dos Estados existentes, tendo em vista que, a primeiro, seria um retrocesso ao que se foi conquistado há anos, e a segundo, duvida-se que algum Estado vá concordar com esta ideia e com as consequências advindas dela. Quanto ao ponto dois – a tendência de homogeinização cultural do planeta, tem-se que, atualmente, esta premissa seria de difícil realização. Isso porque, tendo-se como exemplo a Europa, que tem raízes históricas comuns, percebem-se diversas culturas, mais fortemente evidenciada pela separação entre leste e oeste europeu. Ao se comparar a cultura de países como Portugal e Espanha, por exemplo, com a cultura da Rússia ou Ucrânia, quase nada se tem em comum. O que pretende esclarecer com o referido exemplo é que, mesmo entre Estados que se encontram na mesma região, a cultura é significantemente distinta, quão difícil será homogeneizar a cultura do planeta? Por fim, a terceira premissa estabelecida por Zolo – a atenuação de conflitos e das desigualdades, tem-se que, a própria globalização é geradora de conflitos, assim como a divisão que gera o binômio “países desenvolvidos” versus “países subdesenvolvidos”. O que se poderia fazer é fazer é diminuir esses conflitos, mas, isto só seria possível com muito tempo e planejamento. Nesse contexto, salienta-se um ponto negativo:

ZOLO, Danilo. Cosmopólis – Perspectiva y riesgos de um gobierno mundial. Barcelona: Paidós, 2000, p. 181. 223

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Sistema interamericano de direitos humanos... A paulatina instauração de uma ordem global, desigual e injusta que está minando as propostas de justiça social, está levando a teoria jurídica internacionalista mais progressista a uma “releitura constituinte” que baseia o direito internacional, mais que no individualismo e no etnocentrismo, na planetarização das necessidades e exigências de indivíduos e grupos, na busca material de justiça e de solidariedade e na instauração de uma relação circular entre o Estado e a comunidade internacional224.

Canotilho aponta qual a principal crítica ao pensamento de se formar uma sociedade global, ao afirmar que esse tipo de legislação não leva em consideração as diferenças estruturais entre uma sociedade/comunidade estatal e uma sociedade/comunidade internacional e, sobretudo, a nível da organização coletiva, a sua ambiguidade quanto às tomadas de decisão, à organização de interesses e à formação democrática da vontade são questões problemáticas relevantes a se tomar nota225. Continua a explicar o constitucionalista português que, a ideia de Constituição está geralmente associada à ideia de Estado. Dessa forma, em não existindo um “Estado Mundial”, parece ser uma proposta mais aceitável aquela que alguns autores criaram salientando as potencialidades do conceito de constituição global sem Estado mundial226. No entanto, ao se falar em constituição sem Estado, tem-se que alguém deverá substituir o Estado no papel que ele desempenha. Mas, a questão que se levanta é quem substituiria o Estado. Alguns dizem que os vários agentes internacionais fariam as vezes; outros afirmam que seriam as organizações internacionais, as uniões internacionais de trabalhadores ou até mesmo as organizações não governamentais; ainda, aduzem que o indivíduo ganharia status de sujeito internacional, aparecendo como titular de direitos fundamentais e humanos da constituição mundial.

224

DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 183. 225 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 287. 226 Ibidem, p. 288.

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Nesse contexto entra a global governance227, que, teoricamente, estaria mais focada em se preocupar com a eficácia e não com a legitimação deste governo. Além disso, nessa forma de governança, os agentes de governo global não seriam democraticamente legitimados228. O que se pergunta é novamente o questionamento de Ferrajoli, no que se refere à democracia neste contexto de estrutura institucional supraestatal, se existe, como fica o constitucionalismo? Estas são indagações que não se podem responder ainda de forma precisa e certeira. Conclui Duarte, embasado no pensamento de Julios Campuzano que [...] a sobrevivência do constitucionalismo, enquanto compromisso axiológico substantivo diante das investidas no capitalismo global, reclama empenhos supranacionais. A via do cosmopolitismo constitucional não pode manifestar-se apenas na redução da pluralidade em uma homogeneidade artificial e forçada. Não se trata, portanto, de suprimir os complexos ordenamentos jurídicos estatais, mas sim de articular mecanismos válidos de interpretação e interdependência. Diante da velha e ultrapassada imagem da Constituição como ápice de um ordenamento jurídico autárquico e autossuficiente, reivindica-se a Constituição como elemento articulador de complexas redes de normas interdependentes, capaz de evitar que as exigências fáticas dos mutantes fluxos normativos transnacionais vulnerem as exigências normativas dos valores constitucionais. Um modelo de Constituição baseado na interdependência, e não sobre a autarquia do sistema jurídico, e que recupere os espaços públicos para a cidadania mediante reformas institucionais que façam efetiva a vigência do princípio democrático229. [Grifo nosso]

Estes autores concluem que, o mais sensato seria articular mecanismos válidos de interpretação e

227

Tradução livre do termo: governança global. CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 293. 229 DUARTE, Écio Oto Ramos. Entre constitucionalismo cosmopolita e pluriversalismo internacional: neoconstitucionalismo e ordem mundial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157. 228

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interdependência, em contrapartida à criação de um constitucionalismo global, o que parece inviável no momento. O que resolveria o problema, na opinião deles seria utilizar das constituições como mecanismos articuladores de redes complexas de normas interdependentes. Certamente, existem diversas opiniões acerca do tema de governança global, entretanto, o que se percebe é que, no âmbito dos sistemas sociais globais, se vislumbra o incrementalismo de normas constitucionais. Ou seja, o mais comum é que se utilize o ordenamento interno em conjunto com as normas internacionais para se vislumbrar a solução para o caso concreto. Nesse ponto, chegamos ao segundo – e principal – tema tratado nesta pesquisa: a interconstitucionalidade de Canotilho.

2.3 INTERCONSTITUCIONALIDADE E TRANSCONSTITUCIONALISMO Destarte, precisa-se compreender do que se trata o fenômeno da interconstitucionalidade proposto por Canotilho, para que se possa, posteriormente, verificar sua ocorrência. A proposta trazida por Canotilho refere-se a um processo de construção do constitucionalismo europeu que deve ser estudado a partir de uma teoria de interconstitucionalidade. Esta teoria, a princípio, estuda as relações interconstitucionais de concorrência, convergência, justaposição e conflitos de várias constituições e de vários poderes constituintes no mesmo espaço político.230 O constitucionalista português explica que o fenômeno da interconstitucionalidade já teve precedentes tanto na ordem jurídica medieval quanto na articulação da Constituição Federal em consonância com as constituições estatais. 231 Na época medieval podia-se observar a convivência de diversas ordens jurídicas ao mesmo tempo em um só território ou região. Da mesma maneira, quando se observa a interrelação entre as constituições estatais – de um Estado federativo CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, pp. 265-266. 231 Ibidem, p. 266. 230

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– em detrimento da Constituição Federal, há um entrelaçamento, bem como uma justaposição entre ordens jurídicas – neste caso, de ordem constitucional sobre ordem infra-constitucional. Nestes Estados compostos, como é o caso do Brasil, está sempre presente a articulação dos seguintes princípios: o princípio da sobreposição de ordens jurídicas, o princípio da autonomia das unidades integrantes e o princípio da participação no poder central.232 A sobreposição de ordens jurídicas diz respeito à sobreposição da ordem constitucional sobre a ordem infraconstitucional. A autonomia das unidades integrantes é vislumbrada uma vez que os Estados podem elaborar suas constituições estatais. E o princípio da participação do poder central se traduz em duas premissas: a primeira delas diz respeito à delegação de poder do poder central para os periféricos – no caso os Estados. E, a segunda é a de que as constituições estatais devem obedecer o princípio da supremacia da constituição – ou seja, não se pode ter norma na constituição estatal que contradiga a constituição federal. Nesse contexto, pode-se afirmar inicialmente, que o interconstitucionalidade não é um fenômeno que surgiu no Século XXI. Pelo contrário, teve suas origens nos ordenamentos medievais. No entanto, o interconstitucionalidade que se trata neste estudo é aquele que se percebe nos moldes atuais de concorrência, convergência e conflitos entre diversos poderes constituintes convivendo no mesmo espaço político. A teoria da interconstitucionalidade enfrenta, dentre outros problemas, o da articulação entre constituições e da afirmação de poderes constituintes com fontes e legitimidades diversas233. Para melhor entender este fenômeno, tem-se que estudar seus elementos básicos. O primeiro deles é a autodescrição, que significa dizer que “autodescritivamente, os textos constitucionais nacionais conservam a memória e a identidade política e, quando inseridos numa rede interconstitucional, assumem-se sempre como autoreferência”234.

232

Ibidem, pp. 266-267. Ibidem, pp. 267-268. 234 Ibidem, p. 269. 233

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Em outras palavras, as constituições dos Estados não desaparecerão, mas, sofrerão mudanças ao serem inseridas no contexto da rede interconstitucional. Isso porque, o Estado deve “obedecer” às normativas internacionais, porém, sem perder sua memória e identidade política. Este caráter autodescritivo faz com que haja a manutenção do valor e da função das constituições estaduais. Canotilho explica esse processo através de uma metáfora, vez que afirma que as constituições dos Estados desceram do “castelo” para a “rede”, mas não perderam as funções identificadoras pelo fato de, agora, estarem interligadas umas com as outras235. Outra característica da interconstitucionalidade é o texto interorganizativo, o que implica na necessidade autodescritiva da organização superior, no caso europeu, da organização da União Europeia236. Em contrapartida ao interconstitucionalidade, Marcelo Neves, no contexto da América Latina, teoriza o transconstitucionalismo, que é caracterizado como uma relação transversal permanente entre ordens jurídicas em torno de problemas constitucionais comuns, como é o caso das questões que envolvem os direitos fundamentais e direitos humanos, por exemplo237. Para isso, o autor traz a ideia de transconstitucionalismo, que não se trata de constitucionalismo internacional, transnacional, supranacional, estatal ou local. O conceito aponta exatamente para o desenvolvimento de problemas jurídicos que perpassam os diversos tipos de ordens jurídicas. Paulo Rangel, explica que a adoção do conceito “transconstitucionalismo” – e não transconstitucionalidade – por Marcelo Neves é intencional, pois evoca o “constitucionalismo” enquanto movimento político e ideológico chamado “movimento constitucional” do século XVIII. Trata-se, pois, de uma remissão para um conceito “material” de constituição, de uma constituição com um conteúdo certo e determinado, que reproduz, com uma linguagem pós-moderna, os direitos fundamentais e a limitação

235

Ibidem, p. 269. Ibidem, p. 270. 237 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. XXI. 236

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do poder previsto no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.238 Rangel sugere o termo “transconstitucionalidade”, pois afirma ser paradoxal “restringir o conceito de constituição no quadro de uma teoria que justamente procura “tratar” e “enquadrar” o fenômeno do pluralismo constitucional, da “articulação das constituições” no espaço global” 239. Ademais, afirma que a ideia de transconstitucionalidade remete a “narrativa de enquadramento” dos novos problemas que se oferecem ao direito constitucional e à teoria da constituição. Apesar de se concordar com Rangel de que o termo “transconstitucionalidade” transmite uma neutralidade narrativa, prestigiar-se-á o constitucionalista brasileiro e autor da teoria, resguardando, neste trabalho, o termo “transconstitucionalismo”. O viés transconstitucionalista de Neves importa na relação de complementaridade entre as inúmeras ordens jurídicas existentes por meio da relação entre identidade e alteridade, no momento em que procuram reconstruir sua identidade por meio do entrelaçamento transconstitucional e rearticular a partir da alteridade. Assim, Neves divide sua teoria de transconstitucionalismo em duas partes: a primeira refere-se ao transconstitucionalismo entre ordens jurídicas, e a segunda trata do transconstitucionalismo em um sistema jurídico mundial de níveis múltiplos. O transconstitucionalismo entre ordens jurídicas consiste em delinear os tipos e formas de relações entre ordens jurídicas diversas. Explica Neves que, “dentro de um mesmo sistema funcional da sociedade mundial moderna, o direito, proliferam ordens jurídicas diferenciadas, subornadas ao mesmo código binário, isto é, “lícito/ilítico” 240”. Neves explica que “essa multiplicidade de ordens diferenciadas no interior do sistema jurídico não implica isolamento recíproco. As relações input/output e de

238

RANGEL, Paulo. Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. In: COSTA, Rui Moura Ramos Carlos et al. 35.º Aniversário da Constituição de 1976. Vol. I. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2012, p. 152. 239 Ibidem, p. 153. 240 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 115.

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interpenetração entre elas não são algo novo” 241. Para ilustrar, cita o caso do Tratado de Westfália, em que houve, de forma inédita, a incorporação de leis internacionais no direito interno dos países. Nesse sentido, Neves fala em “conversação” ou “diálogo” entre Cortes, que podem ser vislumbrados em vários níveis, como por exemplo, o diálogo entre o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (supranacional) e os Tribunais dos Estados-membros. Neves aponta que a peculiaridade do transconstitucionalismo é o fato do autor não abordar somente o entrelaçamento jurídico, mas também o fato de haver um entrelaçamento no plano reflexivo de suas estruturas normativas, não havendo que se falar em hierarquia entre elas. Além disso, afirma que o fenômeno faz emergir uma “fertilização constitucional cruzada”, isto é, as Cortes passam a citar-se, não como precedentes, mas como autoridade persuasiva, promovendo um diálogo constitucional de aprendizagem recíproco242. Portanto, o que caracteriza o transconstitucionalismo entre ordens jurídicas defendido por Neves, é “[...] ser um constitucionalismo relativo a (soluções) e problemas jurídicoconstitucionais que se apresentam simultaneamente a diversas ordens”243. Então, quando se tratar de questões que envolvem direitos fundamentais ou de limitação e controle de um poder ou ainda de direitos humanos que se entrecruzam entre ordens jurídicas diversas, impõe-se a construção das chamadas pontes de transição entre as estruturas reflexivas das respectivas ordens244. Já o transconstitucionalismo multiangular diz respeito a entrelaçamentos transconstitucionais que podem apresentar-se simultaneamente entre ordens estatais, supranacionais, internacionais, transnacionais e locais, sempre que um problema constitucional jurídico for relevante em algum caso245.

241

Ibidem, p. 116. Ibidem, p. 118-119. Ibidem, p. 129. 244 Ibidem, p. 129. 245 Ibidem, p. 238. 242 243

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Neste contexto, Neves cita como exemplo o caso da proibição, por parte da União Europeia, da importação de carnes com tratamento hormonal nos Estados Unidos. Neste caso, a validade da proibição foi alegada válida pela União Europeia, mormente por causa de normas supranacionais de proteção do direito fundamental à saúde, ditadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC). No entanto, os EUA recorreram junto à OMC e tiveram êxito parcial e a UE foi condenada a reparar parte dos danos causados. No caso em comento, Neves afirma que Uma afirmação da irracionalidade da decisão poderia ser apontada a partir de um modelo orientado de forma mais radical no direito à saúde. Mas essa simples afirmação não é suficiente. Fundamental é o envolvimento na rede argumentativa multiangular entre ordens jurídicas, na qual o risco e a incerteza da desilusão são inerentes à complexidade do sistema mundial de níveis múltiplos246.

O que se percebe ao interpretar o exemplo de Neves é que o transconstitucionalismo estudado e teorizado por ele se refere ao entrelaçamento de ordenamentos e normativas de órgãos internacionais, órgãos transnacionais, versus tribunais internos dos Estados, dentre outros. Não se vislumbra hierarquia e uma ordem não deve prevalecer sobre a outra. O que se espera é um diálogo, através das chamadas pontes de transição, entre as ordens constitucionais conflitantes, para que ambas troquem conhecimentos e citem-se umas às outras como forma de precedentes. Assim, tendo comparado as principais características da interconstitucionalidade, bem como do transconstitucionalismo, parece correto afirmar que, o fenômeno da interconstitucionalidade se mostra como uma alternativa mais adequada, em um cenário em que “[...] as decisões dos Estados têm cada vez mais efeitos extraterritoriais, em virtude das interdependências globais. Consequentemente, acabam por vincular, de forma crescente, pessoas diferentes daquelas que participaram na recolha dos titulares da decisão” 247.

246

Ibidem, pp. 239-240. CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 291. 247

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A interconstitucionalidade não envolve nem induz a necessidade de transcender a constituição, ao contrário do que ocorre no transconstitucionalismo, que sugere a ideia de uma superação. A interconstitucionalidade – ao contrário do transconstitucionalismo de vezo luhmanniano – não sai soa cânones da teoria da constituição e, por isso, não tem de abandonar a centralidade de conceito de constituição para, em alternativa. Se concentrar numa dinâmica da “vida constitucional” planetária. Uma teoria da interconstitucionalidade tem, isso sim, de forçar uma renovação do conceito de constituição, de o desligar da referência exclusiva ao modo político estadual e de o abrir ao “mundo-da-vida” pós-vestefaliano. Mas isso será difícil, muito difícil, se nos mantivermos, de corpo e alma, com um conceito liberal ou pós-liberal de constituição.248

A interconstitucionalidade se mostra como uma alternativa mais adequada, isso porque, a ideia central deste estudo não é de criação de um estado supranacional global, mormente por acreditar que não há elementos que constatem a possibilidade dessa hipótese se fazer real no momento. Entretanto, o que se apresenta viável é a apreciação da interconstitucionalidade, fenômeno visível nos ordenamentos jurídicos, em razão do entrelaçamento de ordenamentos por causa da globalização e do fortalecimento do direito internacional. Segundo Paulo Rangel, percebe-se que a constituição tem hoje, como referência a comunidade política e não, como parece pressupor a corrente transconstitucionalista, o Estado. “E, por isso, a constituição já não está presa ao monolitismo territorial e populacional próprio do Estado moderno; pelo contrário, está genericamente aberta ao pulsar da sociedade.” 249 Corroborando com este pensamento, preceitua Canotilho que

248

RANGEL, Paulo. Transconstitucionalismo versus interconstitucionalidade. In: COSTA, Rui Moura Ramos Carlos et al. 35.º Aniversário da Constituição de 1976. Vol. I. Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 2012, p. 156. 249 Ibidem, p. 158.

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[...] claramente se compreendeu que uma sociedade funcionalmente diferenciada é também uma sociedade de organização e das organizações. Ora, as organizações atuam como actores corporativos. [...] Neste contexto, mantêm-se as pretensões de direção do Estado. Mas, com uma grande diferença: em vez do velho “estado heroico”, hierarquicamente intervencionista, deve erguer-se o “Estado pós-heróico” – o Estado supervisor – que, através de uma direção contextualizada (ou seja, através de uma autovinculação), proporciona, mas não determina, as convenções-quadro para a prossecução do bem comum250.

O que o autor português quis dizer é que o Estado deve mudar de figura nessa sociedade internacional, se levantando simplesmente como o supervisor e determinando mormente as normas padrões para sua sociedade. No entanto, ao se tratar da teoria da interconstitucionalidade, tem-se que a mesma não se resume a um problema de interorganizatividade entre os Estados. Ela é também uma teoria de interculturalidade constitucional251. Sabe-se que a questão da diversidade cultural começou a ser tema de interesse dos cientistas sociais a partir do processo de descolonização ocorrido na África, América Latina e Ásia. No relevo atual, passa a ser tema interessante também para os estudiosos do direito constitucional, vez que, a partir de uma interculturalidade é possível a convivência de diversas culturas constitucionais no mesmo espaço. O próprio artigo 98 da Constituição boliviana de 2009 define interculturalidade, ao afirmar que a diversidade cultural constitui a base essencial do Estado Plurinacional Comunitário e que a “interculturalidade é o instrumento para a coesão e a convivência harmônica e equilibrada entre todos os povos e nações. Assim, a interculturalidade terá lugar com respeito às diferenças e na igualdade de condições” 252. CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 147-148. 251 Ibidem, p. 271. 252 “Artículo 98. I. La diversidad cultural constituye la base esencial del Estado Plurinacional Comunitario. La interculturalidad es el instrumento para la cohesión y la convivencia armónica y equilibrada entre todos los pueblos y naciones. La interculturalidad tendrá lugar con respeto a las diferencias y en igualdad de condiciones. II. El Estado asumirá como fortaleza la existencia de culturas 250

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A interculturalidade jurídica pode ser, assim, conceituada como a convivência democrática de diversas ordens constitucionais, desde que permaneçam suas características básicas e sua essência. Neste ponto, é necessário saber a qual cultura estar-seá referindo neste estudo. Ao se falar em cultura transportadora de dimensões interculturais, o melhor conceito de cultura é o defendido por Peter Häberle que vê a cultura em três premissas principais: (1) cultura como mediação daquilo que “foi” num determinado momento (aspecto tradicional); (2) como desenvolvimento do que foi em determinado momento, promovendo a transformação social (aspecto ou dimensão inovadora); (3) cultura como “superconceito” de várias manifestações culturais de um determinado grupo humano (dimensão pluralista)253.

Canclini também conceitua cultura, e a define como “o conjunto de processos através dos quais grupos expressam imaginariamente o social e estruturam as relações com outros grupos, marcando suas diferenças254”. É nesse sentido que se referirá à cultura neste estudo, ou seja, cultura como aquilo que foi em um determinado momento – dogmas tradicionalmente criados – ainda relacionado ao aspecto social, que culmina em um superconceito de cultura, que são as várias manifestações da cultura nos diferentes grupos humanos. Nesse contexto, o fenômeno da globalização tem como efeito de evidenciar a diversidade cultural do mundo, e consequentemente, apontar para a necessidade de diálogo entre estas diferentes civilizações, o que nos leva ao tema principal deste estudo – o interconstitucionalidade, que nada

indígena originario campesinas, depositarias de saberes, conocimientos, valores, espiritualidades y cosmovisiones. III. Será responsabilidad fundamental del Estado preservar, desarrollar, proteger y difundir las culturas existentes en el país.” In: BOLIVIA. Constitución de 2009. Disponível em: . Acesso em: 20.jun2014. 253 HÄBERLE, Peter. Verfassungslehre als Kulturwissenschaft. 2ª ed. 1996, p. 1106. 254 CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguales y desconectados: mapas de la interculturalidade. Barcelona: Gedisa, 2004.

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mais é do que o diálogo e a convivência entre ordens jurídicas constitucionais concomitantes. Na concepção de Peter Haberle, a teoria da constituição como cultura é também um modo teorético de combater posições como o formalismo, estatismo, decisionismo e o positivismo255. Dentro do aspecto da cultura, ao se interligar com a teoria da interconstitucionalidade, surge a interculturalidade comunitária, que nada mais é do que essa convivência de culturas em uma comunidade ou região. No entanto, nas palavras de Canotilho, é possível observar uma dificuldade: “este comunitarismo, mesmo quando considerado moderno, democrático, constitucional, carece de “abertura” para outras culturas constitucionais”256. Canotilho afirma que a interconstitucionalidade pressupõe uma interculturalidade constitucional, que, por sua vez, significa a existência de “redes comunitárias” em que, online, se observam e cruzam em forma de comunitarismo conservador – com os indivíduos, a sua forma de vida, os seus comportamentos, a sua moral, as suas compreensões do bem comum, as suas formas de integração com o indivíduo fortemente enraizado na comunidade – e formas de comunitarismo liberal aberto a formas de vida plurais. Porém, essa rede de interconstitucionalidade enfrenta um problema deveras complexo, que se traduz na articulação de paradigmas de diversos de poderes constituintes257. A interconstitucionalidade sugere ainda intersemioticidade258, no sentido de que este fenômeno se preocupa também com a investigação e descoberta de um conjunto de regras respeitantes à produção e interpretação dos textos constitucionais dos Estados e dos respectivos discursos e práticas sociais com elas relacionados. Assim, se pode afirmar,

255

HÄBERLE, Peter. Verfassungslehre als Kulturwissenschaft. 2ª ed. 1996. CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 273. 257 Ibidem, pp. 274-275. 258 A “semiótica” é a ciência que tem por objeto o exame de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido. 256

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que as Constituições nacionais são dimensões relevantes de uma hermenêutica jurídica europeia259. O que se percebe com esta observação de Canotilho é que a interconstitucionalidade permite a manutenção da identidade dos Estados, e que, suas constituições não agirão mais de forma isolada, mas sim, farão parte de um sistema de hermenêutica jurídica europeia. Carlos Maximiliano explica que hermenêutica nada mais é do que interpretação. Nesse sentido, preocupa-se a Hermenêutica, sobretudo, com o resultado provável de cada interpretação260. Assim, falar que as “Constituições nacionais são dimensões relevantes de uma hermenêutica jurídica europeia” significa que estas constituições servirão como base de interpretação nesse sistema jurídico europeu. Nesse contexto, assevera Canotilho, que a interconstitucionalidade e a interculturalidade abrem espaço para o pluralismo de intérpretes, aberto e racionalmente crítico261. Portanto, diante das duas hipóteses tratadas neste estudo, conclui-se que qualquer juízo de valor sobre o futuro corre o risco de se tratar mormente de uma profecia. O que se buscou neste estudo foi a abordagem cientifica do novo espírito do constitucionalismo. Assim, o interconstitucionalidade pareceu uma alternativa mais viável do que o constitucionalismo global e homogêneo na perspectiva atual. 2.3.1 A ideia da Europa unida Antes de tratar da dinâmica da interconstitucionalidade que se percebe na Europa, deve-se, preliminarmente, traçar algumas considerações acerca do surgimento da União Europeia e entender como este bloco de união econômica, política e jurídica funciona.

CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 277. 260 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 261 CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 279. 259

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A vontade de dotar o continente europeu de estruturas de cooperação capazes de garantir a seguridade coletiva e a prosperidade econômica é anterior às propostas das organizações fundadas após 1945. A ideia da Europa é muita mais antiga e pode-se encontrar muitos de seus traços nos séculos precedentes262. Diversos projetos foram desenvolvidos a fim de estabelecer uma paz perpétua na Europa foram desenvolvidos, como por exemplo, o movimento União Pan-Europeia, liderado pelo Conde Condenhove-Kalergi263, que o propôs em setembro de 1929, com o intuito de criar um laço federal entre os Estados europeus, entretanto, sem êxito264. Nesse sentido, somente em 1946 a ideia da União Europeia foi relançada, desta vez por Wiston Churchill 265, que propunha a criação de uma estrutura regional denominada “Estados Unidos da Europa”. No entanto, somente em 1947, no Congresso da União Europeia dos Federalistas, se vislumbrou a possibilidade de se laçar uma organização europeia supranacional aberta a todos os povos 266. Sob a organização do comitê de coordenação internacional dos movimentos para a unificação da Europa, reúne-se em Haia, em maio de 1948, o Congresso Europeu. Presidido por Winston Churchill e na presença de 800 delegados os participantes recomendam a criação de uma Assembleia deliberativa europeia e de um Conselho Europeu especial

262

RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3074. 263 Richard Nikolaus Coudenhove-Kalergi é considerado um dos precursores e idealizadores da moderna União Europeia. Sua pessoa é glorificada em inúmeras homenagens aos mais diferentes líderes europeus. Todavia, seus escritos nos remetem a um calabouço racial. 264 RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3074. 265 Winston Churchill (1874-1965) foi um estadista britânico. Foi Ministro da Guerra, Ministro da Aeronáutica e Primeiro-Ministro da Inglaterra. 266 RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3074.

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Sistema interamericano de direitos humanos... encarregado de preparar a integração econômica e política dos países europeus. Preconizaram igualmente a adoção de uma Carta dos Direitos do Homem e a criação de um Tribunal de Justiça com vista a assegurar a sua aplicação267.

Depois da Segunda Guerra Mundial, finalmente estavam presentes as condições para se realizar as ideias de unidade. Assim, a União Europeia foi criada em meio a este sentimento de paz e cooperação e objetivava pôr fim às guerras entre países vizinhos, mormente porque, vários dirigentes europeus se convenceram de que a única forma de garantir uma paz duradoura entre os seus países era efetivar essa união, simultaneamente a nível econômico e político. O início efetivo dessa união se deu em 1950, quando o Plano Schuman objetivou e implementou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA). Essa comunidade começou então, a unir econômica e politicamente os países europeus, com o objetivo de assegurar uma paz duradoura. Os seis países fundadores à época eram a Alemanha, a Bélgica, a França, a Itália, o Luxemburgo e os Países Baixos. Nesse contexto, “[...] o poder decisional sobre as indústrias do carvão e do aço nestes países foi colocado sob uma autoridade comum, um órgão independente e supranacional denominado “Alta Autoridade”, presidido, na oportunidade, por Jean Monnet”268. A partir desse acontecimento, a Europa foi se consolidando, sofrendo grandes influências com a queda do Muro de Berlim em 1989, que culminou na unificação das duas Alemanhas, em 1990, bem como a implosão do império soviétivo, em 1991, que dividiu a antiga União soviética em diversos Estados distintos. As últimas décadas evidenciaram que a União Europeia passou de uma cooperação intergovernamental a um sistema comunitário integrado e foi adotando, vagarosamente, um processo de adesões que ampliou a comunidade como ingresso de novos Estados Membros269. Atualmente, a União Europeia é uma parceria econômica e política com características únicas, constituída por 267

Ibidem, pp. 3074-3075. Ibidem, p. 3076. 269 Ibidem, pp. 3076-3077. 268

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28 países europeus270, que, em conjunto, abarcam grande parte do continente europeu. 2.3.2 A Interconstitucionalidade da Europa A União Europeia é uma Organização internacional sui generis. Isso porque, não se trata de uma federação como os Estados Unidos da América ou o Brasil, porque os seus EstadosMembros continuam sendo nações soberanas e independentes. Não se trata também de uma mera organização intergovernamental como a Organização das Nações Unidas – ONU, já que os Estados-Membros congregam efetivamente as suas soberanias em algumas áreas. Consequentemente, isto faz com que estes Estados adquiram muito mais força e influência em conjunto do que poderiam obter isoladamente. Eles congregam as suas soberanias tomando decisões comuns através de instituições comuns como o Parlamento Europeu, que é eleito pelos cidadãos da União Europeia, e o Conselho Europeu e o Conselho, que representam ambos os governos nacionais. As decisões se dão por meio de propostas da Comissão Europeia, que, por sua vez, representam os interesses da União no seu conjunto. Nesse mesmo contexto, a UE possui uma moeda única – o euro, uma união econômica e monetária e pode ser considerada a maior união multinacional e multilinguística do mundo271. Um dos objetivos principais da UE é promover os direitos humanos, tanto no âmbito da União Europeia quanto no resto do 270

Estados membros da UE e ano de adesão: Alemanha (1958); Áustria (1995); Bélgica (1958); Bulgária (2007); Chipre (2004); Croácia (2013); Dinamarca (1973); Eslováquia (2004); Eslovénia (2004); Espanha (1986); Estónia (2004); Finlândia (1995); França (1958); Grécia (1981); Hungria (2004); Irlanda (1973); Itália (1958); Letónia (2004); Lituânia (2004); Luxemburgo (1958); Malta (2004); Países Baixos (1958); Polónia (2004); Portugal (1986); Reino Unido (1973); República Checa (2004); Roménia (2007); Suécia (1995). Países candidatos: Albânia; Antiga República jugoslava da Macedónia; Montenegro; Sérvia; Turquia. Potenciais países candidatos: Bósnia e Herzegovina; Kosovo. In: UNIÃO EUROPEIA. Países. Disponível em: . Acesso em: 09.jun.2015. 271 RIBEIRO, Daniela Menengoti Gonçalves. Formação da Comunidade Europeia: cristianismo e democracia na Declaração de Robert Schuman. In:Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. p. 3077.

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mundo. Dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de direito e respeito pelos direitos humanos são alguns dos valores fundamentais da UE. Insta salientar ainda que, desde a assinatura do Tratado de Lisboa, em 2009, todos esses direitos foram consagrados em um único documento, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia 272. Nesse contexto, as instituições europeias passaram a ter a obrigação legal de os respeitar, assim como os Estados-Membros, quando aplicam a legislação europeia273. Para o fim de implantar este objetivo bem como os demais, e padronizar o sistema jurídico da União Europeia, foi criado, no ano de 1952, o Tribunal de Justiça da União Europeia, que tinha como missão principal garantir o respeito do direito na 272

A Carta dos Direitos Fundamentais compreende um preâmbulo e 54 artigos repartidos em sete capítulos: Capítulo I: da dignidade (dignidade do ser humano, direito à vida, direito à integridade do ser humano, proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes, proibição da escravidão e do trabalho forçado); Capítulo II: liberdades (direito à liberdade e à segurança, respeito pela vida privada e familiar, proteção de dados pessoais, direito de contrair casamento e de constituir família, liberdade de pensamento, de consciência e de religião, liberdade de expressão e de informação, liberdade de reunião e de associação, liberdade das artes e das ciências, direito à educação, liberdade profissional e direito de trabalhar, liberdade de empresa, direito de propriedade, direito de asilo, proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição); Capítulo III: igualdade (igualdade perante a lei, não discriminação, diversidade cultural, religiosa e linguística, igualdade entre homens e mulheres, direitos das crianças, direitos das pessoas idosas, integração das pessoas com deficiência); Capítulo IV: solidariedade (direito à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa, direito de negociação e de ação coletiva, direito de acesso aos serviços de emprego, proteção em caso de despedimento sem justa causa, condições de trabalho justas e equitativas, proibição do trabalho infantil e proteção dos jovens no trabalho, vida familiar e vida profissional, segurança social e assistência social, proteção da saúde, acesso a serviços de interesse económico geral, proteção do ambiente, defesa dos consumidores); Capítulo V: cidadania (direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais, direito a uma boa administração, direito de acesso aos documentos, Provedor de Justiça Europeu, direito de petição, liberdade de circulação e de permanência, proteção diplomática e consular); Capítulo VI: justiça (direito à ação e a um tribunal imparcial, presunção de inocência e direitos de defesa, princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas, direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito); Capítulo VII. In: PARLAMENTO EUROPEU. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Disponível em: . Acesso dia: 21.jun.2015. 273 UNIÃO EUROPEIA. Informações de base sobre a União Europeia. Disponível em: . Acesso em: 09.jun.2015.

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interpretação e aplicação dos Tratados nos ordenamentos de todos os Estados-membros274. No cumprimento desta missão, o Tribunal de Justiça da União Europeia desempenha algumas funções específicas, dentre elas fiscalizar a legalidade dos atos das instituições da União Europeia; assegurar o respeito, por parte dos EstadosMembros, das obrigações decorrentes dos Tratados; e, interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais 275. O Tribunal de Justiça da União Europeia, com sede no Luxemburgo, é composto por três jurisdições: o Tribunal de Justiça, o Tribunal Geral (criado em 1988) e o Tribunal da Função Pública (criado em 2004). Desde que foram criadas, as três jurisdições proferiram cerca de 28.000 acórdãos 276. Importante salientar esta última função – interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais, por ser uma das funções mais relevantes do TJUE. Isso porque, segundo Alessandra Silveira, os Estados-membros devem aplicar seus ordenamentos jurídicos constitucionais de forma congruente e em consonância com a legislação e os Tratados da União Europeia277, em especial com o disposto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Nesse sentido, sustenta Gilberto Bercovici que, [...] a consolidação dos tribunais constitucionais da Europa e a tendência crescente à ‘normatização’ da Constituição favorecem, ainda uma ‘mudança de paradigmas’ na Teoria da Constituição, que passou a enfatizar muito mais a hermenêutica constitucional e o papel dos princípios constitucionais278.

É evidente que, a partir da análise das premissas abordadas por Silveira e Bercovici que, os tribunais dos Estadosmembros da UE estão interligados e formam uma rede de

274

UNIÃO EUROPEIA. Apresentação geral. Disponível em: . Acesso em: 09.jun.2015. 275 Ibidem. 276 Ibidem. 277 SILVEIRA, Alessandra. Da interconstitucionalidade na União Europeia (ou do esbatimento de fronteiras entre ordens jurídicas)”, In: Scientia Iuridica, tomo LVI, n.º 326, maio-agosto 2011. 278 BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 112.

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hermenêutica constitucional, que deve estar em conformidade com a legislação da União. A Europa criou um sistema no qual os próprios órgãos dos Estados funcionam para aplicar o direito da União. Nesse sentido, Canotilho explica como funciona este sistema único e inovador, denominado por ele como interconstitucionalidade: A especificidade relativa da associação europeia de estados soberanos reconduz-se aos seguintes tópicos: (i) existência de uma rede de constituições de estados soberanos; (ii) turbulência produzida na organização constitucional dos estados soberanos pelas organizações políticas supranacionais; (iii) recombinação das dimensões constitucionais clássicas através de sistemas organizativos de natureza superior; (iv) articulação da coerência constitucional estatal com a diversidade de constituições inseridas na rede interconstitucional; (v) criação de esquemas jurídico-políticos caracterizados por um grau suficiente de confiança condicionada entre as várias constituições imbricadas na rede e entre essas constituições e a constituição revelada pela organização política de grandeza superior279.

Ao analisar as proposições elencadas por Canotilho, chega-se a algum grau de esclarecimento sobre o que é o interconstitucionalidade. A primeira premissa é a de existência de uma rede de constituições de Estados soberanos. Isso significa que, cada Estado-membro ainda continuará a possuir a sua própria constituição, até porque, apesar das semelhanças entre eles, é sabido que há também diversas discrepâncias. Isso ocorre para que, seja preservada a cultura individual de cada Estadomembro, e ainda, para que não haja modificação brusca e repentina na legislação dos Estados. Assim, preservam-se as constituições, no entanto, as normas que forem contrárias às determinações da União, deixam de ser aplicadas. Nesse sentido, afirma Canotilho que “a teoria da interconstitucionalidade enfrenta, [...] problema da articulação

CANOTILHO, J. J. Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Almedina: Coimbra, 2008, p. 267. 279

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entre constituições e da afirmação de poderes constituintes com fontes e legitimidades diversas”280. A segunda premissa diz respeito à turbulência produzida na organização constitucional dos estados soberanos pelas organizações políticas supranacionais. Inegável que, ao repassar parte de sua soberania à União Europeia, turbulências são geradas nos Estados-membros. No entanto, como afirmouse acima, uma vez unidos, o bloco possui muito mais força e eficácia do que um só Estado-membro. Sendo assim, percebese ser mais vantajoso para o Estado suportar certa turbulência, em razão de ganho de força adicional em razão do grupo. A terceira proposição aduz que o interconstitucionalidade implica uma recombinação necessária das dimensões constitucionais clássicas através de sistemas organizativos de natureza superior. Isso quer dizer que, as dimensões constitucionais clássicas passaram por mutações em razão de não servirem mais – da forma pela qual forma criadas – a atender as necessidades atuais. Assim, o que ocorre é uma recombinação dessas formas clássicas em um sistema organizativo de natureza superior à dos Estados-membros, que é o sistema da UE. A articulação da coerência constitucional estatal com a diversidade de constituições inseridas na rede interconstitucional diz respeito ao problema de como atribuir uniformidade nas decisões se há, dentro desta rede interconstitucional, uma miríade de constituições convivendo simultaneamente, com diferentes características e culturas. A quinta e última premissa se refere à criação de esquemas jurídico-políticos caracterizados por um grau suficiente de confiança condicionada entre as várias constituições imbricadas na rede e entre essas constituições e a constituição revelada pela organização política de grandeza superior. Isso significa que, são criados esquemas jurídicospolíticos graças à confiança que os Estado-membros revelam à constituição política de maior grandeza, qual seja, a União Europeia. Ao explicar o funcionamento desse sistema inédito no mundo, Silveira assevera que, a UE agiu de forma certeira e perspicaz, uma vez que, utilizou-se das estruturas dos próprios 280

Ibidem, p. 267-268.

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Estados-membros para aplicar o direito da União. A pesquisadora explica esta sistemática ao afirmar que as Cortes dos Estados são agora Cortes da UE também. Assim, é função dessas Cortes aplicar a lei europeia, exercendo o difícil papel de interpretar e conciliar a lei nacional com a europeia 281. Isso porque, ao invés de criar estruturas próprias – tribunais e demais órgãos jurídicos – com o fim específico de aplicar e fiscalizar o direito e os tratados da UE, esta Organização Internacional preferiu utilizar-se dos próprios tribunais e de todo o aparato jurídico já existente nos Estadosmembros para realizar o que pode ser equiparado a um “controle de convencionalidade”282 entre o ordenamento constitucional interno e o ordenamento da UE283. Este controle de convencionalidade se traduz na função do TJUE de interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais. Importante salientar que, via de regra, o que se aplica no sistema jurídico europeu são as normas constantes na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. No entanto, em caso de ausência de proteção específica de direitos fundamentais, o TJUE tem admitido, subsidiariamente, que se aplique as normas da Convenção Europeia de Direitos Humanos284.

281

CEDU, Centre of Studies in European Union Law. Protection of Fundamental Rights post-Lisbon: The Interaction between the UE Charter of Fundamental Rights, the European Convention on Human Rights (ECHR) and National Constitutions. In: XXV Congresso da Federação Internacional de Direito Europeu (FIDE), Tallinn, Estónia, 2012. Disponível em: . Acesso em: 17.jul.2015, p. 6. 282 O controle de convencionalidade é a análise e compatibilização vertical das leis (ou dos atos normativos do Poder Público) com os tratados internacionais ratificados pelo governo e em vigor no país. No Brasil, o tema é tratado por Mazzuoli. Ver a respeito em: MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 46, n. 181, jan./mar. 2009, p. 113-139. 283 SILVEIRA, Alessandra. Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais. Aula de Excelência ministrada ao Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar, 10.mai.2014. 284 CEDU, Centre of Studies in European Union Law. Protection of Fundamental Rights post-Lisbon: The Interaction between the UE Charter of Fundamental Rights, the European Convention on Human Rights (ECHR) and National Constitutions. In: XXV Congresso da Federação Internacional de Direito Europeu (FIDE), Tallinn, Estónia, 2012. Disponível em:

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Em suma, o Sistema de Proteção aos Direitos Fundamentais da União Europeia, é baseado em duas premissas: 1) no reconhecimento dos princípios da UE; 2) na presença de normas fundamentais de diversas fontes: as normas europeias, normas nacionais e as normas internacionais de proteção aos direitos humanos285. O que ocorre é que, os tribunais constitucionais dos Estados-membros, por vezes, se deparam com situações nas quais não têm certeza se a lei constitucional interna contradiz ou está de acordo com a lei da UE. Assim, diante destas situações, estes tribunais devem enviar o processo para análise junto ao TJUE. O TJUE, por sua vez, analisará e emitirá parecer vinculativo ao tribunal local, o que significa dizer que este deverá seguir a determinação daquele, e consequentemente solucionar a lide da forma pela qual foi apontada no parecer 286. Importante salientar nesse contexto, que o Tribunal de Justiça da União Europeia difere-se da Corte Europeia de Direitos Humanos, uma vez que a função desta última é basicamente proteger e zelar pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, assinada inicialmente em 1950 e hoje agregando 47 países (os 27 membros da União Europeia além de outros 20, como a Rússia, Ucrânia, Noruega, Mônaco e Azerbaijão). Em outras palavras, a Corte Europeia de Direitos Humanos pertence a um sistema de proteção dos direitos humanos não relacionado com o TJUE. Assim, se percebe que, o Tribunal de Justiça constitui a autoridade judiciária da União Europeia e vela, em colaboração com os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros, pela aplicação e a interpretação uniformes do direito da União 287, gerando uma realidade interconstitucional. Neste contexto de interconstitucionalidade, por vezes, ocorrem casos em que o TJUE utiliza-se do ordenamento constitucional de outro Estado-membro para resolver o . Acesso em: 17.jul.2015, pp. 14-15. 285 Ibidem, p. 09. 286 SILVEIRA, Alessandra. Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais. Aula de Excelência ministrada ao Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar, 10.mai.2014. 287 UNIÃO EUROPEIA. Apresentação geral. Disponível em: . Acesso em: 09.jun.2015.

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conflito288. Para compreender melhor esta situação, articula-se um exemplo: imagine-se que, determinado tribunal da França envie um processo que trata da tutela do direito fundamental à saúde para análise ao TJUE por não saber ao certo se sua lei constitucional está em consonância com os tratados da União. Nesse sentido, o TJUE conclui que a legislação francesa não está de acordo com os preceitos da União. Ao mesmo tempo, o TJUE percebe que a legislação constitucional austríaca é a legislação mais protetiva relacionada ao direito fundamental à saúde dentre as legislações dos Estados-membros. Ademais, a legislação austríaca está em consonância com os preceitos da UE. Assim, pode o TJUE emitir parecer vinculativo com a finalidade de indicar que se aplique a legislação constitucional austríaca ao caso francês. Além disso, afirma Silveira que, outra manifestação da interconstitucionalidade pode ser verificada na União Europeia. Seria o caso de os próprios advogados dos Estados-membros terem a possibilidade de invocar diretamente, em seus processos, legislação constitucional de outro Estado-membro, quando se tratar de direitos fundamentais, e quando, a legislação de seu país se mostrar menos protetiva 289. Assim, tem-se o seguinte exemplo: imagine-se que, um advogado português necessita ingressar com determinada ação judicial para proteger questão relacionada ao direito fundamental à vida de seu cliente, e, verifica que a legislação constitucional alemã oferece maior proteção do que a legislação portuguesa. Neste caso, o advogado português poderia invocar o direito alemão – desde que em conformidade com a legislação da União Europeia – para tutelar mais eficazmente os direitos fundamentais de seu cliente. A previsão legal para que isso ocorre está no artigo 53 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que dispõe: Artigo 53o Nível de protecção Nenhuma disposição da presente Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar os direitos do Homem e as 288

SILVEIRA, Alessandra. Direitos fundamentais, integração e crise: por um mecanismo europeu de resgate para os direitos fundamentais. Aula de Excelência ministrada ao Mestrado em Ciências Jurídicas da Unicesumar, 10.mai.2014. 289 Ibidem.

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liberdades fundamentais reconhecidos, nos respectivos âmbitos de aplicação, pelo direito da União, o direito internacional e as convenções internacionais em que são partes a União, a Comunidade ou todos os Estados-Membros, nomeadamente a Convenção europeia para a protecção dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais, bem como pelas Constituições dos Estados-Membros290.

Nesse sentido, Mariana Canotilho aduz que este artigo traduz o Princípio do Nível Mais Elevado de Proteção dos Direitos Fundamentais no Quadro da UE. Este princípio seria a “expressão do compromisso europeu em relação aos direitos fundamentais e garantia de uma tutela efectiva destes direitos no espaço da UE”291. No que se refere a essa norma, o Centro de Estudos em Direito da União Europeia da Universidade do Minho – Portugal, afirma que, se, para a resolução de um caso concreto, existem diversos ordenamentos jurídicos envolvidos que dizem respeito aos mesmos direitos fundamentais (protegido simultaneamente pela Constituição nacional, pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia), deve ser analisado e aplicado o regime legal que oferece maior proteção ao sujeito do direito em discussão292. Portanto, os dois exemplos abordados supra traduzem a essência do que se pretende demonstrar neste estudo. Em outras palavras, o interconstitucionalidade que se pretende evidenciar com esta pesquisa diz respeito à essa rede de ordenamentos jurídicos constitucionais que inevitavelmente se entrelaçam. Este fenômeno culmina na possibilidade de utilizar290

PARLAMENTO EUROPEU. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Disponível em: . Acesso em: 21.jun.2015. 291 CANOTILHO, Mariana Rodrigues. O princípio do nível mais elevado de protecção em matéria de direitos fundamentais. Dissertação de mestrado em ciências jurídico-políticas, sob orientação do Professor Doutor José Carlos Vieira de Andrade. Coimbra, agosto de 2008, p. 169. 292 CEDU, Centre of Studies in European Union Law. Protection of Fundamental Rights post-Lisbon: The Interaction between the UE Charter of Fundamental Rights, the European Convention on Human Rights (ECHR) and National Constitutions. In: XXV Congresso da Federação Internacional de Direito Europeu (FIDE), Tallinn, Estónia, 2012. Disponível em: . Acesso em: 17.jul.2015, p. 10.

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se de outras jurisdições constitucionais dentro de uma mesma rede, para efetivar a tutela e proteção dos direitos fundamentais – em especial, os direitos da personalidade. 2.4 A INTERCONSTITUCIONALIDADE NA AMÉRICA LATINA A partir deste momento do estudo, passa-se a analisar a ocorrência do fenômeno da interconstitucionalidade no âmbito da América Latina. Primeiramente, em razão da identidade cultural e da existência de pontos de convergência dentre os ordenamentos constitucionais dos Estados. Para tanto, destarte, andes de estudar o fenômeno propriamente dito, se faz necessário estudar a Organização dos Estados Americanos e seu funcionamento, para posteriormente adentras no viés interconstitucional. 2.4.1 A Organização dos Estados Americanos – OEA De forma similar à Europa, a América também possui uma Organização Internacional que surgiu com os seguintes objetivos: promover o desenvolvimento integral e a prosperidade dos Estados-membros; promover a democracia, defender os direitos humanos; garantir uma abordagem multidimensional para a segurança; e apoiar a cooperação jurídica interamericana. Essa organização à qual refere-se é a Organização dos Estados Americanos – OEA. Portanto, percebe-se na América um sistema interamericano de proteção aos direitos elencados supra. Assim, é necessário que se estude a OEA para o fim de diagnosticar se há ou não a presença da interconstitucionalidade na América, mais especificamente na América Latina. A Organização dos Estados Americanos é o mais antigo organismo regional do mundo. Os primeiros indícios da Organização dos Estados Americanos se deu em 1826, quando da realização do Congresso do Panamá, convocado por Simón Bolívar.293 No entanto, somente em 1889, os Estados americanos decidiram se reunir periodicamente para o fim de criar um sistema compartilhado de normas e instituições. E desde então 293

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Nossa história. Disponível em: . Acesso em: 16.jun.2015.

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vem sendo feitas conferências e reuniões para gerar esse sistema. Entretanto, o processo somente teve início com o convite dos Estados Unidos para a realização da Primeira Conferência Internacional Americana, que foi realizada em Washington D.C., de outubro de 1889 a abril de 1890. Essa conferência tinha como objetivos instituir mecanismos de resolução de conflitos entre os membros, melhorar o intercâmbio comercial e dos meios de comunicação, incentivar relações comerciais recíprocas e assegurar mercados mais amplos 294. Esta reunião realizada nos EUA resultou na criação da União Internacional das Repúblicas Americanas, que começou a tecer uma rede de disposições e instituições, dando início ao que ficaria conhecido, mais tarde, como “Sistema Interamericano”, o mais antigo sistema institucional internacional295. Nesse contexto, a OEA e consequentemente, o SIDH, foram fundados efetivamente em 1948 com a assinatura da Carta da OEA na cidade de em Bogotá, na Colômbia, que entrou em vigor em dezembro de 1951. Posteriormente, a Carta foi emendada pelo Protocolo de Buenos Aires (1967); pelo Protocolo de Cartagena das Índias (1985); pelo Protocolo de Manágua (1993); e pelo Protocolo de Washington (1992)296. A Organização foi criada para promover nos Estados membros, como estipula o Artigo 1º da Carta, “uma ordem de paz e de justiça, para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania, sua integridade territorial e sua independência”297. Hoje, fazem parte da OEA os 35 Estados 298 independentes das Américas e esta organização internacional 294

Ibidem. Ibidem. 296 Ibidem. 297 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Carta da OEA. Disponível em:
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