Sob capas e mantos: roupa e cultura material na vila de Itu, 1765-1808

July 16, 2017 | Autor: Ligia Guido | Categoria: Material Culture Studies, Clothing
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LIGIA SOUZA GUIDO

SOB CAPAS E MANTOS: ROUPA E CULTURA MATERIAL NA VILA DE ITU, 1765-1808.

Campinas 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LIGIA SOUZA GUIDO

SOB CAPAS E MANTOS: ROUPA E CULTURA MATERIAL NA VILA DE ITU, 1765-1808.

Orientadora: Profa. Dra. Leila Mezan Algranti

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Mestra em História, na área de concentração Política, Memória e Cidade.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA LIGIA SOUZA GUIDO, ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LEILA MEZAN ALGRANTI E APROVADA PELA COMISSÃO JULGADORA EM 11/02/2015.

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RESUMO

O presente trabalho dedica-se ao estudo das roupas nas dimensões material e simbólica no período que corresponde ao crescimento da produção açucareira e da consolidação do núcleo urbano da vila de Itu, capitania de São Paulo, entre 1765 e 1808. A aparência dos indivíduos em uma sociedade com características de Antigo Regime aliada a presença da escravidão consistia em um elemento importante de identificação e ordenamento social. A materialidade é compreendida através da descrição e da valoração atribuídas aos artefatos têxteis descritos principalmente nos arrolamentos de bens dos inventários post-mortem. Procedemos ao levantamento de informações complementares sobre os indivíduos junto aos Maços de População (censos) e em trabalhos de genealogia. Também coletamos dados sobre as importações de produtos realizadas pela de vila de Itu nos Mapas de Importação, relação pertencente aos Maços de População. Através dos bens descritos na documentação de quarenta e quatro inventariados que residiam na vila de Itu, foi possível montar um quadro da composição material dos bens dos indivíduos e seus domicílios, vislumbrando suas fontes de rendas, seus espaços de trabalho, de moradia, bem como os objetos que compunham os seus pertences. No momento em que os bens eram divididos entre os herdeiros, os objetos ou a quantia referente aos dotes ou adiantamentos de heranças eram mencionados, evidenciando assim, a circulação de bens promovida em vida e após o falecimento de um dos genitores. Além dos inventários da vila de Itu, foram consultados vinte e quatro inventários póstumos da cidade de Lisboa, referentes aos mesmos anos da amostra ituana, para efeito de comparação entre os padrões metropolitanos e coloniais de tipos de roupas, tecidos e adereços em circulação antes da abertura dos portos brasileiros em 1808.

Palavras-chave: Vestuário, Cultura Material, Vila de Itu (São Paulo).

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ABSTRACT

This work is dedicated to the study of clothing considering both material and symbolic dimensions in the period that corresponds to the growth of sugar production and to the consolidation of the urban nucleus of the small town Itu, captaincy of São Paulo, between 1765 and 1808. The appearance of the individuals in a society during the so-called Old Regime, combined with the presence of slavery was an important element of identification and social ranking. Materiality is understood from the description and the rating assigned to the textile articles described mainly in listing of goods of post-mortem inventories. The survey was conducted for further information on individuals from the Maços de População (census) and genealogy work. We also collected data on imports of products made by the Itu village next to the Mapas de Importação, this relationship belonging to the Maços de População. Through the goods described in the documentation of forty-four inventoried residing in small town Itu, it was possible to assemble a picture of the material composition of the assets of individuals and their homes, seeing their sources of income, their workspaces, housing and the objects that made up their belongings. By the time the goods were divided among the heirs, the objects or the amount related to gifts or inheritances of advances were mentioned, thus underlining the movement of goods promoted in life and after the death of a parent. Besides the inventories from Itu, nineteen posthumous inventories of Lisbon were consulted, relating to the same years of Ituana sample for comparison between metropolitan and colonial patterns of kinds of garments, fabrics and accessories in circulation before the opening of Brazilian ports in 1808.

Key words: Clothing, Material Culture, Small town Itu (São Paulo)

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SUMÁRIO

Introdução..............................................................................................................................1 Capítulo 1 A vila do açúcar: configuração espacial e a posse de bens em Itu...............23 1.1 Aspectos históricos e populacionais de Itu.....................................................................24 1.2 Os cabedais dos ituanos nos inventários póstumos.........................................................50 1.3 O ambiente doméstico e os bens têxteis..........................................................................73

Capítulo 2 O vestuário da vila de Itu despido em detalhes.............................................85 2.1 O bens têxteis: materialidade e valor monetário.............................................................87 2.2 Os itens de vestuário nas listas de importação e no estoque da loja de Itu...................112 2.3 Uso público e doméstico dos trajes...............................................................................119

Capítulo 3 “Cerzindo” objetos e sujeitos: consumo, circulação e representação das vestimentas na vila de Itu.................................................................................................135 3.1 Padrões cotidianos de vestuário....................................................................................135 3.2 A circulação de roupas: dotes, doações, dívidas, partilhas e arrematações..................153 3.3 O material e o imaterial nas aparências: religiosidade, representações e honra...........172

Considerações finais..........................................................................................................193 Referências bibliográficas................................................................................................197 Glossário.............................................................................................................................213

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Aos meus pais Wilson e Maria Luiza.

À memória do meu padrinho Reinaldo Leopassi. xiii

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES pela bolsa concedida no período inicial do mestrado e à FAPESP pelas bolsas de mestrado e de estágio de pesquisa no exterior (BEPE), financiamentos imprescindíveis para a realização deste trabalho. À minha orientadora Leila Mezan Algranti, pela confiança que depositou em mim. Presente, atenciosa e humana, soube motivar e me guiar nesses últimos três anos. Agradeço aos membros da minha banca de defesa de mestrado, Profa. Dra. Maria Aparecida de Meneses Borrego e Profa. Dra. Adriana Angelita da Conceição, por toda a contribuição e atenção que dispensaram ao trabalho, desde o exame de qualificação até a defesa. À Profa. Dra. Milena Maranho e à Profa. Dra. Márcia Almada, sou muito grata por comporem a suplência, dispondo de seu tempo para a leitura deste trabalho. Aproveito para agradecer a todos os professores que contribuíram com a discussão do projeto, ideias e debates promovidos durante as disciplinas da pós-graduação, especialmente à Profa. Dra. Izabel Andrade Marson e à Profa. Dra. Iara Lis Schiavinatto. Aos funcionários do Museu Republicano “Convenção de Itu” Maria Cristina, José Renato e Alzira, da biblioteca, por toda a atenção e ajuda, à Anicleide e Giovanna do Arquivo Histórico. Aos funcionários da biblioteca do Museu Paulista e à Profa. Dra. Teresa Cristina Toledo de Paula, conservadora do setor de têxteis, pela indicação de valiosa bibliografia. Ao Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar e Daisy Ferraz de Bonna, por cederem os arquivos da documentação digitalizada. Agradeço imensamente Silvana Alves de Godoy, por disponibilizar para consulta as planilhas que confeccionou a partir dos Maços de População da Vila de Itu.

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Agradeço à Anicleide Zequini, Aline Zanatta e Michelle Tasca por toda a ajuda quando ainda iniciava a escrita do projeto de pesquisa. As sugestões, apontamentos e leituras foram muito importantes. Para a confecção do banco de dados contei com a ajuda de Rosilene e Matheus do CESOP, Profa. Dra. Milena Maranho, Daisy Ferraz e de Márcio Faria. Muito obrigada! Durante a realização do estágio de pesquisa em Portugal contei com o apoio de muitas pessoas. Agradeço à Universidade do Minho e à Profa. Dra. Isabel dos Guimarães Sá pela supervisão do estágio de pesquisa. O intercâmbio foi extremamente produtivo. Fui muito bem acolhida pela Profa. Dra. Isabel, e também pelo seu grupo de orientandos, especialmente por Andreia Durães, que me auxiliou na seleção das fontes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Sou grata também aos pesquisadores Leonor, Bruno, Hélder, Alice e Luciane, pelas conversas e sugestões de pesquisa. Agradeço o empenho e ajuda que Ângela Valério, do Museu Nacional do Traje dispensou a mim, durante a pesquisa que realizei na biblioteca desta instituição. À Profa. Dra. Marta Lourenço do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, pelo convite para apresentar minha pesquisa no Seminário de Estudo de Caso de Cultura Material, cujo debate foi muito instigante. Henrique e Michelle estiveram presentes em todas as etapas do trabalho em Portugal, amigos para todas as horas. Agradeço à Dona Isabel, Elisabete e David a acolhida, e à Dona Ana, Walmira, Luciane e Régia, a companhia. Tive a ajuda de Juliana e Smirna na revisão do texto. Obrigada Mariana Bernardes pelas correções dos textos em inglês e Danielle Siltori, pelas sugestões. As disciplinas da pós-graduação significaram mais do que o cumprimento dos créditos, foram realmente momentos de trocas e de aprendizado. Agradeço o companheirismo dos meus colegas Carol, Bea, Fayga, Gabriela Assis, Gabriela Berthou, Ana Luísa, Raíssa, Paula, Michelle, Henrique, Samuel, Felipe, Arthur, Walter, Caroline, Eliane, Juliana, Luciana e Tiago. xvi

Agradeço à Raíssa, Natália e Stella, pela hospitalidade durante um ano inteiro. Tiago, Fayga, Bea, Gabe e Raíssa mostraram que é possível encarar tudo de uma maneira divertida. Obrigada Luciana pelas diversas leituras, sugestões e palavras de incentivo. Tenho uma dívida imensa contigo. Agradeço a todos os meus queridos e valiosos amigos, envolvidos direta ou indiretamente, que me ajudaram, confortaram, dividiram as angústias e entenderam as ausências. Márcio Faria teve imensa paciência e interesse pelo trabalho, acompanhando de forma próxima e atenciosa todas as etapas. Sem seu amor e companheirismo, tudo seria mais difícil. E finalmente, à minha família, que me apoiou incondicionalmente desde o momento que decidi me dedicar exclusivamente ao mestrado. Palavras não expressam a minha gratidão.

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Nos meses anteriores à fuga, como recordou Madame Campan, Maria Antonieta deu uma atenção excessiva à forma como iria vestir-se longe de Paris, como se os seus trajes de cores monárquicas fossem uma promessa dos privilégios que ela acreditava estar prestes a recuperar. Ao renegar as cores da militância revolucionária e voltar a abraçar as cores ligadas ao Antigo Regime, e ao reunir o seu antigo “ministério da moda” para a vestir para o seu triunfo iminente, Maria Antonieta indicava que, dali para a frente, a única agenda política revelada pelo seu vestuário era a sua. Tinha apenas mais um vestido enganador para usar antes de ela e a família ficarem finalmente livres. Caroline Weber xix

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ABREVIATURAS

AESP: Arquivo Público do Estado de São Paulo ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa ARQ/MRCI: Arquivo Histórico do Museu Republicano “Convenção de Itu”

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Relação entre número de fogos e habitantes da vila de Itu, 1773-1813...............38 Tabela 2 – Distribuição dos inventariados por faixas de bens, Itu, 1765-1808....................58 Tabela 3 – Roupas da casa, vila de Itu, 1765-1808...............................................................74 Tabela 4 – Matérias-primas têxteis arroladas nos domicílios ituanos, 1765-1808..........80-81 Tabela 5 – Informações sobre as peças de roupas masculinas, vila de Itu......................87-88 Tabela 6 - Objetos de uso pessoal relacionados à aparência, Itu, 1765-1808.......................96 Tabela 7 – Tipos de peças de roupas femininas, quantidades e valores, vila de Itu, 17651808.......................................................................................................................................98 Tabela 8 - Composição dos bens dotados aos filhos de Inácia e José do Amaral Gurgel..........................................................................................................................156-157

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Distribuição das casas dos inventariados por ruas da vila de Itu, 1765-1808.....71 Quadro 2 - Bairros identificados na área rural................................................................72-73 Quadro 3 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas masculinas, Itu........................89 Quadro 4 – Vestuário e joias pertencentes a Inácio Leite da Fonseca, 1806, Itu..................90 Quadro 5 – Vestuário e joias pertencentes a Antonio Francisco da Luz, 1805, Itu..............92 Quadro 6 – Bens de Inácio Pacheco da Costa, 1806, Itu......................................................94 Quadro 7 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas femininas, Itu..........................99 Quadro 8 – Vestuário, objetos de uso pessoal e joias pertencentes a Ana Maria da Silveira, 1805, Itu..............................................................................................................................100 Quadro 9 – Relação das roupas femininas presentes no arrolamento de bens de José Manoel da Fonseca Leite, 1798, Itu.................................................................................................101 Quadro 10 – Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes a Mariana Leite Pacheco, 1779, Itu..............................................................................................................................102 Quadro 11 - Roupas masculinas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra lisboeta.........................................................................................................................105-106 Quadro 12 - Roupas femininas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra lisboeta, 1765-1808......................................................................................................108-109 Quadro 13 - Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes à Angélica Perpétua Rosa Portella, 1802, Lisboa.........................................................................................................110 Quadro 14 – Tecidos do estoque da loja de João Fernandes da Costa, 1801, Itu........115-116 Quadro 15 - Bens relacionados na dívida de Vicente Gonçalves Braga com Antônio José Ferraz Ferreira, 1808...........................................................................................................138 Quadro 16 – Esquema genealógico da Família de José Manoel da Fonseca Leite.............145 Quadro 17 - Relação das peças de roupas inventariadas no rol de bens de José Manoel da Fonseca Leite e sua partilha, 1798......................................................................................146 Quadro 18 - Primeiro casamento de José do Amaral Gurgel..............................................154 Quadro 19 - Segundo casamento de José do Amaral Gurgel..............................................156 xxv

Quadro 20 - Roupas recebidas em forma de dote pelas filhas de Inácia e José do Amaral Gurgel..................................................................................................................................157 Quadro 21 - Terceiro casamento de José do Amaral Gurgel..............................................162 Quadro 22 – Relação das roupas e herdeiros na partilha dos bens de José do Amaral Gurgel, Itu, 1806..............................................................................................................................163 Quadro 23 – Esquema genealógico da Família Costa Aranha............................................172

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Valor em réis dos bens totais inventariados divididos por categorias...............61 Gráfico 2 - Posse de engenho................................................................................................63 Gráfico 3 - Relação do número cativos nos espólios de Itu, 1765-1808..............................64 Gráfico 4 - Ocorrência de bens agrupados por produção açucareira....................................64 Gráfico 5 - Valor dos bens de raiz em relação ao total dos bens, Itu, 1765-1808.................66 Gráfico 6 - Materiais e técnicas construtivas dos bens de raiz da vila de Itu, 1765-1808...67 Gráfico 7 - Perfis e ocorrências de bens de raiz em Itu, 1765-1808.....................................70 Gráfico 8 – Tecidos provenientes de Lisboa importados pela vila de Itu (em peças).........113 Gráfico 9 – Tecidos provenientes do Porto importados pela vila de Itu (em peças)...........114 Gráfico 10 – Relação das meias de seda importadas por Itu provenientes de Lisboa.........117 Gráfico 11 – Número de chapéus importados por ano e o porto de origem.......................118

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Figura por estimação da Vila de Itu, por José Custódio Sá e Faria, 1774............30 Figura 2 - Mapa Estilizado da Vila de Itu em 1830, por André Santos Luigi......................31 Figura 3 – Bairros rurais e área central da Vila de Itu, século XIX......................................34 Figura 4 - Largo de São Francisco, Miguel Dutra, 1845......................................................36 Figura 5 - Vestido Império confeccionado em cassa, 1810................................................111 Figura 6 - Uniforme de Gala, século XIX...........................................................................123 Figura 7 – Casula do século XVIII.....................................................................................125 Figura 8 – Exemplo de manto e mantilha, final do século XVIII, Portugal.......................128 Figura 9 – Penteador, século XIX.......................................................................................131 Figura 10 – Vicente Taques por Miguel Dutra...................................................................187 Figura 11 - Vicente da Costa Taques Góes e Aranha por Benedito Calixto.......................188

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INTRODUÇÃO

Inácio Leite da Silveira foi morador da vila de Itu. Faleceu no ano de 1806, com 68 anos de idade1, deixando quatro filhos já adultos do seu primeiro matrimônio, e dois menores, do segundo casamento com Escolástica Ferraz de Camargo. Na ocasião, um contava dois anos e o segundo era, recém-nascido.2 Escolástica e Inácio viviam em um sítio no bairro Cajuru, próximo à estrada para a vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba. No sítio havia três lanços de casas de parede de taipa de mão, cobertas de telhas, um paiol e as casas de engenho do mesmo material, tendo recebido a avaliação de 600$000 (seiscentos mil réis) 3. A propriedade continha objetos de cobre e estanho, a saber: as ferramentas para diversos usos, como serras, martelos, ferro de marcar animais, enxadas, bem como acessórios do engenho: os tachos de cobre, cano de alambique e escumadeiras. Na casa do sítio, dispunham de móveis como duas mesas, três catres4, três caixas, um armário e um oratório com três imagens pequenas, no total de 9$680 (nove mil, seiscentos e oitenta réis) 5. Alguns pratos de louça fina importada contrastavam com peças de montaria feitas de couro de onça, de preguiça e peças de couro de veado, itens confeccionados com elementos rústicos. Também compunham o sítio seis cativos, os animais de criação, porcos, bois e os aparatos de duas juntas de bois6. Possuía ainda outro imóvel, uma casa na rua do Conselho, de taipa de pilão, coberta de telhas com quintal, no valor de 100$000 (cem mil réis). Na casa da vila, havia utensílios domésticos como duas bacias de pé de cama, um candeeiro, um ferro de engomar, um tacho e alguns móveis, oito caixas, uma mesa com gaveta, dois bancos, dois catres e um estrado.

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ARQ/MRCI - GODOY, Silvana Alves de. Tabela dos Maços de População da vila de Itu. ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 3. 3 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 10. 4 Leito de pés baixos, de lona e dobrável. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Vol. 1, p. 362. 5 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 8 verso. 6 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 9 – 10. 2

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Também havia dois colchões de pano de algodão no valor de $640 (seiscentos e quarenta réis) e duas redes, sendo uma velha de varandas, outra nova, sem varandas, avaliadas cada uma em 1$600 (mil e seiscentos réis) 7. De roupas da casa, o casal possuía lençóis de algodão e de cassa, toalha de algodão com franja, toalhinha de mãos de algodão, colcha também de algodão pintada e um cobertor de Castela somando 9$420 (nove mil, quatrocentos e vinte réis), objetos que expressam o padrão observado nos bens avaliados. Porém, são nas roupas de uso pessoal e demais objetos relacionados à aparência que recai nosso interesse: um chapéu, um par de botas, dois pares de esporas, dois pares de fivelas para sapatos e um par de fivelas para calção avaliados em 23$200 (vinte e três mil e duzentos réis) 8. De calçados, possuía um par de botas de veado já usadas, no valor de $960 (novecentos e sessenta réis). No total, as roupas somaram 24$400 (vinte e quatro mil e quatrocentos réis). As peças de pano azul foram avaliadas em 9$480 (nove mil, quatrocentos e oitenta réis) consistiam em um casacão, um fraque e um capote, de baeta azul havia um timão novo em 3$200 (três mil e duzentos réis). Ademais, encontramos duas camisas de bretanha no preço de 2$560 (dois mil quinhentos e sessenta réis), dois pares de meias de algodão em $480 (quatrocentos e oitenta réis), um jaleco e um par de meias de fustão em $800 (oitocentos réis) cada, um calção preto de duraque em $880 (oitocentos e oitenta réis), um lenço de pescoço sem informar tecido no preço de $200 (duzentos réis) e um hábito de terceiro do Carmo descrito pelo avaliador como já muito usado e com todos os seus pertences, no valor de 6$000 (seis mil réis) 9. Todas as roupas foram confeccionadas com tecidos estrangeiros, possivelmente algumas delas fossem importadas já prontas, apresentam semelhança com o vestuário europeu (casaca, calção), particularmente com o português (capote) e expressa a influência da moda inglesa (fraque) além dos tecidos (bretanha). Em menor quantidade, encontramos

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Varandas ou barandas consistiam em “Guarnições laterais da rede, ornadas de franjas ou borlas esfiadas que são as bonecas da varanda.” Vide CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica. São Paulo: Global, 2003. p. 15. 8 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 11 verso e 12. 9 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 11 verso e 12.

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peça de uso doméstico (timão) e a indumentária dos leigos religiosos pertencentes às ordens terceiras (hábito). As peças de roupas de Inácio revelam o padrão do vestuário ituano entre os anos de 1765 e 1808. Este recorte compreende o período de crescimento da produção canavieira e de concentração demográfica na vila de Itu, capitania de São Paulo. A produção do açúcar voltada para exportação foi incentivada pelo governador da capitania, Morgado de Mateus.10 A localidade ituana destacou-se até a década de 1830 como a maior produtora de açúcar da capitania, constituindo a base da riqueza de muitas famílias que em meados do século XIX se estabeleceram no oeste paulista, em Campinas, Rio Claro, Ribeirão Preto, dedicando-se à cafeicultura. No final do século XVIII, muitas famílias ituanas tinham nas propriedades localizadas nos bairros rurais as benfeitorias para a produção do açúcar, plantação de mantimentos e as casas de vivenda. Também contavam com uma casa na área central da vila, onde guardavam os bens mais valiosos relacionados à aparência, como joias, acessórios como chapéus, fivelas de sapatos, de calção e roupas, especialmente as de maior valor e os hábitos de ordens terceiras. Através do arrolamento dos bens nos inventários póstumos realizamos a análise da posse de bens e da materialidade dos artefatos. Buscamos discutir também a questão do consumo, da circulação e dos usos das roupas, considerando a dimensão simbólica, importante, pois tratamos de uma sociedade altamente hierarquizada, permeada por práticas e mentalidades do Antigo Regime, onde “a ostentação pública do lugar ocupado por cada um e de suas prerrogativas tinha importante significado político.”11 Neste sentido, as roupas constituem-se em um importante elemento da aparência. Apresentamos de forma breve as principais obras e vertentes das ciências humanas e, especialmente da história que versaram sobre a roupa e a moda. De acordo com Maria Lúcia Bueno, entre o final do século XIX e início do XX, surgiram alguns estudos que buscavam oferecer uma “chave para pensar a moda no mundo

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BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2. Ed. São Paulo:Alameda, 2007. p. 83. 11 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 86.

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capitalista e industrializado, elaborado com base na teoria da distinção social”12, uma vez que a moda já era concebida como um elemento de “reconstrução das fronteiras sociais na sociedade burguesa.”13 Os principais estudos dessa linha de interpretação são As leis da imitação, de Gabriel Tarde, A teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen e Filosofia da moda, de Georg Simmel. 14 Segundo o filósofo Lars Svendsen, os três estudos partem da teoria do “gotejamento”, difundida por Immanuel Kant e Herbert Spencer. Este termo gotejamento foi empregado para explicar que a inovação da moda ocorreria primeiro em um estrato social mais alto, passando depois para as camadas mais baixas, que se esforçariam para igualar-se às camadas superiores através da imitação.15 A explicação clássica de difusão da moda está amparada nesta formulação do gotejamento.16 Já na década de 1960, a proposta teórica de se tratar a moda através da Semiologia de Fernand Saussure foi empreendida por Roland Barthes no livro Sistema da moda, cujo objeto é “a análise estrutural do vestuário feminino tal qual ele é hoje descrito pelos jornais de Moda.”17 Segundo o autor, o trabalho não se enquadra totalmente à Semiologia e à Linguística, pois seu foco de investigação “não trata nem do vestuário nem da linguagem, mas, sim, da „tradução‟ duma e da outra, contanto que a primeira já seja um sistema de signos.”18 Lars Svendsen problematizou a abordagem estruturalista para análise da moda. Explicou ele que as roupas podem ser consideradas semanticamente codificadas, mas trata-se de um código com uma semântica extremamente tênue e instável, sem quaisquer regras realmente invioláveis. As palavras também mudam de significado de acordo com o tempo e o lugar, mas a linguagem verbal é muito estável, ao passo 12

BUENO, Maria Lúcia. “Moda e Ciências Humanas”. In: CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. p. 10. 13 BUENO, Maria Lúcia. “Moda... p. 10. 14 TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Felix Alcan, 1890; SIMMEL, George. Philosophie de la modernité. Paris:Payot, 2004; VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa. Sâo Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1965. 15 SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 42 16 SVENDSEN, Lars. Moda... p. 46 17 BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo: Ed. Nacional: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. p. XIX. 18 BARTHES, Roland. Sistema... p. XIX.

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que a semântica do vestuário está em constante mudança. Esta é uma importante razão por que a abordagem estruturalista às modas no vestuário não funciona muito bem: esse método pressupõe significados bastante estáveis. Não por coincidência, foi seu trabalho em O sistema da moda que levou Roland Barthes a abandonar o estruturalismo clássico. 19

Na década de 1980, o historiador Roger Chartier, elencou o conceito de representação como um elemento chave para a história cultural, pois “a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é”, definiu o autor20. Acerca do vestuário, ao pensarmos nas relações entre a roupa e quem a vestia, considerando as pessoas, os espaços e eventos que frequentavam, bem como a recepção/percepção da aparência por seus contemporâneos, Chartier nos indicou que a distinção fundamental entre representação e representado, entre signo e significado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social de Antigo Regime. Todas elas tem em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a exibe.21

Ao estudar os aspectos simbólicos da cultura, as contribuições de Pierre Bourdieu também são importantes referências teóricas para a análise da vestimenta enquanto elemento simbólico.

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Para o autor, os símbolos são os instrumentos por excelência da

„integração social‟ pois “enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (...), eles tornam possível o consenso acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social” 23. Na busca pela distinção e dominação simbólica, Bourdieu apontou que as disputas “que têm o poder simbólico como

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SVENDSEN, Lars. Moda... p. 79 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de Janeiro, Difel/Bertrand, 1990. p. 20 21 CHARTIER, Roger. A História... p. 21 22 “Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas. (...) Mas o essencial é que, ao serem percebidas por meio dessas categorias sociais de percepção, desses princípios de visão e de divisão, as diferenças nas práticas, nos bens possuídos, nas opiniões expressas tornam-se diferenças simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem. As diferenças associadas a posições diferentes, isto é, os bens, as práticas e sobretudo as maneiras, funcionam, em cada sociedade, como as diferenças constitutivas de sistemas simbólicos, como o conjunto de fonemas de uma língua ou o conjunto de traços distintivos e separações diferenciais.” BOURDIEU, Pierre. Razões praticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p. 22 23 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 10 20

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coisa em jogo, quer dizer, o que nelas está em jogo é o poder sobre um uso particular de uma categoria particular de sinais.” 24 Ao criticar as análises baseadas na semiótica, o antropólogo Daniel Miller chamou atenção para o peso dos artefatos sob as pessoas, pois sob a perspectiva semiológica, a roupa “é reduzida à habilidade de significar algo que parece mais material (sociedade ou relações sociais), como se estas coisas existissem acima ou anteriormente à sua própria materialidade.”25 Concordamos com a crítica de Miller à semiótica, pois a roupa sozinha emanaria um código, uma informação, e o sujeito que a veste teria nessa equação uma participação pequena ou mesmo nula. Miller e Ulpiano Meneses sugerem caminhos de investigação parecidos, que contemplam a interação, ou seja, a relação entre sujeito e objeto de forma equilibrada, considerando elementos materiais, simbólicos, sociais, psicológicos em escala de igualdade e importância. 26 O autor inglês propôs que é necessário confrontar os trecos: reconhecê-los, respeitá-los; nos expor à nossa própria materialidade, e não negá-la. Meu ponto de partida é que nós também somos trecos, e nosso uso e nossa identificação com a cultura material oferecem uma capacidade de ampliar, tanto quanto de cercear, nossa humanidade.27

Assim, acreditamos ser necessário analisar de forma ponderada o peso e papel dos sujeitos e objetos, visto que no caso da aparência, é a interação destes dois elementos, ou seja, em todas as ações que integram o ato de vestir-se, que são cruciais para nossa investigação. Em relação a trabalhos descritivos e ilustrativos sobre história da moda, cabe destacar três estudos produzidos na segunda metade do século XIX, entre eles a obra História do Vestuário, de Carl Köhler que se distingue das demais pela grande abrangência 24

BOURDIEU, Pierre. O Poder… p. 72 MILLER, Daniel. Introduction. In: KÜCHLER, Susanne; MILLER, Daniel. (ed.) Clothing as material culture. Oxford:Berg, 2005. p. 2 Tradução nossa. 26 MENEZES, Ulpiano. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870 – 1920. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/FAPESP, 2008. p. 12. 27 MILLER, Daniel. Prefácio. Trecos, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 12 25

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temporal e pelo caráter técnico: inúmeros desenhos de trajes com informações detalhadas, inclusive com moldes e fotografias28. O segundo, a obra ilustrada de história do vestuário mais conhecida é Le costume historique de Auguste Racinet. Publicada entre 1876 e 1886, em vinte fascículos para assinantes, foi reeditada em 1888, em seis volumes. A edição retratava o vestuário em uma longa duração: do Egito antigo ao início do século XIX. De acordo com Melissa Leventon, esse trabalho “ganhou notoriedade não só pela impressionante abrangência, mas também por ser o primeiro livro de moda para um público amplo a utilizar a cromolitografia, técnica que se popularizou a partir da década de 1860 e tornou a publicação de imagens coloridas mais acessível.” 29 Um trabalho semelhante ao de Racinet e também da segunda metade do século XIX, é Trachten, Haus- Feld- und Kriegsgerätschaften der Völker alter und neuer Zeit [Trajes e utensílios da cidade, do campo e de guerra dos povos dos tempos antigos e modernos], de autoria de Friedrich Hottenroth. Composta de duzentas ilustrações, a obra de Hottenroth retratou o vestuário europeu até 1840, sendo publicada entre 1884 e 1891. Leventon fez uma ressalva: apesar do grande valor histórico das imagens, devemos tomar uma série de cuidados na avaliação dos desenhos, pois desconhecemos as fontes utilizadas, o rigor e a precisão

adotados,

especialmente

em

relação

às

cores

empregadas,

inseridas

posteriormente, em edições diferentes.30 Já no século XX, encontramos outra importante referência: o historiador inglês James Laver. Entre 1938 e 1959, Laver foi curador e responsável pelos departamentos de Gravura, Desenho e Pintura do Victoria and Albert Museum de Londres. O autor tornou-se referência para cursos de arte na Inglaterra e é considerado um dos maiores especialistas em história das roupas. Sua obra A roupa e a moda: uma história concisa31, publicada em 1968, 28

KÖHLER, Carl. História do Vestuário. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Edição original: Die Entwicklung der Tracht in Deutschland während des Mittelalters und der Neuzeit, Nuremberg, 1877.) 29 LEVENTON. Melissa (org.). História Ilustrada do vestuário: um estudo da indumentária do Egito Antigo ao final do século XIX, com ilustrações dos mestres Auguste Racinet e Friedrich Hottenroth. São Paulo: Publifolha, 2009. p. 6. 30 LEVENTON. Melissa (org.). História ...p. 8 – 9. 31 A primeira edição, de 1968, A Concise History of Costume (World of Art). No Brasil, foi publicada em 1990 pela Companhia das Letras. Cf. LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

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compreende o vestuário desde o Egito e Mesopotâmia da antiguidade até 1960 no mundo ocidental. Durante o século XX, estudos sobre vestimentas e moda surgiram em âmbito de instituições museológicas, como o de Laver. Na história, os estudos concentravam-se em política e economia. Na historiografia francesa, especialmente na Escola dos Annales temas diferenciados foram abordados. Foi a partir de Fernand Braudel, sucessor de Lucien Febvre na direção da revista dos Annales e também da VI Seção da École des Hautes Études en Sciences Sociales que os estudos acerca da cultura material ganharam visibilidade.32 Febvre propôs a Braudel a escrita da história da Europa entre 1400 e 1800, em dois capítulos. O primeiro seria dedicado ao pensamento e crença, o qual ficaria a cargo de Febvre, e o segundo, versaria sobre a história da vida material, sob responsabilidade de Braudel. 33 Lucien Febvre faleceu antes de iniciar o projeto. No entanto, Braudel deu continuidade ao mesmo, escrevendo três volumes sobre seu tema (volume 1: As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível; vol. 2: Os jogos das trocas; vol. 3: O tempo do mundo), com o título Civilização Material, Economia e Capitalismo 34. Segundo Peter Burke, Braudel partiu das “categorias econômicas do consumo, distribuição e produção”, mas não se prendeu às fronteiras tradicionais da história econômica (agricultura/comércio/indústria) 35. Além de suas contribuições valiosas sobre as diferentes durações na história e sua concepção espacial diferenciada, Braudel reintroduziu o conceito de civilização material e o cotidiano como abordagem importante para o estudo das sociedades. 36 Para nossa pesquisa, o primeiro volume da obra Civilização Material é extremamente relevante, pois nele Braudel tratou, entre outros temas, do vestuário e da 15

BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. p. 39. 33 BURKE, Peter. A Revolução... p. 40. 34 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 3 v. 35 BRAUDEL, Fernand. Civilização... p. 40 - 41 36 Burke aponta as referências de Braudel para o estudo do cotidiano (T.F. Troels-Lund) e para civilização material (Oswald Spengler). BURKE, Peter. A Revolução... p. 42

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moda. Em relação ao vestuário, ao combater possíveis críticas ao tema abordado, justificou o seu estudo apontando caminhos de análise. Para ele o exame da vestimenta possibilita a problematização e o entendimento: “das matérias-primas, dos processos de fabrico, dos custos de produção, da fixidez cultural, das modas, das hierarquias sociais.” 37 Desta forma, Braudel apontou para os aspectos tradicionais nos costumes de vestir, pertencentes à longa duração, como alguns trajes de festas, a interessante relação entre o uso de roupa interior e a disseminação de doenças de pele, e características dos trajes camponeses.

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Do

tradicional e do permanente, Braudel passou para as mudanças do século XIV, as quais considerou serem as primeiras manifestações da moda 39. E ressaltou ainda mais um tema suscitado pelas vestimentas: a produção e circulação têxtil40. Burke teceu apenas uma ressalva ao estudo de cultura material de Braudel: a ausência do domínio simbólico 41. Ainda ligado à historiografia francesa, e da terceira geração dos Annales, destaca-se o autor Daniel Roche. 42 Dentre seu trabalho com história cultural e social francesa, dois livros em especial são referências importantes para o estudo do vestuário: História das coisas banais: nascimento do consumo (século XVII – XIX), de 1997, e A Cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII – XVIII), de 1989.43 História das coisas banais tratou do consumo entre os séculos XVII e XIX, com o foco na materialidade.44 Na primeira parte do livro, Roche apresentou o panorama das transformações ocorridas no âmbito da cidade. Na segunda, destacou o ambiente doméstico, ressaltando o impacto da iluminação, da distribuição de água, móveis e objetos, hábitos de alimentação, entre eles, o vestuário e a aparência. No capítulo VIII, Vestuário e aparência, o autor abordou os principais aspectos das roupas durante o Antigo Regime, 37

BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 271. BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 273. 39 BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 276. 40 BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 284 41 BURKE, Peter. A Revolução...p. 42 42 Professor da Universidade de Paris I, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Durante a década de 1970, pesquisou sobre a vida cotidiana do povo de Paris (Le Peuple de Paris. Essai sur la culture populaire au XVIIIe siècle, Paris, Aubier, 1981). 43 As publicações das edições brasileiras são respectivamente de 2000 e 2007. 44 ROCHE, Daniel. História das coisas banais: nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 38

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como a hierarquia social, as leis suntuárias e a questão da moda modas e do vestuário entre diferentes regiões francesas. Daniel Roche aprofundou essas questões em sua obra seguinte, O Povo de Paris.45 No livro A Cultura das aparências, Roche desenvolveu uma análise valiosa sobre as vestimentas e os costumes46. Seu estudo abarcou a França, mais especificamente Paris entre os séculos XVII e XVIII, correspondente período de governo dos reis Bourbons Luís XIV, Luís XV e Luís XVI. Nesta obra, Roche dedicou-se exclusivamente ao universo das roupas, evidenciando os sistemas indumentários franceses de três séculos. O autor ressaltou os elementos da hierarquia das aparências – questão crucial para uma sociedade do Antigo Regime, o surgimento da roupa branca, a importância dos uniformes, e toda a cadeia produtiva, de consumo e circulação das roupas: os oficiais, os comerciantes e consumidores parisienses. A importância do trabalho de Daniel Roche reside no fato de nos apresentar uma sociedade através dos valores simbólicos e estéticos que estruturavam a „cultura das aparências‟ então vigentes. Também encontramos estudos relacionados à moda e às vestimentas na perspectiva de uma personalidade. Isto é, através de uma pessoa é possível discutir e proporcionar todo o debate do contexto em que ela se insere. Sob esta perspectiva, dois livros são bons exemplos dessa opção de análise: A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV, de Peter Burke, e Rainha da Moda, de Caroline Weber.47 Peter Burke realizou um estudo sobre a imagem pública de Luís XIV e seu lugar no imaginário coletivo. O autor apontou a extensa bibliografia existente sobre este monarca, 45

No prefácio de O Povo de Paris, Roche explicou que esta obra foi produzida durante a década de 1970 e foi publicada pela primeira vez na França em 1981. Neste livro, o autor já havia reservado um capítulo ao vestuário popular. Portanto, os trabalhos seguintes apontam a continuação e aprofundamento do autor no tema. Cf. ROCHE, Daniel. O Povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 11 – 29. 46 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: Uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2007. 47 BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994; WEBER, Caroline. Rainha da Moda. A roupa que Maria Antonieta usou para a Revolução. Oceanos: Lisboa, 2008.

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mas a relevância deste trabalho está no enfoque à figura do rei: projeto de construção da imagem real levado a cabo por seus homens de confiança, depois também executado pelo próprio rei, no período do governo pessoal, e de que forma essa imagem foi recebida contemporaneamente e na posteridade. O livro nos chama atenção especialmente pela investigação sobre as representações reais, buscando referências mobilizadas por Luís XIV e/ou as consolidadas a partir dele. Burke enriqueceu sua análise ao apresentar sempre a imagem da peça a qual se referia em seu texto. Imagens variadas: fotografias, rascunhos, esboços de estátuas, quadros, medalhas, plantas arquitetônicas. Rainha da Moda, por sua vez, é uma obra que evidenciou a influência estética de Luís XIV sob Maria Antonieta. Segundo Caroline Weber, há muitos trabalhos sobre Maria Antonieta, especialmente biografias. No entanto, nenhum investigou a fundo a relação do público com a roupa da rainha, a relação estabelecida entre a moda e a política para esta figura pública importantíssima. De maneira inovadora, Weber investigou como Maria Antonieta utilizou a moda para marcar uma posição política em Versalhes, bem como sua imagem era compreendida, tanto por membros da corte, quanto por seus súditos. Entre outras fontes, a autora utilizou as referidas biografias de Maria Antonieta, relatos, memórias de pessoas que frequentavam a corte e também os panfletos publicados principalmente contra a rainha. Weber demonstrou como Maria Antonieta se serviu da moda para demarcar sua posição política e desencadear o gosto pela moda na França: roupas, chapéus, penteados e adereços ganhavam outra visibilidade e significados. Contemporânea e posteriormente a rainha geralmente foi retratada de forma negativa, apontando o excesso de luxo, ou a falta dele. O livro coloca ao leitor a dimensão e o papel da roupa para Maria Antonieta assim como a construção da sua imagem pública. Voltada à análise da composição e utilização dos bens que integravam os enxovais dos membros da corte portuguesa, a pesquisa da historiadora Isabel dos Guimarães Sá

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evidenciou a interessante utilização de objetos como estratégias de reforço de autoridade e poder político entre os séculos XV e XVII.48 Dedicados à roupa e à moda dos séculos XIX e XX, destacamos o livro de Diana Crane, A Moda e Seu Papel Social - Classe, Gênero e Identidade das Roupas. A autora apresentou um panorama da moda e de padrões de vestuário da França, Inglaterra e Estados Unidos no período pós-industrial. 49 Também cabe destacar a contribuição de Gilles Lipovetsky ao analisar a moda nas sociedades modernas e pós-modernas.50 Para a área de curadoria de acervos têxteis em instituições, as obras The study of dress history e Establishing Dress History de Lou Taylor são importantes referências, pois problematizam as roupas em acervos e dialogam com a historiografia sobre moda.51 No Brasil, por sua vez, grande parte da produção acadêmica sobre vestimentas e moda está ligada às atividades de museus. De forma geral, existem poucos trabalhos acadêmicos sobre o tema, pois a moda e as roupas, geralmente relacionadas ao universo feminino, foram consideradas por muito tempo assuntos menos importantes. Em seu trabalho pioneiro, Vida e morte do bandeirante, Alcântara Machado trabalhou com a coleção dos Inventários e Testamentos da vila de São Paulo, publicada pelo Arquivo do Estado de São Paulo, no início da década de 1920. Através dos inventários, Machado discorreu sobre aspectos materiais da vida dos primeiros paulistas, antecipando temáticas e abordagens somente tratados pela historiografia muitas décadas depois, como o estudo do cotidiano. O capítulo „Fato de vestir, joias e limpeza da casa‟ é 48

SÁ, Isabel dos Guimarães. “Coisas de princesas: casamentos, dotes e enxovais na família real portuguesa (1480-1580)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 10, tomo I: 97 – 120, 2010. SÁ, Isabel dos Guimarães. “Dressed to impress: clothing, jewels and weapons in court rituals in Portugal (1450-1650).” Paper presented at the Conference Clothing and the Culture of Appearances in Early Modern Europe. Research Perspectives, Madrid, Fundación Carlos Amberes/Museo del Traje. 3-4 February 2012. SÁ, Isabel dos Guimarães. “The uses of luxury: some examples from the Portuguese Courts from 1480 to 1580”, Análise Social 14, 192: 589 – 604, 2009. 49 CRANE, Diana. A Moda e Seu Papel Social - Classe, Gênero e Identidade das Roupas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2006. 50 LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; RIOUX, Elyette e LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 51 TAYLOR, Lou. The study of dress history. Manchester: Manchester University Press, 2002; e TAYLOR, Lou. Establishing Dress History. Manchester: Manchester University Press, 2004.

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dedicado à análise do vestuário, tipos de tecido, peças de roupas, preço do feitio de roupas, joias, adereços e peças de uso doméstico.52 Inicialmente publicada no volume V da Revista do Museu Paulista em 1952, a tese de doutoramento de Gilda de Mello e Souza, A moda no século XIX, foi orientada por Roger Bastide ganhando projeção e reconhecimento apenas trinta e sete anos depois, o que aponta a falta de interesse da historiografia pela temática. Reeditada em 1987 sob o título O espírito das roupas: a moda no século dezenove53, a obra encontrou um ambiente acadêmico transformado especialmente pela antropologia e pela história das mentalidades, o que permitiu a definição de novos temas e objetos de estudo. Segundo Heloisa Pontes, a consolidação do campo da moda no Brasil – tanto pela profissionalização, quanto como uma área de interesse acadêmico - possibilitou a legitimação do tema e da obra de Gilda de Mello e Souza54. De viés sociológico, a pesquisa de Souza utilizou-se de fontes impressas e visuais: fotografias, pranchas coloridas de moda, estudos sobre moda, romances e crônicas de jornal foram seu escopo documental prioritário, que permitiu a autora analisar com maior riqueza de detalhes a moda no século XIX. Outro trabalho de cunho sociológico é o livro Modos de homem & modas de mulher de Gilberto Freyre. 55 Publicado em 1987, um ano antes da obra de Gilda de Mello e Souza, este trabalho de Freyre abordou do final do século XIX até a década de 1980, várias questões relacionadas aos costumes e à moda no Brasil, como a influência da moda francesa, a adaptação e criação de peças e tecidos genuinamente brasileiros e a mudança dos padrões femininos de beleza.

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MACHADO, Alcântara. “Fatos de vestir, joias e limpeza da casa.” In: Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 53 SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 54 PONTES, Heloisa. A paixão pelas formas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, p. 87-105, 2006. p. 91 55 FREYRE, Gilberto. Modos de homem e modas de mulher. Rio de Janeiro: Record, 1987.

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Passaremos agora a alguns trabalhos realizados no âmbito de museus ou a partir de coleções museológicas.56 Três trabalhos estão relacionados ao acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo 57. A tese de Teresa Toledo de Paula, Tecidos no Brasil: um hiato, conservadora do Setor de Têxteis do Museu Paulista-USP, visa compreender a conservação dos têxteis pertencentes ao acervo do Museu Paulista e do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia), ambos da Universidade de São Paulo 58, bem como a falta de informação generalizada sobre tecidos no Brasil. Em relação ao período colonial, a autora abordou algumas imagens de indumentárias, fruto do romantismo do século XIX, cristalizadas até hoje no imaginário nacional. Exemplo, a “roupa branca de Peri”, personagem de José de Alencar, na obra O Guarani, retratado em túnica branca, elemento relacionado à civilidade, em oposição às vestimentas de peles de animais, penas e ossos dos aimorés, denotando atraso e um estado animalesco.59 A tese de doutorado de Rita Morais de Andrade investigou a trajetória de um vestido da maison francesa Bouè Soeurs, durante a década de 1920 até sua incorporação à coleção de objetos no Museu Paulista, em 1993, através da doação realizada pela filha da proprietária do vestido. 60 A autora utilizou o vestido como principal fonte através da opção

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Cabe ressaltar a importância do acervo bibliográfico específico de têxteis do qual o Museu Paulista da Universidade de São Paulo é detentor. Devido à criação do Setor de Têxteis em 1994, esta instituição passou a atuar especificamente neste ramo montando o acervo bibliográfico, com formação e treinamento da equipe, bem como ampliando o acervo têxtil. 57 Discussão desenvolvida por nós no artigo O que a traça não comeu: reflexões sobre o trabalho histórico com o vestuário como fonte de cultura material, disponível em: 58 PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos no Brasil: um hiato. Tese (Doutorado em Ciências de Informação). 2004. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo . São Paulo, 2004. p. 10. 59 PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos... p.49-50. 60 ANDRADE, Rita Morais. Bouè Soeurs RG 7091. A biografia cultural de um vestido. Tese (Doutorado em História). 2008. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008. p. 29-30.

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teórica proposta na década de 1980 por Igor Kopytoff, a biografia do objeto61, mais especificamente, a biografia cultural de um objeto, abordagem ainda não difundida e pouco adotada no Brasil. Especialista de apoio à pesquisa e supervisor do Serviço de Objetos do Museu Paulista, Adílson José de Almeida desenvolveu sua dissertação de mestrado, sobre uma categoria específica de indumentária, os uniformes da Guarda Nacional. O recorte temporal explorado por Almeida circunscreve o período de criação da Guarda Nacional, (1831) e o estabelecimento do segundo plano de uniformes, época em que ocorreram várias alterações relevantes (1852). Sua estratégia foi abordar não a totalidade da existência da associação, mas o período mais relevante para compreender a regulamentação oficial dos uniformes. De 80 peças entre uniformes e insígnias, o autor contou com cinco que permitiam melhor identificação ao período de análise. Almeida sistematizou três conceitos para empreender a análise dos uniformes: as funções pragmáticas, diacríticas e simbólicas. A análise das funções pragmáticas foi dividida nos seguintes itens: proteção contra choques e intempérie, regulação da temperatura, favorecimento à mobilidade e higiene. 62 Nas funções diacríticas, observou-se a necessidade da Guarda Nacional em diferenciar-se dos uniformes civis. 63 Já nas funções simbólicas, Almeida explorou os elementos de cidadania, honra e ética, associados ao uniforme da Guarda Nacional. 64 Outro trabalho relacionado ao acervo têxtil museológico é o de Soraya Aparecida Álvares Coppola, dedicado aos paramentos litúrgicos do Museu Arquidiocesano de Arte

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Cf: KOPYTOFF, Igor. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo.” In: APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense. 2008. 62 ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes da Guarda Nacional: 1831 – 1852. A indumentária na organização e funcionamento de uma organização armada. Dissertação (Mestrado em História). 1998. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998. p. 83 63 ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes... p. 99. 64 ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes... p. 118.

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Sacra de Mariana-MG65. Como objetivo principal, a autora estabeleceu o “estudo, conhecimento e catalogação do acervo têxtil” do referido museu, comparando o acervo mineiro com coleções têxteis italianas.

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Na análise dos paramentos litúrgicos, ressaltou

um tríplice ponto de vista: “a prática atual quanto a sua forma, qualidade e uso; o desenvolvimento histórico quanto à forma, qualidade e uso; significado simbólico.”67 Coppola encontrou a maioria das vestes externas, já que as internas, de uso pessoal, eram lavadas muitas vezes, deteriorando mais facilmente. Como existe um grande número de paramentos remanescentes e em bom estado de conservação, a hipótese é que talvez os religiosos possuíssem roupas próprias. Além de um glossário, a autora disponibilizou informações importantes nos Anexos. Relevantes não apenas para compreendermos melhor suas fontes e análises, mas também como dados sobre tecidos para comparações em futuros trabalhos, como modelos de fichas para catalogação, transcrição do inventário dos bens da igreja e uma compilação das principais características dos paramentos de cada segmento pertencente à igreja católica. Duas dissertações versaram sobre vestimentas no século XVIII e utilizaram como principal fonte os inventários post-mortem, na região das minas. Em sua dissertação de mestrado, Cláudia Mól abordou o cotidiano e a vida material das mulheres forras de Vila Rica, entre 1750 e 1800.68 A autora avaliou os bens de mulheres forras em 74 testamentos e inventários. Através dos dados obtidos, foi possível constatar a ocupação destas mulheres, a forma de habitação, a posse e o relacionamento com seus cativos, as relações de sociabilidades estabelecidas na participação de irmandades religiosas, bem como o vestuário e as joias pertencentes às forras. 65

COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando a Memória: o acervo têxtil do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). 2006. Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006. p. 21 66 O trabalho de Soraya junto ao acervo têxtil se iniciou com o levantamento e a catalogação do acervo têxtil do MAAS, pois apesar de tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), não havia sido devidamente inventariado até então. 67 COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando... p. 21. 68 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica-1750-1800. 2002. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2002.

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A autora resgatou registros semelhantes de viajantes, como Mary Graham e Luís dos Santos Vilhena, nos quais relatavam a grande diferença entre os trajes domésticos (muito “à vontade”, largos, transparentes e que deixavam partes íntimas à mostra) e as roupas utilizadas fora de casa, pois “ao se apresentar em público, essa mesma mulher adornava-se da melhor forma possível e ostentava, tanto através dos trajes quanto das joias, uma posição social, se não possuída, imensamente desejada.” 69 Mól também apontou outro elemento importante relacionado a vestimenta, a legislação portuguesa que regulamentava o vestuário e a transgressão destas normas por parte das mulheres forras. As mulheres brancas deveriam zelar por uma boa conduta, mantendo o máximo de discrição, portando capas negras e vestindo tecidos nobres. 70 Mol apontou que apesar das proibições, “a moda, representou, assim, a oportunidade para que as mulheres negras expressassem suas preferências estéticas, desafiando as normas vigentes na América Portuguesa.”71 Já a dissertação de Marco Aurélio Drumond analisou o comércio, a produção e os usos de roupas na Comarca do Rio das Velhas na primeira metade do século XVIII, período em que houve um grande êxito da atividade mineradora.72 Como atestado pela historiografia, a mineração atraiu um grande número de pessoas, tanto da Colônia, quanto de Portugal. Neste sentido, o autor demonstrou a importância do vestuário para aquela sociedade, uma vez que existia naquele espaço a convivência de diferentes camadas sociais: funcionários reais, escravos, forros, faiscadores, clérigos e comerciantes. Ao se dedicar ao universo da produção, Drumond teceu uma interessante análise sobre os “oficiais da aparência”: sapateiros, alfaiates e costureiras. 73 A atividade destes oficiais era rigidamente fiscalizada e regulamentada pelas câmaras municipais. Segundo o autor, os inventários destes oficiais analisados demonstraram através das dívidas “a 69

MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 90. MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 91-92. 71 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 92 72 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2008. 73 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária... p. 70. 70

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inserção social desses oficiais que, de maneira direta ou indireta à sua atividade, mantinham relações comerciais (de crédito ou de serviço) com indivíduos de diferentes espaços da Comarca, mesmo que distantes do seu local de morada.”74 O trabalho intitulado O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808 – 1821), de Camila Borges da Silva, explorou o papel da cultura indumentária no Antigo Regime português em um contexto muito peculiar, na Corte joanina então situada na colônia. Diferentemente de uma área dedicada à história da moda, que trata das mudanças e transformações dos trajes, a pesquisa de Silva se insere em uma vertente mais ampla que reconhece o potencial das roupas (em diversos suportes, tais como material, visual, escrito) como objeto principal. Considerando a vestimenta como uma “linguagem passível de ser lida socialmente”75, a autora buscou a relação das peças com os significados e práticas sociais que permeavam a sociabilidade e a cultura política lusa. Silva investigou durante a estadia da corte portuguesa no Rio de Janeiro a presença e oferta de produtos importados, de mão de obra especializada relacionada à aparência, como alfaiates, costureiras e cabeleireiros, além da interessante relação travada entre a monarquia e a elite comercial fluminense abastada que almejava títulos e comendas nobilitantes, concedidos em troca de serviços e doações financeiras. A autora também dedicou especial atenção aos cerimoniais de corte, atentando para a importância das vestes, adereços e insígnias portados e exibidos publicamente. 76 Também dedicado ao estudo da moda na corte, o trabalho de Joana Monteleone intitulado O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda, versou sobre o período de

74

DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária... p. 81. SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808 – 1821). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010. p. 21. 76 Cf. Capítulo 3. O Luxo e as Insígnias – estratégias de prestígio e distinção nos cerimoniais da Corte. In: SILVA, Camila Borges da. O símbolo... 75

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governo de D. Pedro II, o segundo reinado, período complexo, marcado pela combinação de elementos aristocráticos, com traços de Antigo Regime, com a ascensão da burguesia 77. Nos trabalhos mencionados, foi possível dimensionar a grande importância dos ofícios ligados à aparência nas sociedades coloniais, o papel dos trajes nos momentos festivos coloniais, bem como a necessidade de produtos importados, oriundos principalmente da Europa. Os contextos de Minas Gerais e Rio de Janeiro são interessantes para nosso estudo sobre Itu, pois fornecem dois padrões (ainda que muito distintos) de contextos coloniais no início do século XVIII, para a região mineradora, e do século XIX em dois momentos da corte carioca, como parâmetro para compararmos com o contexto paulista, considerando com todas as particularidades e contextos.78 Para São Paulo, além do trabalho de Alcântara Machado, contamos com a pesquisa de Luciana da Silva, Artefatos, sociabilidades e sensibilidades.79 Pautada na cultura material, Silva analisou as redes de sociabilidade e o trânsito de objetos na vila de São Paulo entre os séculos XVI e XVII, dedicando um tópico especificamente às vestimentas. Como principais trabalhos no campo da cultura material que utilizam os inventários póstumos, elencamos as dissertações de Luciana da Silva, de Nuno Luís Madureira, Inventários - Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime, a investigação sobre Alimentação e Cultura Material na América portuguesa desenvolvida por Leila Mezan Algranti80 e a terceira parte da obra Portas adentro, dirigida

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MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro, 1840-1889). 2013. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. 78 Cabe destacar também para o contexto carioca o trabalho “Estilos de vida e consumo doméstico da elite mercantil fluminense, em 1808: uma representação da natureza simbólica dos objetos asiáticos”, de Luís Frederico Dias Antunes. In: MARTINS, Ismênia e MOTTA, Márcia (org.) 1808: A corte no Brasil. Niterói, RJ: Editora da UFF, 2010. Pp. 331-365. 79 SILVA, Luciana da. Artefatos, sociabilidades e sensibilidades: cultura material em São Paulo (1580-1640). 2013. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 80 ALGRANTI, Leila Mezan. “Alimentação e Cultura material: das fontes seriadas ao estudo de caso (Rio de Janeiro segunda metade do século XVIII).” Apresentação parte da Mesa redonda: Caminhos de pesquisa sobre cultura material. In: V Encontro Internacional de História Colonial. UFAL, Maceió-AL, 2014. Texto fornecido pela autora.

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por Isabel Sá e Máximo Férnandez, dedicada aos bens de luxo, em herança e patrimônios familiares.81 Entre os artigos, cabe destacar “Inventarios post-mortem, cultura material y consumo em Léon durante la Edad Moderna”, de Juan Manoel Bartolomé Bartolomé, e “Penhoristas do Porto no início do século XVII: homens, atividade e objetos”, de Andreia Durães. Também de autoria de Durães, o artigo “The Empire Within” abordou aspectos metodológicos e apresentou dados referentes ao consumo de bens coloniais em Lisboa. 82 A principal fonte de nossa pesquisa são inventários póstumos, que consistem no processo de levantamento, avaliação e partilha dos bens de um indivíduo entre seus herdeiros. No arrolamento dos bens, cada objeto era descrito, algumas vezes mencionavam seu estado de conservação e por último, recebia um valor monetário atribuído por avaliadores. Os inventários são (até as três primeiras décadas do século XIX) a única documentação remanescente que fornece dados sobre roupas e tecidos dos moradores da vila ituana. Consultamos 148 inventários post-mortem da vila de Itu, correspondente à totalidade de documentos do recorte temporal, balizados pelas datas de 1765, que corresponde à autonomia administrativa da Capitania de São Paulo e ao início do governo de Morgado de Mateus, que promoveu e incentivou a produção açucareira paulista voltada à exportação, e no ano de 1808, quando a corte portuguesa chega ao Rio de Janeiro e ocorreu a abertura dos portos brasileiros, o que diversificou a oferta de tecidos, roupas, acessórios e profissionais da aparência na América Portuguesa. Os critérios para escolha dos inventariados foi a seleção de indivíduos residentes na vila de Itu (ruas e bairros rurais, não em seus termos) e que possuíssem roupas ou itens têxteis em seus espólios.83 Junto ao Primeiro Ofício de Justiça de Itu foram localizados

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SÁ, Isabel dos Guimarães e FÉRNANDEZ, Máximo García (dir.). Portas adentro: comer, vestir e habitar na Penínlsula Ibérica (ss. XVI-XIX). Valladolid: Universidad de Valladolid, Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. 82 DURÃES, Andreia. “The Empire Within: Consumption in Lisbon in Eighteenth Century and First Half of the Nineteenth Century” In: Histoire & Mesure, EHESS, Vol. XXVII, 2012, pp. 165-196. 83 A grafia foi atualizada para os padrões atuais.

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quarenta inventários.84 No Arquivo Público do Estado de São Paulo foram localizados quatro Autos de Contas de Testamentos (de doze documentos referentes ao recorte para Itu) de indivíduos que preenchiam os requisitos da amostra, resultando em quarenta e quatro casos para nosso estudo. Posteriormente foram localizados oito testamentos de ituanos da amostra, completando assim as informações colhidas nos inventários.85 As informações individuais foram complementadas e cruzadas com dados colhidos obra Genealogia Paulistana, de Luís Gonzaga da Silva Leme, em conjunto com os censos da vila de Itu (Mapas de população). Nesta última fonte, os censos, também obtivemos dados sobre as importações realizadas em Itu, entre os anos de 1798 e 1808, nos denominados Mapas de importação. Entre os produtos relacionados estão vinho, tecidos, chapéus e meias. Através de um estágio de pesquisa realizado em Portugal, sob supervisão da Professora Doutora Isabel dos Guimarães Sá, realizado na Universidade do Minho, com duração de dois meses, coletamos dados de 24 inventários lisboetas, sendo 19 correspondentes aos mesmos anos de documentos ituanos e adicionamos cinco referentes a comerciantes (algibebes).86 Durante o estágio, realizamos também pesquisa bibliográfica e visitas técnicas em instituições detentoras de acervos têxteis, a fim de visualizarmos a materialidade de artefatos do período de análise, especialmente os remanescentes do século XVIII, indisponíveis no Brasil. A dissertação versa sobre as roupas na vila de Itu, porém conta com os dados de natureza arquivística, bibliográfica e museológica lisboetas e de outras localidades da América Portuguesa para análise comparativa. O primeiro capítulo apresenta a vila de Itu através de sua materialidade, seus espaços, suas construções e seus habitantes no momento em que a economia açucareira apresentava crescimento econômico relevante e a riqueza se fez perceptível. Realizamos uma breve discussão acerca dos elementos teóricos importantes para análise da cultura 84

Arquivo Histórico do Museu Republicano “Convenção de Itu”/Museu Paulista/ Universidade de São Paulo. “Os processos referem-se a ações de contas de testamento que eram obrigatórias e prestadas pelo testamenteiro para dar cumprimento às determinações de um testador após o seu falecimento.” Fundo Juízo de Resíduos. Disponível em: . Acesso em 24 jan.2014. 86 ANTT – Fundo Geral dos Feitos Findos. Correição Cível da Cidade de Lisboa, Inventários post-mortem e Inventários Orfanológicos. 85

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material, analisamos os padrões das posses dos bens dos ituanos, bem como os bens têxteis que compunham os domicílios, as roupas da casa e os tecidos. O capítulo 2 é dedicado à apresentação e análise do vestuário na vila de Itu. Analisamos a materialidade e o valor monetário atribuído aos artefatos relacionados à aparência, de homens e mulheres da vila de Itu e da amostra lisboeta. Abordamos o vestuário e os tecidos mencionados nas listas de importação, bem como no estoque de loja da vila de Itu. Dedicamos o último tópico à investigação dos usos das roupas na localidade e apresentamos algumas hipóteses de uso doméstico e público de alguns trajes. Finalmente, o último capítulo aborda a dimensão simbólica das roupas de forma mais profunda, buscando identificar padrões cotidianos, traços comuns observados na documentação, mas também elementos importantes em casos individuais e familiares, no sentido de compreender os valores e significados envolvidos na circulação dos bens têxteis. O último tópico dedica-se à imbricação do material e do imaterial nas aparências, a partir de um ramo da família Costa Aranha, cujos membros pertenciam à nossa amostra e possuía grande influência e atuação na vila do açúcar. Nossa investigação busca compreender a composição material e a dimensão simbólica das roupas entre o final do século XVIII e início do século XIX antes da abertura dos portos. Comparando com o padrão europeu, quais tecidos, quais peças de roupas eram utilizadas na vila de Itu, que prosperava economicamente com a produção açucareira voltada à exportação. A posse das roupas indicada nos inventários póstumos poderiam sugerir um padrão de trajes masculinos e femininos? De uso? De circulação desses artefatos entre gerações de uma família e pessoas próximas? Além da materialidade, é possível perceber o peso da dimensão simbólica atribuídos aos objetos, principalmente às vestimentas do período em questão? O que evidenciavam e o que ocultavam as capas e os mantos? Essas são algumas questões que pretendemos esclarecer ao longo do trabalho nas próximas páginas.

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Capítulo 1 A vila do açúcar: configuração espacial e a posse de bens em Itu Uma passagem resgatada por Teresa Petrone nos informa que: Viajando pelos arredores de Itu é impossível não notar que toda gente da classe baixa tinha os dentes incisivos perdidos pelo uso constante da cana de açúcar, que sem cessar chupam e conservam na boca em pedaços de algumas polegadas. Quer em casa quer fora dela, não a largam e é possível que esta também seja a causa de haver aqui mais gente gorda do que em outros lugares. A classe superior gosta igualmente de doce, pelo que recebeu a alcunha de „mel do tanque‟ isto é, o melhor melado produzido na fabricação do açúcar. Os próprios bois e os burros também participam da mesma inclinação.1

A importância do açúcar para Itu e também para a capitania de São Paulo residia na capacidade produtiva e econômica que obteve como principal mercadoria por cerca de cem anos (entre 1765 e 1840). O açúcar produzido na vila de Itu no século XVIII não possuía boa qualidade em relação aos produzidos na região litorânea, devido ao solo, ao clima e também às condições de transporte até seu embarque, razão pela qual obtinha preços mais baixos, como notou Marcelino Pereira Cleto, em 1782.2 A implantação da lavoura canavieira na região de Itu foi resultado de um processo mais amplo de expansão demográfica no interior paulista e do incentivo agrícola realizado por Morgado de Matheus - governador da Capitania de São Paulo, empossado em 1765 e afinado à política fisiocrática do Marques de Pombal. De acordo com Octavio Ianni, outro aspecto que corroborou para o sucesso da produção açucareira, foram as “bases econômicosociais, geográficas e demográficas que se haviam desenvolvido em Itu a partir do bandeirismo de apresar índios e minerar metais e pedras e do comércio que as monções propiciavam com os núcleos de mineração.”3

1

BEYER, Gustavo. Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à Capitania de São Paulo, no Brasil, no Verão de 1813. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, vol. XII, Typ. Do Diário Official, São Paulo, 1908. Apud PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765 – 1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968. p. 42-43. 2 BEYER, Gustavo. Ligeiras notas ... p. 42 3 IANNI, Octavio. Uma cidade antiga. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1996. (Coleção Tempo & Memória; 1) p. 25

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A prosperidade econômica operou transformações sociais e materiais nítidas na sociedade ituana setecentista. Segundo Ianni, sobressaíam os senhores de escravos, brancos, donos de canaviais e engenhos, por um lado, e a escravaria, a mão-de-obra braçal, composta de negros e mulatos, por outro. Mas também havia caboclos ou caipiras pobres, roceiros, sitiantes, cultivando alguma planta, criando alguma galinha, algum porco ou outro animal, para o gasto da família.4

Os estratos dominantes imbuídos de uma “cultura aristocrática” - assim denominada por Ianni - buscaram “marcar posições e distâncias sociais” através dos poderes religioso, político e econômico.5 Esta procura por distinção é o cerne da nossa investigação sendo nosso objetivo principal procurar os elementos materiais empregados para a distinção na aparência pessoal dos indivíduos que habitavam a vila de Itu. Neste capítulo analisamos os aspectos materiais de maneira mais ampla, avaliando os bens de forma geral e a composição material da vila de Itu para então no capítulo seguinte, analisarmos os objetos relacionados à aparência.

1.1 Aspectos históricos e populacionais de Itu

A fundação de Itu deu-se no ano de 1610 dentro do processo de ocupação do território paulista, do litoral em direção ao interior. Este processo iniciou-se na área litorânea, em meados do século XVI, posteriormente, efetivou-se a ocupação do planalto de Piratininga (1554) e no final do século, regiões circunvizinhas, como Santana de Parnaíba (1580) e Itu (1610)6. Tal processo está inserido no contexto de exploração e busca de pedras e metais preciosos, necessidade de mão de obra indígena e de novas áreas para o cultivo agrícola. Uma vez estabelecidas, algumas famílias formaram e consolidaram o povoamento da vila de Itu, utilizando-se “amplamente de índios para seus

4

IANNI, Octavio. Uma cidade antiga... p. 43 IANNI, Octavio. Uma cidade antiga... p. 22 6 Outu-Guaçu, Utu-Guaçu, Ytu e finalmente Itu, foram as denominações da localidade. De origem tupi, UguGuaçu significa cachoeira grande, em referência à queda d‟água do rio Tietê, localizado em Salto-SP. 5

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empreendimentos agrícolas e parte de sua produção serviu de base para as expedições que se dirigiam ao Guairá. Talvez isto tenha dado impulso à criação de uma relativa estrutura agrária em Itu.”7 Durante o século XVII, Itu apresentou um crescimento populacional considerável, obtendo os títulos de capela curada (1644), freguesia (1653) e vila (1657). 8 Em contrapartida, apresentou um desenvolvimento econômico “incipiente, tendo na atividade de subsistência a única forma de vida.” 9 Esta passagem do livro de Eni de Mesquita Samara nos remete à discussão da penúria paulista. A questão da pobreza, decadência e esvaziamento demográfico da Capitania de São Paulo entre os séculos XVII e XVIII, período de grande produção aurífera em Minas Gerais não é o foco da investigação, embora seja extremamente interessante considerá-la. Como apontam as pesquisas de Silvana Godoy e de Milena Maranho, faz-se necessário problematizar as imagens de pobreza e decadência de São Paulo cristalizadas ao longo do tempo.10 Através de um estudo pormenorizado nos inventários dos moradores do Planalto de Piratininga, Maranho apresentou um universo complexo: a percepção de uma riqueza aparente enquanto se observa os bens arrolados era desfeita no momento em que se listavam as dívidas, e os bens muitas vezes eram insuficientes para quitá-las. Também significativo era o papel do crédito naquela sociedade, pois para o indivíduo sem cabedais, as boas relações com pessoas ou famílias já estabelecidas era o meio pelo qual obtinha crédito.

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GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838). 2002. 239 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica). Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 2002 p. 50 8 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico da sua fundação e dos seus principais monumentos. Itu: Ottoni Editora, 2000b. Volume 3, p. 10 9 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 68 10 GODOY, Silvana Alves de. Itu e Araritaguaba... p. 6 – 34; MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do século XVII (1648 – 1682). Bauru, SP: EDUSP, 2010. p. 37 – 62.

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Godoy apontou para as relações comerciais de abastecimento das regiões mineradoras (Minas Gerais e Cuiabá), interligando diversas localidades, contrapondo a ideia de que a prosperidade econômica de um local necessariamente diminui ou afeta outra região. Maria Aparecida de Menezes Borrego também questionou essa estagnação, pois São Paulo segundo afirmam vários estudos, passava por “um momento de dinamização do processo de mercantilização, que já vinha se desenvolvendo desde as últimas décadas do século anterior.”11 A região com maior produção açucareira entre a segunda metade do século XVIII e início do século XIX, era compreendida entre Mogi-Guaçu, Jundiaí, Porto Feliz e Piracicaba, denominada por Caio Prado Júnior como Quadrilátero do Açúcar12. Teresa Petrone reformulou o quadrilátero, substituindo Porto Feliz por Sorocaba, “pois em Sorocaba o cultivo da cana-de-açúcar ainda teve relativa importância e, porque, dessa maneira, Itu, importantíssimo centro canavieiro e outras áreas produtoras de açúcar foram decididamente enquadrados.” 13 Com base na documentação censitária, Petrone contabilizou a produção açucareira e o número de engenhos ituanos para alguns anos. Em 1798 havia 107 engenhos, um ano depois, 113 e em 1803, 130 engenhos. A produção de açúcar em arrobas cresceu nos últimos anos do século XVIII, estabilizou na casa de sessenta mil arrobas entre 1800 e 1801. Aumentou consideravelmente entre 1803 e 1808, alcançando neste último ano oitenta e uma mil e duzentas arrobas, e finalmente a produção caiu consideravelmente entre 1809 e 1810, de setenta mil para vinte mil arrobas.14 Os anos referentes às décadas de 1750, 1760, 1770 e 1780 carecem de documentação de forma geral, devido à irregularidade da realização dos censos.

11

BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo Colonial (1711 – 1765). São Paulo: Alameda, 2010. p. 24. 12 PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense: Publifolha, 2000. p. 75 13 PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira... p. 24. 14 PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira... p. 44.

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Pablo Oller Mont Serrath com base em documentação do Arquivo Histórico Ultramarino complementou os dados de Petrone alusivos à produção canavieira da região serra acima entre os anos de 1793 e 1799, também com o número de escravos.15 Apesar de contarmos com poucos dados disponíveis, podemos ter uma ideia geral da produção agrícola da região. Entre os anos finais do século XVIII e a primeira década do século XIX, observamos um ligeiro crescimento tanto no número de engenhos quanto da produção canavieira. 16 Em uma análise comparativa dos dados da vila de Itu com os de outras vilas serra acima, como Porto Feliz, Piracicaba, Campinas, Jundiaí, Sorocaba, Atibaia, Cunha, Lorena, Guaratinguetá, Pindamonhangaba e Taubaté, até 1802 a vila ituana liderava a produção açucareira em número de engenhos, de escravos e em arrobas. 17 De acordo com Eni de Mesquita Samara, “o açúcar constituía, na realidade, a base econômica da região de Itu e grande parte da população tinha suas atividades vinculadas à produção e comércio desse produto.”

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Em relação à Capitania de São Paulo, Carlos

Bacellar destacou uma mudança socioeconômica significativa durante o século XVIII. Para o autor, o predomínio absoluto da economia de subsistência, itinerante e de trabalho familiar, cedera espaço a uma economia de lavoura para exportação, monocultora, estável e de trabalho escravo. Novas formas de poder pessoal são firmadas, não mais na disponibilidade de índios em flechas, mas sim na posse de escravos a trabalhar na lavoura.19

A produção açucareira desenvolvida na vila ituana vinculou-se a uma linha de ação empreendida pela administração imperial lusitana, que em posse de um vasto império ultramarino, estava comprometida com a defesa dos territórios mais ao sul da América, garantindo sua propriedade frente às investidas espanholas, e de viabilidade econômica da

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MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos na São Paulo restaurada. Formação e Consolidação da Agricultura Exportadora (1765-1802). 2007. 316f. Dissertação (Mestrado em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2007. p. 249. 16 PETRONE, Maria Teresa S. A lavoura canavieira... p. 44; MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos... p. 249. 17 MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos... p. 249. 18 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira... p. 72 19 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste paulista, 1765 – 1855. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997. p. 28.

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capitania de São Paulo, restaurada no ano de 1765. O declínio da atividade aurífera também ajudou a impulsionar a agricultura como alternativa à mineração. Considerando a vila de Itu entre os anos de 1765 e 1808, ressaltamos sua importância na consolidação da atividade econômica mais rentável, o açúcar voltado à exportação, mas também a vila destacou-se como um entreposto comercial entre o litoral e localidades mais ao interior, além de atuar como uma importante unidade administrativa imperial, pois sua jurisdição compreendia boa parte do estado paulista, chegando até a região sul, em Curitiba. 20 Os casos de indivíduos contemplados em nosso universo de análise elucidam essa transição das atividades econômicas e também a diversificação: muitas famílias atuavam na produção, no transporte e na venda de produtos. O açúcar era o principal elemento da economia paulista e ituana, mas não era o único. Outras atividades desenvolviam-se complementando a produção açucareira, como o comércio, por exemplo. Considerando a riqueza que o açúcar proporcionou, nosso objetivo geral é averiguar a composição material dessa localidade no momento em que prosperava, e de forma mais específica, na aparência: quais as diferenças e distinções sociais e econômicas teriam ocorrido no visual, se o enriquecimento fazia-se perceber através das vestes, ou era aplicado nas unidades produtivas ou nas residências. A compreensão do espaço nos possibilita entender melhor o local no qual as pessoas pesquisadas viveram, desempenharam suas atividades e faleceram. De acordo com Amílcar Torrão Filho, a cidade é “um local privilegiado para observarem-se as relações de força que se estabelecem numa dada sociedade.”21 A análise das vestimentas em Itu, portanto, seria incompleta sem a devida contextualização e problematização da vila e dos indivíduos que a habitavam. 20

Em 1811 a vila de Itu foi elevada à categoria de cabeça de comarca, a terceira da Capitania de São Paulo. Cf. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico da sua fundação e dos seus principais monumentos. Itu: Ottoni Editora, 2000a. Volume 1, p. 57. 21 TORRÃO FILHO, Amílcar. Paradigma do caos ou cidade da conversão?: a cidade colonial na América portuguesa e o caso da São Paulo na administração do Morgado de Mateus (1765-1775) 2004. 338 f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas. Campinas. 2004. p. 17

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Sobre o perímetro de Itu em 1765, Francisco Nardy Filho apontou que o Convento carmelita e o Franciscano marcavam seus extremos. Além das terras do quintal do Carmo, estendiam-se os campos do Pirapitingui; após o cercado dos Franciscanos era já o carrascal; do pátio do Convento Franciscano e, como em continuação à sua direita, seguia o caminho de Araritaguaba.22

Ainda nesta data, “contava a vila 658 fogos, sua população era de 3988 habitantes assim dividida: livres, 2758, sendo 1361 homens e 1397 mulheres; escravos, 1230, sendo 640 homens e 590 mulheres.” 23 Segundo João Walter Toscano, foram os primeiros recenseamentos datados da década de 1760 que forneceram dados mais concretos sobre a estrutura urbana de Itu, “considerada como duas áreas, vila e bairros rurais” 24. Em cinco de outubro de 1774, o engenheiro militar José Custódio de Sá e Faria visitou a vila de Itu, partindo anteriormente de Araçariguama e com destino à Praça de Nossa Senhora dos Prazeres, com o objetivo de mapear os rios Tietê, Paraná e Yguatemi. 25 De passagem, Sá e Faria registrou um esboço da vila de Itu, como apontou Beatriz Bueno. Na imagem abaixo, extraída da página do diário de viagem do engenheiro, observamos com indicação das principais construções, a região central da vila.26

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NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000e. vol. 5. p. 29. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... p. 31 24 TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico. Estudos para preservação. 1981. 175 f. Dissertação (Mestrado em Estruturas Ambientais Urbanas). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo.1981 p. 17 25 No artigo Do borrão às aguadas: os engenheiros militares e a representação da Capitania de São Paulo, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno disponibilizou algumas páginas completas do diário de viagem de Sá e Faria, com as anotações de horários de partidas e chegadas, pessoas que recepcionaram a comitiva e distâncias percorridas. O diário de Sá e Faria pertence à Mapoteca do Itamaraty, Rio de Janeiro, Cf: BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. “Do borrão às aguadas: os engenheiros militares e a representação da Capitania de São Paulo.” In: Anais do Museu Paulista. 2009, vol.17, n.2, pp. 111-153. p. 131 - 135. 26 Esta imagem é um registro muito importante, pois carecemos de fontes iconográficas sobre a vila de Itu nesse período. 23

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Figura 1 - Figura por estimação da Vila de Itu, 1774, por José Custódio Sá e Faria.

Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo, Edusp, 2001. CDROM.

A figura apresenta o eixo central ligando o convento de São Francisco, à igreja do Bom Jesus (indicada como Matriz B. Jesus), a igreja nova e a igreja do Carmo. O único edifício não religioso indicado é a Cadeia, à esquerda. Com base no esboço de Sá e Faria e de Toscano, Anicleide Zequini e André Santos Luigi montaram um mapa estilizado de Itu, compreendendo a expansão da área central até a década de 1830. De acordo com Zequini e Luigi, entre as décadas de 1780 e 1800 “o Pátio da Matriz, a rua Direita e rua da Palma, consideradas “área nobre” passaram a concentrar edificações formadas por belas casas e grandiosos sobrados que refletiram a afirmação de Itu como grande produtora açucareira.” 27

27

ZEQUINI, Anicleide., LUIGI, André Santos. A Vila de Itu-SP no período açucareiro (1774-1840). Texto disponível em: . Acesso em 06.jan.2014.

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Figura 2 - Mapa Estilizado da Vila de Itu em 1830, por André Santos Luigi.

Fonte: ZEQUINI, LUIGI. A Vila de Itu-SP no período açucareiro (1774-1840). Texto disponível em: .

Este mapa parte da representação feita por Toscano de Itu em 1830, onde apresenta o crescimento do núcleo urbano, com as designações „vila velha‟ e „vila nova‟, a partir dos registros das ruas novas nos censos. 28 Observamos o núcleo mais antigo, semelhante ao de Sá e Faria, indicado com a cor cinza. Entre as décadas de 1770 e 1830, ocorreu a expansão a partir de ruas no entorno do traçado antigo, em cor escura. Outro aspecto importante são as alterações indicadas em linha pontilhada que permitiram melhor circulação próximo ao largo da Matriz. O local pontilhado indicado como alteração, próximo à cadeia foi denominado Rua ou Beco das Casinhas, onde instalaram as casas de comércio.

28

TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico... p. 24.

31

Em visita a Itu, Auguste de Saint Hilaire descreveu a área urbana em 1819: a cidade é estreita e muito alongada, compondo-se de algumas ruas paralelas, de pouca largura, mas bem alinhadas, que cortam outras ruas estreitas, em geral, e marginadas por muros de jardins. Nas ruas principais, a frente das casas é calçada com largas pedras lisas e compactas; as demais não são calçadas, pelo que os transeuntes afundam os pés na areia do respectivo leito. (...) Vêem-se em Itu várias pequenas praças; mas a em que está edificada a igreja paroquial é a única um pouco mais notável.29

Mesmo datando do final da segunda década do século XIX, a descrição do naturalista francês nos oferece uma ideia do padrão das construções e confirma muitos dos dados encontrados nos inventários. A praça em que se situa a igreja matriz configurava um espaço significativo de convívio e interação social. Sobre este aspecto, o autor ressaltou mais adiante que “nos domingos e dias de festa, Itu tem muito movimento. Nesses dias, como já assinalei, os proprietários da vizinhança vão à cidade a fim de assistir o serviço divino; mas, no correr da semana, as casas principais permanecem fechadas e as ruas mantêm-se desertas.”30 Tal característica era devido à atividade canavieira, que exigia a presença nas unidades produtivas durante a semana toda. Segundo Toscano, na segunda metade do século XVIII, “o „poder do açúcar‟ se faz sentir através das residências na vila (sobrados), marcados pela presença de fazendeiros e negociantes.”31 O calçamento das ruas ocorreu na década de 1790. 32 Nesta década, as principais ruas elencadas por Toscano eram: Rua do Conselho, da Palma, Direita (Ocidental e Oriental), das Baratas, de Santa Rita, de Santa Cruz, da Pedra, do Engenho e o beco das Casinhas.33 A última rua, das Casinhas era o local onde ocorria o comércio. De acordo com Saint Hilaire, “os gêneros alimentícios são vendidos em Itu, como em São Paulo, em

29

SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem à Província de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil, Província Cisplatina e Missões do Paraguai. São Paulo: Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”: Livraria Martins, 1940. p. 232-233. Disponível em: . Acesso em 11.fev.2014. 30 SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... p. 235 31 TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico... p. 21 32 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu (vol. 1) ... p. 61 33 TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico... p. 21-22

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espécies de casinhas obscuras, que dão para uma das ruas transversais.” 34 Em relação às lojas, o viajante observou que os habitantes abonados de Itu e dos seus arredores, tendo, por causa da colocação ou do transporte do açúcar que produzem frequentes relações com São Paulo, nesta última cidade adquirem os objetos de que necessitam; por esse motivo, há, em sua cidade, menos lojas do que em muitas outras de menor importância, e as lojas que vi não são muito bem guarnecidas.35

Apesar da simplicidade das casas comerciais citadas acima, Nardy Filho apontou Itu como centro comercial e bancário das vilas vizinhas. Em ordem de importância, São Paulo significava comercialmente para Itu, o que esta última representava para seus termos e vilas menores da região. Também cabe salientar que esta estrutura comercial existia desde o século XVII, relacionada ao provimento das monções que partiam de Araritaguaba. Para o estudo de Itu optou-se por manter a divisão encontrada nos primeiros recenseamentos, como vila (ou área central) e bairros rurais. A região referida como „vila‟ na documentação corresponde ao núcleo antigo de ocupação demarcado pelas igrejas e seus largos. Já os „bairros rurais‟ distanciavam-se deste núcleo central, mas ainda assim pertenciam à vila. Ao estudar a região das minas durante o século XVIII, José Newton Coelho Meneses definiu como “urbano, o habitante domiciliado na sede das vilas ou dos arraiais, por menor que esses fossem. Rural é o habitante da chácara suburbana, sítio ou fazenda.”36 Esta definição também se aplica para o período de investigação sobre a vila ituana. Os termos da vila de Itu foram desconsiderados, pois nosso enfoque recai apenas sobre os moradores da vila. As regiões ou bairros rurais recorrentes na documentação são: Anhambu, Atuaú, Apotribú, Buru, Cajuru, Caiacatinga37, Itahim Guassú, Itahim Mirim, Pirapitingui, Pirahi, Pouso do Bispo. Adiante, um mapa com a indicação de alguns bairros rurais.

34

SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... p. 236. SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... p. 235. 36 MENESES, José Newton Coelho. O continente rústico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais setecentistas. Diamantina, MG: Maria Fumaça, 2000. p.147. 37 Saint-Hilaire designou como ribeirão de Caracatinga no corpo do texto e adiante, esclareceu: “a palavra caracatinga designa uma espécie de cará (o inhame dos colonos franceses, dioscoréa dos botânicos). – 35

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Figura 3 – Bairros rurais e área central da Vila de Itu

Fonte: Baseado em SADER, Maria Regina C. de Toledo. Evolução... s/n.

Adaptado de Maria Regina C. de Toledo Sader, o mapa aponta alguns dos bairros rurais existentes nos séculos XVIII e XIX na vila, com a indicação em vermelho da área central, e em azul, o Rio Tietê. 38 O mapa apresenta a distribuição dos bairros rurais até o século XIX delimitado pela atual configuração da cidade, em cor branca, sem os termos e de toda a sua jurisdição da vila. Neste esquema, é possível observar a distância dos bairros em relação à área urbana, o quanto a região central significava em termos espaciais da vila, bem como o papel do Rio Tietê na delimitação de Itu. Como Sader localizou os locais na área atual do município de Itu que compreende aproximadamente 640 quilômetros

Müller escreveu Caiacatinga.” , SAINT-HILAIRE, Auguste. de. Viagem... nota de rodapé número 423, p. 226. 38 SADER, Maria Regina C. de Toledo. Evolução da paisagem rural de Itu, num espaço de 100 anos. 1970. Mestrado (Geografia Humana). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo. 1970.

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quadrados, que está delimitado em cor branca, é possível visualizar a distribuição dos bairros até o século XIX, sendo que alguns ainda mantêm o mesmo nome na atualidade.39 Considerando os espaços públicos que possibilitavam a convivência, destacamos as igrejas e as praças ou largos. Para Maurício Maiolo Lopes, “desde os primórdios do período colonial as praças sempre se configuraram como um prolongamento da igreja (...), uma continuação de seu adro”40. Portanto, os largos eram espaços de encontro e sociabilidade antes e depois da realização das celebrações religiosas nas igrejas. Em Itu quatro largos destacavam-se: o do Bom Jesus, do Carmo, da igreja Matriz e o de São Francisco. O primeiro, o Largo do Bom Jesus (atual Praça Padre Anchieta) é o mais antigo, pois remonta à fundação da capela construída por Domingos Fernandes em 1610.41 Com a construção da nova igreja Matriz Nossa Senhora da Candelária em seu local atual, a igreja do Bom Jesus foi reparada na década de 1760 e recebeu ampliações e melhoramentos até 1800, especialmente no período em que a família Costa Aranha esteve na tesouraria desta igreja. 42 Segundo Lopes, a Igreja do Carmo, datada da década de 172043 não recebeu reformas significativas durante o século XIX, diferentemente do seu largo, que foi cuidado com o plantio das palmeiras imperiais Roystonea oleracea, no segundo quartel do século XIX.44 Ainda de acordo com Lopes, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Candelária e sua praça, foram as mais modificadas durante o século XIX.45 Originalmente a Igreja Matriz situava-se onde hoje se encontra a Igreja do Bom Jesus. A Matriz atual foi inaugurada em 1780, defronte a Praça Padre Miguel. 39

Informação disponível em: < http://www.itu.sp.gov.br/?area=1>. Acesso em: 17.nov.2014. LOPES, Maurício Maiolo. As faces da modernidade: arquitetura religiosa na reforma urbana de Itu (18731916). 2009. Dissertação (Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. p. 69. 41 LOPES, Maurício Maiolo. As faces da modernidade... p. 72 42 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu... (vol. 1) p. 78. 43 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu... (vol. 1) p. 111 – 114. 44 Maurício Maiolo. As faces da modernidade... p. 76-78; D'Elboux, Roseli Maria. Uma promenade nos trópicos: os barões do café sob as palmeiras-imperiais, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Anais do Museu Paulista. 2006, 14 (julho-dezembro). Disponível em: . Acesso em: 25.mar. 2014. 45 Maurício Maiolo. As faces da modernidade... p. 79 – 81. 40

35

O Largo de São Francisco era composto por uma igreja, um convento e um cruzeiro em sua entrada. Segundo Nardy Filho, a igreja foi construída entre 1793 e 1802. 46 Em 1907, um incêndio destruiu a igreja e demais edificações dos franciscanos. A aquarela de 1845, de autoria de Miguel Dutra, pertencente ao acervo do Museu Republicano Convenção de Itu/USP. Na aquarela, Dutra retratou o conjunto de edificações franciscanas, cujo único remanescente é o cruzeiro. Figura 4 - Largo de São Francisco, Miguel Dutra, 1845

Fonte: BARDI, Pietro Maria. Miguel Dutra, o poliédrico artista paulista. (Itu, 1810- Piracicaba, 1875). São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1981. p. 49.47

Essas quatro igrejas (com seus respectivos largos) delimitaram a região central da vila de Itu até aproximadamente a década de 1830. São importantes referências, pois dentro dos limites destes templos que a vila se formou, sendo possível observar nos mapas de Sá e

46 47

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu... (vol. 1) p. 92. Largo de São Francisco, 1845. Aquarela sobre papel, 19x 27,5cm.

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Faria e no seguinte, apresentando as modificações operadas entre 1770 e 1830, com a abertura da rua das casinhas.48 Entre os séculos XVIII e XIX, os espaços de sociabilidade nas vilas da América Portuguesa eram as igrejas, durante as celebrações, as ruas, especialmente em ocasiões festivas e, por fim, as praças e os largos. Conforme apontou a historiadora Leila Mezan Algranti, nos momentos de celebrações, “participavam das festividades não apenas os moradores do núcleo urbano, mas também aqueles dos sítios e fazendas dos arredores e até mesmo de lugares mais distantes, que possuíam casas nas cidades.” 49 As questões relacionadas à configuração urbana de Itu, como o processo de crescimento, os melhoramentos ocorridos no núcleo central, são importantes para a compreensão dos espaços de sociabilidade na vila, pois fornecem indícios sobre os locais onde as pessoas exibiam suas roupas de trabalho, de festa, ou do cotidiano. São nestes espaços de interação social que o indivíduo deveria “adquirir, defender ou ampliar o papel social que a comunidade podia tolerar.”50 Para a pesquisadora Vera Ferlini as festas na América Portuguesa “permitiam o encontro, a visibilidade, a coesão dentro de comemorações que recriavam os padrões metropolitanos, dando a identidade desejada, trazendo o descanso, os prazeres e a alegria e introjetando valores e normas da vida em grupo”.51 As festas eram celebrações relacionadas ao calendário religioso e à efemérides ligadas ao poder do Estado, como afirmou José Ramos Tinhorão. 52 Em um importante trabalho já realizado sobre a população da vila de Itu a partir dos maços de população, Eni de Mesquita Samara compilou os dados das principais listas 48

Cf. linha pontilhada ao lado da Cadeia, figuras 1 e 2. ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias e vida doméstica”. In: SOUZA, Laura de Mello e. História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. Fernando A. Novais (coord). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. volume 1. p. 113. 50 ARIÈS, Philippe. “Por uma história da vida privada”. In: História da vida privada 3: da Renascença ao Século das Luzes. Organização Philippe Ariès e Roger Chartier. São Paulo. Companhia das Letras, 1991, p. 9. 51 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. “Folguedos, feiras e feriados: aspectos socioeconômicos das festas no mundo dos engenhos.” In: IANCSÓ, Istvan. e KANTOR, Íris. (orgs.) Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp: Imprensa Oficial, 2001. vol. I e II. (Coleção Estante USP – Brasil 500 Anos; v. 3). vol. II. p. 450. 52 TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Ed. 34, 2000. p. 7. 49

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nominativas, indicando os dados por companhias. A seguir, reunimos a partir das tabelas de Samara os totais por fogos e habitantes gerais entre o final do século XVIII e início do XIX. Tabela 1. Relação entre número de fogos e habitantes da vila de Itu, 1773-1813 Ano

Número de fogos

Número de habitantes

1773

255

2211

1792

1317

9410

1798

894

7162

1803

1008

9411

1809

1095

9566

1813

857

5674

Fonte: SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira... p. 79 – 90.

Os dados nos apontam um crescimento do número de habitantes considerável entre as décadas de 1770 e 1790. Até a última década do século XVIII a vila de Itu era local de atração populacional e, a partir da virada do século, mantêm um número médio de habitantes, que passa a decair a partir dos anos 1810. Tal declínio populacional deve-se, talvez, ao esgotamento das terras para a produção açucareira, região de cultivo muito antiga, e à ereção de novas vilas que se desmembraram de Itu, como Porto Feliz, que ganhou autonomia em 1797. 53 Estes dois fatores estão relacionados à busca por novas terras para expansão do cultivo canavieiro, rumo ao interior de São Paulo. Samara ressaltou ainda a epidemia de varíola, que aliada à falta de médicos e recursos, atingiu uma parcela da população entre os anos de 1798 - 1800.54 A autora também apontou outras características da população neste período. Com base nas tabelas apresentadas por Samara, é possível acompanhar a relação entre livres, escravos, forros e agregados. Entre 1773 e 1829, por cinco vezes nos censos, o número de 53 54

SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 104. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 105.

38

escravos ultrapassou o de livres: 1803, 1809, 1818, 1822 e 1829.55 Samara notou a presença de agregados em maior número em domicílios na região central da vila de Itu, ao invés de estarem nas fazendas ou unidades produtivas. A autora apontou também o grande número de escravos empregados na lavoura o motivo da baixa incidência de mão de obra livre nos trabalhos agrícolas. 56 Cruzando as informações levantadas sobre os indivíduos contemplados em nossa amostra tanto na documentação censitária, genealógica quanto na cartorária, foi possível observar em alguns casos a ocupação e a posse de títulos de organizações militares. De acordo com Ana Paula Pereira Costa, “a estrutura militar lusitana, que se transferiu para o Brasil, se dividia em três tipos específicos de força: os Corpos Regulares (conhecidos também por Tropa Paga ou de Linha), as Milícias ou Corpo de Auxiliares e as Ordenanças ou Corpos Irregulares.”57 Os Corpos Regulares “constituíam-se no exército „profissional‟ português, sendo a única força paga pela Fazenda Real.” 58 As Milícias ou Corpo de Auxiliares “eram de serviço não remunerado e obrigatório para os civis constituindo-se em forças deslocáveis que prestavam serviço de apoio às Tropas Pagas.”59 E por final, os Corpos de Ordenanças, que recrutava os habitantes entre 18 e 60 anos, não recebiam soldo nem instrução militar sistemática. Eram organizados em terços que se dividiam em companhias.60 As Ordenanças ou Corpos Irregulares atuavam em âmbito local, cuja hierarquia (em ordem decrescente) era: capitão, alferes, sargento, cabo e soldado. As Tropas Auxiliares também atuavam primeiramente na localidade. Ao avaliar as ocorrências dos títulos militares no universo da vila dentre os registros dos censos, acreditamos que a grande 55

SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 108. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 97. 57 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando e mobilização de escravos armados nas conquistas: a atuação dos Corpos de Ordenanças em Minas colonial.‟ In: Revista de História Regional 11(2): 109-162, Inverno, 2006. p. 111. Disponível em: . Acesso em 26.mar. 2014. Para informações mais detalhadas sobre as hiearquias militares, consulte PEREIRA FILHO, Jorge da Cunha. Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX. Disponível em: . Acesso em 26.mar.2014. 58 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 111. 59 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 111. 60 COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 112 – 113. 56

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maioria dos cargos ou títulos encontrados para os ituanos eram dos dois últimos tipos de organização militar, as Tropas Auxiliares e as Ordenanças.61 Os inventariados que possuíam títulos militares, viviam de seu trabalho na lavoura, no comércio e da criação de animais, o que demonstra sua importância simbólica, mais do que um recurso financeiro. Dentre os títulos encontrados, estão os de alferes, capitão, sargento, soldado e tenente. Através dos censos e dos inventários, foi possível notar a ascensão de dois soldados para alferes: no caso de Antônio Antunes Pereira e Manoel Álvares Lima 62. Ambos subiram três postos acima na estrutura militar. Enquanto Manoel declarou possuir lavoura (sem especificar de qual gênero), Antônio, possuía como primeira ocupação viver de negócio de fazenda seca. Salvador Jorge Velho foi identificado na documentação censitária como capitãomor. Em 1766, só mencionou este cargo nas ocupações e, como atividade, declarou “viver em favor”. Anos mais tarde, em 1775, consta a função de capitão-mor e que vivia de terras e plantações. Dos capitães localizados na amostra, todos possuíam outras ocupações e atividades: lavoura, negócio de fazenda seca e senhor de engenho. Como soldados, encontramos as seguintes descrições: soldado, soldado pé, soldado auxiliar pé e soldado cavalo. Em todos os registros deste cargo, os homens elencaram lavoura ou planta/colhe/cria como ocupação e atividade. Considerando que o ganho monetário (soldo) não era o motivo do desempenho dessas funções militares, e que apesar do alistamento compulsório muitos conseguiam fugir à obrigação militar (a principal razão de o primeiro recenseamento existir), a atuação destes homens deve ser observada dentro de uma perspectiva que explore o significado simbólico e social do pertencimento a essa organização, pois 61

De acordo com Pereira Filho, “no Brasil, as Ordenanças eram organizadas em cada Vila ou Cidade, aí se incluindo seus Arraiais e Povoados, sendo seus comandantes responsáveis diretos pela defesa local, inicialmente escolhidos pelas Câmaras, tinham o título de Capitão-Mor, posto que corresponde hoje aproximadamente ao de "Coronel". Seu substituto imediato era o Sargento-Mor, ou Sargento-Mayor, de que se originou o atual posto de "Major". Mais tarde, a partir de 1709, ambos os postos passaram a ser por nomeação privativa do Governador e Capitão General.”Cf. PEREIRA FILHO, Jorge da Cunha. Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX. Disponível em: . Acesso em 26.mar.2014. 62 Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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pode-se dizer que os privilégios da ocupação de um posto nas Ordenanças não representavam diretamente ganhos monetários – o que representava para a Coroa uma economia em ganhos diretos com a administração – mas, sim, produção ou reprodução de prestígio e posição de comando, bens não negligenciáveis no Antigo Regime, bem como isenções de impostos e outros privilégios.63

O pertencimento a uma organização militar implicava na responsabilidade de servir em nome da Coroa, já que era um “importante componente da administração lusa na colônia, pois levavam a ordem legal e administrativa da Coroa para os lugares mais longínquos de seu vasto Império”. 64 Demandava a confecção das fardas e posse dos animais a custo do próprio militar, mas como apontado por Costa na citação acima transcrita, funcionava como elemento de distinção muito eficiente. 65 De acordo com Christiane Figueiredo Pagano de Mello, a partir da segunda metade do século XVIII, os Corpos de Ordenanças e os de Auxiliares, tornaram-se “centros de poder local privilegiados.”66 A análise das ocupações nos maços de população aponta que treze indivíduos declararam desenvolver duas atividades coincidentemente: lavoura e sacerdócio, negócios e lavoura, negócios e militar, e o perfil lavoura e militar em sete casos. Entre os que mencionaram apenas uma ocupação, sete pessoas desenvolviam apenas lavoura, temos seis senhores de engenho, um capitão-mor, um ferreiro e uma costureira, entre os quarenta e quatro indivíduos da amostra ituana. Na sociedade colonial a posse de um engenho era um diferenciador social importante. Segundo Carlos Bacellar, apenas um restrito grupo de domicílios caracterizou-se por conseguir ascender à posse de um engenho e de um plantel de escravos, diferenciando-se do grosso dos domicílios que permaneciam em seu dia-a-dia de subsistência. Nos recenseamentos, estes domicílios passaram a ter seus chefes denominados Senhores de Engenho, e suas esposas também caracteristicamente tratadas por “Donas”.67

63

COSTA, Ana Paula Pereira. „Organização militar, poder de mando... p. 118. COSTA, Ana Paula Pereira. “Organização militar, poder local e autoridade nas conquistas: considerações acerca da atuação dos corpos de ordenanças no contexto do império português”. Disponível em:. Acesso em 26.03.2014. 65 Trataremos das fardas de forma mais aprofundada no segundo capítulo. 66 MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Forças militares no Brasil Colônia: corpos de auxiliares e de ordenanças na segunda metade do século XVIII. Rio de Janeiro: E-papers, 2009. p. 59. 67 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra... p. 28. 64

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Entre os indivíduos de nossa amostra constam nos censos sete senhores de engenho referenciados na primeira ocupação, sendo uma mulher, Ana Leite Gularte, viúva; um padre e um tenente agregado no regimento da cavalaria ligeira. 68 Destes sete senhores de engenho, todos possuíam escravos (em quantidades bem distintas, de 9 a 36 cativos), três tinham agregados e cinco afirmaram plantar mantimentos. Todos declararam a produção de açúcar, quantificando cada tipo: fino, redondo e mascavo e, por fim, quatro pessoas mencionaram a produção de aguardente69. Esses dados nos fornecem uma ideia da produção agrícola de cada domicílio recenseado de nossos inventariados.70 Sobre a produção açucareira, a média do açúcar total produzido e declarado nos censos foi de 332 arrobas entre os sete senhores de engenho. A menor produção, de 100 arrobas, pertencia a José Manoel Caldeira Machado, que possuía nove escravos. Caldeira Machado declarou também ser criador de gado, além de possuir o título de tenente acima mencionado. Já a maior produção, de 800 arrobas, era de José do Amaral Gurgel em 1803, sendo 700 de açúcar fino, 80 do redondo e 20 de mascavo. Deixou 20 arrobas de açúcar fino para consumo próprio e possuía um plantel de trinta e seis escravos, além de três agregados. Conforme Bacellar, as esposas dos senhores de engenho eram denominadas donas. Sobre o papel da dona na sociedade colonial, Eliana Rea Goldschmidt ressaltou que “significava o ápice em termos de prestígio feminino na sociedade colonial, era representante dos ideais da nobreza entre os quais estavam a ociosidade e a reclusão.”71 Em relação à origem dessas donas, Aline Antunes Zanatta constatou que a “nobreza” poderia ter sido herdada de seus pais, ou mesmo a mulher vinha de “um grupo não nobre que

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AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. Açúcar fino era o de melhor qualidade, retirado da parte superior da forma denominada pão de açúcar. O açúcar redondo era branco, de menor qualidade em relação ao fino, era retirado da parte intermediária da forma. E por fim, o mascavo era de qualidade inferior, mais escuro e com resíduos de mel por situar-se no fundo da forma. 70 Utilizamos essas informações com cautela, pois sabemos que toda documentação com indicadores de qualquer elemento relacionado à declaração de produção ou bens era comumente modificada a fim de burlar os impostos. 71 GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. “Famílias Paulistanas e os casamentos consangüíneos de „donas‟, no período colonial”. Anais da 17º Reunião da S.B.P.H. São Paulo, 1997. p.151. 69

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conseguiu ascender economicamente e que, consequentemente, adquiriu prestígio.”

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Portanto, a riqueza era apenas um dos critérios possíveis para a obtenção de nobreza, mas não uma categoria estática de definição das “Donas” paulistas, pois muitas destas mulheres poderiam ter empobrecido e continuarem sendo identificadas como “donas” pela sociedade em que viviam.73

Em nossa pesquisa, nos deparamos com cinco donas, todas esposas de chefes de domicílios. Duas eram esposas de senhor de engenho, três de homens com títulos militares, sendo que um deles era tenente agregado no regimento da cavalaria ligeira e senhor de engenho, José Manoel Caldeira Machado. Dentre a primeira ocupação dos maridos estão as de capitão-mor, dois senhores de engenho, lavoura, planta cana e planta/colhe/cria. 74 De todos os inventários (quarenta e quatro), apenas um casal não possuía escravos. O espólio mais humilde destes casais era o de José Fiusa e de Dona Francisca Xavier da Fonseca, avaliado em 446$780 (quatrocentos e quarenta e seis mil e setecentos e oitenta réis), sem nenhum escravo, nem canavial, e apenas um sítio arrolado. 75 Dois casais apresentaram uma faixa econômica semelhante: o Capitão-mor Salvador Jorge Velho e Dona Maria da Silva Franco, em 2:345$441 (dois contos, trezentos e quarenta e cinco mil, quatrocentos e quarenta e um réis) e o Tenente José Manoel Caldeira Machado e Dona Maria D‟Assunção Camargo, em 2:517$240 (cinco contos, quinhentos e dezessete mil, duzentos e quarenta réis). Ambos não possuíam canaviais. O casal José do Amaral Gurgel, senhor de engenho e Dona Gertrudes de Campos é o mais abastado da amostragem. Em 1806, o espólio final foi avaliado em 19:005$450 (dezenove contos, cinco mil, quatrocentos e cinquenta réis), o maior valor encontrado dentre as pessoas investigadas.76

72

ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765 – 1822). 2005. 213f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas. p. 38. 73 ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações... p. 38 74 AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. 75 AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. 76 O casal possuía 6:823$490 (seis contos, oitocentos e vinte e três mil, quatrocentos e noventa réis) em dívidas passivas, o que resultava na quantia de 12:181$960 (doze contos, cento e oitenta e um mil, novecentos e sessenta réis) líquido para a partilha.

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A análise das fortunas e fazendas mais humildes (tendo como critério possuir roupas arroladas nos bens do inventário póstumo) confirma o local de destaque que os senhores de engenho e as donas ocupavam entre os demais, através da riqueza acumulada, da rede familiar e econômica à qual pertenciam, bem como pela ocupação de cargos importantes, como apontados acima. Durante a colonização, como observou Françoise Souza, a Igreja foi a única instituição a se estabelecer “com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, cotidianos e imediatos, como as famílias e as comunidades, até ao âmbito internacional, em que convivia com os poderes dos reis e imperadores.”77 A Igreja desempenhava um papel importantíssimo na América Portuguesa, atuando conjuntamente à Coroa. Sílvia Lara destacou que “a associação entre a estrutura eclesiástica e o poder, além de ser constitutiva da sociedade portuguesa no Antigo Regime, marcava e mesmo ordenava a vida nos núcleos urbanos coloniais.” 78

O papel e a atuação dos

religiosos nos domínios coloniais excedia às tarefas e atribuições usuais, tendo influência nos setores administrativos, políticos e na educação da população. Desta forma, pertencer ao quadro eclesiástico denotava distinção. Temos dois religiosos entre nossos inventariados: Manoel da Costa Aranha e Antônio Francisco da Luz. Ambos possuíam terras dedicadas à agricultura, além do sacerdócio. Antônio declarou-se senhor de engenho em 1800. Além disso, era proprietário de trinta e quatro escravos, com um total de trezentos e quarenta e cinco arrobas de açúcar produzido. Já Manoel declarou possuir lavoura nos anos de 1773 e 1775, mas não informou qual gênero de produto cultivava. 79 Os espólios finais desses dois sacerdotes são parecidos: o de Manoel somando 7:388$279 (sete contos, trezentos e oitenta e oito mil, duzentos e setenta e nove réis) e o de Antônio contando com 8:614$430 (oito contos, seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e 77

SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna: os padres políticos na formação do Estado Nacional brasileiro (1823 – 1841). 2010. 438 f. Tese (Doutorado) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2010. p. 42 78 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 58. 79 AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu.

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trinta réis). A comparação entre a composição dos bens de maneira geral (as posses por categorias) também são muito semelhantes. De acordo com Françoise Souza, em relação aos vencimentos que os sacerdotes recebiam, as côngruas variavam muito, entre oitenta e duzentos mil réis. 80 Segundo a mesma autora, “os religiosos completavam suas rendas cobrando taxas no exercício do ministério, como as conhecenças e pé-de-altar.”81 Ao levar em conta o valor dos espólios dos sacerdotes, os bens relacionados como as declarações de posse de lavoura e do título de senhor de engenho, supomos que a maior parte da riqueza acumulada pelos sacerdotes não fosse originária dos serviços religiosos. Ao se referir aos estabelecimentos comerciais da vila de Itu no século XVIII, Nardy Filho relatou que importantes casas ali se estabeleceram, entre as quais era a mais importante a do bracarense Francisco Novaes de Magalhães, que atendia aos lavradores de Itu e vilas vizinhas fornecendo-lhes os gêneros de que necessitavam e até dinheiro para o custeio de suas lavouras, cujos pagamentos lhe eram feitos após as colheitas em moedas.82

Já Maria Aparecida de Menezes Borrego, em tese dedicada à atuação dos comerciantes em São Paulo, na primeira metade do século XVIII, destacou um aspecto importante em relação ao perfil dos homens de negócios: a atividade comercial era considerada inferior e relacionada aos ofícios mecânicos, situação que afetava a nobilitação do indivíduo. No entanto, muitos portugueses recém-chegados adotaram tais ocupações, sem quaisquer reservas. 83 Quanto às estratégias de concentração e transmissão da riqueza em famílias do oeste paulista através dos arranjos matrimoniais, Carlos Bacellar ressaltou que apesar da preferência por uniões sanguíneas, matrimônios entre pessoas externas ao grupo familiar ou próximo, ocorriam visando alianças economicamente vantajosas. 84 Dentro desta perspectiva, é possível compreender a presença de agentes mercantis nos laços

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SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna... p. 52. SOUZA, Françoíse Jean de Oliveira. Do altar à tribuna... p. 52-53. 82 NARDY FILHO, Francisco „Evolução da cidade de Itu‟. In: O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 abr., 1957. p. 6. 83 BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil... p. 43. 84 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra... p. 89 – 98. 81

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matrimoniais de famílias tradicionais de elite no oeste paulista como uma estratégia do pai e senhor de engenho em incrementar seus negócios ao incluir em seu círculo familiar um negociador ou intermediário português, facilitando assim a venda/exportação de sua produção. Entre nossos inventariados, encontramos um comerciante de naturalidade portuguesa muito atuante na vila de Itu, Francisco Novaes de Magalhães, como comentado a pouco, Nardy Filho menciona-o como o proprietário da casa comercial mais importante da vila. 85 De Francisco Novaes de Magalhães não temos seu inventário. Contamos apenas com as contas de testamento e seu testamento. No rol de bens de 1779, são declarados dois sítios, um com criação de gado em Itahu e outro em Anhambú. Nos censos, entre os anos de 1765 e 1808, Francisco apareceu em quatro deles: 1766, 1773, 1775 e 1776 e sempre constou como suas ocupações negócio/loja ou negócio de fazenda seca e lavoura.86 Sobre o comércio, Nardy Filho afirmou que “existia também por esse tempo em Itu, um outro bazar de propriedade de José Gonçalves de Barros, (...) porém não era tão importante e de grande movimento como o de Novaes de Magalhães.”87 Entre os bens arrolados no inventário de José Gonçalves de Barros, datado de 1779, consta um item denominado „Fazenda da Loja‟ sucintamente descrita como “uma receita da loja” avaliada em 297$010 (duzentos e noventa e sete mil e dez réis), além de trinta e duas arrobas de açúcar alvo a 25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis). 88 Nos censos da vila de Itu, referentes ao período estudado, Barros declarou desempenhar como ocupação negócio de fazenda seca em dois anos (1766 e 1773), lavoura (1775), planta/colhe/cria (1776) sendo sua produção agrícola de milho e feijão. No último ano em que ele aparece nos censos, declarou possuir “cinco cavalos com que trabalha no caminho de Santos.” Barros nunca foi mencionado como proprietário de cativos nos censos, mas em seu inventário datado de 1779, isto é, três anos após aparecer no recenseamento, foram

85

NARDY FILHO, Francisco. Evolução... p. 6. AESP. Maços de População de São Paulo, 1765 – 1850. Vila de Itu. Observação: no terceiro capítulo realizaremos uma análise mais apurada de Francisco Novaes de Magalhães. 87 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.3) p. 224 88 ARQ/MRCI. Inventário de José Gonçalves Barros, vila de Itu – 1779, caixa 10. p. 7 verso. 86

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avaliados doze escravos no valor total de 860$600 (oitocentos e sessenta mil e seiscentos réis). Ao analisar as ocupações e atividades desenvolvidas pelos habitantes da vila de Itu notamos uma importante questão: a relação que praticamente todos os indivíduos de nossa amostragem tinham com a agricultura, pois quando não estavam ligados à lavoura canavieira, dedicavam-se aos mantimentos necessários à subsistência. 89 Realizamos uma análise mais detalhada das trajetórias e fortunas dos indivíduos no terceiro capítulo. Nos inventários póstumos e nos testamentos nos chamou atenção o pertencimento dos indivíduos às ordens terceiras. Nos casos estudados, não encontramos nenhuma menção às confrarias ou irmandades, apenas às ordens terceiras. 90 Apenas duas ordens terceiras são mencionadas na documentação: a de São Francisco e a do Carmo.91 Dos quarenta e quatro indivíduos investigados, trinta e três (75%) não faziam menção a nenhuma ordem ou confraria; sete pertenciam à Ordem Terceira do Carmo (15,9%) e quatro (9%) à de São Francisco. Nardy Filho atestou que a Ordem Terceira do Carmo já existia anteriormente à construção da igreja e do convento, em 1706.92 Sobre a composição social desta última, o autor afirmou que “a essa Ordem pertenciam as mais nobres e distintas famílias ituanas; grande era a devoção dos antigos ituanos para com a Virgem do Monte Carmelo, o que prova o grande número de dádivas e doações feitas aos Carmelitas.” 93

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No terceiro capítulo realizamos uma análise mais detalhada das trajetórias e fortunas dos indivíduos e suas famílias. 90 Segundo Caio Boschi, a principal diferença entre ordens terceiras e confrarias é que “ao contrário das confrarias, onde o objetivo é o de incrementar o culto público, as ordens terceiras são associações pias que se preocupam, fundamentalmente, com a perfeição da vida cristã de seus membros.” BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 19. 91 De acordo com Nardy Filho, existiam além das ordens terceiras de São Francisco e do Carmo, a irmandade Nossa Senhora do Rosário, de São Miguel das Almas, de Nossa Senhora do Pilar, do Bom Jesus, de São Benedito, da Boa Morte, da Nossa Senhora das Dores, do Santíssimo Sacramento e a de Nosso Senhor dos Passos. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol. 5). p. 51. 92 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.3) p. 52. 93 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 118-119.

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Durante a primeira metade do século XVIII, a Ordem Terceira do Carmo foi responsável pela manutenção de uma capela e de um convento que possuía “avultado patrimônio em terras e escravatura, sendo também rica em alfaias e objetos de culto.”94 Já a Igreja atual do Carmo foi construída durante a segunda metade do século XVIII. Sete imagens foram compradas no Rio de Janeiro, com as despesas a cargo da Ordem Terceira95. Realizavam junto ao Convento dos padres carmelitas, aulas de primeiras letras e humanidades.96 Nardy Filho apontou que a tradição do Convento na instrução continuou durante o século XIX e também a utilização de uma sala deste Convento para a “segunda sessão do Júri da Câmara de Ytu”97. A utilização do espaço interno do Convento para atividades da comunidade ituana como o funcionamento da sessão da Câmara, denota o envolvimento da elite nascente com a religião. Conforme apontou Octávio Ianni, o poder religioso, o poder econômico e o poder político emergentes começaram a assinalar posições e lugares. Começaram a construir-se igrejas e conventos que expressavam a sobriedade dos recursos econômicos e culturais, por um lado, e a emergência de uma cultura aristocrática, por outro. Aliás, naqueles tempos era bastante acentuada a presença da religião na vida das famílias da aristocracia. 98

Segundo Caio Boschi, “ser membro de uma ou mais ordem terceira significava ter acesso ao interior da nata da sociedade e trânsito facilitado nela. Significava status. Significava imediata obtenção de privilégios, graças e indulgências. Significava estar mais próximo do poder e ter a sua proteção.”99 Considerando os significados religiosos e simbólicos importantes para a compreensão do período, passaremos agora à análise das doações realizadas por alguns membros às suas igrejas, ordens, santos de devoção, vislumbrando a materialidade envolvida na religiosidade. Nos testamentos encontramos doações às igrejas, já realizadas ou indicadas como a vontade do testador, para assim proceder o testamenteiro no momento da partilha. 94

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 114. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 119 96 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 115 97 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 116 98 IANNI, Octavio. Uma cidade antiga... p. 22 99 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder... p. 20. 95

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No testamento do fundador de Itu, Domingos Fernandes, encontramos alguns dados fundamentais. Além de erigir a capela em honra a Nossa Senhora da Candelária, deixou a referida capela como herdeira de sua terça, e mais alguma roupa de alfaia como sobrecéu, cortinas, toalhas, um frontal usado de tafetá verde e amarelo, uma vestimenta, casula, alva e o mais pedra de altar, cálice com sua patena, sanguinhos, corporais, missal usado, quatro castiçais, dois de estanho e outros dois de latão, campainha e galhetas de cobre. 100

A nomeação da capela como herdeira, bem como a designação de objetos elencados acima, indicou a preocupação do testador em prover elementos materiais necessários para a manutenção e funcionamento da mesma. Fernandes obteve a provisão de capela curada em 1644 e, após sua morte, em 1653, foi elevada à freguesia. Além de símbolo devocional, a capela era o elemento tangível da autoridade administrativa obtida. Mais adiante e repetidamente em seu testamento, Fernandes instruiu sobre a nomeação do padroeiro da capela, a fim de dar continuidade e realizar a ampliação da mesma.101 Finalmente, o fundador registrou que sua última vontade era ser enterrado na dita capela e que em nenhuma situação seus restos mortais deveriam ser removidos de lá. 102 Entre os inventariados do nosso estudo, encontramos em alguns dos testamentos as doações a igrejas ituanas e da região. Essas informações são interessantes e nos auxiliam a compreender a relação da população com a constituição das igrejas, das ordens terceiras e também vislumbrar a formação do patrimônio religioso barroco de Itu – significativo até o presente. João de Mello Rego, por exemplo, terceiro do Carmo, registrou sua vontade de deixar como doação à Capela de Santa Gertrudes, o oratório com sete palmos de alto e quatro e meio de largo, dourado e pintado, com as imagens seguintes: um senhor crucificado de pau, uma senhora de Boa

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Testamento de Domingos Fernandes, datado de 12 de Dezembro de 1652. Cf. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 45. 101 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 48. 102 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 49.

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Viagem com dois palmos, outra senhora do Carmo, Santa Bárbara, nossa senhora da Rosa e uma imagem do menino Jesus.103

Segundo a menção do doador, seu ato visava à perpétua veneração das imagens.104 Esses dados coletados nos testamentos informam o tipo de ajuda financeira que a igreja, irmandades e outras pessoas receberam. Auxiliam-nos a perceber quais templos estavam em construção, reformas e melhoramentos na época de sua confecção. Sem falar nos laços afetivos, devocionais e familiares que permeavam o testador neste momento próximo à morte.

1.2 Os cabedais dos ituanos nos inventários póstumos

Neste tópico apresentamos primeiramente os elementos teóricos do campo da cultura material caros à nossa pesquisa, através das proposições dos principais autores. No segundo momento, analisamos a composição material da vila de Itu, através das categorias de bens que utilizamos para organizar os bens arrolados nos inventários post-mortem, apresentando os principais elementos que compunham a materialidade da vila ituana. O campo de pesquisa da cultura material configura-se por estar em constante debate. Ao analisarmos as publicações, grupos de pesquisa e eventos, notamos ainda o pequeno interesse que essa área desperta. Apesar disso, trabalhos importantes surgem nos campos de estudo da história e da antropologia. A proposta aqui não é apresentar um balanço exaustivo das discussões sobre este campo, mas a de ilustrar as principais vertentes e

103

AESP. Autos de Contas de Testamento de João de Mello Rego, vila de Itu – 1779, caixa C00554. Juízo dos Resíduos. p. 5. 104 AESP. Autos de Contas de Testamento de João de Mello Rego, vila de Itu – 1779, caixa C00554. Juízo dos Resíduos. p. 9 verso.

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indicar como tais trabalhos nos auxiliam a melhor refletir acerca do nosso objeto de estudo105. O termo cultura material gera dúvidas e debates em sua tentativa de definição. Marcelo Rede apontou que a cultura material é “a um só tempo, parte do fenômeno histórico e fonte documental para sua compreensão.”106 Não se configura como uma disciplina, mas mobiliza um esforço interdisciplinar para o seu estudo. No verbete sobre Cultura Material da Enciclopédia Einaudi, de Richard Bucaille e Jean-Marie Pesez escrito em 1989, os autores optaram por buscar o conceito através de diversos trabalhos, aproximando e distanciando a cultura material da arqueologia, do marxismo, dos Annales e da história da técnica. Concluem a exposição sem definir a cultura material com segurança.107 Fernand Braudel na obra Civilização Material, Economia e Capitalismo trouxe uma grande contribuição à história, tanto pela abordagem de novas temáticas (alimentação, vestuário, cotidiano), como pela concepção das temporalidades. Ademais, introduziu a dimensão material através do conceito de civilização material, que recebeu críticas nos seguintes aspectos: o termo civilização que implicaria em hierarquias e sistema de valores (civilizado versus incivilizado)108; e que em sua análise faltava o domínio do simbólico.109 Em relação à interação da cultura material com a história, Marcelo Rede apontou que “a operação historiográfica não se alterou substancialmente com a renovação do temário; dito de outro modo, o reconhecimento da cultura material como parte essencial do

105

O balanço realizado em âmbito nacional mais recente sobre o campo da cultura material é o de Vânia Carneiro de Carvalho. Cf . CARVALHO, Vânia Carneiro de. Cultura Material, espaço doméstico e musealização. Vária História. (UFMG) Belo Horizonte, v. 27, p. 443 – 469, 2011. 106 REDE, Marcelo. “História a partir das coisas: tendências recentes no estudo de cultura material.” In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.4 p.265-82 jan./dez. 1996. p. 266 107 BUCAILLE, Richard, PESEZ, Jean-Marie. “Cultura Material.” Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1989, vol.16 - Homo — Domesticação — Cultura Material, p.11-47. p. 43. 108 BUCAILLE, Richard, PESEZ, Jean-Marie. Cultura Material. Enciclopédia... p. 43. 109 BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales ( 1929 – 1989). São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. p. 42.

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fenômeno histórico não implicou sua inserção decisiva como documento no processo de produção do discurso historiográfico.”110 Foi no diálogo com a antropologia que a cultura material se desenvolveu consideravelmente. A influência da antropologia social e cultural, segundo Bucaille e Pesez foi a de promover um conceito de cultura em âmbito coletivo. 111 Elencamos o antropólogo inglês Daniel Miller, e um grupo francês como os mais representativos do campo de cultura material atualmente. Este último compõe-se de um grupo de trabalho reunido na Universidade Paris V – René Descartes. Dentre vários membros, destaca-se Jean-Pierre Warnier 112. A perspectiva de Warnier enfoca a relação entre os objetos, o corpo e as representações mentais. 113 Já o antropólogo inglês Daniel Miller possui uma postura incisiva em defesa da cultura material, contestando cada elemento negativo que pese contra ela. Amparado na crença religiosa da superioridade do mundo imaterial e existente há séculos, o dualismo entre humanidade e materialidade foi apontado e questionado por Miller em vários de seus textos. Esta seria a base para uma série de implicações contrárias à materialidade, que culmina no repúdio completo dos objetos, ou em quem os aceita na cultura ocidental. O aspecto interessante das religiões que menosprezam o mundo material é o paradoxo de necessitarem da materialidade, através de monumentos de grande escala para expressar a imaterialidade. O exemplo mais icônico são as pirâmides dos antigos egípcios.114 Ao questionar a oposição entre coisa e pessoa, sujeito versus objeto, Miller apontou que quaisquer que sejam nossos medos ou preocupações ambientais com o materialismo, não seremos ajudados por uma teoria dos trecos nem por uma atitude que simplesmente nos oponha a eles; como se quanto mais pensássemos nas coisas como se elas fossem alienígenas ou estranhas mais nos mantivéssemos sacrossantos e puros. A ideia de que os trecos de algum modo drenam a nossa humanidade, enquanto nos dissolvemos numa mistura pegajosa de plástico e 110

REDE, Marcelo. “Estudos de Cultura Material: uma vertente francesa.” In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 8/9. p.281-291 (2000-2001). Editado em 2003. p. 282. 111 BUCAILLE, Richard, PESEZ, Jean-Marie. Cultura Material. Enciclopédia... p.23 112 WARNIER, Jean-Pierre. Construire la culture materielle: l´homme qui pensait avec ses doigts. Paris: Presses Universitaires de France, 1999. 113 REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material... p. 284 114 MILLER, Daniel (ed.).Materiality. London: Duke University Press, 2005. p.16.

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outras mercadorias, corresponde à tentativa de preservar uma visão simplista e falsa de uma humanidade pura e previamente imaculada.115

Em relação à aparência, o autor teceu comparações entre sua sociedade (europeia) e a população de Trinidad. A relação desta última com as roupas e adereços demonstrou a Miller o quanto a aparência é importante para se conhecer uma pessoa daquela comunidade. Em nossa sociedade, entretanto, encaramos a exterioridade separada de nosso interior. O autor denominou tal fenômeno como ontologia de profundidade. “A hipótese é que ser – o que realmente somos – está profundamente situado dentro de nós e em oposição direta à superfície. Um comprador de roupas é superficial porque um filósofo ou um santo é profundo.”116 Também cabe mencionar uma publicação realizada após um seminário promovido pelo Smithsonian Institution, congregando pesquisadores de diversos países, editado por Steven Lubar e David Kingery, History from things: essays on material culture.117 A preocupação central do grupo era entender como cada autor trabalhava diretamente com os dados primários. A discussão levantada na introdução pelos autores é muito pertinente. A principal questão é a de que os historiadores utilizam mais documentos do que artefatos como fontes.118 Ainda pensando no peso dos documentos escritos, ao comparar as possibilidades de análise de cultura material entre as proposições de Warnier e a postura dos historiadores, Marcelo Rede constatou que “o próprio método histórico leva a uma documentalização dos componentes do fenômeno estudado (textos; imagens; registro oral; cultura material…), como a via prioritária de acesso cognitivo ao próprio fenômeno.” A grande crítica de Rede é a de a história não propiciar um conjunto teórico-metodológico específico para tratar a cultura material. 119

115

MILLER, Daniel.Trecos, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 11. 116 MILLER, Daniel.Trecos... p. 28. 117 Cf. REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material... 118 LUBAR, Steven e KINGERY, David. History of things: essays of material culture. Washington: The Smithsonian Institution, 1993. p. IX. 119 REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material... p. 282.

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Reconhecemos o peso desta questão, especialmente porque em nossa pesquisa apenas conseguimos acessar os objetos a partir de sua descrição na documentação escrita. Lubar e Kingery afirmaram (e nós concordamos) que os artefatos utilizados em conjunto com outros tipos de fontes proporcionam uma análise mais enriquecedora. 120 Infelizmente para Itu não possuímos fontes de outra natureza para complementar ou confrontar as descrições dos bens nos inventários póstumos, tais como imagens, relatos de viagem ou mesmo os próprios objetos. Desta forma, ao trabalharmos sem os artefatos, consideramos essencial a formulação de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses sobre a materialidade: ao contrário do entendimento ainda muito comum entre nossos historiadores, os estudos de cultura material não se caracterizam nem pelo uso determinante de fontes materiais, nem como preocupação exclusiva com artefatos e, eventualmente, seu contexto, como se fossem um segmento à parte da vida social – mas pela análise da dimensão material de qualquer instância ou tempo da vida social. É por isso que tais estudos, longe de constituírem um domínio próprio, autônomo, podem estar presentes nos diversos campos da História. Daí a insuficiência de se trabalhar apenas ou preponderantemente com documentação material.121

Tal proposição é de extrema importância e peso para nossa análise, pois amplia a percepção da cultura material, entendida na maior parte das vezes apenas pelos significados e elementos referentes à materialidade em si. Meneses pontuou também que os artefatos atuam como produto e vetor das relações sociais. Produtos enquanto vestígios, remanescentes das atividades humanas, e vetor, porquê propiciam, são canais das relações sociais. 122 Outro aspecto muito debatido é o emprego da semiótica na análise da cultura material. A grande crítica baseia-se no enfoque aos elementos simbólicos e ideológicos dos objetos, encarando-os como veículos materiais de uma linguagem a ser decodificada. Tal

120

LUBAR, Steven e KINGERY, David. History of things ... p. IX. MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Apresentação” In: MARTINEZ, Cláudia Eliane Parreiras Marques. Riqueza e escravidão: vida material e população no século XIX: Bonfim do Paraopeba/MG. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2007. p.14 - grifo do autor. 122 MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas, Revista de História, NS n.1I5, p.103-117, 1983. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/viewFile/61796/64659> . Acesso em 23.fev.2015. 121

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ponto de vista também desenvolve uma ênfase, um poder maior do objeto em relação ao sujeito, resultando na reificação ou autonomização dos objetos.123 Concordamos com Menezes quando este afirmou que as vertentes mais férteis e inovadoras nos estudos recentes de cultura material têm procurado ir além das meras preocupações funcionais e semióticas, para, ao contrário, buscar definir a capacidade, presente nos artefatos, de agir, de produzir efeitos: os artefatos também nos moldam; não apenas nos expressam, mas, igualmente, de formas e em graus variados, nos constituem.124

Talvez a grande dificuldade de superar a análise simbólica e efetivamente adentrar nessa relação sujeito-objeto mais detidamente seja a ausência ou o conhecimento de um procedimento teórico-metodológico específico, no campo histórico, como mencionado por Rede.125 Por não ser uma disciplina efetivamente constituída, a cultura material se beneficia da pluralidade de conceitos interdisciplinares, mas por outro lado, carece de balizas metodológicas mais nítidas. Em nosso caso, estudando as vestimentas especificamente, entendemos não ser possível desconsiderar ou minimizar a importância que a análise da semiótica possa propiciar. Se levarmos em conta a importância da imagem para a sociedade barroca do século XVIII, é impossível desconsiderar a linguagem visual não apenas nas roupas, mas em outros aspectos como a arquitetura e as artes. Passamos para a análise da cultura material da vila de Itu, analisando a composição dos bens, especialmente as residências e as unidades produtivas relacionadas à produção açucareira. Os inventários post-mortem nos possibilitam analisar apenas um momento das posses de um domicílio. Por ser este contexto o da morte de um dos cônjuges, talvez cause a impressão de que o rol de bens contenha todos os objetos que aquela pessoa adquiriu durante a vida. Mas não existe apenas o ato de acumular. A doação, troca, empréstimo, divisão e perda também faz parte da história de nossos pertences. O espólio final descrito e 123

MENEZES, Ulpiano. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870 – 1920. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/FAPESP, 2008. p. 12. 124 MENEZES, Ulpiano. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero... p. 12. 125 REDE, Marcelo. Estudos de Cultura Material.... p. 282.

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avaliado no arrolamento não corresponde, muitas vezes, à totalidade dos bens, pois alguns objetos poderiam ser omitidos na declaração, ou mesmo, partilhados anteriormente. Mas para a análise da composição material daquela sociedade, esta fonte propicia um aspecto relevante: apresenta os objetos em conjunto. Podemos assim, avaliar a constituição dos patrimônios como um todo, pensando no uso dos objetos, individual e coletivamente, dentro daquele domicílio. Partimos das categorias desenvolvidas por Ernani Silva Bruno para o fichário do Museu da Casa Brasileira 126, para organizar o banco de dados no programa Microsoft Excel: 1 - Bens de raiz (imóveis como casas, lojas, terrenos, sítios e chácaras). 2 – Ferramentas, equipamentos e apetrechos de trabalho (objetos relacionados aos processos produtivos agrícolas, aos ofícios diversos e ao uso cotidiano nos domicílios) 3 – Animais e criações (bovinos, equinos, caprinos, suínos) . 4 – Cavalgaduras, equipamentos e acessórios de transporte (montarias, ferragens, cangas e carros de bois). 5 – Matérias primas (todo material empregado na confecção de objetos, como botões, tecidos, couros, linhas). 6 – Alimentos, colheitas e produção caseira (alimentos para consumo doméstico, como sementes, legumes, etc.). 7 – Construções e materiais (materiais empregados na construção de imóveis). 8 – Escravos (cativos). 9 – Instrumentos ligados à escravidão (correntes, grilhões, cadeados). 10 – Utensílios e ornatos da casa (objetos que compunham o domicílio, utilitários ou decorativos, como talheres, pratos, copos, bules, bacias, candeeiros, lampiões, ferro para engomar, crucifixos, imagens de santos, oratórios).

126

O fichário foi desenvolvido pelos funcionários da seção histórica do Museu da Casa Brasileira nos anos 1970. Encontra-se digitalizado e disponível no site do museu com a denominação Equipamentos da Casa Brasileira, Usos e costumes. Disponível em: . Acesso em 20.dez.2014.

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11 – Móveis e acessórios (móveis de descanso e de organização, como catres, camas, colchões, cadeiras, mesas, bofetes, nichos, caixas, baús, armários). 12 – Roupas da casa (roupas de cama lençóis, fronhas, cobertas, colchas, cortinados, roupas de mesa, a saber, toalha de mesa, guardanapos, toalhas de mãos). 13 – Vestuário (roupas de uso pessoal femininas e masculinas). 14 – Objetos de uso pessoal relacionados à aparência (sapatos, chapéus, fivelas, bastões, esporas, relógios). 15 – Joias (brincos, colares, anéis, pulseiras, cordões). 16 – Leitura e entretenimento (livros). 17 – Instrumentos musicais 18 – Armas, aparatos defensivos e acessórios 19 – Dinheiro 20 - Ouro 21 - Prata 22 - Total bens 23 - Dívida Ativa 24 - Dívida Passiva 25 - Dote 26 - Sufrágios e custos 27 - Líquido (partível) 28 - Dois terços 29 - Meação 30 - Cada herdeiro/legítima 31 - Observação

Incluímos os últimos doze itens, para diferenciar os metais preciosos e abarcar o fechamento das contas do inventário de forma mais completa, pois interessa-nos entender tanto a quantia do montante final, quanto o valor em dívidas a receber (ativas) e que deviam (passiva) cada inventariado, bem como a partilha dos bens. Optamos por esta 57

sistematização, pois nos inventários póstumos os escrivães agrupavam os objetos desordenadamente. Para cada indivíduo inventariado foi realizada a leitura, transcrição e fichamento dos bens, enquadrando-os nas categorias de número 1 a 21. Posteriormente, calculamos os valores dos bens por categorias e refizemos as contas da partilha, tomando as devidas cautelas com os valores encontrados na documentação, pois grande parte das adições estava equivocada, demandando várias revisões. 127 Em consequência, obtivemos dois valores monetários: um que fornece a soma total dos bens e outro que aponta a quantia a ser partilhada, ou seja, após subtrair ou adicionar as dívidas ao espólio. Para melhor compreensão das diferentes composições dos bens dos ituanos, estabelecemos faixas de valores em réis para distribuir as ocorrências dos indivíduos nas duas situações, antes e após o cálculo das dívidas ativas e passivas. Tabela 2 – Distribuição dos inventariados por faixas de bens, Itu, 1765-1808 Faixas de bens (em réis)

Número de inventariados na soma total dos bens

Número de inventariados na soma dos bens (líquido) após subtrair as dívidas 1 6 6 13 2

Valor Negativo De 0 a $500 7 De $501 a 1:000$000 6 De 1:001$000 a 5:000$000 16 De 5:001$000 a 5 10:000$000 Acima de 10:001$000 5 3 Não informa 5 13 Total 44 44 Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Inventários póstumos, vila de Itu

A tabela 2 aponta a tendência observada na maioria dos espólios, de diminuição no valor das heranças, o que aponta a existência de dívidas a serem quitadas. O único caso em que o valor das dívidas ultrapassou o da soma de todos os bens foi o do capitão Antônio Pompeu Bueno, que no momento da contabilidade dos bens e dívidas, obteve o valor negativo de 348$502 (trezentos e quarenta e oito mil e quinhentos e dois réis). Dentre os mais abastados, cujos bens alcançavam mais de dez contos de réis, apenas três 127

Procedemos da mesma forma a coleta e análise dos dados junto aos inventários póstumos lisboetas.

58

inventariados dos cinco conseguiam permanecer na referida faixa, após descontar as dívidas. Seis indivíduos tiveram seus montes maiores no segundo momento, pois os valores referentes a dívidas ou créditos que lhes eram devidos foram consideráveis e superaram o valor que, porventura, deviam a terceiros. O exemplo mais significativo foi de Maria Francisca Vieira, cabeça de casal, após o falecimento de seu marido, Francisco Novais de Magalhães. De 4:579$733 (quatro contos, quinhentos e setenta e nove mil, setecentos e trinta e três réis), o espólio foi para 21:637$732 (vinte e um contos, seiscentos e trinta e sete mil, setecentos e trinta e dois réis). Esta diferença se deve ao fato de que Francisco atuava como comerciante e também fornecia empréstimos aos moradores da vila de Itu e das localidades próximas. 128 O contrário também foi observado, quando a dívida passiva apresentou valor semelhante ao montante dos bens. No caso de Bernardo de Quadros Aranha, havia 20$000 (vinte mil réis) a receber, porém, sua dívida passiva era de 3:430$101 (três contos, quatrocentos e trinta mil, cento e um réis), quantia semelhante ao seu montante de bens, de 3:951$390 (três contos, novecentos e cinquenta e um mil, trezentos e noventa réis). Já o padre Antônio Francisco da Luz que apresentava o espólio total de 8:614$430 (oito contos, seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e trinta réis), tinha a receber 4:820$859 (quatro contos, oitocentos e vinte mil, oitocentos e cinquenta e nove réis), no entanto devia a alta quantia de 7:913$185 (sete contos, novecentos e treze mil, cento e oitenta e cinco réis). Os inventariados da faixa entre $501 (quinhentos e um réis) e 1:000$000 (um conto de réis) apresentaram o mesmo número em ambas as situações. O número de indivíduos sem indicação dos valores aumenta significativamente no segundo momento, devido à lacuna na documentação. A faixa de bens intermediária, que contempla os patrimônios entre os valores de 1:001$000 (um conto e mil réis) e 5:000$000 (cinco contos de réis), foi a que concentrou o maior número de pessoas em ambas as situações, 16 e 13, demonstrando o padrão médio monetário dos ituanos da amostra. 128

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.5) p. 223.

59

Da somatória dos bens, os cinco mais abastados são o casal Inácia Leite de Almeida e seu marido José do Amaral Gurgel, Ana Gertrudes de Campos, José Manoel da Fonseca Leite e Elena Maria de Souza. Esses indivíduos (ou suas esposas) estão relacionados à produção canavieira e às ordens militares. Após a subtração das dívidas, permanecem Inácia e Ana Gertrudes, e Maria Francisca Vieira passa a figurar no seleto grupo.129 Os inventários com montantes gerais mais baixos, por sua vez, não são menos importantes: estes apontam diferentes composições materiais e possibilitam-nos compreender um pouco mais sobre o cotidiano da vila de Itu. Dentro do universo investigado, a distribuição dos valores atribuídos aos bens por categorias apresentou o seguinte resultado:

129

Veremos adiante no terceiro capítulo as particularidades envolvendo as famílias e seus bens.

60

ur as ,e

qu ip

Be ns d

FONTE: AESP, ARQ/MRCI - Inventários

61 ur o Pr at a

O

e ra Fe iz rr An am im en am ai ta se en s Al to cr im ia s en çõ de to es s, tra co n sp lh M or ei at ta te ér se ia sp pr od rim Co uç as ns ão tr ca uç se õe In ira st se ru m m at en er to ia sl is ig ad Ut Es o c en sà ra síl vo es io s cr se a vi or dã na o to M sd óv a ei ca se sa ac es só Al rio fa s ia sd a ca O sa bj et Ve os s tu de ár us io o pe s so Le al itu Ar ra m as e en ,a Jó In pa tr ia st et s ra r e um to n im sd en en ef to en s m to siv us os ic e ai ac s es só rio s Di nh ei ro

Ca va lg ad

Gráfico 1 – Valor em réis dos bens totais inventariados divididos por categorias

080:000$000

070:000$000

060:000$000

050:000$000

040:000$000

030:000$000

020:000$000 Série1

010:000$000

000:000$000

A somatória dos valores dos bens arrolados de nossa amostra aponta os montantes em réis, que cada categoria alcançou. Destacam-se em ordem decrescente: os bens de raiz em 74:874$455 (setenta e quatro contos, oitocentos e setenta e quatro mil, quatrocentos e cinquenta e cinco réis), escravos no valor de 60:086$650 (sessenta contos, oitenta e seis mil, seiscentos e cinquenta réis), animais e criações, avaliado em 6:873$060 (seis contos, oitocentos e setenta e três mil e sessenta réis), ferramentas, equipamentos e apetrechos de trabalho, em 4:517$145 (quatro contos, quinhentos e dezessete mil, cento e quarenta e cinco réis), utensílios e ornatos da casa, somados 2:963$027 (dois contos, novecentos e sessenta e três mil, vinte e sete réis), dinheiro, com a quantia de 2:764$561 (dois contos, setecentos e sessenta e quatro mil, quinhentos e sessenta e um réis), alimentos, colheita e produção caseira, avaliado em 1:838$720 (um conto, oitocentos e trinta e oito mil, setecentos e vinte réis), ouro, no montante de 1:737$583 (um conto, setecentos e trinta e sete mil, quinhentos e oitenta e três réis), móveis e acessórios, ao todo 1:083$100 (um conto, oitenta e três mil e cem réis). Abaixo de um conto de réis, estão: joias, no valor de 924$024 (novecentos e vinte e quatro mil, vinte e quatro réis), cavalgaduras, equipamentos e acessórios de transporte, em 866$480 (oitocentos e sessenta e seis mil, quatrocentos e oitenta réis), vestuário, na quantia de 732$780 (setecentos e trinta e dois mil, setecentos e oitenta réis), objetos de uso pessoal relacionados à aparência, em 658$134 (seiscentos e cinquenta e oito mil, cento e trinta e quatro réis), roupas da casa, na quantia de 628$540 (seiscentos e vinte e oito mil, quinhentos e quarenta réis), matérias primas, no montante de 575$195 (quinhentos e setenta e cinco mil, cento e noventa e cinco réis), leitura e entretenimento no valor de 420$810, (quatrocentos e vinte mil, oitocentos e dez réis), armas, aparatos defensivos e acessórios, avaliados em 349$720 (trezentos e quarenta e nove mil, setecentos e vinte réis), instrumentos musicais, em 66$900 (sessenta e seis mil e novecentos réis), prata, no total de 59$750 (cinquenta e nove mil, setecentos e cinquenta réis), instrumentos ligados à escravidão, em 34$320 (trinta e quatro mil, trezentos e vinte réis) e finalmente, construções e materiais no valor de 30$760 (trinta mil, setecentos e sessenta réis).

62

Esses dados confirmam a valorização das terras e construções, bem como da mão de obra escrava, nos séculos XVIII e XIX. Os maiores valores estão relacionados às categorias produtivas, seguidos por dinheiro e ouro, e duas categorias que se enquadram como “recheio da casa”: utensílios e ornatos e móveis e acessórios. Com valores inferiores, mas não menos relevantes, figuram as demais categorias, lideradas pelas joias. Para avaliar a composição material da vila do açúcar, empreendemos um enfoque sobre as unidades produtivas e a principal mão-de-obra empregada na produção açucareira. Entre os inventariados, a posse de engenhos de açúcar alcançou quase a metade dos indivíduos, abrangendo dezenove proprietários (43,1%), um número significativo em nossa amostra. Apenas cinco indivíduos (11,5%) não informam a posse de engenho. Gráfico 2 - Posse de engenho

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

Referente à posse de escravos nos espólios analisados, os dados estão organizados no gráfico a seguir. Para melhor visualização, organizamos tanto o número de proprietários quanto o de cativos por faixas, com intervalo de números pares e o número de cativos por faixas, a seguir:

63

Gráfico 3 - Relação do número cativos nos espólios de Itu, 1765-1808

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

A faixa de maior ocorrência, entre 11 e 20 escravos, obteve treze proprietários (29,5%) dos inventários. Carlos Bacellar utilizou como critério para a seleção dos indivíduos a posse do número de escravos, acima de quarenta cativos, para filtrar apenas o estrato mais elevado da sociedade. 216 Para compreender a composição do conjunto da unidade produtiva açucareira, avaliamos a ocorrência de escravos, engenho e canavial nos bens arrolados. Gráfico 4 - Ocorrência de bens agrupados por produção açucareira

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários. 216

Esse critério foi aplicado pois sua investigação versava sobre a manutenção da riqueza nas famílias do Oeste paulista. Cf. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra...

64

Este gráfico agrupa até três elementos essenciais do processo produtivo açucareiro: escravos, canavial e engenho. Mesmo considerando que os escravos exerciam diversas outras ocupações não relacionadas ao engenho, esta avaliação nos permite observar um padrão dos pertences dos proprietários de nossa amostra, com a quantificação de cada elemento, em separado ou unidos. Apesar das lacunas nos dados recolhidos na documentação, encontramos alguns aspectos da população e de sua materialidade. Os indivíduos analisados não eram necessariamente os mais ricos. Embora alguns inventariados sejam consideravelmente abastados, nosso enfoque recaiu sobre as pessoas que possuíam roupas arroladas entre seus bens, para analisarmos os diferentes padrões de posses de vestuário. Dezenove indivíduos (43,1%) possuíam apenas escravos, um (2,2%) possuía apenas engenho, e também um (2,2%), dispunha de escravos e canavial, dois (4,5%) eram proprietários de escravos e engenho. Cinco inventariados (11,3%) não apresentaram nenhum destes três elementos. Dezesseis eram donos dos três itens: cativos, engenho e canavial, 36,3%. A comparação dos vinte inventariados mais ricos de nossa amostra com os dezesseis do gráfico acima, revela que apenas um, João Leite Penteado, não consta entre os vinte maiores espólios. O exame dessas três categorias confirma que a produção canavieira é a atividade responsável por grande parte da riqueza dos ituanos analisados em nossa amostra. Os bens de raiz, ou imóveis somados, apresentam o maior valor dentre todas as categorias, 74:874$455 (setenta e quatro contos, oitocentos e setenta e quatro mil e quatrocentos e cinquenta e cinco réis). Ao confrontar com o montante dos bens, indicado no gráfico 5, representa 46% das posses.

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Gráfico 5 - Valor dos bens de raiz em relação ao total dos bens, Itu, 1765-1808 180:000$000 160:821$330 160:000$000 140:000$000 120:000$000 100:000$000 080:000$000

074:874$455

060:000$000 040:000$000 020:000$000 000:000$000 Bens de raiz

TOTAL BENS

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

Através das descrições contidas principalmente nos inventários póstumos, é possível reunir dados interessantes sobre os bens de raiz, ou imóveis da vila de Itu no período pesquisado. Atualmente, na região central da cidade localizam-se algumas construções de taipa, datadas de meados do século XVIII. Já em relação ao início do século XIX existe um maior número de imóveis. Ainda que exista uma série de problemas relacionados à conservação e à valorização do conjunto arquitetônico ituano, este se configura como um dos poucos núcleos urbanos paulista com edificações representativas dos três últimos séculos (XVIII, XIX e XX).217 Em relação à composição material dos bens de raiz arrolados na documentação, organizamos o gráfico 6 com os materiais e técnicas construtivas.

217

O conjunto arquitetônico da região central de Itu foi tombado pelo CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) em 06 de novembro de 2003, processo número 26907/89. Informação disponível em: Acesso em 10.maio.2014.

66

Gráfico 6 - Materiais e técnicas construtivas dos bens de raiz da vila de Itu, 1765-1808 14 12 10 8 6 4 2 0 coberta de telhas

não consta

não menciona

taipa de mão

taipa de mão e coberta de capim

taipa de taipa de taipa de taipa de mão e mão e palha mão, taipa pilão e coberta de de pilão e coberta de telhas cobertas de telhas telhas

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

O item „não consta‟ consiste nos casos em que os inventariados não possuem nenhum bem de raiz. Já o campo „não menciona‟ são os indivíduos que possuem bens de raiz, mas sem indicação do material. Respeitamos as descrições encontradas na documentação, agrupando apenas os dados idênticos, para melhor visualização. Sete indivíduos eram proprietários, mas não havia identificação dos materiais de seus imóveis, e cinco (11,3%) não possuíam nenhum bem de raiz. A forma de cobertura de casas mais utilizada era a de telhas. Provavelmente a produção de telhas era local e, em algumas situações, caseira. Dentre as ferramentas arroladas de João Leite Penteado, consta “uma grade de fazer telha”218, também “uma grade de ferro de fazer telha” no espólio de Antônio Antunes Pereira219. Inácia Leite de Almeida e José do Amaral Gurgel possuíam um sítio no Buru “com olaria de fazer telhas” 220. Segundo Carlos Lemos, “a arquitetura paulista é caracterizada pela taipa de pilão, técnica baseada na terra pisada entre taipas que, pela sua natureza, determina muros contínuos extremamente sensíveis à umidade, de insignificante resistência à tração e de 218

ARQ/MRCI - Inventário de João Leite Penteado, 1795, caixa 5. folha 3 verso. ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha 6 verso. 220 ARQ/MRCI - Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15. folha 19 verso. 219

67

difícil revestimento à vista da superfície frágil ao risco.”221 Em nossos dados, a ocorrência de construções em taipa de pilão foi menor (oito menções), mas também algumas são híbridas, de taipa de pilão e de mão. Sobre a distinção destes dois tipos construtivos, Alberto Nasiasene comentou que em São Paulo colonial, as casas dos mais abastados na cidade, por exemplo, em sua maioria, também era construída em taipa de mão, ou pau-a-pique e só as construções mais importantes é que eram de taipa de pilão; ou, como também era comum, havia um hibridismo entre as duas técnicas porque era comum que as casas grandes das fazendas, depois que o café começou a trazer prosperidade, na primeira metade do século XIX, tivessem as paredes externas construídas em taipa de pilão e as internas em taipa de mão. 222

A taipa de mão foi a técnica mais recorrente no período colonial. Conhecido também como pau-a-pique “recebe o nome porque é feito com estrutura de madeira roliça, disposta vertical e horizontalmente, amarrada com cipó ou cravo e depois preenchida com barro socado.”223 Segundo Nilson Cardoso de Carvalho, os bandeirantes do ciclo da caça ao índio e do ciclo do ouro levaram a taipa de pilão para Mato Grosso e Goiás. Em Minas Gerais, o processo não deu resultado devido à inclinação dos terrenos montanhosos, nos quais as enxurradas provocavam a erosão das paredes de taipa. Os mineiros inventaram, então, a técnica da taipa de mão, ou, pau-a-pique, introduzida por eles em São Paulo, quando para cá migraram, ao final do ciclo do ouro. A técnica da taipa de pilão era muito simples e resistente quando bem construída, encontrando-se, ainda, exemplares deste tipo de edificação com mais de duzentos anos. 224

Não sabemos precisar se a técnica da taipa de mão realmente veio para São Paulo de Minas Gerais, como afirma Carvalho. O que pudemos depreender é que nessa amostragem, tal técnica obteve um número superior de uso em relação à taipa de pilão. Também ocorreram seis casos em que foram empregadas as duas técnicas juntas em uma mesma edificação.

221

LEMOS, Carlos. A casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989. p. 41 NASIASENE, Alberto. Taipa de pilão e o estilo colonial paulista. Disponível em: < http://www.rotamogiana.com/2012/01/taipa-de-pilao.html>. Acesso em 28.jan.2014. 223 Informação disponível em: < http://www.museudacidade.sp.gov.br/taipadepilao.php> . Acesso em 28.jan.2014. 224 CARVALHO, Nilson Cardoso de. Arquitetura em taipa. Disponível em: . p. 2 Acesso em 27.jan.2014. 222

68

Os sobrados eram diferentes da definição que hoje utilizamos às edificações: “o termo primitivamente designava o espaço sobrado ou ganho devido a um soalho suspenso. Portanto, o sobrado tanto podia estar acima desse piso como embaixo dele, dependendo das circunstâncias.”225 Carlos Lemos advertiu que “nem sempre os sobrados mencionados nas descrições são aqueles que hoje identificamos por aquela palavra.” 226 Na documentação são mencionadas casas designadas como sobrados ou assoalhadas. Como sobrados, temos alguns exemplos: “Uma morada de casas de sobrados citos nesta vila, na rua do Carmo, de três lanços, paredes de taipa de pilão com duas [-] e seu corredor, coberta de telhas bem danificadas com seu quintal até a rua das Baratas (...) avaliado em 300$000 (trezentos mil réis)”227. Ou então “Uma morada de casas com um sobrado que se achavam por acabar de forrar e por gelosias (...) com os fundos pertencentes citas no pátio da Matriz desta vila em 600$000 (seiscentos mil réis)”228. Dois sobrados de um mesmo proprietário: “Uma morada de casas de sobrado de dois lanços na Rua da Palma (...) com uma Capelinha no interior dela, seu quintal competente na forma em que se acha fazendo o fundo com umas moradas na rua do Conselho.” Ainda encontramos “Uma morada de casas de sobrado de três lanços com seus corredores na Rua do Conselho entrando a metade que foi do falecido Coronel José Florêncio de Oliveira, entrando uma moradinha pequena térrea, (...) cobertas de telha com seu quintal em 100$000 (cem mil réis).”229 Através desses exemplos de sobrados, nota-se a variação dos preços estabelecidos pelos avaliadores, entre 100$000 (cem mil réis) e 600$000 (seiscentos mil réis), de acordo com sua composição e estado.

225

LEMOS, Carlos. A casa brasileira... p. 32-33 LEMOS, Carlos. A casa brasileira... p. 33 227 ARQ/MRCI - Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, 1798, caixa 8. folhas 18 – 18 verso. 228 ARQ/MRCI - Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15 . folha 21 verso. 229 ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808, caixa 17B. folha 18 verso. 226

69

A casa de sobrado mais valiosa é a de Ana Gertrudes de Campos, que se localizava no Pátio da Matriz, sendo constituída de “paredes de taipa de pilão, parte feita, e parte por acabar” e avaliada em 1:400$000 (um conto e quatrocentos mil réis).230 Em relação aos tipos de bens de raiz encontrados, apenas cinco inventários não mencionavam o perfil dos imóveis. Gráfico 7 - Perfis e ocorrências de bens de raiz em Itu, 1765-1808

FONTE:ARQ/MRCI - Inventários.

Observamos no gráfico 7 o perfil dos bens imóveis dos inventariados de nossa amostra. A maioria possuía ao mesmo tempo uma casa na vila e um sítio em um bairro rural, com 17 ocorrências (38,6%). Em seguida, quatro pessoas que possuíam apenas casa ou sítio cada uma (9%). Pelos dados em geral, observando-se as ocorrências de menores valores parece-nos que a descrição de Saint-Hilaire em 1819 é válida também para um

230

ARQ/MRCI - Inventário de Ana Gertrudes de Campos,1808, caixa 17B . folha 7.

70

período anterior. Em sua descrição já citada anteriormente, afirma que os senhores de engenho passavam a maior parte do tempo em suas fazendas, indo à cidade aos domingos e dias de festas. Para essa camada, pode ser possível essa mobilidade. No entanto, existia uma gama social muito mais complexa, composta por “grandes e pequenos proprietários, lavradores, moradores da vila com ofícios diversos, tropeiros, camaradas, escravos, agregados”, como ressaltou Eni Samara231. Em alguma medida, o padrão observado na posse dos bens de raiz demonstra a necessidade de possuir um pedaço de terra, mesmo que fosse um quintal para o cultivo de mantimentos, independentemente da ocupação ou atividade desempenhada pelo proprietário. Como no caso do Alferes Antonio Antunes Pereira, que possuía uma morada de casas na rua das Baratas, com uma loja anexa, além de um quintal na rua de Santa Rita, com plantas de café e um sítio no bairro de Caiacatinga. 232 Até a década de 1830, as ruas da região central da vila ituana eram as das Baratas, do Carmo, o Beco das Casinhas, do Conselho, Direita, da Palma, Santa Cruz, Santa Rita e o Pátio da Matriz. Quadro 1 - Distribuição das casas dos inventariados por ruas da vila de Itu, 1765-1808 Ruas Ocorrências Bom Jesus 1 Baratas 5 Carmo 3 Casinhas 4 Conselho 4 Direita 5 Palma 6 Pátio da Matriz 4 Santa Cruz 2 Santa Rita 2 Não Menciona 14 Total 50 FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

231 232

SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura canavieira... p. 161. ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha 11 verso.

71

Apesar da lacuna na identificação de quatorze bens imóveis (28%), sem menção da rua na qual se localizavam, podemos inferir as ruas com maior número de casas em nossa amostragem. Em primeiro lugar, a rua da Palma com seis casas, (12%). Em segundo lugar, a rua Direita e das Baratas com cinco casas (10%). Em terceiro, temos com quatro ocorrências (8% cada) a rua das Casinhas, do Conselho e do Pátio da Matriz. Optamos por manter separadamente as ocorrências de mais de um endereço quando o mesmo indivíduo possuía mais de uma casa na área urbana, pois é possível visualizar as preferências e não apenas quantificar por ruas. A mesma avaliação foi empregada para a verificação dos bairros recorrentes nos inventários de nossa amostra. Quadro 2 - Bairros identificados na área rural. Bairros Anhambu

Ocorrências 4

Apotribu

2

Atuau

2

Buru

6

Caiacatinga

3

Cajuru

2

Engordador

1

Itahim-Mirim

1

Itahu

1

Itaim-Guassu

3

Itupuru

1

Jacaraupava

1

Jacuhu

1

Pirahi

1

Pirahi de Cima

1

Pirapitingui

1

72

Não Menciona

17

Total

48

FONTE: ARQ/MRCI - Inventários.

Novamente o número de imóveis sem indicação da localização é alto: 17 bens (35,4%). Se contabilizarmos juntas as ocorrências de bairro Anhambu, somam quatro propriedades, (8,3%), lideradas pelo bairro do Buru (ou Boiri), com seis casos (12,5%). A inventariada Inácia Leite de Almeida, por exemplo, falecida em 1801, possuía oito propriedades, sendo seis no bairro do Buru: três sítios e três terrenos, todos adquiridos por meio de compra.233 Desta forma, temos a distribuição das propriedades rurais por bairros da vila. Os imóveis e os escravos foram as categorias de bens que alcançaram os maiores valores nos inventários ituanos. As propriedades mais valiosas eram as que possuíam benfeitorias ou estavam relacionadas à produção açucareira, dado que confirma o enriquecimento e a valorização desta atividade na localidade e no período investigado.

1.3 O ambiente doméstico e os bens têxteis

As roupas de casa, ou roupas brancas são os itens têxteis que compunham os ambientes domésticos, ou eram empregados em atividades cotidianas. Como apontou Luciana da Silva, as alfaias, “tinham por finalidade proporcionar conforto, ora por aquecer e secar, como cobertores e toalhas de mãos, ora por ornar e esconder a rusticidade de móveis velhos e desgastados pelo tempo, como as toalhas de mesa.”234 Entre as peças presentes nos inventários de Itu estão as cobertas, colchas, lençóis, fronhas, cortinados, guarda camas, tapetes, toalhas, toalhas de mesa, guardanapos, toalhas

233 234

ARQ/MRCI - Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15 . folhas 19 – 20. SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 102.

73

de mãos e itens, que identificamos como de uso religioso. Elencamos as peças de roupas detalhando suas informações na tabela 3. Tabela 3 – Roupas da casa, vila de Itu, 1765-1808 Peça

Tecido

Quantidade

Valor

Alfaias litúrgicas Coberta

Não informa(4) Tafetá (1) Baetão, castela, chita, papa, serafina Algodão, baetão, chita, damasco Algodão, chita, fustão, riscado, seda Algodão, Bretanha, linho Algodão (1), não informa (2) Algodão, Guimarães, linho Algodão, Bretanha, cassa, estopa/estopinha, linho, riscado Algodão, chita, damasco Não informa (4), Pano azul (1) Algodão, Bretanha, linho Algodão, Bretanha, cassa, linho Algodão, fustão, Guimarães, linho, riscado

5 27

5$080 64$040

41 8

167$940 46$000

61 3 48 158

14$020 2$120 6$120 180$380

13 5 19 69 53

42$100 9$440 10$560 36$380 59$320

Colcha Cortinado Fronha Guarda cama Guardanapo Lençol Não informa Tapete Toalha Toalha de mãos Toalha de mesa Total

510 Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários

643$500

Os lençóis são os itens mais numerosos, no total de cento e cinquenta e oito peças, presentes em vinte e sete inventários. Lideram também com o valor de 180$380 (cento e oitenta mil e trezentos e oitenta réis). Eram mais comuns os de algodão, com sessenta e seis ocorrências e de linho, com sessenta e duas, seguidos de quatorze de bretanha, oito de cassa, três de estopa e cinco não informavam o tecido. Olanda Vilaça também mencionou que o lençol foi a roupa de casa mais inventariada em sua amostragem. 235

235

VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material e património móvel no mundo rural do Baixo Minho em finais do Antigo Regime. 2012. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Sociais. Universidade do Minho. Braga, 2012. p.297.

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Quanto às cobertas, podiam ser de tecidos variados. Em um total de vinte e sete, nove eram de Castela, oito de papa, cinco de chita, uma de baetão, uma serafina e três não identificadas. 236 Duas destas cobertas de chita despertam atenção pelo detalhamento, pois uma era “coberta de rede de chita forrada de baeta branca, no valor de novecentos e sessenta réis.” Havia também outra mais cara, grande, “de chita da Índia de algodão fina nova, em oito mil réis.”237 Pela forma como foi descrita, a primeira seria utilizada para se cobrir quando se repousava em rede. Já a segunda nos indica a diversidade de tecidos que circulavam já na década de 1770 em terras paulistas. As colchas mais comuns eram feitas de algodão e chita, com o valor médio de 2$000 (dois mil réis) para peças em bom estado. As exceções são as de tecido adamascado. Um exemplo é o inventário de Antônio Francisco da Luz, que possuía seis colchas de damasco, no valor de 30$800 (trinta mil e oitocentos réis). Outro caso representativo é o de Ana Gertrudes de Campos, que dispunha de sete colchas, três no sítio e quatro na casa da vila. Das quatro colchas, duas eram de baetão, uma muito usada, avaliada em $640 (seiscentos e quarenta réis), outra em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis), uma de algodão pintada, 1$600 (mil e seiscentos réis), e uma colcha de damasco com o valor de 20$000 (vinte mil réis), equiparada ao preço de um cativo. Ana Gertrudes possuía cinquenta escravos avaliados entre 204$800 (duzentos e quatro mil, oitocentos réis) e 20$000 (vinte mil réis). Em relação às roupas de cama mencionadas nos inventários de nossa amostra da cidade de Lisboa, predominavam os lençóis de linho, em menores ocorrências, os de estopa e bretanha. Os cobertores mais comuns eram de chita, papa e damasco. Em menores vezes, 236

Cobertor de papa era uma coberta confeccionada de lã. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Vol. 2, p. 392. A chita consiste em um tecido de algodão, caracterizado por estampas coloridas. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário de termos têxteis e afins. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto, I Série, vol. III. Pp. 137161, 2004. p. 143. A baeta poderia ser de lã ou de algodão, característica ser grosseira e felpuda. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 139. Serafina era um tecido de lã geralmente aplicado em forros e cortinas. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario... vol. 2, p. 691. 237 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 6.

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apareceram de seda, cetim e serafina. Nas fronhas assim como nos lençóis predominavam o linho, e nas cortinas, duas das quatro eram de chita, uma de serafina e uma de damasco. Para o norte de Portugal, Vilaça encontrou poucas ocorrências de peças de damasco, sendo inacessível a maior parte da população, “a não ser que estas peças de roupa tivessem sido herdadas ou legadas por outrem e permanecessem de forma simbólica no património das famílias.”238 Já as peças mais modestas observadas em Itu, as fronhas, eram predominantemente de linho e bretanha. A média de valores era de $100 (cem réis) para fronhas de linho e $300 (trezentos réis) para as de bretanha. Ainda em relação às camas, encontramos três referências de guarda cama e oito de cortinados. Dos oito cortinados encontrados, não foi possível precisar se todos eram utilizados em camas. Os três cortinados pertencentes ao padre Manoel da Costa Aranha eram de cama, pois foram avaliados junto com as mesmas, fazendo referência inclusive à cabeceira, forrada de tecidos semelhantes. 239 O cortinado de chita com renda, avaliado em 12$000 (doze mil réis), e o de seda encarnada com babados de tafetá, de 8$000 (oito mil réis), eram da casa na vila, enquanto que no sítio, havia apenas o cortinado velho de pano riscado de Hamburgo, no preço de 1$600 (mil e seiscentos réis). 240 Neste exemplo, é possível observar a preferência em privilegiar a residência na região central da vila em detrimento do sítio. A qualidade da cama que o sacerdote repousava fazia jus ao seu cortinado, pois dentre as três camas que possuía, uma era de “jacarandá, pés de cabra e cabeceira de damasco”, avaliada em 32$000 (trinta e dois mil réis). 241 As toalhas que encontramos na documentação foram mencionadas como: toalha de mesa, toalha de água às mãos e apenas toalha. Estas últimas, sem menção ao seu uso específico, contabilizaram dezenove peças no valor total de 10$560 (dez mil, quinhentos e sessenta réis).

238

VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 294. ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso. 240 ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso, folha 8. 241 ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso. 239

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As toalhas de mesa, presentes em vinte e três inventários eram em sua maioria de algodão. As peças confeccionadas com os panos de Guimarães são encontradas em guardanapos e toalhas de mesa. Cinco inventariados possuíam toalhas de Guimarães. De acordo com Olanda Vilaça, a produção do linho em Guimarães existe pelo menos desde o século XI.242 Já os bordados famosos desta localidade foram documentados no final do século XIX.243 Ainda segundo Vilaça, “a indústria do linho e do fio em Guimarães chegou a constituir uma importante riqueza concelhia; a forte exportação para Espanha e Brasil levou à prosperidade de muitos mercadores vimaranenses.”244 Em alguns inventários havia o conjunto de toalha de Guimarães com seis guardanapos, avaliadas em 5$000 (cinco mil réis), 3$000 (três mil réis) e 2$000 (dois mil réis).245 Outras duas toalhas apareceram de forma unitária com menores valores, avaliadas em 1$600 (mil e seiscentos réis) e 1$000 (mil réis).246 Bernardo de Quadros Aranha possuía além de uma toalha de Guimarães, avaliada em 3$000 (três mil réis), outra “toalha de mesa com seis guardanapos de pano de algodão fino, bordada e rendada com quase nenhum uso, no valor de 2$4000 (dois mil e quatrocentos réis). Algranti observou que essas toalhas adornadas “oferecem indícios de serem peças estimadas naquela sociedade, quer pela decoração (franjas, rendas, brocados), ou seja, pelo trabalho investido no objeto, quer pelo seu caráter simbólico de ornamento de luxo.”247 Empregar uma toalha de qualidade superior ou adornada em uma recepção doméstica, em uma localidade em que nem todos tinham a possibilidade de adquiri-la, denotava além de higiene, acesso aos códigos de civilidade e poder econômico.

242

VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 213 FERNANDES, Maria Isabel. (coord.) Bordado de Guimarães. Renovar a tradição. p. 8 Disponível em: . Acesso em: 10.mar.2014. 244 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 214. 245 ARQ/MRCI – Inventário de Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15. folha 3 verso, Inventário de João Fernandes da Costa, 1801, caixa 15. folha. 5, Inventário de Bernardo de Quadros Aranha, 1808, caixa 17B. folha 6. 246 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha. 8 verso, Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 9 verso. 247 ALGRANTI, Leila Mezan. "Artes de mesa: espaços, rituais e objetos em São Paulo Colonial" trabalho apresentado no I Seminário Internacional Elementos Materiais da Cultura e Patrimônio realizado pelo Programa de Pós Graduação em História ,FAFICH/ UFMG - Belo Horizonte, novembro de 2011. Texto fornecido pela autora. p. 8. 243

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Os guardanapos foram registrados em conjunto com toalhas de mesa, como mencionado acima, como as de Guimarães, ou separadamente. Desta última forma, foram registradas quarenta e oito peças, distribuídas em oito inventários, sendo que o maior número foi o de dezoito guardanapos de algodão de José Manoel da Fonseca Leite. 248 Confeccionados a grande maioria em algodão, também registrou-se guardanapos de linho. As toalhas de água as mãos eram utilizadas para higiene no momento das refeições. De acordo com Olanda Vilaça, no período moderno os manuais de civilidade pregavam maior asseio, inclusive em relação às mãos.249 Leila Algranti e Luciana da Silva encontraram toalhas de água às mãos nos inventários paulistanos dos séculos XVII e XVIII.250 As toalhas de mãos estão presentes em vinte e três inventários ituanos de nossa amostra (52%). A maioria era de algodão e, algumas indicavam, se era de algodão mais grosso ou fino, com valores entre $160 (cento e sessenta réis) e $350 (trezentos e cinquenta réis) por peça. Toalhas de tecidos mais finos como a cassa, obtiveram o valor de $960 (novecentos e sessenta réis), assim como uma toalha de algodão bordado, de Antonio Francisco da Luz, também com $960 (novecentos e sessenta réis). 251 Para a vila de Itu predominaram as toalhas de mãos de algodão, enquanto que Vilaça observou para o norte de Portugal que a maioria das toalhas deste tipo eram de linho. 252 Em nosso universo de análise, encontramos cinco tapetes, sendo que apenas um informa o tecido, de pano azul. Dois deles registrados como “tapetes de senhora”. Outras treze peças não foram possíveis de identificar e somam 42$100 (quarenta e dois mil e cem réis). Para a vila de São Paulo entre os séculos XVI e XVII, as roupas da casa mais comuns eram de pano de algodão. Comum para a vila de Itu no século XVIII, as peças de

248

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, 1798, caixa 8, folha. 9. VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 309-310. 250 ALGRANTI, Leila Mezan. "Artes de mesa... p. 18; SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 103, 153. 251 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 9 verso. 252 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material... p. 310. 249

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linho em São Paulo nos séculos anteriores eram valiosas e atestavam refinamento, como observou Luciana da Silva. 253 Alcântara Machado descreveu muitas peças com bordados de rendas, com franjas, atestando a ornamentação das peças. Segundo ele, “é na baixela e nas alfaias de cama e mesa que a gente apotentada faz timbre em ostentar a sua opulência.” 254 Olanda Vilaça observou para os três conselhos portugueses (Barcelos, Guimarães e Póvoa de Lanhoso) que a partir da década de 1780 houve uma “tendência para investir no leito e na mesa, tornando-os mais asseados”.255 Na amostra lisboeta consultada, constam em igual número toalhas de mesa de linho e adamascada, com menor incidência, de olho de perdiz, de algodão, de Guimarães e de estopa.256 Já as toalhas de mão mais comuns eram de linho, mas havia também as de bretanha, cavalim e estopinha. Os guardanapos apareceram em dois inventários póstumos, um de algodão, e um adamascado, tecido muito recorrente para as toalhas de mesa. Nos inventários ituanos, observamos grande aumento no número de roupas brancas a partir da virada do século, bem como aumento nos valores das peças, de forma geral. Sobre a diferença entre os padrões europeus e os paulistas, Leila Algranti ressaltou que certamente entre o luxo e o fausto dos festins das cortes da Renascença e do Barroco europeu, e as refeições dos paulistas, mesmo os mais abastados, havia uma diferença imensa; mas isso não equivale a dizer que essas não possuíam sua dose de ritualidade e de signos de identidade social, os quais foram se constituindo ao longo do tempo.257

As alfaias litúrgicas eram as peças têxteis utilizadas nas cerimônias religiosas. Juntamente com os paramentos litúrgicos, como casula e sobrepeliz, o padre Antônio Francisco da Luz possuía objetos que compunham, provavelmente, a capelinha que existia no interior de sua casa, na rua da Palma. 258 São imagens, oratórios, objetos como cálices, castiçais, jarrinhas, galhetas, e até um ferro de fazer hóstias. 259 Os itens têxteis foram agrupados como Alfaias litúrgicas no momento da classificação das roupas de casa, 253

SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 103. MACHADO, Alcântara. Vida... p. 104. 255 VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material ...p. 297. 256 Cf. olho de perdiz no Glossário ao final. 257 ALGRANTI, Leila Mezan. "Artes de mesa... p. 5. 258 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 18verso. 259 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. folha 8 verso. 254

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respeitando sua função. Essas peças são duas bolsas de corporais $480 (quatrocentos e oitenta réis), dois corporais novos arrendados 1$600 (mil e seiscentos réis) e um frontal de branco e encarnado feito de tafetá, galão e fita de retrós amarelo 1$000 (mil réis). 260 Observando a relação da posse dos móveis e das roupas da casa, constatamos que doze indivíduos da amostra ituana possuíam mesa e toalha de mesa, três dispunham de mesa com a sua respectiva toalha e guardanapos, seis tinham toalhas de mão e de mesa sem possuir mesa, dois apenas as toalhas de mão e quatro possuíam apenas os móveis, sem nenhuma peça de roupa da casa. Já em relação à roupa de cama, havia seis conjuntos de roupa de cama completos (lençol, fronha e coberta) e colchão e catres, quatro completos com cama e colchão. Sete pessoas possuíam catre e lençol e três pessoas, cama com colchão e lençol e uma, um estrado e lençol. Uma pessoa possuía peças de roupa de cama e de mesa mas nenhum móvel, e cinco não possuíam nem móveis nem roupas da casa. Nos inventários encontramos tecidos e materiais empregados para confecção de vestimentas e de roupas da casa arrolados nos domicílios ituanos. Tabela 4 – Matérias-primas têxteis arroladas nos domicílios ituanos, 1765-1808 Material

Quantidade

Algodão em rama Pano de Algodão Pano de Algodão e seda Pano de Algodão grosso Fio de Algodão grosso Fio de Algodão entrefino Fio de Algodão fino Baeta Bretanha de Hamburgo Brilhante de lã Chamalote Chita Linho Linho fino Ruão Tafetá

4 1 1 1 2 1 1 3 1 1 1 3 3 1 1 1

260

Corporal é um “tecido em forma quadrangular sobre o qual se coloca o cálice com o vinho”. . O Frontal é um “paramento que cobre a frente do altar. < http://www.priberam.pt/dlpo/frontal> . Acesso em 07.ago.2014.

80

Total 26 Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários, vila de Itu

Os pedaços de tecidos de linho, chita e baeta constam em três inventários. Embora em pequena quantidade, os itens de algodão, em rama, fios de algodão e panos figuram entre os materiais pertencentes aos lares ituanos. O pano de algodão e seda relacionado acima está descrito como “um corte de saia de algodão e seda, avaliado em oito mil réis”, descrição interessante pois indica a peça de vestuário que seria confeccionada com aquele corte de tecido de posse do sacerdote Antônio Francisco da Luz.261 Apenas dois teares foram registrados na vila de Itu, sendo um “de fazer rede”, e o outro, “um tear ordinário de tecer algodão, avaliado em $640 (seiscentos e quarenta réis).”262 O conjunto mais completo relacionado à atividade de fiação e tecelagem algodoeira, figurou dentre os bens de Antônio Antunes Pereira, que consistia em “um escaroçador de descaroçar algodão, $160 (cento e sessenta réis); uma roda de fiar algodão desconcertada, $640 (seiscentos e quarenta réis); uma roda de fiar melhor com seus desconcertos, 1$000 (mil réis); um pente com seu [-] de tecer pano de algodão em $400 (quatrocentos réis).”263 Igor Renato Machado de Lima apontou a importância da atuação feminina de senhoras e cativas, denominadas “cunhãs tecedeiras” no cultivo, fiação e tecelagem de panos de algodão nos domicílios do Planalto de Piratininga, entre os séculos XVI e XVII.264 De acordo com Lima, dentre os produtos confeccionados com o algodão da terra, estavam “os gibões, as toalhas de mesa, de banho e de lavar as mãos, assim como as redes de dormir”265. A produção não estaria voltada apenas ao uso doméstico, mas também era vendida com a finalidade de gerar renda. 266 O autor observou que a década de 1630 foi 261

ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A . folha 24 verso. ARQ/MRCI - Inventário de Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1. folha 3; Inventário de Ana Leite Gularte, 1808, caixa 17B . folha 7verso. 263 ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Antunes Pereira, 1802, caixa 16. folha 9. 264 LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama: trabalhos e negócios femininos na vila de São Paulo (1554-1640). Dissertação (Mestrado em História Econômica). 2006. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2006. p. 157 265 LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama... p. 136 266 LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama... p. 139 262

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marcada pelo crescimento da produção de algodão e tecidos domésticos. 267 Já na segunda metade do século XVII, Lima apontou que “quando a produção algodoeira expandia-se juntamente com a pecuária, havia uma retração na lavoura de trigo. Nesse processo, os homens senhoriais assumiam a produção e a organização algodoeira.” 268 Na amostra ituana, são poucos os registros de teares e de pano de algodão, o que não significa que não havia produção local de algodão. Talvez os teares e demais acessórios estejam relacionados em bens de pessoas com menor cabedal, ou nem tenham sido inventariados, dados os baixos valores com que eram estimados, como o citado acima, que foi avaliado em $640 (seiscentos e quarenta réis). Nos inventários de nossa amostra, constam majoritariamente os tecidos importados de variadas qualidades e preços. Para a vila de São Paulo entre os séculos XVI e XVII, Luciana da Silva apontou que armazenar estes tecidos para futuramente mandar confeccionar roupas novas, significava ter à sua disposição materiais requintados e, geralmente de difícil acesso, que poderiam representar altos valores acrescidos no patrimônio. Como no caso de Belchior Carneiro, falecido em 1609 no sertão, cuja fazenda somava 200$850 (duzentos mil, oitocentos e cinqüenta réis) entre os quais 8$110 (oito mil, cento e dez réis) eram referentes mais ou menos 12 côvados de gorgorão vermelho e mais ou menos nove côvados e meio de tafetá da Índia.269

Para a documentação ituana pesquisada, o valor e a porcentagem que os tecidos possuídos representavam em relação ao total de bens era muito pequena: 0,05%, 0,4%, chegando até a 2%. Mesmo avaliando o corte de tecido mais caro, o de Antonio Francisco da Luz, mencionado acima, no valor de 8$000 (oito mil réis), representa apenas 0,09%, pois seu espólio total é de 8:614$430 (oito contos, seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e trinta réis). Entre o final do século XVIII e início do século XIX, a composição material dos domicílios ituanos aponta a grande diferença em relação à feição rústica das casas e objetos mencionados nos inventários do Planalto de Piratininga nos séculos XVII e início do 267

LIMA, Igor Renato Machado de. O fio e a trama... p. 135 LIMA, Igor Renato Machado de. "Habitus" no Sertão: gênero, economia e cultura indumentária na Vila de São Paulo (1554-C.1650). Tese (Doutorado em História Econômica). 2011. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 2011, p. 299. 269 SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 71 268

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XVIII, já sinalizando a tendência que mais adiante se afirmará com a chegada da corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, da adoção de elementos europeus na forma de viver e de se relacionar de maneira mais sistemática. A mudança ocorrida a partir de meados do século XVIII transformou a composição dos domicílios, bem como as formas de sociabilidade e os costumes domésticos, como apontou Leila Algranti. 270 Desta forma, foi possível observar a valorização dos tecidos importados em detrimento dos panos de algodão de produção local, o aumento significativo de consumo de produtos estrangeiros. A proibição das manufaturas em terras coloniais estreitou ainda mais os vínculos comerciais entre colônia e metrópole, introduzindo de forma acentuada os produtos ingleses na América Portuguesa mesmo antes da abertura dos portos, em 1808. 271 Este capítulo buscou apresentar a vila de Itu em seus aspectos materiais e sua composição social de forma mais ampla para o entendimento das vestimentas e da aparência, objeto principal de nosso estudo, dando por isso algum destaque aos bens têxteis. A vila de Itu se expandiu durante a segunda metade do século XVIII devido principalmente à lavoura canavieira. Os indícios materiais de Itu como as construções de casas, igrejas, fazendas e engenhos atestam a riqueza do período. Nosso estudo centrou-se em uma amostra dos habitantes da vila. Dentre os indivíduos estudados, estão pessoas de diferentes níveis econômicos, como por exemplo, senhores de engenho, lavradores, comerciantes, oficial de ferreiro e costureira. A amostra da população ituana indicou a complexidade e a diversidade social. Também foi possível analisar aspectos da religiosidade dos ituanos através dos testamentos. Essa documentação fornece elementos de devoção e fé, bem como a materialidade envolvida no processo, com o registro das doações dos fiéis às igrejas e capelas.

270

ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias... p. 153. MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro, 1840-1889). 2013. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. p. 13. 271

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Apresentamos alguns aspectos teóricos importantes do campo da cultura material, ressaltando os autores e as possibilidades viáveis de análise da materialidade. Em seguida, passou-se à análise dos bens arrolados na documentação, avaliados por categorias. A análise da população e das categorias de bens de forma mais ampla, evidenciou a riqueza do açúcar através dos altos valores investidos em escravos e nas unidades produtivas, pertencentes à categoria bens de raiz. Os recheios das casas não alcançaram valores avultados como as categorias acima mencionadas, mas de maneira geral, apontam padrões diversificados de consumo e conforto domésticos, inclusive de produtos importados. Tanto os bens quanto as informações pessoais disponíveis na documentação consultada nos indicam a heterogeneidade dos indivíduos e as das atividades que desenvolviam.

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Capítulo 2 O vestuário da vila de Itu despido em detalhes

Entre os séculos XVIII e XIX, em cidades como Paris e Londres, o grande número de pessoas que migrou do espaço rural para o meio urbano não permitiu mais que todos os habitantes se conhecessem, ocasionando, muitas vezes, o não cumprimento das distinções visuais necessárias pregadas pelo Antigo Regime, como apontou Richard Sennett.1 Em Portugal, assim como na França, os tecidos, as cores, as insígnias foram regulamentadas por leis suntuárias, que objetivavam a clara diferenciação social, resguardando à aristocracia elementos exclusivos 2. O luxo, se por um lado era “condenável porque estabelece a confusão das classes na república, por outro, já é aceitável quando distingue as pessoas nobres”3. Segundo Andrea Miranda, “honra, reputação e reverência são quase sinônimas nas práticas barrocas. É a opinião que confere honra ou não a uma representação social. Portanto, a mesma é mantida através do reflexo das aparências, como moral da aparência e aparência moral”4. A valorização recaía no que era visível: por essa razão a aparência era elemento tão importante, pois era crucial para a organização e ordenamento social. A sociedade sobre a qual nos debruçamos, embora distante das cortes europeias, era permeada pelos valores aristocráticos. Um dos aspectos dessa sociedade é o consumo de prestígio, como ressaltou Norbert Elias 5. “Alguém que não pode mostrar-se de acordo com o seu nível perde o respeito da sociedade.” 6 O consumo de prestígio demandava a aquisição de itens correspondentes ao status daquela camada social para a exibição e manutenção da 1

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 92 2 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências... p.62 – 64. 3 DIAS, Luís Fernando de Carvalho. Luxo e Pragmáticas no pensamento econômico do século XVIII. Separata do Boletim de Ciências Econômicas da Faculdade de Direito de Coimbra. v. IV, número 2-3, 1955, número 1-2-3, 1956. p. 27. 4 MIRANDA, Andréa Cristina Lisboa de. O traje dominante. Do papel social da indumentária no Barroco Joanino enquanto forma expressiva de comunicação. 1998. 259 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998. p. 86. 5 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ., 2001. p. 86. 6 ELIAS, Norbert. A sociedade corte... p. 86.

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mesma, enquanto o ethos burguês, de poupança ou gasto restrito aos rendimentos era desprezado pelos aristocratas. Na América Portuguesa a sociedade de ordens foi adaptada devido ao contexto diverso, como destacou Vera Ferlini, “a plantação escravista transformou e ampliou as tradicionais categorias, transformando em pessoas de mor-qualidade muitos que não poderiam assim ser chamados em Portugal” 7. Dada a diversidade social, não bastava ser livre e possuir escravos, pois o princípio estamental dessa sociedade exigia os signos formais e as manifestações externas que comprovassem ser “homem bom”, “um dos principais da terra”, “limpo de sangue”, viver “à lei da nobreza” e “não padecer de acidentes mecanismos”.8

Os inventários post-mortem nos proporcionam a possibilidade de avaliar o conjunto de posses de um indivíduo ou de sua família como um todo em uma dada situação. A descrição e a avaliação dos bens realizadas por avaliadores e registrada pelo escrivão carregam elementos subjetivos, pois passaram pelo julgamento desses sujeitos por comporem o rol de bens a ser partilhado entre os herdeiros. Nosso contato com a vestimenta do período se dá através apenas da descrição realizada pelo escrivão. Dentro de nossa análise, o valor monetário atribuído a uma peça de roupa é um indicativo da importância desta, devido à sua raridade, novidade ou representatividade. Mas, além da importância monetária, cabe-nos a questão de compreender a importância da dimensão material e simbólica da vestimenta para os ituanos. No presente capítulo iremos analisar a posse de peças de roupas e demais acessórios empregados nos trajes dos moradores da vila de Itu, conforme apontam seus arrolamentos de bens póstumos, comparando com outras localidades da América Portuguesa e da cidade de Lisboa, através de uma amostra colhida na mesma fonte documental, os inventários orfanológicos. A comparação com os dados de outros locais nos fornece um panorama interessante para compreender o padrão de vestuário encontrado para os ituanos.

7 8

FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização. São Paulo: Alameda, 2010. p. 19. FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização... p. 20.

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A vila de Itu representava para a Capitania de São Paulo no período analisado uma localidade próspera devido à produção canavieira destinada à exportação. Mas os produtores ou comerciantes ituanos não alcançaram o padrão das fortunas do nordeste açucareiro9. Através dos inventários post-mortem foi possível observar as qualidades e origens de produtos de diversas localidades que circulavam no Império português. 10

2.1 O bens têxteis: materialidade e valor monetário

Os homens da vila de Itu trajavam-se dentro do padrão europeu, com o traje composto por calções, véstia, colete e casaca, conjunto denominado vestido 11. Na tabela 5 é possível observar a relação das peças de roupas. Tabela 5 – Informações sobre as peças de roupas masculinas, vila de Itu, 17651808 Peça

Quantidade

Calção Calção e colete Camisa Capa Capote Casaca Casacão Ceroula Chambre Colete Farda Fraque Gabinardo

9 4 15 1 7 1 4 6 1 12 9 2 1

Média valor unitário 1$048 2$850 1$333 1$920 5$114 1$280 5$500 $800 1$000 $736 10$208 1$120 4$000

9

Valor total 9$440 11$400 17$340 1$920 35$800 1$280 22$000 1$600 1$000 8$840 91$880 2$240 4$000

FERLINI, Vera Lucia Amaral. “Uma capitania dos novos tempos: economia, sociedade e política na São Paulo restaurada (1765-1822).” In: Anais do museu paulista. v.17, n.2, p. 237-250, 2009. p. 242. 10 Russelwood apresentou uma relação detalhada dos produtos com origem e destino. In: RUSSELWOOD, A. J. R. Um Mundo em Movimento, 2006, p. 430. Apud PEREIRA, Ana Luiza Castro. “Uma saia de seda, um cordão de ouro e um sinete de marfim”: apontamentos sobre a circulação de pessoas e objetos no Mundo Atlântico Português. XXVIII Encontro da APHES. 2008. p. 4. 11 Durante o século XVIII, o termo vestido era sinônimo de roupa, traje masculino. Quando se referia a vestidos femininos, geralmente eram registrados como vestido de mulher, roupa de mulher.

87

Hábito 9 6$084 54$760 Jaleco 1 $800 $800 Manto 2 3$200 3$200 Meia 6 $693 4$160 Opa 5 2$080 10$400 Ponche 1 2$000 2$000 Rodaque 4 1$390 5$560 Timão 4 3$600 14$400 Véstia 8 1$415 11$320 Véstia e Calção 2 1$560 3$120 Vestido 5 7$564 37$820 Total 118 444$160 Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários póstumos

A fim de não perder o sentido do conjunto, optamos por não desmembrar as peças de roupas, mesmo que com tecidos diversos, para a análise dos trajes. Talvez essas vestimentas fossem utilizadas separadas ou combinadas com outras, mas consideramos que para o avaliador inventariá-las juntas poderia ter um sentido de unidade no traje. De forma geral, os itens masculinos mais comuns nos arrolamentos foram as camisas e os coletes, seguidos dos calções e véstias. Já os maiores valores alcançados nas avaliações foram para os conjuntos, como as fardas, os vestidos, e para peças de roupas como os hábitos, os capotes e os casacões. Os casacões utilizados para proteção contra chuva também poderiam ser denominados sobrecasaca, pois eram maiores e de tecido mais pesado, utilizados sobre a casaca que, por sua vez, era utilizada por cima da véstia 12. O quadro 3 apresenta as cores e os tecidos empregados para cada peça de roupa do universo masculino.

12

Casaca era uma “vestidura que hoje se traz por cima da veste; com botões nas mangas, portinholas, etc.”, e casacão: “casaca grande, que se veste sobre a casaca, por causa de evitar a chuva, etc.” Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Vol. 2, p. 392. Já em Bluteau, casaca recebeu a definição: “vestidura com mangas e abas grandes”, e casacão, uma “vestidura com mangas, mais larga que casaca.” Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 -1728. 8 v. vol. 2, p. 175.

88

Quadro 3 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas masculinas, Itu Peça Calção

Cores Tecidos Preto, amarelo, não Berbete, bretanha, casemira, cetim, droguete, fustão, informa ganga, pano azul, rapão, riscado, veludo Calção e colete n.i., escarlate Droguete, ganga Camisa n.i. Bretanha, linho, riscado Capa n.i. Camelão Capote Azul, n.i. Baetão, pano azul Casaca Azul Cetim, pano azul entrefino Casacão Azul, n.i. Baeta, pano azul, pano azul entrefino Ceroula n.i. Linho Chambre n.i. Riscado Colete Azul, encarnado, Bretanha, camelão, cetim, chita, droguete, fustão, ganga, pintadinho, pardo, roxo, linho, pano azul entrefino, riscado verde Farda Azul, branca, n.i. Cetim, fustão, pano azul, pano azul fino Fraque Azul, n.i. Pano azul, n.i. Gabinardo n.i. Lemiste Hábito Parda Camelão, durante Jaleco n.i. Fustão Manto n.i. Casemira, seda Meia Pérola, branca, n.i. Algodão, fustão, seda Opa Carmesim, n.i. Cambraia, tafetá Ponche Azul Pano azul Rodaque Listra, n.i. Ganga, pano azul Timão Cor de rosa, pintado, n.i., Baeta, baetão, chita, pano azul azul Véstia Branca, azul, roxa, n.i. Cetim, chita, ganga, pano azul entrefino, veludo Véstia e calção n.i. n.i. Vestido Preta, escarlate, azul e Belbutina, chita, lemiste, pano azul, pano azul entrefino, branca, azul, azul e preta seda, veludo Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Autos de Contas de Testamento, Inventários póstumos

Analisando a amostra masculina, o tecido com maior ocorrência dentre todas as peças foi o pano azul, seguido pelo cetim e pano azul entrefino 13. Já as peças que apresentaram a maior variedade de tecidos foram os coletes e os calções. As roupas utilizadas por cima das demais, para proteção contra o frio, a chuva, como as capas e os capotes eram confeccionadas com tecidos resistentes, como o camelão e o baetão, enquanto que as peças de uso próximo à pele, como os coletes, as véstias eram comuns de cetim, chita e ganga. 13

Entrefino designa um pano nem grosso, nem fino, intermediário. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário de termos têxteis e afins. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto, I Série, vol. III. p. 137-161, 2004. p. 139.

89

As roupas usadas em contato direto com a pele eram de bretanha, linho e pano riscado para as camisas, e apenas uma de linho foi identificada para ceroula 14. A inexistência de peças de algodão de uso íntimo nessa amostra nos suscita algumas hipóteses e dúvidas. Havia mais peças, porém pelo baixo valor não entraram na avaliação? Os inventariados ituanos seguiram a tendência portuguesa do século XVIII em utilizar majoritariamente peças de pano de linho? Pois o emprego sistemático do algodão em substituição ao linho iniciou-se no final do século XVIII e se estabeleceu definitivamente no século XIX. Nuno Madureira apontou uma recomendação feita em 1784, onde as vantagens do pano de algodão seriam que este “ensopa o suor sem esfriar o corpo”, menos se suja e é melhor de lavar15. Mesmo sem a ocorrência de teares, de produção caseira nos domicílios inventariados, o pano de algodão de qualidade inferior poderia ser adquirido e com ele confeccionado as vestimentas dos cativos. Inácio Leite da Fonseca era senhor de engenho, faleceu no ano de 1806. Entre diversos bens, destacamos três categorias, de acordo com o Quadro 4: Quadro 4 – Vestuário e joias pertencentes a Inácio Leite da Silveira, 1806, Itu Categoria de bem Roupas

Objetos de uso pessoal relacionados à aparência Joias Total

24$400

Valor percentual no espólio dos inventariados 1,0

24$160

1,0

Avaliação (em réis)

Descrição Hábito de terceiro do carmo com todos seus pertences, lenço, par de meia de algodão, camisas de bretanha, casacão, fraque, timão e capote de pano azul, par de meia de fustão, calção de duraque Chapéu de sol, espora de prata, fivelas de calção de prata, fivelas de sapato de prata, botas de veado Par de brincos e anéis

8$960 57$520 Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Fonseca

14

0,4 2,4

Para os tecidos denominados pano azul e pano riscado não foi possível identificar suas matérias-primas. Supomos que o pano azul pudesse ser de algodão. 15 MADUREIRA, Nuno Luís Monteiro. Inventários: aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. 1989. Dissertação (Mestrado) em Economia e Sociologia Históricas. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1989, p. 93.

90

Inácio possuía além do hábito carmelita, dois dos seis pares de meia da amostra, camisas de bretanha e um calção de duraque. De pano azul, um casacão, um capote e um timão. O fraque de pano azul usado, avaliado em 1$280 (mil duzentos e oitenta réis) não foi o único encontrado, pois em data anterior (1798), constou um fraque usado no rol de bens de Felisberto Ferraz Leite, no valor de $960 (novecentos e sessenta réis). 16 Esta roupa aponta que a influência inglesa se fez sentir também nas peças, além dos tecidos. 17 Inácio dispunha também de um chapéu de sol, esporas e fivelas de prata para calção e sapatos. O par de botas já usado, de veado, no preço de $960 (novecentos e sessenta réis), juntamente com o par de botas já usados, avaliadas em 1$000 (mil réis) de Francisco Paes de Siqueira, formam os dois únicos pares de calçados masculinos da amostra18. Os poucos sapatos registrados nos inventários ituanos contrastam com as 41 ocorrências de fivelas de sapatos e 29 de esporas. Se existem fivelas de sapatos, podemos supor que se não existiam pares de sapatos no momento do inventário, mas em algum momento havia. Outras possibilidades eram a doação ainda em vida, depois da morte, ou mesmo a divisão entre familiares próximos antes da confecção do inventário e partilha. Marco Aurélio Drumond localizou, na comarca de Rio das Velhas, pares de sapatos em 24 de 160 inventários, perfazendo um total de 15%. De 24 inventariados, 16 tinham monte mor (soma total dos bens) acima de 1:900$000 (um conto e novecentos mil réis) 19. Cláudia Mól observou sobre o sapato que em terras coloniais, tornou-se restrito a um pequeno número de “gentes de qualidade”, só aparecendo em maiores quantidades no fim do século XVIII. Sérgio Buarque identificou, nas zonas rurais, o hábito de só se calçar os sapatos para entrar nas Vilas. Talvez pela sua importância, o sapato tenha-se tornado,

16

ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Francisco da Luz, Inventário de Felisberto Feraz Leite. “Vestir à inglesa, sobretudo para os homens, passa a ser o toque e o paradigma dos europeus. Usado ainda sobre um calção, surge, criado por Lord Brummel, o célebre ´frac´ preto que se mantém até hoje, com algumas variantes de pormenor.” GAMA, Luís Filipe Marques da. , TEIXEIRA, Madalena Braz. (org.) Traje palaciano: Século XVIII – Império. Mafra: Câmara Municipal, 1986. p. 9 18 ARQ/MRCI – Inventário de Francisco Paes de Siqueira, 1799, caixa 9, folha 5 verso. 19 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado) em História. Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008, p. 114. 17

91

para o forro, símbolo de sua liberdade, uma vez que a alforria dava, ao negro, um direito negado quando escravo: o de andar de pés calçados.20

Os calçados são, indiscutivelmente, elementos simbólicos importantes durante os séculos XVIII e XIX, como já mencionado, mas também eram artefatos de grande utilidade que conferiam proteção. Dessa forma, ao considerar os valores obtidos pelas avaliações das botas e o valor total dos bens de Inácio, 2:228$070 (dois contos, duzentos e vinte e oito mil e setenta réis) e o de Francisco, 416$670 (quatrocentos e dezesseis mil, seiscentos e setenta réis), os calçados, ou pelo menos as botas não eram itens inacessíveis neste período, visto que Francisco tinha um espólio bem mais humilde que Inácio, mas ambos tinham um par de botas, no mesmo estado e com preços muito semelhantes. Para melhor compreender o padrão dos bens de Inácio, arrolamos no Quadro 5 os objetos de outro senhor de engenho, o padre Antonio Francisco da Luz, cujo total de bens era de 8:614$430 (oito contos, seiscentos e quatorze mil, quatrocentos e trinta réis). Quadro 5 – Vestuário e joias pertencentes a Antônio Francisco da Luz, 1805, Itu Categoria de bem Roupas

Objetos de uso pessoal relacionados à aparência

72$280

Valor percentual no espólio dos inventariados 0,8

32$830

0,3

Avaliação (em réis)

Descrição Camisas de bretanha, colete e roupa de cetim pintadinho, colete e timão de chita, camisa, ceroula e colete de linho, gabinardo de lemiste, rodaque e calção de ganga, vestido curto, véstia e calção de veludo, timão comprido e capote de baetão, vestido, rodaque, casacão e capote de pano azul, vestido de belbutina, colete roxo de camelão, calção de rapão Bastão de prata, bengala de cana da índia com ponteira de prata, chapéu de rua coberto de tafetá verde, espora, fivela de calção, fivela de sapato, relógio de algibeira, óculos de armação de molas de prata Dois pares de brinco de prata

Joias 12$000 0,1 Total 117$110 1,2 Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Francisco da Luz, 1805, folhas 5 verso – 20 verso

20

MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica-1750-1800. 2002. Dissertação (Mestrado) em História Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002, p. 116.

92

Em relação a Inácio, Antônio tinha maior diversidade de peças e em quantidade, sem contabilizar aqui a indumentária religiosa. Em comum, camisas de bretanha, timão, capote. A principal diferença entre as duas relações de roupas, é a presença de três vestidos no espólio do padre: um vestido curto de veludo em 6$000 (seis mil réis), um de belbutina no valor de 2$200 (dois mil e duzentos réis) e um vestido curto de pano azul velho na quantia de 1$000 (mil réis)21. José Gonçalves de Barros possuía três conjuntos. São eles: um vestido de casaca de lemiste, véstia e calção de veludo preto, tudo velho, avaliado em 1$920 (mil, novecentos e vinte réis), um vestido de casaca de pano escarlate com seu calção e véstia sem mangas de seda da fábrica, tudo novo, em 14$500 (quatorze mil e quinhentos réis), e uma casaca de pano azul com véstia de cetim branco, sem informar o estado, em 2$600 (dois mil e seiscentos réis)22. Já o tenente José Manoel Caldeira Machado dispunha de um “vestido de pano azul com calção e colete de cetim também azul, com bastante uso, por 6$000” (seis mil réis) 23. No inventário da primeira esposa do alferes Luciano Francisco Pacheco, Ana Gertrudes de Campos, consta uma casaca nova de pano azul fino com véstia e calção de cetim preto, avaliada em 12$800 (doze mil e oitocentos réis) 24. Nos cinco trajes mencionados acima, observamos a diferença na composição do traje, sendo a casaca feita de um tecido mais encorpado em comparação ao tecido empregado na véstia, calção ou colete. As combinações são lemiste e veludo, pano escarlate e seda, e pano azul e cetim25. Exceto o primeiro traje de Barros, os outros calções, coletes e véstias eram de cetim ou seda. Os panos escarlate e azul são razoavelmente recorrentes na 21

ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A . folha 10 ARQ/MRCI - Inventário de José Gonçalves de Barros, 1779, caixa 10 . folha 5 verso. 23 Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1809, caixa 17B . folha 7 verso 24 Inventário de Ana Gertrudes de Campos, 1808, caixa 17B . folha. 5 25 Lemiste era um pano de lã, muito fino, que vem de Inglaterra. Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario... v. 5, p. 77. O veludo poderia ser de lã, seda ou algodão. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 160. Já a seda é feita a partir da “substância filamentosa, produzida pela larva de um insecto chamado bicho-da-seda (esp.bombyx mori)”. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 157. Feito a partir do mesmo material, o cetim é um pano de seda lustroso e fino. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 142. 22

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documentação, mas não indicam sua matéria-prima. Supomos que poderiam ser de algodão, pela oferta e por serem tecidos bastante citados. Os valores dos vestidos variavam de acordo com o estado e principalmente pelo tecido empregado, como exemplo, dois vestidos pertencentes à Inácio Pacheco da Costa, em que um vestido de ganga recebeu o valor de $800 (oitocentos réis) e um de droguete, 2$000 (dois mil réis). Quadro 6 – Bens de Inácio Pacheco da Costa Categoria de bem Roupas

Joias Total

Avaliação (em réis)

Descrição Hábito de terceiro do carmo velho, vestido de ganga, vestido de droguete escarlate com calção e colete, vestido de pano azul, calção e colete de ganga, calças e coletes de riscado Dois pares de brincos de ouro

10$600

4$640 15$240 Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Pacheco da Costa

Valor percentual no espólio dos inventariados 0,9

0,4 1,3

Inácio possuía um sítio no bairro do Atuaú, com uma morada de casas, avaliado em 25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis). Se compararmos com os valores dos bens discriminados no Quadro 6, a diferença não é tão grande. Já a casa na vila, localizada na rua das Casinhas, valia 200$000 (duzentos mil réis), o que evidencia a valorização do espaço da vila em relação ao bairro rural, especialmente neste caso em que Inácio não possuía nenhuma benfeitoria relacionada à atividade açucareira. Entre seus bens, constam ainda dois pares de brincos de ouro (que provavelmente eram de sua esposa Maria Ribeiro), que perfazem 0,4% do total de seus bens, mas que são importantes simbolicamente, pois são adornos de ouro, material muito valorizado. Já Antônio Dias de Matos, não apresentou nenhuma joia ou adereço de uso pessoal, apenas duas peças de roupas, a saber: um capote de baetão azul avaliado em 3$000 (três mil réis), e

94

uma véstia de pano azul no valor de 2$400 (dois mil e quatrocentos réis), que somados, 5$400 (cinco mil e quatrocentos réis), equivalem a 2,4% dos bens.26 O caso de Antônio é um interessante exemplo de presença de roupas em um inventário póstumo com poucos bens. Quando faleceu em 1800, Antônio deixou um filho solteiro e uma filha viúva que tivera em seu primeiro matrimônio, e sua segunda esposa, Maria Leme, grávida de quatro meses e um filho de dez anos. Possuíam uma casa na rua Direita, defronte o portão de São Francisco, e um sítio em que viviam, com terras, uma rodinha e prensa de ralar mandioca e um oratório. Dispunham de poucos móveis, dois catres, dois bancos e duas caixas, uma rede e duas toalhas de algodão. Cinco ferramentas, enxadas, foices e machados, duas juntas de bois, dois cavalos e a escrava Escolástica que contava com 50 anos, avaliada em 30$000 (trinta mil réis) 27. Sem grandes somas em bens de raiz ou escravaria, as roupas representavam 2,4% de seus bens, valor maior dos casos acima mencionados. Os bens de Antônio comprovam o padrão observado quando calculamos os bens sem os valores de imóveis e escravos, situação que aponta um percentual maior das roupas em relação ao total. Além das peças de roupas, faz-se necessário avaliar os objetos de uso pessoal relacionados à aparência. São objetos associados à higiene pessoal, como as navalhas de barba, utilizados para adorno, ou com alguma função específica, como as bengalas, bastões, esporas, óculos, mas que juntamente com as roupas contribuem na composição da aparência. Mesmo possuindo uma função utilitária, como a proteção de raios solares, chuva, os chapéus também poderiam ter a função de adorno, principalmente quando composto por tecidos finos, galões e fitas douradas. Neste sentido, também as fivelas de sapatos, de calção, de gravata, de pescocinho, que primeiramente servem para unir, fechar, mas por ficarem aparentes, adornavam também. Na tabela 6, reunimos os dados sobre esses objetos.

26 27

ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Dias de Matos, 1800, caixa 14B. ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Dias de Matos, 1800, caixa 14B, folhas 3 – 4 verso.

95

Tabela 6 - Objetos de uso pessoal relacionados à aparência, Itu, 1765-1808 Objetos Quantidade Valor (em réis) Bastão 6 15$600 Bengala 3 6$400 Cabeleira 1 $080 Chapéu 32 59$260 Dragonas Não informa 4$000 Escova 1 $160 Espora 29 135$450 Fivela 19 51$530 Fivela de calção 22 20$040 Fivela de gravata 3 1$680 Fivela de pescocinho 2 $950 Fivela de sapato 41 140$325 Navalha 3 $400 Óculos 2 2$000 Relógio 9 132$960 Sapato 6 2$960 Total 179 573$795 Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento, inventários

Os objetos associados à higiene encontrados são uma escova e três navalhas de barba. A escova não foi descrita em detalhes, nem sua função específica. No espólio de Maria Francisca Vieira consta a única cabeleira da amostra. A descrição informa que era pequena, e foi avaliada pelo baixo valor de $080 (oitenta réis) 28. João Fernandes da Costa não possuía a cabeleira, mas sim duas cabeças para cabeleiras, $480 (quatrocentos e oitenta réis) e uma boceta de cabeleiras, $200 (duzentos réis). Olanda Vilaça encontrou duas cabeleiras no norte de Portugal, uma em Barcelos, entre 1750-1760, e uma em Póvoa de Lanhoso entre 1801-181029. Drumond localizou em Rio das Velhas na primeira metade do século XVIII duas cabeleiras: uma escura e outra com sua cabeça 30. Dentre os inventariados da amostra, encontramos 32 chapéus, totalizando 59$260 (cinquenta e nove mil, duzentos e sessenta réis). Doze desses, 37,5%, foram caracterizados como “de sol”, uma denominação relacionava ao seu uso, de proteção ao calor do sol31. Drumond encontrou os seguintes tipos, chapéu fino, entre fino, de sol e de Braga para

28

ARQ/MRCI – Inventário de Maria Francisca Vieira, 1796, caixa5. VILAÇA, Olanda Barbosa. Cultura material ... p. 457. 30 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material... p. 154. 31 “artificioso defensivo do calor do sol”. Vocábulo chapéu. Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario... v.. 2, p. 275. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/chapeu>. Acesso em: 10.nov.2014. 29

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Minas Gerais. Nas lojas, o chapéu grosso da terra era comercializado a $600 (seiscentos réis) enquanto os finos, custavam até 2$000 (dois mil réis) 32. Na vila de Itu, em média, tanto um chapéu confeccionado com ganga quanto com holanda apresentaram valor de 2$000 (dois mil réis). Os tecidos empregados mais comuns eram olanda, ganga, senão feitos inteiramente, pelo menos cobertos com um desses dois tecidos. As fivelas poderiam ser registradas com seus usos, como de calção, de gravata, de pescocinho ou de sapatos. Os itens redigidos sem especificação foram contabilizados separadamente, contabilizando 19 pares de fivelas, avaliados no total em 51$530 (cinquenta e um mil, quinhentos e trinta réis). As mais recorrentes foram as fivelas de sapato (47,1%), seguidas das de calção (25,2%), as fivelas sem indicação de uso (21,8%), as de gravata (3,4%) e, por fim, as de pescocinho (2,2%). As fivelas, em sua grande maioria, eram de prata, que na época, era avaliada em $100 (cem réis) a oitava 33. A charneira, “peça com que se segura a fivela prendendo-a com as orelhas do sapato”34, apesar de mencionada em sapato era mais comum em fivela de calção. O padrão observado foi o de fivela de prata, com a charneira em ferro, na média de 1$000. De modo geral também as esporas seguiam o mesmo padrão das fivelas, confeccionadas em prata. Uma apenas foi descrita como de metal amarelo, no valor de $620 (setecentos e vinte réis) 35. O bastão estava relacionado ao uso militar, “só por insígnia, e distintivo militar” ou também como as bengalas, para apoio, conforme registrou Moraes Silva 36. Embora com características funcionais, poderia contribuir com a boa aparência de quem o portava, 32

DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material... p. 111. Oitava era uma unidade de medida, que correspondia à 1/8 de onça, 0,112 gramas. Informação disponível em: . Acesso em: 30.ago.2014. 34 Vocábulo charneira. Vide PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira. Typographia de Silva, 1832. Disponível em: . Acesso em: 24.ago.2014. 35 ARQ/MRCI - Inventário de José Leme de Oliveira, 1800, caixa 14A, folha 4 verso. 36 Vocábulo bastão. Vide SILVA, Antônio Moraes. Diccionario... vol. 1, p. 268. Disponível em: . Acesso em 01.set.2014. 33

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especialmente quando empregados metais preciosos como a prata, ou adornadas. Os proprietários de bastões do nosso universo de análise tinham títulos militares e um era sacerdote. Os bastões não indicavam o material com o qual foram confeccionados, mas mencionavam apenas que possuíam a ponteira de prata, em cinco de seis ocorrências. Já as três bengalas eram uma de cana da Índia, no valor de 4$000 (quatro mil réis), e duas de madeira da terra, ambas avaliadas em 1$200 (mil e duzentos réis) 37. Passamos agora a tratar as roupas femininas. Dos 44 inventariados de nossa amostra, 15 são mulheres e um casal foi inventariado junto. Em alguns casos em inventários de chefes de família foi possível identificar objetos de uso feminino, como joias ou peças de roupas descritas como capote de mulher. Reunimos os dados referentes ao vestuário feminino na Tabela 7 e no Quadro 7. Tabela 7 – Tipos de peças de roupas femininas, quantidades e valores, vila de Itu, 1765-1808 Peça

Quantidade

Avental Camisa Capote Cinto Espartilho Manteleta Manto Marcelina Meias Penteador Rasgão Roupa Roupa com avental Roupa com manto Roupinha de cabeça Saia Vestido Sem identificação Total

1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 1 1 2 1 15 1 1 35

Média valor unitário 8$000 1$600 12$800 2$000 5$000 4$000 3$200 2$000 $640 1$000 4$640 18$000 14$400 14$400 1$280 3$710 20$000 2$000

37

Valor total (em réis) 8$000 1$600 12$800 2$000 5$000 4$000 3$200 2$000 $640 2$000 9$280 18$000 14$400 28$800 1$280 70$500 20$000 2$000 189$420

ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Francisco da Luz, Ana Gertrudes de Campos e José Manoel Caldeira Machado.

98

Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários

Na média, o valor da peça de roupa feminina é aproximadamente 44% maior que as masculinas, devido ao emprego de tecidos finos, consequentemente mais caros do que os que compõem as peças masculinas no geral. O item mais comum do vestuário feminino, a saia, contou 15 ocorrências. Penteador, rasgão e roupa com manto apareceram duas vezes, e as demais 13 peças foram encontradas apenas uma vez. De forma geral, as roupas que caracterizam trajes completos como vestido, roupa e suas variações com manto, com avental, e apenas uma peça, o capote, obtiveram os maiores valores monetários, entre 12$000 (doze mil réis) e 20$000 (vinte mil réis). Quadro 7 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas femininas, Itu Peça Avental Camisa Capote Cinto Espartilho Manteleta Manto Marcelina Meias Penteador Rasgão Roupa Roupa com avental Roupa com manto Roupinha de cabeça Saia Vestido Sem identificação

Cores Branca Não informa Encarnada Branca Carmesim Listrada com renda de ouro Não informa Branca Não informa Não informa Não informa Rosa seca Preta

Tecidos Cabaia Bretanha n.i. Cabaia Veludo Cetim Seda Cassa Seda n.i. Brilhante, veludo Cabaia Cabaia

Preta

Cassa, veludo

Não informa

n.i.

Pérola, preta, azul, amarela

Algodão, baeta, brilhante, cassa, chita, droguete, durante, guingão, linho, pano azul, seda, veludo Branca com raminhos de ouro Cabaia Não informa Baeta Fonte: AESP, ARQ/MRCI – Contas de testamento e inventários

Os tecidos mais empregados em peças de nossa amostra foram o veludo, em espartilho, rasgões, saias e roupas com mantos, e a cabaia, em cintos, roupas, roupas com avental e vestidos. Curiosamente, de linho e de algodão só constam saias, as camisas eram 99

de bretanha. Para as meias femininas encontramos apenas de seda, diferente das masculinas que, além de seda, poderiam ser de algodão e de fustão. A inventariada que apresentou o maior número de saias foi Ana Maria da Silveira, que possuía sete saias, no valor total de 13$280 (treze mil, duzentos e oitenta réis). A saia mais valiosa, de droguete preto com pouco uso foi avaliada em 4$800 (quatro mil e oitocentos réis), valor médio para as saias da amostra, que do mesmo tecido poderia valer 9$600 (nove mil e seiscentos réis). Quadro 8 – Vestuário, objetos de uso pessoal e joias pertencentes a Ana Maria da Silveira, 1805, Itu Categoria de bem Roupas

Objetos de uso pessoal relacionados à aparência Joias Total

17$520

Valor percentual no espólio do inventariado 2,7

1$500

0,2

Avaliação (em réis)

Descrição Uma [-] de baeta, camisa de bretanha, saia de droguete preto, saia aberta de pano azul, saia de brilhante, saia de chita, saia de baeta azul, saia de guingão, saia de pano de linho, par de meias de seda Par de fivelas de sapatos

Par de brincos, um laço, um crucifixo

2$700 21$720 Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Ana Maria da Silveira, folha 4 – 4 verso

0,4 3,3

Ana Maria possuía ainda a única camisa relacionada às vestes femininas, de bretanha com pouco uso de gola arrendada, e uma peça de baeta sem identificação. Completam seus bens dois pedaços de tecidos (linho e chita), três toalhas de algodão, sendo uma de mesa, um par de lençóis de algodão já usados, uma caixa, três vacas e um boi, que somam 19$420 (dezenove mil, quatrocentos e vinte réis). Os maiores valores do seu inventario concentram-se no sítio, 340$000 (trezentos e quarenta mil réis) e nos dois cativos, 265$000 (duzentos e sessenta e cinco mil réis) 38. Teresa Jesus Barbosa, por sua

38

ARQ/MRCI – Inventário de Ana Maria da Silveira, 1805, caixa 16B, folha 3 verso.

100

vez, possuía apenas uma saia de algodão, usada avaliada em $500 (quinhentos réis), arrolada em seu inventário 39. As roupas confeccionadas com cabaia eram as mais valiosas, a saber: uma roupa cor de rosa, 16$000 (dezesseis mil réis), uma roupa inteira de cabaia rosa seca com flores, 18$000 (dezoito mil réis), um vestido de mulher branco com raminhos de ouro, 20$000 (vinte mil réis), e uma roupa inteira de mulher cor de rosa, com avental de seda branca, tudo guarnecido com galões de ouro, 28$000 (vinte e oito mil réis), que pertencia à Josefa Maria Góes40. Josefa possuía além da referida roupa com avental, as demais peças, conforme Quadro 9. Quadro 9 – Relação das roupas femininas presentes no arrolamento de bens de José Manoel da Fonseca Leite, 1798, Itu Categoria de bem Roupas

Avaliação (em réis)

Descrição

Valor percentual no espólio do inventariado 0,6

Uma roupa inteira de mulher de cabaia cor de rosa, 98$400 com avental de seda branca, tudo guarnecido de galões de ouro, uma roupa inteira de mulher de cetim preto com seu manto, uma roupa inteira de mulher de veludo com seu manto usado, uma saia de seda amarela usada, uma marcelina de pano fino encarnado, bordado de cetim azul, uma marcelina inferior, uma saia de cetim azul usada Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso

A roupa de cabaia cor de rosa tinha o avental em seda de cor branca, toda ornamentada de galões de ouro, adorno que incrementou a roupa feminina mais valiosa da amostra ituana. Diferentes da primeira, as outras duas roupas inteiras de Josefa eram de um tecido apenas, e possuíam manto, uma de cetim preto e outra de veludo, avaliadas em 16$000 (dezesseis mil réis) e 12$800 (doze mil e oitocentos réis), respectivamente. Josefa contava ainda com duas saias, uma de seda amarela usada, 5$000 (cinco mil réis) e uma de cetim azul também usada, 6$000 (seis mil réis), além de duas marcelinas, uma de cetim bordada, 25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis), e outra inferior, no valor de 6$000 39

ARQ/MRCI – Inventário de Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1, folha 3 verso. A cabaia era um tecido de seda muito leve, já a cambraia, era fina e transparente, feita de linho ou algodão. Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 141 – 142. 40

101

(seis mil réis) 41. Os valores das peças de roupas se equiparavam ao de armas de fogo, como consta no mesmo inventário, uma arma estrangeira em bom uso, avaliada em 5$000 (cinco mil réis), valor considerável. 42 Outra peça de roupa que não foi possível determinar, o rasgão, consta na relação dos bens de Maria Leite Pacheco. Quadro 10 – Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes a Mariana Leite Pacheco, 1779, Itu Categoria de bem Roupas

Avaliação (em réis)

Descrição Um rasgão de brilhante, um rasgão de veludo, uma saia de veludo, um manto de seda, uma saia de seda de matizes, um espartilho carmesim Um par de sapatos de seda

45$280

Objetos de uso 1$000 pessoal relacionados à aparência Total 46$280 Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de Mariana Leite Pacheco, folha 4

Valor percentual no espólio do inventariado 4,1

0,09

4,2

Além da saia mais cara: uma saia de seda de matizes avaliada em 15$000 (quinze mil réis), Mariana possuía o único espartilho e o único par de sapatos mencionado na amostra feminina. Mesmo de seda, os sapatos não alcançaram um valor alto na avaliação, 1$000 (mil réis), se compararmos com o valor de 3$200 (três mil e duzentos réis) atribuído ao seu manto de seda. Já o espartilho de veludo carmesim, valia 5$000 (cinco mil réis), quantia considerável. Exceto o rasgão de brilhante, as peças de Mariana eram de veludo ou de seda. O valor das roupas de Mariana foi maior do que os móveis, 9$440 (nove mil, quatrocentos e quarenta réis), ferramentas e apetrechos de trabalho, 35$360 (trinta e cinco mil, trezentos e trinta e seis réis) e matérias-primas, $680 (seiscentos e oitenta réis). Só foi abaixo das categorias já esperadas: escravos, 783$400 (setecentos e oitenta e três mil e quatrocentos réis), animais e criações, 74$560 (setenta e quatro mil e quinhentos e sessenta réis) e bens de raiz, 130$000 (cento e trinta mil réis). 41

Não foi possível determinar como era uma marcelina, pois não encontramos menção em obras de referência nem em outras pesquisas do mesmo período. 42 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 7 verso.

102

Observando o outro extremo, dos inventários mais humildes, Teresa Jesus Barbosa possuía apenas uma saia de algodão usada avaliada em $500 (quinhentos réis) arrolada em seu inventário43. Já a costureira Quitéria de Oliveira, tinha três saias de baeta: azul, $480 (quatrocentos e oitenta réis), preta velha, $640 (seiscentos e quarenta réis) e outra preta por 1$600 (mil e seiscentos réis). As roupas representavam 0,86% dos bens de Quitéria, seus brincos de ouro 2,5%, sua escrava, 46,2% e as três barras de ouro, 37,4% do total. Desta forma, a saia foi a peça de roupa mais presente nas relações dos bens femininos, sendo então mais acessível e presente nos espólios pesquisados, tanto nos abastados quanto nos mais humildes. Já os vestidos ou roupas inteiras, figuraram em poucos e valiosos inventários. Elemento distintivo em Paris, a popularização dos vestidos entre a camada assalariada ocorreu no final do século XVIII, de acordo com Daniel Roche44. Mas apenas na capital, pois, comparando os inventários de outra localidade, mais ao interior, o vestido continua um item inacessível à maior parte da população 45. No caso da América Portuguesa, Cláudia Mól observou que “usar saia e camisa é mais adequado ao clima quente”46. Além da questão do clima, o vestido feminino demandaria mais recursos para sua confecção se considerarmos a quantidade maior de pano empregada. Marco Aurélio Drumond também encontrou o padrão de saia e camisa adotado pelas mulheres na comarca de Rio das Velhas, na primeira metade do século XVIII.47 No Arquivo Nacional da Torre do Tombo pesquisamos uma amostragem de inventários lisboetas, correspondente a cada ano que havia informações para Itu. Selecionamos 19 inventários nos anos correspondentes e mais cinco de comerciantes, para avaliar os estoques de algumas lojas de Lisboa. A amostragem de inventários portugueses fornece um pequeno parâmetro do vestuário e tecidos utilizados em Lisboa, importante entreposto comercial, na recepção e envio de mercadorias entre a Europa e a América Portuguesa. Desta forma, é possível 43

ARQ/MRCI – Inventário de Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1, folha 3 verso. ROCHE, Daniel. A cultura das aparências... p. 152. 45 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências... p. 152. 46 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras... p. 113. 47 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material... p.125. 44

103

comparar a presença de tecidos no contexto metropolitano e colonial no período anterior à abertura dos Portos brasileiros, 1808, bem como a circulação de peças de vestuário antes da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro. Organizados a partir dos mesmos critérios que utilizamos para a vila de Itu, os bens lisboetas contabilizados apresentaram, em geral, o seguinte perfil: os bens de raiz compõem 50,86% dos bens, seguidos dos estoques das lojas, 20,22% e de dinheiro em espécie, 13,69%. O vestuário alcançou apenas 1,34%. As categorias relacionadas à aparência, vestuário, joias e objetos de uso pessoal somam 3,61% dos bens. Eminentemente urbano, o perfil da amostragem lisboeta não apresenta nenhuma ocorrência de animais ou criações, construções e materiais, instrumentos ligados à escravidão e ouro (em barras). Os escravos configuram apenas 0,13%48. Com relação às roupas, durante a primeira metade do século XVIII, D. João V (1707-1750) afrancesou a corte portuguesa ao seguir a moda de Luís XIV, inclusive importando itens franceses como camisas e cabeleiras 49. A partir de 1750, “com a preocupação pombalina da nacionalização do vestuário, entraram na Moda os tecidos grosseiros, o briche, a saragoça, o crespo de Lamego, o sorobeque de Vizeu e outros „panos da terra‟ que até aí só eram usados pelo povo”50. Já no final do século XVIII, as mudanças nos trajes ocorridas a partir da Revolução Francesa após 1789 não repercutiu em Portugal51. “O conservantismo natural das classes pobres, a distância e a falta de comunicações que então havia defenderam o povo do caos suntuário proveniente da 48

Um aspecto observado na documentação portuguesa é o emprego de oficiais na avaliação dos bens arrolados em inventários. No início ou ao final do inventário estão os recibos e assinaturas de mestres carpinteiros para avalição dos móveis, alfaiates para as roupas, ourives para joias, etc. Na vila de Itu para os anos entre 1765 e 1808 não observamos esta característica. 49 Cf. Capítulo V, HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (1920). p. 46 – 52; SUCENA, Berta de Moura. Corpo, moda e luxo em Portugal. 2007. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Letras. Universidade de Lisboa. Lisboa, 2007. p. 3; SILVA, Alberto Júlio. Modelos e modas – traje de corte em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Revista da Faculdade de Letras – Línguas e Literaturas. Anexo V – Espiritualidade e Corte em Portugal, sécs. XVI – XVIII. Porto, 1993. p. 182. Disponível em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8151.pdf> . Acesso em 11. out. 2013. 50 HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (1920). p. 47 51 HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (1920). p. 52.

104

revolução.”52 Também se fez sentir a influência inglesa nos cortes e cores mais sóbrios a partir das duas últimas décadas do século XVIII. Os trajes lisboetas e ituanos apresentam muitas semelhanças no geral. Apresentamos os dados referentes ao vestuário masculino e feminino da cidade de Lisboa correspondente aos mesmos anos observados na amostra ituana. As 631 peças foram elencadas por tipo, tecidos e porcentagem. Quadro 11 - Roupas masculinas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra lisboeta, 1765-1808 Peças de roupas Balandrau Barretes Calção Calção e camisa Calção e casaca Calção e colete Camisa Camisote Capa Capote Casaca

Casaca com véstia Ceroula Colete Gola Gravata Hábito Josezinho Lenço Luva Manto (ordem de cristo) Meias Penteador Pescocinhos Sobrecasaca

Tecidos Sarja Linho Belbute, cetim, ganga, lã, sarja, seda, setineta veludo Lã Ganga, pano fino e veludo Cetim Cambraia, cavalim, esguião, linho, olanda, não informa Cavalim Seda, não informa Baetão, brixe, barregana, ruão, não informa Algodão, barregana, chita, casemira, lemiste, seda, pano fino, pano verde, pano azul, saragoça, não informa Lemiste, nobreza, saragoça, veludo, pano fino, não informa Linho, não informa Baeta, cetim, fustão, linho, olanda, não informa Pele Algodão, cassa, chamalote Camelão, não informa Baetão Bretanha, algodão, não informa Linho, pelica Cavalim Algodão, linho, seda, lã, não informa Algodão, bretanha, cavalim, linho, não informa Bretanha, cambraia, não informa Baetão

52

Porcentagem em relação ao total de roupas 0,1 1,1 2,3 0,1 0,4 0,1 27,2 1,1 0,6 1,4 2,8

2,5 6,3 4,1 0,1 3,6 0,3 0,3 Quantidade indeterminada 1,4 0,1 25,1 2,2 11,8 0,6

HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (1920). p. 52

105

Soleiros Cambraieta, linho 1,4 Véstia e calção Chita, entrefino, fustão e pano azul 0,9 Vestido Brilhante, nobreza, seda, veludo 0,9 Fonte: ANTT – Inventários Orfanológicos e Correição Cível da Cidade de Lisboa, Inventários post mortem, Lisboa, 24 inventários, 1765-1808.

Em relação às peças de roupas, o traje masculino não apresenta diferença em relação ao padrão calção, véstia, colete e casaca. As peças de roupas masculinas que não foram registradas na vila de Itu foram barrete, balandrau, camisote, gola, gravata, luva, pescocinho e soleiro.53 O barrete consistia em uma “cobertura de cabeça, antiga, usada ainda pelos tempos d‟el-Rei D. João III e pouco depois.”54 O balandrau era “vestidura com mangas e capuz de que usam hoje os homens da tumba da Misericórdia”. 55 Não foi possível encontrar definições precisas para soleiro. O pescocinho, uma espécie de capuz, foi descrito como uma peça de uso de sacerdotes, juntamente com a batina, porém Marco Aurélio Drumond localizou uma imagem de José Wasth Rodrigues com a legenda “pescocinho ou gravata” para um laço no pescoço do uniforme de um oficial, o que mostra que não era de uso restrito de religiosos56. A maioria dos pescocinhos era de cambraia e os soleiros, de cambraieta ou linho. Os dois únicos hábitos da amostra lisboeta pertenciam a Antônio João da Luz, falecido em 1804. Um dos hábitos da Ordem Terceira do Carmo foi avaliado em 1$600 (mil e seiscentos réis), sem informação do tecido, e o outro, de camelão pardo era acompanhado de seu cordão e pertencia à Ordem Terceira de São Francisco, em preço de

53

Na documentação ituana, não houve registro da peça de roupa denominada pescocinho, mas apareceram duas fivelas de pescocinho, como apontamos na tabela 2, o que indica que não era um item desconhecido, ou restrito, já que Marco Aurélio Drumond também observou a presença desta peça em Minas Gerais. 54 Verbete Barrete. Vide SILVA, Antônio Moraes. Diccionario... v. 1, p. 267. Disponível em: . Acesso em 13.ago.2014. 55 Verbete balandrau. Vide PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario... Disponível em: . Acesso em: 12.ago.2014. 56 Pescocinho foi descrito como “Debrum branco, móvel existente nas lobas e batinas dos sacerdotes. Cabeção, coleira dos padres.” Vide Dicionário Caldas Aulete. Disponível em: . Acesso em: 03. nov. 2013. DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material... p. 165.

106

2$000 (dois mil réis). É provável que ambos pertencessem ao inventariado e que este fosse membro das duas ordens terceiras. Em maior número, as camisas contaram 172 peças e em sua maioria, feitas de linho, e também as ceroulas (34 de linho e 6 sem informar tecido). Capotes, nove ocorrências, três de baetão, sendo um destes descrito com mangas. Quanto às casacas, estas foram registradas sozinhas, com calções ou com véstias, quando feitos do mesmo tecido. Em número de 18, as casacas presentes nos inventários de Lisboa consultados atingiram valores variados de acordo com o tecido com o qual eram confeccionados, desde $600 (seiscentos réis) em uma de barregana, até 2$000 (dois mil réis) para uma casaca de pano azul. Na vila de Itu notamos que existiu ocorrência de casacão, mas nenhuma sobrecasaca. Na amostragem de Lisboa, por sua vez, não consta casacão, apenas sobrecasaca. Acreditamos tratar-se de um tipo semelhante de casaco, com denominação diversa nas duas localidades.57 Os lenços foram as peças do vestuário masculino mais difíceis de determinar a quantidade, pois na maioria dos registros são mencionados apenas no plural “lenços” ou mesmo como “lenços de várias qualidades”, dificultando a identificação do material. Foi possível verificar que eram de algodão e bretanha e, ao todo, constam em 15 dos 23 inventários consultados para Lisboa. O penteador e as meias são, em sua maioria, de linho, tanto masculinos quanto femininos. Entre os bens analisados, a quantidade de pares de meias elencadas no inventário de Antonio Ferreira Themudo: 75 pares, entre meias de linho, de linha fina e

57

Casacão era uma “casaca grande para se vestir por cima da casaca que por isso lhe chamam também sobrecasaca.” Vide PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/3/casaca> . Acesso em: 17.nov.2014.

107

crua, de seda, totalizando 34$520 (trinta e quatro mil, quinhentos e vinte réis), ou seja, 27,1% de toda sua vestimenta 58. A principal diferença notada nos trajes masculinos entre Lisboa e Itu foi em relação aos tecidos empregados para a confecção das roupas: na amostra pequena de Lisboa, encontramos 50 tipos de tecidos, enquanto para todos os inventários com têxteis do recorte na vila de Itu surgiram 31 tecidos diferentes. Com relação às peças utilizadas em conjunto, em Itu era comum calção e colete do mesmo tecido, ao passo que em Lisboa usava-se a casaca e a véstia semelhantes. Reunimos as vestimentas femininas que constavam da amostra lisboeta de 161 peças na Quadro 12, conforme o tipo, os tecidos e a porcentagem que representavam em relação ao total. Quadro 12 - Roupas femininas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra lisboeta, 1765-1808 Peça Anágua Avental Baque Camisa Capa Capuchinho Espartilho Josezinho Lenço Manto Mantilha Meia Penteador Roupão Roupinha Saia

Vestido

Xale 58

Tecidos Bretanha, cambraieta Cassa, não informa Baetão Cavalim, linho Cetim, baetão, veludo, nobreza e seda Cetim, não informa Não informa Baetão Cassa, cambraia Cetim, seda, não informa Lemiste, veludo, tafetá, não informa Linho, seda, não informa Linho Baetão Baeta, baetão, baetilha, cetim, chita, droguete, ganga, seda Algodão, baeta, baetão, brilhante, cassa, cetim, chita, droguete, durante, ganga, gobelim, nobreza Baetilha, cassa, cetim, chita, droguete, fustão, gobelim, gorgorão, lemiste, nobreza, secezias, seda, veludo Chita

ANTT - Inventário de Antonio Ferreira Themudo, 1789, folhas 41v – 43v.

108

Porcentagem em relação ao total de roupas 1,4 12,4 0,6 2,4 3,1 2,4 0,6 1,2 6,2 3,1 3,7 1,8 0,7 0,7 15,6 19,8

23,7

0,6

Total 100 Fonte: ANTT – Inventários Orfanológicos e Correição Cível da Cidade de Lisboa, Inventários post mortem, Lisboa, 24 inventários, 1765-1808.

Apesar de pequena, a amostra lisboeta nos forneceu uma ideia sobre as peças bem como os tecidos empregados no vestuário feminino em Lisboa de forma geral. As roupas femininas semelhantes em ambas às localidades são: avental, camisa, espartilho, manto, meia, penteador, saia e vestido. A partir de 1750 foi costume utilizar de forma caseira “e não em trajo de cerimônia, o avental de holandilha ou de cambraia enfeitado de rendas” 59. Para a amostra lisboeta, o número de 20 aventais encontrados é considerável. Foi possível perceber esse costume de utilização do avental também na vila de Itu. O número e tipos de peças de uso caseiro ou roupas „de baixo‟ também são restritos em Lisboa: apenas duas anáguas, um espartilho, um penteador e um roupão. A proporção de vestidos em relação às saias, 38 para 32, aponta uma distribuição equilibrada desses trajes entre as mulheres lisboetas, diferente das ituanas que possuíam mais saias. Um padrão observado para as roupas lisboetas, tanto masculinas quanto femininas foi o emprego de tafetá para forro em sua maioria. Existem peças forradas de seda, de baeta, de cetim, de durante, capas forradas de peles, mas a maior parte das peças são forradas de tafetá. O inventário de Angélica Perpétua Rosa Portella enquadra-se em um padrão médio tanto de roupas quanto de valor, a seguir.

59

HISTÓRIA DO TRAJO EM PORTUGAL. Encyclopedia pela imagem. Porto: Livraria Chardron, (19-). p. 47.

109

Quadro 13 - Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes à Angélica Perpétua Rosa Portella, 1802, Lisboa Categoria de bem Roupas

Objetos de uso pessoal relacionados à aparência Total

Avaliação (em réis)

Descrição Um vestido [-] gobelem lavrado com 2 panos de fora, Um vestido de nobreza preto com seu manto de seda à portuguesa com sua renda, uma mantilha de tafetá preto guarnecido de renda, uma saia de gobelem de nobreza com folho do mesmo mais claro, uma saia e roupinha de droguete pano roxo, uma saia de nobreza com seu folho, com sua capa de nobreza preta com capuz guarnecida de renda, uma capa de nobreza preta com seu [-] de seda e 2 mantos franceses com [-] de renda, uma saia de algodão riscado de 4 panos, um vestido de fustão branco de riscas, um vestido de cassa de riscas, uma saia de cassa, umas roupinhas azuis sem mangas, três aventais de cassa, um de ramos e 2 de folhas, uma manta de cassa com listras roxas e franja, avental em peça de cassa bordada e outro liso de cassa ordinária, dois lenços novos de homem bordados para o pescoço, quatro lenços de cassa que servem para a cabeça, lisos, dois lenços e uma tira para o pescoço, quatro lenços, sete camisas de mulher de várias qualidades, cinco anáguas, uma de folhos e 5 de vários panos e feitios, umas ceroulas, quatro roupinhas brancas e de chita, uma saia de chita verde e ramos, uma saia de chita desmaiada, saia de cassa de riscas miúdas com retalho, um Josézinho de baetão roxo lavrado, três pares de meias Um par de brincos de cabeça e pingente com 40 topázios amarelos e 8 cristais brancos

30$000

Valor percentual no espólio do inventariado 14,3

$960

30$960 Fonte: ANTT – Inventário de Angélica Perpétua Rosa Portella, 1802, Lisboa

0,4

14,7

Para algumas peças há a indicação de uso, como os lenços para o pescoço, lenços para cabeça. As peças mais valiosas de Angélica eram a capa, saia e vestido de nobreza, um tecido de seda. As peças de cassa não tinham altos valores como em Itu, pois um vestido de cassa valia 1$200 (mil e duzentos réis) em Lisboa, enquanto em Itu duas saias de cassa valiam 3$600 (três mil e seiscentos réis) 60. Deste tecido, encontramos um vestido em exposição no Museu Nacional do Traje em Lisboa, datado de 1810.

60

ARQ/MRCI – Inventário de Antônio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A, folha 24 verso.

110

Figura 5 - Vestido Império confeccionado em cassa, 1810

Fonte: Acervo da autora/Museu Nacional do Traje e da Moda, Lisboa

Esta é uma peça original, confeccionada de cassa de algodão branco bordado com lâminas de prata, datada de 1810. Em sentido horário, o vestido inteiro, e detalhes da parte superior e do bordado na barra, configura-se como um exemplar da moda Império, caracterizada pelo emprego de tecidos leves e até transparentes e um corte reto, que lembra as túnicas gregas e romanas. 111

O vestuário masculino e feminino nas amostras ituanas e lisboetas são semelhantes, tanto em relação aos tipos de peças de roupa, quanto aos tecidos. Como esperado, em Lisboa a oferta de tecidos era maior, e o valor médio das roupas também era superior.

2.2 Os itens de vestuário nas listas de importação e no estoque da loja de Itu

Nos maços de população, documentação censitária confeccionada entre 1760 e 1830, existe para alguns anos a relação dos produtos importados pela vila de Itu, bem como os produtos produzidos ali, especificando a quantidade consumida e exportada. 61 Para a vila ituana, estão disponíveis os dados referentes aos anos 1798, 1800, 1801, 1802, 1803, 1804, 1805 e 1808. Os itens importados são vinho, pano de linho, pano de lã, pano de algodão, chapéu, meia de seda, tecido de seda e sal, provenientes de Lisboa e da cidade do Porto. Organizamos as ocorrências dos tecidos importados em dois gráficos, um de Lisboa e outro do Porto para melhor visualização dos dados.

61

Tabelas denominadas “Mappas da importação dos produtos e manufacturas do Reino, dos outros Portos do Brazil, e dos Paízes Estrangeiros na Paróchia da Vila de Itu no ano ...”. De acordo com ano, poderiam vir no início, ou no final da listagem do censo.

112

Gráfico 8 – Tecidos provenientes de Lisboa importados pela vila de Itu (em peças)

Tecidos Lisboa 500 450 400 350 300 250 200 150 100 50 0

Linho



Algodão

Seda

2206

1798

1800

1801

1802

1803

1804

1805

1808

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

Neste gráfico referente aos tecidos provenientes do porto de Lisboa, observamos a variação dos números de peças de tecidos importados pela vila de Itu. O traço comum observado para os quatro tecidos foi a diminuição dos itens a partir de 1805. O tecido que apresentou os maiores números foi o algodão. Em 1798 foram importadas 2206 peças de pano de algodão, cifra expressiva que precisou ser indicada numericamente no gráfico, pois não dimensionava os outros valores menores. O pano de lã apresentou tendência semelhante ao do algodão, mas em menor escala, decresceu entre 1798 e 1801, aumentou em 1802 e 1803 e decresceu em 1804 e 1805. Os panos de linho não constaram nos dois primeiros anos, mas apresentaram entre 30 e 60 peças entre 1801 e 1803, aumentaram para 130 e 120 peças em 1804 e 1805, respectivamente, e decaíram para apenas 10 peças em 1808. A seda apresentou números baixos porém constantes, de 12 a 22 peças entre 1798 e 1804. Em 1805, foi impostado o maior número de peças, 60, para em 1808 voltar à média de 16 unidades. Já os panos provenientes do Porto vieram em menor quantidade em relação aos de Lisboa. 113

Gráfico 9 – Tecidos provenientes do Porto importados pela vila de Itu (em peças)

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

A concentração da produção de linho no norte de Portugal refletiu-se nos dados de importação ituana: o maior número de peças de pano de linho, 576 em 1798, enquanto chegaram 130 peças de Lisboa. O número de peças apresentou um grande declínio até 1801, depois estacionou entre 40 e 60 unidades. A importação das peças de lã também decaiu entre 1800 e 1801, crescendo e mantendo uma média de 110 peças entre 1802 e 1805, e caindo em 1808. Já os tecidos de algodão e seda não constam nos primeiros anos de análise, prevalecendo 210 de peças de algodão e apenas 80 de seda, ambos com queda em 1808. Os dados dos gráficos 8 e 9 confirmam o papel de Lisboa como o “vértice estratégico do triângulo Portugal-Brasil-Europa”, conforme frisou Nuno Madureira 62. E a característica produção de linho e lã do norte português, escoada pela cidade do Porto. Na documentação censitária, na mesma página em que encontramos os mapas de importação, ao final estão contabilizados os valores das importações e exportações da vila. 62

MADUREIRA, Nuno Luís Monteiro. Inventários... p. 85

114

Curioso notar que um dos itens consiste na “importação dos outros portos do Brasil”, cada ano com seu valor referente, mas não houve descrição ou menção dos produtos oriundos de outras localidades. Em seu trabalho Estrutura industrial e mercado colonial, onde investigou as relações entre Portugal e Brasil, Jorge Pedreira observou que Em 1776-1777, os tecidos de algodão remetidos para o Brasil provinham quase todos (mais de 90%) da Ásia e a parte restante vinha de países europeus: a indústria nacional, neste sector, era quase inexistente. Os tecidos de linho – as cambraias, as bretanhas, as holandas, os ruões – procediam da Alemanha (através do porto de Hamburgo), da França e da Holanda. Os lanifícios eram ainda principalmente de origem inglesa e as sedas eram francesas ou italianas. No seu conjunto, os tecidos portugueses formavam menos de um terço das exportações de têxteis e a variedade dos produtos era diminuta. Entre os artigos nacionais, só algumas espécies de sedas, os panos de linho e os chapéus (cuja importação estava proibida) eram exportados em quantidades assinaláveis.63

A proveniência dos tecidos em alguns casos era perceptível pelo nome, como os quatro tipos de linho: a holanda, a holandilha, a bretanha e a bretanha de Hamburgo 64. Esses entre outros tecidos foram arrolados no estoque da loja de João Fernandes da Costa, conforme Quadro 14. Quadro 14 – Tecidos do estoque da loja de João Fernandes da Costa, 1801, Itu Quantidade 3 côvados 2 côvados 5 e 1/3 côvados 14 côvados 8 côvados 8 côvados 1 côvado 1 vara 8 côvados ½ côvado 3 menos ¾ côvados 7 côvados

Descrição Tafetá amarelo mofado Tafetá carmezim Durante amarelo Droguete azul meia cor Baeta azul meia cor Holanda amarela Holanda cor de rosa seca Bretanha Ganga azul Baeta azul Droguete alvadio Chita encarnada

63

Preço (em réis) $900 $800 1$493 4$480 5$120 2$240 $280 $480 2$560 $300 1$200 4$480

PEDREIRA, Jorge Miguel Viana. Estrutura industrial e mercado colonial. Portugal e Brasil (1780-1830). Linda-a-Velha: Difel, 1994. p. 55. 64 A Holanda era um “tecido de linho muito fino e fechado ou tapado, que se fabrica na Holanda.” Ainda segundo Manoela Pinto, “havia holandas finas, ordinárias, grossas, frisadas, riscadas, largas e por vezes, produzidas com seda.” Já a holandilha, era “tecido grosso de linho, usado principalmente em entretelas. // Imitação do tecido da Holanda, fabricado na Silésia.” Vide COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 149. A Bretanha era a “lençaria de linho fina, que se trazia de Bretanha; a imitação dizem da lençaria desta sorte Bretanhas de França, de Suécia.” Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario... v. 1. p. 300.

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[-] Baeta azul $150 2 menos ¾ côvados Camelão azul com a vara $330 3 peças Bretanha de Hamburgo $680 1 peça Brim riscado $120 1 e ¾ côvados Holandilha $350 6 côvados Holanda parda 1$680 2 e 1/3 côvados Durante azul $653 5 e ½ côvados Camelão azul $880 1 menos 1/3 côvados Brilhante dourado de lã $213 11 côvados Brilhante de lã de flores 2$640 5 paus Lã escarlate $300 Total 32$329 Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de João Fernandes da Costa, folhas 6 verso – 7

Os panos com os maiores preços no estoque de João Fernandes foram a baeta azul e a chita encarnada, a $640 (seiscentos e quarenta réis) o côvado65. Curioso os dois tecidos de algodão e lã serem mais valorizados, pois geralmente os panos de seda como o droguete e o tafetá eram mais valiosos. Os dois tecidos de droguete receberam o preço de $320 (trezentos e vinte réis) o côvado, o tafetá, $400 (quatrocentos réis) o côvado do carmesim, e $300 (trezentos réis) o amarelo que se encontrava mofado. As baetas, bretanhas, holandas, camelão e durante foram avaliados entre $300 (trezentos réis) e $200 (duzentos réis), valores intermediários. Já o tecido de lã escarlate apresentou o menor valor, $160 (cento e sessenta réis). 66 Além dos tecidos, o estoque contava com um par de meias de seda cor de pérola, 4$480 (quatro mil, quatrocentos e oitenta réis), 5 pares de meia de sarja preta, 4$[-] (deteriorado), 3 lenços encarnados, 1$200 (mil e duzentos réis), 2 chapéus do Porto, $640 (seiscentos e quarenta réis) e botões de estanho, de casquinha, alguns indicando para casaca, para véstia e ligas de retrós67. Já em relação aos produtos importados, possuímos informações sobre pares de meias de seda e chapéus.

65

O côvado, antiga medida de comprimento, equivale a 66 centímetros. Vide SÁ, Isabel dos Guimarães. Glossário Portas Adentro. Disponível em: . Acesso em 04.ago.2014. Já a vara, corresponde a 110 centímetros. 66 A lã escarlate e o brim apresentaram valores baixos, mas como estão com as medidas de peça e de pau, não foi possível dimensionar os tecidos e avaliar seu preço. 67 ARQ/MRCI – Inventário de João Fernandes da Costa, 1801, caixa 15, folha 7.

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Gráfico 10 – Relação das meias de seda importadas por Itu provenientes de Lisboa

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

A importação de meias de seda no geral segue o padrão observado para as peças de tecidos de Lisboa e do Porto, com a queda das importações entre o final do século XVIII até 1802, apresentou certa estabilidade nos dois anos seguintes, um aumento no quinto ano e sem informações dos anos 1806 e 1807, até o declínio no ano de 1808, final de nosso recorte temporal. Os dados do gráfico referem-se às meias provenientes do porto lisboeta. Da cidade do Porto, apenas dois pares do ano de 1805 foram registrados. Os chapéus foram divididos pela sua origem (Cidade do Porto ou Lisboa)

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Gráfico 11 – Número de chapéus importados por ano e o porto de origem

Fonte: AESP - Maços de população, Vila de Itu

O número de chapéus provenientes da cidade do Porto é significativo, tendo alcançado mais de mil chapéus em quatro anos, enquanto Lisboa exportou um número bem inferior, nos dois únicos anos que aparece. Nesses dados não existem informações sobre os tecidos e materiais que compunham os chapéus. Na amostra de inventários orfanológicos que consultamos em Lisboa, um destes, do ano de 1808, relaciona os produtos de uma loja de chapéus, pertencente à Ana Maria da Conceição e Domingos José de Pinho. Na loja, havia chapéus designados grossos e finos. O preço dos grossos variava de $340 (trezentos e quarenta réis) a 1$400 (mil e quatrocentos réis), enquanto os finos, em média, custavam 3$000 (três mil réis) 68. Além dos artigos prontos, havia na loja peças de tecido, copas, arcos para chapéus, escovas, papel, botões e presilhas.69 Os Mapas de importação nos permitem observar a procedência e a quantidade de mercadorias importadas pela localidade, através dos dados oficiais. Os dados confirmam a 68 69

ANTT - Inventário de Ana Maria da Conceição, 1808, folhas 20v – 30v ANTT - Inventário de Ana Maria da Conceição, 1808, folhas 27v – 29v.

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importância de Lisboa como entreposto comercial, e dos produtos produzidos pela região norte de Portugal, confirmando a tradição na produção do linho e dos chapéus.

2.3 Uso público e doméstico dos trajes

Os homens que compunham os cargos de comando nos corpos de ordenanças eram escolhidos entre os principais da terra que, por sua vez, recrutavam as tropas a partir de sua clientela, fortalecendo ainda mais a camada dos grandes proprietários70. A farda, juntamente com as insígnias, paramentava o indivíduo possuidor do título e indicava o seu pertencimento a um grupo seleto que o vinculava ao poder régio. Subordinados às determinações da Coroa, a este grupo “cabia a reprodução e perpetuação da ordem social e econômica”71. O tenente José Manoel Caldeira Machado era natural da região das Minas Gerais, foi casado com Dona Maria da Assumpção Camargo, descendente de um importante ramo da família Camargo da vila de Sorocaba, era uma das poucas mulheres dentre as pesquisadas que sabia assinar seu nome72. Proprietário de um engenho de açúcar no bairro Atuaú e de terras em Capivary (localidade próxima à vila de Itu), José Manoel pertenceu à Cavalaria de Coritiba, como aponta sua “farda de pano azul fino agaloada de uniforme da Cavalaria de Coritiba, em bom uso, com calção e colete de fustão branco, avaliada em 12$000 (doze mil réis)”73. O valor atribuído à farda é tão significativo, que equivale ao dobro de um traje completo composto de casaca do mesmo pano azul e de colete e calção de cetim, e também à metade do valor de uma arma de fogo, pertencentes ao espólio de José Manoel74.

70

FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização... p. 22. FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Açúcar e colonização... p. 23. 72 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folha 1. 73 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folha 7 verso 74 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folhas 6 verso – 7 verso 71

119

Caldeira Machado possuía o único ponche (ou poncho) da documentação consultada da vila de Itu, confeccionado de pano azul, o mesmo tecido da farda, descrito como muito usado e avaliado em 2$000 (dois mil réis) 75. Segundo Paulo César Garcez Marins, peça hoje associada exclusivamente aos gaúchos, o poncho era, na primeira metade do século XIX, sinal característico também dos paulistas. Muito mais longos que os usados atualmente, os ponchos cobriam quase todo o corpo, aproximando-se de uma capa. Quando não havia necessidade de proteção contra a chuva e o frio, tinham suas laterais dobradas sobre os ombros, o que tornava imponente o porte do tropeiro.76

Como o tenente possuía uma farda da Cavalaria de Coritiba, a posse do poncho não causa estranheza, uma vez que a região de Itu e Sorocaba mantinha intenso contato com a região sul através das tropas77. Assim como José Manoel, José Fiusa possuía o título de tenente, e sua esposa, Dona Francisca Xavier da Fonseca também sabia assinar seu nome. Seu inventário está incompleto, mas indica possuir mais de um imóvel, pois próximo da lacuna o escrivão indicou os bens, que estavam em um sítio 78. Fiusa possuía duas fardas, uma comprida de pano azul forrada de amarelo, em 32$000 (trinta e dois mil réis) e outra farda curta do mesmo tecido, avaliada em 3$000 (três mil réis) 79. A presença de duas fardas diferentes talvez correspondesse a uma diferenciação para ocasiões, a mais simples, para uso cotidiano e a mais refinada para ocasiões solenes, tal como indicou Camila Silva para os uniformes utilizados na corte joanina nas primeiras décadas do século XIX 80.

75

ARQ/MRCI - Inventário de José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B, folha 6 verso. MARINS, Paulo César Garcez. Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos. Disponível em: . Acesso em 18.jul.2014. 77 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial. Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001. p. 21-41. 78 Nos inventários post-mortem em que o inventariado possuía mais de um imóvel, a avaliação respeitava a distribuição dos bens por imóvel, indicando o local, como Bens no sítio, Bens na vila antes de arrolar os objetos. No inventário de Fiusa, primeiro estão arrolados os bens localizados na vila, porém quando inicia o rol do sítio o inventário termina. 79 ARQ/MRCI – Inventário de José Fiusa, 1804, caixa 16B, folhas 9 – 9 verso. 80 SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário... p. 91. 76

120

Analisando o valor monetário que as fardas representavam dentre todas as roupas que ambos possuíam, compunham os significativos valores de 34% do valor (35$000 de 102$760) para Fiusa, e para Machado, 41% (12$000 de 29$000). O ferreiro Vicente Gonçalves Braga era também soldado de sertanejas, morador na rua de Santa Rita, possuía uma farda de uniforme, no valor de 1$600 (mil e seiscentos réis) e um capacete que foi arrematado em 2$300 (dois mil e trezentos réis) 81. Em relação ao valor total das roupas, de 5$280 (cinco mil, duzentos e oitenta réis) a farda equivale a 30% do valor, percentual semelhante ao de Fiusa, o que aponta para uma representação significativa da farda dentro do espólio têxtil do indivíduo, mesmo em padrões diferentes. Para a vila de Itu, não encontramos nenhuma menção de farda à venda nos estoques de lojas. Neste caso, poderiam ser confeccionadas sob encomenda ou mesmo compradas em São Paulo. Na primeira metade do século XVIII para a comarca de Rio das Velhas, Drumond encontrou registros de que “os uniformes eram confeccionados em Portugal e repassados ao soldado periodicamente, que tinha de arcar com o seu custo, uma vez que o valor era descontado do soldo”82. A farda de Vicente tinha um custo correspondente ao seu cargo de soldado, enquanto as de tenente de Fiusa e de Machado deveriam ser mais refinadas, ainda mais deste último, por pertencer à cavalaria, posto que demandava a posse de um animal. O tecido mais comumente empregado para as fardas de nossa amostra foi o designado pano azul. Dois tenentes e outros dois inventariados que não indicaram seu cargo possuíam farda deste tecido. Drumond encontrou uma farda de pano azul em Minas Gerais, e na relação de uma loja também havia fardas de pano denominado apenas entre-fino e saragoça83. A farda do alferes Luciano Francisco Pacheco era branca. A do soldado de sertanejas não foi descrita com o tecido ou a cor. José Fiusa possuía uma farda curta e outra

81

ARQ/MRCI – Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1818, caixa 17B, folhas 15, 17. DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2008. p. 158. 83 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material ...p. 160 e p. 78. 82

121

comprida, diferença que não foi possível observar em outros trabalhos do período. Em relação aos valores estabelecidos para estes uniformes, podemos observar uma gama grande de preços, que variavam de acordo com o estado de conservação, tecidos e demais ornamentos, como as dragonas e galões, como descrito nas fardas de José Manoel da Fonseca Leite e José Manoel Caldeira Machado. As fardas eram incumbência dos próprios indivíduos, pois não lhes eram fornecidas pelo Estado. No caso de membros de baixa patente como Vicente Gonçalves Braga que apresentou um espólio humilde, providenciar e manter uma farda e demais acessórios poderia constituir em tarefa custosa e um grande encargo, onerando o soldado. Nestes casos, o pertencimento a uma organização militar talvez representasse mais um fardo do que um privilégio. No Museu Nacional dos Coches em Lisboa, estão expostos alguns exemplos de librés – uniformes utilizados por criados em casas de nobres, datadas do século XIX.

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Figura 6 - Uniforme de Gala, século XIX

Fonte: acervo da autora/Museu Nacional dos Coches, Lisboa.

Este uniforme de gala à inglesa era de Cocheiro mor da Casa Real, composto de casaco, calção de lã vermelha, colete azul agaloado, chapéu tricórnio com pluma e sapato de polimento com fivela. A cor vermelha predominante no uniforme está relacionada à Casa Real portuguesa. No capítulo X da Lei Pragmática de 1749, está a menção à cor: “Hei por bem reservar a cor encarnada para as casacas, capotes, e reguingotes das librés da Casa Real; e nenhum particular poderá mais usá-la nas librés dos seus criados, exceto em

123

canhões, forros, meias, e vestias”84. A legislação abrangia todos os territórios de domínio português, entretanto Silvia Lara apontou diferentes registros de autoridades relatando a desobediência nos trajes em terras brasileiras 85. Considerando a importância da participação dos moradores nas solenidades e celebrações religiosas, analisamos a indumentária religiosa arrolada no inventário do padre Antônio Francisco da Luz, e os hábitos de ordens terceiras que os ituanos leigos dispunham. Morador da vila de Itu, o padre Antônio no momento de sua morte, possuía vestes religiosas, como sobrepeliz e casula. A primeira consistia em uma veste branca, utilizada sobre as roupas. Antônio possuía quatro peças, uma com o colarinho bordado, outra com detalhes em rendas, avaliadas em 1$200 (mil e duzentos réis) a mais simples e usada, e em 4$800 (quatro mil e oitocentos réis) a mais adornada e nova. O sacerdote possuía também um vestido comprido de gala com cabeção e barrete, avaliado em 8$640 (oito mil, seiscentos e quarenta réis) e uma casula de damasco branco e encarnado, no valor de 6$400 (seis mil e quatrocentos réis). Do período, existem remanescentes de casulas como o exemplar de fio de ouro e seda pertencente ao Museu de Évora, Portugal:

84

Appendix to "Ordenacoẽs e leys do reyno de Portugal, confirmadas, e estabelecidas pelo senhor rey D. Joao IV. Novamente impressas, e accrescentadas com tres colleccoẽs: a primeira, de leys extravagantes; a segunda, de decretos, e cartas; e a terceira, de assentos da Casa da Supplicacao e Relacao do Porto." Lisboa: No Mosteiro de S. Vicente de Fora, Camara Real de Sua Magestade, 1747. Capítulo X. Disponível em: . Acesso em 03.ago.2014. 85 LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas... p. 91-113.

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Figura 7 – Casula do século XVIII

Fonte: < http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=13613> . Acesso em: 10.set.2014

Confeccionada em seda vermelha, possui bordado em fios de ouro e aplicação de galão dourado. Já a casula do padre Antônio era branca e encarnada. Teresa Pacheco Pereira referindo-se ao simbolismo das cores ressaltou que “o branco e vermelho aparecem muitas vezes associados e denotam a dupla missão espiritual e temporal” 86. O vermelho, de acordo com a autora, é universalmente considerado como símbolo de vida, cor do fogo e do sangue. Fabricado a partir de corantes sempre muito dispendiosos, foi, talvez como reminiscência da púrpura romana, a cor dos trajes de festa, dos mantos reais. Tornar-se-á a cor das vestes dos cardeais e permanecerá como símbolo da majestade e glória.87

John Gage assinalou que “quase sempre, foi apenas no contexto das cerimônias públicas que a cor alcançou a população como um todo: a hierarquia das cores como um sistema de valores, no qual o vermelho é o topo.”88 O emprego de tecidos luxuosos, mais 86

PEREIRA, Teresa Pacheco. Sobre o trilho da cor. Para uma rota dos pigmentos. Lisboa: Ministério da Cultura/Instituto dos Museus e da Conservação, 2010. p. 15. 87 PEREIRA, Teresa Pacheco. Sobre o trilho da cor... p. 15 88 THE SIGNIFICANCE OF RED. In: GAGE, John. Colour as meaning: art, science and symbolism. London: Thames&Hudson, 2001 Apud PAULA, Teresa Cristina Toledo de. Reflexões sobre a cor na conservação/restauração. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 6/7, p. 149-159 (1998-1999). Editado em 2003. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2014.

125

nobres nos paramentos litúrgicos não são empregados ao acaso, pois como Soraya Coppola frisou, no universo religioso, os tecidos formam o principal meio através do qual se apresenta o Teatrum Sacrum, onde se materializa a devoção e o culto, fruto da identificação cultural, religiosa e social da coletividade. É preciso que os gestos e palavras adquiram um sentido cerimonial, formando códigos precisos que fazem parte de um ritual, resultando na celebração do rito religioso. 89

Somados os valores dos trajes religiosos do padre Antônio, a quantia de 28$240 (vinte e oito mil, duzentos e quarenta réis), era mais que o dobro que possuía em joias, 12$000 (doze mil réis), mas mesmo sendo alto, este valor correspondia à apenas 0,32% do total de bens, que se encontrava na faixa de oito contos de réis, devido aos altos valores dos bens de raiz e escravos90. Em celebrações religiosas os leigos membros de irmandades ou ordens terceiras também aparentavam o pertencimento ao grupo através dos hábitos. Dos sete hábitos arrolados nos inventários pesquisados em nossa amostra, cinco eram da Ordem Terceira do Carmo. Nardy Filho observou que a ordem carmelita era composta por membros das famílias tradicionais ituanas 91. Ao observar as avaliações dos hábitos, os valores apontam para a distinção, pois um hábito com túnica e escapulário novo valia 8$000 (oito mil réis), o dobro do valor de um capote de baetão usado, 4$000 (quatro mil réis) e representava 32,2% de suas roupas.92 Eram poucas as pessoas que poderiam dispor de uma quantia próxima a dez contos de réis para um hábito, quanto mais para adentrar no seleto círculo de uma ordem com essa característica elitista.

89

COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando a Memória: o acervo têxtil do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). 2006. Escola de Belas Artes. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006. p. 9. 90 ARQ/MRCI – Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A. 91 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu... (vol.1) p. 118-119 92 ARQ/MRCI – Inventário de José Leme de Oliveira, 1800, caixa 14A.

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Um hábito do Carmo muito usado valia 6$000 (seis mil réis), como nos bens de Inácio Leite da Silveira e um velho chegava ao preço de 3$200 (três mil e duzentos réis), como o que pertenceu a Inácio Pacheco da Costa93. No rol dos bens do capitão José Manoel da Fonseca Leite, existiam dois hábitos, um de terceiro do Carmo no valor de 12$000 (doze mil réis) e um da Ordem de São Francisco, avaliado em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis). Este foi o único hábito franciscano arrolado em inventários, pois em quatro testamentos os testadores declararam pertencer à ordem franciscana, mas em seus bens não havia menção da posse de tal artefato94. Além dos hábitos, outra peça de vestuário empregada por confrarias religiosas eram as opas, vestes sem mangas usadas sob o traje civil 95. Em nosso universo, encontramos quatro opas, todas da cor carmesim e sem menção à ordem ou irmandade a qual pertenciam96. Do universo feminino, os mantos e mantilhas foram registrados por viajantes que visitaram Portugal no final do século XVIII, como o autor da Figura 8, James Murphy.

93

ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17A, folha 11 verso; inventário de Inácio Pacheco da Costa, 1806, caixa 16A, folha 8. 94 Neste capítulo abordamos os valores monetários e a questão utilitária dos hábitos de ordens terceiras. No terceiro capítulo analisamos de forma mais aprofundada a questão simbólica dos hábitos. 95 Vocábulo Opa. Vide SÁ, Isabel dos Guimarães. Glossário Portas Adentro, disponível em: . Acesso em 03.set.2014. 96 ARQ/MRCI - Inventários de João Leite Penteado, Mariana Leite Pacheco, Antonio Antunes Pereira e José Manoel Caldeira Machado. Caixas 5, 10, 16, 17B.

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Figura 8 – Exemplo de manto e mantilha, final do século XVIII, Portugal.

Fonte: “A Portuguese Merchant with his wife and maid servant”. MURPHY, James. Travels in Portugal. Londres, A. Strahan, T. Cadell Jr e W. Davis, 1795, p. 204. Retirado de: . Acesso em 01.dez.2014.

Como apontou Sílvia Lara, a esposa do mercador distingue-se da sua criada por vestir uma mantilha, véu fino cobrindo o rosto, enquanto a criada trajava-se com o manto, com a cabeça descoberta97. O hábito de trajar um longo manto inclusive cobrindo a cabeça é uma tradição herdada do cerimonial aristocrático português, como frisou Paulo César Garcez Marins98. Na vila de Itu todos os mantos eram de seda, ao passo que em Lisboa, eram de seda, de nobreza, de cetim e algumas vezes levavam rendas. Já em Lisboa as mantilhas podiam

97

LARA, Sílvia Hunold. Fragmentos setecentistas... p. s/n, fólio colorido. MARINS, Paulo César Garcez. “Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos”. In: SETUBAL, Maria Alice (coord.). Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos. Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura Ação Comunitária, São Paulo: CENPEC, Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2004. v. 2. p. 125 98

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ser de veludo, lemiste, cetim e tafetá. Em Itu havia uma manteleta, “espécie de lenço grande, com que as mulheres de Castro Laboreiro cobrem a cabeça”99 Os mantos são peças importantes do vestuário feminino para uso público, além de indicarem distinção, pois nos exemplos observados são confeccionados com tecidos nobres, estão relacionados à tradição, ao hábito de se cobrir a cabeça e grande parte do corpo quando circulavam em espaços públicos100. Richard Sennett apontou para uma mudança importante em relação ao vestuário entre o final do século XVII e meados do século XVIII na Europa, quando passa a vigorar uma diferença entre a roupa a ser vestida na rua e a do espaço doméstico. Segundo o autor, no ambiente doméstico do século XVIII “roupas folgadas e simples ganhavam a preferência de todas as classes”101. O timão foi relacionado ao uso feminino por Márcia Pinna Raspanti: “para ficar em casa e até receber as visitas, as mulheres adotavam um traje bem simples e bem mais liberal: um tipo de camisolão ou camisa de mangas curtas, de tecido leve e transparente, decotado. Eram chamados de „timão‟ ou „lavapeixe‟”102. Já Marco Aurélio Drumond localizou esta peça para ambos os sexos103. Cláudia Mol identificou 14 peças de timão dentre as vestimentas das mulheres forras104. De acordo com Mary Del Priory, o timão era “espécie de confortável camisolão branco em tecido leve, ocupavam-se nas atividades domésticas”105.

99

Verbete manteleta, Vide Dicionário Aulete. Disponível em: . Acesso em 04.dez.2014. 100 No terceiro capítulo abordaremos de forma mais aprofundada a questão simbólica que envolve a utilização dos mantos. 101 SENNETT, Richard. O declínio do homem público... p. 91 102 RASPANTI, Márcia Pinna. O Brasil sob a perspectiva da Moda. Disponível em: . Acesso em 28.jul.2014. 103 DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material ...p. 112, 124. 104 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras...p. 165. 105 DEL PRIORY, Mary. “Mulheres de açúcar: Vida cotidiana de senhoras de engenho e trabalhadoras da cana no Rio de Janeiro, entre a Colônia e o Império.” In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 169, p. 57-90, 2008. p. 78.

129

Em nossas fontes, encontramos quatro timões: dois pertencentes ao padre Antonio Francisco da Luz, um no inventário de Inácio Leite da Silveira e um no espólio de José Gonçalves de Barros. Apesar de relacionado apenas ao uso feminino por Márcia Raspanti e Mary Del Priory, pelos registros na documentação ituana, nos parece que era uma vestimenta para ambos os sexos. O timão de baeta era cor-de-rosa, estava em bom uso e foi avaliado em 3$200 (três mil e duzentos réis), de José Gonçalves de Barros. O que consta no inventário de Inácio Leite da Silveira era de pano azul, avaliado também em 3$200 (três mil e duzentos réis). Nos bens do padre Antonio Francisco da Luz, está arrolado um timão comprido de baetão pintado e um timão de chita 106. Outras peças de uso doméstico encontradas foram o chambre e o penteador. Francisco Paes de Siqueira possuía um chambre de pano riscado de fora, avaliado em 1$000 (mil réis).107 O penteador consistia em uma peça “que se põe ao redor do pescoço, e com que se cobrem os ombros, por não sujar o vestido com cabelos, ou carepa quando alguém se penteia.”108

106

ARQ/MRCI - Inventário de Antonio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A . folha 2. ARQ/MRCI – Inventário de Francisco Paes de Siqueira, 1799, caixa 9, folha 4 verso 108 Carepa, segundo o mesmo dicionário, é uma caspa miúda. Vide BLUTEAU, Raphael. Vocabulario... v. 6, p. 402. Disponível em: . Acesso em: 2 ago. 2014. 107

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Figura 9 – Penteador, século XIX

Fonte: Acervo da autora, Museu Nacional do Traje/Lisboa

O penteador da Figura 9 pertence ao acervo do Museu Nacional do Traje de Lisboa, é datado do final do século XIX, de tafetá de linho e algodão branco com entremeios de renda de bilros. Na amostra de Lisboa havia 15 penteadores, de algodão, bretanha, cavalim, linho. Em Itu, apenas dois sem informação de seu tecido. O inventário póstumo fornece como uma fotografia, a relação dos bens do indivíduo no momento de sua morte. Relação não fidedigna, pois alguns pertences poderiam ter sido distribuídos, doados entre a convalescência e o óbito. As poucas vestimentas refletem um longo período de enfermidade, onde o inventariado estivesse possivelmente acamado, situação em que as peças gastas não foram repostas nem adquiridas mais novas. Os casos em que não existem registros de roupas dos cônjuges nos inventários, bem como nenhuma peça de roupa de criança fortalece a hipótese de ser uma prática disseminada ocultar as vestes de viúvos e menores, para não entrarem na partilha ou irem a leilão nos casos extremos.

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De forma geral, os dados coletados nos inventários post-mortem da vila de Itu e de Lisboa nos permitem observar um padrão semelhante nos trajes, tanto masculino quanto feminino. A diferenciação percebida foi em relação aos tecidos empregados, mais refinados e variados os lisboetas, por exemplo, a nobreza, um tecido de seda não constou nenhuma vez na amostra ituana. O diferencial dos dois espólios mais ricos em relação aos demais foram as peças de roupas confeccionadas com cetim e cabaia. A seda, apesar de valiosa, era razoavelmente comum em Itu e os valores atribuídos não foram tão significativos quanto à cabaia e o cetim. A roupa masculina na vila de Itu seguia o padrão europeu, das três peças: casaca, véstia e calção. Observaram-se algumas variações para peças de roupas e nomenclaturas, como, por exemplo, para tipos de casaco, havia o rodaque, casaca e casacão; capote e gabinardo para as peças com capuz. Além do poncho, que indicou a influência da vestimenta da região sul do território. As duas peças que mais apresentaram diversidades de tecidos empregados foram o colete e o calção. A amostra de roupa feminina, embora numericamente inferior que a masculina, apresentou um valor considerável em relação aos preços do vestuário dos homens. O vestido e as roupas (com manto ou avental) foram avaliados com valores consideráveis, o que causou impacto na média dos valores monetários obtido pelas roupas femininas em geral. Tanto o número quanto a diferença entre os valores de saias e vestido ou roupas completas apontam o padrão dos trajes no período, onde as saias eram mais acessíveis e, consequentemente, mais comuns que as roupas inteiras. Como esperado, poucas roupas “de baixo” foram registradas, para ambos os sexos. As cores mencionadas nas descrições das roupas acompanharam a tendência francesa de cores variadas e diversos matizes, de tons escuros, claros e “meia-cor”, utilizados na Europa em meados do século XVIII, diminuindo gradativamente até 1780, com o emprego de tons mais sóbrios e escuros. Na vila de Itu, durante a primeira década do século XIX as roupas masculinas eram as mais coloridas. 132

Os objetos de uso pessoal, relacionados à aparência e à higiene dos inventariados apareceram regularmente na documentação. Os seis pares de sapatos contrastam com as 41 fivelas de sapatos, indicativos da presença de calçados em algum momento. Além das fivelas específicas de sapatos, constam também as de calção e de gravata em número razoável. O chapéu foi o item mais comum na amostra, tanto para homens quanto para mulheres, enquanto apenas uma cabeleira foi registrada. Em relação à porcentagem que as vestimentas representavam nos inventários póstumos, tanto para a amostra da vila de Itu quanto para a de Lisboa, os números no geral são semelhantes, pois 47% dos inventariados tinham as roupas representando abaixo de 2% do valor total de bens. No capítulo seguinte procedemos à análise individual, buscando compreender melhor a relação entre os sujeitos e seus pertences.

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Capítulo 3 “Cerzindo” objetos e sujeitos: consumo, circulação e representação das vestimentas na vila de Itu

O presente capítulo busca analisar a importância da materialidade dos artefatos no cotidiano da sociedade de Itu entre os anos de 1765 e 1808, considerando as práticas de sociabilidade específicas da América Portuguesa enriquecida pela atividade canavieira. Como pontuou Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, a dimensão material é considerada como uma plataforma de observação da sociedade do passado, ou seja, permite avaliar a relação entre sujeitos e objetos de forma mais aprofundada. 1 Observamos a família por meio do domicílio, tomado como ponto de partida para a compreensão do conjunto de bens, pois o inventário póstumo reúne o conjunto de objetos de que dispunham no momento da morte de um familiar. Investigaremos os padrões de consumo, buscando compreender o uso de peças de roupas a partir dos dados presentes nos inventários póstumos e dos testamentos. Partindo por exemplo, da propriedade de imóveis, traçamos as possíveis localidades de sociabilidade e frequência dos personagens de nossa amostra. Evidenciamos através dos indivíduos ituanos, padrões de consumo, de uso, de transferência das vestimentas, bem como alguns dos significados simbólicos que perpassavam as vestimentas nos séculos XVIII e XIX.

3.1 Padrões cotidianos de vestuário

O inventário póstumo dos bens que um indivíduo dispunha em seu domicílio a princípio nos induz a considerá-lo como uma relação de todos os bens acumulados durante sua vida. Entretanto, da mesma forma que adquirimos, também nos desfazemos, trocamos, vendemos, doamos e perdemos objetos em muitas ocasiões. Os inventários post-mortem 1

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares.” In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 1136, 2003.p. 26.

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que dispomos para análise da cultura material dos séculos dezoito e dezenove nos fornecem uma gama de dados sobre um momento específico não apenas de um indivíduo, mas de sua família e de sua casa, pois todos os bens móveis e imóveis eram arrolados e avaliados a fim de garantir a sobrevivência dos filhos menores quando da morte de um genitor. Neste sentido, a definição de consumo dos antropólogos Mary Douglas e Baron Isherwood refere-se a “um uso de posses materiais que está além do comércio” e é central para analisarmos a posse, a utilização e a circulação dos objetos enquanto materialidade da cultura.2 Os objetos arrolados nos inventários post-mortem foram adquiridos em algum momento da vida daquele indivíduo, apresentam, às vezes, vestígios de uso (quando descritos como velhos, gastos) e até ali faziam parte do conjunto de bens de um domicílio. Depois da partilha, muitas vezes a unidade desse conjunto de objetos era desfeita, sendo estes repartidos entre o cônjuge e herdeiros. Também parte era direcionada à arrematação pública, para ser convertida em dinheiro com o intuito de quitar as dívidas. 3 Como salientou Daniel Miller, na qualidade de objetos mais pessoais, a vestimenta “desempenha papel considerável e atuante na constituição da experiência particular do eu, na determinação do que é o eu.”4 As roupas são necessárias para proteção do corpo, atuam como indicadores de status, e são compreendidas como artefatos que nos compõem. Observamos através dos inventários póstumos o consumo de roupas com o intuito de compreender como essas peças eram utilizadas pelo seu proprietário em vida, e após sua morte, de acordo com os registros de partilha e arrematação. Elegemos alguns personagens do universo ituano para evidenciar algumas questões envolvendo os sujeitos e suas roupas.

2

DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 102-114 3 Nos inventários post-mortem após a descrição e avaliação dos bens, os valores atribuídos a estes eram somados, denominado Monte-mor. Somadas as dívidas a receber (ativas) e subtraídas as dívidas a pagar (passivas), resta o Monte-menor, dividido em duas partes, denominadas meação. Se o inventariado possuísse um cônjuge, este receberia a Meação (metade) e a outra meação seria dividida em duas partes menores, um terço do valor (chamada Terça) era destinada a livre deliberação do inventariado, geralmente registrada como últimas vontades nos testamentos. E finalmente, dois terços do valor eram destinados aos herdeiros. 4 MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 63.

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Em 1803 o oficial ferreiro e soldado de sertanejas, Vicente Gonçalves Braga declarava ao Capitão Eufrázio de Arruda Botelho, seu recenseador, viver de ferragens e não possuir nenhum bem. 5 Ele e sua esposa Ana Maria da Silva eram pardos e viviam em uma casa na Rua de Santa Rita, região central ituana. Quando Vicente faleceu em 1808, a soma de seus bens era de aproximadamente 200$000 (duzentos mil réis) e sua dívida, contava em torno de 70$000 (setenta mil réis). No exercício da função de soldado, Vicente dispunha de uma farda, um capacete e uma espada. Normalmente o ferreiro trajava uma véstia de chita e um par de calças de ganga ou, poderia optar pelo conjunto de colete e calças de bretanha verde. Este último conjunto, avaliado em seu inventário na quantia de 1$760 (mil e setecentos e sessenta réis), apresenta valor semelhante à farda, no valor de 1$600 (mil e seiscentos réis), e à soma de outras duas peças mencionadas, 1$920 (mil novecentos e vinte réis). Somadas as peças de roupas, o valor de 5$280 (cinco mil, duzentos e oitenta réis), ainda é menor do que o de suas armas que foram a leilão: uma espada arrematada em 2$000 (dois mil réis) e uma espingarda por 4$000 (quatro mil réis). 6 As roupas também valem menos do que as cinco fivelas de prata do inventariado, avaliadas em 10$980 (dez mil, novecentos e oitenta réis). A sua casa, porém, foi avaliada em 100$000 (cem mil réis). Contabilizando o valor da roupa, este corresponde a 2,63% de seus bens. De forma geral, o valor das peças de roupas não alcançou na média 3% do valor total dos bens de Vicente. Os valores das categorias bens de raiz e escravos impactam na representação das roupas no espólio. Desta forma, quando somamos as demais categorias e excluímos imóveis e escravaria, as roupas passam a ocupar de 3,4% até 23% dos espólios em geral. Ao final do inventário de Vicente, encontramos uma relação de itens que ele devia a Antônio Jose Ferraz Ferreira, possivelmente um mercador, mencionado como morador da vila de Itu.7 Vejamos os itens arrolados:

5

AESP, Maços de População de Itu, 1803, lata 74. Apud. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira, trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 83. 6 ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808. 7 Não foi possível precisar se Antônio José Ferraz Ferreira era comerciante.

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Quadro 15 - Bens relacionados na dívida de Vicente Gonçalves Braga com Antônio José Ferraz Ferreira, 1808 Categoria de bem

Descrição

Ferramentas

1 lima número 14, 1 lima número 11, 1 lima grande.

Objetos de uso pessoal relacionados à aparência

Avaliação (em réis) $800 2$400

Um chapéu de Braga

Matérias-primas

2$770 Meia vara de cassa, uma meada de linho, uma vara de fita, um côvado de baeta, meia vara de cadaço, resto de 3 côvados de baeta, retrós azul

Total

5$970 Fonte: ARQ/MRCI, Inventário de Vicente Gonçalves Braga, folha 20.

A relação de bens apresenta três ferramentas (limas), um chapéu importado de Braga, tecidos em quantidades variadas a saber: cassa, linho, baeta, e outros componentes empregados nas costuras, como fita, retrôs e cadaço, que consiste em uma fita de linho branco ou de cor, segundo Moraes Silva 8. Também consta um item Rel em conserto, apenas com o valor de $220 (duzentos e vinte réis) referentes às peças de roupas que o inventariado teria enviado para reparos. 9 A relação da dívida indica os materiais consumidos por Vicente e sua família para a confecção de roupas, exceto as três limas. Vicente dispunha de tecidos comuns, como linho, baeta e cassa, além de retrós e fitas para encomendar peças ao alfaiate ou costureira da vila, pois nas dívidas existe menção a conserto de roupas. Outra moradora da Rua de Santa Rita era Quitéria de Oliveira, recenseada em 1803 e inventariada no ano seguinte. No censo, contava com 74 anos, solteira, costureira, sendo que residia com uma escrava em sua casa. 10 Seu espólio era modesto, no valor de 313$560 (trezentos e treze mil, quinhentos e sessenta réis). Relacionado ao ofício, Quitéria possuía em sua casa uma vara e meia de ruão, no valor de $720 (setecentos e vinte réis) e retalhos 8

SILVA, Antonio Moraes. Dicionario da língua portuguesa, vol. 1. p. 317. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/2/cadar%C3%A7o> . Acesso em 17/10/2014. 9 ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808. 10 ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira; AESP - Maços de População da vila de Itu, microfilme, rolos 85, 87, 88, 89, 90, 91.

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de pano de linho avaliados em $600 (seiscentos réis). De roupas, possuía três saias de baeta, duas pretas e uma azul. Uma destas saias preta era velha e foi avaliada em $640 (seiscentos e quarenta réis), a azul, em $480 (quatrocentos e oitenta réis) e a segunda preta mais nova, em 1$600 (mil e seiscentos réis). Em relação a objetos de uso pessoal, além das referidas saias, Quitéria contava com dois pares de brincos de ouro.11 Quitéria teve como herdeiros cinco sobrinhos. Alguns de seus bens foram arrematados: sua escrava, sua casa, seus brincos de ouro, um tacho, um prato, uma caixa, e enxadas. Até itens de baixos valores foram levados a pregão, porém, suas saias e as roupas de casa compostas de sete toalhas de algodão e linho, e uma fronha de algodão não foram conduzidas a leilão. Quitéria possuía um mínimo de objetos de variadas categorias, necessários à sua sobrevivência. Os itens que chamam a atenção são três barras de ouro, numeradas, avaliadas em 59$242 (cinquenta e nove mil, duzentos e quarenta e dois réis), 33$686 (trinta e três mil, seiscentos e oitenta e seis réis) e 24$482 (vinte e quatro mil, quatrocentos e oitenta e dois réis), respectivamente, as quais correspondiam a 37,4% de seus bens. A princípio podemos considerar as joias, os adereços e peças de ouro e prata apenas como itens importantes para a aparência, complementando o traje. No entanto Nuno Madureira ressaltou que os objetos de ouro e prata possuem um “estatuto duplo: são, por um lado, bens com valor de uso pessoal – adornos e adereços -, e, por outro, formas de entesouramento.”12Além do valor material, a posse de ouro e prata estava associada a um valor simbólico relacionado à boa conduta e sucesso na administração dos bens familiares, materializada na transmissão destes entre as gerações. O autor apontou também que a acumulação de peças de ouro e prata correspondia a uma espécie de seguro contra inesperados, situação na qual se conseguia converter rapidamente os metais preciosos em papel moeda.

11

ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira, folha 3 verso. MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários: Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. Dissertação de Mestrado em Economia e Sociologia Históricas, século XV – XX. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. 1989. p. 65 12

139

Em relação à classificação dos inventários póstumos analisados em nossa amostragem, não empregamos o conceito de pobreza, riqueza e decadência. Conforme sugeriu Milena Maranho, estes conceitos não são palavras neutras, portanto, não possuem significados estáveis.13 Pela perspectiva antropológica, Mary Douglas tratou a pobreza a partir da sua relação com o contexto social e não como a ausência ou falta de posses.14 Nuno Madureira ao trabalhar com inventários póstumos lisboetas assinalou que “a ideia de pobre veiculada pelos depoimentos é a da canalização de todos os recursos para as despesas do dia-a-dia sem hipótese de acumulação de reservas de valor. Não ter o suficiente equivale a não ter dinheiro para poupar.”15 O autor considerou dois valores em seu trabalho como critérios: os espólios inferiores a $400 (quatrocentos réis) foram denominados como pobres e aqueles menores de $200 (duzentos réis) considerados como miseráveis. 16 Optamos por não empregar uma classificação baseada em valores, pois é importante observar a composição dos bens além das somas monetárias. Quitéria seria considerada pobre pela classificação que utiliza a soma do espólio, empregada por Madureira, mas as barras de ouro e a escrava que a costureira possuía são indicativas da variedade de padrões de bens que existiam. Consideramos inviável adotar uma classificação, indicando um indivíduo como pobre, se este possuía dois dos bens mais significativos no período: escravaria e metais preciosos. Por menores que fossem os valores atribuídos aos bens, como no caso da escrava de Quitéria, a carga simbólica que representavam é muito importante para ser desconsiderada, ao se privilegiar os valores monetários na avaliação. Para efeito de análise, adotamos então a comparação entre os próprios inventariados da amostra ituana. A principal documentação utilizada contempla os domicílios mais abastados ou pelo menos os que possuíam um mínimo de bens a ser avaliado e cuidado para que os herdeiros 13

Sobre a discussão sobre a decadência econômica da vila de São Paulo no período da mineração aurífera, Cf. MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do século XVII (1648 – 1682). Bauru, SP: EDUSP, 2010, capítulos I e II e BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo Colonial (1711 – 1765). São Paulo: Alameda, 2010. p. 35-54. 14 DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. O mundo...p. 35. 15 MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 17-18. 16 MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 18

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menores não fossem prejudicados na partilha ou com espoliação antes desta. Apesar de representar uma amostra da população, os inventários nos permitem avaliar os diferentes padrões de consumo entre indivíduos de diferentes faixas econômicas. Vejamos um outro domicílio ituano. Manoel Antônio Leite perdeu no ano de 1806 seu pai Inácio Leite da Silveira, e sua esposa Ana Maria da Silveira, com quem tinha um filho de dois meses, Antônio. Inácio possuía um sítio de vivenda com engenho no bairro do Cajuru e uma casa na rua do Conselho. O casal provavelmente vivia no sítio já que no censo de 1803 o senhor de engenho Inácio declarou viver com três filhos e na partilha de bens de Ana Maria, cabia a Antônio parte do referido sítio de seu avô Inácio. Além dos itens têxteis, Ana Maria dispunha de poucos bens: dois escravos, três vacas e um boi, uma caixa. O que notamos é que apesar de escassos, os bens de Ana Maria eram relevantes, ou seja, de considerável valor econômico. Quanto às roupas da casa, dispunha de três toalhas de algodão, sendo uma de mesa, um par de lençóis de algodão já usado, contabilizando 2$980 (dois mil, novecentos e oitenta réis). Ainda encontramos dois pedaços de pano de linho e de chita, no valor de 1$520 (mil, quinhentos e vinte réis) e sete saias de tecidos variados: droguete, pano azul, brilhante, chita, baeta, guingão e linho, avaliadas em 15$080 (quinze mil e oitenta réis), uma camisa de Bretanha com gola rendada, 1$600 (mil e seiscentos réis) e, por fim, uma peça de baeta sem identificação, em 2$000 (dois mil réis). Também possuía um par de brincos, um laço e um crucifixo no valor de 2$700 (dois mil e setecentos réis) e um par de fivelas de sapato com o preço de 1$500 (mil e quinhentos réis). Ao analisar pelos valores, a proporção das roupas em relação ao total de bens de Ana Maria é de 2,7%. Excluindo os escravos e bens de raiz, as vestimentas perfaziam 44,7% dos pertences de Ana Maria. A inventariada possuía 646$140 (seiscentos e quarenta e seis mil, cento e quarenta réis) em bens, mais 73$000 (setenta e três mil réis) em dívidas a receber, totalizando 719$140 (setecentos e dezenove mil, cento e quarenta réis). Esta comparação monetária evidencia a importância das vestimentas frente aos demais bens. 141

Ana Maria mostrou-se mais abastada em relação a Vicente e Quitéria. Porém, se observarmos os três personagens em relação à composição dos bens que possuíam, notamos mais semelhanças do que diferenças. A diferença no caso de Ana Maria foi contabilizar parte do sítio que seu sogro (senhor de engenho) possuía, no valor de 340$200 (trezentos e quarenta mil e duzentos réis). Os bens se assemelham ao número reduzido de escravos, joias e roupas da casa. Quitéria e Ana Maria possuíam peças de roupas de um padrão muito semelhante, composto de saias e camisas. Porém, na variedade, Ana Maria e Quitéria dispunham de quantidade e peças distintas, considerando também o estado e os tecidos de suas roupas. Um dos conjuntos de vestuário feminino mais representativo da amostra ituana foi o de Mariana Leite Pacheco, composto por manto e saia de seda, avaliados em 3$200 (três mil e duzentos réis) e 15$000 (quinze mil réis) respectivamente, saia e espartilho de veludo nos valores de 12$800 (doze mil e oitocentos réis) e 5$000 (cinco mil réis) nessa ordem, duas peças identificadas como rasgão 17, um de brilhante outro de veludo em 4$800 (quatro mil e oitocentos réis) e 4$480 (quatro mil, quatrocentos e oitenta réis) e um par de sapatos de seda, avaliado em 1$000 (mil réis). 18 O vestuário de Mariana, avaliado no total por 45$280 (quarenta e cinco mil, duzentos e oitenta réis) era composto por tecidos nobres, e um item incomum para a amostra, o espartilho. O domicílio do capitão José Manoel da Fonseca Leite, mais abastado do que os inventários acima mencionados, indica-nos dados também interessantes. Em 1772, José Manoel casou-se com Josefa Maria de Góes, filha do capitão-mor Antônio Pacheco da Silva. Natural de Itu registrou seu testamento em 1785, tendo falecido quatro anos depois, em 1789. Seu espólio consta entre os cinco maiores da amostra, e estava dividido entre a propriedade no bairro do Pirapitingui e em um sobrado localizado na rua do Carmo.19 No Pirapitingui, a propriedade era formada por duas casas, plantação de cana, casa de engenho e de moinho, sendo avaliada em 6:000$000 (seis contos de réis). No 17

Não foi possível identificar o que seria rasgão. ARQ/MRCI – Inventário de Mariana Leite Pacheco, 1779. Folha 4. 19 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, 1798. 18

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sítio havia dez pares de lençóis de linho, quatro de algodão e um par de bretanha. Quatro pares de fronhas de linho, todas com rendas, seis pares de bretanha, um cortinado de cama de algodão, quatro toalhas de mão, quatro toalhas de mesa, seis toalhas sem especificar o uso, sendo três de linho, e três de algodão, duas colchas de chita forradas com durante e três cobertores de papa. De uso pessoal, um casacão de baeta azul e dois chapéus de sol, um coberto de holanda, outro de ganga. No sobrado da Rua do Carmo, havia vinte e seis itens de ouro, quarenta e dois de prata, três relógios de algibeira, louças finas, móveis e roupas. As roupas arroladas pertenciam ao casal, uma exceção observada em nossa amostra. Notamos também que constam poucas roupas de casa: um par de lençóis de linho com babados, um cobertor de papa velho, quatro toalhas de mão de linho ou bretanha. De uso pessoal, encontramos dezenove itens: dois penteadores, dois conjuntos de veste e calção, dois hábitos, duas fardas, uma opa e três vestidos masculinos. Do universo feminino, destacamos: três roupas inteiras, duas saias e duas marcelinas. Josefa possuía “uma roupa inteira de mulher de cabaia cor de rosa, com avental de seda branca, tudo guarnecido de galões de ouro, avaliada em 28$000 (vinte e oito mil réis); uma dita de cetim preto com seu manto, 16$000 (dezesseis mil réis); uma dita de veludo com seu manto usado, 12$800 (doze mil e oitocentos réis).”20 Se na propriedade do Pirapitingui estavam os bens relacionados à produção, no sobrado da vila foram arrolados os objetos importantes para a aparência do casal. Além das roupas acima mencionadas, foram inventariados dois hábitos: um de terceiro do Carmo com todos os seus pertences, no valor de 12$000 (doze mil réis) e outro, de S. Francisco, calculado em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis). 21 Provavelmente o hábito de terceiro do Carmo serviu de mortalha a José Manoel, pois conforme consta em seu testamento, as disposições mencionavam seu pertencimento à ordem carmelita e o desejo de ser sepultado na capela da referida ordem.

20 21

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso. ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso.

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Como capitão, José Manoel envergava possivelmente duas fardas: uma farda de pano azul fino com suas dragonas de fios de prata, com véstia e calção, em bom uso, avaliada em 8$000 (oito mil réis), e outra do mesmo tecido, porém sem dragonas, com véstia e calção, no valor de 4$000 (quatro mil réis).22 Em testamento de 1785, José Manoel declarou que possuía um engenho de açúcar e algumas benfeitorias em terras aforadas no bairro Pirapitingui, que pertenciam aos religiosos do Carmo da vila de Itu. Segundo o testador, este usufruía da propriedade com a condição de eu não poder vender: mas sim, que poderia eu doá-las com todas as benfeitorias aos meus parentes; por isso – Declaro, que de toda esta propriedade, assim como possuo, faço inteira e total doação; quanto possa, e me for em Direito permitido à dita minha mulher Josefa Maria de Góes, e todos os meus filhos e filhas, para que vivam na dita Propriedade, e possuam igualmente, para o que eu os declaro, e instituo meus legítimos herdeiros assim dela como do remanescente da minha terça. Declaro, porém que se a dita minha mulher, depois que eu morrer, se casar segunda vez, neste caso desde já a dou por deserdada assim da dita propriedade, como do remanescente da minha terça23

De acordo com as Ordenações Filipinas, José Manoel estava seguindo corretamente a lei, nomeando em testamento os parentes que herdariam o direito ao usufruto da propriedade aforada, inclusive de forma igualitária entre seus filhos e esposa. José Manoel era dono de um patrimônio avaliado em 14:554$662 (quatorze contos, quinhentos e cinquenta e quatro mil, seiscentos e sessenta e dois réis), o quarto maior espólio da amostra. Em 1785 quando escreveu seu testamento, o homem já demonstrava certa preocupação em relação à propriedade na qual possuía o engenho de açúcar e as benfeitorias. A disposição de deserdar sua mulher da referida propriedade caso contraísse matrimônio novamente, baseava-se apenas na vontade do testador, (ou no costume, pela tradição), pois não encontramos menção a uma situação semelhante na legislação. 24A preocupação em relação à administração dos bens legados às viúvas era comum, pois o título 107 do quarto livro das Ordenações Filipinas é dedicado às “viúvas que alheam como

22

ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso. AESP - Autos de contas de Testamento de José Manoel da Fonseca Leite. Folha 3. Disponível em: . Acesso em 1.out.2014. 24 Cf. Livro IV , Ordenações Filipinas. 23

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não devem e desbaratam seus bens”. 25 Pela lei, o testador poderia dispor livremente apenas em relação à terça. Sua esposa Josefa não se casou novamente, e não é possível saber se caso contraísse matrimônio pela segunda vez, se a disposição de José Manoel teria efeito pelo costume, já que pela legislação não havia amparo. Quando da morte do marido, Josefa recebeu 1:400$000 (um conto e quatrocentos réis) dos 2:000$000 (dois contos) das benfeitorias do Pirapitingui. 26 No Tombamento dos bens rústicos, censo realizado especialmente em propriedades rurais em 1817, Josefa de Góes consta no registro número 317, como: Dona, foreira de uma fazenda denominada Pirapitingui, pertencente ao Hospício Nossa Senhora do Carmo (havida por doação), medindo 300x1500 braças (90 alqueires), possui 30 escravos, reside na fazenda, atividade/produção: tem engenho e fábrica de açúcar, planta cana e mantimentos.27

Até quando faleceu em 1824, Josefa Góes possuía a propriedade no Pirapitingui e produzia açúcar em seu engenho, contando com canavial e as demais benfeitorias. Na vila, manteve a mesma residência, na rua do Carmo, com poucos móveis arrolados, como bofetes, catres, caixas, dez cadeiras e uma meia cômoda. 28 Permaneceu viúva até seu falecimento. Na capa de seu inventário, consta como “inventariante de si mesma”. Não encontramos nenhuma peça de roupa arrolada entre seus bens em 1824, nem menção à existência de testamento. Quadro 16 – Esquema genealógico da Família de José Manoel da Fonseca Leite

25

Ordenações Filipinas, título 107, Livro IV, p. 1015. Disponível em: . Acesso em 2.out.2014. 26 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 46. 27 ALMEIDA, Leandro Antonio de. Senhores de Terra da Vila de Itu em 1817. Revista da ASBRAP, São Paulo, v. 7, p. 7-77, 2001. p. 35 28 ARQ/MRCI – Inventário de Josefa Maria de Góis Pacheco, 1824, caixa 29b.

145

Fonte: ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 2 verso.

Com relação às roupas que foram inventariadas no momento da morte de José Manoel, as peças masculinas foram divididas entre a inventariante e os dois filhos mais velhos, José e Antonio. À época, o filho Joaquim contava com apenas sete anos e talvez, por esta razão, não tenha entrado na partilha de roupas. A filha Ana, de dezesseis anos dividiu com sua mãe as peças de roupas femininas, divisão incomum para a documentação pesquisada. Esta partilha das roupas femininas ocorreu de maneira diferenciada em relação aos outros inventários da amostra, pois mesmo quando a roupa do viúvo ou viúva entra no rol de bens, na distribuição, as peças entram em sua meação, ou seja, continuam em sua posse. Quadro 17 - Relação das peças de roupas inventariadas no rol de bens de José Manoel da Fonseca Leite e sua partilha, 1798 Herdeiro

Peças de roupas

Valor (em réis)

Tenente José Manoel da

Uma farda de pano azul fino com suas dragonas de fios de 16$000 prata, com véstia e calção em bom uso, 8$000, Fonseca, 21 anos, casado. Um vestido de pano azul novo, 8$000 Antonio Pacheco da Uma opa de tafetá nova, 2$560, 14$960 Um vestido de sedinha azul usado, 6$000, Fonseca, 18 anos Um vestido de pano azul forrado de cabaia branca, 6$400 Ana, 16 anos Uma roupa inteira de mulher de cabaia, cor de rosa, com 44$000 avental de seda branca, tudo guarnecido de galões de ouro, 28$000, Uma roupa inteira de mulher de cetim preto com seu manto, 16$000. Inventariante, a viúva Uma farda [-] sem dragonas com véstia e calção, 4$000, 59$600 Uma véstia e calção de cetim usados, 1$200, Josefa Uma roupa inteira de mulher de veludo com seu manto usado, 12$800, Uma saia de seda amarela usada, 5$000, Uma marcelina de pano fino encarnado, bordado de cetim azul com suas [-], 25$600 Uma marcelina dita inferior, 5$000, Uma saia de cetim azul usada, 6$000. Fonte: ARQ/MRCI –Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folhas 16 verso - 17

A partilha das roupas do casal sinalizou uma distribuição razoavelmente utilitária, cedendo ao filho tenente uma das fardas do pai capitão, vestidos para o filho Antonio, 146

nenhuma peça para o irmão caçula de sete anos, já que não lhe serviriam as peças do pai e duas das roupas para a filha Ana. Na obra Genealogia Paulistana, consta que os irmãos José, Maria Josefa e Francisca haviam se casado em 1797, um ano antes do falecimento do pai. 29 José casou-se com vinte anos de idade, Maria Josefa com dezoito anos e Francisca, com apenas doze anos. As duas irmãs não entraram na partilha acima tratada, provavelmente por terem recebido peças de roupas em seus dotes. Dona Francisca Xavier da Fonseca recebeu em roupas, “um vestido de mulher de cetim preto, 4$000 (quatro mil réis); um dito de seda de flores cor de rosa, 12$800 (doze mil e oitocentos réis); uma saia de cetim cor de rosa, barra de [-] de ouro com sua [-] do mesmo cetim, 6$400 (seis mil e quatrocentos réis).”30 Sua irmã Maria Josefa, foi dotada com “um vestido de mulher de cetim preto, 4$000 (quatro mil réis), uma saia de cetim cor de rosa seca, 6$400 (seis mil e quatrocentos réis), um vestido de mulher de seda de flor cor de rosa seca, 12$800 (doze mil e oitocentos réis).”31 Ambas receberam roupas muito semelhantes, um vestido de cetim preto, um vestido de seda com motivos florais ou cor de rosa e uma saia de cetim cor de rosa. José, o irmão mais velho entrou na partilha das roupas provavelmente por ter recebido um dote de 310$400 (trezentos e dez mil, quatrocentos réis) muito abaixo do valor recebido por suas irmãs Maria Josefa e Francisca, que receberam cada uma, como meio dote o significativo valor de 1:027$565 (um conto, vinte e sete mil, quinhentos e sessenta e cinco réis).32 Segundo Muriel Nazzari, a tendência observada no século XVII era de que a opinião do patriarca deveria ser respeitada por toda a família, inclusive nos casos em que as filhas recebessem dotes generosos, que afetassem os demais irmãos no momento da partilha. Isto ocorria, provavelmente, uma vez que não seriam forçadas a retornar o valor à

29

LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 96 -99. Vol. III. Disponível em: < http://www.arvore.net.br/Paulistana/Prados_1.htm> . Acesso em 10. ago.2014. 30 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 37. 31 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 38 verso. 32 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 45

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colação.33 Já no século XVIII, porém, ocorreu uma diminuição da influência do patriarca, conforme notado por Nazzari em São Paulo, quando observou que os irmãos “com ajuda de advogados e juízes, procuravam fazer cumprir as disposições da lei relativas à igualdade entre herdeiros.”34 Observamos que os três irmãos foram à colação para a divisão dos bens. 35 No que se refere ao balanço dos bens, o monte-mor considerável de 16:597$760 (dezesseis contos, quinhentos e noventa e sete mil, setecentos e sessenta réis) reduziu-se à quantia de 11:143$468 (onze contos, cento e quarenta e três mil, quatrocentos e sessenta e oito réis), ao se retirar o valor das dívidas. Na relação das dívidas consta o nome do credor e o valor, sem discriminar o motivo, ou o objeto de tal valor. Na maior parte, as dívidas eram compostas de valores baixos. Entre as de valores intermediários e consideráveis, encontramos uma de 20$000 (vinte mil réis) à Ordem Terceira de S. Francisco, outra dirigida ao Coronel José Florêncio de Oliveira, com valor de 426$305 (quatrocentos e vinte e seis mil, trezentos e cinco réis) e duas com somas expressivas: 1:072$290 (um conto, setenta e dois mil, duzentos e noventa réis) ao coronel José Manoel de Sá, e 2:893$074 (dois contos, oitocentos e noventa e três mil e setenta e quatro réis) “por escritura” ao capitão Antônio de Barros Penteado.36 Diferentemente de outros inventários, neste, os bens foram separados e os herdeiros pagos. A viúva recebeu todos os demais bens, incluindo as dívidas, mas não as quitou. Quanto aos recibos, há apenas o referente ao pagamento de cada legítima de seus filhos. Não encontramos nenhuma indicação de como seria saldada a grande dívida, nem indicação de arrematação de bens para este fim.

33

Colação era o retorno dos bens ou do valor dos bens recebidos pelos herdeiros através de dotes ou adiantamentos no momento da partilha dos bens dos pais. O herdeiro poderia trazer ou não os bens à colação. Se viesse à colação, seus bens eram somados à herança e redivididos entre todos os herdeiros. Caso contrário, abria mão da herança. Cf. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. Mulheres, família e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600 – 1900. São Paulo. Companhia das Letras, 2001.p. 126-127. 34 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote... p. 128. 35 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 45. 36 ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folhas 19 – 20.

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A família de José Manoel indica um traço observado em outros inventários analisados. Alguns dos inventariados que possuíam imóveis em bairros rurais e casa na vila tiveram seus bens arrolados conforme estavam distribuídos entre seus bens de raiz. Nestes casos, foi possível notar um padrão dos objetos localizados na vila e em sítios um pouco mais distantes da região central da vila de Itu.37 Oito de treze inventários, apresentaram a maior parte dos objetos relacionados à aparência nas propriedades da vila de Itu e não nos bairros rurais. Não consideramos que esses bens fossem estáticos, que não circulassem e não fossem utilizados nos sítios e chácaras no entorno da vila, mas que a concentração de joias, objetos de uso pessoal, principalmente de roupas na área central ituana indica um padrão de uso conforme a necessidade. Assim, podemos considerar a importância dos artefatos relacionados à aparência para o uso na região central da vila de Itu, onde as sociabilidades eram mais acentuadas devidas às atividades religiosas, principalmente. Outro exemplo deste padrão é o de Ana Gertrudes de Campos, falecida no ano de 1808. Deixou seu marido o alferes Luciano Francisco Pacheco e onze herdeiros, três já casados, contando o caçula Joaquim com apenas quatro meses. 38 A fortuna do casal foi estabelecida acima de quinze contos de réis, proveniente da produção açucareira desenvolvida em dois sítios próximos ao rio Tietê. 39 No sítio, a única peça de vestuário mencionada foi uma saia de seda cor de pérola, avaliada em 5$120 (cinco mil, cento e vinte réis). Havia ainda algumas peças de roupa de casa, como lençóis de pano de linho, toalhas de mesa de algodão, três colchas de algodão e chita 6$400 (seis mil e quatrocentos réis) e um cobertor de papa, de Castela, 2$560 (dois mil e quinhentos e sessenta réis), na quantia total de 16$960 (dezesseis mil, novecentos e sessenta réis) 40. De joias, encontraram-se cordões com contas de ouro, somados 37$880 (trinta e sete mil, oitocentos e oitenta réis). Na categoria de objetos de uso pessoal,

37

De vinte e um inventários que traziam propriedades em bairros rurais e na vila, treze não apresentaram divisão dos bens pelos avaliadores, e finalmente oito registraram os objetos conforme os encontraram nos imóveis. 38 ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folha 3. 39 ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folhas 13-13 verso. 40 Cobertor de papa era uma coberta confeccionada de lã. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario... Vol. 2, p. 392. Neste caso, era uma coberta proveniente de Castela.

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elencaram dois pares de fivelas de esporas, avaliadas em 5$300 (cinco mil e trezentos réis).41 Assim como os demais inventários, este tem como característica concentrar a maioria de bens relacionados à produção agrícola e açucareira nas propriedades da região rural. Essa característica aponta para a questão utilitária dos artefatos, pois se encontravam no local onde teriam função e seriam utilizados. Logicamente que as roupas de uso pessoal eram usadas nas propriedades dos bairros rurais, mas as peças de roupas mais significativas, tanto monetária quanto simbolicamente estavam guardadas na casa da vila. Como exemplo desse tipo de procedimento, podemos pensar nos hábitos de ordens terceiras, utilizados em missas e procissões realizadas no núcleo central da vila, no qual se encontravam os principais edifícios religiosos da localidade. Na casa de Ana Gertrudes localizada no pátio da Matriz, isto é, na região central ituana, as joias somaram 150$720 (cento e cinquenta e nove mil, oitocentos e vinte réis), entre anéis de ouro com topázio, ou com pedras falsas, cordões de ouro e cinco pares de brincos de ouro, que representavam 1,0% do montante total de bens. Tais adereços superam os encontrados no sítio, tanto na variedade, como no valor, pois em joias, havia 37$880 (trinta e sete mil, oitocentos e oitenta réis) no sítio. Os objetos de uso pessoal no sítio somaram 5$300 (cinco mil e trezentos réis) referentes a dois pares de esporas, já na vila, somaram 24$000 (vinte e quatro mil réis), entre os quais havia fivelas de esporas e de sapatos, uma bengala feita de madeira da terra e prata e três chapéus, avaliados em 6$000 (seis mil réis), 4$000 (quatro mil réis) e 3$200 (três mil e duzentos réis), respectivamente. As roupas de casa apresentam um valor menor, de 26$800 (vinte e seis mil e oitocentos réis) em relação às do sítio, porém a qualidade dos itens parece ser muito superior, como por exemplo, a colcha de damasco carmesim em bom uso, avaliado em 20$000 (vinte mil réis). 42 As vestimentas arroladas e avaliadas em 70$880 (setenta mil, oitocentos e oitenta réis) pertenciam ao casal. Do seu marido Luciano, consta a farda com véstia de cetim branco bordada de ouro e calção de casimira branca no valor de 20$000 (vinte mil réis) e uma casaca nova de pano azul fino, com véstia e calção de cetim preto, 41 42

ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folhas 13 – 13 verso. ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folha 14.

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12$800 (doze mil e oitocentos réis). Da inventariada, umas roupinhas de cabeça azul, no valor de 1$280 (mil duzentos e oitenta réis), uma manteleta de cetim listrada com renda de ouro, 4$000 (quatro mil réis), um capote de mulher de pano encarnado fino, 12$800 (doze mil e oitocentos réis), até um vestido de mulher confeccionado em cabaia branca com raminhos de ouro em bom uso, avaliado em 20$000 (vinte mil réis). 43 O valor total das roupas 76$000 (setenta e seis mil réis) é muito semelhante ao dos móveis, de 77$620 (setenta e sete mil, seiscentos e vinte réis), e correspondem a 0,5% do total de bens. Ana Gertrudes apesar de contar com muito mais cabedal do que Quitéria ou Mariana, também possuía saia entre seus bens, porém de tecido nobre, de seda, no valor de 5$120 (cinco mil, cento e vinte réis). A farda, elemento crucial na identificação dos indivíduos que gozavam de títulos militares, estava presente nos espólios abastados, como o uniforme de cetim branco bordado de ouro, de Luciano, marido de Ana Gertrudes, ou a farda de 1$600 (mil e seiscentos réis), dentre os poucos bens de Vicente Gonçalves Braga. As fardas constituíam-se na representação do poder real. Assim, quem a envergava, distinguia-se em relação aos demais súditos, pois pertencia a um restrito e seleto grupo na América Portuguesa.44 Pablo Mont Serrath frisou ser “frequente que oficiais das ordenanças, tendo baixa ou por velhice ou por outro motivo, seguissem usando as insígnias e galões de seus postos, ainda que essa prática fosse proibida.” 45 Conforme observado no capítulo 2 do nosso estudo, o acesso a tecidos de origem estrangeira era comum na vila ituana. A diversidade de panos na época analisada é relativamente ampla quando comparada com os tecidos observados em nossa amostra para Portugal, bem como em séculos anteriores na vila de São Paulo. Luciana da Silva confirmou o dado de Alcântara Machado de que o material mais empregado nas vestimentas encontradas na vila de Piratininga, no século XVII era o algodão ali

43

ARQ/MRCI – Inventário de Ana Gertrudes de Campos, folhas 5 – 5 verso. SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010. p. 91 – 107. 45 MONT SERRATH, Pablo Oller. Dilemas & Conflitos na São Paulo restaurada. Formação e consolidação da agricultura exportadora (1765-1802). 2007. 316 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo. p. 159. 44

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confeccionado.46 Beatriz Ricardina de Magalhães também apontou a diversificação dos tecidos disponíveis na comarca de Ouro Preto entre as décadas de 1740 e 1770: É difícil dizer que a escolha dos tecidos era condicionada pelo clima, pois encontramos sedas, baetas, veludos, tafetás, gorgorões, panicos, lãs, rendas, etc. É tão grande sua variedade, que chegamos a computar, em um só inventário de Manoel de Miranda Fraga, mais de setenta tipos diferentes. A maior parte dos tecidos era importada e tinha alto custo.47

Nas regiões mineradoras observou-se uma grande variedade de tecidos, roupas, joias

e objetos pessoais. De acordo com Magalhães, havia maior investimento de joias em relação às vestimentas. As peças de roupas mencionadas na documentação ituana correspondem ao padrão de vestimentas europeu, mais especificamente ao padrão lisboeta, conforme abordado no capítulo anterior, seja em relação às peças masculinas e femininas, seja em relação aos tecidos empregados, todos de proveniência estrangeira. As mulheres mais abastadas dispunham de vestidos, além de adornos vistosos de ouro, prata e pedras. Com base nos registros de posse de bens, pode-se dizer que o modelo mais comum de vestimenta feminina em Itu era caracterizado por saia e camisa. Quanto aos homens vestiam-se, ao que tudo indica, com veste, colete, calção e casaca de tecidos muito semelhantes aos homens lisboetas, porém com cores bem variadas. Os moradores da vila de Itu que dispunham de sítios para a vivenda ou como unidade produtiva açucareira em bairro rural e de uma casa na região central, deixavam as roupas, as joias e demais objetos como chapéus, bastões, fivelas mais caros, em maior quantidade e de melhor qualidade nas casas da vila. Já os moradores com os menores cabedais, que residiam na área central ou mesmo nos bairros, envergavam trajes menos abastados mas não tão distintos dos demais.

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SILVA, Luciana da. Artefatos...p. 76; MAGALHÃES, Beatriz Ricardina de. “A demanda do trivial: vestuário, alimentação e habitação.” In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo Horizonte, n.º 65, pg. 151 – 197, julho/ 1987. p. 172-173. 47

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3.2 A circulação de roupas: dotes, doações, dívidas, partilhas e arrematações

A partir dos testamentos e dos inventários póstumos foi possível verificar a composição das vestimentas disponíveis na vila de Itu, e em alguma medida, compreender como as peças de roupas seriam destinadas após a morte do inventariado. Este tópico busca compreender a circulação das roupas entre pessoas próximas e parentes dos inventariados em momentos diversos do ciclo de vida e após a sua morte. Entre os exemplos, inclui-se o dote, entregue ainda em vida pelos pais aos seus filhos, as disposições testamentárias indicando as doações a serem realizadas após a morte, bem como a relação das roupas que constavam nas dívidas, além as peças encaminhadas aos pregões públicos para rápida conversão em dinheiro, a fim de quitar as dívidas. Neste amplo cenário, encontramos o inventário de José do Amaral Gurgel, homem que constituiu uma extensa família, casando-se três vezes. Era neto de Bento do Amaral Gurgel, “sargento-mor no Rio de Janeiro, ouvidor e corregedor da capitania de S. Paulo”. Residiu na região das Minas, depois adquiriu um sítio próximo aos rios Pinheiros e Tietê.48 Em 1730, José casou-se com Escolástica de Arruda Leite Ferraz, filha de um juiz ordinário da vila de Itu. José recebeu o mesmo nome do pai, tendo apresentado uma variação, José de Arruda Gurgel, na genealogia de Silva Leme. 49

48

NARDY FILHO, A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c. vol. 5. p. 168. LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 123, volume VI. Disponível em: . Acesso em: 14/10/2014. 49

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Quadro 18 - Primeiro casamento de José do Amaral Gurgel

Fonte: Genealogia Paulistana50

Seu primeiro casamento ocorreu em 1758, com Gertrudes de Araújo. A mãe da noiva, Ana de Campos, a qual também pertence à nossa amostra, faleceu em 1780. De acordo com Silva Leme, o genro José do Amaral Gurgel se casou pela segunda vez em 1768.51 Este fato, no entanto, não o inviabilizou de ser o inventariante de Ana, o que demonstra que ele acompanhou sua sogra até a morte, mesmo tendo contraído novo matrimônio. Ana faleceu em sua casa e os bens foram repartidos entre os dois filhos que José teve com Gertrudes, sua primeira esposa: Vicente do Amaral Campos e Ana de Campos (mesmo nome da avó). A sogra devia ao genro 146$140 (cento e quarenta e seis mil, cento e quarenta réis) referente à parte de um sítio que estava quitando. Esse valor correspondia a 16,8% de todos os seus bens e foi abatido da herança dos netos, que se constituía de onze escravos, móveis, imagens e um oratório, quatro colchões, redes, quatro toalhas de mãos de linho e algodão, uma toalha de mesa de algodão, duas colheres de prata velhas e vinte e nove animais, entre vacas, bois e novilhas. 52

50

Esquema genealógico baseado em dados de LEME, Genealogia Paulistana. p. 123, volume VI. Disponível em: . Acesso em: 14.out.2014. Os indivíduos inscritos dentro de retângulos e destacados em negrito são inventariados que compõem a amostragem de nossa pesquisa. 51 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 123, volume VI. Disponível em: . Acesso em: 14/10/2014. 52 ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 2 verso – 4.

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Os sufrágios para a alma da falecida Ana foram custeados com parte do valor de um escravo que a mesma possuía e que foi arrematado por Bento Dias Pacheco.53 Os recibos referentes ao sufrágio são muito detalhados e interessantes, pois envolvem outros indivíduos de nossa amostra. No documento constam dois recibos do padre Manoel da Costa Aranha, nos quais atestou receber do inventariante dois valores para celebração de missas em intenção da alma de Ana de Campos. 54 Francisco Novais de Magalhães assinou um documento denominado “Conta do que despendi com o enterro da defunta Ana de Campos por ordem do Senhor José do Amaral Gurgel.” Adiante elencou: o valor de 4$480 (quatro mil, quatrocentos e oitenta réis) em missas de corpo presente no Convento de S. Francisco, 6$000 (seis mil réis) de hábito para mortalha, 6$880 (seis mil, oitocentos e oitenta réis) a saber: “a fábrica de sepultura ao pé das grades” em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis), 4$000 (quatro mil réis) de tumba, e $320 (trezentos e vinte réis) de cruz, 4$640 (quatro mil, seiscentos e quarenta réis) em velas e $180 (cento e oitenta réis) em uma vara e meia de fita roxa. 55 Francisco pertencia à ordem terceira de São Francisco, razão pela qual pode ter sido incumbido de tratar da sepultura de Ana de Campos. Os gastos com o ofício religioso não eram acessíveis a toda a população, como no caso de Ana, que a quantia gasta foi de 45$000 (quarenta e cinco mil réis), valor que correspondia à metade do valor do escravo, um dos bens mais valiosos no período.56 Os objetos que restaram foram partilhados entre seus netos Vicente e Ana. Cada um herdou 458$280 (quatrocentos e cinquenta e oito mil, duzentos e oitenta réis) em bens. Vicente recebeu de itens têxteis duas redes e duas toalhas de algodão de mãos. Ana também recebeu duas redes, duas toalhas de mão, mas uma era de linho e o diferencial foi uma toalha de mesa de algodão.57

53

O escravo Marcos foi arrematado pelo valor de 102$500 (cento e dois mil e quinhentos réis), sendo 45$000 (quarenta e cinco mil réis) destinados aos sufrágios de sua alma, e 51$060 (cinquenta e um mil e sessenta réis) ao pagamento do funeral. O restante, 6$440 (seis mil, quatrocentos e quarenta réis) foi dividido entre os seus herdeiros, 3$270 (três mil, duzentos e setenta réis) pagos a Vicente, e 3$170 (três mil cento e setenta réis) à Ana. ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 7 verso - 12. 54 ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 13 e 22. 55 ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folha 23. 56 ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folha 7 verso. 57 ARQ/MRCI – Inventário de Ana de Campos, folhas 8 verso – 9 verso.

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Quadro 19 - Segundo casamento de José do Amaral Gurgel

Fonte: Genealogia Paulistana58

Inácia Leite de Almeida, segunda esposa de José faleceu em 1801, e neste mesmo ano José se casou pela terceira vez. 59 Da união entre José e Inácia que durou trinta e três anos, nasceram sete filhos. No inventário de Inácia foram arrolados muitos bens, compostos em sua maioria das ferramentas e apetrechos de trabalho ligados à atividade açucareira, benfeitorias, canaviais e engenho. Dos nove bens de raiz seis localizavam-se no bairro do Buru, região atualmente pertencente à cidade de Salto, vizinha a Itu. No que se refere aos itens têxteis, encontramos apenas um par de lençóis de pano de linho e uma colcha de chita forrada de baeta vermelha, cada item avaliado em 6$400 (seis mil e quatrocentos réis), valor semelhante ao dos móveis, 13$200 (treze mil e duzentos réis), que corresponde apenas a 0,07% do total de bens.60 Tabela 8 - Composição dos bens dotados aos filhos de Inácia e José do Amaral Gurgel Ano em que casou Escravos Vestimenta Roupa da casa Móveis Utensílios domésticos

Maria 1791

Escolástica 1796

Francisca 1797

Inácia 1801

José 1798

336$000 41$760 13$920

171$200 34$200 5$440

226$400 29$400 Não consta

465$800 49$600 11$200

128$000 Não consta Não consta

1$280 3$620

3$200 $800

3$200 5$300

2$000 20$600

Não consta Não consta

58

Esquema genealógico baseado em dados de LEME, Genealogia Paulistana. p. 123, volume VI. Disponível em: . Acesso em: 14.out.2014. 59 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... vol. 1, p. 270. Disponível em: . Acesso em 18.set.2014. 60 ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 15.

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Não consta Não consta Não consta $560 Não consta Ferramentas 6$400 6$400 Não consta 16$000 8$000 Animais 9$000 4$000 6$000 Não consta Não consta Selas Não consta Não consta Não consta 7$050 3$200 Objetos de uso pessoal 2$000 4$000 4$000 20$000 Não consta Joias 150$000 150$000 150$000 Não consta Não consta Terras 41$120 1$300 7$500 $960 Não consta Matéria prima ou produção caseira Não consta 400$000 600$000 Não consta Não consta Dinheiro Total 605$100 780$540 1:031$800 593$770 139$200 Fonte: Inventário de Inácia Leite de Almeida, folhas 29-40, Genealogia Paulistana, v. 4 , p. 123-125

A tabela acima evidencia a composição dos dotes recebidos pelos irmãos, com os anos dos respectivos casamentos e valores. Embora os valores apresentem disparidade, os dotes eram compostos dos mesmos objetos. As três primeiras filhas que se casaram receberam parte de uma propriedade no mesmo valor, 150$000 (cento e cinquenta mil réis). Como roupas da casa constam alguns lençóis, coberta e toalhas, já em joias, todas receberam brincos de ouro. Os outros dois irmãos João Batista e Bento eram solteiros. O único irmão homem casado, José, recebeu um valor inferior aos das irmãs. José é o único caso em que observamos um filho receber dote.61 E também figura como um dos poucos casos onde um filho recebe dote em nossa amostra. É notável que houve uma preocupação do pai em dotar as filhas de modo semelhante em relação às vestimentas: Quadro 20 - Roupas recebidas em forma de dote pelas filhas de Inácia e José do Amaral Gurgel Peça Capa Manto Roupa inteira Saia Total

Maria Não consta

Escolástica Francisca Inácia De cassa grossa, De cassa grossa De cassa grossa 4$000 branca, 3$000 branca, 4$000 De seda preto, De seda preto, De seda preto, 6$400 De seda preto, 6$400 10$000 6$400 De cetim preta, De cetim preta, Não consta De cetim riscado, 15$360 13$800 20$000 De cetim riscado de De cetim branca e a De cetim riscado de De cabaia cor de flores, 20$000 barra azul, 6$400 flores, 20$000 rosa, 19$200 41$760 34$200 29$400 49$600 Fonte: Inventário de Inácia Leite de Almeida, folhas 29-37.

61

Na relação dos herdeiros, consta a anotação ao lado do nome (dotada) para as filhas e também para o filho José. ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 4.

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Os pais seguiram um padrão para determinar as vestimentas para as filhas na ocasião do casamento. A escolha pelas peças acima mencionadas talvez se pautasse por se constituírem em um padrão de vestimenta para uso externo ao domicílio, em eventos ou espaços públicos. Mantos pretos de seda e saias constam em todos os dotes, com variação do tecido para Inácia, que recebeu uma saia de cabaia enquanto suas irmãs receberam de cetim, com variação nas cores e estampas. A principal variação foi que Francisca não recebeu uma roupa inteira de cetim e Maria não ganhou uma capa de cassa, como suas irmãs. Apesar da diferença monetária observada nos dotes de uma para outra filha, o padrão de peças é muito semelhante. Em outros inventários, encontramos registros de roupas nos bens doados em dotes. Vejamos alguns casos: Quando suas filhas Luzia e Isabel se casaram, respectivamente em 1749 e 175062, João de Mello Rego as dotou de forma muito semelhante: escravos, terras, animais, alguns móveis como camas, bofetes, catres, e utensílios domésticos, entre os quais bacias e colheres. Ambas receberam colchão, lençóis de linho e algodão, algumas toalhas, e um cobertor cada uma. A diferença entre os dotes das irmãs pode ser observada na presença de alguns itens mais valiosos: Luzia recebeu um par de brincos pequenos de ouro e “um manto de seda que se comprou para o seu dote”.63 Para Isabel, o diferencial foi “um cortinado de algodão fino, todo quarteado de rendas”. 64 A família gozava de uma boa situação econômica e quando as filhas se casaram, os pais quiseram proporcionar às mesmas comodidade e alguns mimos, cedendo bens diversificados de uso doméstico, semelhante ao padrão de dotes que Nazzari observou para o século XVIII em São Paulo, composto por peças de enxoval, de uso pessoal e de joias. Luzia, e as quatro filhas de José do Amaral Gurgel, receberam um manto em seus dotes. Paulo Garcez Marins ressaltou o registro desta peça pelos viajantes no início do século XIX em terras paulistas. “Landseer, Debret e Hildebrandt retrataram mulheres de elite e do povo com mantilhas e rebuços de baeta, que serviam para o recato herdado do 62

LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana...Disponível em: .p. 155. 63 AESP - Auto de contas de testamento de João de Mello Rego, folha 4 verso 64 AESP - Auto de contas de testamento de João de Mello Rego, folha 5

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cerimonial aristocrático português.”65 Segundo Bluteau, o manto era “uma espécie de véu, com que cobre a mulher a cabeça, e ás vezes o rosto, ao sair fora de casa.” 66 Além dos mantos, encontramos também mantilha, que de acordo com o mesmo autor “uma espécie de véu ou capa sem cabeção nem talho, à medida do pescoço, que se põem sobre a cabeça ou ombros(...) é mais comprida que a capinha e menos autorizada do que o manto (...) era também uma espécie de banda traçada, que traziam as mulheres em lugar dos capotes, e hoje só as usam as mulheres do povo, e em lugar de mantos na Beira.”67 No capítulo O mito da dona ausente, Maria Odila Leite da Silva Dias atestou que durante o século XVIII e até meados do século XIX, “as grandes e raras damas não se deixavam ver quase nunca e, quando o faziam, era com grande ostentação de roupas.”68 O uso do manto escondia o rosto e boa parte do corpo da senhora, mas por outro lado, atestava a distinção e evidenciava sua condição, de honra por cobrir-se e de riqueza quando o manto era de um tecido valioso e ornamentado. Mas para os governantes portugueses, esse hábito das senhoras causava estranhamento, pois em 1775 Martim Lopes reclamou sobre a discrição das paulistas e em 1810, Franca e Horta instituiu um alvará proibindo o uso de rebuços e baetas negros, com o intuito de “forçar a adoção de costumes mais burgueses.”69 Em Itu, até o ano de 1808 a posse de mantos e capas foi recorrente na documentação, indicando semelhança com os costumes da vila de São Paulo. A utilização do manto, mantilha e capas por mulheres na América Portuguesa estava, portanto, relacionada à tradição portuguesa, na qual a mulher deveria cobrir seu rosto e boa parte do corpo ao sair de casa, ou ao participar de algum evento que demandasse respeito, recato. Dotar a filha com um manto mais do que providenciar uma 65

MARINS, Paulo César Garcez. “Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos”. In: SETUBAL, Maria Alice (coord.). Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos. Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura Ação Comunitária, São Paulo: CENPEC, Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2004. volume 2.p. 125 66 BLUTEAU, Raphael. VocabularioPortuguez... p. 302-303. Disponível em: . Acesso em 25.set.2014. 67 Vocábulo mantilha, Vide BLUTEAU, Raphael. VocabularioPortuguez... p. 301-302. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/mantilha> . Acesso em 03.nov.2014. 68 “O mito da dona ausente” In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 98. 69 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano... p. 100.

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peça de roupa, poderia também significar um desejo de demarcação social, de comunicar perante a sociedade seu novo estado de mulher casada e exigir respeito. Muriel Nazzari apontou uma significativa mudança na composição dos dotes entre os séculos XVII e XVIII em São Paulo. No primeiro, os dotes eram compostos de meios de produção e índios, e no segundo, passaram a ter objetos ligados ao enxoval e joias. 70 Para Itu, os poucos registros de dotes que encontramos confirmam essa mudança no perfil dos objetos dotados. Embora eventualmente aparecessem algumas ferramentas, a impressão é de que os pais tentavam garantir um mínimo de conforto às filhas, cedendo além de roupas de casa, um ou dois escravos. A posse de escravos permitia ao proprietário não desempenhar atividades manuais, menos nobilitantes. Dona Maria Paula, filha de Salvador Jorge Velho, por ocasião de seu casamento, recebeu alguns pratos, colheres, uma bacia de arame, um candeeiro, três escravas, um cavalo cego de um olho, um xairel e capelada de pano encarnado, e um pano de cortina de algodão e forro. Xairel consistia em uma “Cobertura que se põe sobre a anca de cavalgadura, feita de tecido ou de couro, sobre a qual se põe a sela, evitando-se, assim, que haja ferimento por atrito. O mesmo que gualdrapa, sobreanca.” 71 Nazzari observou que cavalos entravam com frequência nos dotes, mas que não poderiam ser considerados “meios de produção, pois frequentemente eram cavalos de montaria destinados ao uso da noiva.”72 Por incluir o xairel e outros adereços de montaria como a capelada, provavelmente o cavalo que Salvador doou à filha era para seu uso pessoal. Outra categoria de bens presente em todos os dotes das filhas de José do Amaral Gurgel foram as joias. Maria, Francisca e Escolástica receberam um par de brincos de ouro com pedras encarnadas, que valiam entre 2$000 (dois mil réis) e 4$000 (quatro mil réis). Inácia do Amaral por sua vez, recebeu “um par de brincos com seu laço de ouro com

70

NAZZARI, Muriel. O desaparecimento... p. 122. Informação disponível em: . Acesso em 04. mar.2014. 72 NAZZARI, Muriel. O desaparecimento... p. 123. 71

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pedra”, avaliado em 12$000 (doze mil réis). 73 Luzia também recebeu um par de brincos pequenos de ouro. Nestes dois casos, os itens dos dotes são muito semelhantes. As joias legadas em dote serviam de adorno para as filhas mas também como ressaltado por Madureira, como reserva de valor, para remediar alguma situação adversa. Nas dívidas devidas ao monte de Inácia e José do Amaral Gurgel, observamos que todas eram créditos, nos quais várias pessoas deviam dinheiro ao casal, contabilizando a expressiva quantia de 4:213$743 (quatro contos, duzentos e treze mil, setecentos e quarenta e três réis). 74 Só o capitão Bernardo de Quadros Aranha, presente em nossa amostra, possuía um crédito já vencido no valor de 1:600$000 (um conto e seiscentos mil réis) 75. Nuno Madureira ressaltou que “para suportar a demora na realização de lucros sobre as verbas avançadas é indispensável uma certa disponibilidade financeira. Assim, apenas as pessoas com níveis de riqueza muito elevados se deixam tentar por este tipo de investimentos.”76 Este era o caso de José do Amaral Gurgel, pois a maioria dos créditos arrolados já estavam vencidos. Milena Maranho ressaltou o papel crucial dos créditos em São Paulo durante o século XVII, cuja característica também pode ser observada no século XVIII na vila ituana. Segundo a pesquisadora, o crédito era como uma promessa monetária, o empréstimo que o efetivara servia como mediador nas relações entre credores e devedores, ou seja, crédito e dívida eram elementos inseparáveis que regulamentavam as „boas relações‟, tendo em vista a ostentação de bens e um nome conhecido por parte do devedor, aquele que obtinha o crédito frente ao credor. Esse era o papel do crédito enquanto forma de viver em sociedades onde o costume era considerar o lucro dos empréstimos, as boas relações e a posição social, mantida também pela situação de credor 77.

Na partilha dos bens do casal José e Inácia, somando-se os meios-dotes citados, o monte-mor foi expressivo: 21:671$220 (vinte e um contos, seiscentos e setenta e um mil, duzentos e vinte réis). José recebeu quase onze contos de meação, e cada um dos herdeiros, 1:818$814 (um conto, oitocentos e dezoito mil, oitocentos e quatorze réis). 73

ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida. ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folhas 22 verso – 23 verso. 75 ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 23. 76 MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 60. 77 MARANHO, Milena Fernandes. A opulência... p. 155. 74

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Nas dívidas do casal, constam 16$000 (dezesseis mil réis) ao Reverendo presidente do Carmo, José França, referente ao “hábito e capa com que foi amortalhada sua inventariada mulher”78. Assim como fez para a sogra de seu primeiro casamento, José providenciou a mortalha para sua segunda esposa no momento do sepultamento. Como mencionado acima, José do Amaral Gurgel contraiu terceiro matrimônio no mesmo ano em que Inácia faleceu. Com Gertrudes de Camargo Penteado foi casado entre 1801 e 1806, teve uma filha, Ana Antonia. Quadro 21 - Terceiro casamento de José do Amaral Gurgel

Fonte: Genealogia Paulistana79

José do Amaral Gurgel faleceu em 1806, com testamento e inventário, aos 74 anos, segundo dados dos maços de população.80 Irmão professo da Ordem Terceira Carmelita, Gurgel pediu para ser amortalhado com o hábito da ordem e que sua missa de corpo presente fosse celebrada “por todos os sacerdotes que houverem”. 81 No testamento deixou alguns escravos forros, e instruiu para que sua terça fosse dividida entre sua esposa Gertrudes e sua última filha, Ana Antonia. O inventário póstumo de José Gurgel apresenta uma grande lacuna, de aproximadamente setenta páginas. O arrolamento dos bens iniciou-se pelos objetos pertencentes ao sítio do Buru, cuja maioria relacionava-se ao engenho, ferramentas, animais, escravos, armas. No que se referem aos objetos têxteis, possuía roupas de casa como toalhas, fronhas, lenços, cobertor, seis redes de algodão e 54 sacos de pano de

78

ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, folha 24 verso. LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... vol. VI, p. 127. Disponível em: < http://www.arvore.net.br/Paulistana/Godoys_3.htm> . Acesso em 10. dez. 2014. 80 Em 1773 foi declarado com 41 anos. Cf. AESP - Maços de população, vila de Itu. 81 ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folha 2. 79

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algodão.82 Da avaliação do sítio até a partilha está a lacuna no documento. Pelo padrão da documentação em geral, adiante os avaliadores estariam mencionando os bens localizados na vila. No pagamento das legítimas aos herdeiros, foi possível determinar alguns dos bens que José e Gertrudes tinham na vila, como as peças de roupas e outra propriedade, situada na vila de São Carlos. A seguir, as roupas encontradas na partilha. Quadro 22 – Relação das roupas e herdeiros na partilha dos bens de José do Amaral Gurgel, Itu, 1806. Peça/Herdeiro

Gertrudes

Calção

Não consta

Calção e colete Casaca

Chambre Meia

Total

Neto Estanislau

Neto Rafael

Não consta

Não consta

Não consta Não consta

Neta de Gertrudes, casada com João Evangelista do Amaral De veludo preto, 1$600 De fustão, 2$600 Encarnada, 2$000

Não consta De chita, 5$000

Não consta

Não consta

Não consta

Não consta De cetim azul, 4$800 Não consta

Filha Maria do Amaral casada com Manoel Vaz Botelho Não consta Não consta De droguete preto, 4$000 De chita, 2$500 Não consta

Dois pares de Não consta Não consta Não consta algodão, 1$140 1$140 6$200 5$000 4$800 6$500 Fonte: ARQ/MRCI - Inv. José do Amaral Gurgel, folhas 112-123 verso.

A viúva Gertrudes herdou as roupas da casa e os dois pares de meias algodão.83 As roupas de uso pessoal de José foram divididas entre a viúva, a filha e os netos. Observa-se uma preferência pelos netos em detrimento dos filhos e genros, embora figure a filha Maria e o marido Manoel recebendo uma casaca e um chambre. Qual critério seria utilizado para partilha de roupas quando não havia indicações nos testamentos? Apenas o valor? A possibilidade de a peça servir a determinado herdeiro poderia pesar na escolha? Talvez fosse um critério conceder alguma peça de roupa do inventariado a um herdeiro que já não tivesse recebido dote, como é o caso da maioria dos herdeiros relacionados, excetuando a filha Maria dotada. Os demais herdeiros receberam uma parcela da produção de açúcar. 84 82

ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folha 14. ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 113 – 117. 84 ARQ/MRCI – Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 124 – 130 verso 83

163

Se considerarmos o padrão observado na forma de arrolar os bens nos inventários, as roupas de José ficavam na casa na vila. Além do sítio Boa Vista, localizado no bairro do Buru, José possuía um sítio e engenho na vila de São Carlos (atual Campinas). 85 No censo de 1803, ele apresentou como produção 800 arrobas de açúcar produzido em seu engenho, sendo 700 de açúcar fino, 80 de redondo e 20 de mascavo, maior quantidade registrada pelos senhores de engenho da amostra. O caso de José do Amaral Gurgel sinaliza a tendência observada por Bacellar no início do século XIX, no que concerne às aquisições de propriedades nas regiões próximas à cidade de origem realizada por famílias ituanas tradicionais, localidade denominada Frente Pioneira, que mais tarde abrigariam as principais fazendas cafeeiras: Campinas, Limeira, Rio Claro, adentrando mais ao interior. Mas o investimento de Gurgel foi diferente do padrão geral apontado por Bacellar, de jovens que venderam sua parte da propriedade paterna, ou receberam dote ou adiantamento da herança e investiram em terras no sertão, mais acessíveis do que na vila de origem e iniciaram seus negócios com recursos reduzidos.86 José era um senhor na casa dos setenta anos na década de 1800, na altura, já era um reconhecido senhor de engenho na vila ituana, sendo também investidor em um engenho na vila vizinha, contando na ocasião, com grande capital. Seu monte-mor foi calculado em 26:187$980 (vinte e seis contos, cento e oitenta e sete mil, novecentos e oitenta réis). Retirando-se 6:823$490 (seis contos, oitocentos e vinte e três mil, quatrocentos e noventa réis) de dívidas, restaram 19:364$490 (dezenove contos, trezentos e sessenta e quatro mil, quatrocentos e noventa réis) líquido para a partilha. Gertrudes herdou 9:682$245 (nove contos, seiscentos e oitenta e dois mil, duzentos e quarenta e cinco réis). A outra metade de igual valor, acrescidos os meios dotes e repartida, gerou a herança no valor de 882$616 (oitocentos e oitenta e dois mil, seiscentos e dezesseis

85

ARQ/MRCI - Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 121 – 129 verso. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste paulista, 1765 – 1855. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1997. p. 160. 86

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réis) para cada herdeiro. A legítima foi de um valor baixo pois o número de herdeiros era grande. Em relação à partilha dos bens de raiz, observamos que o sítio de São Carlos foi dividido entre os filhos e genros, com uma grande diferença de valores atribuídos a cada herdeiro: de 33$139 (trinta e três mil, cento e trinta e nove réis) a 185$158 (cento e oitenta e cinco mil, cento e cinquenta e oito réis). 87 Porém, o único filho que herdou parte do sítio do Buru foi o tenente José do Amaral Gurgel, que também recebeu a maior parte do engenho de São Carlos. Não sabemos se a escolha de José ocorreu devido aos valores dos bens em partilha, ou se havia uma estratégia de concentrar neste herdeiro a posse e a incumbência de continuar os negócios do seu pai. José não era o primogênito, mas sim o sétimo filho, da união de Gurgel com Inácia. Talvez este filho tenha demonstrado mais habilidade ou competência para dar continuidade aos negócios iniciados pelo pai, ou pelos valores já herdados pelas filhas nos dotes (mesmo trazendo à colação), coube ao irmão a maior parcela da propriedade. 88 Carlos Bacellar ressaltou duas alianças entre membros desse ramo Amaral Gurgel com a influente família sorocabana Aires de Aguirra: o casamento de Américo Antonio Aires com Francisca do Amaral Gurgel, e do tenente José do Amaral Gurgel com Gertrudes Eufrosina Aires. Ambas as uniões constituíram riqueza, com engenhos e grande escravaria.89 Podemos observar a atuação de ramos da família em vilas próximas a Itu, através da aquisição de terras em São Carlos (Campinas) ou realizando alianças com famílias de destaque de Sorocaba, visando à manutenção e à prosperidade dos negócios. 90 De acordo com Bacellar, na América Portuguesa, os casamentos eram importantes estratégias de manutenção de riquezas entre os senhores de engenho e grandes proprietários 87

ARQ/MRCI - Inventário de José do Amaral Gurgel, folhas 112 – 130 verso. Em alguns casos os filhos não recebiam todo o valor da legítima quando o primeiro genitor falecia, recebendo apenas na herança posteriormente, no falecimento do segundo genitor, motivo de haver tamanha diferença de valores herdados entre irmãos. Este não era o caso de José, pois no inventário de sua mãe em 1801, recebeu a mesma legítima materna, de seus irmãos, no valor de 1:818$814 (um conto, oitocentos e dezoito mil, oitocentos e quatorze réis). ARQ/MRCI – Inventário de Inácia Leite de Almeida, 1801, vila de Itu, folhas 94 verso – 96 verso. 89 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver...p. 107-108. 90 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver...p. 107-108 88

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do Oeste Paulista. No trabalho sobre a vila de Sorocaba durante a década de 1790, o autor notou uma tendência interessante entre as famílias sorocabanas em estabelecer alianças através do casamento com “famílias do oeste paulista, que, naquele exato momento enriqueceram rapidamente.”91 Para Bacellar, “essa união com as famílias do açúcar permitiu aos sorocabanos penetrar nos restritos círculos dos grandes senhores de engenho. Foi através desses casamentos que ascenderam, em sua maior parte, às titulações da nobreza imperial.”92 No testamento de Simão de Godoy Moreira, três filhos deviam para o seu espólio. Manoel de Godoy Ribeiro devia 496$000 (quatrocentos e noventa e seis mil réis) mais juros, Gaspar de Godoy Moreira, 6$000 (seis mil réis). Já Feliz de Godoy devia um escravo no valor de 150$000 (cento e cinquenta mil réis), um cavalo, um par de pistolas, um item ilegível no valor de 4$000 (quatro mil réis), um capote de pano avaliado em 2$000 (dois mil réis) e um cobertor de papa em 3$200 (três mil e duzentos réis). 93 O pai registrou que o valor desses bens deveria ser abatido de sua legítima. Quanto à doação de roupas, em nossa amostragem apenas dois testadores fizeram alguma referência às roupas para doação. Francisco Novaes de Magalhães, importante comerciante da vila de Itu, delegou à sua testamenteira (sua esposa) a distribuição de “roupas e necessários para os pobres desta vila”, no valor de 400$000 (quatrocentos mil réis).94 E o seu cunhado, o padre Manoel da Costa Aranha igualmente registrou: “declaro que as roupas, isto é, a de vestir se reparta pelos pobres desta Vila.” 95 Aliás foi o próprio Manoel Aranha quem redigiu o testamento de Francisco. Pelas disposições de ambas as doações serem idênticas, o padre pode ter influenciado Francisco Magalhães em tal decisão. Curiosamente, eles não tinham roupas arroladas em seus inventários. Talvez suas vestimentas tenham sido doadas logo após a morte. No entanto, no testamento de Francisco havia menção para que fosse sepultado com o hábito de São Francisco. 91

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma vila colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2001. p. 109. 92 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver...p. 109. 93 AESP - Auto de contas de testamento de Simão de Godoi Moreira, folha 4 94 AESP - Testamento de Francisco Novaes de Magalhães, folha 6 95 ARQ/MRCI - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folha 6.

166

A princípio, a doação de roupas parece uma decisão simples. No ato de testar, o indivíduo enfermo ou considerando a iminência da morte poderia (desde que em perfeito juízo) deliberar sobre o destino de seus bens. 96 Nos dois exemplos em que encontramos o desejo de que as roupas fossem doadas aos pobres da vila, precisamos atentar a um aspecto importante. Considerando que no caso o indivíduo tivesse roupas, provavelmente algumas peças não seriam doadas pelo alto valor, ou pelo elemento que determinada roupa pudesse significar. Por exemplo, não seria viável doar uma farda, um hábito de ordem terceira, qualquer elemento que demarcasse uma posição ou pertencimento a um grupo social restrito. No caso de Francisco, que indicou a doação de roupas ou necessários em um valor específico, consta ao final do Auto de Contas de Testamento, vários recibos de pagamento de esmolas, em dinheiro.97 Manoel Aranha indicou o desejo de ser sepultado com vestes sacerdotais, e que era “sacerdote do habito de São Pedro”.98 Para os pobres de outras freguesias, deixou doação em dinheiro99. Ao final do seu inventário, constam papéis de arrematação de açúcar e de escravos, porém sem condição de leitura. Avaliando o processo de arrematação dos bens, necessários em alguns casos de partilhas e quitação de dívidas, Luciana da Silva pontuou para São Paulo, na primeira metade do século XVII, que Os leilões de bens de órfãos colocavam em circulação uma quantidade significativa de objetos e bens, que passavam da condição de itens do patrimônio familiar ao estado de mercadorias. Esses artefatos eram avaliados no momento da feitura do rol de bens de cada inventário, sendo essa avaliação o preço mínimo pelo qual deveriam ser vendidas tais coisas em praça pública. Os leilões atendiam às necessidades diversas do cotidiano dos compradores, como roupas, alfaias, móveis, e permitiam adquirir meio para incrementar a fazenda, por meio da aquisição de animais, equipamentos de trabalho, materiais de construção e ferramentas.100

96

Cf. Título 81, Livro 4 das Ordenações Filipinas. Disponível em: . Acesso em 3.nov.2014. 97 AESP - Auto de Contas de Testamento de Francisco Novaes de Magalhães, folhas 8 – 23 verso. 98 ARQ/MRCI - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folha 4. 99 Cf. páginas 177 e 178. 100 SILVA, Luciana da.Artefatos... p. 158

167

O leilão de objetos era uma oportunidade de reunir verba para o espólio, principalmente quando algum item obtinha um valor maior do que o mínimo estabelecido pelo avaliador, como no caso da escrava de Quitéria de Oliveira, que primeiramente havia sido avaliada em 128$000 (cento e vinte e oito mil réis), mas foi arrematada por 145$000 (cento e quarenta e cinco mil réis.) 101 Ao analisar o perfil dos bens, notamos que a maioria dos itens que iam à arrematação eram escravos. Talvez pela demanda e pelos valores mais altos em relação a outras categorias de bens, destinavam-se a leilão antes de outros objetos, como móveis, roupas, ferramentas. Antônio de Aguiar da Silva deixou dezesseis herdeiros, onze do primeiro casamento com Maria Bicudo Chassim e cinco da união com Gertrudes Ferraz de Campos, sua segunda esposa e inventariante. Alguns bens foram à arrematação antes de proceder à partilha. As duas peças de roupas, um vestido de lemiste preto e um requelo 102 de pano azul usado estavam com os nomes de dois filhos ao lado do preço na avaliação, mas foram levadas ao pregão.103 Existe apenas o registro da arrematação dos escravos, com os valores e nomes, dos outros objetos, inclusive das roupas nada consta. Neste caso, não foi possível repartir os bens entre os herdeiros. Devido ao grande número de filhos, foi necessário levar uma parte dos bens a pregão. Como a legítima foi pequena, 12$745 (doze mil, setecentos e quarenta e cinco réis), muito dificilmente encontra-se bens em valores baixos nessa faixa para todos os herdeiros. Em inventários de indivíduos casados, muitas vezes, localizamos apenas as roupas do falecido, não do casal e de seus filhos. Pela legislação, deveriam constar todos os bens do casal. Nuno Madureira apontou que na documentação portuguesa o vestuário dos menores era considerado propriedade pessoal não partível, sendo ignorados pelos

101

ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira, folhas 3 verso e 16. Não foi possível identificar o que seria um requelo. 103 É comum observar nos inventários póstumos ituanos a escrita de nomes dos herdeiros ao lado da descrição dos objetos ainda no arrolamento, realizada pelo escrivão. Nos parece um esboço da divisão que será registrada mais adiante. 102

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avaliadores.104 Em relação aos inventários da vila de São Paulo entre os séculos XVI e XVII, Luciana da Silva observou que quando apenas são arrolados os bens do cônjuge falecido e nenhum do viúvo, em uma situação econômica não muito favorável, os bens muito provavelmente seriam levados a pregão para arrecadar dinheiro para partilha e para saldar as dívidas. Desta forma, se fossem arroladas as roupas da viúva ou viúvo, as mesmas teriam que ser leiloadas, deixando a referida pessoa sem roupa alguma. Nesses casos, parece-nos que os avaliadores respeitavam essa condição e não relacionavam as roupas de viúvos e menores no espólio. 105 O inventário do capitão Antônio Pompeu Bueno, é um caso único de nossa amostra. Ao encerrar as contas, seu espólio apresentou um valor negativo. Em bens, o casal possuía aproximadamente 697$000 (seiscentos e noventa e sete mil réis), mas em dívidas, possuíam 1:045$602 (um conto, quarenta e cinco mil, seiscentos e dois réis). Provavelmente Antônio foi enterrado com o seu hábito de terceiro do Carmo, como era costume. Outra roupa que ele possuía era a farda, de pano de fustão. No documento não foi arrolada nenhuma peça de roupa de Dona Antônia de Arruda Góis, nem de seus filhos. 106 Todos os bens do casal foram levados a leilão.107 A situação de Dona Antônia era delicada, pois possuía quatro filhos com idade entre dois e doze anos, além de estar grávida no momento em que seu esposo veio a falecer. Em 1795, um ano após o falecimento de Antônio, Dona Antônia casou sua primeira filha Anna então com treze anos com Antônio de S. Paio Góis. 108 Tal enlace seria uma opção viável para a filha. A morte do chefe de família geralmente alterava a composição material do domicílio, bem como a composição familiar, especialmente em relação aos órfãos.109

104

MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários... p. 14. Luciana da Silva observou em alguns inventários de moradores da vila de São Paulo esse costume do avaliador não arrolar as roupas do cônjuge no momento do inventário póstumo. SILVA, Luciana da.Artefatos...p. 213. 106 ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Pompeu Bueno. 107 Os recibos das arrematações constam às folhas 5 – 7. ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Pompeu Bueno. 108 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia paulistana, p. 393. Disponível em: . Acesso em: 30. set.2014. 109 SILVA, Luciana da.Artefatos...p. 158 105

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O português Antônio Antunes Pereira contraiu o primeiro matrimônio com Rita Victoria de Santana, com quem teve três filhos. Na segunda união, com Francisca Xavier de Almeida, teve cinco filhos. Antônio e Francisca pertencem à nossa amostragem. Antônio possuía o título de alferes e seu inventário dá indícios de que possuía uma loja, mas não encontramos dados que confirmem essa ocupação na obra de Nardy Filho, nem em Silva Leme.110 Antônio faleceu em 1802 e Francisca, em 1805. Comparando os dois inventários, foi possível observar que os principais bens continuaram com Francisca, apesar da partilha de Antônio contemplar os filhos de seu primeiro casamento. Pela meação, Francisca ficou com os oito escravos que possuíam, dois dos três bens de raiz, e mais alguns bens de valores menores, como livros e imagens religiosas. As roupas do inventariado foram divididas de forma equânime entre seus filhos homens. Antônio, o filho mais velho de 23 anos, herdou uns calções de ganga branca açucarada, forrado às dianteiras de pano de linho novo, 2$000 (dois mil réis) e uma véstia também de ganga forrada de linho, mas já usada, no valor de 1$280 (mil duzentos e oitenta réis).111 Francisco Cipriano, de 18 anos, recebeu uma véstia de pano azul entrefino, 2$000 (dois mil réis) e um capote jozesinho de pano azul usado, 1$600 (mil e seiscentos réis). Do segundo casamento, o filho José, então com 12 anos de idade, ficou com o “casacão de pano azul entrefino novo com espeguilha na gola e canhões [-] abotoadura amarela, 10$000 (dez mil réis)”. Ao seu irmão João, de apenas 8 anos, coube um colete de pano azul entrefino e um vestido do mesmo tecido novo, avaliados respectivamente em 1$000 (mil réis) e 4$000 (quatro mil réis).112 José recebeu apenas uma peça de roupa, diferente de seus irmãos que herdaram duas peças. Porém, o casaco que lhe coube era novo, tinha vários detalhes, era composto de um tecido de boa qualidade, tendo recebido um valor alto, 10$000 (dez mil réis) em

110

Na descrição de seus bens de raiz, junto às moradas de casas na Rua da Baratas, havia “armação da loja” de três lanços, que vão até o Beco das Casinhas. Inventário de Antonio Pompeu Bueno, folha 11 verso. 111 ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira, folha 8. 112 ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira, folha 8.

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comparação com outros itens. Em relação às demais categorias de bens, o vestuário de Antônio valia 38$280 (trinta e oito mil, duzentos e oitenta réis), valor significativo, pois as roupas da casa somaram 10$560 (dez mil, quinhentos e sessenta réis), os móveis alcançaram 17$200 (dezessete mil e duzentos réis), mas representava 9,7% do valor da escravaria que era de 393$200 (trezentos e noventa e três mil e duzentos réis). Para a meação da viúva, além do tapete e das toalhas, guardanapos e colcha, encontramos alguns calções de pano azul forrados de Holanda já usados, $800 (oitocentos réis) e o hábito e capa de camelão pardo, novos, avaliados em 10$000 (dez mil réis). 113 Destas roupas, apenas o tapete parece constar em ambos arrolamentos. Apesar da semelhança, não podemos afirmar com certeza que o “tapete encarnado com ramos novo, de 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis)” 114 poderia ser o mesmo “tapete de senhora, em bom uso, avaliado em 2$000 (dois mil réis) 115, três anos depois, pois esta última descrição não menciona a cor encarnada. Embora os valores avaliados possam ser tomados em conta para determinar a identificação da mesma peça, os critérios eram subjetivos, e variavam de pessoa para pessoa. Mesmo se tratando de um profissional, como ocorria em Lisboa, onde se contratava um oficial marceneiro para avaliar os móveis, alfaiates para avaliar as roupas, ourives para as joias e assim por diante. Na vila de Itu, não observamos essa prática, apesar de encontrar alguns oficiais, como o ferreiro Vicente Gonçalves Braga. Em nosso universo de análise, a circulação das roupas depois da morte do indivíduo ocorreu na partilha dos bens inventariados, realizada pelas autoridades competentes, como o juiz de órfãos e tutores no caso em que envolvia menor, e acompanhada de perto pelos herdeiros e pessoas próximas ao falecido. Em geral, notamos nas partilhas a atribuição de peças de roupas a herdeiros de acordo com a sua utilidade, condizentes a sua idade, para melhor aproveitamento dos bens. Em vida, a preocupação em prover bens e principalmente algumas peças de roupas importantes às filhas no momento em que casavam e formavam 113

ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira,folhas 8 – 8 verso. ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Antunes Pereira, folha 8 verso. 115 ARQ/MRCI - Inventário de Francisca Xavier de Almeida, folha 10. 114

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um novo domicílio ficou evidente nas relações de alguns bens concedidos em dotes. Outra característica importante foi a ausência de peças de roupas de crianças e da grande maioria dos viúvos relacionadas no rol de bens, uma garantia caso todos os bens fosse à leilão público.

3.3 O material e o imaterial nas aparências: religiosidade, representações e honra

Neste tópico partimos do ramo da família Aranha para discutir alguns aspectos relacionados à materialidade dos bens e à aparência, especialmente importantes no século XVIII e início do XIX. De proeminência na vila de Itu, a família Aranha atuou em diversas atividades e ramos, como no comércio local, ocupando cargos na administração, produção açucareira e sacerdócio. Os elementos observados através da documentação de quatro membros desta família são reveladores de aspectos importantes da sociedade de características de Antigo Regime, tais como as crenças e práticas relativas à religiosidade. No esquema abaixo, estão indicados em negrito os membros da família de João da Costa que pertencem a nossa amostragem. Quadro 23 - Família Costa Aranha

Fonte: Genealogia Paulistana

João da Costa Aranha foi casado duas vezes. De 1714 a 1740 sua esposa foi Maria Francisca Vieira, com quem teve sete filhos, sendo dois inventariados de nossa amostra: 172

uma filha, batizada com o mesmo nome de sua esposa, e o padre Manoel da Costa Aranha. 116Já com Gertrudes de Araújo Cabral, teve cinco filhos, dentre estes, o Capitãomor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha. Segundo Francisco Nardy Filho, João “era natural de S. João da Foz, cidade e bispado do Porto, Portugal. Foi morador em Itu, onde serviu os honrosos cargos de vereador, almotacé, alferes das ordenanças e capitão das mesmas. 117 O autor registrou que João da Costa Aranha era “possuidor de avultada fortuna”, mas não encontramos seu inventário póstumo, apenas os Autos de Contas de Testamento. Neste documento, consta como posse de João ouro em barra e dinheiro. Grande parte do documento trata dos bens pertencentes ao sequestro do Sargento-mor João de Souza Rodrigues.118 Sua filha Maria Francisca Vieira casou-se com Francisco Novaes de Magalhães no ano de 1743.119 Natural de Braga, Portugal, Francisco mudou-se para Itu e trabalhou com comércio.120 Deste casal, localizamos o inventário e o testamento de Maria, de seu marido Francisco, os autos de contas de testamento. Neste último, não foi mencionado estoque de loja, mas a seguinte menção: “declaro que tenho tido vários negócios, dos quais se me estão devendo quantias, que hão de contar dos créditos”.121 De acordo com Nardy Filho, na loja de Francisco “se abasteciam os fazendeiros de então, aos quais também Novaes de Magalhães servia de banqueiro, e os quais com ele saldavam suas dívidas no fim da safra de açúcar, gênero com qual Novaes de Magalhães negociava, costumando receber em arrobas de açúcar ou algodão.” 122 Outros inventariados da amostra também realizavam negócios com Francisco, a saber, João de Mello Rego

116

LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... Disponível em:< http://www.arvore.net.br/Paulistana/PBarros_2.htm> . Acesso em 19.set.2014. 117 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico da sua fundação e dos seus principais monumentos. Itu: Ottoni Editora, 2000a.vol. 1. p. 77. 118 AESP - Autos de Contas de Testamento de João da Costa Aranha. 119 LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana...p. 493. Disponível em: . Acesso em: 19.09.2014. 120 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. p. 223 121 AESP - Autos de Contas de Testamento de Francisco Novais de Magalhães, folha. 4 122 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. P. 22

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registrou em seu testamento que devia 40$000 (quarenta mil réis), e Ana de Campos, 22$180 (vinte e dois mil, cento e oitenta réis). No inventário de Maria Francisca Vieira de 1796, constam as dívidas que muitas pessoas contraíram com Francisco Novais de Magalhães, falecido em 1779. Pelo montante, confirma a informação de Nardy Filho de que Novais exercia a atividade de banqueiro, pois lhe deviam a soma de 20:154$653 (vinte contos, cento e cinquenta e quatro mil, seiscentos e cinquenta e três réis).123 O capitão João Fernandes da Costa, (cunhado de Maria Francisca Vieira) outro proprietário de loja, era também português, natural de Viana. 124 Carlos Bacellar assinalou que fazia parte da estratégia de construção e manutenção de fortunas do grande agricultor paulista realizar alianças matrimoniais de seus filhos com pessoas envolvidas no comércio: tropeiros, comerciantes de açúcar, negociante de escravos, pois “neste jogo, o parentesco – de sangue ou de compadrio – era usado como uma garantia a mais para a boa conclusão do negócio.”125 O comércio era associado aos ofícios mecânicos, tarefa depreciada entre a sociedade local, mas desempenhada por portugueses recém-chegados cada vez mais numerosos na capitania paulista.126 Como observou Maria Aparecida de Menezes Borrego, uma vez inseridos na sociedade colonial, os comerciantes da vila de São Paulo buscavam primeiramente através de casamentos com filhas de famílias tradicionais e posteriormente, participando de irmandades, confrarias e cargos na administração local o poder e a distinção social.127 Irmão de Maria Francisca Vieira, Manoel da Costa Aranha realizou “os seus primeiros estudos em sua terra natal com os franciscanos, do Convento de São Luís; seguindo depois para São Paulo, onde iniciou os seus estudos eclesiásticos, tendo recebido 123

ARQ/MRCI - Inventário de Maria Francisca Vieira, folhas 6 verso – 10. LEME, Luís Gonzaga da Silva. Genealogia Paulistana... p. 499. Disponível em: . 125 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra... p. 97. 126 BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil... p. 43 127 BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil... Cf. capítulo 3 124

174

as sagradas ordens a 29 de setembro de 1754”.128 Em Araçariguama foi vigário entre 1758 e 1764.129 Em 1764 foi nomeado vigário da vara da câmara eclesiástica de Itu, e em 1777, vigário encomendado da paróquia de Itu. De acordo com Nardy Filho, Manoel exerceu o paroquiato até 1790.130 Se analisarmos o inventário de Manoel da Costa Aranha pelo valor dos bens que possuía, 8:314$722 (oito contos, trezentos e quatorze mil, setecentos e vinte e dois réis) líquido, era um número considerável, mas não entra nas cinco maiores fortunas da amostra. Nem em relação ao número de objetos, era o arrolamento com mais itens. Porém em qualidade, os bens que o padre possuía em sua casa ao lado da Igreja do Bom Jesus são muito significativos. O escrivão criou o tópico Damascos para arrolar as peças confeccionadas com este tecido. Em nenhum outro inventário da amostra utilizou-se esse critério para arrolar os bens. Neste tópico, que os bens somam 57$200 (cinquenta e sete mil e duzentos réis), correspondente a 0,6% do total131, constam de Uma colcha de damasco grande forrada de tafetá amarelo, 14$000; uma dita de damasco pequena para cama, 10$000; uma bolsa de damasco com borlas e cordões de retrós carmesim, 3$200; três portadas de damasco com galão falso, 18$000, três ditas do dito mais pequeno (sic) com a mesma guarnição, 12$000.132

De acordo com Silva Pinto, portada era uma “porta grande com ornato. Portada de cortinas são duas cortinas e uma sanefa para ornar uma porta.”133 Como as de Manoel eram de damasco, pensamos se tratar de cortinas, conforme segunda definição acima. Sobre a bolsa, não foi possível determinar o seu emprego. A colcha de damasco combinava com a cama de jacarandá que tinha pés de cabra e cabeceira do mesmo tecido, avaliada em

128

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. p. 28 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. 130 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. 131 Retirando os valores referentes aos imóveis e escravos, as peças de damasco representavam 3,5% dos bens do padre Manoel. 132 ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 3 verso. 133 PINTO, José Maria Silva. Vocábulo Portada, disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/ptbr/dicionario/3/portada>. Acesso em: 01.out.2014. De acordo com Bluteau, sanefa era “um pedaço ou tira de pano, que se estende sobre a parte superior de uma cortina, etc.”, p. 469, disponível em :< http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/1/sanefa> . Acesso em 01.out.2014. 129

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32$000 (trinta e dois mil réis).134 Manoel tinha ainda outras duas camas, mais modestas: de madeira da terra, nos preços de 3$200 (três mil e duzentos réis) e $960 (novecentos e sessenta réis). Duas das camas contavam com cortinados: um confeccionado com chita e rendinha, em bom uso no valor de 12$000 (doze mil réis), e um cortinado de seda encarnada com babados de tafetá, 8$000 (oito mil réis). 135 Conforme apontado no espólio do padre Manoel, as camas eram itens valiosos em nossa amostra, pois os catres eram mais comuns e seus valores dificilmente ultrapassavam o valor mil réis, enquanto que as camas valiam até doze vezes mais, de acordo com os acessórios e os materiais empregados. Oito das trinta e uma cadeiras, e uma poltrona de Manoel possuíam assentos de damasco. Manoela Pinto da Costa registrou que além de um “tecido de seda com desenhos acetinados em fundo não brilhante”, damasco também poderia ser um “estofo de lã, linho ou algodão imitando o damasco de seda.”136 Pelo preço alcançado nas avaliações, as sete cadeiras de campanha feitas de jacarandá com assentos de damascos em 14$000, a dois mil réis cada, ou a “cadeira de braços de pau preto e assento de damasco amarelo em 3$200” (três mil e duzentos réis), nos faz acreditar que tratavam-se de estofamentos confeccionados com o tecido de damasco, não imitação. Mas como era um tecido de apelo visual muito grande e não acessível, compreendemos os esforços para criar imitações com matériasprimas mais comuns que o fio de seda. O padre Manoel da Costa Aranha, de acordo com o que foi possível observar de seu inventário póstumo, usufruía de um padrão considerável de conforto dentre os inventariados da amostra ituana. Além de seus vencimentos como pároco, seu sítio com engenho produzia açúcar e aguardente, contando com a mão de obra de dezenove escravos. Continuando os esforços de seu pai como tesoureiro da Igreja do Bom Jesus, não apenas desempenhando a função de sacerdote, Manoel investiu em construções na área em torno da Igreja do Bom Jesus e do Convento franciscano, que compunham três casas: duas

134

ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 3 verso. ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 3 verso. 136 COSTA, Manoela Pinto da. Glossário... p. 144. 135

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“pegadas” à Igreja e uma de frente a ela, com quintais, avaliadas no total em 1:700$600 (um conto, setecentos mil e seiscentos réis). 137 Na rua Direita, tem mais uma morada de casas, que está descrita como vizinha à casa de seu irmão por parte de pai, o Capitão-mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha, avaliada em 153$600 (cento e cinquenta e três mil e seiscentos réis). 138 Porém no testamento escrito no mesmo ano de falecimento, Manoel comentou que seu irmão Vicente morava em uma de suas casas, térrea. Com não possuímos o inventário do Capitão-mor, não foi possível avaliar qual informação procede. Nardy Filho comentou que Vicente teria falecido em uma situação próxima da miséria. Se assim foi, esta situação talvez explique viver em casa de seu irmão e a inexistência de um inventário póstumo. Mas como um homem influente e atuante por tantos anos no cargo de capitão-mor, Vicente muito provavelmente teria ao menos um documento mesmo sem bens, mas com créditos ou dívidas. Segundo Bacellar, Vicente foi um exemplo de acumulação de capital através da arrecadação de impostos, pois um ofício menciona que atuou juntamente com dois sócios como arrematante do contrato de dízimos entre os anos de 1780-1783.139 Manoel dispunha da única liteira mencionada em toda a amostra, arrolada entre os bens das casas da vila, descrita como “uma liteira preparada em 40$000 (quarenta mil réis).”140 Além a importância simbólica de possuir e circular pelos espaços públicos em uma liteira, o valor é superior à uma casa nova de dois lanços que Manoel possuía em seu sítio, avaliada em 25$600 (vinte e cinco mil e seiscentos réis) 141. A posse de cadeiras por si só já apontam um nível de distinção, mas o estofamento de damasco presente em parte das peças retrata uma situação de luxo e de conforto, pois uma cadeira estofada proporciona sensação de bem estar muito maior que uma sem. E seu estofamento não era de qualquer material, era feito com um dos tecidos mais caros disponíveis na vila. O damasco era um padrão frequente nos móveis e alfaias do sacerdote, 137

ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 6. ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 6. 139 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra...p. 171. Cf. nota 240. 140 ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 4. 141 ARQ/MRCI - Inventário de Manoel da Costa Aranha, folha 7 verso. 138

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presente em colchas e na guarda cama principal também. Manoel investiu em itens luxuosos para conforto doméstico, mas nas ruas da vila poderia desfrutar de uma distinção que poucos poderiam, carregado em sua liteira. Outro padre presente na nossa amostragem foi Antônio Francisco da Luz. Não encontramos nenhuma menção a seu nome ou algum cargo que tenha ocupado na vila de Itu. Antônio possuía uma capelinha em sua casa na Rua da Palma, mencionada na avaliação deste imóvel. No item Imagens, vasos, ornamentos e mais pertences estão arrolados bens que provavelmente pertenciam à capela que ele mantinha em sua casa. A capela era formada por dois oratórios, duas imagens de Cristo crucificado, nove imagens de santos, dois anjos, toalhas, alfaias litúrgicas (frontal, corporais), um missal, um ferro de fazer hóstias. Antônio possuía uma casula de damasco branca e encarnada para realizar os ofícios religiosos, avaliada em 6$400 (seis mil e quatrocentos réis). O objeto mais caro, porém, era um cálice de prata, colher dourada e a capa do mesmo avaliados em 20$850 (vinte mil, oitocentos e cinquenta réis), mas também havia duas jarrinhas de louça fina para flores em 2$000 (dois mil réis) e duas galhetas de estanho em $600 (seiscentos réis). 142 A capela nos fundos de sua casa contava então com os principais adereços decorativos e funcionais, como o ferro de fazer hóstias. O padre Antônio dispunha do espaço e dos objetos necessários para realizar cerimônias religiosas – ainda que para um número reduzido de pessoas. 3.3.1 A Família Costa Aranha e a Igreja do Bom Jesus O envolvimento de João da Costa Aranha com a igreja do Bom Jesus refletiu diretamente na composição material da mesma. O pai e seus dois filhos foram os responsáveis pela manutenção e ampliação do templo durante meados do século XVIII e as duas primeiras décadas do século XIX, como apontou Nardy Filho. Nos inventários e testamentos dos membros da nossa amostra também observamos um estreito vínculo entre a família Costa Aranha e a Igreja do Bom Jesus, edificada no local da primeira capela erigida pelo fundador Domingos Fernandes. 142

ARQ/MRCI - Inventário de Antônio Francisco da Luz, folhas 8 – 9.

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Entre os anos de 1763 e 1765, João da Costa Aranha foi tesoureiro e protetor da igreja. Segundo Nardy Filho, reedificou-a as suas próprias custas, pois a igreja encontravase em ruínas. 143 O padre Manoel da Costa Aranha substituiu seu pai no cargo de “tesoureiro-protetor da igreja do Senhor Bom Jesus, à qual muito beneficiou, devendo-se a ele a construção do sobrado anexo a essa igreja para servir de residência ao seu capelão.” 144 Durante o seu paroquiato foram inauguradas a igreja Matriz (1780) e a igreja do Carmo (1782).145Após a morte de Manoel, seu irmão por parte de pai, o Capitão-mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha assumiu o cargo de zelador e tesoureiro da igreja do Bom Jesus.146 Nos testamentos dos membros da família é possível observar as doações feitas a diversas igrejas. Maria Francisca Vieira, em seu testamento datado de 1788 deixou 4$000 (quatro mil réis) para a igreja Matriz, a saber, 3$000 (três mil réis) para o douramento e pintura, “quatrocentos réis que dei já para os ornamentos que mandei vir para a mesma Matriz assim como também deixo para o frontispício da mesma Matriz o dinheiro que me deve e assistiu o defunto meu marido para a fábrica dela.” 147 Adiante, deixou 100$000 (cem mil réis) para a capela do senhor Bom Jesus. 148 Francisco Novaes de Magalhães, marido de Maria registrou em seu testamento que deixava 3$000 (três mil réis) para o douramento e pinturas do altar-mor da Matriz, descontando $300 (trezentos réis) que já havia doado para obras. Depois das doações para familiares, registrou a doação de 200$000 (duzentos mil réis) para a Ordem Terceira de S. Francisco, já para a capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, e para a capela de Santa Rita, deixou 50$000 (cinquenta mil réis). Destinou 400$000 (quatrocentos mil réis) à capela do Bom Jesus, além dos 3$000 (três mil réis) acima citado, deixou mais 200$000 143

NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico... p. 77-78. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3. p. 28 145 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3.p. 28 146 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Ytu: histórico...p. 78-79. 147 AESP - Autos de contas de testamento de Maria Francisca Vieira, p. 2. Disponível em: . Acesso em: 14. Mar.2014. 148 AESP - Autos de contas de testamento de Maria Francisca Vieira, p. . Disponível em: . Acesso em: 14.mar.2014. 144

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(duzentos mil réis) para ornamentos da Matriz. 149 A soma das doações às igrejas e ordens terceiras (quantia de 903$000, novecentos e três mil réis) corresponde ao valor que possuíam em escravos quando Maria Francisca faleceu, que era de 946$000 (novecentos e quarenta e seis mil réis), quantia considerável. 150 Em relação às disposições do padre Manoel, para as igrejas ituanas doou 250$000 (duzentos e cinquenta mil réis) para a Matriz, 500$000 (quinhentos mil réis) para ornato da capela de Santa Rita e 50$000 (cinquenta mil réis) para a de Santa Gertrudes. Além dos templos ituanos, Manoel doou 150$000 (cento e cinquenta mil réis) para ser dividido da seguinte forma, 100$000 (cem mil réis) para a igreja de Nossa Senhora da Penha de Araçariguama e 50$000 (cinquenta mil réis) para os pobres, e 50$000 (cinquenta mil réis) para ser repartido igualmente entre a igreja e os pobres da freguesia de São Roque. 151 Em seu testamento feito em 1801, o padre lembrou-se das igrejas e da população que assistiu nas décadas de 1750 e 1760, a freguesia de Araçariguama, e a vizinha, São Roque. Manoel ordenou que com o dinheiro de seus bens se continuassem as obras na capela do Senhor Bom Jesus, “fazendo nela o forro da capela mor em primeiro lugar, para o qual já está pronto o taboado (...) com tribunas na capela mor e no corpo da igreja, mandar fazer a porta principal, preparar a sacristia (ilegível) que ao testamenteiro parecer conveniente”.152 João da Costa Aranha e seus dois filhos Manoel e Vicente desempenharam o cargo de tesoureiro e protetor da igreja do Bom Jesus de forma sucessiva, além dos melhoramentos que realizaram nas construções. O envolvimento da família com a igreja deu-se no desempenho dos cargos de tesoureiros do pai e dos dois filhos sucessivamente, 149

AESP - Testamento de Francisco Novais de Magalhães, Folha 3 verso. No testamento de Francisco existe referência à posse de bens de raiz do casal, mas sem menção aos valores. Não dispomos de seu inventário póstumo, mas o de sua esposa, Maria Francisca Vieira, que faleceu sete anos depois, em 1796. 150 ARQ/MRCI – Inventário de Maria Francisca Vieira, folha 6. 151 AESP - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folhas 4 verso e 5. Disponível em: . Acesso em: 21.mar.2014. 152 AESP - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folha 6. Disponível em: . Acesso em: 21.mar.2014.

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mas também no financiamento de melhorias e ampliação do templo e adjacências com recursos próprios. A filha e o genro também doaram dinheiro para a igreja do Bom Jesus, mas ajudaram com maiores valores a igreja Matriz. Como atestou Octavio Ianni, “o poder religioso, o poder econômico e o poder político emergentes começaram a assinalar posições e lugares.”153 Acerca da imaterialidade, Daniel Miller apontou para uma regra geral observada: a de que quanto mais a humanidade desenvolve a conceituação do imaterial, mais importante se tornam suas formas de materialização.154 Este seria o paradoxo da imaterialidade, segundo Miller, pois esta só pode expressar-se através da materialidade.155 É sobre esse viés que pensamos a religiosidade ituana, pois existiam cinco igrejas somente na área central da vila, construídas e mantidas não apenas pelos religiosos, mas principalmente pelos seus fiéis. No momento da morte, a igreja que os fiéis tanto estimavam e frequentavam durante a vida e os hábitos das irmandades religiosas, identificação vestida durante os ritos, serviam-nos de sepultura e mortalha respectivamente. Em testamento, Manoel indicou que seu corpo deveria ser sepultado na capela mor da igreja do Bom Jesus, com suas vestes sacerdotais.156 Maria era irmã terceira da Ordem de São Francisco e pediu em seu testamento para ser enterrada na capela e amortalhada com o hábito da mesma Ordem. 157 Segundo o historiador João José Reis, as mortalhas carregavam uma carga simbólica importante, embora não tenhamos informações precisas sobre os múltiplos sentidos atribuídos às mortalhas por nossos antepassados, o certo é que não era um elemento neutro. Seu uso exprimia a importância ritual do cadáver na integração do morto ao outro mundo e sua ressureição no fim deste mundo. Era uma representação do desejo 153

IANNI, Octavio. Uma cidade antiga… p. 22. MILLER, Daniel (ed.). Materiality. London. Duke University Press, 2005. p. 28 155 MILLER, Daniel (ed.). Materiality... 156 AESP - Testamento de Manoel da Costa Aranha, folhas 4 verso e 5. Disponível em: . Acesso em 14.mar.2014. 157 AESP - Testamento de Maria Francisca Vieira. Folhas 1 e 2. Disponível em: . Acesso em 20.mar.2014. 154

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de graça junto a Deus, especialmente a mortalha de santo, que de alguma forma antecipava a fantasia de reunião à corte celeste. Ao mesmo tempo que protegia, com a força do santo que invocava, ela servia de salvo-conduto na viagem rumo ao Paraíso. Pode-se até pensá-la como um disfarce de pecador. Seja qual for o ângulo, ela representa a glorificação do corpo em benefício da glorificação do espírito, uma das evidências mais fortes da analogia que se fazia entre o destino do cadáver e o destino da alma. Vestir o cadáver com a roupa certa podia significar, se não um gesto suficiente, pelo menos necessário à salvação.158

Desta forma, concordamos com o autor, pois observamos em Itu a preocupação dos testadores em registrar com qual hábito gostariam de ser sepultados, o esforço da família em providenciar um hábito para amortalhar seu ente falecido quando não o possuía, além do grande número de hábitos relacionados nos inventários. O marido de Maria, Francisco também era irmão da referida ordem e indicou o mesmo desejo de enterro, com detalhe para o local: “em sepultura que do Presbítero para baixo estiver desocupada”.159 Já Simão de Godoi Moreira pediu para ser enterrado em local de destaque na Matriz: “na porta travessa defronte ao altar de Nossa Senhora do Rosário”160. Por fim, o padre Antônio Francisco da Luz pediu que fosse levado para a igreja do Carmo sem solenidade alguma, e sepultado “ao pé do altar da Gloriosa Santa Ana.” 161 Toda a preparação do funeral tinha muita importância, desde as vestes, a missa de corpo presente, a quantidade de pessoas acompanhando, bem como o local de sepultamento. De acordo com a tradição religiosa, todos poderiam ser enterrados dentro da igreja. João Reis apontou, entretanto, que a diferença estava na localização: no corpo, área interna, era local de distinção, enquanto que no adro, área externa, o sepultamento era de graça, geralmente escravos eram ali enterrados.162 A indicação de Francisco para ser enterrado na primeira sepultura vaga abaixo do presbítero, denota sua influência e poder aquisitivo não só perante à irmandade, mas à sociedade no geral, pois quanto mais próximo ao altar, maior a importância do indivíduo.163

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REIS, João José Reis. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo. Companhia das Letras, 1991. p. 123-124. 159 AESP - Auto de contas de testamento de Francisco Novais de Magalhães, folha 3 160 AESP - Auto de contas de testamento de Simão de Godoi Moreira, folha 3 verso. 161 ARQ/MRCI - Inventário e testamento de Antônio Francisco da Luz, folha 2. 162 REIS, João José Reis. A morte é uma festa...p. 175. 163 REIS, João José Reis. A morte é uma festa... p. 176.

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O capitão João de Mello Rego pediu para ser amortalhado com o hábito e capa da Ordem terceira do Carmo, bem como sepultado na capela da mesma ordem. Descreveu com muitos detalhes seu desejo, sendo corpo depositado na Igreja Matriz, com ofício de corpo presente, de três lições com a música de cantochão pelos sacerdotes que assistirem ao dito ofício, e missa cantada [ilegível] e na mesma matriz se me cantará um memento com música do Mestre de capela, e daí, será meu corpo levado para a dita capela da Nossa Senhora do Carmo na tumba e acompanhado dos irmãos, vigário e sacerdotes.164

A nosso ver, o hábito era um elemento chave tanto durante a vida, quanto na morte do indivíduo. Em vida, indicava à sociedade e seus pares, o pertencimento à determinada irmandade, que dependendo de qual fosse, era referência de alto poder aquisitivo e/ou relações próximas à estratos sociais importantes. Na morte, conforme frisou Reis, sinalizava a fé e o desejo de salvação da alma. Se o indivíduo não possuía o hábito, no momento do enterro era providenciado junto às irmandades, como atestaram os exemplos da sogra e da segunda esposa de José do Amaral Gurgel. Maria Lucília Viveiros Araújo apontou uma mudança importante na estrutura dos testamentos entre os séculos XV e XIX: de preparação do funeral e salvação da alma, perdeu a finalidade espiritual e passou a tratar dos bens materiais. 165 Nos testamentos consultados na amostra, observamos que tratam de ambos, indicando tanto a preocupação com as missas (recomendando quantidades para a própria alma, de familiares e de escravos), quanto mencionando, ainda que de forma breve, os bens que possuíam e deixando alguma instrução para destinar certos objetos. Dois exemplos de disposições sobre oratórios são muito interessantes. João do Mello Rego indicou que o “oratório com a imagem do Senhor crucificado o deixo de esmola a capela de Santa Gertrudes para que lhe coloque na sacristia ou lugar que melhor parecer ao Rev. Vigário na mesma Igreja, para que fique com perpétua veneração.” 166 Já 164

AESP - Autos de contas de testamento de João de Mello Rego, folha 3 verso. ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. “Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica com os testamentos” In: Histórica – Revista Eletrônica do Arquivo do Estado. Edição número 6 de outubro de 2005. Disponivel em: . Acesso em: 19.set.2014. 166 AESP - Auto de contas de testamento de João do Mello Rego, folha 9 verso 165

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Francisca Xavier de Almeida, registrou em testamento: “quero que o meu oratório e imagens não sejam vendidos, e se incorporem as casas para todos os meus filhos o gozarem.”167 Estes dois oratórios tiveram destinos diferentes: um doado para uma capela, com o intuito de que mais pessoas o venerassem, e o segundo, a testadora proibia a venda, visando a veneração das imagens sagradas apenas para os seus pares. Ambos sugerem uma relação muito íntima dos proprietários com seus oratórios, sendo que utilizaram de sua autoridade no momento da confecção do testamento para determinar o destino dos objetos sagrados, cada um de forma diferente. Isto é, de forma pública para João, e de maneira familiar para Francisca, buscando manter talvez a fé ou adoração em determinados santos de sua preferência entre seus familiares e herdeiros. Nesses momentos de rituais de passagem, Luciana da Silva ressaltou a importância dos objetos, quando a cultura material sob propriedade e posse de um indivíduo serviria como um meio através do qual este poderia garantir sua salvação. (...) ou, pelo menos, uma estadia mais curta no Purgatório. Os objetos e bens dispostos nos testamentos seriam, portanto, de grande importância para a alma do testador. Seu sossego estaria associado com o cumprimento do destino dado a estes objetos em suas cláusulas testamentárias. 168

O cumprimento dos testamentos pelos testamenteiros estava sujeito à fiscalização das justiças civil e religiosa, porém, nem sempre a vontade do testador poderia ser colocada em prática devido a regulamentações específicas presentes nas Ordenações Filipinas. 169 Para o caso de Itu, por meio dos recibos que geralmente constam na documentação, é possível observar que a maioria das disposições era realizada. Os recibos que dispomos são geralmente dos herdeiros atestando que receberam os bens ou o valor correspondente em dinheiro, e também são comuns recibos de padres ou irmãos terceiros recebendo valores referentes às missas encomendadas para a alma do falecido e pela mortalha fornecida para o enterro. Luciana da Silva observou que na vila de Piratininga as roupas eram uma das categorias de bens que mais circulava entre parentes e amigos do falecido. As peças mais 167

ARQ/MRCI - Testamento de Francisca Xavier de Almeida. Folha 11 SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 185. 169 SILVA, Luciana da. Artefatos... p. 185. 168

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caras, de melhor qualidade eram deixadas para parentes ou pessoas próximas através das disposições da terça170, e as peças de tecidos ordinários, como o algodão da terra eram doados aos escravos.171 Para a vila de Itu entre meados do século XVIII e início do XIX, ao menos para os testadores da amostra, as roupas não foram objeto de grande preocupação, pois não encontramos disposições específicas sobre a quem os testadores destinariam suas vestimentas. No caso das filhas, esta ausência talvez estivesse relacionada ao fato de os pais já terem providenciado peças de roupas de uso pessoal e de casa nos respectivos dotes. Vimos a importância e a estreita relação entre a religiosidade e a materialidade nas doações aos templos e na utilização dos hábitos das ordens terceiras, através de um ramo a família Costa Aranha. Trataremos agora de um episódio envolvendo o membro mais conhecido da referida família, o Capitão-mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha.

3.3.2 A farda do Capitão-mor de Itu

O capitão-mor Vicente da Costa Taques Góes e Aranha, faleceu em 1825. Segundo Nardy Filho, Vicente exerceu o cargo de Capitão-mor por quase cinquenta anos, entre 1775 e 1825.172 “Até o censo de 1825, com exceção do ano de 1809, o responsável pela primeira companhia da vila era Vicente da Costa Taques Goes e Aranha, que se distinguiu no exercício do seu comando pela precisão no desempenho de seus deveres.” 173 Além do destacado cargo ter sido desempenhado por tanto tempo, Vicente foi retratado diversas vezes devido a um episódio marcado por uma desavença com D. Pedro I, devido especialmente por sua indumentária.

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O espólio de um indivíduo casado e com herdeiros era dividido em duas partes, chamada meação. Uma parte cabia ao cônjuge, e a parte do inventariado, era dividida em três partes, sendo que 2/3 era repartido entre os herdeiros, chamada legítima e 1/3, chamada terça, poderia ser dividida, ou doada de forma livre pelo indivíduo, caso registrasse suas últimas vontades em testamento. 171 SILVA, Luciana da.Artefatos...p. 205. 172 NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu: crônicas históricas. Itu: Ottoni Editora, 2000c, vol. 3.p. 58. 173 SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura ...p. 78

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Quando o príncipe regente D. Pedro esteve em São Paulo, em agosto de 1822, Vicente Taques correu ao encontro de Sua Alteza. Apresentou-se no Palácio do Governo trajado de grande gala, envergando um vistoso fardão vermelho, casaca de rabo e calção, meias brancas, sapatos de fivela, penteado com grande cabeleira de rabicho e empunhando o bastão simbólico de seu "capitanato". A sua aparência exótica causou a maior surpresa e curiosidade. O príncipe regente, mocinho ainda, soltou enorme gargalhada.174

Esse episódio foi retratado no filme Independência ou Morte, de 1972, dirigido por Carlos Coimbra.175 Na cena, logo em seguida ao insulto, o imperador já condecora o Capitão com as Ordens de Cristo e do Cruzeiro. A cena retratou o deboche do imperador, o qual percebendo o mal-estar causado, prontamente o solucionou, concedendo ao velho capitão duas comendas honoríficas no mesmo momento. Na iconografia sobre a independência, Vicente possui dois registros: uma aquarela de Miguel Dutra e um quadro de Benedito Calixto. De acordo com Paulo César Garcez Marins, o retrato de Vicente de autoria de Benedito Calixto chegou ao Museu Paulista em 1902: “o retrato do líder ituano, célebre pela refrega com o príncipe-regente, que tentou ridicularizá-lo em 1822, apresenta-o em traje formal de acordo com a aquarela de Miguel Arcanjo Assunção, o Miguelzinho Dutra, realizada por volta da década de 1840.” 176 Entre os anos de 1835 e 1855, Dutra retratou diversas localidades, edificações e tipos humanos.177 Segundo Jonas Soares de Souza, “pode-se dizer que a sua obra é fruto de uma tradição regional bem caracterizada, na qual um realismo espontâneo e original 174

SOUZA, Jonas Soares de. Miguelzinho Dutra e a iconografia oitocentista de São Paulo. p. 5-6. Disponível em: . Acesso em 01.ago.2013. 175 Independência ou morte! Produção de Oswaldo Massaini, Direção de Carlos Coimbra. São Paulo: Cinedistri, 1972. Disponível no endereço: . Acesso em 01.ago.2013. 176 MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas com pose de reis: a representação de bandeirantes e a tradição da retratística monárquica européia . Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 44, p. 77-104, fev. 2007. ISSN 2316-901X. Disponível em: . Acesso em: 20.out.2014. 177 Miguel Arcanjo Benício da Assunção Dutra (1810-1875), de acordo com Ruth Tarasantchi foi “autodidata na pintura, descobriu o uso da aquarela por si mesmo. Vivia no interior e não tinha acesso aos produtos de pintura, por isso, sua paleta era reduzida. Usava sempre o azul para as árvores, matas e águas; tons ocres e castanhos para as construções e outros detalhes. Raramente aparecia o vermelho e, mais dificilmente, o verde. Como ele mesmo preparava suas tintas, é de admirar seu bom estado e o fato de não terem perdido a intensidade da cor.” In: TARASANTCHI, Ruth Sprung. “Obras desconhecidas de Miguelzinho Dutra.” In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 10/11. p. 149-166 (2002-2003). p. 150.

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aparece entrelaçado com soluções formais tradicionalmente barrocas.”178 A seguir, o retrato póstumo que Miguel Dutra retratou o Capitão-mor. Figura 10 – Vicente Taques por Miguel Dutra

Fonte: BARDI, Pietro Maria. Miguel Dutra... p. 95.179

Localizamos algumas obras que reúnem as aquarelas de Dutra, mas apenas comentam sobre a trajetória do artista, a título de ilustração, carecendo de uma análise profunda e pormenorizada da obra. A imagem de Dutra aponta o desgaste e a questão colocada por Ruth Tarasantchi, pois a cor da casaca é de um vermelho fraco. Apesar da dificuldade, é possível observar que na imagem o capitão mor enverga uma casaca e um 178

SOUZA, Jonas Soares de. Miguelzinho Dutra: traços e troças da Itu oitocentista. Artigo disponível em: . Acesso em 14.out.2014. 179 Acervo Museu Republicano Convenção de Itu, de Miguel Dutra. Capitão –mor de Itu Vicente da Costa Taques Góes e Aranha. Aquarela sobre papel, 16x10,5cm, s/d.

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colete vermelhos com alguns detalhes dourados, calção amarelo ou bege, meias brancas, sapatos pretos com fivelas. Pelo volume nas mangas, aparenta ser uma renda provavelmente de uma camisa branca usada por baixo do colete, e na cintura, havia um cinto. Nas mãos, apoia-se com um bastão e segura um chapéu preto, bicórnio ou tricórnio. A figura 11 refere-se ao retrato de Vicente por Benedito Calixto. Figura 11 - Vicente da Costa Taques Góes e Aranha por Benedito Calixto

Fonte: Acervo Museu Paulista. Retrato do Capitão-mor de Itu Vicente da Costa Taques Góes e Aranha, Óleo sobre tela, de Benedito Calixto, s/d.

De acordo com Paulo César Garcez Marins, o retrato de Vicente de autoria de Benedito Calixto chegou ao Museu Paulista em 1902. Segundo Marins, 188

esta aquarela, hoje pertencente ao acervo do Museu Republicano Convenção de Itu, foi muito provavelmente a mesma examinada por Calixto, conforme o mesmo declara em carta de 1919, em que descreve sua tela como “cópia fiel” da aquarela “obtida pelo Dr. Antônio Piza”.180

Produzida no final do século XIX, a tela que retrata Vicente está relacionada ao movimento de exaltação ao passado vicentino e bandeirante, como apontou Marins. 181 As publicações e reedições das obras genealógicas Nobiliarquia paulistana e Genealogia paulistana atestam esse interesse pelas figuras ilustres do período colonial. No quadro de Calixto, o capitão-mor aparece de forma muito semelhante à aquarela, com a diferença na postura, com o chapéu bicórnio na outra mão junto com o bastão. As principais diferenças em relação à aquarela, é que na tela de Calixto, Vicente está portando uma espada e foi ambientado em um cômodo, com uma estante, mesa e cadeira de madeira torneada. A data mencionada no quadro, 1779 faz referência ao ano que Vicente assumiu o posto de capitãomor da vila ituana. Em outra referência, o Capitão Vicente também foi retratado como uma pessoa de boa vontade e de hábitos antiquados, pelo menos ao ver de Auguste de Saint-Hilaire quando visitou a vila de Itu em 1819. Segundo o viajante francês, Quando as plantas recolhidas durante o dia foram por mim analisadas, saí com o capitão a fazer um passeio pela cidade e ver o que a mesma possuía de mais notável; fiz também uma visita ao capitão-mor, que me cunhou de gentilezas já fora de uso desde muito tempo, ao norte da Europa, mas a que os portugueses ainda não haviam renunciado.182

Os registros feitos de Vicente e sobre o episódio com o imperador cristalizaram uma memória sobre sua carreira, sua atuação e até mesmo sobre sua postura severa e leal à monarquia. Para Vicente a sua farda antiga representava o orgulho de ter desempenhado por quarenta e seis anos o cargo de capitão mor. O escárnio do imperador atestou a defasagem da vestimenta do velho capitão-mor que havia servido D. José I, D. Maria I, D. João VI e também a D. Pedro I, até sua morte em 1825.183

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MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas...p. 90. MARINS, Paulo César Garcez. Nas matas... p. 90-91. 182 SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem....p. 225. 183 BARBAS, Manoel Valente. “A família Costa Aranha na vila de Itu do século XVIII e início do XIX.” In: Revista da ASBRAP, São Paulo, n.6, p. 139-168, 1999. p. 151. 181

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Roger Chartier destacou que em uma “sociedade antiga, a posição “objetiva” de cada indivíduo como estando dependente do crédito atribuído à representação que ele faz de si próprio por aqueles de quem espera reconhecimento; quando compreende as formas de dominação simbólica, por meio do „aparelho‟ ou do „aparato‟. 184 Desta forma, os significados que o velho capitão-mor compreendia estar mobilizando quando trajava sua antiga farda vermelha de galões e botões dourados não foram codificados, ou reconhecidos da mesma forma pelo jovem imperador, que o julgou antiquado. Como ressaltou Sandra Pesavento, “a força da representação se dá pela sua capacidade de mobilização e de produzir reconhecimento e legitimidade social. As representações se inserem em regimes de verossimilhança e de credibilidade, e não de veracidade.”185 Entre os séculos XVIII e XIX a aparência era um elemento crucial para as sociedades de Antigo Regime. Sua atuação se dava no âmbito individual, constituindo o indivíduo, e de forma mais ampla, inserindo-o em uma comunidade. O grande desafio que o tema suscita é o de compreender quais os códigos que regiam a percepção sobre os trajes nestes séculos, para além de saber se esta ou aquela tendência era adotada. Com base nos bens arrolados nos inventários póstumos, foi possível avaliar para a sociedade da vila de Itu, que as vestimentas eram elementos importantes para a exteriorização da ordenação ou distinção social. Para aqueles que possuíam uma casa na região central da vila além da propriedade em um bairro rural, reservavam algumas das principais peças de roupas e joias para uso nos espaços de sociabilidade da vila. Se no momento da partilha dos bens aparentemente a divisão das peças de roupas e demais objetos relacionados à aparência segue uma divisão equânime entre os herdeiros, nas relações dos objetos transferidos na forma de dotes para as filhas no momento do casamento, notamos uma preocupação dos pais em proporcionar um padrão mínimo de comodidade ou mesmo de prover com alguns objetos o início do domicílio dos filhos. As roupas da pessoa falecida continuavam a vestir e proteger outros corpos, sendo doadas, arrematadas em leilão ou herdadas por filhos, netos ou pessoas próximas. 184

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de Janeiro, Difel/Bertrand, 1990. p. 22 185 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 41

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Por outro lado, algumas peças de roupas eram importantes tanto na vida quanto na morte, como atestam os hábitos de ordens terceiras. Estes indicavam e materializavam a fé, o pertencimento a um grupo social restrito e atuavam como ingresso à salvação no céu.

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Considerações finais O século XVIII foi o período que transformou as feições da vila ituana, com casas, sobrados e templos erguidos e ornados com recursos provenientes da riqueza gerada pela produção canavieira. Em meados do século XIX, considerada polo de atração demográfica, a vila de Itu foi palco da construção inicial de fortunas que se estabeleceram e prosperaram no ramo cafeeiro no oeste paulista. As famílias e indivíduos que investigamos através de seus inventários possuíam padrões de bens diversos. Desde apenas uma saia até vestidos de tecidos finos bordados com fios de ouro, a documentação nos permitiu observar as diferentes composições dos pertences têxteis, bem como os demais. Nos inventários de proprietários de engenho de açúcar, nomeadamente os indivíduos que possuíam escravaria, o valor das roupas representava entre 0,02 e 2,0% do total de bens. Ao excluir os valores dos bens de raiz e dos escravos, a porcentagem das roupas em relação ao total de bens aumentava e o seu valor se equiparava aos utensílios domésticos e aos móveis. Dentro das casas ituanas, grande parte dos lençóis, toalhas, fronhas e guardanapos eram de algodão. O linho e em menor número, a bretanha, também compunham as peças de uso doméstico. Os tecidos mais valiosos, como droguete, damasco e a cassa marcavam a distinção nos domicílios mais abastados. O item com maior valor monetário observado foi a colcha, especialmente as confeccionadas em chita e damasco. Os espólios mais abastados estavam relacionados às atividades de produção canavieira (toda a produção ou parte), a saber: a plantação do canavial, a produção do açúcar nos engenhos e, consequentemente, a sua comercialização. Os sacerdotes Antônio Francisco da Luz e Manoel da Costa Aranha eram senhores de engenho com os bens avaliados na faixa de 8:000$000 (oito contos de réis), um valor bem considerável para a época, sendo que seus maiores rendimentos eram provenientes da atividade canavieira e não das côngruas (remuneração eclesiástica). Da mesma forma, que os títulos militares não remunerados que propiciavam prestígio e distinção aos enriquecidos senhores de engenho. 193

Em inventários de proprietários com mais de um imóvel, o padrão observado foi o da distribuição dos bens em imóveis localizados na vila e no bairro rural. Em doze inventários de indivíduos que possuíam propriedades em bairros rurais e na vila de Itu, notamos que nesta última, se concentravam as roupas de casa com bordados, as de tecidos mais finos, a maior parte das roupas de uso pessoal, principalmente os hábitos de terceiros do Carmo, bem como as joias e demais adereços como relógios de algibeira. A distribuição de bens mais caros e relacionados à aparência nas casas da vila em detrimento das propriedades dos bairros rurais nos indica a necessidade ou a utilidade destes artefatos no espaço da vila, local de sociabilidade privilegiada neste período, pois ali era o espaço onde se celebravam os ritos festivos relacionados ao Estado, à religião, as trocas comerciais na rua das Casinhas, os leilões e arrematações próximo à Casa de Câmara e Cadeia, as igrejas e seus largos, ou seja, os espaços que promoviam os encontros. As roupas femininas arroladas nos inventários da vila de Itu em geral são semelhantes ao padrão observado para outra localidade da América Portuguesa, a comarca de Rio das Velhas, em Minas, e também na amostra lisboeta. O traje mais comum eram as saias, utilizadas juntamente com camisas, cujo valor era mais baixo do que os vestidos, também presentes na documentação, porém em menor número. O traje masculino padrão, também semelhante à Europa, era composto por calções, véstia, colete e casaca. Enquanto o casaco mais largo, utilizado por cima da casaca recebia o nome casacão em Itu, em Lisboa era denominado de sobrecasaca. O fraque de influência inglesa foi mencionado em dois inventários: um dado interessante, já que era uma peça de uso contemporâneo na Europa. Em relação aos tecidos empregados nas vestimentas em Itu, era comum o uso de calção e colete do mesmo tecido, enquanto em Lisboa a casaca e a véstia eram semelhantes. Sob uma análise comparativa entre a cidade de Lisboa e Itu, notamos que a roupa feminina valia mais do que a masculina, e o valor médio atribuído às roupas na Metrópole era superior ao ituano. Não podemos tomar a não ocorrência de algum objeto no momento do arrolamento como um indicador do desconhecimento daquele artefato na localidade. Como exemplo, a 194

peça de roupa denominada pescocinho, comum no universo lisboeta, em Itu, não foi relacionada. Porém, dois pares de fivelas de pescocinho foram arrolados nos inventários de José Manoel da Fonseca Leite e de Elena Maria de Souza, o que aponta para uma ocorrência mais restrita, porém existente. Assim também observamos em relação aos calçados, com seis ocorrências, cinco de homens e um par feminino. Entretanto, entre os quarenta e quatro inventariados registramos quarenta e um pares de fivelas de sapatos, número considerável que indica a posse de calçado em algum momento. Em relação aos tecidos das roupas e os disponíveis nos estoques das lojas ituanas, exceto o algodão mais grosseiro utilizado em vestimentas de cativos, todos eram importados. A presença dos tecidos de algodão em substituição aos panos de linho confirma a tendência geral do final do século XVIII, em ocorrência equânime tanto em relação às peças de uso pessoal, quanto às roupas da casa. Também para os Mapas de Importação da vila de Itu, notamos a mesma disposição que aponta o grande volume de tecido de algodão importado até 1804, proveniente de Lisboa, enquanto da região norte, vinha maior quantidade de panos de linho. Em Portugal a estamparia de tecidos de algodão provenientes da Ásia ganhou impulso no período, fornecendo tecidos como a chita estampados e muito coloridos, além dos próprios tecidos indianos. Consideramos o valor monetário atribuído ao artefato no momento do inventário póstumo um indicador importante, pois reflete a importância da matéria-prima, da técnica, do estado de conservação e mesmo da relevância daquele objeto em questão, passando, obviamente, pela subjetividade do avaliador. Quando comparadas com as demais categorias em conjunto, não alcançaram altas somas, pois algumas peças - como os vestidos femininos - receberam valores semelhantes ao preço de um escravo, mão-de-obra indispensável nas atividades agrícolas, domésticas e também por isentar o seu proprietário das atribuições manuais, motivo de desonra perante a sociedade do Antigo Regime. As roupas não figuraram como os bens mais valiosos e também não foram mencionadas de forma recorrente nas disposições testamentárias. Isto nos indica uma preocupação menor, ou mesmo nula, desses sujeitos em garantir que determinado ente 195

recebesse uma roupa, denotando o grau de valorização daquele artefato, diferentemente como ocorria no século anterior. Entretanto, nos casos de José do Amaral Gurgel e de João de Mello Rego, notamos a atenção dos pais em dotar as filhas de forma equânime no momento de seus matrimônios, com peças de roupas condizentes ao novo estado civil de casadas. Simbolicamente, porém, tais objetos representavam elementos importantes para exibição/aparência perante os demais indivíduos da localidade. Nestes casos, o manto era uma peça essencial para o uso feminino: atuava na ocultação do rosto, respeitando a tradição portuguesa, de que as mulheres honradas não deveriam sair desacompanhadas e desprovidas de uma peça que lhe ocultasse sua face, além é claro do traje em geral. As fardas e os hábitos de membros de ordens terceiras também apontaram para a grande importância simbólica que carregavam, ao indicarem visual e materialmente o pertencimento do indivíduo que os vestia aos grupos restritos e de prestígio social. Neste universo de reverencias e mercês, salientava-se o hábito mais do que a farda. O hábito tinha uma força simbólica entre o Céu e a Terra, a vida e a morte: nos códigos e crenças da sociedade do Antigo Regime sua posse e uso garantiam ao fiel o acesso ao paraíso. À vida eterna. A posse de bens está relacionada à necessidade utilitária dos objetos, mas também à demanda simbólica. Em relação ao vestuário, este proporciona a proteção contra o calor, o frio, e também atua na constituição da imagem e da identidade do indivíduo, mobilizando significados e elementos simbólicos através dos tecidos, dos modelos de roupas, dos adornos utilizados. No contexto investigado, a aparência constituía socialmente o sujeito, revelando através do seu traje o pertencimento ou não a grupos de prestígio e distinção social como as ordens militares, as irmandades religiosas. Nesse sentido, a posse de capas e mantos é um importante indicador social: ao ocultar os rostos e corpos com tecidos valiosos, distinguiam as senhoras de respeito publicamente, mas também serviam para encobrir a pobreza dos trajes das menos favorecidas.

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Antônio José Ribeiro, 1795, maço 34, n.9, caixa 61 Antônio Ferreira Themudo, 1798, maço 188, n.5, caixa 286 Amaro Monteiro da Cunha, 1798, maço 43, n.2, caixa 78 Antônio Vietas Lurio, 1798, maço 6, n. 6, caixa 10 Antônio Rodrigues, 1800, maço 110, n.2 Angélica Perpétua Rosa Portella, 1802, maço 45, n.3 Ana Maria da Conceição, 1808, maço 85, n.7

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Maços de População da Vila de Itu, micro-filme. Rolo 85, 1766-1775 1

Os últimos seis documentos foram consultados on-line. Disponíveis em: . Acesso em 20. Jul. 2013.

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Rolo 87, 1793-1798 Rolo 88, 1800-1803 Rolo 89, 1804-1806 Rolo 90, 1807-1808

Arquivo Histórico do Museu Republicano “Convenção de Itu” Fundo Arquivo Central da Comarca de Itu. Primeiro Ofício de Justiça. Inventários e testamentos Ana de Campos, 1780, caixa 1 Luzia Pedroza, 1791, caixa 1 Teresa Jesus Barbosa, 1791, caixa 1 Salvador Jorge Velho, 1793, caixa 2 Manoel Alvares Lima, 1793, caixa 3 Antônio Pompeu Bueno, 1794, caixa 4 João Leite Penteado, 1795, caixa 5 Maria Francisca Vieira, 1796, caixa 6 Maria Forquim Pacheco, 1797, caixa 7 Antônio de Aguiar da Silva, 1798, caixa 8 José Manoel da Fonseca Leite, 1798, caixa 8 Felisberto Ferraz Leite, 1798, caixa 8 Francisco Paes de Siqueira, 1799, caixa 9 Mariana Leite Pacheco, 1779, 10 José Gonçalves de Barros, 1779, caixa 10 Mariana Cardoso de Campos, 1779, caixa 13 199

José Leme de Oliveira, 1800, caixa 14A Antônio Dias de Matos, 1800, caixa 14B Elena Maria de Souza, 1800, caixa 14B Manoel da Costa Aranha, 1801, caixa 15 Ana da Costa, 1801, caixa 15 Inácia Leite de Almeida, 1801, caixa 15 João Fernandes da Costa, 1801, caixa 15 Antônio Antunes Pereira, 1802, caixa 16 Inácio Pacheco da Costa, 1806, caixa 16A Antônio Francisco da Luz, 1805, caixa 16A João Ferraz de Campos e Rosa Maria da Siqueira, 1804, caixa 16B José Fiusa, 1804, caixa 16B Quitéria de Oliveira, 1804, caixa 16B Ana Maria da Silveira, 1805, caixa 16B José Leme de Alvarenga, 1805, caixa 16B Francisca Xavier de Almeida, 1805, caixa 16B Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17A José do Amaral Gurgel, 1806, caixa 17A Ana Leite Gularte, 1808, caixa 17B Vicente Gonçalves Braga, 1808, caixa 17B José Alves Lima, 1808, caixa 17B Bernardo de Quadros Aranha, 1808, caixa 17B Ana Gertrudes de Campos, 1808, caixa 17B José Manoel Caldeira Machado, 1808, caixa 17B 200

Josefa Maria de Góis Pacheco, 1824, caixa 29b GODOY, Silvana Alves de. Tabela dos Maços de População da vila de Itu, planilha em Excel.

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GLOSSÁRIO

Compilamos as definições dos tecidos e das peças de roupas recorrentes na documentação. Quando a referência for de livros ou artigos, estará indicada de forma completa em nota de rodapé, já entre parênteses, ao final da definição, está a indicação da referência consultada em dicionários e/ou obras de referências com suas respectivas siglas, a saber: AMS – Antônio Moraes Silva DA – Dicionário Caldas Aulete LMSP – Luiz Maria da Silva Pinto MPC - Manoela Pinto da Costa GPA – Glossário Portas Adentro RB – Raphael Bluteau

A Anágua: saia de lenço que se coloca pela camisa. Vestidura de pano de linho que as mulheres usam sobre a camisa. Saiote fino. (GPA) Avental: pano de estopa que põe as mulheres, pasteleiros, cozinheiros e outros oficiais mecânicos: serve de cobrir e conservar os vestidos por diante, da cintura por baixo. (RB). Pano de lençaria para resguardar a saia. (LMSP) Azul Ferrete: azul muito carregado, quase preto. (DA)

B Baeta: tecido que poderia ser de lã ou de algodão, caracterizava-se por ser grosseira e felpuda. (MPC) 213

Balandrau: vestidura com mangas e capuz de que usam hoje os homens da tumba da Misericórdia. (LMSP) Barandas ou Varandas: eram “Guarnições laterais da rede, ornadas de franjas ou borlas esfiadas que são as bonecas da varanda.” 2 Barrete: cobertura de cabeça, antiga, usada ainda pelos tempos d‟el-Rei D. João III e pouco depois. (AMS) Bretanha: pano de linho fino, que se trazia de Bretanha; a imitação dizem da lençaria desta sorte Bretanhas de França, de Suécia. (AMS) Brilhante: tecido de seda.3 Brim: tecido de muitas espécies ou variedades. (MPC). Tecidos de linho ou algodão forte.4

C Calções: parte do vestido do homem, que cobre desde a cintura até os joelhos. (AMS) Camelão: tecido de origem animal, estofo grosseiro, impermeável, feito primitivamente com pêlos de camelo, depois substituído por pelo de cabra, lã e seda. Tecido de lã em trama. Pano de pelo de cabra. (MPC) Camisa: peça de roupa que se trazia debaixo de outros vestidos, logo a seguir ao corpo, de comprimento até aos joelhos e com mangas. Roupa de tecido leve. (GPA) Camisote: camisa curta de cambraia, que se vestia sobre a outra. (RB) Capa: vestidura, que se traz por cima das outras, e fora de casa; no Verão serve de adorno, e no inverno de amparo. (RB)

2

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214

Capote: espécie de manto de que usam os homens, comprido até os pés, com cabeção. (LMSP). Capa comprida e larga com capuz. (GPA).

Casaca: vestidura com mangas e abas grandes. (RB). vestido com mangas, grandes abas, etc, que se usa por cima da veste. (LMSP). vestidura que hoje se traz por cima da veste; com botões nas mangas, portinholas, etc. (AMS) Casacão: vestidura com mangas, mais larga que casaca. (RB) casaca grande para se vestir por cima da casaca que por isso lhe chamam também sobrecasaca. (LMSP) casaca grande, que se veste sobre a casaca, por causa de evitar a chuva, etc. (AMS) Ceroulas: vestuário interior de pano de linho em forma de calças ou calções com o intento de cobrir o corpo dos homens desde a cinta aos joelhos e por vezes até mais abaixo. (GPA) Chambre: vestido caseiro, fraldado até abaixo do joelho (do francês robe de chambre, roupa de câmara, de estar no seu quarto). (AMS) Chita: pano de algodão, característica por suas coloridas estampas. (MPC) Cobertor de Castela: coberta proveniente de Castela. (AMS) Cobertor de papa: coberta confeccionada de lã. (AMS) Colete: veste curta sem mangas. (AMS)

D Droguete: tecido de seda do séc. XVIII, com pequena repetição de desenho, fabricado com técnicas diversas (MPC) Durante: tecido de lã, o durante, caracterizava-se por ser lustroso como o cetim. (GPA)

E Espartilho: Espartilho de mulher: faziam-se com barbas de baleia, para apertar o corpo. (RB). 215

Colete de mulher feito de barbas de baleia entre o forro e a peça. (LMSP)

F Fustão: tecido feito de algodão e linho, geralmente o urdume (fios dispostos na vertical) era de fio de linho e a trama (sentido horizontal) de algodão.5 De acordo com Manoela Pinto, o fustão também poderia ser de lã ou seda, “tecido em cordão mais ou menos grosso.” (MPC)

G Gabinardo: capote com mangas compridas, uma variação de gabão, “capote com capelo e mangas, de que usam os rústicos.” (RB) Ganga: tecido de algodão loiro, azul, ou preto, que se traz da Ásia, estreito, basto, e de boa dura (AMS)

H Hábito, Hábito de religioso: o vestido que se usa em qualquer religião. Por um hábito se entende capa e roupeta. (RB)

J Jaleco: vestidura, como colete, que se aperta pelas ilhargas com colchetes. Comumente se usa só no inverno. (RB) Jozesinho, Josezinho: capote de pouca roda sem mangas e sem cabeção. (...) Este capote foi usado em fins do século XVIII pelas mulheres. Morais diz que o Josezinho não tem mangas 5

PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos no Brasil: um hiato. Tese (Doutorado em Ciências de Informação). 2004. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2004. p.51.

216

(João Ribeiro, Curiosidades Verbais, 90 também define “Josézinho” „como capote sem mangas‟.); contudo há uma figura feminina (Em História do Trajo em Portugal, 38, figura 27), do livro “Costumes of Portugal” por H. L´Evêque, que apresenta um “Josézinho” pelas costas com mangas e largos punhos. Embora esse desenho pertença ao séc. XIX não deve deixar de ser útil para o estudo dessa peça de vestuário. Pela abonação de Nicolau Tolentino e pelo desenho de que falo podemos concluir que o “Josézinho” era indistintamente vestuário masculino e feminino. 6

L Lã: material têxtil proveniente do velo dos ovídeos e outros animais. (GPA) Lanio: cobertor, vestido ou capa de lã. (GPA) Linho: planta têxtil, com cujas fibras se produzem tecidos de diversas qualidades, designa também o tecido confeccionado com seu fio. (MPC). Os linhos portugueses são de proveniência indígena, sendo os mais recorrentes o galego (Braga, Vila Real e Viana do Castelo), o mourisco (a sul do Tejo) e o riga nacional (Guarda e Minho). (GPA). Quatro tipos de linho levam em seus nomes o país de sua procedência, como a Holanda, “tecido de linho muito fino e fechado ou tapado, que se fabrica na Holanda.” Ainda segundo Manoela Pinto, “havia holandas finas, ordinárias, grossas, frisadas, riscadas, largas e por vezes, produzidas com seda.” Já a holandilha, era “tecido grosso de linho, usado principalmente em entretelas. // Imitação do tecido (?) da Holanda, fabricado na Silésia.” (MPC)

6

CRUZ, Maria Emília Nogueira Soares e. Designações de vestuário, séculos XVII-XVIII. Dissertação para licenciatura em Filosofia Românica. Universidade de Lisboa, 1955. p. 200-201.

217

M Manteleta: espécie de lenço grande, com que as mulheres de Castro Laboreiro cobrem a cabeça. (DA) Manto: espécie de véu, com que cobre a mulher a cabeça, e as vezes o rosto, ao sair fora de casa. (RB). Vestidura larga e sem mangas com que as mulheres abrigam a cabeça e o corpo até à cintura por cima do vestido. Grande véu preto que chegava a arrastar pelo chão usado antigamente pelas senhoras nobres em ocasião de luto. Espécie de capa com cauda e roda e presa nos ombros usada pelas pessoas reais e pelos cavaleiros. (GPA)

O Olho de perdiz: Antigo tecido misto de lã e seda, com leve efeito geométrico em seu padrão, que imita os olhos de perdiz. 7 Opa: manto amplo e comprido que chegava a arrastar pelo chão, provido de aberturas laterais das quais pendiam os braços. Nos trajes femininos, eram as opas golpeadas, o que permitia ver o vestuário que elas cobriam. Aida Dias especifica que era um manto de fazenda, de seda ou de brocado, adornado algumas vezes por peles no forro. Vestes justas ao corpo, sem mangas usada pelos membros das confrarias religiosas sobre o vestuário civil; é de cor preta e com um galão a orlar as mangas. A opa real é uma veste rica usada pelos reis no dia e momento da sua sagração ou durante cerimónias públicas. (GPA)

7

Informação disponível em: . Acesso em 03. mar.2015.

218

P Penteador: pano de linho, que se põe ao redor do pescoço, e com que se cobrem os ombros, por não sujar o vestido com cabelos, ou carepa quando alguém se penteia. (RB). Pano, com que se cobre o que se penteia, do pescoço até o joelho. (AMS). Pescocinho: Debrum branco, móvel existente nas lobas e batinas dos sacerdotes. Cabeção, coleira dos padres. (DA) Ponche: peça hoje associada exclusivamente aos gaúchos, o poncho era, na primeira metade do século XIX, sinal característico também dos paulistas. Muito mais longos que os usados atualmente, os ponchos cobriam quase todo o corpo, aproximando-se de uma capa. Quando não havia necessidade de proteção contra a chuva e o frio, tinham suas laterais dobradas sobre os ombros, o que tornava imponente o porte do tropeiro. 8

R Rodaque: tipo de casaco de homem, espécie de sobrecasaca já em desuso: "...Olhou para as calças de brim surrado e o rodaque cerzido..." (Machado de Assis, Quincas Borba) (DA)

S Saia: túnica ou hábito de religioso. (GPA). Vestidura de mulher da cintura para baixo. (RB) Sarja: tecido de seda, lã ou algodão, entrançado cuja técnica era caracterizada pelos efeitos oblíquos obtidos pela deslocação de um fio para a direita ou para a esquerda, em todos os cruzamentos de passagem de trama. (MPC) Sobrecéu, Sobrecéu da cama: O pano estendido por cima, que prende nas quatro colunas do leito. (...) Sobrecéus também se chamam uns panos, que se tem lugar de dóceis, para ornato dos altares frontais. (RB) 8

MARINS, Paulo César Garcez. Modos de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos. Disponível em: . Acesso em 18.jul.2014.

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T Tafetá: tecido lustroso feito de fios de seda retilíneos e bem tapado. (MPC)

V Véstia: vestidura de homem com mangas, chega até o joelhos. (RB) Parte dos vestidos, que cobre o tronco do corpo, com mangas, ou sem elas, traz-se por baixo da casaca. (AMS) Vestido: vestidura. Um vestido, isto é, uma casaca, véstia e calções. Um vestido de mulher, consta das peças ordinárias, roupa, saia, etc. (AMS)

X Xale: peça de vestuário que as mulheres usam sobre os ombros. (GPA)

Observação: os termos fraque, soleiro, baque, rasgão, requelo e marcelina não foram localizados para o período em questão.

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