SNAPCHATS SOBRE A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DA HUMANIDADE MEDIAÇÕES DO CORPO NA CULTURA DIGITAL

June 2, 2017 | Autor: Paulo Cavalcanti | Categoria: Music, Performing Arts, Arts Education, Dance and Aesthetics, Dance
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SNAPCHATS SOBRE A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DA HUMANIDADE MEDIAÇÕES DO CORPO NA CULTURA DIGITAL

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

SNAPCHATS SOBRE A EDUCAÇÃO ESTÉTICA DA HUMANIDADE MEDIAÇÕES DO CORPO NA CULTURA DIGITAL

PAULO CAVALCANTI

Orientador: Prof. Dr. Anderson Vinícius Romanini Artigo monográfico de conclusão da disciplina: Tecnologias da Comunicação na Sociedade Contemporânea

SÃO PAULO 2015

“Uma época não preexiste aos enunciados que a exprimem nem às visibilidades que a preenchem”. (Gilles Deleuze apud Fernanda Bruno)

RESUMO Em remissão às cartas sobre a Educação Estética da Humanidade e às antigas formas de conceber ou expressar pensamento no período anterior à modernidade, verifica-se hoje uma possibilidade de incentivo à troca de informação por meio de imagens, enquanto produção de conteúdo educomunicativo, com remissão às proposições schillerianas de educação pela experiência estética e pela arte. Para tanto, coaduna-se o recente aplicativo social de videomensagens instantâneas e efêmeras para aparelhos Android e IOS: o “Snapchat”, enquanto um dos atuais exemplos de meios que fomentam os mais díspares fluxos informacionais em dinâmica descentralizada e não-linear no século XXI. Para além desta aproximação entre romantismo e rede social para smartphones, a fruição dos sentidos se associa ao processo de “reencantamento do mundo” (enunciado pelo sociólogo Michel Maffesoli), que consiste em um vislumbramento de retorno ao mítico, na contracorrente do racionalismo lógico-positivista. Nesse mote, imbuídos das novas possibilidades de mediação digital-corporal das conexões em rede, e com o auxílio dos conceitos de transdisciplinaridade, organização autopoiética, economia coletiva e heterarquia, podemos refletir as possibilidades de empoderamento individual e grupal, agenciando novas formas de participação social e política, inspirando uma educação para a potência de ser e intervir no mundo, de maneira criativa e propositiva, propagando devires. Este ensaio se propõe a repensar os novos contornos do corpo contemporâneo inscrito na comunicação reticular com o aparato das novas mídias da cultura digital. Sem pretensões de analisar profundamente a grande variedade de tecnologias e hipermídias hoje, este texto considera - numa lógica propedêutica - os mecanismos de subjetivação, produção de conhecimento, sentido, e experiência estética na transição do paradigma da comunicação analógica à digital. Deste panorama, emergem efeitos, rupturas e ressonâncias ao estatuto do corpo sob uma radicalidade veloz e atroz, sem precedentes na história. Palavras-chave: experiência estética, cultura digital, snapchat, educomunicação, corpo.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.............................................................................................................1 2. A HISTORICIDADE DO CORPO MEDIADO PELA TECNOLOGIA................3 3. CRISE E HEGEMONIA DA LINGUAGEM UNIVERSAL: IMAGÉTICA..........9 4. MEDIAÇÕES DO CORPO BIOCIBERNÉTICO...................................................13 5. SOBRE EDU(COMUNIC)AÇÃO.............................................................................16 6. OS OITO SNAPCHATS DE SCHILLER................................................................23 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................27

1. INTRODUÇÃO As ideias expostas a seguir são expressas como uma prospecção (ou uma utopia) que, a priori metafórica e figurativamente, transpõem os ideais das cartas de Schiller (1794) da modernidade à contemporaneidade, aplicados e ressignificados mediante as novas possibilidades da educomunicação. Essa aliança provoca estranhamento e impulsiona a elucubração sobre como podem se dar novas poéticas da comunicação social, em mídias tais como o Snapchat, um meio extremamente díspar a materialidade de uma carta, promovendo novas formas de produção de conhecimento sensível através dos meios hipermidiáticos contemporâneos. Trazendo as cartas sobre a Educação Estética do Homem1 ao encontro do aplicativo social Snapchat, este ensaio se debruça sobre as vicissitudes do corpo contemporâneo mediado através das novas tecnologias da comunicação; interdito em uma profusão de informações, signos e inovações em excessiva aceleração. A marca de nossa época talvez seja justamente a efemeridade e o caráter fugidio. O Snapchat é um aplicativo para telefones móveis smartphones, cuja função é basicamente compartilhar mensagens multimídia de vídeo, fotografia, texto, desenho ou símbolos, as quais permanecem disponíveis online apenas temporariamente, em durações totais de apenas segundos. Após sua visualização, o conteúdo desaparece da rede sem deixar rastros (supostamente). Essa aproximação inusitada consiste especialmente no intuito de verificar as maneiras e possibilidades plurais de conceber conteúdo educomunicativo, redirigindo o olhar ainda restrito nas normatividades da educação disciplinar à funcionalidade da hipermídia, à transdiciplinaridade, a criatividade, elogiando e reivindicando, sobretudo, a experiência estética, seus novos contornos e feições entre, através e além dos corpos. Numa ótica que contempla antropologicamente o corpo social; fenomenologicamente, sua corporeidade; e, politicamente, sua imagem. Ou seja, reinterpretações das expressões da corporeidade em tempos de hegemonia da imagem, perscrutando os meandros da comunicação social sob a égide de simulacros e (auto)representações do corpo, com sua imagem refletida e estendida em avatares e publicações nas redes sociais. Destarte, temos aqui um híbrido que associa 1

SCHILLER, Friedrich. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 2013;

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disparidades de toda ordem, pois ao cotejar o conteúdo e os ideais de uma obra romântica escrita no século XVIII com um aplicativo móvel de compartilhamento temporário do século XXI - representativo da reticularidade e instantaneidade dos dias de hoje - pensamos nossa realidade de paradoxos, fragmentação, e velocidade. Essa aproximação também elenca a historicidade das mutações nas tópicas da comunicação social desde a escrita até a comunicação digital2, e remanesce ainda a questão da percepção estética do sujeito em seu entorno e suas maneiras de ação no mundo. Em tempos de crises e insurgências globais, fazse mais que necessário refletir a urgência de uma educação estética, que ultrapasse a esferas das artes, para formação, empoderamento e constituição da subjetividade dos indivíduos contemporâneos, agora de posse dos aparatos tecnológicos e das novas mídias. Como potencializá-las ao invés de subjugarmo-nos a elas, ou apenas assisti-las nos atravessarem? Esta discussão articula um eixo tríplice que perpassa: a) a educação e a produção de conhecimento, b) os mecanismos de subjetivação dos corpos e c) os fenômenos advindos da tecnologia digital. A conjugação dessas questões - considerando a estética e os novos dispositivos técnicos digitais - se dá na avaliação da mediação do corpo e de sua representação, visando produções de conteúdo hipermidiático, em dinâmicas fugidias, conferindo-nos um suposto “direito ao esquecimento” em tempos onde praticamente todo o fluxo de dados em rede deixa seus cookies e rastros digitais registrados por tempo ilimitado. É muito importante em nossa sociedade repensarmos constantemente os novos contornos, mediações e representações do corpo inscrito na comunicação reticular com o aparato das novas mídias da cultura digital. Estimulando a reflexão e a iniciativa de projetos e proposições educomunicativas na sociedade contemporânea, com posturas e atuações que não sejam reprodutoras da lógica reducionista e pragmática do racionalismo científico, visando aplicabilidade em espaços de transgressão sócio-política como, por exemplo, nas atuais

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Mais do que um ímpeto entusiasta de se debruçar sobre uma obra clássica que aparentemente não tenha mais validade no século XXI, este olhar e escrutínio do texto de Schiller propicia um panorama histórico que auxilia na percepção da grandeza das mutações que ocorreram na história da comunicação desde a pré-modernidade até os dias de hoje. Pois, historicamente, podemos destacar quatro momentos cruciais e revolucionários na evolução da comunicação: I. Surgimento da escrita (V a. c.) no Oriente Médio; II. Surgimento da imprensa, por J. Gutemberg. Meados do Século XV (1550); III. Revolução Industrial, séculos XIX e XX, cultura de massa e meios eletrônicos; E, no contexto contemporâneo, temos: IV. Tecnologias digitais, público ilimitado, tempo real. (DI FELICE, 2018: 22).

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ocupações de jovens estudantes das Escolas Estaduais de São Paulo, motivadas pelo movimento secundarista, contrários ao projeto de reorganização, no final deste ano de 20153. Pensando nas recentes reivindicações estudantis de ordem epistemológica, política e social, a problematização deste tema extremamente atual induz diversas indagações, tais como: Podemos ainda gerar e transmitir conhecimento qualitativamente nos espaços escolares, uma vez que a profusão de informações na internet é inequívoca e extremamente acessível? Qual seria a pertinência da materialidade do corpo e dos encontros no espaço urbano? Como se dá a extensão do corpo humano com as novas mídias da cultura digital? De que maneira podemos potencializar os recursos tecnossociais em rede e gerar autonomia e emancipação nesta fase de transição? Seria ainda eficaz a tópica da educação disciplinar moderna e toda sua normatividade verticalizante? Tais questionamentos serão explorados à luz do pensamento de autores como Lucia Santaella, Edgar Morin, Maria Candido Xavier, Dominique Wolton, Marshall McLuhan, Luiz Carlos Restreppo, Pierre Lévy e outros.

2. A HISTORICIDADE DO CORPO MEDIADO PELA TECNOLOGIA A não linearidade é uma propriedade do mundo digital, nele não começo, meio, ou fim. Quando concebidas em forma digital, as ideias tomam formas não lineares. (SANTAELLA, 2003)4

Como exposto primeiro no capítulo, estamos vivenciando a quarta revolução da história da comunicação, com o advento da cultura digital, não linear, rizomática, heterárquica e descentralizada. Uma teoria que se adequa perfeitamente ao estatuto reticular da comunicação digital é a ideia filosófica e sociopolítica de pós-modernidade. Para entender esse conceito, precisamos remeter e pontuar alguns momentos históricos, a começar pela Pré-modernidade - Antiguidade clássica; Ideal Greco-Romano; Idade Média; Hegemonia política e econômica da Igreja; na qual o corpo em sua total amplitude, se baseava unicamente de uma tecnologia

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Mais informações sobre este contexto podem ser claramente obtidas neste vídeo do canal Cabine Literária, publicado em 6 de dezembro de 2015, disponível em: Acesso em Dez. 2015. Notemos que se trata de um rapaz chamado Augusto Assis, usuário da internet que disponibiliza seus perfis no snapchat, periscope, twitter e instagram. Um excelente exemplo de empoderamento e via comunicativa para expressão social e política. 4

Op. Cit. p. 94

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muscular. Em um segundo momento, temos a Modernidade - Estado Nacional; Derrocada Narcísica; Renascimento; Desencantamento do Mundo; Racionalismo científico cartesiano lógico-positivista;

Iluminismo;

Revolução

Industrial;

Capitalismo;

Individualismo;

Tecnologia das máquinas. Um dos períodos culturais mais sedimentados da história que conceberam as consequências das formas de produção e vida que temos hoje (em crise). E “por fim”, temos a Pós-modernidade - Guerra-Fria; Queda do muro de Berlim; Reencantamento do mundo; Crises dos discursos totalizantes; Incredulidade às metanarrativas (ver Lyotard5); Não-linearidade; Capitalismo cognitivo, Globalização, Tecnologia digital; Ubiquidade. O estatuto do corpo é agora radicalmente reconfigurado e as possibilidade de inserção e participação do sujeito no mundo ultrapassam largamente sua kinesfera e a materialidade do corpo. A revolução na história da comunicação marcada pela mudança de paradigma do digital para o analógico talvez seja a transição mais radical e veloz depois da escrita, da imprensa e da eletricidade. Vivenciamos uma primeira grande conjectura contemporânea, que a partir da web 2.0, nos permite criar, em troca e coletivamente, novas formas de ser e estar no mundo, e, sobretudo, novas maneiras de articulação e participação política e social. O mais interessante é notarmos um paralelismo entre o analógico e o digital que permeiam nossa linguagem e nossos discursos. No capítulo 2 da Pragmática da comunicação humana de Watzlawick et al (1967) , são postulados alguns axiomas, sendo o axioma 4 aquele que versa sobre a maneira como esses dois constructos coabitam nossas faculdades intelectuais, a saber: posturas, comportamentos (inatos nos humanos, ainda que sejam não-comportamentos) e manifestações não verbais constituem o campo analógico, enquanto o digital opera numa dimensão virtual e horizontal, de algoritmos e cadeias rizomáticas de fluxos de informação e dados, mas lógico e complexo. É interessante pensar na qualidade semântica da esfera analógica, e na dimensão sintática do campo digital. E como elas podem se imbricar em nossas realidades ambivalentes da contemporaneidade onde todos somos seres comunicacionais, condição sine qua non para a existência. O capítulo quatro deste livro cita a Teoria Geral dos Sistemas (biológicos, econômicos e mecânicos). Suas propriedades, sempre referenciadas a um individuo especifico, subjetivamente, são: Globalidade – contexto, retroalimentação – relações biunívocas e recíprocas, equifinalidade – mesmos resultados oriundos de diferentes origens, etc. Conceituar um período histórico e cultural em curso e tão vertiginoso como o nosso 5

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013

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cenário digital é uma tarefa extremamente difícil, cabe a nos experenciarmos todas as possibilidades das novas tecnologias para potencializarmos nossa fertilidade criativa. Esses textos nos frisam o quão complexas já são as relações humanas, e como isto fica mais agudo com a extensão digital, no novo estatuto cíbrido do corpo humano. (WATZLAWICK et al, 1967) Para além da derrocada narcísica6, a ruína do antropocentrismo e das certezas divinas - as quais confortavam a ignorância humana acerca de sua pequenez - se dera por conta do avanço científico-tecnológico. Houve a descentralização do homem e sua fragilização - ou controversamente sua potencialização com o advento das (e acoplamento às) máquinas -. A partir do Renascimento no século XVI-XVII, os séculos XVIII, XIX e XX foram marcados por um processo de desencantamento do mundo7, o qual, segundo Max Weber8 assinalou o início da modernidade. Foi a desmistificação das “magias” e “amparos religiosos” da sociedade feudal. Deste modo, modificar-se-ia aquele modelo medieval da cultura fortemente subjugada pela Igreja. Tal desencantamento, o racionalismo científico e o pensamento cartesiano9 compuseram os pilares desta modernidade. Neste período, o corpo “moderno” é subestimado em sua fisicalidade, já acoplado a aparatos tecnológicos e novas formas/forças de produção, o que compreenderia mais tarde a emergência e difusão incontrolável do capitalismo. Eventos históricos, como as duas Grandes Guerras Mundiais, repercutiram nas artes e na sociedade, ativando movimentos de vanguarda (sobretudo nas artes) que surgiriam para questionar o período moderno e suas prescrições. Com efeito, mesmo após a consolidação significativa da dita modernidade, as metanarrativas ideológicas começaram a cair por terra10, o capitalismo e a sociedade de consumo ganham dimensões descontroladas, a globalização e a comunicação digital transformam o espaço numa veloz simultaneidade de acontecimentos, a 6

Primeiramente, Copérnico denuncia que a Terra não é o centro do universo, mas gira em torno do sol; mais tarde, Darwin denuncia que o ser humano não é o centro da criação, mas resultado da evolução das espécies (em particular, dos macacos) para então legitimar a fragilidade do narcisismo humano Sigmund Freud denuncia que o homem não é o senhor de si mesmo, mas, antes, determinado pelas razões de seu inconsciente. 7

Ideia inclusive endossada por Adorno e Horkheimer na obra “Dialética do Esclarecimento”.

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Ver WEBER, Max. “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Obra publicada pela primeira vez em 1904-5 9

O cartesianismo consiste no pensamento dicotômico que separa corpo e mente. Oriundo da máxima “Cogito, ergo sum”, “penso, logo existo”, do filósofo René Descartes. 10

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013

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hegemonia ocidental se fragmenta, assim como os indivíduos, e, por conseguinte, temos o corpo em crise. Deste emaranhado revela-se a condição pós-moderna na qual estamos inseridos (ou conectados), a verificar-se sob uma ótica pós-estruturalista a fim de ressignificação - e entendimento - desse novo corpo, suas extensões, ancorado pela mídia e as novas tecnologias, em tempos de ansioso futurismo paralelo ao afã pelo retorno à mitologia (MAFFESOLI, 2010), sobretudo àquela do belo Narciso, num palco de dependência esquizofrênica ao capital que já ultrapassa os limites da materialidade. A pluralidade de novas visões de mundo, singularidades e coletividades é propiciada e intensificada pela mídia, fator marcante e corroborador da chamada pós-modernidade. Apesar de não ser um consenso acadêmico, a condição pós-moderna é um denominador comum que abarca termos como: sociedade pós-industrial, capitalismo tardio, pós-capitalismo, modernidade líquida, pós-estruturalismo, etc. Destarte, presenciamos hoje um ritual (pós)moderno constituído de relacionamentos potencializados pelas redes sociais (Snapchat, Instagram, Whatsapp, Twitter, Facebook, Blogger, Tumblr, Tinder, Youtube, Grindr, Hornet, Scruff, LinkedIn, Google +, etc). Nossa mitologia contemporânea se dá no ciberespaço. No capítulo “O Amante de Gadgets - Narciso como Narcose” da obra clássica de McLuhan11, o mito grego de Narciso é explicitado como diretamente imbricado a uma experiência humana específica: (...) em da palavra grega narcosis, entorpecimento. O jovem Narciso tomou seu próprio reflexo na água por outra pessoa. A extensão de si mesmo pelo espelho embotou suas percepções até que ele se tornou o servomecanismo de sua própria imagem prolongada ou repetida. A ninfa Eco tentou conquistar seu amor por meio de fragmentos de sua própria fala, mas em vão. Ele estava sonado. Havia-se adaptado à extensão de si mesmo e tornara-se um sistema fechado. (MCLUHAN, 1964 : 94)

Os homens se tornam fascinados por qualquer extensão de si mesmos em qualquer material que não seja o deles próprios. Fisiologicamente, extensões de nós mesmos nos mergulham fatidicamente num estado de entorpecimento. Hans Seyle e Adolphe Jones (apud MCLUHAN, 1964) afirmam que todas as extensões de nós mesmos, na doença ou na saúde, não são senão tentativas de manter a homeostase (o equilíbrio). A comunicação é um fenômeno social, muito antes de ser mero procedimento de transmissão de informação, de permuta de códigos específicos, ou exercício de linguagem, ou publicação. É um fenômeno transformador, dialógico, de alto poder expressivo, que se 11

Marshal McLuhan (1964). Editora Cultrix. Os meios de comunicação como extensões humanas. p 59.

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desempenha um papel complexo, uma vez que vivemos, de acordo com Anthony Giddens (2010), com a incerteza global. Vivenciamos uma “mutação da física da comunicação” (LEVY, 1999). Com as transformações cotidianas da cultura12, a posição e a identidade dos sujeitos interagentes é modificada, há uma espécie de processo deleuziano de dobras e rizomas13 de interação através das mais díspares arquiteturas informativas, num trânsito irrefreável de ações dos usuários digitais; são novas maneiras de habitar (DI FELICE, 2009). As diversas áreas da comunicação social possuem um legado na tradição analógica, ou seja, pensar em termos de fluxo do centro para a periferia, à “luz” do mecanicismo, na relação unívoca emissor-receptor (concepção funcional-estruturalista). A ruptura deste paradigma se dá com a digitalização dos ecossistemas informativos, tornando-se interativos - a internet -, possibilitando uma nova via de emissão e recepção de informação, numa relação biunívoca, mútua e aberta. Forma-se uma rede social metageográfica (DI FELICE, 2008). Hoje, com o advento da cultura digital (bastante singular na história da comunicação) 14, o emissor constrói rotas, e não informação direta (como o era na fadada tradição analógica), apenas possibilita novas plataformas e ramificações com caminhos para alcance e manipulação de informação. Algo nada trivial é que tal “mundo digital nasceu e cresce no terreno das formações socioeconômicas e políticas do capitalismo globalizado.” (SANTAELLA, 2003, 2006). Há um largo salto na passagem das tecnologias eletroeletrônicas às tecnologias teleinformativas atuais. “Enquanto as anteriores (...) inauguradas pela fotografia (...) haviam introjetado conhecimentos científicos de

habilidades técnicas, num passo além, as

cibertecnologias introjetaram conhecimentos científicos de habilidades mentais” (Ibid)15. A maioria dos autores da teoria da cultura e da comunicação consideram apenas quatro momentos histórico-culturais da comunicação (a saber: era oral, era escrita, era impressa, era eletrônica, e era digital), todavia, os estudos de Lucia Santaella nos mostram que 12

Entendamos o termo cultura neste ensaio à luz da concepção antropológica (não-seletiva) oposta à concepção humanista. 13

Conceitos do filósofo pós-estruturalista Gilles Deleuze. Ver DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, Volume 4. São Paulo: 34, 2012. 14

Historicamente, destacam-se quatro momentos cruciais e revolucionários na evolução da comunicação humana: I. Surgimento da escrita (V a. c.) no Oriente Médio; II. Surgimento da imprensa, por J. Gutemberg. Meados do Século XV (1550); II. Revolução Industrial, e subsequente surgimento da eletricidade, séculos XIX e XX, cultura de massa e meios eletrônicos; E, no contexto contemporâneo, temos IV: Tecnologias digitais, público ilimitado, tempo real. (DI FELICE, 2008: 22). 15

Op. Cit. p. 175

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anteriormente à cultura digital temos dois momentos capitais de transformação precedente mas que ainda são determinantes e presentes na era digital - : a cultura de massas e a cultura midiática. Podíamos chamar de mídia a qualquer meio de comunicação de massa, analógico no caminho de emissor para receptores, no entanto, com o passar do tempo, a dinâmica cultural midiática foi se distinguindo da cultura de massas, devido justamente ao aparecimento das novas tecnologias segmentadoras, diversificadoras, capazes de uma maior adequação a um público mais individualizado: as especializações e subespecializações dos programas de rádio, os aparelhos do tipo walkman, permitindo a seleção pessoal de música, os videocassetes, a multiplicação dos canais de TV e sua consequente segmentação. Enfim, a cultura das mídias não se caracterizava mais como mídia massiva, pois ia rompendo com os traços fundamentais das culturas de massas, a saber, a simultaneidade e uniformidade da mensagem emitida e recebida. (Ibid)16

Em suma, a autora elenca “uma divisão de eras culturais em seis tipos de formação: a cultura oral, a cultura escrita, a cultura impressa, a cultura de massas, a cultura das mídias e a cultura digital”. Os signos de tais meios de comunicação que são específicos a cada um destes períodos históricos “são capazes não só de moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres humanos, mas também de propiciar o surgimento de novos ambientes socioculturais.” O percurso dessas revoluções históricas não é linear, “há sempre um processo cumulativo de complexificação” e “uma nova formação comunicativa e cultural vai se integrando na anterior, provocando nela reajustamentos e refuncionalizações” (Ibidem) A questão é que as mídias e as massas ainda coabitam expressivamente sob as arquiteturas comunicacionais contemporâneas, circunscritas à comunicação digital. A cultura das mídias seria o processo de transição da era eletrônica para a era digital, e a cultura de massas é própria do pensamento de indústria cultural e manipulação publicitária que ainda incorrem. Ademais, periódicos impressos, o rádio, a televisão e outros meios não foram fadados ao esquecimento, e são fortemente pautados pela expressão da cultura digital na web, no ciberespaço. Santaella também frisa em seu livro Culturas e artes do pós-humano o autor Mark Poster, o qual se utiliza das teorias pós-estruturalistas (com Foucault, Derrida, Deleuze, Lacan e outros) para pensar a cultura eletrônica-massiva-midiática-digital. A assertividade dessa aplicação se justifica na condição de instabilidade legada aos indivíduos contemporâneos, num processo perene de múltiplas identidades que pululantes e metamorfoseantes; autômatos. Essas teorias enfatizam o papel da linguagem no processo de constituição dos sujeitos. Teorias que ignoram as linguagens da tecnologia comunicacional ou que as consideram sob 16

Op. Cit. p. 68

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um ponto de vista meramente instrumental deixam de enxergar as novas questões colocadas pela cultura digital, avaliando esta dentro dos antigos paradigmas que foram gerados para teorizar sobre a cultura impressa inaugurada por Gutemberg. E mais: A combinação das enormes distâncias com a imediaticidade temporal que é própria das comunicações eletrônicas reconfigura a posição do individuo de maneira tão drástica que a figura do eu. Fixo no tempo e no espaço. Capaz de exercer controle cognitivo sobre os objetos circundantes não mais se sustenta. (...) Os termos realidade virtual e tempo real atestam a força das novas mídias na constituição de uma cultura de simulação. As mediações se tornaram tão intensas que tudo que é mediado não pode fingir não estar afetado. A cultura é crescentemente simuladora no sentido de que a mídia sempre transforma aquilo de que ela trata, embaralhando identidades e referencialidade. O efeito das mídias como a internet é potencializar as comunicações descentralizadas e multiplicar os tipos de realidade que encontramos na sociedade. Toda a variedade de práticas inclusas na comunicação via redes constituem um sujeito múltiplo, instável, mutável, difuso e fragmentado, enfim, uma constituição inacabada, sempre um projeto (POSTER, 1995 apud SANTAELLA, 2003)17.

Nosso cotidiano está permeado de imagens e signos que representam nosso meio ambiente visual. As visões mais pessimistas e saudosistas alegarão que a imagética é plana, superficial e vazia de sentido. O movimento e a propagação da imagem está cada vez mais veloz, das tevês às telas dos celulares, dos aparelhos médicos de diagnóstico visual às câmeras digitais, do circuito interno aos satélites (SANTAELLA, 2008)18. Enquanto a imagem artesanal é feita para a contemplação, a fotografia se presta à observação e a pós-fotografia à interação.

3. CRISE E HEGEMONIA DA LINGUAGEM UNIVERSAL: IMAGÉTICA “A imagem pode ser o novo ópio do povo. Vivemos num mundo de reconhecimento, não de conhecimento. Vive-se realmente através da tela. Os meios de comunicação devem ser objeto de educação, não apenas um canal de informação. (...) Devemos aprender a ler e escrever e também a ler e a fazer imagens." (Marc Augé) Percebe-se hoje que o corpo se comunica facilmente através da imagem, por meio das mídias, o processo de mudança histórica das tecnologias e suas consequências socioculturais, através de interações entre seres humanos e aparatos tecnológicos, conferem novos significados e atribuições ao corpo. Assim, o sujeito da cibercultura atua dialogando com a 17

Op. Cit. p. 52

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SANTAELLA, Lucia; NÖTHO, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. 1ª edição. São Paulo: Iluminuras, 2008 (b)

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imagem através de interfaces, manipulando imagens e criando novas realidades com ela. Participamos da era da tecnologia digital, onde o imediatismo das informações configuram corpos em imagens almejadas de idealização, simulacro, instantaneidade. Um sujeito não necessariamente é praticante do surf, mas se ele tira uma self na praia segurando uma prancha, sua prática já ganha sentido e legitimidade. Crise do eu e convivência com as novas imagens da subjetividade do corpo. O avanço tecnológico permite que qualquer pessoa seja vista por uma grande quantidade de indivíduos, com isso busca-se a imagem ideal, que pode ser o que o sujeito desejar. Ao longo dos anos as relações entre corpo e mídia são utilizadas como um campo de trabalho do marketing para relacionar pessoas a produtos (seria o fetichismo da mercadoria e a reificação do homem, parafraseando alguns conceitos marxistas), sugerindo imagens para o eu, interferindo no estilo de vida e no modelo corporal, que permite ao sujeito fantasiar uma vida diferente, imaginar uma nova existência, como outro eu. Em suma, “as imagens do corpo e sua boa forma surgem assim como uma espécie de economia psíquica da autoestima e de reforço do poder pessoal.” (SANTAELLA, 2004). O belo, o ideal de perfeição e a ojeriza ao envelhecimento compõem o pensamento contemporâneo da imagem corporal na sociedade em que vivemos, as cirurgias bariátricas estão acontecendo, além de muitas outras para o alcance do corpo ideal almejado, além do grande desenvolvimento da indústria da beleza. Academias, Spas e programas de TV sobre o assunto proliferam. Para Vaz (1999: 163, apud SANTAELLA, 2004), o corpo consome principalmente a si mesmo, devido às investidas da indústria farmacêutica. Literal ou metaforicamente, Donna Haraway enuncia em seu Manifesto Ciborgue a existência de um corpo que comporta o mecânico e o orgânico, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social, dissolvendo fronteiras patriarcas de gêneros e dualismos hierárquicos. Segundo a historiadora - biologista, socialista e feminista -: “somos todos ciborgues”. Essa visão é fortemente pautada numa ideologia social específica, no entanto, tal pensamento se universaliza na medida em que declara o potencial polimorfo aberto à diversidade em formatos redesenhados de delineamento corporal. (HARAWAY et al. 2013)19

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HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do póshumano. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013

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A celebração viciante de autorretratos e o massivo fomento ao investimento narcísico alheio são agenciamentos coletivos e horizontais que, por ora, podem soar como novas formas de autonomia, empoderamento e autenticidade do usuário na rede. Porém, em contrapartida, esse soar pode, por vezes, ecoar como apenas mais uma das maneiras perversas e veladas de subserviência ao biopoder20 de instituições verticalizantes e mercadológicas de dominação, um sistema triunfando em detrimento da alienação e da ode a futilidade da grande maioria da massa dos usuários. “Na sociedade de comunicação generalizada, a ressaca da incomunicação pode fazer como que o sonho da aldeia global se transforme no pesadelo da torre de Babel.” (ROMANINI, 2008 : 234) A vigilância, antes nas sociedades do espetáculo de Debord, ou nas sociedades disciplinares de Foucault, e então nas sociedades de controle de Deleuze, na passagem e evolução das mídias e culturas de poder, era outrora panóptica (onisciente e inverificável, um vigia muitos) passando à sinóptica (massificada, muitos vigiam poucos) para então se tornar uma vigilância distribuída, à partir do advento dos weblogs, webcams e redes sociais diversas, de forma descentralizada e ecumênica. O estatuto da visibilidade sempre foi constituinte dos modos de ver, ser e sentir no mundo (BRUNO, 2013) Ademais, Dominique Wolton apud Romanini (2008), também nos diz que “é justamente a onipresença e aparente onipotência da comunicação que a tornam frágil e ameaçada.”

Caverna - Daguerreótipo - Câmara escura - Polaroid - Câmera Digital - Celular Em época recente, a fotografia tornou-se um passatempo quase tão difundido quanto o sexo e a dança – o que significa que, coimo toda forma de arte de massa, a fotografia não é praticada pela maioria das pessoas como uma arte. É, sobretudo, um rito social, uma proteção contra a ansiedade e um instrumento de poder. (...)

A imagem pré-fotográfica convida o receptor a um contato imediato sem mediações, ao mesmo tempo em que produz um afastamento. A imagem fotográfica é observável, basicamente. E a imagem pós-fotográfica (perfeitamente exemplar no Snapchat) tem o caráter dominante da interação, suprimindo qualquer distância, produzindo um mergulho, imersão, navegação de usuário no interior das circunvoluções da imagem (Ibid)21. Ideias sobre uma era pós-fotográfica convergem hoje para o cenário da realidade virtual e para os prognósticos que têm vindo com ela sobre o futuro e a natureza das mudanças na cultura visual. (...) argumenta-se que a realidade virtual irá introduzir 20

Ver PELBART, Peter Pál. Vida e Morte em Contexto de Dominação Biopolítica. São Paulo: IEA/USP, 2008

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Op. Cit. p. 174b

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uma cultura para além da representação, uma cultura na qual as imagens não mais se referirão ou farão mediação de uma realidade socialmente dada. Ao contrário, as imagens serão virtualmente (para todos os efeitos) a realidade ela mesma. Em outras palavras, todo o sensorium humano estará engajado em um ambiente eletrônico que se tornará “virtualmente” indistinto das realidades sociais e materiais que as pessoas habitam ou desejam habitar. (LISTER, 2001 apud SANTAELLA, 2003)22

Atualmente, a fotografia apresenta um crescimento exponencial de utilização, ao se tornar acessível por meio de aparelhos celulares smartphones, e mais não apenas por câmeras. A imagem tem sido mais estimulada, contribuindo assim para que a sociedade adote novos valores, tanto comerciais quanto icônicos. Em linha cronológica, a imagem seria representada no passado em pinturas e quadros; na modernidade, é a fotografia impressa e natural; já na contemporaneidade, as imagens são digitais e instantâneas, fator contribuinte para a propagação em redes sociais que tratam a imagem como seu principal difusor, exemplificando o Instagram: puramente imagético, cuja função exclusiva é a visualização e exibição de fotografias (especialmente autorretratos, mas não unicamente). Não obstante, é possível ainda vincular esse aplicativo a outras redes sociais, gerando um alcance de público atingido muito maior. Em seu ensaio Sobre fotografia, Susan Sontag, ainda na década de 70, discorre sobre as vicissitudes e singularidades de uma arte tão comum aos seres humanos desde eras remotas, a autorepresentação por meio de registros fotográficos. Suas associações sociais, poéticas e históricas tratam a fotografia de uma maneira assombrosamente atemporal, pois o texto ainda é bastante atual, quase meio século depois: (...) A necessidade confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens. É a mais irresistível forma de poluição mental. Um pungente anseio de beleza, de um propósito para sondar abaixo da superfície, de uma redenção e celebração do corpo do mundo – todos esses elementos do sentimento erótico são afirmados no prazer que temos com as fotos. Por fim, ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento público tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada. Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto. (SONTAG, 2004)

Comunicar é função e ideal, habilidade e necessidade intrínseca humana - primordial tanto na política, na economia, na sociedade e sua cultura, quando na filosofia e no próprio exercício da vida. Em nossos tempos pós-modernos nos deparamos com misturas, amálgamas e fluidez, uma dispersão delirante baudrillardiana; um transbordamento. Frente ao ciberespaço

22

Op. Cit. p. 143

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- o loco legítimo de nosso habitar atópico23 - há duas vertentes de pensamento: o disfórico e o eufórico, os quais consistem (grosso modo) em visões negativas e positivas, respectivamente, acerca da cibernética. Para todos os efeitos, a realidade virtual está posta, e suas reverberações são evidentes em nossas vidas, sendo assim, faz-se necessário que tal espaço em vias de ocupação seja utilizado “com um faro que seja política e culturalmente criativo, antes que o capital termine por realizar a proeza de colonizar o infinito.” (Ibid)24 “Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto.” (SONTAG, 2004)

4. MEDIAÇÕES CORPO BIOCIBERNÉTICO A mediação pode ser caracterizada pelo fenômeno de interpolação entre o sujeito cognoscente e o objeto de conhecimento, e no “cibercontexto”, erigem-se infindáveis heterotopias25 pelas quais navegamos passando por nossas crises de identidade fragmentada, na premência de reinaugurações do estatuto identitário e corporal, o que vem a suplantar os fadados paradigmas da modernidade analógica industrial-capitalista de massas. Nós, “biocyborgues”26, munidos de aparatos tecnológicos extensores do corpo, remanescemos póshumanos ou pós-orgânicos, embebidos da cultura midiática (SANTAELLA, 2003), assolados pela derrocada narcísica.27 Um paradoxo mediativo. Entrementes, se a comunicação digital se faz baluarte das relações contemporâneas, temos uma radical mudança de paradigma no estatuto da fisicalidade: os corpos se projetam e se articulam por vias que não são mais simples e unicamente terrestres, fluviais, marítimas,

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Conceito atribuído ao autor Massimo Di Felice. Op. Cit.

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Op. Cit. p. 76

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Ver FOUCAULT, Michel. O Corpo Utópico, As Heterotopias. Editora N1, 2013

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Alusão ao termo biocibernética. Ver SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2003. 27

Primeiramente, Copérnico denuncia que a Terra não é o centro do universo, mas gira em torno do sol; mais tarde, Darwin denuncia que o ser humano não é o centro da criação, mas resultado da evolução das espécies (em particular, dos macacos), e então, para legitimar a fragilidade do narcisismo humano, Sigmund Freud denuncia que o homem não é o senhor de si mesmo, mas, antes, determinado pelas razões de seu inconsciente.

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aéreas ou ferroviárias, mas já biocibernéticas, no campo da imagética e do discurso virtual, por meio de algoritmos, em franca ubiquidade. A cultura digital contemporânea engendra o eixo das mutações na sociedade, inexoravelmente, e o fator mais determinante da influência das novas tecnologias em nossas vidas é a velocidade com a qual tais mudanças ocorrem, algo sem precedentes na história (Idem)28. Agora, no século XXI, somos atores e expectadores de velozes transformações nas relações interpessoais, sobretudo por meio das redes sociais. Na virtualização dos encontros, nossa experiência de vida é hoje inextricavelmente mediada pela tecnologia. A ideia de inclusão social já se dilui na noção de inclusão digital. A corporeidade se fragmenta primeiramente através da imagem, por dispositivos dos mais variados. O corpo como movimento em tempo-espaço torna-se uma repetição, reprodutibilidade, mimese. Talvez o sujeito esteja se dissociando do seu corpo através de sua imagem (pré)concebida. O corpo do homem, enquanto sujeito civilizado e cultural - moldado pela ação conjunta merleau-pontyana de “ser-no-mundo” - não é apenas físico-biológico, psicológico ou sócioantropológico, ele existe e sofre efeitos do tempo e espaço físico determinado, em constante devir. Relacionamo-nos com nossos próprios corpos através das vias de civilidade e cultura, instâncias já emaranhadas na tecnologia, mas, sobretudo, através da linguagem e do discurso, que por sua vez compreendem normatizações, gramáticas e estruturas que relegam o corpo físico e sensorial, sobressaindo-se a ele – e não há nenhuma oblação a Platão nesta colocação. A questão da identidade está justamente em crise, há um curto-circuito de informações que emanam e atingem o corpo em suas vicissitudes. A identidade é imagética e estética, todavia. As tecnologias consubstanciam-se à vida, indissociavelmente, deixando de ser uma opção funcional, mas sim uma necessidade. A cada momento há uma nova imagem, um novo acontecimento, um novo dispositivo, e a rede global agudiza esse fluxo em tempo real. A grande maioria social se informa e se excita nesta incontrolável profusão. A humanidade remanesce conectada 24h por dia, como ciborgues29. Aliás, onde terminaria e começaria a visão de um indivíduo míope de óculos, ou mesmo a escuta de um usuário de telefone celular? Onde termina o humano e começa a máquina?

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Op. Cit. SANTAELLA, 2003 : p. 17

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Ciborg é um neologismo composto pelos termos cibernético e organismo coadunados. Denominação inventada por Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline em 1960, num contexto de pesquisas científicas para as viagens espaciais norte americanas, designando sistemas de homem-máquina autopoiéticos que pudessem se adaptar a condições ambientais adversas. (SANTAELLA, 2006: 185)

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Torna-se pertinente uma reflexão sobre os fenômenos que atravessam o corpo nas dimensões imagética e estética do corpo humano, neste contexto histórico de superutilização de dispositivos tecnológicos de comunicação. Por meio do corpo, nos apropriamos de valores, normas e costumes sociais, num processo de incorporação. Aprendemos a cultura por meio do corpo, caminhando através dela, nos relacionando com o mundo que nos circunda pela linguagem corporal. O corpo torna-se depositário de cultura, receptáculo de informação, e é moldado pela ação conjunta de outros corpos nas circunstâncias que a cultura lhe confere,

O meio é a “massagem” (Marshall McLuhan) O pensamento de Marshall McLuhan pode ser tomado por muitos como ultrapassado nos dias de hoje, visto que premonições como a aldeia global não se deram exatamente. No entanto, esse tipo de projeção futura se mostra muito trivial se comparada às tantas outras reflexões do autor sobre os meios de comunicação, suas vicissitudes e inflexões na vida social. Seu discurso foi um disparador de elucidação aos novos paradigmas do desenvolvimento tecnológico, ainda na década de 60, quando a comunicação digital apenas se vislumbrava, ainda não existia, e não estava radicalmente posta como hoje. Naturalmente não vivemos uma aldeia global hoje, pois a analogia do microcosmo projetado num macrocosmo não é literal, justamente por ser uma analogia. Nossa globalização é muito complexa e dela advém bônus e ônus, a real essência de uma aldeia cultural, na qual as pessoas, de fato, se aproximam, trocam e criam por meio da estética e da experiência foi sendo paulatinamente perdida, desde a primeira revolução da história da comunicação: a invenção da escrita. Desde então a humanidade, ao passo em que se desenvolve intelectualmente, em franco potencial, também deixamos de desenvolver habilidades próprias da cultura oral, dos afetos, do ritual, das tradições, da comunicação através de imagem, da expressão de pensamentos através da imagem, que pressupõe uma racionalidade outra, não positivista, não industrial, não tipográfica; um campo de percepção que foi relegado através dos séculos, que precisa ser resgatado. É uma questão paradoxal. McLuhan, enquanto filósofo por legitimidade, elenca questões brilhante sobre os meios como extensões do homem – mas bem que poderia ter sido menos sexista com a escolha de seu

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titulo -, as feições narcísicas e consumistas que acessamos ao nos diluírmos em próteses corporais, em ambientes e esferas cada vez mais cíbridas. (MCLUHAN, 1974, Op. Cit)

5. SOBRE EDUC(OMUNIC)AÇÃO Como já descrito, este artigo se inspira fortemente no movimento secundarista das ocupações estudantis paulistanas de 2015, visando desdobrar e refletir as ressonâncias desse marco de manifestação na sociedade, para que a promoção de debates e melhorias na ação de educar e ser educado não cessem ou que se transtornem para utopias necessárias. A partir desse âmbito faz-se necessário debater qual é o espaço que efetivamente temos no mundo para a criatividade individual e coletiva, promover o empoderamento dos indivíduos, respeitar - e valorizar! - a diversidade, novas maneiras de aprendizagem, criação de conteúdo e formação cultural. A saber, na contracorrente das normatividades do estatuto lógicopositivista e disciplinar do racionalismo científico moderno, do estruturalismo. Tópicas cujo debate está longe de ser inédito, no entanto, é ainda mais que premente em nossa sociedade. Brota uma centelha textual de iniciativa para novas formas de produção de conhecimento e criação de sentido nos espaços escolares e acadêmicos, para justamente ultrapassar os limites disciplinares e ortodoxos destas instituições, ou até suspendê-los. A partir dos pilares da transdisciplinaridade, vislumbramos uma diluição da segmentação das disciplinas, contudo, aproximações com as esferas arte e com a filosofia são necessárias e potencializadoras. Reivindica-se aqui um espaço real e imaginário para possibilidades de “ser no mundo” com igualdade e profundidade para todos os indivíduos submetidos a obrigatoriedade escolar, desobrigando-os da padronização e da maquina normatizadora que é o sistema educacional moderno. Estimulando a educação, a ação pedagógica, educativa, proativa, intercambial e experenciadora em todas as instâncias da vida das pessoas. Emergir o lúdico, o estético, o sensível, a troca, a expressão de pensamento por outros meios que não apenas a linguagem pictórica, escrita e científica. Reincide a pergunta: A estrutura educacional, especialmente a brasileira, é ainda eficaz considerando os novos contornos da comunicação digital contemporânea?

Vislumbramentos

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As mudanças socioeconômicas e culturais do século XXI incitam novas perspectivas de desenvolvimento humano, na educação e nos estatutos ideológicos do trabalho e da qualidade de vida. A globalização, otimizando e potencializando a hegemonia do capitalismo (um sistema quase religioso na atualidade), pode trazer à tona um sentido de proximidade entre os indivíduos em todo planeta, uma “Aldeia Global McLuhaniana” – especialmente por conta do advento da comunicação digital e suas redes sociais – mas esse quadro de conclusão pragmática é deveras falacioso. As transações de comércio exterior multilaterais; intercâmbios acadêmicos estrangeiros; exportação de capital intelectual; influências comerciais e publicitárias ocidentais predominantes, sobretudo através da hegemonia da economia norteamericana, corroboram o crescente “fundamentalismo” das relações capitalistas; as virtualização das relações, e tantas outras hiperconexões ramificadas provenientes da globalização agudizam o paradoxo da noção de totalidade identitária na vida dos seres humanos, a noção de unidade, o teor agregador dos habitantes de um mundo em comum. Vivemos em crise num período no qual os paradigmas de racionalismo lógico-positivista já não comportam mais nossas vidas contemporâneas. Os valores modernos já são ineficazes, portanto talvez estejamos vivenciando um processo de reencantamento do mundo (com inspiração de Michel Maffesoli em remissão a Max Weber), no qual temos a insurreição pululando das periferias mais díspares provocando impressionantes agrupamentos sociais, que seriam impossíveis senão com o dispositivo da comunicação em rede. Com efeito, os modelos de educação, veiculação de informação e produção de conhecimento evidentemente não passariam incólumes. A educação e seu estatuto de reprodução de padrões vêm ruindo, nitidamente. Há que se perceber, mais do que nunca, em tempos caóticos de corrupção política, ruptura e pós-modernidade (ou estiramento da modernidade), a importância de vivenciarmos o micro para ressonar no macro, experenciar regionalmente para agir globalmente. É o empréstimo filosófico de Guimarães Rosa, que nos mostra “o universal a partir do singular”. Contextualizados na contemporaneidade, os breves apontamentos da nossa realidade acima citados revelam a necessidade histórica de inovação e reestruturação do pensamento - e da produção de pensamento - de acordo com as contingências da evolução da sociedade como um todo. É unânime em todo o planeta que a educação infantil, fundamental, secundaristas, superior e a atividade acadêmico-científica locomovem-se em prol de problematizações, soluções e questionamentos da condição humana, e atuam num papel importante de transformação social, têm uma importância atroz na vida. 17

Por essas considerações, a constante reciclagem pedagógica e institucional da educação como um todo é condição sine qua non para ascensão e para o sucesso da prática educacional de formação dos cidadãos – a base que solucionaria (pelo menos) a maioria das mazelas da história. Tanto a esquerda quanto a direita dirão que a solução está na educação, tanto a perspectiva liberal conservadora (capitalista) quanto a democrática progressista. Mas de qual educação precisamos? Em sentido lato, a educação hoje está envolta por burocracias e especificidades políticas, sobrecarga dos discentes e docentes é enorme, numa busca incessante de rendimento, produtibilidade e publicações acadêmicas. Não seria ousado dizer que este processo desembocaria numa corrida “narcísica” e competitiva entre todas as instituições mundiais de ensino superior, nos palcos de rankings das melhores universidades. Qual seria a diferença entre Escola e Universidade? Aulas acontecem como palestras, workshops, vivências, debates, ou o que? O aluno aprende a exercer sua autonomia nas grades curriculares de graduação tradicionais e vigentes quase que da mesma forma que se estende desde o século XIX? O ensino infantil, de lúdico logo se transforma em ditador, a criatividade é inibida desde os primeiros anos de formação da criança, crescemos acreditando (e temendo) que haja somente uma resposta certa, e que não devemos errar. Segundo Paulo Freire, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua produção ou a sua construção.”30 Os módulos de ensino básico, fundamental e médio (sancionados por lei31), encerram-se numa carnificina para os concursos vestibulares, onde não ocorre inclusão de todos os estudantes, e muitos deles encerram sua trajetória acadêmica, lançando-se ao mercado de trabalho, dentro de suas possibilidades – ou falta delas. A filósofa Marilena Chauí nos acorda para questões bastante pertinentes aos rumos da pedagogia contemporânea: (É preciso) assegurar, simultaneamente, a universalidade dos conhecimentos (programas cujas disciplinas tenham nacionalmente o mesmo conteúdo no que se refere aos clássicos de cada uma delas) e a especificidade regional (programas cujas disciplinas reflitam os trabalhos dos docentes-pesquisadores sobre questões específicas de suas regiões). Assegurar que os estudantes conheçam as questões clássicas de sua área e, ao mesmo tempo, seus problemas contemporâneos e as pesquisas existentes no país e no mundo sobre os assuntos mais relevantes da área. (CHAUÍ, 2003) 30

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. p. 22 (1996)

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BRASIL, 2004. Lei n° 10.861, de 14 de abril de 2004. Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES e dá outras providências. Presidência da República. Brasília, DF: Diário Oficial da União de 15.04.2004.

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A partir destas premissas, é possível vislumbrar ou pelo menos analisar alguns aspectos a serem modificados nos sistemas de formação não só de escolas fundamentais e secundaristas, mas também de quaisquer outras instituições privadas, públicas, municipais, estaduais ou federais no Brasil. Os requisitos para conquista de créditos, nota, competição, avaliação, as formalidades e extensas cargas de horas (sancionadas por lei) acabam por vezes sendo contraproducentes à criação e fruição do conhecimento, além do tolhimento da edificação de algum caráter ideológico e autônomo dos alunos. A ação engajada, questionadora e transformadora da realidade é mais do que necessária, e deve ser afinada e estendida, viralizada. Este introito visa esboçar nossa contemporaneidade híbrida, multifacetada e fragmentada, em franca dromocracia (ver Eugênio Trivinho e Paul Virílio), em transição, com agendas sociais muito importantes, num momento profícuo. Destarte, uma recente corrente teórica epistemológica se adéqua às necessidades urgentes de reinvenção da educação contemporânea: a transdisciplinaridade.

A Transdisciplinaridade Em linhas gerais, é uma metodologia “não-metodológica” que sugere não a supressão, mas ao menos a suspensão, ou diluição das divisões disciplinares que conhecemos. O prefixo trans compreende o entre, o através e o além, (NICOLESCU, 1994 : 46) e este termo teve sua aparição com Jean Piaget no “I Seminário Internacional sobre Pluri e Interdisciplinaridade”, França em 1970 , e viria para suplantar o interdisciplinar e o multidisciplinar. O mesmo termo reaparecerá em 1986 no colóquio “A ciência Diante das Fronteiras do Conhecimento", organizado na Itália, onde se debate a pertinência da aplicação de resultados de pesquisas científicas, denunciando a defasagem em relação ao que é continuado nas escolas e ao que vem descobrindo na atualidade, clamando uma “troca dinâmica entre as ciências exatas, humanas, a arte, a tradição”. (SOMMERMAN, 2006 : 188) Em Portugal, 1994, vários pensadores, entre eles Edgar Morin, agiram em sinergia para composição da Carta da Transdisciplinaridade: “métodos de lidar com o conhecimento, sua transmissão e aplicação; o respeito e a valorização das diferentes culturas, sobretudo quando estas se chocam; a possibilidade de se criar, enfim, um mundo onde todos os indivíduos - bem 19

como a natureza, a tecnologia, a política, a ciência e a religião - encontrem seu espaço de expressão sem interferir negativamente no desenvolvimento dos outros.”32 Destacamos alguns pontos da carta: A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa. (...) Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos.

O que se propõe é a superação da lógica da ciência e do pensamento modernos. A ciência moderna nasceu da ruptura em relação à antiga visão teocêntrica do mundo. Ela está fundamentada na ideia da separação total entre o indivíduo conhecedor e a realidade, tida como completamente independente do indivíduo que a observa. A transdisciplinaridade seria também a “ressurreição do indivíduo”, considerando o repertório de toda pessoa em sua plenitude. Ser trans em relação às disciplinas é ultrapassá-las, problematiza-las, com autonomia e autoria, por meio da experimentação e do pensamento complexo, não ingênuo ou compartimentado. As novas gerações contemporâneas apresentam novas necessidades e com isso, enfatiza-se a imprescindibilidade de modificar os atuais métodos de ensino para que haja a compatibilidade com as metas e modos dos alunos secundaristas ou universitários, ou quaisquer. Atrelado a tal aspecto trouxemos à tona a transdiciplinaridade que se anuncia como a atualização de nossa postura frente ao conhecimento - postura esta que não ocorrerá naturalmente: resulta de uma escolha, de uma decisão por abandonar os pressupostos modernos nos quais fomos educados. A transdisciplinaridade se anuncia como a atualização de nossa postura frente ao conhecimento - postura esta que não ocorrerá naturalmente: resulta de uma escolha, de uma decisão por abandonar os pressupostos modernos nos quais fomos educados. O que é um diálogo entre dois seres na falta de pontes, de uma linguagem comum? Dois discursos paralelos levando a mal-entendidos intermináveis. O que é um diálogo social na falta de pontes entre os parceiros sociais? Um 32

Carta disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/39/39133/tde-21052012093302/publico/ANEXOA_Carta_Transdisciplinaridade.pdf Acesso em Nov, 2015 20

mercado de ludibriados que só agrava as rupturas sociais. O que é um diálogo entre as nações, os estados e os povos desta Terra na ausência de pontes entre eles? Um adiamento temporário do confronto final. Um verdadeiro diálogo só pode ser transdisciplinar, baseado em pontes que ligam, em sua natureza mais profunda, os seres e as coisas.33

Interpretar os fenômenos sociais e naturais a partir da postura moderna, hereditária do Humanismo, impede que nossa relação com o mundo se dê plenamente. Ora, as vertigens sociais do último século resultam não mais do que a incapacidade coletiva de abertura ao novo, à co-habitação e às diferentes realidades que se revelaram na nossa frente com a globalização. A transdisciplinaridade, mais que o reconhecimento da não-centralidade do ser humano no universo, é o reconhecimento da não-centralidade do nosso ego: é perceber o mundo como criação coletiva de sentido por meio da hibridação das disciplinas, das culturas e das tecnologias. A transdisciplinaridade se manifesta em uma postura deliberadamente diferente frente ao conhecimento (que agora deve se dar na intersecção das áreas e voltadas para o ser humano), à natureza (que de escrava de nossas vontades se transforma em cúmplice) e às diferentes realidades dos outros seres humanos (que, antes de rechaçá-las, devemos buscar integrá-las às nossas). O rompimento das práticas de ensino já executadas é estritamente gradativo e contínuo, estes fundamentos teóricos são incorporados conforme as demandas que surgem, são como princípios ideais de um sistema em devir. Embora seja uma mudança deveras radical, o intuito desse estudo é a abertura a novas formas de agir no âmbito cultural/educacional e social, que entrelacem o campo das ideias e teorias com a realidade apresentada.

Da razão sensível A reconfiguração da sociedade e do estatuto do corpo humano – já interdito nos meandros da cultura digital, cíbrido, fragmentado e atópico – é inelutável. A dimensão e a velocidade com as quais trocamos tecnologias, dados e informações em rede se dão de maneira profusa e ubíqua, algo sem precedentes na história da comunicação. Uma nova lógica de vida está posta - sui generis - porém, sua compreensão pela humanidade ainda está em processo, precisamos aprender a nos adequar aos fenômenos inaugurais da contemporaneidade que pululam cada vez mais acelerados. Através dos caminhos desse trilho de franca evolução científica, técnica, 33

NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 1999, p. 92. 21

racionalista, positivista e industrial - inteiramente voltada ao capital -, precisaríamos verificar o desejo, a potência, o afeto, a subjetividade, o ritual, a alteridade e tantos outros atributos inerentes à natureza humana que vêm sendo relegados em prol do desenvolvimento tecnológico; não há tempo para fruição da vida além das obrigações de trabalho, uma ideologia mundial do legado ascético. A saber, precisamos abrir a agenda dos afetos, a emoção é o que há de mais premente em nossas subjetividades. O autor Luiz Carlos Restreppo, com sua obra Direito à Ternura, vem para nos lembrar do quão pertinente é repensarmos a filosofia da mente, a lógica da experiência, dos afetos, da emoção, do sensorial e do sentimental. Nosso próprio sistema sensorial (preponderantemente ocular), a publicidade, o consumo, os veículos de comunicação de massas se coadunam para perpetuar uma hegemonia audiovisual, uma conjectura que pode sugerir atrofia dos sentidos, onde esquecemos que podemos nos relacionar esteticamente com o mundo através da audição, do tato, do olfato, do paladar, ou numa plena integração dos sentidos e não-sentidos, criando novos sentidos, ou ressignificando signos assignificantes, como na arte. A comunicação digital tem seu ônus e bônus, naturalmente, a transformação histórica e sociopolítica é inequívoca, pois com a cultura em redes podemos criar novas maneiras de participação social, nos utilizando do potencial dos mecanismos de empoderamento que advém desse novo formato de habitar o planeta, todavia, a capacidade proxêmica de situar-nos em dada realidade e reagirmos contextualmente vem ocorrendo precariamente no espaço digital. Com efeito, deve-se atentar para o ameaça da redução do nosso repertório cognitivo – somente pela visão, pelo que nos é imposto? -. Nesse teor o filósofo americano John Dewey nos dá sua obra Arte como experiência para discorrer a lógica da experiência. Outros autores como Paulo Freire serão influenciados por suas ideias, e outros pensamentos contemporâneos brotaram nesse sentido: percebermos o ambiente profícuo da poética do acaso, nos disponibilizando a afetar e sermos afetados pela contingência na vida, por meio da pedagogia do sentimento, que possa suplantar a dinâmica cartesiana da modernidade. O corpo é força motriz da existência, a expressão material e física da alma ou do espírito, que nada mais são que continuidades rizomáticas da natureza. Nossa natureza é emocionante, certamente. (RESTREPO, 2000) Logo no século XVIII foi pensado: Os sentidos – e os conhecimentos que deles derivam – permitem imaginar uma gnosiologia inferior. Não duvido que possa existir uma Ciência do Conhecimento

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Sensível... intermediária entre a sensação pura, obscura e confusa, e o puro intelecto, claro e distinto. Ela não é nem algo existente na própria Coisa, nem pura criação do ser humano: é o resultado de uma síntese particular, harmonia entre Coisa e Pensamento. O conceito sensível é particular, como objeto de sensibilidade; geral como objeto de entendimento. (BAUMGARTEN apud BOAL, 2009 : 25)

6. OS OITO SNAPCHATS DE SCHILLER 1. Impulso lúdico;  2. Beleza enquanto moralidade;  3. Liberdade; \o/ 4. Contemplação; O.O 5. Educação pela arte; #^&*(&*()_²³¤€ ‘’ 6. O ser humano absoluto. _I_34 Acima estão elencados os pilares que definem os principais conceitos propostos por Schiller em suas cartas sobre e Educação Estética da Humanidade; A importância da brincadeira, de transformar o universal em particular e vice-versa, ver a vida com mais leveza, criatividade, poetizando o acaso, transfigurando objetos no imaginário... tudo isso nunca foi tão necessário numa sociedade de hegemonia ocidental capitalista, que impinge a cultura da competição e da punição ao erro; Para Schiller, havia uma estreita relação entre o Belo e o Bom, aí reside uma questão ético-estética, fortemente influenciada pela filosofia de Immanuel Kant. Algo perfeitamente discutível hoje, mas compreensível para a época; A liberdade incide em sua obra como um dos princípios também marcantes da Revolução Francesa, na qual o escritor teve muito de participação e influência. Infelizmente o curso tomado pela insurreição francesa, com a ascensão da burguesia, o Estado Nacional, a Idade Moderna e as mazelas do racionalismo exacerbado do iluminismo, Schiller viu seus ideias sendo deturpados, esvanecidos; A contemplação e a educação pela arte seriam o cerne e a essência para a formação social do cidadão, para constituição de sua subjetividade enquanto ser agente no mundo que consegue se relacionar poética e sensivelmente com seu entorno. Somente a arte poderia sensibilizar o ser humano a ponto de prepara-lo para se articular em todas as suas esferas de vida. Intervindo na contingência, em devires. Apenas por meio da estética, do domínio do sensível e da percepção, no reencontro com a natureza, o indivíduo legitimaria o seu “ser humano absoluto”, pleno, feliz. 34

SCHILLER, 1974, Op. Cit.

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Coadunando a estes conceitos, a dinâmica da comunicação digital, às possibilidades da hipermídia, os sistemas auto-organizáveis, a autopoiése, a transdisciplinaridade, por que não refletirmos essas ideias que se mostram tão pertinentes ainda hoje? Verificamos que as transformações advindas da cultura digital - deveras revolucionárias na história da comunicação – conferem novas configurações ao corpo e suas representações, possibilidades, vícios e vicissitudes. O Snapchat vem se mostrando a metáfora de uma época (ou prospecção). Efemeridade atroz. É importante notar que a contemporaneidade vem sendo marcada pela grande transformação de comunicação social proveniente da cultura digital. Este novo paradigma - de ordem estética, social e política – reconfigura todo o sistema de convívio interpessoal, nossos afetos, nossa cognição, nossa atenção, nossa maneira de verificar o mundo, mas em contrapartida - e sobretudo – nos permite o empoderamento para a produção de conteúdo e sentidos, suplantando a tópica da modernidade analógica, na qual um cerne nevrálgico transmitia informação para as periferias de maneira unívoca. Hoje, analogamente a um rizoma, a informação e a comunicação pulula e emerge, ramificada, de todos os lugares, materiais

e

principalmente

imaterias,

ganhando

dimensões

extrageográficas

e

desterritorializadas. A liminaridade e oscilação do real e do virtual nunca foi tão tênue. Acima de juízos de valor, é sabido que apesar das inúmeras mazelas apontadas pela literatura e também pelo senso comum, podemos nos utilizar positiva e potencialmente dos mecanismos de interpelação horizontal, democrática, coletiva, colaborativa, instantânea e acessível das redes sociais. A educação estética, física e sensorial da humanidade seria o suporte necessário para evitar as desmesuras dos sintomas sociais. Podemos considerar este ensaio como um pontapé inicial, embrionário, inspirado no corpo através das mídias e seu desdobramentos sociais. Um levantamento de questões criticas sobre a cultura contemporânea que afeta o corpo, num elogio às novas tecnologias digitais e na problematização do comportamento biopsicossocial e seus sintomas, sob um olhar amplo. Esses vislumbramentos podem incitar mais pesquisas que possam imergir ainda mais neste tema tão profícuo. Corpos híbridos e hiperprojetados, artífices de imagens que podem compor um mundo outro. Talvez um novo ecossistema a ser explorado, que transcenda o que já imaginamos e

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registramos. Para descobertas e sensações que não poderiam ser alcançadas senão por meio de imagens multiinformacionais.

Imagens, sons, palavras... outros sentidos... É curioso como até o século XV era muito mais comum que as pessoas exprimissem pensamento por meio de outros suportes que não somente a linguagem. Por imagens, por exemplo. Isso foi se perdendo com o advento da escrita, da imprensa, da indústria, da cultura de massas e da cultura digital, cronologicamente. Grandes ensinamentos da cultura oral (de poucos grupos étnicos que vêm sendo cruelmente extintos por serem excluídos da sociedade e de suas próprias terras, como os indígenas brasileiros) também foram se evanescidos através dos tempos, uma comprovação das implicações que castram e podam determinados instintos, e potenciais sensórias dos humanos, em detrimento da hiperespecialização, do virtuosismo e de uma quase fetichismo da linguagem e do discurso científico, acadêmico, culto, da elite. Como se articular, essencialmente, honestamente e esteticamente em tempos de violência digital, na qual o indivíduo apenas consegue se legitimar como cidadão pleno e com acesso a todo o contingente de cultura, oportunidade e informação possíveis caso esteja conectado em tempo real e tenha um perfil muito bem formatado nas redes das novas tecnologias digitais? Os excluídos digitais entram em estado de anomia; os incluídos são normatizados dentro dos padrões de comportamento e de vigilância da rede, da geolocalização e dos filtros que rotulam perfis de consumo. Como militar frente a este cenário de regime de cárcere aberto, subserviência voluntária e hegemonia do capital? Quais são os mecanismos e ferramentas para além da linguagem, do discurso, do léxico, da tradição e da morfologia de códigos pictóricos ou de algoritmos que ainda não descobrimos? Se o meio é a massagem, ele estaria relacionado aos sentidos, ou sensações, certo? Tais sensorialidades são, destarte, reconfiguradas e arranjadas exatamente de acordo com a conjectura abstrata que advém do espaço cibernético, que vai se consolidando cada vez mais, sem que percebamos sua enorme dimensão e ubiquidade. Somos filhos da terra e do ecossistema e reféns do ciberespaço contemporâneo em cárcere aberto. Por sorte somos humanos. (MCLUHAN, 1974, Op. Cit) 25

“Somente através da beleza da manhã é possível penetrar a terra do conhecimento.” (Schiller, 1794) 26

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2005 NICOLESCU,

Basarab.

Trad.

Lúcia

Pereira

de

Souza.

O

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da

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