Sob Judice: a Nova República em Trânsito

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Sob Judice: a Nova República em Trânsito Carlos Frederico Pereira da Silva Gama1

Our thoughts strayed constantly and without boundary The ringing of the division bell had begun ...Forever and ever

Pink Floyd, “High Hopes”, 1994

Sem respeitar os muros a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff erguidos recentemente, a Nova República caminha, sem mais sentir a seus pés o futuro político do Brasil. Muros imprimem horizontalidade no processo político: uma escolha plebiscitária, o sim ou não resolveria todas as disputas entre grupos de mesma estatura, equivalentes funcionais. Alívio imediato para as prolongadas tensões de uma jovem democracia, sem ressacas. Sim ou não? O chão movediço entre muros, circundado por abismos, não impediu que o sistema político fosse empurrado. Entre trancos e barrancos. E pur si muove. Em meio à longa sessão na qual o Supremo Tribunal Federal examinou ações de partidos da base governista e do Advogado-Geral da União para modificar ou impedir a votação do impeachment, um dos ministros da casa – Celso de Mello – teceu loas ao trabalho da Câmara Federal. Um órgão que reflete, considera argumentos, delibera racionalmente, analisa termos2. A percepção da população brasileira diverge em grande medida desse diagnóstico. O Congresso Nacional goza da confiança de apenas 0.8% da população e a classe política, 0.1% (contra 10.1% da Justiça)3. Ambos distantes das Forças Armadas (15.5%) e Igreja (53.5%). O descolamento entre a imagem que o STF tem do sistema político e aquela que tem o eleitorado diz algo importante sobre a imagem que o STF tem de si próprio. Uma imagem que não precisa de justificação política. Juízes não foram submetidos ao escrutínio das urnas. Ao contrário de deputados desmoralizados, não precisam de votos. A quem prestam contas – senão às próprias consciências e ao juízo sobre o que fazem com que aceitemos como leis inapeláveis? Esse acesso mediado aos critérios que definem o que é lei produz muros. STF e eleitorado conversam, indiretamente. Mas não há equivalência nessa conversa, se a soberania passa de um lado para outro. Disputas entre Executivo e Legislativo num sistema político-partidário disfuncional em condições de alta temperatura e pressão conduziram à hipertrofia do Judiciário.

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Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT) Insight surgido em conversas com Gabriela Carneiro, sobre o papel do STF no processo de impeachment 3 http://www.brasilpost.com.br/2015/07/21/igreja-confianca-brasil_n_7841192.html 2

Em 34 dias, o STF impediu a posse de três ministros de estado. Dois deles, ironicamente, nomeados para o Ministério da Justiça. O terceiro, um ex-Presidente da República. Confrontada com ações da oposição na Justiça de Brasília, a Presidenta desistiu de usar a cadeia nacional de rádio e televisão para se pronunciar sobre acusações embutidas no pedido de impeachment. Dilma – que precisava defender seu mandato obtido nas urnas – se calou. A esperança de travar o impeachment foi vencida pelo medo de um revés jurídico decisivo. O sistema partidário se move no compasso das esferas judiciais. A Operação Lava Jato acelera os batimentos cardíacos. O STF opera como um calmante, com efeitos colaterais para o futuro próximo. A Nova República foi improvisada sobre o edifício partidário de uma ditadura de duas décadas. As técnicas utilizadas pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) se tornaram o senso comum da redemocratização. A capacidade de agregação, a postergação de antagonismos, a incoerência programática e a tolerância com a corrupção permeiam o arco temporal que vai de Tancredo a Dilma. Já não mais um arremedo de oposição a conferir fumaças de legitimidade à ditadura, o PMDB mantém essas práticas como garantidor da continuidade de um jovem sistema democrático. Ao partido coube, nas barganhas que criaram a Nova República, o papel de agregador4. A capacidade de agregar é uma técnica decisiva da democracia homeopática. A Nova República surge de uma separação fundamental entre o sistema político e a sociedade civil. A integração de novos grupos políticos é um mecanismo para infundir vitalidade num sistema elitista, vulnerável a paralisias. Os recém-chegados são legitimados à medida, que mantém o funcionamento do sistema entre crises. O sistema partidário opera numa mistura de competição e colaboração – disputando novas elites, mantidas a uma distância segura e mobilizadas de forma lenta e gradual. Esse não é o caso do STF – um poder da República que raras vezes ocupou o papel outrora reservado, no Império, ao poder moderador5. Um dos efeitos colaterais do novo protagonismo do STF na crise institucional: a ação política se aristocratiza. A hipertrofia do Judiciário intensifica o elemento elitista da Nova República, às custas de sua capacidade de agregação. Outra lógica é a postergação de antagonismos. A Nova República é um sistema político limitado, sujeito a entraves periódicos. Crises “surgem” quando a dinâmica política produz um conflito entre partes do sistema. Colaboração é um imperativo sistêmico durante crises. “Todos” devem manter as tensões nos limites do sistema partidário. Tudo pode ser acomodado. A fim de evitar vácuos políticos e erosão sistêmica, rupturas incrementais trazem novos grupos para dentro. A colaboração legitima a incoerência programática que se estabelece entre novos e velhos participantes. As rupturas buscam inovações que coexistam com o PMDB agregador, via fisiologia. O STF põe fim à acomodação de antagonismos: decide. Mesmo suas indecisões se mostram decisivas no curso do impasse institucional (como a declaração do ministro Luís Edson Fachin, de que não cabe ao Supremo definir crimes de responsabilidade6). Ao decidir (mesmo que por inércia), o STF impede que novas elites sejam cooptadas: a infusão de sangue novo é estancada. O entrave institucional que desaguou na corte máxima tem seu atrito maximizado por transferência de funções. 4

Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). Nas ruínas de Tancredo, um Brasil mais democrático, mas imperfeito. SRDZ. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/248386. Acesso em: 21 de Abril de 2015. 5 Insight surgido em conversas com Bárbara Tigre Maia, sobre ciclos de democracias e autoritarismos na história brasileira 6 Insight surgido em conversas com Bárbara Tigre Maia, sobre o papel do STF no processo de impeachment

Sob judice, a política aristocratizada do atrito máximo expõe a adesão relutante da Nova República à democracia. Desaparecem espaços de contestação e de manifestação de uma maioria silenciada. Uma mola-mestra do sistema partidário é a tolerância com a corrupção. Esta se reproduz no sistema à medida em que não impede que este “funcione” (produza crescimento econômico). A antinomia sistêmica não opõe a corrupção à virtude, mas opera em termos de estagnação versus crescimento. O crescimento econômico tolera o patrimonialismo dos dividendos, mas governos de PIBinhos são estigmatizados com a pecha da corrupção. A Judicialização muda os estigmas de lugar. Aqueles dantes virtuosos passam ao banco dos réus. O PIBinho pode ser tolerado em nome da estabilidade. A corrupção sedimentada não pode ser erradicada de uma só vez, num ato único de violência. A hipertrofia do Judiciário ataca a corrupção fixando-a no espectro político. Ao tornar a corrupção visível, o Judiciário limita as escolhas disponíveis para o eleitorado – ainda que se veja como um aplicador abstrato da lei produzindo equilíbrios7. As expectativas de uma redemocratização profunda a partir de um impeachment são maiores do que os exemplos na história brasileira. Em recente artigo8, Lilia Schwarcz apontou a ruptura política como mito fundador da nacionalidade brasileira. Na independência política em 1822, “teve golpe”. O fim do governo Sarney já tivera uma depressão para chamar de sua. Hiperinflação, greves e planos econômicos efêmeros. Collor foi eleito na esteira da apatia pós-Cruzado, pós-Constituição de 1988. Uma ressaca de muitos anos foi curtida no dia do impeachment de Collor, em 1992. A primeira novidade de 1993 foi o escândalo dos “anões do Orçamento”. Longe de afastar o desalento pré-impeachment, os anões reiteraram linhas centrais da Nova República. No dizer do líder do PT e candidato derrotado em 1989, o Congresso era dominado por “uma maioria de 300 picaretas”. Após a breve união nacional de Itamar, os messianismos bem-sucedidos de Cardoso e Lula produziram ambições crescentes: não haveria mais crises profundas como as de Sarney e Collor. Numa trágica coincidência, o PT de Lula e o PSDB de Cardoso estão imbricados decisivamente na crise política atual – marcada pelo equilíbrio do ódio e pela proliferação de profetas, messias e nostalgias. Ao transformar o impeachment de Rousseff num julgamento de vida ou morte, PT e PSDB escalaram a crise para níveis de hostilidade incompatíveis com o “pleno” funcionamento da Nova República – e reiteraram o papel do PMDB no sistema. Nacos do PMDB são disputados à unha. Em meio às frustrações do cortejo e ao ódio destilado, o PMDB exerce seu papel de agregador9. Tucanos e petistas disputam eleições diretas. O PMDB conquista seus governos, indiretamente10. Nas crises, o partido é investido de poderes centrais em caráter transitório. O imperativo de colaboração é invocado: “todos” devem contribuir para o fim das tensões. Novas vozes políticas são reconhecidas num arranjo seminovo. A Nova República foi projetada para uma constante transição. 7

Efeito apontado no Federalist Paper 74, de Alexander Hamilton (1788). Agradeço Gabriela Carneiro pela lembrança. https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2016/Golpes-e-contragolpes 9 Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). Entre Ódio e Impeachment, a Democracia Silenciada. Medium. Disponível em: https://medium.com/@CarlosFredericoPdSG/entre-%C3%B3dio-e-impeachment-a-democracia-silenciada-ac878394be03#.yr1p6tgpk. Acesso em: 22 de Março de 2016. 10 Ibid. 8

O último solavanco sistêmico adveio em 201311. Novas elites políticas se mobilizaram em espaços relegados ao esquecimento, de forma imprevista. A contestação não visava derrubar ou apoiar um governo. A sobreposição de diferentes bandeiras desfraldou uma diversidade de insatisfações. A novidade não veio de forma lenta, segura e gradual. Não atendia necessidades do sistema partidário. A repressão dessas contestações pelas principais forças políticas da Nova República deixou no ar um silêncio brutal de ressaca – e transbordou insatisfações sobre o sistema partidário. A politização compulsiva patrocinada por um sistema partidário contestado deixou rastros de faíscas. Ansiedade política imprime contornos violentos no monólogo da crise12. A convivência envenenada ergue muros de silêncio no futuro: a dignidade do outro lado está fora de questão13. Ao longo do espectro político sob contestação, representantes eleitos (muitos deles acusados de corrupção) apostam no discurso de ódio14, messianismo15 e na escalada de tensões do impeachment como catarse. Esse processo desagua nas cortes que, longe de prover equilíbrio entre beligerantes16, se tornam uma força política em seus próprios termos, atuando com feições pretorianas17. A hipertrofia do Judiciário aprofunda o desequilíbrio político. O STF não foi projetado para empurrar a Nova República numa transição tortuosa18. Tal tarefa coube ao tribunal por contradições sistêmicas. A Judicialização bloqueia a transição perpétua e põe o sistema em marcha, rumo ao desconhecido. Contesta as lógicas sistêmicas, ao passo que se torna herdeira de suas tensões. O impeachment trouxe o Judiciário para o coração político da caducante Nova República. Suas batidas agora oscilam entre o frenesi e a ressaca. Nesse compasso, a canção da democracia hesita... O STF não quer substituir o Executivo e o Legislativo. Age sob pressão. Quer que as demais peças do jogo funcionem. As dores de uma jovem democracia em transição não lhe comprazem. O drama pouco muda, se o foco passa do STF para o TSE. Anular as eleições de 2014 para realizar novas eleições “resolveria” as contradições políticas (não apenas eleitorais) da jovem democracia? Levará algum tempo até que o sistema político brasileiro seja permeável o suficiente a contestações contínuas e ao mesmo tempo, capaz de operar sob intensa supervisão da lei. Um sistema flexível para uma democracia mais ampla e profunda, que inclua as muitas vozes silenciadas com dignidade. A crise política não esperou o processo de impeachment cessar. O dia seguinte virá sob judice.

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Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2013). Reordenação em Progresso no Brasil. Observatório da Imprensa. Disponível em:

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed752_reordenacao_em_progresso_no_brasil. Acesso em: 25 de Junho de 2013. 12

Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). Brasil 2016: O Monólogo Violento da Crise e o Futuro da Cidadania. SRZD. Disponível em: http://www.sidneyrezende.com/noticia/260960+brasil+2016+o+monologo+violento+da+crise+e+o+futuro+da+cidadania. Acesso em: 11 de Março de 2016. 13 Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). Brasil 2016: O Monólogo Violento da Crise e o Futuro da Cidadania. 14 Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). Entre Ódio e Impeachment, a Democracia Silenciada. 15 Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). A crise de memória e a diferença que o PT pode fazer. Carta Maior. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-crise-de-memoria-e-a-diferenca-que-o-PT-pode-fazer/4/32937 . Acesso em: 24 de Fevereiro de 2015. 16 Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). Nas ruínas de Tancredo, um Brasil mais democrático, mas imperfeito. 17 Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2016). Entre Ódio e Impeachment, a Democracia Silenciada. 18 Gama, Carlos Frederico Pereira da Silva (2015). Nas ruínas de Tancredo, um Brasil mais democrático, mas imperfeito.

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