Sob o céu verde do Mayombe, as vozes de Angola

June 6, 2017 | Autor: Susana Ventura | Categoria: Literatura Angolana, Pepetela
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"Pepetela" significa "pestana", em umbundo, uma das línguas nacionais de Angola, o que coincide com o sobrenome português do autor. Essa alcunha lhe foi dada como nome de guerra quando começou a ter atuação política. O autor assina seus livros exclusivamente como Pepetela.
Os historiadores portugueses chamam a este mesmo conflito de Guerra Colonial.
As passagens do romance referidas neste artigo são da edição brasileira.
Em geografia, nomeia-se enclave a um território completamente cercado por um território estrangeiro; esse território é considerado um enclave do território em que está localizado e um exclave do território que exerce a soberania sobre ele. Assim, a província de Cabinda é um exclave de Angola. Esta curiosa situação geográfica de Cabinda ilustra bem a situação de vários países africanos, que tiveram suas fronteiras definidas a partir da Conferência de Berlim (1884-1885). Traçadas praticamente a régua e compasso, as fronteiras entre os países muitas vezes separavam etnias e, por outro lado, obrigavam povos inimigos à convivência.
Chamamos banto ao "grupo de povos negróides distribuídos entre a África equatorial e a austral, falantes de inúmeras línguas reunidas sob tal denominação. Não constituem uma raça, nem uma civilização, não há uma arte banta nem costumes bantos; trata-se apenas de um termo técnico, usado por linguistas" (HOUAISS, 2002). Embora o dicionário afirme que o termo banto restringe-se a uma denominação linguística, é usual, nos estudos antropológicos, o emprego desse termo para designar toda uma cultura comum a esses povos.
Orixá é uma divindade que medeia a relação entre os homens e as forças naturais e sobrenaturais, para várias religiões de origem africana.
Os titãs eram gigantes de força descomunal e natureza divina, que fazem parte do panteão grego. Foram gerados da união de Gaia (a Terra) com Urano (o Céu).
Língua falada na Costa Oriental da África e em algumas de suas ilhas.
Língua falada ao Norte da Nigéria.

Sob o céu verde do Mayombe,
as vozes de Angola

Ana Cláudia da Silva
Susana Ramos Ventura

Introdução
Este artigo tem como objetivo a apresentação do romance Mayombe (1982), do escritor angolano Pepetela. Trata-se de uma das obras capitais da literatura angolana e que também se sobressai nos conjuntos das literaturas africanas dos países de língua portuguesa. Antes de adentrar ao universo da obra, realizamos um percurso pela biografia e obra do autor visto que o conhecimento das circunstâncias biográficas do autor ilumina a obra em questão, uma vez que existem marcadas componentes da realidade angolana do período plasmadas nesta ficção.
O romance trata da vida de um grupo de soldados empenhados na luta de libertação de Angola, que se encontrava sob domínio português. O grupo formado por diferentes representantes do povo angolano encontra-se em treinamento e luta numa floresta no extremo Norte do país, a floresta do Mayombe. Esse grupo é composto por elementos das várias etnias existentes em Angola. A multiplicidade encontra espelho na forma do romance, em que vários narradores compartilham a função narrativa.
A este entrecruzamento de vozes corresponde um entrelaçamento cultural que já está presente desde a dedicatória da obra, em que são convocados mitos africanos e europeus. Das muitas vozes do romance, escolhemos privilegiar algumas, em fragmentos que evidenciam as principais questões ideológicas enfrentadas no período formativo da nação angolana.
O autor e a obra
Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela, nasceu na cidade de Benguela (Angola), em 1941, e cursou Engenharia no Instituto Superior Técnico, em Portugal, que frequentou até 1960. Em 1961, transferiu-se para o curso de Letras. Nesse mesmo ano, teve início em Luanda uma revolta que originaria a Luta de Libertação Nacional. De 1960 a 1970, Pepetela frequentou a Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, cuja história está ligada à história da literatura angolana.
Estudantes angolanos, a partir de 1940, completado o ensino secundário nos dois liceus da colónia, começavam a afluir em número crescente a Portugal em busca duma formação universitária.
[...] Partiam no bojo de um navio, já saudosos, mas decididos a vencerem e a regressarem, para um dia, juntamente com aqueles que ficavam, construírem uma Angola maior, mais bela e mais justa.
[...] Em Lisboa fundavam a Casa dos Estudantes de Angola, local que passaria a ser o ponto de reunião. Ali, no convívio diário, encontravam uma forma de estreitar os seus laços de amizade e de suavizar a saudade das suas terras e das suas famílias, às quais regressavam [...] só depois de concluídos os seus estudos.
[...] Sob a direcção de um grupo de jovens dinâmicos e entusiásticos, iniciava assim a sua actividade o primeiro organismo estudantil de Angola na cidade de Lisboa (ERVEDOSA, s/d, p. 73-75).
Em 1963, Pepetela torna-se militante do Movimento Popular para a Libertação de Angola, o MPLA, movimento de tendência marxista-leninista que teve uma atuação fundamental na luta pela independência de Angola, obtida em 1975, e governou o país como partido único até 1991, quando se deu a abertura política. Angola viveu suas primeiras eleições em 1992, vencidas pelo MPLA; essa vitória não foi plenamente aceita no território nacional, o que levou o país novamente à guerra – desta vez, um conflito civil que durou até 2002.
Homem de intensa atividade política, Pepetela atuou diretamente na guerrilha, em Cabinda, e vivenciou um longo período de exílio na França e na Argélia, onde concluiu sua formação universitária, licenciando-se em Sociologia. Em 1975, com a independência de Angola, Pepetela foi nomeado Vice-Ministro da Educação, no governo de Agostinho Neto.
Em 1997, o autor recebe o Prêmio Camões, pelo conjunto da sua obra e, em 2002, é condecorado com a Ordem do Rio Branco, título de honra concedido pelo governo brasileiro a diplomatas e personalidades brasileiras ou estrangeiras que se distinguem por suas virtudes cívicas e por atos dignos de menção honrosa. Atualmente, Pepetela leciona Sociologia na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Luanda.
Seu romance Mayombe foi escrito em 1971, na cidade de Dolisie, na República do Congo, a partir de suas experiências como guerrilheiro no Norte de Angola, e teve sua publicação somente em 1980, numa parceria editorial entre as Edições 70, de Lisboa, e a União dos Escritores Angolanos (UEA), de Luanda. Sua publicação no Brasil data de 1982, pela Editora Ática. O romance recebeu, em 1980, o "Prêmio Nacional de Literatura", outorgado pela União dos Escritores Africanos.
Além de Mayombe (1982), Pepetela publicou um grande número de romances, gênero em que se destaca, dentre os quais podemos citar Yaka (1984), Lueji: O nascimento de um império (1990), A geração da utopia (1992), e Predadores (2005). Nestes romances, o autor reflete sobre diversos momentos da história de Angola, desde antes de tornar-se um país, até a situação vivida no presente.


No limiar do romance
O romance Mayombe é composto de cinco capítulos – "A missão", "Base", "Ondina", "A Surucucu" e "A amoreira" – e um epílogo. Logo no início, chama a atenção do leitor a dedicatória do romance:
Aos guerrilheiros do Mayombe,
que ousaram desafiar os deuses
abrindo um caminho na floresta obscura,
Vou contar a história de Ogun,
o Prometeu africano (PEPETELA, 1982, p. 3).
Desta dedicatória, podemos depreender várias alusões importantes para a compreensão da obra. Em primeiro lugar, Mayombe, palavra que dá título ao romance e comparece também na dedicatória, é o nome de uma floresta tropical de Cabinda, província que constitui um exclave ao norte de Angola; trata-se de um território angolano situado nas terras da República do Congo. É nessa floresta que se passa a ação do romance, idealizado pelo autor lá mesmo, nos intervalos entre os combates da Luta de Libertação Nacional. Ao nomear o romance, a floresta do Mayombe torna-se também uma poderosa metáfora: do mesmo modo como a floresta é composta por um grande número de espécies de árvores, assim também os vários povos que habitam Angola viriam a constituir uma única nação. O romance, assim, é dedicado aos companheiros de guerrilha do autor, àqueles que lutaram no Mayombe.
Desses guerreiros, o autor afirma que "ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura" (PEPETELA, 1982, p. 3). Esse ato constitui uma ousadia porque, para a tradição religiosa dos bantos, o homem só pode adentrar as terras sagradas das florestas se pedir permissão aos deuses que nela habitam; essa solicitação é geralmente intermediada pela autoridade religiosa local.
A outra menção importante da dedicatória do romance é a Ogum, um dos orixás que compõem o panteão de várias religiões de matriz africana. Conta a lenda que Ogum era um grande guerreiro, de espírito combativo e conquistador. Sua violência não poupava os inimigos, quando o assunto era a conquista de um território ou de riquezas. Ogum era também um grande conquistador amoroso, tendo tido várias mulheres e com elas concebido filhos que o auxiliavam na manutenção de seus domínios. Após muitos combates, Ogum tornou-se um orixá (VERGER, 1997, p. 14-16).
Na dedicatória de Mayombe (1982), Pepetela identifica Ogum como o Prometeu africano. Vale lembrar que, na mitologia grega (VERNANT, 2000, p. 59-61), Prometeu era um titã ousado, que afronta Zeus ao roubar o fogo dos deuses para oferecê-lo aos homens. Com a obtenção do fogo, os homens ganham independência em relação aos deuses, podendo gerir desde a sua alimentação até a produção de ferramentas, passando de um estágio de dependência para outro, de maior autonomia. Essa impertinência de Prometeu gerou a fúria de Zeus, que lhe atribuiu um grande castigo: ele foi acorrentado a um penhasco e diariamente um abutre comia-lhe o fígado, que voltava a regenerar-se para ser novamente devorado.
Assim, Pepetela invoca, não só no paratexto do romance, mas também na finalização do epílogo - "Tal é o destino de Ogun, o Prometeu africano" (PEPETELA, 1982, p. 268) - dois guerreiros míticos de culturas distintas, evidenciando a matriz africana, na figura de Ogum, e a européia, tributária da cultura ocidental, na figura de Prometeu. A menção a estes guerreiros ilustra o papel fundamental das tradições africanas e européias na fundação da nação angolana.
Esta conjugação de tradições, somada à metáfora da floresta, mostra um viés ideológico do romance, que marca a necessidade de juntar forças, oriundas de diferentes culturas e etnias, a fim de forjar uma identidade nacional que possibilitasse a independência do país com relação ao domínio português.

As vozes da floresta
Chegamos, assim, a uma das questões centrais do romance, que se resolve pela forma: o romance tem um narrador principal heterodiegético, cuja voz é interrompida, muitas vezes, para ceder a primazia da narração a outros nove narradores-personagens, que assumem temporariamente a instância narrativa, como narradores autodiegéticos. Segundo Abdala Júnior, o narrador
[...] constrói a imagem da selva (Mayombe), vendo-a de cima como um formidável conjunto de árvores - umas mais fortes, outras nem tanto – árvores que se encontram no entrecruzamento dos galhos. Assim, compacta, a floresta (imagem de Angola) pode resistir e persistir – uma reunião simbólica de indivíduos e etnias diferentes do país. [...]
Essa imagem da floresta é evidentemente recurso estrutural do romance: cada capítulo tem – como os troncos de árvores diferentes, mais ou menos desenvolvidos – narradores diferentes, costurados desde a posição elevada do narrador. (2003, p. 243-244).
A participação de cada narrador-personagem é anunciada por subtítulos que informam quem está assumindo a voz a partir dali, tais como: "Eu, o narrador, sou Milagre" (PEPETELA, 1982, p. 67); "Eu, o narrador, sou Mundo Novo" (PEPETELA, 1982, p. 82) ou "Eu, o narrador, sou o Chefe de Operações" (PEPETELA, 1982, p. 229). Note-se que a mesma estrutura frasal se repete em cada subtítulo: "Eu, o narrador, sou...", evidenciando que, ao lado da multiplicidade das vozes que se inserem no romance, há uma intenção unificadora por detrás da narrativa, o que concorda com o projeto de unificação nacional. Aqui, forma e conteúdo coincidem plenamente: a solução formal vem ao encontro da matéria narrada. O resultado deste procedimento é a diversidade de vozes na composição do romance, auxiliando o leitor a compreender o mosaico étnico e humano de que se compõe a sociedade angolana. Mas por que isto acontece neste romance? Qual o sentido desta composição de múltiplas vozes? Para Santilli (2003),
O que parece ocorrer [...] é que a heteronímia viabiliza pôr à mostra a forma pela qual cada um está para o outro, e como todos estão para a libertação.
Em Mayombe o desdobramento dramático que as mudanças de vozes indiciam permite representar a disputa de comando também no âmbito interno da guerrilha angolana, à medida que as vozes, como exercício de autonomia de seus respectivos sujeitos, deixam transparecer as ambições dos diferentes atores na demanda de disputar o espaço verticalizado das instâncias de decisão, de poder (2003, p. 299-300).
Vale lembrar que a grande maioria das personagens de Mayombe (PEPETELA, 1982) são nomeadas de acordo com o seu nome de guerra (Muatiânvua), ou com a função que exercem dentro do grupo (Comissário Político), ou a partir de características de personalidade (Sem Medo), ou, ainda, a partir de suas ações dentro do grupo (Lutamos).
Segundo o antropólogo Carlos Serrano,
Pepetela, ao dar primazia ao "narrador", revela ainda esta dimensão da oralidade, comum às sociedades africanas, e importante no resgate das suas identidades. Identidade que se constrói pela memória dos narradores fictícios (personagens e/ou atores e pelo próprio autor) (1999, p. 133).
Assim, a valorização da oralidade é fator crucial neste romance, não só pela circulação do foco narrativo, como pelas inúmeras conversas que se dão ao longo do romance. Segundo Chaves,
Na floresta situada em Cabinda, os guerrilheiros fazem a luta e discutem sobre sua realização e seus desdobramentos. Ali, ameaçados por tantos perigos, perdem-se em longas conversas a respeito do que deverá ser o país após a independência. Impressiona na montagem textual a atmosfera de diálogo, marcando diversos níveis da narrativa. Sob o céu verde, conversam os guerrilheiros entre si, conversam os homens com a natureza, dialogam consigo mesmo (e com o leitor, a quem, sutil ou diretamente, se dirigem) os muitos narradores a quem o narrador titular abre espaço para que exprimam a sua leitura das coisas. As infindáveis discussões, ao revelarem as dificuldades e prenunciarem impasses, exprimem também a necessidade e a vontade de maior compreensão entre os vários mundos que precisam se fundir para enfrentar o inimigo maior [o colonizador português], que ameaça suas vidas, e a terra por onde se movem e onde estão instaladas muitas outras vidas (2005, p. 89).
Na floresta do Mayombe, além de pegar em armas, os guerrilheiros são submetidos a uma formação político-ideológica que inclui a alfabetização, o uso da língua portuguesa como língua unificadora e um processo de formação de uma consciência nacional, como estratégia para combater um inimigo historicamente poderoso.
Vejamos agora como as inserções de alguns desses narradores - marcadas graficamente pelo uso de itálico - trazem à tona um fluxo de consciência em que transparecem questões centrais do romance, que refletem não somente a situação de Angola plasmada nesta ficção como também a enfrentada em diversos países africanos naquele momento.

Teoria e Milagre
Apresentamos agora os dois primeiros narradores-personagens que comparecem no primeiro capítulo: Teoria e Milagre. Teoria cumpre, frente ao grupo de guerrilheiros, a função de professor. Ele se apresenta da seguinte forma:
Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e este é o meu motor. Num universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é não para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? (PEPETELA, 1982, p. 6 e 7)
Nesta fala podemos identificar uma questão crucial para a formação da nação angolana, que é a miscigenação e o modo conflituoso como ela é apreendida. A personagem identifica-se pela região em que nasceu e apresenta sua terra pelo produto ali cultivado: café, que teve grande participação na configuração da economia colonial. Em seguida, apresenta-nos seus pais: a mãe, angolana, negra e ligada simbolicamente à terra; o pai, português, branco e ligado profissionalmente ao comércio. A condição de mestiço não é colocada diretamente como questão racial, e sim elaborada a partir da impossibilidade de conciliação, que leva a personagem a se perceber como um ser de transição entre dois universos antagônicos: um "talvez" problematizante num mundo maniqueísta, polarizado entre sim e não, branco e negro, africano e europeu. Teoria, no entanto, credita a isso o "motor" de seu próprio ser.
Milagre, por sua vez, desempenha no grupo uma função estritamente militar, como operador da bazuca. Ele se apresenta no texto da seguinte maneira:
Nasci em Quibaxe, região kimbundo, como o Comissário e o Chefe de Operações, que são dali próximo.
Bazuqueiro, gosto de ver os caminhões carregados de tropa serem travados pelo meu tiro certeiro. Penso que na vida não pode haver maior prazer.
A minha terra é rica em café, mas o meu pai sempre foi um pobre camponês. E eu só fiz a Primeira Classe, o resto aprendi aqui, na Revolução.(PEPETELA, 1982, p.32)
Esta personagem, tal como Teoria, começa a se apresentar a partir da região de seu nascimento, porém, a seguir, acrescenta um dado que refere não apenas sua etnia, quimbundo, o que na sua percepção o aproxima de dois outros membros do grupo, o Comissário e o Chefe de Operações. Na sequência, regozija-se com a tarefa que desempenha, não apenas por ser útil ao grupo,mas porque lhe causa prazer pessoal destruir os caminhões que transportam os soldados inimigos.
A riqueza da terra natal - o café – é apresentada em contraposição `a pobreza do homem que a cultiva, no caso o pai de Milagre. Mais do que uma informação sobre a família, este fragmento deixa transparecer nas entrelinhas um documento da exploração colonial, que explora o camponês pobre e impede seus filhos de conquistarem uma vida melhor por não terem acesso a bens culturais, como o estudo. Apesar de ter apenas um ano de escolaridade, a personagem tributa o complemento de sua formação à Revolução, sinalizando novamente o caráter educativo assumido pelos grupos de libertação que atuavam em Angola neste momento.

Muatiânvua e Lutamos
Muatiânvua, outro narrador-personagem, narra da seguinte forma a situação vivenciada pelo pai:
Meu pai era um trabalhador bailundo da Diamang, minha mãe uma kimbundo do Songo.
O meu pai morreu tuberculoso com o trabalho das minas, um ano depois de eu nascer. Nasci na Lunda, no centro do diamante. O meu pai cavou com a picareta a terra virgem, carregou vagões de terra, que ia ser separada para dela se libertarem os diamantes. Morreu num hospital da Companhia, tuberculoso. O meu pai pegou com as mãos rudes milhares de escudos de diamantes. A nós não deixou um só, nem sequer o salário de um mês.(PEPETELA, 1982, p. 131)
Filho de representantes de duas etnias – bailundo e quimbundo –, Muatiânvua enfoca a realidade do mineiro. A extração de diamantes era feita pela Diamang, empresa estatal portuguesa detentora do monopólio da exploração em Angola. Essa atividade era mal remunerada e insalubre, o que ocasionava a morte prematura dos trabalhadores. A empresa por sua vez, além das más condições de trabalho, não oferecia qualquer tipo de assistência às famílias dos mineiros mortos. Muantiânvua nasceu na Lunda, maior centro de produção diamantífera, e na construção de seu relato novamente se evidencia o contraste entre as riquezas do país e a pobreza de seus trabalhadores. A riqueza era escoada para Portugal – até mesmo a riqueza da terra angolana é medida com a moeda portuguesa (escudo).
A personagem Muatiânvua torna-se marinheiro, vivenciando uma intensa troca cultural, desvinculando-se de questões tribais, como se depreende do trecho em destaque:
Querem hoje que eu seja tribalista!
De que tribo?, pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não só de Angola, como de África? não falo eu o swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual é a minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes? E agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O português. A que tribo angolana pertence a língua portuguesa?
Eu sou o que é posto de lado, porque não seguiu o sangue da mãe kimbundo ou o sangue do pai umbundo. Também Sem Medo, também Teoria, também o Comissário, e tantos outros mais." (PEPETELA, 1982, p. 133)
No contexto da época, tribalismo significava divisão, uma vez que a valorização identitária era para com o grupo étnico. Assim, inimigos históricos, como por exemplo os Cabindas e os Quicongos, discriminavam-se mutuamente. A isso eram somadas as questões de raça, que se prendiam majoritariamente ao tom de pele. Negros e brancos se viam como opostos e os mestiços eram discriminados por ambos. O romance mostra como o grupo de guerrilheiros realizava um trabalho de formação que visava a superação de ambos os conflitos – étnico e racial – em prol da conquista da independência do país. A personagem Muatiânvua, em suas viagens, adquire a consciência da pluralidade linguística e étnica, porém também se ressente com a segregação.
Lutamos, por sua vez, em seu discurso, também questiona o tribalismo existente entre os próprios guerrilheiros, unidos por um ideal comum:
Amanhã, no ataque, quantos naturais de Cabinda haverá? Um, eu mesmo. Um, no meio de cinquenta. Como convencer os guerrilheiros de outras regiões de que o meu povo não é só feito de traidores? Como os convencer que eu próprio não sou traidor?
[...] Quem me defenderá dos outros, quem terá a coragem de se opor ao tribalismo?(PEPETELA, 1982, p. 257).
O ressentimento que perpassa a consciência da personagem é antes um ressentimento pelo julgamento que fazem os outros dos representantes de sua etnia; só num segundo momento aparece a preocupação de Lutamos com a sua imagem pessoal diante do grupo. Neste fragmento, o narrador-personagem expressa também o medo de, na hora da batalha, não ser respaldado e protegido pelos demais elementos do grupo em virtude do preconceito generalizado contra os Cabindas.

Considerações finais
Neste artigo procuramos abrir algumas vertentes interpretativas que conjugam a observação acurada de trechos do romance Mayombe, do escritor angolano Pepetela, com referências extra-literárias, essenciais para uma compreensão mais completa da obra.Não pretendemos com isso esgotar as possibilidades interpretativas suscitadas pelo romance. Esperamos, porém, que o leitor se sinta convidado à leitura desta obra, que se encontra entre a mais representativas das literaturas africanas de língua portuguesa, que têm na contemporaneidade sua produção mais significativa.

Referências:
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CENTRO DE INVESTIGAÇÃO PARA TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS. Literatura: Pepetela. Disponível em . Acesso em 15.06.06, às 12h20.
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
DUTRA, Robson Lacerda. Pepetela. Disponível em . Acesso em 15.06.06, às 11h37.
ERVEDOSA, Carlos. Roteiro da literatura angolana. Luanda: União dos Escritores Angolanos, s/d.
GOMES, Aldónio; CAVACAS, Fernanda. Dicionário de autores de literaturas africanas de Língua Portuguesa.. Lisboa: Caminho, 1997.
PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982.
SANTILLI, Maria Aparecida. Paralelas e tangentes: entre literaturas de língua portuguesa. São Paulo: Arte & Ciência, 2003.
SERRANO, Carlos. O romance como documento social: o caso Mayombe. In: Via Atlântica. n. 3. São Paulo: USP/FFLCH/Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 1999, p. 132 – 139.
VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos orixás. 4. ed. Trad. de Maria Aparecida da Nóbrega. Salvador: Corrupio, 1997.
VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Trad. de Rosa Freire d'Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.




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