SOB O SÍMBOLO DO GLAMOUR: Um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social

May 26, 2017 | Autor: Thiago Soliva | Categoria: Glamour, Travesti, Sexualidades, Mudança Social
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILODOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

Thiago Barcelos Soliva

SOB O SÍMBOLO DO GLAMOUR: Um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social

Rio de Janeiro 2016

Thiago Barcelos Soliva

SOB O SÍMBOLO DO GLAMOUR: Um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural).

Orientadora: Profª. Dra. Mirian Goldenberg Coorientadora: Profª Dra. Maria Elvira Díaz Benítez

Rio de Janeiro 2016

À Marquesa e Anuar Farah, eternas Divas.

AGRADECIMENTOS

Esta tese é o coroamento de uma longa jornada da qual participaram pessoas que listo aqui como essenciais em diferentes momentos da minha vida. Chegar até o ponto final desta tese foi um processo que envolveu altos e baixos, mas sinto-me muito grato por sempre poder contar com alguém nessa jornada.

À minha orientadora, Professora Dra. Mirian Goldenberg, pela parceria que construímos juntos nestes anos de mestrado e doutorado.

À minha coorientadora, Professora Dra. Maria Elvira Díaz Benítez, pela generosidade e amizade com que aceitou este compromisso.

Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo ambiente agradável e intelectualmente estimulante.

Às secretárias do PPGSA, Claudia de Jesus Vianna, Verônica e Ângela Dias, pela assistência prestativa e sempre simpática na resolução de problemas burocráticos indispensáveis a rotina acadêmica.

À Capes, pela concessão da bolsa de doutorado, sem a qual não seria possível executar este trabalho.

Aos/às professores/as Maria Barroso, Maria Laura Viveiros de Castro, Sérgio Carrara e Horácio Sívori pelas aulas enriquecedoras que seguramente lançaram muita luz a esta tese.

Aos/às professores/as Maria Laura Viveiros de Castro e Sérgio Carrara pelos comentários valiosos na banca de qualificação.

Aos/às professores/as Regina Facchini, Luiz Fernando Dias Duarte, Peter Fry e Maria Laura Viveiros de Castro por aceitarem compor a banca de defesa. Agradeço, principalmente, a professora Dra. Regina Facchini, pela troca estimulante em congressos e via internet. Seus elogios a minha dissertação me ofereceram um inestimável vigor.

À Thaís Chaves Ferraz, pela minuciosa e valiosa revisão do texto final.

À minha mãe, a quem devo grande parte do que sou. Sua dedicação maternal foi extremamente valiosa, sobretudo nos momentos em que o cansaço e a perda de esperanças se abateram sobre mim.

Ao meu marido e companheiro de vida, Franciel da Silva Cruz Gregório, pela sua simplicidade em se relacionar com a vida, pela leveza com que construímos nossa relação e pelos jantares deliciosos que me prepara com tanto amor.

Às minhas irmãs: Vanessa Barcelos Soliva, Júlia Maria Barcelos Soliva e Tatiana Barcelos Torres, pela convivência agradável.

Às minhas tias: Ângela, Carla, Solange, Creuza, Vera Lúcia e Gracinha que sempre me mostraram que os problemas da vida se resolvem com boa música, alegria e muita dança.

À amiga Joice Cristina Campos, pela atenção fraternal e pela forma sempre lúcida de me dar conselhos sobre a vida.

À amiga Claudia Moraes, pelo apoio material e espiritual que ofereceu para a construção deste trabalho.

Aos amigos do Instituto de Segurança Pública: Núbia dos Santos, Diego Gimenes e Mayara Farage.

Aos/às queridos/as amigos/as que fiz ao longo de minha trajetória acadêmica: Gustavo Saggese, Márcio Zamboni, Gibran Braga, Rafael Noleto, Robson Cardoso de Oliveira, Guilherme Passamani, Isadora Lins França, Paula Lacerda, Lucas Freire, Raphael Bispo e Margareth Cristina de Almeida Gomes.

Às/aos queridas/os amigas/os do NESEG: Nathalia Gonçales, Rodrigo Coelho, Natalia Alves, Larissa Quillinan, Thaíza Santos, Vivien Merciel, Diana Neves e Vanessa Lourenço.

Aos pesquisadores do NuSEX.

À querida Rita Colaço, pelas sugestões valiosas, ótimas tardes e generosidade acadêmica refletida na disponibilização de fontes de pesquisa sem as quais essa tese não seria possível.

Aos queridos amigos, Ramon Reis, Milton Ribeiro e Bruno Puccinelli, pela troca estimulante, pelo senso de humor diante da vida e pelas sugestões de bibliografia. Com esses pesquisadores aprendi a fazer boa antropologia. Amo vocês!

Por último, mas não menos importante, gostaria de agradecer imensamente a todas/os as/os interlocutoras/os que me ajudaram na construção desta tese.

Over The Rainbow

Somewhere over the rainbow, way up high There's a land that I've heard of Once in a lullaby Somewhere over the rainbow, skies are blue And the dreams that you dare to dream Really do come true Some day I'll wish upon a star And wake up where the clouds are far behind me Where troubles melt like lemon drops Away above the chimney tops That's where you'll find me Somewhere over the rainbow, blue birds fly Birds fly over the rainbow Why, then, oh why can't I? If happy little blue birds fly Beyond the rainbow Why oh why, can't I? Judy Garland1

1

Dedico esta música à Turma OK, espaço de sociabilidade homossexual por excelência.

RESUMO

SOLIVA, Thiago Barcelos. Sob o símbolo do glamour: um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciência Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

Esta tese constitui uma contribuição aos estudos de gênero e sexualidade no Brasil. O objetivo geral deste estudo é analisar as formas de agenciamento, estratégias de resistência e as mudanças nas convenções sociais relacionadas à diversidade de gênero e sexualidades não normativas no contexto brasileiro. Focalizando a relação entre essas convenções e a ideia de glamour, cujas imagens e sentidos estão profundamente associados ao mercado de bens culturais e de entretenimento que se desenvolveu na segunda metade do século XX, busca-se compreender como indivíduos situados fora da norma heterossexual incorporaram e manejaram essas imagens na construção de formas de agenciamento e de “universos simbólicos” específicos. O argumento principal deste trabalho é que o glamour, conjugando imagens de cosmopolismo e modernidade, se constituiu como um tipo de agência entre esses indivíduos, permitindo que habitassem o mundo, reivindicando existência dentro da norma heterossexual. Para tanto, este estudo se baseia em um conjunto diferenciado de fontes, que incluem documentos, pesquisa bibliográfica, jornais, revistas, fotografias e relatos de trajetória de vida de indivíduos diretamente envolvidos em tais processos. Palavras-chave: homossexualidades; glamour; travestis; mudança social; resistência.

ABSTRACT

SOLIVA, Thiago Barcelos. Sob o símbolo do glamour: um estudo sobre homossexualidades, resistência e mudança social. 2016. Tese (Doutorado em Antropologia Cultural) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciência Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

This thesis is a contribution to gender and sexuality studies in Brazil. The aim of this study is to analyze the forms of agency, resistance strategies and changes in social conventions relating to gender diversity and sexualities not normative in the Brazilian context. Focusing on the relationship between these conventions and the idea of glamor, whose images and meanings are deeply associated with the cultural goods and entertainment that developed in the second half of the twentieth century market, we seek to understand how individuals situated outside the heterosexual norm incorporated and wielded these images in the construction of forms of agency and "symbolic universes" specific. The main argument of this paper is that the glamor, combining modernity and cosmopolism images, constituted as a kind of agency among these individuals, allowing inhabit the world, claiming existence within the heterosexual norm. Therefore, this study is based on a different set of sources, including documents, literature, newspapers, magazines, photographs and life trajectory of reports of individuals directly involved in such processes. Keywords: homosexualities; glamor; travestis; social change; resistance.

LISTA DE IMAGENS

Imagem 01 – “Homens travestidos” durante o carnaval do Rio

53

Imagem 02 – Homem negro “em travesti” na Avenida Rio Branco, carnaval de 1940

54

Imagem 03 – Carnaval, Cinelândia, 1954

55

Imagem 04 – Abertura do filme de viagem Carnival in Rio, de Andre de LaVarre

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Imagem 05 – O Príncipe Hindu: fantasia com que Clóvis Bornay venceu o concurso de fantasias do Theatro Municipal, em 1937 69 Imagem 06 – Concurso de fantasias no Hotel Glória – 1975

73

Imagem 07 – Ivaná

80

Imagem 08 – Impresso do espetáculo Alta Tensão, realizado pela trupe de Les Girls, no Teatro das Nações, São Paulo 101 Imagem 09 – Trecho d’O Globo sobre o show Les Girls, na boate Stop

102

Imagem 10 – Trecho de O Globo sobre o show Very, Very Sexy realizado no Top Club, Rio de Janeiro, em 1965 105 Imagem 11 – Valéria, Coccinelle e Rogéria

107

Imagem 12 – Jane Di Castro na revista Fatos & Fotos, 1981

113

Imagem 13 – Matéria da revista Manchete, 1981

113

Imagem 14 – Divulgação da boate Sucata no Correio da Manhã

114

Imagem 15 – Impresso do espetáculo Misto Quente no Correio da Manhã, 20 jul. 1972

115

Imagem 16 – Impresso do espetáculo Les Girls, no Teatro Nacional, em Buenos Aires, em 1972 119

Imagem 17 – Impressos do Carrousel de Paris e do Madame Arthur

125

Imagem 18 – Coccinelle e Tracy-Lee, primeira geração do Carrousel de Paris

126

Imagem 19 – Jane Di Castro para o Carrousel de Paris

127

Imagem 20 – Yeda Brown para o Carrousel de Paris

128

Imagem 21 – Impressos jornalísticos veiculados na imprensa espanhola divulgando o Gay International Show, espetáculo do Carrousel de Paris com Marquesa 129 Imagem 22 – Weluma Brown entre outras Chacretes do Programa do Chacrinha

146

Imagem 23 – Dener na porta de sua Boutique em São Paulo

155

Imagem 24 – Clóvis Bornay participando do Programa Sílvio Santos

166

Imagem 25 – Cartum de Nani sobre as demissões de Dener e Clodovil

167

Imagem 26 - Jane Di Castro para O Pasquim, 1983

186

Imagem 27 – Cartaz promocional do filme Gilda

196

Imagem 28 – Capa do número 08 d’O Snob, na qual Gilka Dantas (Agildo Bezerra Guimarães) aparece coroada 212

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

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Percursos da pesquisa

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“Bichas”, “travestis”, “homossexuais”... Trânsitos identitários e mudanças nas convenções de gênero e sexualidade na sociedade brasileira

25

Metodologia

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Entre fragmentos, apagamentos e amizades

36

Organização dos capítulos

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CAPÍTULO I – O glamour e a construção de uma “sociedade bichal”: a produção de significados sobre as sexualidades não normativas no Brasil e o mercado de bens culturais

44

1.1 – O carnaval, a fotografia, os filmes de viagem e o espetáculo dos “homens em travesti”46 1.2 – Concursos de fantasia

67

1.3 – O Teatro de Revista

74

1.4 – Concursos de Miss

85

1.5 – Nos bastidores da Rádio Nacional

89

CAPÍTULO II – Internacionais e glamourizadas: a invenção da “travesti profissional” como “espetáculo de consumo”

95

2.1 – Sobre o talento de ser fabulosa: os “shows de travestis” e a invenção da “travesti profissional”

96

2.2 – Deslocamentos latinos

118

2.3 – A viagem e o seu retorno: o début das “travestis profissionais” na Europa

120

2.4 – Impactos duradouros

143

CAPÍTULO III – Sobre trejeitos e faceirices: o espetáculo das afetações e extravagâncias entre interdições e insurgências

151

3.1 – Dener é um luxo! Dandismo e as parafernálias de classe e gênero

152

3.2 – A guerra das tesouras: distinção e mudança social

158

3.3 – Insurgências na televisão: a “bichice” entre a proibição e o freak show

161

3.4 – A breve conquista do horário nobre

172

3.5 – Do glamour à abjeção

175

CAPÍTULO IV – Imaginando comunidades, parodiando convenções: diva, imaginação, resistência e agenciamentos

191

4.1 – Uma arqueologia da diva: o mito da “mulher fatal”

192

4.2 – As divas como totens

198

4.3 – Parodiando a sociedade, ritualizando a diva: o Snob, as turmas e a invenção de uma “sociedade bichal”

211

CONSIDERAÇÕES FINAIS

221

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

225

ANEXOS

240

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INTRODUÇÃO

Esta tese constitui uma contribuição aos estudos de gênero e sexualidade no Brasil. O objetivo geral deste estudo é analisar as formas de agenciamento, estratégias de resistência e as mudanças nas convenções sociais relacionadas à diversidade de gênero e sexualidades não normativas no contexto brasileiro. Focalizando a relação entre essas convenções e a ideia de glamour, cujas imagens e sentidos estão profundamente associados ao mercado de bens culturais e de entretenimento que se desenvolveu na segunda metade do século XX, busca-se compreender como indivíduos situados fora da norma heterossexual incorporaram e manejaram essas imagens na construção de formas de agenciamento e de “universos simbólicos” específicos. O argumento principal deste trabalho é que o glamour, conjugando imagens de cosmopolismo e modernidade, se constituiu como um tipo de agência entre esses indivíduos, permitindo que habitassem o mundo, reivindicando existência dentro da norma heterossexual. Para tanto, este estudo se baseia em um conjunto diferenciado de fontes, que incluem documentos, pesquisa bibliográfica, jornais, revistas, fotografias e relatos de trajetória de vida de indivíduos diretamente envolvidos em tais processos. Os problemas levantados por esta pesquisa se articulam às transformações daquilo que Carrara (2005) chamou de “homossexualidade” como “lugar social”. Tal perspectiva se torna uma contribuição importante aos estudos das sexualidades não normativas, uma vez que oferece uma percepção não essencializada desse complexo fenômeno como um processo produzido em múltiplos planos. É nesses termos que o mencionado autor propõe a necessidade de pensar o “lugar social” e “simbólico” ocupado por indivíduos considerados como fora da norma heterossexual na sociedade brasileira. Essa reflexão busca reter o caráter multifacetado das sexualidades não normativas como um processo que envolve diferentes dimensões do social. Para o autor, essas experiências devem ser definidas como: Um “lugar” simbólico, aberto a múltiplas incorporações, imagens e personificações. Um “lugar” que, se fala de estigma, de preconceito e de aprisionamento identitário, fala também de prazer, de potência, de irreverência, de transgressão, de mobilidade, de migração, de deriva, de uma continua e árdua transformação de si e dos outros (CARRARA, 2005, p. 23).

Pensar as transformações dessas experiências como “lugar social” implica reconhecer os processos de (des)construção, ressignificação, negociação e resistência que produziram a existência de um grupo de pessoas cujas vidas são marcadas por situações de silenciamento, marginalidade absoluta e assimilação (MISKOLCI, 2011) e, mais que isso, de todo um

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universo simbólico construído a partir dessas experiências. Simultaneamente, tal existência produziu mudanças significativas na própria sociedade brasileira e na forma como são organizadas suas convenções relacionadas a gênero e sexualidade. Esta tese trata desse duplo processo, de “transformação de si e dos outros”, como bem definiu Carrara (2005). Compreender as sexualidades não normativas como “lugar social” se aproxima ainda daquele processo a que Rubin (2003) chamou de “etnogênese sexual”. O interesse dessa autora foi justamente compreender o dinâmica de formação do que ela chama de “comunidades sexuais” ou “populações sexuais” na sociedade norte-americana. Ou seja, para ela, é instigante entender como determinadas práticas e desejos sexuais considerados estigmatizados em um dado período de tempo foram se institucionalizando em uma subcultura, na qual eram percebidos como normais e desejáveis (RUBIN, 2003). Dessa forma, Rubin oferece uma percepção desses indivíduos não como entidades clínicas ou expressões de uma psicologia individual, mas antes como um grupo social dotado de histórias, territórios, estruturas sociais, modos de comunicação, etc. Dadas tais intenções de Rubin (2003), o interesse pela construção de uma “etnogênese” das sexualidades não normativas no contexto urbano brasileiro anterior ao movimento homossexual reflete a necessidade de melhor compreender os processos de negociação e produção de sentidos que levaram indivíduos fora da norma heterossexual a atribuir significados a suas trajetórias e a construir um sistema cultural dotado de existência própria – contra-hegemônico da norma sexual vigente. Tais compromissos se alinham ainda às preocupações de Marcia Ochoa (2004) acerca das imaginativas estratégias de sobrevivência que indivíduos considerados fora da norma heterossexual inventam face à sociedade que os veem como ameaças às suas convenções. A autora chama a atenção para a seguinte estratégia de agenciamento: o “talento de ser fabulosa”, ou seja, um tipo de agência com a qual esses indivíduos negociaram existência, a partir da incorporação de imagens e performances relacionadas ao glamour. Considerando essa dimensão imaginativa, é importante explorar a relação entre esses sujeitos fora da norma e o mercado de bens culturais, contexto sobre o qual a ideia de glamour assume importância central na construção de imagens e representações. Tal investimento vem sendo comum entre pesquisadores norte-americanos (DYER, 2008; HALPERIN, 2012), mas são ainda tímidos no contexto brasileiro. O glamour é aqui entendido em sua íntima relação com o mercado de bens culturais e de entretenimento, tal como aquele formatado pela cultura de massas, espaço assentado nos sonhos e nas imagens (MORIN, 2007). Nos termos de Morin (2007), cultura de massas é definida como um fenômeno cujos inícios se encontram no processo de industrialização das

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sociedades moderno-contemporâneas. Para o autor, esta nova forma de industrialização se realiza através das imagens e dos sonhos, levando a um duplo movimento, a que chama de “industrialização do espírito” e “colonização da alma”. Morin refere-se a um dos desdobramentos mais recentes da sociedade de consumo, a qual não está mais circunscrita a circulação e consumo de objetos, mas antes a um “consumo psíquico”, cujo objetivo é penetrar na alma humana através de uma reserva quase infinita de imagens e na projeção de sonhos, alguns realizáveis somente no plano da imaginação. É neste contexto onde os sonhos e as imagens são responsáveis pela produção de sujeitos e projetos de vida que emergem “formas de vida” relacionadas às sexualidades não normativas. Tomando essa noção como ponto de partida para pensar as estratégias imaginativas de sobrevivência de indivíduos que estão fora do discurso hegemônico, como sugere Ochoa (2012), o argumento principal desta tese é que o glamour permitiu aqueles indivíduos fora da norma heterossexual habitar as normas (MAHMOOD, 2006), inserindo-se em espaços antes impenetráveis da sociedade. Ele se constituiu como uma “tecnologia da intimidade”, materializando um “espaço contingente de ser e pertencer” (OCHOA, 2012) entre esses indivíduos, através do qual foi possível existir. É possível sugerir que o investimento do mercado de bens culturais sobre esses sujeitos fora da norma estimulou a produção de novas formas de controle sobre a mesma. Tal regime discursivo passa de um “controle repressão” para um “controle estimulação”, nos termos de Foucault (1988), incitando a construção de novas “formas de vida” e transformando os lugares sociais ocupados por esses indivíduos. Simultaneamente, foi a partir do mercado de bens culturais que indivíduos fora da norma heterossexual puderam reinventar um espaço de agência e resistência, gerando solidariedade entre iguais e organizando formas de sociabilidade em torno de símbolos comuns associados à ideia de glamour, como é o caso das divas. Esse “controle estimulação” de que fala Foucault (1998) passa a evocar para as “bichas”, “bonecas”, “travestis profissionais”, etc. uma visibilidade sem precedentes, relacionada aos usos das novas “tecnologias do olho” (BRAH, 2006), como a fotografia, os filmes, as ondas radiofônicas e a televisão. Logo, o “homossexual”, de pervertido sexual restrito aos tratados produzidos pelos “doutores da pureza” (FRY, 1982), seria convertido em objeto de exibição pública, uma mercadoria cultural (MORIN, 2007) relacionada ao lucrativo negócio da “espetacularização do estranho” (LEITE JÚNIOR, 2006). Novas “formas de vida” foram inventadas nessa indústria, como as “travestis”, provocando fascinação e ansiedade no mundo ocidental. As “travestis” foram assimiladas a uma “maravilha” ou “prodígio” (LEITE

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JUNIOR, 2006) do mundo moderno, suscitando simultaneamente atração e rejeição de um público que se fascinava pela exuberante ambiguidade marcada em seus corpos. A fascinação por essas “formas de vida” não normativas está intimamente relacionada ao crescimento de uma “cultura do entretenimento”, item estruturante da cultura de massas moderna, com admite Leite Júnior (2006). Sugiro que foi a partir da incorporação de valores e sentidos, sobretudo relacionados à noção de glamour, que pessoas consideradas fora da norma heterossexual encontram um lugar de agência. Pensar esse processo sugere ainda reconhecer as suas conexões com outros focos de discussão. O processo de (des)fazer gêneros e sexualidades não normativas não pode ser considerado apartado dos efeitos produzidos pela articulação de diferentes eixos de subordinação e daqueles que instituem sobre as trajetórias, o “campo de possibilidades” e as escolhas dos indivíduos. Tampouco podemos deixar de considerar o contexto brasileiro no qual narrativas sobre a modernidade e o processo de construção do “dispositivo da sexualidade” ganharam sentidos específicos. Os efeitos da articulação desses marcadores vêm se constituindo em área de interesse entre pesquisadores preocupados com a contingencialidade das identidades e com a articulação de eixos de diferenciação (FACCHINI, 2008). Nessa conjuntura, a noção de interseccionalidade1 (CRENSHAW, 1991) vem sendo acionada para dar conta dessa constelação de experiências (MCCLINTOCK, 2010). Esta tese se situa dentro dessas abordagens, sobretudo das reflexões de Anne McClintock (2010) e de Avtar Brah (2006). McClintock (2010), principalmente na obra “Couro Imperial”, chama atenção para a forma como esses eixos de diferenciação são pensados equivocadamente como experiências que podem ser isoladas ou peças que se encaixam de forma simples, uma “soma de opressões”. Para a autora, marcadores como raça, classe, gênero e sexualidade não são “distintos reinos da experiência”, cuja existência pode ser avaliada de forma isolada. Sua razão de ser, argumenta a autora, está condicionada às relações históricas que travam entre si, surgindo apenas em “interdependência dinâmica, cambiante e íntima” (MCCLINTOCK, 2010, p. 104). Brah (2006) revela preocupação semelhante acerca dessas interconexões, concebendo a diferença como uma categoria de conhecimento para analisar essas conexões. A autora propõe refletir sobre a noção de diferença como uma categoria não essencialista, mas antes 1

O desenvolvimento dessas reflexões no Brasil vem sendo beneficiada por um conjunto de autores que tem produzido desde a década de 1970. No artigo Sobre gerações e trajetórias: uma breve genealogia das pesquisas em Ciências Sociais sobre (homo)sexualidades no Brasil, é possível acompanhar a trajetória desse debate articulada a formação da antropologia no Brasil (PUCCINELLI, REIS, RIBEIRO & SOLIVA, 2014).

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marcada por relações historicamente contingentes e articuladas a um dado contexto. Adotando como exemplos os usos das categorias “negro” e “feminismo”, ela realça o caráter histórico dessas práticas discursivas, que não podem ser reduzidas a um significado particular, mas se ligam a uma pluralidade de sentidos correlacionados ao contexto histórico no qual se inserem. Brah (2006) destaca o caráter processual das noções de sujeito político e experiência – alertando para o fato de que as identidades são sempre enunciados contingentes, portanto não essencialistas. Seguindo as formulações de Facchini (2008) acerca desses debates, pensar essa articulação é rentável, como afirma a autora, para uma reflexão a respeito de suas implicações em sistemas de classificação e convenções sociais e, ainda, na forma como essas convenções se materializam em corpos e relações sociais. Seguindo essas recomendações é que tomo o mercado de bens culturais e de entretenimento como um contexto que permite examinar as transformações das sexualidades não normativas como “lugar social” (CARRARA, 2005), combinado a um momento de forte crescimento urbano e vinculado a um cenário internacional mais amplo, em que os veículos de comunicação começam a operar mudanças na vida social mas, especialmente, passam a visibilizar “modos de vida” antes circunscritos a espaços silenciosos da sociedade.

Percursos da pesquisa

A escolha de um tema de pesquisa é sempre mediada por negociações delicadas entre as motivações do pesquisador e o “campo de possibilidades” que se abre ou não em relação à pesquisa. Minhas escolhas certamente foram mediadas por essa combinação de elementos, mas, principalmente, pela paixão que descobri existir em mim em relação à análise das formas de agenciamento dos homens que se relacionaram afetivo-sexualmente com outros homens e as representações decorrentes dessa forma de sociabilidade. Essa paixão se liga à necessidade de contribuir com a bibliografia especializada sobre as diversidades sexuais e de gêneros no Brasil, na qual ainda se encontram poucos estudos (GREEN, 2000; FIGARI, 2007) acerca dos processos de construção das sexualidades não normativas no período explorado pela pesquisa, segunda metade do século XX. Meu interesse pela relação entre sociabilidade, processos simbólicos e a construção de identidades coletivas não é recente. Já tenho me debruçado sobre ele desde a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense. Durante esse período fui bolsista de

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pesquisa (Pibic/CNPq) do professor João Bôsco Hora Góis, inserido em um projeto sobre violência contra “jovens homossexuais” universitários. Apesar de o tema principal da investigação ser as situações de violência sofridas por esses jovens em suas trajetórias, fiquei interessado nas estratégias de enfrentamento nesses contextos hostis. Um bloco de questões dessa pesquisa versava justamente sobre as formas de resistência. Uma dessas estratégias, a que mais me atraiu, era a adesão a grupos de sociabilidade, sobretudo na universidade, temática objeto de minha monografia. Na ocasião, pude perceber que existiam na universidade grupos de “jovens homossexuais” com graus diferentes de institucionalização, os quais se mobilizavam de distintas formas. Esses jovens faziam festas, emprestavam dinheiro uns aos outros, iam juntos aos almoços e jantares do bandejão2 da instituição, faziam atividades de conscientização da população acadêmica e até promoviam orgias entre eles. Um importante achado da pesquisa foi a percepção de que muitos jovens assumiram a sua “homossexualidade” depois de terem entrado para a faculdade, sobretudo em função dos contatos que começaram a travar com esses grupos. Ainda com esse conjunto de questões, fiz seleção para o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ. Fui selecionado com um projeto de pesquisa cujo foco era pesquisar a emergência e dinâmica de grupos gays universitários. Consegui ter acesso a esses grupos na pesquisa já mencionada. Meu objetivo era trabalhar especificamente com um destes, o Diversitas, grupo do qual fiz parte. Trata-se de “jovens homossexuais” que organizam um tipo de militância acadêmica – realizam cine-debates, participam das semanas de calourada, fazem palestras, encontros, etc. –, com o objetivo de sensibilizar a comunidade universitária para a temática da diversidade sexual. Esses diferentes grupos formados, mormente por alunos da graduação, realizam a cada ano um encontro – o Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual (ENUDS) – reunindo jovens gays universitários de diferentes regiões brasileiras. Já como mestrando dessa instituição, fui acometido por um momento de crises e incertezas que, de uma forma ou de outra, se abate sobre os jovens pesquisadores começando a vida acadêmica. Essa difícil decisão em relação aos meus objetivos de trabalho me levou a trocar o estudo dos “jovens homossexuais” por outro grupo de não tão jovens assim – decidi pesquisar na Turma OK. Sabia da existência desse grupo por “ouvir falar” mas tinha poucas informações sobre ele, adquiridas por meio de meu então orientador na graduação. É uma

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Restaurante universitário localizado no Campus do Gragoatá.

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associação fundada em 1962, com sede na Lapa, na época da pesquisa. Ela é formada majoritariamente por homens com “condutas homossexuais”, geralmente com mais de 50 anos de idade, dedicados a profissões variadas. Esses homens possuem uma longa história de amizades que guardam relações com as mudanças na sociabilidade “bichal” no Rio de Janeiro, tal como vivenciada nas décadas de 1950 em diante. Apesar de figurar nos principais trabalhos que se ocuparam da construção das sexualidades não normativas no Brasil, principalmente nas pesquisas de Green (2000), Figari (2007) e Costa (2010), a Turma OK é pouco conhecida no meio acadêmico e entre as pessoas LGBT em geral, mesmo entre aquelas vinculadas à militância organizada. Diante da oportunidade de estudar um grupo ainda pouco explorado por outros pesquisadores, fiquei seduzido pela tarefa de trazer à luz a história e a dinâmica dessa associação. Permaneci oito meses entre os “okeis”. Tornei-me sócio da instituição, participando ativamente de várias atividades organizadas pelo grupo, tais como shows, concursos e até mesmo um curso de dublagem oferecido por um de seus membros, um professor de teatro. Minhas noites de final de semana eram ocupadas por shows de artistas-transformistas, em que eram revividos estilos musicais consagrados por gerações passadas no palco da Turma OK. Sempre era tomado, nesses momentos, de um sentimento de nostalgia de um tempo que nem tinha experimentado, mas lembrado repetidamente por essas pessoas. Nessas ocasiões, a memória se constituía como um importante instrumento de resistência, que me fazia lembrar de um passado tortuoso, vivenciado por outros iguais a mim. Reconheço que muitas vezes me emocionei ouvindo ou vendo personagens que me inspiraram tanto a escrever a dissertação. Quando pensei em um tema de pesquisa para o doutorado na mesma instituição, tinha em mente dar continuidade aos achados que fiz na pesquisa na Turma OK, mas não sabia ainda como. Em uma conversa com o professor João Bôsco Hora Góis, surgiram elementos para um projeto de pesquisa que combinavam alguns pontos presentes de forma recorrente na experiência com a Turma OK. Nessa conversa, falávamos de alguns temas que apareceram de forma muito constante na minha dissertação. Um desses era a forma como esses indivíduos compartilhavam alguns “símbolos de distinção” que marcaram toda uma geração de indivíduos e ajudaram a organizar convenções sobre a diversidade sexual e de gênero, entre eles e a sociedade mais ampla. Essa discussão me levou a rever com mais cuidado o gosto dos homens com quem dialoguei pelos shows de artistas-transformistas, um dos principais motivos que os mobilizavam a se organizar em grupos de amigos. Identifiquei que esse gosto estava relacionado à idolatria que eles nutriam pelas divas do cinema norte-americano e do cenário

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musical brasileiro, sobretudo aquele povoado por artistas considerados mais antigos ou mesmo ultrapassados – como os repertórios melancólicos e dramáticos das cantoras do rádio. Mulheres como Judy Garland, Barbra Streisand, Liza Minnelli, Elizeth Cardoso, Emilinha Borba e outras cantoras e atrizes, ainda que estivessem separadas por décadas umas das outras, eram consideradas por esses homens como símbolos de beleza e de elegância. Nas conversas, os entrevistados mostraram que essas mulheres pareciam estar ainda bem vivas em suas memórias, ainda que muitas não fossem suas contemporâneas. Essa questão me fez retornar à análise de Pollak (1989) sobre as memórias dos franceses da Normandia em relação à II Guerra Mundial. Esse autor observou que as narrativas dos moradores dessa região não correspondiam aos eventos históricos transcorridos, uma vez que suas memórias sobre homens com capacetes pontiagudos durante a II Grande Guerra se relacionavam antes ao tipo de uniforme usado pelos soldados da I Grande Guerra. Isso implica dizer que a dimensão afetiva e coletiva da memória supera a própria experiência vivida, evidenciando a complexidade que caracteriza essa parte da vida social. Durante a pesquisa, notei que a paixão desses homens pelas grandes divas exigia de mim, como pesquisador, um comprometimento que ia além da prática da observação e da leitura de textos acadêmicos. Era necessário realizar uma imersão no gosto desses homens. Fui apresentado então a um universo que conhecia muito pouco, principalmente em função da falta de interesse que a minha geração tinha por esses ícones. Recorri a diferentes estratégias para a constituição desse capital cultural desconhecido pela minha geração. Vi muitos vídeos no YouTube, procurei frequentar musicais, li sinopses de espetáculos, privilegiei conhecer a história dessas mulheres, li biografias – sobretudo a de Carmem Miranda. Carmem Miranda aparecia para esses homens da Turma OK uma personagem muito presente. Apesar de sua morte prematura na década de 1950, o legado estético dela era lembrado como significando, simultaneamente, o glamour e o exagero. Enfim, busquei enriquecer o meu olhar para a compreensão da visão de mundo desses homens. Essa imersão despertou-me uma paixão especial por esse universo. A recepção dessas informações não apenas enriquecia o meu repertório cultural como também implicava mudanças na minha vida, interligando, em uma experiência singular, não somente uma cultura diferente, como sugeriu Peirano (1991), mas, ainda, gerações distintas. Musicais, idas a espetáculos e apresentações antigas assistidas no computador foram se tornando constantes em meus dias.

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Outro elemento que me chamou a atenção foi a energia direcionada para a organização dos concursos de miss na Turma OK. Lá pude presenciar a preparação e o acontecimento do “Miss OK”, o mais importante concurso de beleza e elegância feito pela associação. A observação mais atenta para esses eventos me fez refletir sobre os aspectos simbólicos que estes apresentam. Mais do que disputas entre homens que se vestiam de mulher, eles se constituíam como marcos históricos de uma geração de “homens homossexuais”. Nesses concursos estavam sendo construídos significados sobre as sexualidades não normativas, os quais foram fundamentais para construção de uma identidade – um “sentido de comunidade” – compartilhada por esses indivíduos. Esses elementos me ajudaram a compreender que a sociabilidade desses homens era animada por um conjunto de valores sociais que predominavam em suas narrativas – elegância, luxo, glamour e beleza eram, certamente, os mais importantes. Percebi que essas palavras tinham uma força mágica, capaz de organizar espaços, hierarquizar pessoas ou dotálas de prestígio. O glamour, sobretudo, aparecia como uma chave que permitia que essas pessoas habitassem o mundo, através da qual elas eram convertidas divas. A experiência de pesquisa com a Turma OK me conduziu a uma série de questões sobre a formação daquilo que Meccia (2011) definiu como “regime de homossexualidade”. Para este autor, o “regime de homossexualidade” consiste naquele tipo de experiência social – incluindo aqui práticas, imaginários e representações que associadas às trajetórias individuais se distinguem da experiência heterossexual – na qual as sexualidades não normativas eram vivenciadas no registro da invisibilidade, sofrimento e marginalidade, em contraposição ao “regime de gaycidade” que, para o autor, é a ideia de orgulho que desponta como elemento fundamental para organizar representações sobre a temática. Outra característica estruturante do

“regime

de

homossexualidade”

é

a

produção

de

representações

sobre

as

“homossexualidades” a partir de marcas de feminilidade. A Turma OK parecia estruturar-se no “regime de homossexualidade”, valorizando em sua dinâmica de sociabilidade elementos rejeitados pelos indivíduos de gerações mais recentes, como os shows de dublagem e concursos de beleza estilo miss3. Esse gap geracional produzia entre os “okeis”, em relação aos demais frequentadores de espaços de sociabilidade homossexual no Rio de Janeiro, um conjunto de mágoas e atritos. Os “okeis”, principalmente aqueles mais antigos no grupo, acusavam os “homens

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Nos últimos anos, temos assistido a um retorno dos concursos estilo “Miss”. O Miss Brasil Gay realizado em Juiz de Fora, Minas Gerais, é um exemplo emblemático de que o gosto por esse tipo de evento ainda persiste na “comunidade gay”.

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homossexuais” mais jovens de se esquecerem que foram eles que impulsionaram as transformações sociais que permitiram maior visibilidade para o conjunto das “pessoas LGBT”, incluindo maior liberdade em manifestar sua identidade sexual em diferentes espaços. Essa foi, certamente, uma questão importante que surgiu na pesquisa de mestrado, o que ajuda a compreender essa transição entre o “regime de homossexualidade” e o “regime de gaycidade” no contexto brasileiro (MECCIA, 2011). Outro importante ponto de tensão manifestado entre os “okeis” e outros homens que se relacionam afetivo-sexualmente com homens, sobretudo os mais jovens, foi em relação à forma como os primeiros valorizavam certas práticas e símbolos que não são tão apreciados pelos últimos. Em um dado momento, sobretudo a partir da década de 1980, deixaram de ser importantes elementos que associavam as “homossexualidades” à feminilidade, em um processo que Pollak (1987) já havia destacado e que seria constitutivo de novas representações sobre as “homossexualidades” e, principalmente, sobre a “identidade homossexual”. Essa redefinição da “identidade homossexual” implicaria ainda a forma como esse grupo organizaria a sua militância (MACRAE, 1982). Considerando esses apontamentos e buscando aprofundar os resultados da pesquisa de mestrado, além de contribuir para o adensamento das discussões sobre a construção das diversidades de gênero e sexualidades no Brasil, proponho nesta tese pensar as transformações dessas convenções, relacionadas às profundas modificações provocadas pela formação desse mercado de bens culturais e de entretenimento, que converteram o glamour em tópico de interesse. A partir desse contexto é possível perceber que a percepção pública em torno das sexualidades não normativas foi redimensionada, ainda que momentaneamente, de um lugar de excrescências para outro, de fascínio e desejo.

“Bichas”, “travestis”, “homossexuais”... Trânsitos identitários e mudanças nas convenções de gênero e sexualidade na sociedade brasileira

Antes de me debruçar sobre o tema desta tese propriamente dito, cabe elucidar alguns problemas de classificação sobre os quais esta análise se estrutura, facilitando assim a leitura deste texto. “Homossexuais”, “travestis”, “bissexuais”, “transexuais” e outras identidades coletivas e expressões de gênero são construções bem recentes no que é possível chamar de “história das homossexualidades no Brasil”, e mesmo em outras realidades. O impacto da obra de Foucault (1988) nos estudos de gênero e sexualidade tem mostrado o caráter histórico

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dessas convenções e classificações acerca da sexualidade. Em a “História da sexualidade: a vontade de saber”, o autor lança as bases do argumento que marcou de forma decisiva a produção sobre sexualidade, sobretudo no conjunto das ciências sociais. Para Foucault (1988), a sexualidade é histórica e a sua existência está condicionada à produção de discursos disciplinadores de corpos e prazeres. Contudo, essas ideias não faziam parte somente da produção foucaultiana: elas apareceram de forma simultânea nos trabalhos de Jeffrey Weeks e Mary McIntosh4. Ao primeiro autor é atribuída a distinção entre “comportamento homossexual” e “identidade homossexual”. De acordo com Weeks (2000), o “comportamento homossexual” é um fato observável em diferentes culturas espalhadas pelo mundo, mas somente nas sociedades ocidentais se desenvolveu uma “identidade homossexual”, elaborada por símbolos, discursos e práticas. Já a Mary McIntosh é reputada a noção de “papel homossexual”. Analisando registros da “homossexualidade” na Inglaterra, a autora percebeu a emergência de um conjunto de expectativas sociais relacionadas à “homossexualidade” associadas aos indivíduos que teria se organizado a partir da ocupação de espaços por homens que se relacionavam afetivo-sexualmente com outros homens, um rótulo. A existência desse rótulo constrangeria o comportamento a adequar-se às expectativas sociais e sexuais conforme estereótipos. O argumento da autora sugere que a noção de “papel homossexual” está diretamente vinculada ao desenvolvimento das sociedades moderno-industriais, as quais ofereceram condições para a emergência desse rótulo. Apesar do pouco alcance desses autores, dado o duradouro impacto de Foucault (1988) no Brasil, as ideias de Mary McIntosh ganharam operacionalidade no influente trabalho de Peter Fry sobre a construção da “homossexualidade” no país. No artigo “Da hierarquia a igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil”, Fry (1982) se ocupa da forma como os brasileiros organizam categorias de conhecimento relacionadas à “homossexualidade masculina”. A partir das contribuições de McIntosh, o autor sugere que as taxonomias são como “profecias que se cumprem”. Ele afirma que é postulada,“por exemplo, a existência de um tipo natural, o homossexual com sua essência e especificidade, e ele logo passa a existir” (FRY, 1982, p. 89). Para o autor, a construção de categorias de pessoas relacionadas à “homossexualidade”, apesar da influência do saber médico e do moderno

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Carrara e Simões (2007) revisitam esses autores como estruturantes na produção antropológica brasileira sobre gênero e sexualidade, sobretudo no que se relaciona aos impactos de suas ideias nos trabalhos de Peter Fry sobre “homossexualidade masculina”. De acordo com ambos, a invisibilidade de trabalhos como os de Jeffrey Weeks e Mary McIntosh se deu em função da massificação da obra de Foucault.

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movimento homossexual, só pode ser efetivada e validada em função de condições sociais específicas – no caso por ele estudado, o contexto brasileiro. Vance (1995), ao falar da contribuição da antropologia aos estudos sobre a sexualidade, também chama atenção para essa questão. Ao adotar a noção de “homossexualidade” para explicar a ocorrência de enlaces sexuais entre pessoas do mesmo sexo em sociedades estudadas pelos antropólogos, esses pesquisadores estariam incorrendo em um etnocentrismo – tema tão caro aos antropólogos –, posto que não seria correto transferir para essas sociedades uma categoria tão carregada de sentidos forjados nas nossas sociedades. Nessa perspectiva, adotar categorias identitárias cuja existência se liga a processos sociais e momentos históricos bem específicos constitui um ponto de tensão, apontando para implicações significativas no tempo e no espaço, acarretando riscos de se estar incorrendo em anacronismo ou etnocentrismo. O uso de categorias identitárias relacionadas às diversidades de gênero e sexualidades, assim, encerra problemas de classificação que merecem reflexão por sua estreita relação com os diferentes processos de mudanças operadas em uma dada sociedade. Quanto a essa discussão, Mauss e Durkheim (1964) já haviam alertado para o fato de as classificações explicarem mais sobre as lógicas subjacentes às sociedades que produzem uma dada categoria classificatória do que sobre uma essência comum compartilhada por aqueles sobre os quais recai a classificação. Assim, examinar a emergência dessas categorias implica compreender como as diferentes sociedades constroem expectativas sociais acerca de seus indivíduos cuja função é atenuar as ansiedades provocadas pela possibilidade da ambiguidade. Foi exatamente sobre esse ponto que se debruçou o famoso artigo de Fry (1982). Considerando as influências desses autores, podemos inferir que a noção de “homossexualidade” é histórica e discursiva, e se relaciona diretamente às mudanças processadas no conjunto da sociedade brasileira. Se para Foucault (1988) não seria correto admitir a existência da “homossexualidade” nas sociedades clássicas da antiguidade, como Roma e Grécia, posto que lá o que ocorria era um “comportamento homossexual” (WEEKS, 2000), não é correto afirmar que os processos examinados por esta tese correspondem à existência de categorias identitárias contemporâneas como “gay” e “travesti” ou mesmo “homossexual”, cujas existências não possuíam materialidade, mesmo para os “doutores da pureza” que se dedicaram a examinar as raízes da “homossexualidade”5 (FRY, 1982).

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De acordo os trabalhos de autores como Leonídio Ribeiro, não existia uma distinção clara entre expressões de gênero e identidade sexual. O modelo médico, tal como analisado por Fry (1982), mesclava sexualidade e

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Outro dado que complexifica ainda mais essas formas de classificação é a possibilidade de falar delas em “tempos que não são o presente” (PASSAMANI, 205), algo que esta tese busca explorar. Passamani (2015) fala de “rupturas” e “permanências” em relação a essas formas de classificação que não atendem as percepções mais atuais sobre o que se entende por “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Considerando essa difícil inteligibilidade, todo uso de expressões com ambições de explicar essa diversidade de experiências é sempre algo contingente e momentâneo (PASSAMANI, 2015). Dadas essas dificuldades, adoto nesta tese um cardápio extenso de termos que se relacionam a essa constelação de experiências. Falo de um universo povoado por “bichas”, “bofes”, “frescos”, “homens em travesti”, “bonecas”, “enxutos”, “travestis profissionais”, etc. – categorias vinculadas às experiências sociais de indivíduos situadas por constrangimentos sociais e contextos históricos. No contexto aqui tratado, décadas de 1950 a 1970, a noção de “bicha” abarcava, simultaneamente, o que hoje definimos por “homossexuais” e “travestis”. A emergência da noção de “travesti profissional”, analisada no capítulo II, mostra essa relação de disputa de sentidos em torno dessas duas dimensões. “Homossexuais” e “travestis” constituíam processos sociais que estavam em construção e em disputa com dimensões relacionadas a diferentes experiências que envolviam corpo, gênero, sexualidade, classe social, cor, etc. É um risco colocar, inclusive, a expressão “homossexualidades” no título desta tese, mas assumirei este risco com o propósito de mostrar como ela esteve relacionada a mudanças sociais mais profundas nas convenções relacionadas a gênero e sexualidades. Para falar dessa multidão de categorias, adoto ainda as expressões “sexualidades não normativas” e “diversidades de gênero e sexualidade” com a intenção de situar essa diversidade de classificações identitárias. Considerando essas preocupações, convencionei a adoção de aspas quando há referência a categorias nativas relacionadas às diversidades de gênero e sexualidades cujas existências são, no termo consagrado por Brah (2006), um “campo em contestação”. Tal estratégia visa a reconhecer o caráter não essencialista dessas categorias, portanto inscritas em dimensões históricas específicas. Mesmo a noção de “homossexualidade” e o moderno “gay” serão grafados da mesma forma, já que também se relacionam a tensões e disputas de sentidos envolvendo a articulação dos campos médico e dos movimentos sociais pela livre expressão sexual que emergiram na década de 1960. Tal como Brah (2006), sugiro que as categorias gênero, ao classificar de “invertidos sexuais” todo aquele conjunto de práticas, identidades e representações associadas hoje com outras sexualidades não normativas e expressões e expressões de gênero.

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relacionadas à produção da diferença e da identidade se inscrevem em processos e práticas discursivas circunscritas em um dado terreno histórico, sobre o qual se estabelecem seus efeitos.

Metodologia

Esta pesquisa pode ser definida como explicativa, posto que busca aprofundar um dado tema sobre um campo de estudos que vem se expandindo e se consolidando nos últimos anos no Brasil, as sexualidades não normativas. Possui ainda uma abordagem qualitativa, com uma preocupação em interpretar os dados de pesquisa (GEERTZ, 2008). Para Goldenberg (1995; 1997), a pesquisa qualitativa se distingue da quantitativa por conseguir evidenciar questões que certamente não poderiam ser reveladas pelo uso de estratégias de caráter mais estatístico. Essa característica abre a possibilidade de constituir como fonte inúmeros registros que permitem analisar um dado problema de pesquisa. Compreender a construção e transformação das convenções de gênero e sexualidades não normativas como “lugar social” no Brasil não é tarefa fácil. Implica debruçar-se sobre silêncios e registros pouco evidentes que demandam estratégias diversificadas de construção de dados. Dessa forma, nosso espaço etnográfico é constituído por revistas, jornais, entrevistas, propagandas, etc. Somada a esse conjunto de fontes, a memória demonstra ser, neste trabalho, um importante estoque etnográfico. São as lembranças evocadas tanto através das entrevistas pessoais quanto aquelas encontradas na pesquisa documental que revelam as evidências simbólicas que possibilitaram escrever esta tese. Esta parte do trabalho se dedica a abordar as fontes de pesquisa e o trabalho de campo com os quais foi construída esta tese. Ocupa-se ainda de apresentar de forma detalhada as estratégias funcionais que viabilizaram a realização dessa pesquisa. Como afirma França (2012), em sua pesquisa sobre três espaços de sociabilidade relacionados à “homossexualidade” em São Paulo, definir as transformações concernentes à “homossexualidade” como “lugar social” a partir de limites históricos precisos é tarefa difícil. Esses limites são sempre provisórios, admite a autora. Considerando tal questão, esta pesquisa prefere trabalhar com a noção de inícios para se referir a esses processos provisórios. Dessa forma, faz sentido identificar um desses inícios no carnaval e no Teatro de Revista, que datam da virada do século XIX para o XX. Mesmo separados por décadas do período de emergência da “sociabilidade homossexual” no Brasil, como afirma a literatura dedicada ao tema

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(GREEN, 2000; FIGARI, 2007), esses eventos ofereceram um material simbólico imprescindível a esse surgimento. Da mesma forma, esses pontos de partida tiveram nas décadas de 1960, 1970 e 1980 episódios importantes e que operaram mudanças, sentidas até hoje nesse processo. Isso se explica em função de um conjunto de acontecimentos que marcaram o processo de construção das sexualidades não normativas, mas a sociedade brasileira como um todo. Grandes transformações marcaram esses períodos, tais como: o surgimento dos movimentos feministas, homossexual e negro, na década de 1960; a emergência das classes médias nos grandes centros urbanos brasileiros, na década de 1970; a emergência da televisão como principal veículo de comunicação, na década de 1980; a deflagração de uma ditadura militar; a eclosão de estéticas e estilos de vida contraculturais, a importância da psicanálise na vida dos indivíduos, o advento da AIDS e, principalmente, o aparecimento de espaços dedicados à “sociabilidade homossexual”. Essas décadas serão o contexto principal desta tese. A percepção acerca desses contextos merece, contudo, uma reflexão. É correto afirmar que os contextos não são vivenciados da mesma forma por todos os indivíduos que participam de uma mesma sociedade em um dado período histórico. A ditadura militar, por exemplo, não foi percebida com a mesma intensidade entre os diferentes setores que compunham a sociedade brasileira. Para os objetivos perseguidos neste trabalho, é importante dizer que alguns contextos foram mais importantes do que outros. Assim, é possível dizer que a conjuntura da ditadura foi bem controversa, oferecendo a possibilidade de um costureiro com ares afetados “aparecer na televisão”, ainda que tenha sido rapidamente substituído, como foi o caso de Dener6. Simultaneamente, a presença de “travestis” era censurada na TV e a existência de espaços de “sociabilidade homossexual” era reprimida, como pode ser percebido na literatura produzida sobre o período (GREEN, 2000; FIGARI, 2007). Com isso, quero afirmar que conceberei esses contextos não como totalidades que impactariam de igual maneira as biografias individuais, mas sim como mais um registro da vida social que só faz sentido quando articulado a outros elementos, como classe, sexualidade, cor, etc. De uma forma ou de outra, esse conjunto de transformações marcou as trajetórias e o “campo de possibilidades” (VELHO, 2003) de uma geração de homens que se relacionavam sexualmente com outros do mesmo sexo. Em função dessa multiplicidade de contextos, recorro a um conjunto diferenciado de fontes de pesquisa, que associadas às histórias de vida oferecerão evidências empíricas a esta análise. O uso das trajetórias, para esse propósito, 6

Dener Pamplona de Abreu foi convidado para ser jurado no Programa Flávio Cavalcanti, um dos programas mais populares da televisão, na época.

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conduz a algumas questões. Bourdieu (1998), ao se debruçar sobre o tema, destaca os riscos a que os pesquisadores estão expostos de se construir trajetórias cujo efeito é a sensação de se relacionar com relatos de vidas lineares. Como observa o autor: Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações (BOURDIEU, 1998, p.189-190).

A “ilusão biográfica” de que fala o autor reduz as trajetórias a narrativas totalizadoras, desconsiderando as colocações e deslocamentos possíveis que se relacionam às mesmas. Ao chamar a atenção sobre essas questões, Bourdieu (1998) alerta para a necessidade de ficar atento para as tensões existentes no fluxo de vida. Ou seja, os trânsitos entre o vivido e o desejado, peças fundamentais na construção dos projetos que dão contornos à vida dos indivíduos. Outra dimensão significativa que se relaciona aos trabalhos que se utilizam das trajetórias de vida é a questão da memória. Essa discussão está intimamente ligada aos escritos de Maurice Halbwachs. Para Halbwachs (2006), a memória não deve ser percebida apenas como um produto das consciências individuais, mas, principalmente, como um fenômeno coletivo e social (POLLACK, 1992). Ao atribuir uma dimensão social à memória, Halbwachs a submete às contingências sociais – às flutuações, mudanças e transformações que organizam a vida social. A partir das ideias do citado autor, Pollack (1989) irá chamar a atenção para a forma como a memória pode ser um componente importante para a coesão e a delimitação de fronteiras entre diferentes grupos sociais. Esse processo só pode se estabelecer a partir de um trabalho de “enquadramento” através do qual determinados elementos da história são selecionados e legitimados para poder representar a história de um dado grupo social. Essas ideias permitem perceber a memória como um efeito de seleção operada por hierarquias de prestígio. A memória não pode ser entendida como um processo biológico, mas social e situacional. É organizado por escolhas conscientes e inconscientes, respeitando uma ordem social. À luz dessas ideias, este trabalho não pretende entender essas trajetórias como totalidades lineares, mas em suas relações com contextos, agentes e, principalmente, com as relações de poder a que estão submetidas. Para McClintock (2010): A produção da história oral é uma tecnologia de poder sob contestação e, enquanto tal, não pode ser isolada do contexto de poder em que surge. A história oral envolve

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a reprodução tecnológica das memórias das pessoas; a vida instável do inconsciente; as deformações; evasões e repressões da memória, do desejo, da projeção, trauma, inveja, raiva, prazer (MCCLINTOCK, 2010, p. 450).

A autora faz pensar sobre o lado obscuro da memória, organizado por sentimentos confusos, instáveis e até mesmo antissociais. Percebendo essas trajetórias como processos em fluxos organizados em função de relações de poder, alio essas perspectivas à minha própria motivação como pesquisador gay: a vontade de lembrar desse passado apagado. Esse “sopro de vida” que é a memória dos subalternos, como destaca McClintock (2010), se constitui como um instrumento contra o esquecimento motivado por uma sociedade que legitima uma história oficial em que nós, gays, somos apagados dos registros. Este trabalho se constitui então como uma tentativa de lembrar a história desses indivíduos marginalizados por suas práticas sexuais, que participaram desse processo histórico também como protagonistas de grandes transformações sociais. Assim, esta pesquisa faz uso de diferentes fontes de dados: documentais, orais e fotográficos. A investigação fotográfica foi conduzida a partir do acesso ao acervo disponibilizado pelos informantes da pesquisa. Sempre que entrava em contato com algum interlocutor, já pelo telefone procurava saber se o mesmo tinha revistas, jornais ou fotografias pessoais que pudessem ajudar na construção da tese. Com a autorização dessas pessoas, eu reproduzia as fotografias com o uso do celular. Assim foi feito com as filhas de Clóvis Bornay, com o arquivo pessoal de Claudia Celeste e outros. Ter acesso às imagens com a assistência de seu portador ofereceu outros ganhos. Vendo as fotografias com o meu interlocutor, era possível relembrar algum dado esquecido durante a entrevista, ou mesmo ter acesso a alguma fofoca quase involuntariamente revelada, em função do calor da lembrança. Foi valioso ter acesso a esses registros de imagem, posto que ofereceram um “efeito de passado”, ou seja, tiveram a capacidade de reconstruir um dado período da história a partir de vínculo íntimo entre imagem e lembrança. Outro recurso adotado na coleta de fotografias foi a pesquisa no acervo mantido pelo Instituto Moreira Sales, o qual pode ser visualizado online. Neste acervo estão disponíveis fotografias de Augusto Malta, Marcel Gautherot e Thomas Farkas, usadas como evidências empíricas da visibilidade da transgressão de gênero no carnaval carioca. Outra fonte fundamental foi o material jornalístico disponível na Biblioteca Nacional e as leituras de publicações que circularam nos espaços de sociabilidade voltadas para as “bichas”, como os jornais O Snob e Lampião da Esquina. Esses jornais fizeram, ao longo de sua existência, algumas matérias importantes, sobretudo com as “travestis” que saíram do

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Brasil para trabalhar na Europa, as quais se constituem como um importante registro para a construção dessa tese. A escolha do material jornalístico – revistas em geral – foi também mediada pela agência dos meus informantes. Na Biblioteca Nacional, pesquisei as edições antigas da revista Fatos & Fotos, Manchete, Contigo e O Pasquim. A procura por esses veículos não foi feita ao acaso: esteve estreitamente ligada ao contexto das entrevistas. Alguns, como Marquesa, possuíam de forma muito viva em sua memória a sua presença em determinados veículos. Ela chegou mesmo a lembrar dos títulos das manchetes que estampou. Com esta informação, eu ia à biblioteca e procurava no acervo a reportagem. No caso de Divina Valéria, esta se recordava do ano de seu retorno ao Rio de Janeiro. Sabendo o ano preciso, vasculhei o acervo dessas revistas à procura de informações desse retorno. Com Rogéria e Eloína fiz o mesmo. Clóvis Bornay, Dener e Roberta Close possuíam mais registros de sua vida em veículos diferentes, inclusive entrevistas, facilitando o trabalho de pesquisa. O mesmo procedimento foi seguido para a pesquisa nos jornais. Sobre a busca em O Globo, Folha de S. Paulo e Última Hora, o acervo dos dois primeiros jornais está digitalizado em sites mantidos pelos próprios veículos de comunicação, já o Última Hora tem o acervo digitalizado pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. A disposição desse recurso facilitou o trabalho de coleta de dados. Assinei o jornal O Globo, sendo possível fazer as pesquisas no meu computador pessoal, as quais são facilitadas em razão dos mecanismos de buscas dispostos eletronicamente no site dedicado a esse propósito e mantido pelo jornal. Os buscadores podem, inclusive, ordenar a pesquisa por palavras-chave. Organizei-me a partir desse recurso, adotando expressões como “travesti”, “bicha”, “viado”, “invertidos sexuais” e os nomes dos meus interlocutores. O mesmo mecanismo também é mantido pela equipe do veículo Folha de S. Paulo, que vasculhei nos computadores da Biblioteca Nacional, onde pode ser usado gratuitamente. O site do Arquivo Público do Estado de São Paulo também oferece a possibilidade de busca, mas com menos recursos que as publicações anteriormente mencionadas. A pesquisa documental só foi bem-sucedida pois foi conduzida a partir das entrevistas que fiz. Foram realizadas entrevistas com indivíduos de uma dada geração que, como “guardiões da memória”, no sentido atribuído por Lins de Barros (1989), foram agentes nas transformações sociais que esta tese busca investigar. Essas pessoas foram escolhidas para a pesquisa por fazerem parte de uma geração que não somente experimentou as mudanças nas convenções relacionadas às sexualidades não normativas como “lugar social” como foi agente

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ativa nesses processos. Hoje, muitas delas se identificam como “travestis”, mas nem sempre foi dessa forma. A trajetória desses indivíduos registra o fluxo das mudanças nas convenções de gênero e sexualidade na sociedade brasileira. Pode-se arriscar afirmar que muitas delas possuem uma “trajetória Forrest Gump”, para mencionar um filme famoso na década de 1990, cujo personagem, Forrest Gump, sempre estava relacionado de alguma forma com as grandes transformações sociais que ocorriam na sociedade norte-americana na segunda metade do século XX, tais como a Guerra do Vietnã, a AIDS e a emergência da contracultura. Outro traço importante das histórias desse protagonista eram as personalidades influentes que conhecia ao longo de sua trajetória, como os presidentes norte-americanos John Kennedy e Lyndon Johnson. Assim como Forrest Gump, parece que minhas interlocutoras estavam no momento certo, modificando o curso da história em função de uma agência ativa, conhecendo pessoas influentes, percorrendo o mundo em um momento de importantes mudanças globais. Algumas dessas trajetórias foram construídas a partir de outras possibilidades, como livros biográficos, revistas e entrevistas dadas a meios de comunicação, sobretudo coletadas no site YouTube. Os nomes de todos os interlocutores foram mantidos por se tratar de indivíduos de reputação pública. Segue uma pequena biografia desses interlocutores e sua relevância para o estudo: 1) Rogéria – nascida em Cantagalo, município do Rio de Janeiro, em 1943, como Astolfo Barroso Pinto, nome que ela faz questão de lembrar em inúmeras entrevistas a veículos de comunicação, Rogéria iniciou a sua carreira como maquiadora da extinta TV Rio, e essa experiência permitiu que conhecesse atrizes como Fernanda Montenegro e Bibi Ferreira. Seu nome veio de um concurso de fantasias de carnaval do qual participara. Ficou famosa, assim como outras travestis, com o espetáculo “Les Girls”. Fez sucesso na Europa, sobretudo no Carrossel de Paris, onde foi considerada uma grande vedete. Regressou ao Brasil em 1973, já com o status de uma diva internacional. Rogéria participou de várias produções – cinema e televisão –, sendo uma das travestis mais conhecidas no Brasil;

2) Divina Valéria – nascida no subúrbio do Rio de Janeiro, provavelmente em 1942, Valéria passou parte de sua vida entre países da Europa e o Brasil. Aos 14 anos, já frequentava os auditórios das rádios, travando contato com as famosas cantoras do rádio. Sua inserção no backstage artístico da Rádio Nacional lhe proporcionou um

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convite para o espetáculo “Les Girls”, por meio do qual viajou para o Uruguai, para apresentar-se. Valéria se fixou nesse país em função de um romance que teve com um rapaz. Com o fim do relacionamento, ela retornou ao Rio. Na década de 1970, ela voltou ao Uruguai com um show chamado “Divina Valéria”, nome que adotou definitivamente;

3) Jane Di Castro – nascida no bairro de Botafogo, em 1948, Jane foi criada em Cascadura, ambos bairros do Rio de Janeiro. Sua estreia como artista foi no Teatro Dulcina, na Cinelândia, também com o espetáculo “Les Girls”. Foi levada a Paris por Eloína, onde atuou em cabarés. Circulou ainda em países como Alemanha e Espanha. Também participou do espetáculo “Gays Girls”, na Galeria Alaska, junto com Eloína. Além de artista é cabeleireira: trabalhou durante muito tempo em um salão no bairro de Ipanema, mas hoje possui o seu próprio;

4) Claudia Celeste – nascida em Vila Isabel, tradicional bairro do Rio de Janeiro, em 1952, Cláudia iniciou a sua vida artística em um espetáculo de Revista de Gugu Olimecha, no Teatro Rival. Ficou famosa por atuar em muitos filmes e novelas, como Espelho mágico (1977), da Rede Globo, e Olho por olho (1988), na Rede Manchete. A sua atuação na novela Espelho mágico despertou grande atenção da imprensa, uma vez que ela teria driblado a censura da ditadura, aparecendo em rede nacional;

5) Anuar Farah – antigo presidente da Turma OK. Nascido em Campos dos Goytacazes, em 1940, Anuar veio para o Rio de Janeiro em 1960. Logo se familiarizaria com a capital, encontrando aqui outros iguais que o ajudaram a vivenciar a sua sexualidade. Foi o responsável pela criação e circulação de várias publicações voltadas para os espaços de sociabilidade “bichal”;

6) Marquesa – nascido no Rio de Janeiro, em 1944, pertenceu a uma família de classe média-alta de origem francesa. Sua família tinha expectativas que se formasse em diplomacia, tendo-lhe oferecido uma educação esmerada. Marquesa iniciou a sua carreira no espetáculo International Set, em 1964, no Stop, na Galeria Alaska, no Rio de Janeiro. Participou também do elenco de Les Girls, em 1966, junto com Rogéria e Valéria.

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Essas entrevistas me ajudaram a resgatar aspectos da vida desses indivíduos. Devo reconhecer que a tarefa de selecionar informantes para esta pesquisa foi facilitada em função do trabalho de campo realizado no mestrado. Na ocasião, pude estabelecer relações mais próximas com indivíduos que conheciam de longa data essas pessoas. Algumas delas, como Marquesa e Rogéria, são próximas da Turma OK ou têm amigos íntimos que fazem parte do seu quadro de sócios. Marquesa, por exemplo, frequentou a associação até a data de sua morte, tendo comemorado lá o seu último aniversário, em 2015.

Entre fragmentos, apagamentos e amizades

Quando comecei a coletar dados para a produção desta tese, vários desafios me foram colocados, sobretudo associados a essa atividade. A primeira questão que se constituiu como desafio foi como reunir dados tão dispersos sobre as sexualidades não normativas, dada a ausência de iniciativas de resgatar e preservar essa memória. Uma das primeiras formas de reviver esse passado foi solucionada quando fui ao show “Divinas Divas”, um projeto organizado pela atriz e produtora Leandra Leal, que visa a apresentar às novas gerações o sucesso e a irreverência dos “show de travestis” das décadas de 1960 e 1970. Fiquei fascinado de imediato com a apoteótica apresentação. Para mim, que queria entender o lugar do glamour na trajetória de vida dessas pessoas, o espetáculo era uma vitrine que me conduzia à memória de um mundo faustoso, glamouroso, de vestidos lindos, maquiagem e performances. Fiquei extasiado e queria ter acesso a essas artistas, fundamentais para a construção desta tese. Logo, o êxtase se converteu em perplexidade: na literatura sobre diversidades de gênero e sexualidade no Brasil, apenas referências básicas faziam menção aos seus nomes; arquivos pessoais estavam comprometidos em razão de sucessivas mudanças de endereços e outros motivos; a produção periódica, tais como jornais e revistas, encontra-se dispersa dada a ausência de iniciativas, tanto por parte de acadêmicos quanto de militantes do movimento organizado de reunir essa memória para as gerações futuras. Com esses desafios, comecei a sondar as “Divinas Divas” através do Facebook, dos trechos de reportagens em revistas que encontrava em suas páginas pessoais, etc. No caso do costureiro Dener, cuja trajetória eu também utilizo nesta tese, as biografias se constituíram em valiosa fonte de informações. O encontro com as Divas se fazia necessário e importante para compor este contexto ainda encoberto do passado da diversidade sexual e de gênero.

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Meu primeiro contato com Divina Valéria foi pelo Facebook. Havia visto uma entrevista dela em um veículo de comunicação publicado no YouTube. Essa entrevista me deixou com vontade de conhecer mais sobre alguns aspectos de sua vida que não foram contemplados. Encontrei seu perfil e lhe mandei uma mensagem. Fui respondido algumas horas depois, de forma bem educada. Ela dizia que contribuiria comigo. No dia seguinte a essa conversa virtual haveria um show na Sala Baden Powell, em Copacabana, o “Divinas Divas”, espetáculo que agrega várias das travestis que foram famosas nas décadas de 1960 e 1970. Valéria disse que estava muito ocupada com esse show, mas que voltaria ao Rio no final do mês de setembro de 2014 para um show beneficente que seria realizado no Teatro João Caetano, Praça Tiradentes, Centro do Rio. Entrei novamente em contato com ela às vésperas deste show e ela me disse para encontrá-la no teatro quando acabasse o espetáculo. Não era uma novidade para mim ir aos shows dessas “travestis” mais velhas. Já havia assistido ao “Divinas Divas” mais de uma vez, como um laboratório para esta tese. Entendo que observar a performance dessas “travestis” no palco tem a possibilidade de me revelar um pouco mais sobre esse período em que elas estiveram no auge. No dia combinado, eu estava lá mais uma vez para apreciar o espetáculo, mas agora com o objetivo de estabelecer um contato com Divina Valéria. Tratava-se de um show cuja renda seria revertida para o Retiro dos Artistas, contando com a presença dessas artistas, mas ainda do Dzi Croquettes em sua nova formação. Ao fim do evento, Valéria voltou para o camarim e eu fiquei um pouco desesperado. Acho que a sua trajetória é de valor significativo para entender os processos que analiso na tese, e não queria mais contar com outra agenda sua no Rio para conseguir um depoimento. Subi então no palco e caminhei, enquanto os outros artistas se despediam da plateia, em direção ao camarim. Chegando lá, encontrei Divina Valéria se preparando para sair. Ela me recebeu de forma muito educada, conversamos brevemente e agendamos um café em Copacabana, onde ela estava hospedada no apartamento de Jane Di Castro. Reproduzo o relato do encontro com Divina Valéria porque ele ilustra de forma bem acabada as dificuldades – que não acreditava encontrar – para entrevistar essas pessoas. Foram várias as tentativas de contato frustradas em função de alguma agenda artística ou algum projeto em vias de concretização. Se meus preconceitos pessoais admitiam a ideia de que essas pessoas eram “artistas aposentadas”, ociosas e de fácil acesso, talvez este tenha sido o maior equívoco cometido por mim em relação às minhas interlocutoras. Outro dado que me chamou a atenção a partir da incursão no camarim de Divina Valéria foi a performance dessas artistas para além do palco.

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Marquesa, Divina Valéria, Camille K e Rogéria parecem não distinguir entre o que são no palco e o que são na sua vida cotidiana. Em diferentes momentos da entrevista, Divina Valéria mexia em seus cabelos em uma performance que se assemelhava a uma cena de cinema antigo. Fiquei deslumbrado com essa forma de se apresentar, a qual evocava, simultaneamente, exagero e suavidade. Talvez fossem essas dimensões importantes neste trabalho. O exagero marca de forma importante a trajetória dessas pessoas ou, poderia arriscar, é uma característica constitutiva de suas jornadas. A dificuldade de acesso, contudo, me abriu outras possibilidades. Foi a partir dela que busquei outros caminhos para construir este trabalho. Um destes foi colher entrevistas concedidas a veículos de comunicação como jornais, revistas e televisão. No caso de Divina Valéria, as matérias publicadas no O Globo foram importantes para compreender sua trajetória. Foi muito produtiva essa decisão, posto que se tornou possível perceber mudanças nas formas como essas artistas construíam a sua percepção sobre determinados temas em diferentes entrevistas, a partir dos seus discursos. Rogéria, que possui sua imagem mais vinculada aos espaços midiáticos, é um bom exemplo dessas mudanças. Invisibilidade, apagamento, desaparecimento de fotografias, espera de respostas em vão no chat do Facebook, o inviolável acesso da privacidade dos telefones celulares pelos amigos próximos, os quais não me eram confiados com facilidade – foram muitos os percalços para conseguir informações sobre as trajetórias que são construídas nesta tese. Mesmo me confrontando com esse conjunto de histórias de vida fragmentadas e, às vezes, apagadas ao longo da pesquisa, não tinha entendido ainda o tamanho do problema até receber a notícia da morte de Marquesa, minha mais animada e receptiva interlocutora, momento este que passo a contar na tentativa de lançar luz sobre a questão da falta de memória acerca dos processos de mudanças relacionados às sexualidades e construções de gênero não normativas no Brasil. Havia visto Marquesa em algumas situações quando ainda estava fazendo trabalho de campo entre os frequentadores da Turma OK. Nessas ocasiões, não conversei com ela: sua presença era por demais intermitente na associação, não me despertando o interesse para um contato mais prolongado. Quando comecei a ir às apresentações do “Divinas Divas”, passei a prestar atenção com mais cuidado naquela figura tão conhecida entre os “okeis”. Meu encontro com Marquesa foi mediado por Jorge Bharoum, um sócio da Turma OK com quem fiz amizade. Bharoum é um vínculo com o meu antigo campo de pesquisa, por intermédio do qual me mantenho informado sobre o que ocorre por lá, mesmo não frequentando assiduamente as suas atividades. Nossa relação tornou-se tão estreita que ele começou a me

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apresentar para várias pessoas como seu sobrinho. Foi assim que ele mediou meu contato com Marquesa. Foram várias as tentativas de falar com ela pelo celular a mim confiado por Bharoum. Em várias ocasiões parecia estar desligado. Até que um dia consegui. Coincidentemente, no fim de semana da semana daquele primeiro contato, haveria, na Turma OK, uma comemoração de aniversário daquela conhecida por Elaine Parker, personagem popular da Turma OK. Marquesa disse que iria com certeza prestigiar a amiga, inclusive apresentando um número musical. Falou ainda que se eu assim quisesse, poderia, horas antes do show, conversar com ela nas dependências da Turma OK. No dia confirmado, fui ao encontro de Marquesa. Há muito tempo não ia à Turma OK, mas lá chegando entendi o porquê da longevidade daquele grupo. Fui recebido como se nunca estivesse tanto tempo fora, alguns membros do grupo me abraçaram, beijaram, perguntaram da saúde, etc. Fiquei feliz de estar ali, e minhas lembranças dos meses em que estive com eles foram revigoradas. Depois de matar as saudades, me dirigi ao camarim – área proibida para os desconhecidos. Lá, sentado próximo àqueles homens se maquiando, estava Marquesa, sem seus vestidos faustosos e maquiagem vibrante. Perguntei se não iria fazer uma apresentação, ao que me respondeu negativamente alegando problemas de saúde. Descemos as escadas, Marquesa caminhava com muita dificuldade em função de uma lesão no pé esquerdo. Logo nos sentamos no hall do espaço, composto de uma área ampla e por sofás confortáveis. Conversamos longamente sobre a sua vida, fofocas, percalços, ciladas, etc. Quando demos conta, estava para começar o show. Marquesa se levantou e disse que conversaríamos em outra oportunidade. Nas semanas seguintes, tentei várias vezes uma agenda com Marquesa. Ela, sempre solícita ao telefone, dizia não estar propensa a uma entrevista, pois só poderia falar da sua vida com bastante disposição. Minhas tentativas finalizaram quando recebi, no dia 26 de maio de 2015, a notícia do seu falecimento, ocorrido no dia anterior. Fiquei profundamente abalado com a notícia, em razão da simpatia que senti em nossas poucas oportunidades de contato. Achei oportuno, mesmo não a conhecendo de longa data, ir ao seu sepultamento. Pelo Facebook, Susy Parker, que havia acompanhado Marquesa nesses últimos dias de sua vida, notificou amigos e interessados sobre o funeral. Não haveria muito tempo de velório, somente meia hora, logo depois seguindo-se o enterro. Rumei então para o local indicado por Susy, o Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, região central do Rio de Janeiro. Lá encontrei muitos rostos conhecidos da Turma OK e pessoas que eu não conhecia. Das “Divinas Divas” estavam: Divina Valéria, Rogéria, Fujika de Holliday e a produtora e

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atriz Leandra Leal. No funeral de Marquesa ocorreram eventos que lançaram luz sobre a minha dificuldade de reunir esses fragmentos de vida, os quais, sugiro, possuem esse caráter disperso dado os processos de apagamento que sofrem, mesmo dentro daquilo que poderíamos chamar de comunidade LGBT. Logo que cheguei à capela me deparei com o nome “João Roberto” na tabuleta que identificava o espaço do ritual. Só acertei o local correto pelas pessoas conhecidas que lá já estavam. Como parte de um catolicismo compulsório diante da morte, uma pequena celebração oferecida pela capela ocupou a atenção dos presentes. Imediatamente, o responsável pelo ritual, um ministro da Igreja Católica, iniciou a sua sequência de atos performáticos frente à morte. Apesar de bem aceito pelos presentes, o ritual foi desestabilizado em dois momentos de sua regularidade cristã. No primeiro, quando um membro da Turma OK chamou a atenção para o fato do falecido não ser reconhecido pelo seu nome de registro, mas sim por Marquesa. No segundo, quando o ministro solicitou alguém da família biológica, recebendo em coro a resposta de que todos ali eram amigos do falecido, portanto sua família. Quando o ministro saiu, Rogéria, convocando as amigas da mesma geração, juntas se colocaram em torno do caixão entoando em coro a música que Marquesa cantava no espetáculo “Les Girls”. O canto desestabilizou aquele momento rígido anterior, evocando um outro pertencimento, a reunião de amigos. Entendi, neste momento, o motivo pelo qual a amizade se constituía como um item central nas pessoas dessa geração, muitas das quais apagadas das suas “famílias de origem”. A “família de escolha”, em expressão de Weston (2003), foi a responsável por ressignificar essa lealdade familiar, que se manifestou de forma tão intensa no velório de Marquesa. Aquela reunião que cantou em uníssono as realizações da personagem Marquesa pôde me revelar a resistência com que essas trajetórias lutaram por significado, em meio a uma sociedade que as apagavam de sua memória oficial. Mas não foi somente a presença do ministro da igreja e as reações que suscitou que me fez refletir sobre essas questões. A ausência de qualquer liderança da militância LGBT carioca, mesmo com a notícia do funeral tendo sido reproduzida inclusive na coluna de um famoso colunista carioca, Ancelmo Góis, me tocou profundamente. Os silêncios em torno dessa presença – aquelas “Divinas Divas” outrora tão glamourosas – é um dado concreto com que tive de me familiarizar como pesquisador. A falta de interesse por essa geração de pessoas marca uma preocupante relação com a memória desses “desbravadores”, que se não for contada, pode estar fadada ao desaparecimento.

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Organização dos capítulos

Esta tese está dividida em quatro capítulos. No primeiro capítulo busco examinar a importância de diferentes contextos: o carnaval e seus concursos de fantasia, o Teatro de Revista, a radiofonia e os concursos de miss para a produção de uma percepção pública sobre as convenções de gênero e sexualidades não normativas no Brasil. A fotografia e os filmes de viagem, novas tecnologias que começam a construir representações sobre o país, estão associados a esse processo. Acredito que esses contextos ofereceram condições para a produção de sensibilidades, performances e formas de sociabilidade relacionadas às transformações das sexualidades não normativas como “lugar social”. Pretendo compreender como os dias de folia e a sua contiguidade com o “mundo das vedetes” foram imprescindíveis para a construção de categorias de pessoas que desafiavam o binarismo sexual e experimentavam dentro desses espaços uma aceitação parcial ou mesmo plena. Nesse período, pode-se perceber uma intensa associação entre a recém-inventada “homossexualidade” e a noção médica de “inversão sexual”. O “fazer travesti”7 como um tipo específico de prática emerge desses contextos lúdicos, nos quais fazer artístico-profissional e vida cotidiana se combinam – evidenciando novas possibilidades de existência. Dessa forma, procuro compreender como a prática de “fazer travesti”, associada ao surgimento do mundo do entretenimento noturno, foi um momento importante para a construção de formas de agenciamento referidas às sexualidades não normativas associada a um processo de mudanças sociais e urbanas mais amplas pelo qual passava a sociedade brasileira. No segundo capítulo abordo duas dinâmicas. A primeira é o processo de construção da noção de “travesti profissional”, a qual marca o surgimento de uma reflexividade sobre a prática de “fazer travesti”, a partir do crescimento da visibilidade e midiatização a que esses indivíduos são expostos. Analiso os “shows de travesti” como importantes mercadorias culturais no Brasil e internacionalmente. A segunda é outro dado focalizado, a circulação internacional dessas “travestis profissionais” – a viagem à Europa – e as implicações desses deslocamentos na forma como esses indivíduos negociavam sua existência, produzindo sentidos e convenções sobre gênero e sexualidades não normativas.

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A expressão “travesti” será grafada entre aspas para evidenciar o uso contestado que essa categoria encerra. Os problemas de classificação que este trabalho suscita foram discutidos nesta introdução. Vale lembrar da história dessas categorias e sua não existência em diferentes épocas.

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No terceiro capítulo, analiso algumas tensões e disputas relacionadas à construção de representações sobre as convenções de gênero e sexualidades não normativas em um contexto de florescimento dos programas de auditório no Brasil, item ilustrativo da moderna “cultura de espetáculo”, instituída pela nova “tecnologia do olho”, a televisão. Analiso como a trajetória do costureiro Dener e a sua aproximação das elites promoveu a sua entrada no cotidiano dos brasileiros através de suas aparições em um dado programa de auditório da televisão brasileira. Dener, ainda que não se identificasse como “bicha”, com seu estilo extravagante de ser, consolidou significados sobre as sexualidades não normativas associadas ao “estigma da efeminação”, amplamente reconhecidas e, para o horror da ditadura, apreciadas pela sociedade brasileira do período. Simultaneamente, assistimos a uma enxurrada de personagens vistos como “efeminados” habitando a nova tecnologia de comunicação – a televisão. Busco analisar a relação instável desses tipos com essa nova tecnologia, a qual, em um contexto de ditadura, contribuía para a produção de uma percepção pública da diversidade de gênero e sexualidade que era, ao mesmo tempo, exótica, portanto estimulada pelo mercado de entretenimento, e proibida, em função dos supostos efeitos tóxicos à moral e aos bons costumes. Por fim, analiso como a construção de significados sobre dois eventos que marcaram definitivamente o discurso sobre as sexualidades não normativas no Brasil. Esses eventos foram o fenômeno Roberta Close e a AIDS. A partir desses dois processos é possível perceber que ao mesmo tempo em que as sexualidades não normativas entraram na “ordem do discurso”, sentenciou os indivíduos fora da norma heterossexual, incluindo as “travestis profissionais”, a um lugar de silêncio. No quarto capítulo, me ocupo das noções de diva e camp. Sugiro que essas categorias estão relacionadas a um contexto de silenciamento no qual a possibilidade de existir fora da norma heterossexual era mediada pela clandestinidade. Argumento que as divas – atrizes, cantoras do rádio e mulheres famosas – ofereciam um “espírito de solidariedade” entre homens com experiências de vida atomizadas. Tal como um totem, as divas constituíam um símbolo que agregava homens que as idolatravam, mas que, simultaneamente, buscavam se reconhecer em outros semelhantes. Busco ainda reconstruir a história dessa categoria, a qual teria relação com a noção de “mulher fatal”, presente constante na literatura e materializada nas cocottes e vedetes, sobre as quais recai a reputação de perigosas. A diva, por fim, contribuiu para a produção de performances, práticas e signos que consolidaram uma relação das sexualidades não normativas com a noção de camp. Ambas, diva e camp, possuem uma razão de ser comum – provocar existências – em um processo que este capítulo busca investigar.

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Nas considerações finais retomo a discussão sobre a contribuição geral da tese para a compreensão do problema aludido no início desta introdução. Retorno às “travestis profissionais” e sua atual relação com a sociedade, ressaltando os impactos que os processos analisados neste trabalho provocaram nas trajetórias de vida desses indivíduos.

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CAPÍTULO I

O glamour e a construção de uma “sociedade bichal”8: a produção de significados sobre as sexualidades não normativas no Brasil e o mercado de bens culturais

Yes, nós temos bananas Bananas pra dar e vender Banana menina tem vitamina Banana engorda e faz crescer Vai para a França o café, pois é Para o Japão o algodão, pois não Pro mundo inteiro, homem ou mulher Bananas para quem quiser Mate para o Paraguai, não vai Ouro do bolso da gente não sai Somos da crise, se ela vier Bananas para quem quiser Braguinha & Alberto Ribeiro, 1937

Neste capítulo examino a importância de quatro contextos para a produção de uma percepção pública sobre as sexualidades não normativas no Brasil: o carnaval, o Teatro de Revista, os concursos de miss e a Radiofonia. Acredito que estes ofereceram condições para a construção de existências, performances e pautas de sociabilidade relacionadas à emergência de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) na qual as “bichas” se constituíam como sujeitos centrais. O carnaval como um espetáculo de massas, já nos seus inícios, chamou a atenção de observadores nacionais e internacionais para um de seus mais destacados fenômenos: os “homens em travesti”9. Tal preocupação foi materializada na grande variedade de fotografias e filmes de viagem que revelam a variedade desses tipos humanos carnavalescos brincando nas ruas da então Capital Federal. Essa presença é tão característica da folia que as autoridades admitiam nos veículos de comunicação da época não conseguir reprimi-la. Com a modernização da capital no início do século XX e a instituição da 8

A noção de “sociedade bichal” está presente nas publicações do jornal O Snob para se referir a este mundo onde as “bichas” são protagonistas. 9 Carvalho (2011), em sua dissertação de mestrado, chama a atenção para o uso de expressões como “ter um travesti” e “estar em travesti” para se referir à prática de se vestir de outro sexo no contexto dos bailes de “travestis” realizados na Praça Tiradentes.

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noite como elemento básico do cosmopolitismo moderno, os salões e cafés dançantes constituíram espaços de sociabilidade da nova elite (SEVCENKO, 1998). Observa-se uma valorização crescente das “experiências sensoriais novas”, diria Duarte (1999), cujo foco de interesse era a “exacerbação da sensibilidade, do refinamento ou intensificação do prazer” (DUARTE, 1999, p. 27). É nesses espaços que proliferaram toda a sorte de indivíduos, incluindo os já conhecidos “homens em travesti”. Estes ganharam cada vez mais notoriedade nos shows promovidos nesses modernos estabelecimentos. O Teatro de Revista surgiu como fruto desse contexto, conectando aquela estética do carnaval com os novos “recursos da sensibilidade de massa” (DUARTE, 1999) que começam a se formar entre nós como uma promessa de progresso, um “mito da modernidade” (SEVCENKO, 1998), tal como vivenciada nos países do norte. Logo, esse tipo de teatro irá constituir um espaço de escoamento da produção popular brasileira, fazendo com que o samba e outros ritmos populares fossem convertidos em mercadorias culturais (MORIN, 2007) e, simultaneamente, instituidores de uma identidade nacional (VIANNA, 1995), processo que também afetou o próprio carnaval. Se antes este era somente uma festa popular, agora se tornava um espetáculo exibido para o mundo, sobretudo através dos concursos de fantasias que, com Clóvis Bornay e suas vestes de reis e soberanos orientais, passam a ser consumido como produto genuinamente brasileiro. Mas o carnaval e o mundo das vedetes não seriam os únicos contextos condutores dessas “novas formas de vida”. Na década de 1950, outros dois espaços concorreram para este feito: os concursos de miss e os auditórios da Rádio Nacional. Fenômeno importante da modernidade, a radiofonia e os concursos de miss instituíram mudanças importantes na sociedade brasileira, sobretudo no que diz respeito ao seu impacto no cotidiano dos brasileiros. Juntos, a radiofonia e o disputado certame das misses ofereceram um espaço de convivência que ajudou a consolidar um “sentido de identificação” entre homens que – na torcida pela miss mais bela ou pela estrela do rádio mais talentosa – passaram a se ver como partidários de interesses semelhantes, incluindo desejos por outros iguais. Foi afluindo para esses espaços que esses jovens com interesses e gostos semelhantes começaram a formar uma rede de amizades que passou a articular sentidos sobre o que era ser “bicha” naquela época. Considerando esses contextos, darei destaque aqui a dois processos fundamentais para a compreensão da construção das sexualidades não normativas como “lugar social” no Brasil: o primeiro diz respeito à noção de “fazer travesti” como um tipo específico de prática que emerge desses contextos lúdicos, nos quais fazer artístico-profissional e vida cotidiana se combinam – evidenciando novas possibilidades de existência. Sugiro que com o

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florescimento do Teatro de Revista no Brasil, o carnaval e esses homens que “faziam travesti” são catapultados a um público mais ampliado convertendo-se em “espetáculo de consumo”. O segundo se relaciona ao protagonismo de Clóvis Bornay, ao institucionalizar uma imagem pública das sexualidades não normativas associada à efeminação no contexto do carnaval e fora dele. Com o sucesso mundial e turístico dos concursos de fantasia, logo essas “formas de vida” chegariam a uma tecnologia ainda mais massificadora: a televisão. Ao mesmo tempo em que esses personagens eram projetados para a vida cotidiana, consolidava-se uma associação entre as sexualidades não normativas e a imagem da “bicha” – associada ao estigma da efeminação.

1.1 – O carnaval, a fotografia, os filmes de viagem e o espetáculo dos “homens em travesti”10

O carnaval foi, incontestavelmente, um complexo ritual importante e através do qual tornou-se possível vivenciar experiências de vida não conformes às convenções hegemônicas relacionadas a sexo e gênero. Os dias comandados por Momo11 criaram ainda condições e contextos favoráveis à aproximação erótica entre pessoas do mesmo sexo. Os trabalhos de Green (2000), Figari (2007) e Gontijo (2009) revelam que os dias que marcam o carnaval são eventos únicos no ano, através dos quais era possível vivenciar modos de vida mais igualitários12. O trabalho de Gontijo (2009) sobre a participação de “homens homossexuais” em situações ritualizadas do carnaval do Rio de Janeiro lança luz sobre o processo de construção e reforço de imagens identitárias de “homens que transam com homens” durante esses festejos. Para ele, os eventos carnavalescos, através do jogo e do gozo, puderam mediar a reivindicação de direitos iguais e de reconhecimento para as pessoas “homossexuais”. Como 10

“Homens em travestis” e “homens travestidos” são expressões cujo significado é semelhante, do ponto de vista dos discursos da época. Assim, adotaremos as duas formas para falar desses indivíduos ao longo deste capítulo. 11 Rei do Carnaval, segundo a mitologia carnavalesca. Nos dias de folia, as chaves da cidade são entregues a esse personagem. 12 Estes trabalhos estão basicamente se referindo ao carnaval ritualizado através dos blocos, ranchos, bailes e concursos de fantasias. Gontijo, em sua tese de doutorado, analisou a relação das escolas de samba com a “homossexualidade”. Cabe lembrar que uma das figuras mais importantes do ciclo do desfile das escolas de samba é o carnavalesco, muitos dos quais assumidamente “homossexuais”. Para Cavalcanti (1994), os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro manifestam em formas ritualizadas e dramáticas as contradições e relações de poder e reciprocidade presentes nessa cidade. Acreditamos que, de igual modo, a relação dessas escolas com as sexualidades não normativas reflete a forma conflituosa como eram tratados esses indivíduos na regularidade da vida social – ora respeitados por seus talentos na feitura do carnaval ora rejeitados por suas práticas sexuais não de acordo com a norma sexual vigente.

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uma espécie de “caricaturização” dessas demandas políticas, o carnaval permitiu experienciar certo nível de reconhecimento, que pôde ser, décadas mais tarde, integrado à regularidade da vida social, para além do comando de Momo (GONTIJO, 2009). As mulheres também foram beneficiadas pela “inversão momentânea” das regras estimuladas pela folia carnavalesca. Segundo a historiadora Soihet (2000), nos dias de folia, as mulheres podiam desfrutar de certa liberdade em relação ao uso dos seus corpos. Essa liberdade incluía a exibição de partes do corpo que em outros dias do ano seria impossível, e a aproximação corporal-erótica com homens ou mesmo com outras mulheres, através de danças sensuais (SOIHET, 2000). Mais do que oferecer a ambiência propícia para a aproximação afetivo-sexual entre homens e mulheres do mesmo sexo, o carnaval se constituiu como um evento onde é possível pôr em evidência, diria McClintock (2010), toda a “parafernália teatral das convenções de gênero”. Os dias momescos proporcionam uma crise do controle do risco social – a transgressão das fronteiras entre masculino e feminino – por um conjunto de jovens que se deleitam com a possibilidade de se vestir do outro sexo. Diferentemente da noção de descontrole evocada pelas representações populares acerca do carnaval, para esses homens não havia descontrole algum, pois eles sabiam que somente nesses dias podiam borrar os limites entre público e privado; ou seja, entre vida real e vida virtual (GOFFMAN, 1976), exibindo seus corpos em indumentárias não conformes a seu sexo biológico. Esses homens se beneficiavam do contexto lúdico em que a transgressão era a norma para pôr em prática suas “formas de vida” não apresentáveis em uma sociedade marcada por normas heteromasculinistas. Para Figari (2007), a relação entre carnaval e “homossexualidades” deveria ser antes interpretada pela chave da ressignificação, e não da transgressão. Para este autor, os homens em folia encenavam o feminino pela via do grotesco, e não da mimese do mesmo. A partir do argumento de Mannoni (1994), o autor afirma que os homens, quando fantasiados, não confundiam o que eram com o que pareciam. Na verdade, esses homens, de acordo com o autor, só faziam reafirmar suas identidades pelo contraste com aquilo que não eram. McClintock (2010), contudo, chama atenção para o fato de que o escândalo provocado pela evidente exibição da ambiguidade se dá em função de sua “ostentação da identidade como diferença”. Concordo com Figari (2007) quando este afirma que a ressignificação é que dá o tom da relação das “homossexualidades” com o carnaval, mas acredito que uma dimensão desse

todo

talvez

tenha

sido

ainda

mais

importante

do

que

a

dicotomia

transgressão/ressignificação, a noção durkheimiana de rito. Mais do que transgredir, esses

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homens podiam se reunir, ritualizar, reafirmar sentimentos comuns que foram fundamentais para a formatação de relações que extrapolariam aqueles dias. O carnaval e o espetáculo da confusão de gêneros são temas importantes que estão intimamente ligados à ideia de ambiguidade, amplamente explorada por Victor Turner, a partir de suas análises do período liminar em contextos rituais em uma sociedade africana, os Ndembu. O entendimento da liminaridade se constitui como um importante caminho com o qual é possível construir entendimentos sobre como as “bonecas”, “enxutos13” e “homens travestidos”14 ou “em travesti”, formas de classificação que emergem do período carnavalesco para nomear os homens que borravam as fronteiras de gênero usando roupas não conformes a seu sexo nos bailes e concursos de fantasias, foram consolidando identidades – materializando “formas de vida”. A preocupação de Turner com a liminaridade começa com sua aproximação com a obra de Van Gennep (1909), conforme explica Cavalcanti (2012). A maior contribuição de Van Gennep foi a descoberta de uma sequencialidade nos rituais, que possuiriam três fases: separação, margem (limen) e agregação. Esse mecanismo básico de três fases poderia ser identificado em quaisquer rituais em diferentes sociedades espalhadas pelo mundo. Contudo, pouco interesse foi dado pelo autor ao período que se estabelece entre a separação e a agregação: o período liminar. Este se revelará tão cheio de significados e tão importante para Turner que uma de suas características mais fundamentais se constituirá como conceito importante para pensar a dinâmica das relações sociais. Será em Betwixt and between: o período liminar nos “ritos de passagem”, texto publicado originalmente em 1964, que Turner (2005) irá refletir sobre algumas características socioculturais do “período liminar”. Para ele, “se o nosso modelo básico de sociedade é o de uma ‘estrutura de posições’, deve-se encarar o período de margem ou ‘liminaridade’ como uma situação interestrutural” (TURNER, 2005, p. 137). Esta concepção tem implicações importantes na forma como são percebidos os indivíduos que estão na margem, frequentemente tornados “invisíveis” – indefiníveis em relação à estrutura. Para Turner (2005), esse “ser-transacional” é determinado, em todas as sociedades observadas pelos antropólogos, por um nome e um conjunto de símbolos que os representam. Desvendar o

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Forma como eram chamados pela imprensa da época os “homens travestidos” que frequentavam os bailes de carnaval nos teatros da região central do Rio de Janeiro. 14 “Homens travestidos” é uma categoria que não deve ser confundida com a moderna noção de “travesti”, que emerge com uma expressão de gênero e uma identidade política que demanda por direitos na esfera pública. Essa classificação diz respeito ao contexto carnavalesco e está associada a um momento no qual a identidade “travesti”, dotada dessa dimensão política e de uma subjetividade específica, ainda não tinha materialidade.

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poder conceitual desse “estado transacional” – que Turner chama de liminaridade – foi uma importante contribuição desse autor à teoria antropológica. Nesse empreendimento, Turner lança luz sobre um dos aspectos fundamentais da liminaridade: a ambiguidade. Esta não se relaciona a uma contradição estrutural expressa nos indivíduos liminares, mas antes ao caráter essencialmente não estruturado que os cerca (TURNER, 2005). Esse estado não estruturado se constitui como um componente básico da liminaridade. Expressa o que é, simultaneamente, desestruturado e pré-estruturado; o é e o não é. Daí a dificuldade de situá-lo em relação aos sistemas de classificação que organizam a vida em sociedade. Essa imprecisão classificatória é também simbólica. Daí deriva a noção, construída por Turner (2005), de que o neófito “não tem nada”. Ou seja, ele não está marcado por nenhum pertencimento estrutural, seja ele status, parentesco, propriedade ou mesmo distinções sexuais. Ele seria, antes, uma matéria da qual a sociedade pode dispor e esculpir como lhe couber. Esse estado põe em evidência uma das características fundamentais da liminaridade: a ambiguidade, ou seja, a possibilidade de ser “isso e aquilo também”. Fazendo isso, o autor desperta a atenção para um ponto central nos sistemas de classificação social, o não classificável. Essa problemática o coloca diretamente em contato com as reflexões de Douglas (1979) acerca das ideias de “poluição” e “perigo”. Esses dois conceitos podem ser entendidos como atitudes rituais, cujo objetivo seria o de proteger categorias e princípios estruturais da desordem provocada pela ambiguidade. Um das principais formas de garantir essa proteção, afirma Turner (2005), é o isolamento do neófito. É da ideia de liminaridade e de seu caráter potencialmente ambíguo que Victor Turner retira a noção de “communitas” (CAVALCANTI, 2012). Em função disto, esta última carrega os atributos essenciais que a opõem à ideia de “estrutura”. É isso que a torna potencialmente perigosa e anárquica àqueles que defendem a manutenção da “estrutura”. Contudo, para Turner, a liminaridade – entendida como uma fase dos ritos de passagem – não é a única expressão cultural da “communitas”. Para o autor, esta pode se manifestar em muitas sociedades através de áreas facilmente reconhecidas pelos símbolos que englobam, bem como pelas crenças que vinculam (TURNER, 2013). O que ele chama de “poderes dos fracos” é um exemplo interessante de como a “communitas” pode se manifestar através de grupos ou personagens, cujos atributos se relacionam à sua posição social ou status em um dado sistema de posições. Esses personagens tendem a ser representados por um conjunto de símbolos que os identificam aos valores da “communitas”, sobretudo a necessidade, presente entre eles, de preservação dos valores humanos universais.

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É possível perceber que a “communitas” é plena de representações associadas às ideias de ambiguidade, confusão, aquilo que ainda não está estruturado. Turner está se referindo a um “estado da sociedade”, no qual o que é fixo se torna suspenso, abrindo a possibilidade de inversão e, mais do que isso, de invenção de novas moralidades e sensibilidades que passam a ser vivenciadas pelos indivíduos. É esse “poder de invenção” que é interessante reter das ideias de Turner acerca da noção de “communitas”. Sugiro que a confusão de gêneros evocada pelos “homens travestidos” marca uma adesão ao “estado de communitas”, que, pela mediação de diferentes grupos sociais – como a imprensa e o saber médico-legal – foi sendo incorporado como “lugar social” e “simbólico”, ou seja, instituído como estrutura. Isso implica dizer que a “communitas” é ainda um espaço de resistência no qual se articularam vidas não passíveis de existir sem esse “poder de invenção”. O uso de novas tecnologias, tais como a fotografia e o cinema, colaboraram para o processo de produzir essas novas “formas de vida” – oferecendo visibilidade aos mesmos. Se na primeira metade do século XX a noção médica de “homossexualidade” e a “prática de vestir-se do outro sexo” (VENCATO, 2010) seguia sendo percebida como um misto de perversão e doença – teses tanto advogadas pelas ciências psi, em franco crescimento, quanto pela medicina praticada no período –, no carnaval, ambas as práticas ganhavam outros sentidos. Ocorria uma apropriação da ambiguidade de gênero para compor o efeito lúdico dos dias de folia, no qual o riso era sua marca indelével (BAKHTIN, 1993). Era mesmo impossível impedir que um indivíduo do sexo masculino se fantasiasse do sexo oposto no carnaval, argumento adotado inclusive pelas autoridades policiais da época, como será visto mais adiante. A capacidade de produzir um “segundo mundo”, expressão de Bakhtin (1993), promovida pelo carnaval, permitia a esses homens se libertarem das convenções indumentárias, convertendo as mesmas em riso, uma antítese das relações de poder vigentes. Esse jogo entre transgressão e liberdade logo chegaria ao conhecimento de um número exponencial de pessoas, sendo constitutivo de uma iconografia do carnaval para o mundo, através da abundante propaganda produzida sobre a festa com o objetivo de estimular o turismo na cidade. A transgressão das convenções de gênero foi um dos temas mais destacados pelos observadores do carnaval, nacionais e estrangeiros, já no início do século XX. Aparentemente, foi através do carnaval que indivíduos em não conformidade com as convenções relacionados a gênero e sexualidade tiveram as suas imagens projetadas para um

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público mais amplo15. Como mostram Green (2000) e Figari (2007), por meio dessas oportunidades foi se consolidando uma imagem pública das convenções referidas à diversidade sexual, associada à confusão de gêneros – a “inversão sexual”, como chamavam atenção os especialistas – e marcada por uma ambiguidade incômoda, mas, ao mesmo tempo, sedutora – espetacularizada para o conjunto da sociedade. A espetacularização dessa ambiguidade de gênero foi constitutiva do carnaval, repercutindo inclusive para fora do Brasil, sendo uma das imagens mais típicas da paisagem momesca. Esse registro começou a ser produzido de forma mais sistemática nas primeiras décadas do século XX, sobretudo articuladas às preocupações da administração municipal em fotografar as transformações urbanísticas operadas no governo do então prefeito Francisco Pereira Passos. A fotografia como uma “tecnologia do olho” (BRAH, 2006) foi considerada um arauto da modernidade. Para Brah (2006), a imagem visual produz poder, posto que se constitui como uma prática/discurso sobre o que é visto, e nenhuma outra tecnologia foi tão adotada para pôr em evidência esse poder. Tal percepção da fotografia também é compartilhada por McClintock (2010), para quem esta foi fundamental para a empresa imperial. Para a autora, a fotografia estava diretamente vinculada a outros fenômenos, como a exposição, o museu, a galeria, o circo, cada um dos quais envolvendo o princípio fetichista da coleção e da exibição como um espetáculo de variedades (MCCLINTOCK, 2010). Todos esses fenômenos listados por ela implicavam reconhecer uma hierarquia do olhar instituída a partir de uma relação desigual entre aquele que olha – pertencendo a uma dada classe privilegiada – e aquele que é olhado, convertido em artefato cultural, um “espetáculo de consumo”. A percepção das duas autoras é complementar, no que diz respeito ao lugar da fotografia na construção da noção de modernidade. Através das lentes das máquinas fotográficas foi possível captar a vida moderna em um só golpe – com todo o seu movimento e progresso. Para Sontag (2004), este seria o resultado mais extraordinário da fotografia, posto que oferecia a sensação de “reter o mundo inteiro em nossa cabeça” (SONTAG, 2004). De acordo com essas autoras, o poder que tal tecnologia encerra em seus efeitos é o de fazer existir, evidenciar, constituir-se em linguagem universal. Sontag (2004), ao analisar a fotografia, ressalta que ela tem a habilidade de oferecer um testemunho sobre algo de que 15

Imagens de indivíduos relacionados à diversidade de gênero e sexualidades são observadas já na imprensa do século XIX, como pode ser verificado nas gravuras resgatadas por Green (2000) de homens frequentadores do Largo do Rossio, hoje Praça Tiradentes. Estes homens eram abertamente identificados como “desviantes sexuais”, em função de um comportamento tido como em não conformidade frente às convenções vigentes sobre masculinidade.

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ouvimos falar, mas que ainda não tomamos conhecimento. Tal habilidade logo seria descoberta por instituições policiais, como a polícia francesa, que começa a adotar a fotografia em seus processos investigativos, já em 1871 (SONTAG, 2004). A fotografia se constitui então como uma “tecnologia de vigilância”, como afirma McClintock (2010), para os estados modernos, cuja população era cada vez mais móvel (SONTAG, 2004). Contudo, como admite Brah (2006), se a imagem é prática, portanto poder, é através dela que é possível enfrentar as práticas opressivas de poder. Mais do que a vigilância, a fotografia se prestou a construir um “mundo de ideias”, artefato indispensável para aqueles que se percebiam como fora das convenções. Revelando à sociedade os efeitos positivos das novas tecnologias, a fotografia serviu como propaganda para os anseios de modernização da administração municipal do Distrito Federal, hoje cidade do Rio de Janeiro. Os registros da dinâmica da destruição e construção da nova capital acompanharam o ritmo das gentes que nela viviam. A captação desses fluxos ocorreu de forma emblemática nos registros do carnaval, através das lentes de diferentes voyers. As imagens feitas por Augusto Malta, fotógrafo oficial do prefeito Pereira Passos, foram fundamentais para esse fim. Nascido em Alagoas, estado do Nordeste, Augusto Cesar de Malta Campos fixou residência no Rio de Janeiro já em 1888. Em 1903 foi contratado pelo prefeito Pereira Passos como fotógrafo da Diretoria Geral de Obras e Viação do Distrito Federal, em um cargo criado para ele. Mesmo depois da saída do prefeito, em 1906, Malta conservou-se nesse cargo por mais 30 anos, constituindo um acervo impressionante das transformações urbanísticas operadas na cidade nesta primeira metade do século XX. Não foram somente os aspectos arquitetônicos da cidade em transformação que chamaram a atenção de Augusto Malta. A dinâmica da urbanização, com seus fluxos e interações, também foi registrada por suas lentes. Nessa dinâmica estava incluída nossa mais importante festa, o carnaval. Em suas fotos aparecem nas principais avenidas da Capital Federal, mormente na recém-inaugurada Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), grupos de homens vestidos com trajes não conformes frente a seu sexo biológico. Homens que se deixavam fotografar pelas lentes do nosso primeiro fotojornalista, o qual deixaria para a posteridade aquela celebração pública da transgressão de gênero. Não saberia dizer com precisão o alcance público das fotografias de Augusto Malta naquele momento histórico, mas é justo afirmar que o fenômeno registrado por ele já era lugar-comum no carnaval comemorado naquele período, portanto sendo digno do registro do cronista-fotógrafo.

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Imagem 01 – “Homens travestidos” durante o carnaval do Rio (Fotografia: Augusto Malta, 1915)

A prática da fotografia no Rio de Janeiro parece ter sido tão importante quanto as próprias transformações pelas quais passava a cidade. O ato de fotografar permitiu demonstrar a um público ampliado os efeitos do novo projeto de cidade que o governo da Capital Federal levava a cabo. A fotografia se constituiu em propaganda para a cidade, ícone de um projeto de modernidade para a nação. Não foi por acaso que o autocromo, processo desenvolvido pelos irmãos Lumière, foi adotado aqui no Brasil já em 1909, apenas dois anos após começar a ser comercializado na Europa. Tal processo resultou em fotografias que revelaram as cores da cidade recém-reurbanizada, tal qual Malta exibiu. Esse empreendimento foi o resultado do esforço do famoso banqueiro e mecenas Albert Kahn, cujo objetivo era documentar “aspectos, práticas e modos da atividade humana cujo desaparecimento fatal é apenas uma questão de tempo”16, dizia ele. Seu “pessimismo sentimental”, para adotarmos esta expressão consagrada por Salhins (1997), talvez decorresse do receio de o projeto urbanístico de Pereira Passos então em curso destruir as imagens bucólicas do Rio.

16

Informações coletadas na exposição “As primeiras cores do Rio: autocromos da coleção Archives de la Planète”, de curadoria de Milton Guran e Cristianne Rodrigues (CCBB, 2015).

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Não apenas Augusto Malta se interessou por fotografar aqueles homens trajados com roupas não conformes em relação às convenções indumentárias acerca de gênero, Pierre Verger – consagrado antropólogo e fotógrafo cuja obra está relacionada aos cultos de origem africana – também registrou em suas lentes a desabusada presença desses indivíduos no carnaval de 1940. Mais até do

que

outros

fotógrafos-cronistas,

Verger lançou um olhar matizado sobre esse fenômeno, ao dar destaque a homens negros no conjunto de suas fotografias sobre o carnaval, como pode ser percebido na imagem ao lado. Os carnavais das décadas de 1940 e 1950 Imagem 02 – Homem negro “em travesti” na Avenida Rio também evidenciaram a presença Branco, carnaval de 1940 (Fotografia: Pierre Verger. Fonte: acervo da Fundação Pierre Verger)

inconteste de indivíduos com roupas que se distanciavam do esperado em relação ao seu sexo biológico. Thomaz Farkas e Marcel Gautherot17, importantes fotógrafos ligados ao movimento modernista, também manifestaram em seus negativos a preocupação em captar essa presença nas ruas. Este último esteve envolvido na instalação do “Musée de l’Homme”, em Paris, e também trabalhou para a ilustrada revista O Cruzeiro. Aparentemente, a preocupação desses fotógrafos em retratar nossa mais importante festa acabou por chamar a atenção sobre outro fenômeno evidente apenas aos olhos dos foliões, e que talvez não recebesse uma atenção maior de outros setores da sociedade. A folia das ruas e dos salões tornou oportuno encontrar indivíduos com interesses semelhantes. A fotografia de Marcel Gautherot, na qual aparece um grupo de homens vestidos do outro sexo, faz sobressair o poder de agregação que o carnaval estruturou em um contexto onde as sexualidades não normativas operavam no registro da clandestinidade. Certamente, as fantasias e o caráter lúdico da festa propiciaram muito mais do que a aproximação sexual, 17

Os negativos desses dois importantes fotógrafos podem ser encontrados no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro.

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produziram solidariedade entre esses homens que começariam a desenvolver um “sentido de comunidade”. Muito embora as fotografias tenham sido amplamente adotadas para revelar a abundância desses “tipos humanos” em diferentes momentos históricos, essa tecnologia não foi a única empregada para esse fim. Os filmes

sobre

o

potencialidades constituíram

Brasil turísticas

registros

e

suas

também

valiosos

da

transgressão de gênero durante o carnaval. Estes foram usados para compor uma representação sobre o nosso país e suas potencialidades turísticas, tanto nacionalmente quanto internacionalmente.

Aparentemente,

Imagem 03 – Carnaval, Cinelândia, 1954. (Fotografia: Marcel Gautherot. Fonte: acervo do Instituto Moreira Salles)

filmes produzidos aqui no Brasil e aqueles estrangeiros que registraram a dinâmica da festa nas ruas não conseguiram esconder, nem parece que tentaram, a quantidade de homens com os mesmos trajes. Essa presença era assumida como parte constitutiva da tradição carnavalesca. O carnaval permitia construir um espaço-tempo para essas expressões. Esses homens eram compreendidos como “tipos carnavalescos”, como pode ser observado no filme “Ressurge o esplendor do carnaval carioca”, de Mário Filho, película em preto e branco filmada durante essa data em 1950. Nesse filme, como nas fotografias, é mais uma vez reforçada essa presença como parte integrante da festa. Vale ressaltar que o cinema foi um dos principais responsáveis por construir uma imagem simultaneamente exótica e cosmopolita do Brasil, a partir do Rio de Janeiro, sobretudo para os nossos vizinhos norteamericanos (FREIRE-MEDEIROS, 2005). Cumprindo também essa tarefa, os filmes de viagem se destacam como os responsáveis por criar uma imagem de um país tropical, aberto a possibilidades eróticas e experiências lúdicas. O filme de viagem “Carnival in Rio”, de 1955, filmado e dirigido por Andre de LaVarre, cineasta que produziu dezenas de filmes desse tipo, é um excelente registro da

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variedade de “homens travestidos” nas ruas da então Capital Federal. Na película é possível perceber duplas masculinas se abraçando, grupos inteiros de homens vestidos de baianas e expressões individuais, como o indivíduo vestido de bailarina que se apresenta nas pontas dos pés para o cineasta. Impossível não prestar atenção na vasta presença desses tipos na filmagem. Esses homens materializam em seus corpos a ambiguidade, sobretudo pela coexistência de elementos considerados tanto masculinos quanto femininos para compor suas performances. Essa junção de elementos e o estilo abusado com que os “homens travestidos” ocuparam os espaços se aproximam muito da noção norte-americana de camp, que décadas depois seria fundamental para a construção de representações sobre as sexualidades não normativas18. Junto à paisagem, esses tipos compõem uma representação estereotipada do nosso país, muito próxima daquela construída pelos filmes comerciais de Hollywood a partir da década de 1930.

Imagem 04 – Abertura do filme de viagem “Carnival in Rio”, de Andre de LaVarre, de 1955 (Fonte: Disponível em: )

De acordo com o trabalho de Freire-Medeiros (2005) sobre a invenção do Rio de Janeiro pelo cinema hollywoodiano, o interesse audiovisual dos Estados Unidos pelos países latino-americanos está associado ao contexto da “política de boa vizinhança”, atitude desenvolvida pelos americanos do norte a partir da década de 1920, aprofundada pelo presidente Franklin D. Roosevelt. Para esse fim, foi aclamada toda a indústria cultural norteamericana, a qual estimulou um clima de valorização das culturas ibero-americanas ao mesmo 18

No Capítulo III, a questão é vista mais detidamente.

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tempo em que alinhava essas nações com os interesses políticos desse país na conjuntura da Segunda Guerra Mundial (FREIRE-MEDEIROS, 2005). Antes desse período, o interesse dos norte-americanos pelos seus vizinhos do sul era residual e marcado por chavões culturais que percebiam o resto da América como um misto de atraso e decadência. Um dos filmes que ilustram a análise da autora, “Voando para o Rio”, de 1933, apresenta uma imagem “menos selvagem” da cidade do Rio de Janeiro, porém, não menos estereotipada. Nele, estão os elementos responsáveis pela produção de uma representação da cidade como cosmopolita e moderna, mas, ao mesmo tempo, detentora de paisagens paradisíacas, como analisa Freire-Medeiros (2005). Cenas aéreas do Rio evidenciam suas potencialidades naturais associadas à sua já acentuada quantidade de prédios, avenidas largas e carros. É possível verificar que o intuito de promover a cidade do Rio de Janeiro ao posto de capital moderna dos trópicos encontra tanto nos filmes comerciais hollywoodianos quanto nos filmes de viagem um importante mediador. É interessante destacar que esse é o momento no qual o turismo passa por um crescimento expressivo, refletido pelo aumento do número de companhias aéreas no país. Voltando ao filme de LaVarre, as imagens dos “homens em travestis” parecem compor essa atmosfera cosmopolita e exótica – convidativa ao turismo – que serve de propaganda sobre o Rio de Janeiro no exterior e mesmo aqui. Ainda que as imagens de “homens em travesti” tenham o seu reconhecimento garantido nas fotografias e filmes de viagem, nas práticas cotidianas elas despertavam outras atenções19. O crescimento da preocupação das autoridades com esses “tipos carnavalescos” foi um elemento importante na conformação de um “lugar social” para esse grupo, processo que fica ainda mais evidente pela profusão de categorias classificatórias que começaram a emergir na imprensa para nomear essas pessoas, tais como “enxutos” e “bonecas”20. Em nenhum outro espaço, porém, essa preocupação ganhou mais destaque do que nos bailes dos teatros da Praça Tiradentes. Divina Valéria diz que a presença de “homens travestidos”, como eram chamados de acordo com ela, era uma realidade nos bailes dos teatros João Caetano, República e Recreio, espaços conhecidos por suas famosas festas de carnaval frequentadas por um público mais popular. Já Eloína afirma que ia aos bailes do Teatro República “vestida de mulher”, mesmo antes de se tornar, como ela afirma, uma

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No Código de 1890, o “travestismo” já é identificado como uma preocupação para as autoridades policiais. O castigo previsto para quem fosse “disfarçar o sexo, tomando trajos impróprios seus e trazê-los publicamente para enganar” eram 15 a 60 dias de prisão (FIGARI, 2007, p. 261). 20 A partir desse momento, “homens travestidos” e “homens em travesti” são usados sem distinção. Nas reportagens analisadas, essas categorias aparecem tanto para falar dos homens que se vestem de outro sexo durante o carnaval quanto para aqueles que se apresentam nos espetáculos do Teatro de Revista.

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“travesti profissional”21. O relato de Eloína sobre essa questão é muito próximo ao de Susy Parker. Esta última me disse que o Baile dos Enxutos, na Praça Tiradentes, ofereceu as condições perfeitas para o seu début “em travesti”. Segundo ela, quando ainda jovem, foi aconselhada por amigos a ir ao baile vestida a caráter, para saber se era aquilo mesmo que desejava para si. As trajetórias de vida dessas pessoas mostram que os bailes da Tiradentes proporcionavam-lhes um aprendizado, mesmo que fosse a partir do lúdico das festas carnavalescas. Os bailes traziam, através do espaço da festa, a possibilidade de esses indivíduos se verem como um “outro”, uma mulher. A propaganda gerada sobre esses bailes não causava somente rechaço da sociedade contra aquelas “criaturas bizarras” que para lá afluíam, ela criava, ainda, fascinação e atração a um conjunto de rapazes que via nesse espaço um “poder de criação” para modificar as suas vidas. Se na virada do século XIX para o XX a noção de “homossexualidade” estava atrelada a um tipo de indivíduo do sexo masculino que ostentava uma feminilidade discreta, a qual se tornava evidente nos trejeitos e no ar refinado, com os dias de folia essa noção promoveu a existência de uma nova ordem de pessoas. Ainda que o gênero se constitua como um marcador importante para materializar o “fresco” nos corpos, a figura do dândi – aquele homem de modos afetados que instituía sentidos sobre as sexualidades não normativas no nascer do novo século – não se confundia com os “homens em travesti”. Os frequentadores do Largo do Rossio (agora Praça Tiradentes), como bem descreve Green (2000), eram homens bem vestidos e elegantes, que não adotavam vestimentas do outro sexo para compor a sua indumentária. Apesar da presença desses “homens travestidos” ser já notória no carnaval, esta foi construída como um problema pelas autoridades, com o auxílio da imprensa, sobretudo nos bailes de carnaval onde começaram a ganhar importância os concursos de fantasia. A presença de “homens travestidos” nos bailes de carnaval começou a ter destaque ainda na década de 1930. Em 1938, Madame Satã, ainda João Francisco dos Santos Sant’Anna, venceu o concurso de fantasias organizado pelo bloco dos Caçadores de Veados, no Teatro República, Praça Tiradentes (GREEN, 2000). A composição ocupou um lugar de tanta projeção em sua trajetória de vida que seria escolhida por ele para dar nome ao personagem ainda tão vivo na percepção pública sobre a boemia carioca. De acordo com Green (2000), com o progressivo aumento da presença de “homens travestidos” nos carnavais, foi se

21

A noção de “travesti profissional” será discutida no próximo capítulo.

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consolidando uma representação das sexualidades não normativas como potencialmente perigosas às convenções sociais e ao decoro público. Essa representação foi sendo constituída, sobretudo, pela ação da imprensa escrita, que publicava no período carnavalesco pequenas tiras alertando sobre os perigos e excessos desses bailes, inclusive do impedimento do acesso de fotógrafos, os quais tornariam evidente, através de suas lentes, toda a “imoralidade” que lá ocorria. Os jornais de grande circulação no período, como O Globo e Última Hora produziam curtas informações sobre esses bailes. Um exemplo está na edição de 07 de fevereiro de 1959 do jornal O Globo, na qual o chefe de polícia, Sr. Ari Couto, depõe contra a sua existência: Uma nódoa que todos os anos acontece no carnaval é o já famoso baile dos anormais, no João Caetano. Milhares de reclamações chegam à polícia contra a realização de tais bailes. No entanto, quase nada podemos fazer, pois o que impede um indivíduo de se fantasiar de mulher, no carnaval? Se fechássemos o baile, outro local seria escolhido, talvez mais chocante ainda. O máximo que conseguimos foi evitar o concurso de fantasias, quando os infelizes desfilavam na passarela exibindo a sua doença a par com suas luxuosas roupagens. Como não poderia deixar de ser, a entrada de fotógrafos é vedada. A polícia não aprova essa proibição, mas nada pode fazer. Creio que a imprensa devia protestar, pois é um direito seu testemunhar todos os acontecimentos do carnaval (O GLOBO, 1959, p.2).

É possível perceber, no relato do chefe de polícia, que a existência desses bailes frequentados por “homens travestidos” era uma realidade, evidenciando a sua integração íntima aos festejos carnavalescos. Em função disso, pouco se podia fazer para censurá-los. O mesmo chefe de polícia alerta para o fato de que, se essas celebrações não acontecessem nos teatros, os chamados “anormais” poderiam começar a ocupar outros espaços, como aqueles frequentados pelas “famílias de bem”. O chefe de polícia afirma, em tom desolador, que esse, sim, seria um problema ainda maior, posto que colocaria tal parte da sociedade sob o risco de tão despudorado espetáculo. As

estratégias

policiais

para

coibir

essas

transgressões

se

concentravam,

principalmente, nos concursos de fantasias. Proibindo a sua existência, esses agentes buscavam controlar a espetacularização da transgressão de gênero e evitavam mais alardes acerca da existência dessas “novas formas de vida” – principalmente, a atração de outros iguais. Impedir a ocorrência dos concursos de fantasias desencorajava celebrações públicas das sexualidades não normativas e, sobretudo, a possibilidade de gerar relações de solidariedade entre os transgressores envolvidos nesse empreendimento. Parece que a vibração coletiva emanada da aclamação da plateia que aplaudia um igual “vestido de outro sexo” em cima do palco constituía um perigo às convenções sociais, logo, algo que deveria ser evitado.

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Porém, não eram somente os jornais como O Globo, que chamavam atenção para os perigos que esses bailes representavam. A revista Manchete, como afirma Green (2000), produziu matérias no início dos anos 1950 depondo contra a existência desses espaços. Entretanto, diferente dos jornais que apenas publicavam a opinião das autoridades, essa revista produzia matérias que estimulavam preconceitos sobre esses bailes. A postura da Manchete mudaria pouco tempo depois, quando os indivíduos classificados como “travesti” se tornaram objeto de consumo importante do carnaval, garantindo a venda da publicação. Contudo, mesmo com o acirrado veto das autoridades, os concursos continuaram existindo: a escolha da melhor fantasia era realizada em residências particulares para que logo em seguida esses homens partissem para o baile. Já no evento, até mesmo cadeiras e mesas eram obrigatoriamente retiradas por pedido policial, para impedir que uma passarela fosse artesanalmente construída e que o “homem travestido” consagrado vencedor se pusesse a desfilar, para horror da sociedade. Em fins da década de 1950 e início da de 1960, os concursos de fantasias não são os únicos itens proibidos no carnaval. O veto se expande para o uso de determinados trajes que promovam confusão – como fantasias imitando uniformes das forças armadas, roupas religiosas, etc. – e, principalmente, homens em “travesti”. Um outro exemplo de proibição teve a ver com o rock and roll. Em matéria do jornal O Globo de 11 de fevereiro de 1957 sobre o policiamento nos clubes durante o carnaval, as autoridades de costumes alertaram para a proibição de executar esse ritmo nos salões, com a justificativa de que seus adeptos cometiam excessos sob o efeito das músicas. As autoridades pareciam alardeadas por dois motivos. O primeiro trata-se da então franca associação do rock and roll com a rebeldia, materializada nas telas pelo clássico “Juventude transviada”, de 1955, filme que consagrou James Dean como ícone cultural de uma geração que valorizava a juventude como operadora de mudanças sociais. Já o segundo motivo dizia respeito à relação entre o novo ritmo e o exercício da sexualidade, que tinham em Elvis Presley e os seus rebolados sensuais um verdadeiro risco às convenções sociais. Outra prática que ganhava destaque no conjunto das interdições policiais era o striptease, quase sempre aparecendo ao lado do “fazer travesti” nas listas de proibições. Todos os anos, os jornais publicavam a lista de restrições aos festejos, como em fevereiro de 1960, quando o chefe de polícia, Coronel Luís Inácio Jaques Júnior, anunciou o impedimento da prática de “travesti” nas ruas e nos bailes de carnaval. Essas proibições constituíam importante registro de como esses “tipos carnavalescos” foram sendo construídos como um problema social que punha em risco a sociedade e as suas regras de conduta. Esse processo foi

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mediado pela imprensa e pelos especialistas sobre o sexo, convocados para explicar os perigos desses bailes. Assim, além das proibições formais da Polícia de Costumes, as interdições eram acompanhadas de justificativas especializadas, alertando sobre os riscos do “travestismo” nos jornais, adotando análises de especialistas em medicina legal, como a de Leonídio Ribeiro. Na edição de O Globo de 11 de dezembro de 1968, Ribeiro cita os problemas do “travestismo” para a segurança pública. Ele destaca não somente o chamado “travestismo masculino” como ainda a presença de mulheres que se apresentam, em bairros como Copacabana, de cabelos cortados e calças. De acordo com a matéria, o problema do “travestismo” reside na confusão que este gera, uma vez que dificultaria discriminar adequadamente as “verdadeiras identidades” dessas pessoas, impedindo a tarefa da polícia de assegurar a ordem e a segurança social. A aliança entre a medicina legal e a Polícia de Costumes se fazia evidente nesse período quando ainda estavam em voga teses lombrosianas acerca da origem e terapêutica adequada para resolver o problema do “travestismo”, mas, sobretudo, do “homossexualismo”. O “homossexualismo” segue sendo aqui uma categoria elástica, embutindo conceitos de sexo e gênero simultaneamente (BARBOSA, 2015). De acordo com Barbosa (2015), o “homossexualismo” e o seu correlato, a “inversão sexual”, seriam uma variante de gênero22. Argumentos psiquiátricos e endocrinológicos marcam os discursos desses profissionais, que começaram a ser chamados pelos veículos de comunicação de massa para oferecerem uma explicação especializada sobre as causas e efeitos desses fenômenos. Leonídio Ribeiro evoca as categorias psiquiátricas de Richard von Krafft-Ebing23 para analisar os riscos que esses tipos sociais representam para a “normalidade”. Para ele, o chamado “travestismo” tratava-se de uma anormalidade psíquica sobre a qual a Polícia de Costumes deveria intervir energicamente, sob pena de perder sua capacidade de controle das massas. Cabe destacar, contudo, que a presença das opiniões de Leonídio Ribeiro na imprensa não deve ser compreendida de forma separada do seu alcance e aproximação com a elite carioca. Ribeiro, nesse período, gozava de amplo prestígio como médico, reconhecimento obtido, principalmente, em função de seus estudos sobre o “homossexualismo” (GUTMAN, 2010). Em 1935, ele publicou “Homossexualismo e endocrinologia”, estudo produzido a partir de 195 casos de indivíduos classificados como “invertidos sexuais”, no âmbito do 22

Hirschfeld foi o primeiro desse conjunto de sexólogos a diferenciar as categorias de “inversão sexual” e “homossexualismo” (BARBOSA, 2015). 23 Importante psiquiatra alemão que conformou as bases do que ficaria conhecido como sexologia. Sua obra principal, “Psychopathia sexuallis” (1886), foi a responsável por introduzir categorias médicas – as parafilias – que assimilavam sujeitos com práticas sexuais e expressões de gênero não convencionais a doenças.

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Laboratório de Antropologia Criminal, no Rio de Janeiro. Nesse estudo, o médico organiza um conjunto de saberes acerca desses “seres sexuais”, assimilando-os a características psíquicas e somáticas. Para Leonídio Ribeiro, a endocrinologia ofereceria o caminho adequado para explicar o “homossexualismo”, que, conforme ele, em questão de tempo seria passível de cura, em função da expectativa da descoberta de um hormônio responsável por provocar a “inversão sexual”, logo se elaborando uma terapêutica a partir do mesmo, tal como ocorreu com o controle do diabetes associado ao advento da insulina (FIGARI, 2007). Suas preocupações com o “travestismo” e o “homossexualismo” refletem também uma mudança na forma como as sexualidades não normativas vinham sendo percebidas pelo conjunto da sociedade, sobretudo entre as elites. Este processo realça um esforço cada vez maior de cientificização desse tema, retirando-o definitivamente do campo religioso. A busca por respostas científicas às chamadas “perversões sexuais” assimiladas a corpos e a psiques específicas reflete um processo de mudanças ocorridas na sociedade brasileira. Nisso estão incluídas aquelas operadas na mentalidade das elites, as quais veem no discurso científico um importante suporte para adentrar na era da modernidade, associando outras formas de saber, incluindo o religioso, à tradição e ao atraso. Dessa forma, a bem-sucedida “escolha” de Leonídio Ribeiro pelos “pervertidos” de seu tempo foi responsável por proporcionar uma carreira de prestígio ao médico, que se beneficiou do contexto onde o “homossexualismo” começou a ser percebida como doença. O crescimento do interesse da população pelos manuais médicos realçou ainda mais essa dinâmica. Muitos reproduziam de forma direta as ideias dos médicos da época acerca do “homossexualismo”, o qual era equiparado, simultaneamente, às noções de crime e de loucura. O caso Febrônio talvez seja o mais ilustrativo para analisar a atitude presente nesse intervalo histórico sobre os chamados “pervertidos sexuais”. O trabalho de Fry (1982) sobre o caso Febrônio Índio do Brasil, o primeiro prisioneiro do Manicômio Judiciário da Capital Federal, traz importantes contribuições ao processo de construção da psiquiatria como saber hegemônico e o seu poder de regulação na sociedade brasileira daquele período. Em sua análise, Fry destaca a disputa de discursos em torno da suposta loucura ou potencial criminoso de Febrônio pelos “empreendedores morais” (BECKER, 2008) atuantes na época. Esse personagem ocupou as páginas de jornais da década de 1920 por ter sido acusado da morte por estrangulamento do menor Alamiro José Ribeiro, encontrado sem vida no dia 13 de agosto de 1927. Febrônio foi responsabilizado em função

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dos seus antecedentes criminais. Depois de preso em Petrópolis, foi trazido à capital, onde confessou o crime. A prisão de Febrônio desencadeou uma disputa de sentidos em torno de sua suposta loucura. O processo aberto para investigar a morte de Alamiro reconstrói toda a vida pregressa do autor, evidenciando fatos que desafiam as leis e a moralidade da época, tais como a criação de uma religião própria, relações homossexuais e assassinatos – eventos que se cruzam na trajetória de Febrônio. Desse caso, os laudos psiquiátricos constituem importantes instrumentos da construção da verdade sobre a culpa de Febrônio. Para Fry (1982), muito mais do que a vitória da psiquiatria, o Caso Febrônio evidenciou o papel didático da imprensa em converter os “loucos morais”, constantes na literatura médica, em “monstros” dos jornais (FRY, 1982). As ideias de Leonídio Ribeiro nos jornais a respeito dos “homens em travestis” e os próprios argumentos da polícia acerca do alcance pernicioso dos bailes para a sociedade revelam esse processo de construção de “monstros”, que vai produzir uma percepção estereotipada das sexualidades não normativas, associada à inversão e assimilada ao crime e à loucura. É possível perceber que os argumentos de Ribeiro acerca dos perigos que o “travestismo” acarreta guardam uma nítida relação com as preocupações dos criminologistas da Capital Federal com as novas técnicas de identificação, e que ganharam ainda mais força após a revolução de 1930. Nesse período, um determinado órgão, o Gabinete de Identificação, assumiu uma importância fundamental no conjunto das instituições estatais, ficando subordinado diretamente à Presidência da República (CARRARA, 1984). Dessas novas técnicas de identificação despontou a datiloscopia, da qual se ocupou amplamente Leonídio Ribeiro. Essa técnica aliava a polícia e a medicina, como admite Carrara (1984), em um esforço pioneiro para identificar e classificar a população, na perspectiva de construir um inventário geral da sociedade, tendo em vista vigiá-la mas, ao mesmo tempo, docilizá-la, nos termos de Foucault (1988). Dados esses objetivos, percebe-se que as ansiedades da polícia acerca dos bailes com a presença de “homens em travesti” correspondiam às orientações do Gabinete de Identificação, que na figura de Leonídio Ribeiro percebia no “travestismo” uma ameaça às modernas técnicas de identificação baseadas nas recém-descobertas papilas digitais. Como analisa Carrara (1984), o conjunto das características que tornaria essa técnica de identificação absolutamente confiável junto aos identificadores eram a variabilidade, a imutabilidade e a inalterabilidade, que reduziriam os cidadãos a um único dactilograma, sobre o qual se assentava sua identidade individual (CARRARA, 1984). Dessa forma, vestir-se com trajes

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não compatíveis com o seu sexo ameaçava não apenas a moral da época, mas também os princípios da ordem e da coesão – que o Estado deveria assegurar. Se os jornais dedicavam um espaço delimitado aos “homens de travesti”, assimilados às páginas policiais, o crescimento do interesse pelas revistas ilustradas entre a população registrava um outro movimento. Os “homens de travesti” estimulavam a curiosidade coletiva, e atentas a essa demanda, as revistas trataram de promover mais imagens dos bailes e do seu espetáculo da transgressão de gênero. Essas publicações mostravam a dinâmica de entradas e saídas das “bonecas”24 e “enxutos” nos bailes, criando uma atmosfera tal qual um freak show. Cabe aqui uma reflexão sobre esse tipo de show e o que ele representa na construção de uma espetacular exibição dos chamados “anormais”, assumida pela cultura de massas no Brasil e em outros países, sobretudo os Estados Unidos (LEITE JÚNIOR, 2006). Leite Júnior (2006), em seu trabalho sobre a pornografia “bizarra”, se debruçou sobre as origens dos freak shows e o processo de construção da noção de “freak”, ressignificada pelo mercado de cultura de massas. Para o autor, os freaks podem ser compreendidos como aqueles indivíduos cuja existência encontra-se mediada entre os monstros da cultura popular e os doentes teratológicos, “descobertas” da ciência erudita. É nos freak shows que são apresentadas variedades de tipos considerados bizarros, característica quase sempre reputada a alguma anomalia corporal ou a alguma capacidade extraordinária dos corpos, quase não humana. Apesar de serem populares em várias partes da Europa, legados do contexto medieval, foi nos Estados Unidos, afirma Leite Júnior (2006), que esse tipo de exibição ganhou forte impulso, sobretudo na virada do século XIX, indo até a década de 1960 e oferecendo as bases para aquilo que o autor chama de “cultura da anormalidade”. Esses shows encontram adequação na noção de “anormal” evocada pelo discurso policial da época para se referir aos bailes com a presença de “homens em travesti”. É possível acreditar que a percepção popular sobre esses bailes era muito semelhante àquela que despertavam os “espetáculos de aberrações” (LEITE JÚNIOR, 2006). Parece, contudo, que essa representação como freak dos frequentadores desses bailes tenha gerado mais curiosidade do que repulsa, tendo em vista o esforço editorial das revistas ilustradas da época para retratar esses eventos. A construção de imagens relacionadas à noção de freak ligada a essas pessoas, item da cultura de massas, tal como sugere Leite Júnior (2006), produziu muita fascinação sobre as mesmas. Tais imagens foram levadas ao interior das “casas de respeito” pela imprensa, que tratava de adotá-las como mercadorias culturais. 24

“Bonecas” e “enxutos” se referem ao nome adotado para classificar homens que transgrediam as regras do vestuário, usando roupas do outro sexo.

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Uma das principais revistas que motivava essa fascinação era a Manchete, que começou a circular na década de 1950 e veiculava muitas informações sobre o carnaval carioca, sobretudo a partir do ano de 1953 (GREEN, 2000). De acordo com Green (2000), o repertório de imagens de “homens em travesti” nas páginas dessas publicações logo faria com que a percepção popular visse em toda pessoa situada fora da norma heterossexual um praticante do “travesti”. A emergente imprensa brasileira da virada do século contribuiu, sobremaneira, para a produção de uma percepção pública sobre as sexualidades não normativas, convocando sempre que podia, como observado na matéria com Leonídio Ribeiro, o saber médico para formular entendimentos acerca do fenômeno. Logo, os “homens travestidos” ou “em travesti” e seus bailes se fixaram como parte integrante da paisagem carnavalesca. Mais do que isso, eles se converteram em “mercadorias culturais”, ou seja, em elementos constitutivos desse mercado de bens culturais e de entretenimento, que vinha se inaugurando no Brasil, adotando o carnaval como principal contexto de produção e consumo de bens simbólicos. Sensível a essa presença, Dercy Gonçalves despontou como pioneira, organizando a primeira versão do concurso de fantasias com homens “em travesti” nos teatros da Praça Tiradentes, em 1948. Para Green (2000), os concursos de fantasia no carnaval começaram de forma concomitante à apropriação dos espaços carnavalescos pelas “bichas”. Acredito que esse processo não tenha sido de apropriação, mas de ressignificação, uma vez que tais eventos só se materializaram a partir da agência desses indivíduos. O sucesso da iniciativa foi estrondoso, fazendo com que fosse reproduzida nos anos seguintes. O nome dessa grande vedete emprestou prestígio ao evento, tornando-o prática integrante dos salões de bailes carnavalescos. A aproximação entre o “mundo das vedetes” e aquele que vinha sendo constituído pelos homens que “faziam travesti” se acentuaria, a contragosto das autoridades que intensificavam a proibição nos bailes. Em pesquisa nos arquivos do Jornal O Globo e do Última Hora, pude observar que a categoria “travesti” aparece, quando fora do período carnavalesco, quase sempre vinculada às seções dedicadas às notícias de teatro. No caso de O Globo, desde a década de 1920, a Coluna de Teatro publicava informações de peças com homens e mulheres “em travesti”. A presença de homens “em travesti” certamente não é uma novidade na história do teatro. Ela remonta aos primórdios do teatro grego, se intensificando no teatro elisabetano,

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quando os personagens femininos eram todos encenados por pessoas do sexo masculino25. Acredito, contudo, que a ligação entre os homens “em travesti” e a percepção pública sobre a “homossexualidade” tenha se estreitado à medida que o Teatro de Revista ganhou projeção, constituindo o principal veículo de circulação de objetos culturais, tais como as marchinhas, para além dos dias momescos. Esses processos históricos sugerem que o espetáculo26 da transgressão de gênero no carnaval foi fenômeno constitutivo do mercado de bens culturais e de entretenimento no Brasil. Os bailes e concursos dos “enxutos” e das “bonecas” realizados em grandes teatros no centro da cidade do Rio de Janeiro não só consolidavam uma imagem pública das sexualidades não-normativas associadas ao feminino (GREEN, 2000) como também contribuíam para a formação de um papel social e, junto com os fã-clubes das estrelas do rádio na década de 1950, instituíram sentidos sobre essas novas “formas de vida”, abrangendo de forma intensa nessa categoria noções de sexo e gênero como dimensões imiscuídas. Newton (1979), em seu trabalho sobre os profissionais de impersonals female nos Estados Unidos, chegou à conclusão de que o processo de estigmatização a que estes estão expostos se relaciona à emergência da cultura de massa no contexto norte-americano, algo que acredito ter ocorrido ao contrário no Brasil. Através da trajetória, sobretudo de Rogéria, percebo que o mundo identificado por Newton (1979) como de show business foi um vetor de ascensão social e simbólica, através do qual as “travestis” brasileiras experienciaram uma realidade menos violenta e até um considerável reconhecimento, tendo em vista o assédio que sofreram da imprensa. Aparentemente, os “homens em travesti” só ganharam inteligibilidade a partir de sua relação com o imaginário carnavalesco. Uma das consequências desse processo foi a consolidação de um “lugar social” previsto para essas pessoas: os dias de folia e o palco. Nesses espaços, era possível desfrutar da transgressão de gênero com relativa liberdade, posto que era esperado esse tipo de comportamento somente ali. Essa existência liminar sugere uma relação com a ideia de “paródia” presente em Butler (2003). Para essa autora, a noção de paródia não se estabelece a partir de um gênero original ao qual se recorre para imitação. A paródia, para ela, já é um original: uma vez que não existe uma identidade de gênero a priori, esta é construída performaticamente. Daí a importância política, para Butler, das “travestis”, 25

Jorge Leite Junior (2008) ressalta que a palavra “travesti” possivelmente surgiu na França do século XVI, adotada pelo campo teatral com uma acepção de disfarce. Sua recepção no Brasil seguiu o mesmo princípio de sua congênere francesa, daí a forte presença dessa expressão nas colunas dedicadas à programação teatral nos jornais do Rio de Janeiro. 26 Adoto aqui a noção de espetáculo presente em Anne McClintock (2010), que a percebe como um olhar privilegiado que um determinado grupo social tem sobre determinados eventos e grupos.

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drag queens e das práticas de crossdressing, posto que desestabilizariam a noção de uma legítima identidade de gênero. No carnaval, a “paródia de gênero” é integrada à lógica da desordem carnavalesca. Quando acabavam os dias de carnaval e as coisas voltavam aos seus lugares é que a “paródia de gênero” incomodava, uma vez que expunha a artificialidade das identidades de gênero. As consequências em se perceber os “homens travestidos” no registro da “paródia” se manifestam nas situações de violência e de discriminação a que esse grupo estava exposto nos outros dias do ano, e mesmo nesses dias, como mostra Kullick (2008). Como destaca Green (2000), nem no carnaval a violência contra estes diminuía. Muitos eram alvejados por uma plateia buliçosa que os aguardava nas portas dos teatros João Caetano e República. A recepção era feita com latas e outros materiais que eram jogados em suas roupas e corpos adornados luxuosamente. Esses eventos evidenciam a existência de duas imagens concorrentes dos “homens travestidos” no período. Uma imagem era projetada, sobretudo pelos “empreendedores morais” (BECKER, 2008) – médicos, juristas, imprensa, etc. –, os quais entendiam esses “homens travestidos” como portadores da desordem, posto que associados ao crime e à confusão de gêneros. A outra imagem ganhava sentidos pela mediação dos espaços teatrais, pela chave do glamour, que começava a ser mais forte à medida que esses “homens em travesti” se inseriam nos espetáculos, sobretudo nas revistas, cada vez mais numerosas no mercado cultural brasileiro em formação.

1.2 – Concursos de Fantasia

A virada do século XIX para o XX imprimiu mudanças significativas na forma como o carnaval era comemorado no Rio de Janeiro. Esse processo está relacionado ao conjunto das transformações urbanísticas cujo objetivo era elevar a cidade aos moldes citadinos de Paris. Os carnavais de Nice e Veneza passaram a ser referência de festas nas quais o caos das ruas – principalmente aquele instituído pelo entrudo – cedia lugar aos salões bem decorados, sobretudo aqueles do Baile de Gala do Theatro Municipal. Nesses salões foram dramatizados os símbolos de distinção relacionados à classe, os quais ganhavam materialidade não somente no vestuário, que imitava reis e rainhas, mas na riqueza da decoração e mesmo da escolha dos

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pratos do buffet. Tal comemoração estimulava um seleto grupo de pessoas oriundas das classes mais abastadas da cidade do Rio de Janeiro. A mudança de postura em relação à celebração do carnaval incidiu ainda sobre os concursos de fantasia realizados nos animados bailes de salão que se abriam para um conjunto de pessoas não tão endinheiradas assim. Se no Theatro Municipal os concursos de fantasia ganhavam cada vez mais projeção, aqueles realizados nos teatros da Praça Tiradentes não tinham a mesma sorte. Enquanto os veículos de comunicação exaltavam o fausto dos bailes de gala, chamavam a atenção para a perniciosa libertinagem dos bailes da Tiradentes. Os concursos de fantasia nesses teatros constituía, na opinião das autoridades da época, uma ameaça à moral e aos bons costumes – pilares da sociedade. Enquanto esses espaços eram cerceados, o concurso de fantasias do Baile de Gala do Theatro Municipal, instituído em 1937 por iniciativa de Clóvis Bornay, começava a ganhar autonomia em relação ao conjunto dos festejos carnavalescos, a ponto de se tornar um evento à parte anos mais tarde, consolidandose como atração turística da cidade. A fama dos concursos de fantasias no carnaval carioca teve o seu apogeu com a figura de Clóvis Bornay, cujas fantasias emprestaram luxo e glamour aos salões lotados de foliões. A trajetória de Clóvis Bornay se cruza com a própria história do carnaval no Rio de Janeiro. Filho caçula de uma família de 12 irmãos, de mãe espanhola e pai suíço, foi morar ainda muito cedo no município de Nova Friburgo, Região Serrana do estado do Rio de Janeiro. Aos 14 anos, ele teve a sua vida íntima descoberta pelo pai, que o expulsou de casa. Como me contou sua filha mais velha, tratava-se de uma família abastada, cujo patriarca, dono de uma joalheria, possuía grande poder sobre o núcleo familiar. Aparentemente, a vergonha de uma possível corrosão do nome da família foi o desencadeador dessa expulsão. Uma vez fora de casa, Bornay chegou a morar uns dias na rua, trabalhando de engraxate. Ao solicitar uma oportunidade de emprego a um amigo da família, esta lhe foi negada. Diante da rejeição, ele escreveu uma carta a esse amigo do pai, dizendo que iria se matar caso não conseguisse o emprego. O amigo resolveu então atender ao pedido, oferecendo uma vaga na redação de um jornal. Clóvis Bornay conseguiu se formar em museologia, profissão que lhe serviu de base para compor o que mais tarde vai ser a sua marca registrada: as fantasias de luxo. Sua história de vida se cruza com a história do carnaval quando assume a diretoria do Museu Histórico Nacional. Já nesse cargo, conseguiu convencer o diretor do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Silvio Piergilli, a realizar um baile de gala nos moldes do carnaval de Veneza na Itália, no qual fantasias receberiam prêmios em uma competição. Os

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concursos de faantasias nãoo eram noviidades nos salões de baile b durantte o carnav val, mas elee conseguiu uma proeza: p a suua inserção no Baile dee Gala do Thheatro Munnicipal, um dos d eventoss mais tradicionaiis no calenddário carnavvalesco, ag gregando inddivíduos innfluentes em m diferentess camppos como políticos, p arrtísticos e culturais. c De D acordo com c propaggandas veicculadas porr jornaais na épocaa da criaçãoo do concursso de fantassias por Clóóvis Bornay – década de d 1930 –, o bailee se constituuía como o principal p poonto de enco ontro de um ma elite ávidda por cosm mopolitismo.. Muittos trechos de jornal erram dedicaddos a revelaar o luxo e a elegânciaa do evento, com peçass decorativas vindas de Parris e serviçço de buffeet – com mais de 500 garççons, auxilliares e pesssoal de coopa – execuutado pela

prestigiossa

Confeittaria

Coloombo

(dadoos de O Gllobo, em 077 fev.1937)). Os perióódicos desttacavam ainda o caaráter cosm mopolita do baile, frequuentado porr uma elite

internaccional,

impoortância,

d de

exxcedendo

acordoo

com

em e essas

publiicações, os bailes de Nice N e Venezza. A inserrção dos concursoss de fantaasias em um m baile parra a “socieedade elegaante” evidenncia outras implicaçõess que extraapolam oss “rituais de distinnção” prom movidos pela elite daa época. Nesse N sentiido, o protagonismo dee Clóvis Boornay mereece reconhecimento. Esstar no carggo de Imaggem 05 – O Príncipe Hiindu: fantasiaa com que Clóviis Bornay vennceu o primeiro concurso de d fantasias

diretor do Muuseu Históórico Naciional do Theatro T Muniicipal, em 19937 (Fotograffia: acervo faciliitou a suua articulaçção com uma

pesso oal das filhas de d Clóvis Borrnay).

parceela da socieedade detenntora de cappital cultura al, incluindoo o diretor ddo Theatro Municipal,, sem a qual não seria s possívvel a produçção de tão faamoso concurso. Os conccursos de fantasia f eraam vistos com c grandee reserva ppelas autoriidades, quee impeediam a suaa realizaçãoo como form ma de contter o espetááculo da transgressão de gênero.. Coloocar tal evvento na agenda a do mais fam moso baile contribuiu,, certamen nte, para o reconnhecimentoo das sexuallidades não normativass através doo espetáculoo do consum mo da “nataa da soociedade”, que q começoou a incluí-laa nos marco os de seus “rituais “ de distinção”.

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Em 1937, no primeiro Baile de Gala do Theatro Municipal, Bornay arrebatou o júri com a fantasia de Príncipe Hindu, ganhando o primeiro lugar. Logo, os Bailes de Gala do Municipal se tornaram um evento à parte na agenda do carnaval do Rio de Janeiro, agregando personalidades como a atriz Wilza Carla. A elite se reunia para prestigiar as fantasias que, anualmente, ficavam ainda mais luxuosas. Não somente o público carioca aguardava com expectativa os concursos de fantasia. Eles também despertavam a atenção de turistas que vinham de diferentes partes do mundo e do Brasil para ver de perto as invenções criativas e esplendorosas dos concorrentes. Os participantes concorriam em três categorias: “fantasia de luxo mais interessante”, “fantasia de luxo baseada em motivo nacional” e “fantasia mais excêntrica”. Os prêmios consistiam em pulseiras de brilhantes (conforme O Globo, em 07 fev.1937). As fantasias de luxo de Bornay causavam inquietação entre a sociedade carioca, pela grandiosidade de seus elementos. Sua grande preocupação ao construir as fantasias era causar um “efeito sobre o público”, afirma uma edição do jornal O Globo, de 03 de janeiro de 1982. Uma de suas filhas me contou que ele chegou a desmontar um lustre que encontrara em sua casa, a fim de produzir uma de suas indumentárias. Sua saída de casa nos dias de concurso, na rua Prado Júnior, em Copacabana, era um verdadeiro acontecimento. Para deleite da plateia numerosa, desfilava pela rua antes de entrar na Kombi e partir para o Theatro Municipal, antecipando o luxo de suas vestimentas para os vizinhos e curiosos que se avolumavam na frente de seu apartamento. Mas não era somente pela riqueza dos materiais que ele surpreendia. Suas fantasias, diferentes dos concursos cujo centro das atenções eram os “homens travestidos”, não adotavam o universo feminino como fonte de inspiração, mas se apoiavam em representações de grandes baluartes masculinos da história e das mitologias. Foi Clóvis Bornay quem fez ressurgir a glamourização dessas imagens masculinas, reproduzidas em fantasias com grande luxo, como pode ser observado na fotografia do Príncipe Hindu. Tal iniciativa certamente abrandou o alarde que as autoridades tinham de que tais concursos se aproximassem do espetáculo do excêntrico, como eram aqueles realizados na Praça Tiradentes. O grande conhecimento histórico de Clóvis Bornay foi um importante instrumento de mediação para que esses concursos, antes combatidos veementemente pelas autoridades, fossem convertidos em símbolos do carnaval, consumidos dentro e fora do Brasil como tal. A trajetória de vida de Clóvis Bornay mereceria uma análise à parte, o que não é o objetivo desta tese. Entretanto, o que mais chama a atenção para este trabalho é a relação de contiguidade entre esses personagens que somente surgiam no carnaval e os meios de

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comunicação, quando aqueles começam a deixar os dias de folia e a habitar a vida ordeira – aparecendo frequentemente na televisão e em outros veículos de comunicação, como as revistas ilustradas –, promovendo uma espetacularização da “bichice”. Sugiro que as representações da masculinidade nas fantasias de Clóvis Bornay foram importantes para esse processo. Não se tratava de um homem “em travesti”, mas de um homem representando reis, deuses, elementos da realeza, etc. Ainda que mantivesse a ambiguidade de gênero – pelo uso de unhas postiças, perucas e sapatos de saltos alto estilo Luís XV para compor a indumentária –, não era um homem se vestindo de mulher. Esses elementos compunham um personagem masculino, facilitando a sua apropriação pelas mídias sem ameaçar a moral da época. Entretanto, a ambiguidade de gênero materializada nesses homens logo seria denunciada, como se percebe em matéria da revista Fatos & Fotos, de 21 de dezembro de 1974. Nessa edição era noticiada a proibição dos concorrentes masculinos desfilarem no Baile de Gala do Theatro Municipal, o que gerou intensos debates entre os organizadores dos concursos, que já contavam com uma equipe especializada composta pelos empresários Belino Melo e Armando Montel, as companhias de turismo e o presidente da RioTur à época, Cel. Aníbal Uzeda de Oliveira. A essa altura, tais certames eram conhecidos mundialmente, sobretudo pela agência das personalidades masculinas que neles concorriam. As companhias de turismo mostravam-se preocupadas com os rumos de tal evento, dada a proibição de seus principais baluartes, como Evandro de Castro Lima, Clóvis Bornay e Mauro Rosas. Por sua vez, os empresários especializados na produção do concurso ameaçavam recuar em seus preparativos caso persistisse a reprovação dos concorrentes masculinos no Municipal. A tensão entre esses diferentes interesses evidencia a importância que os concursos tinham na construção do carnaval, não somente como uma festa local, mas como um evento mundial. Essa importância só foi conquistada em função da presença desses homens, que provocavam perplexidade com suas fantasias luxuosas nos 30 segundos em que desfilavam. A agência desses indivíduos não se esgotava nas passarelas. Basta um olhar nas revistas de grande circulação nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil, tais como a Fatos & Fotos e Manchete, para perceber a recorrência de imagens e reportagens que cobriam os concursos, mas, sobretudo, os seus mais destacados participantes. Todos queriam saber as novidades de Clóvis Bornay para o carnaval: em qual escola ele iria desfilar e com que fantasia. Existia uma relação entre esses homens e o tradicional desfile das escolas de samba. Bornay, por exemplo, chegou a ser carnavalesco de importantes agremiações, como o Salgueiro, a Unidos da Tijuca e a Portela, para a qual conquistou o campeonato em 1970. A

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figura do destaque, pessoas com fantasias luxuosas que geralmente são colocadas no topo dos carros alegóricos, foi uma das inovações criadas por esses homens. Os concursos, as fantasias e as esplendorosas inovações nos desfiles das escolas de samba foram convertidos em símbolos do carnaval do Rio de Janeiro. Os turistas acorriam ao Rio para ver esse espetáculo da exibição que as fotografias levavam aos cantos mais afastados do planeta. Afastar homens como Clóvis Bornay do carnaval implicava uma tarefa quase impossível para instituições como a RioTur, a qual dependia da equação turismo/propaganda. É possível afirmar que a esses sujeitos está intrinsecamente associada à definição moderna do carnaval e à sua apropriação pela crescente indústria do turismo, que projetava internacionalmente imagens da folia nas quais essa presença era parte integrante. Apesar da tentativa de silenciamento operada pelo presidente da RioTur, os concursos de fantasia continuariam sendo amplamente cobertos pelos meios de comunicação do período. Eles recebiam grande atenção de determinadas camadas da sociedade, preocupadas em se distinguir do conjunto da massa. Com a proibição do Municipal, a realização se expandiu para outros clubes e hotéis do Rio de Janeiro. Como pode ser observado na figura a seguir, o principal palco onde eram realizados esses concursos passou a ser o Hotel Glória, famoso por ser o primeiro cinco estrelas do Brasil. Seus salões foram abertos para um público seleto composto, sobretudo de turistas, cuja principal exigência era o uso do traje black-tie. O certame ganhou vasta cobertura de emissoras de televisão e algumas revistas da época dedicaram muitas páginas ao evento. O júri era formado por personalidades, incluindo as famosas misses, que capitalizavam ainda mais repercussão midiática. Sugiro que existia uma relação de proximidade entre esse universo e aquele das misses, cujo componente agregador era o glamour. Contando com essa estrutura, às 18 horas do sábado de carnaval, abrindo os festejos, começava o concurso de fantasias do Hotel Glória, sendo transmitido a milhares de brasileiros por diferentes emissoras de televisão.

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Imagem 06 – Concurso de fantasias no Hotel Glória – 1975 (Fotografia: acervo pessoal das filhas de Clóvis Bornay).

Foi nos bailes de salões elegantes, como os do Municipal e Hotel Glória que Clóvis Bornay e Evandro de Castro Lima, seu famoso concorrente, consagraram-se como grandes vencedores dos concursos de fantasias. Durante algum tempo, os dois até foram amigos, mas a disputa nos concursos de fantasias despertou uma rivalidade sem precedentes, que se tornou ainda mais dramática quando, coincidentemente, as fantasias que produziram mostraram-se idênticas, como no caso do pavão que desfilaram na 9ª Edição do Concurso de Fantasias Inéditas do Baile Oficial da Cidade. Na imprensa, Clóvis Bornay acusava Evandro de Castro Lima de ter um pacto com o diabo e um olho mágico em casa, para observar tudo que ele fazia para depois reproduzir. Acredito que o protagonismo desses homens nesses concursos instituiu uma “ponte” entre esse universo e aquele da televisão, que ia se ampliando. Esses concursos e os seus personagens se constituíram em objeto de consumo da população que, anualmente, acompanhava as brigas, fofocas e os desfiles através dos jornais, revistas e televisão. Logo, esses homens progressivamente entraram definitivamente no mundo televisivo como jurados

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dos famosos programas de calouros – como o Programa Sílvio Santos e a Discoteca do Chacrinha –, com uma audiência marcadamente popular. Dessa entrada resultou uma apropriação das sexualidades não-normativas pelos meios de comunicação de massa, a qual teria provocado a consolidação de determinadas ideias acerca dessas sexualidades. Um dessas ideias era a associação entre o “comportamento homossexual” e uma dada sensibilidade ou mesmo predisposição para habilidades artísticas. Com a repercussão midiática dos concursos de fantasias do Hotel Glória há um deslocamento desses personagens do plano do carnaval – aqueles dias de folia nos quais se tornavam momentaneamente famosos – para o plano da vida cotidiana. Personagens como Clóvis Bornay começaram a habitar o lar da “família brasileira”, ajudando a consolidar determinados significados sobre as sexualidades não-normativas de forma concomitante ao consumo desse tipo de produção. Suas aparições na mídia deixaram de ser realizadas apenas durante o período momesco. A performance desses indivíduos ganhava assim o público, sendo progressivamente identificada com um tipo social: a “bicha”. Essa associação ficou evidente no crescimento dos personagens identificados como “bichas” na televisão brasileira. De acordo com Jô Soares, em entrevista sobre a relação entre “homossexualidade” e televisão, o Capitão Gay, personagem vivido por ele no programa Viva o Gordo, apresentado pela TV Globo na década de 1980, teve Clóvis Bornay como principal influência para a concepção de personagem. Conforme o apresentador, seus ares afetados de dândi foram fundamentais para dar vida ao Capitão Gay, oferecendo à performance do personagem significados relacionados ao “estigma da efeminação”. No terceiro capítulo será dada continuidade a essa reflexão, quando se analisará a presença de pessoas identificadas como “bichas” e “bonecas” nos programas de auditório exibidos na televisão brasileira.

1.3 – O Teatro de Revista

Apesar da proibição das autoridades policiais sobre a realização dos concursos de fantasias nos bailes dos teatros da região da Praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, a prática de “fazer travesti” nos teatros de Revista crescia. Esse crescimento foi registrado pela imprensa da época que, em tom de fofoca, noticiou na edição de O Globo de 29 de outubro de 1965, uma tira alertando sobre um suposto movimento das vedetes contra as “travestis”, que

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estariam roubando o emprego das moças no teatro. A matéria falava ainda da “travesti” como uma “moda” que vinha dominando o cenário cultural no Rio de Janeiro e em São Paulo, inclusive com algumas boates se especializando nesse tipo de elenco. Nessa ocasião, o Teatro de Revista passara a se chamar Teatro Rebolado, alcunha atribuída ao escritor e radialista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, ainda na década de 1950, para falar de um momento na trajetória desse gênero teatral marcado por sua decadência. A história do Teatro de Revista, porém, tem muito mais a oferecer para a compreensão das sexualidades não normativas e daqueles indivíduos começavam a transformar um gênero diferente daquele atribuído ao nascer. A emergência e decadência desse gênero teatral produziram um mundo de significados, o qual serviu como ponto de partida nas trajetórias de vida de “travestis” como Divina Valéria, Marquesa, Jane Di Castro e Rogéria. A relação entre o Teatro de Revista e a produção das sexualidades não-normativas como “lugar social” parece ser ainda mais estreita do que a vinculação desta produção com o carnaval, e isto se deu por várias razões. O Teatro de Revista conformou um modelo de experiência moderna única – a vida noturna, cuja mais expressiva instituição era o cabaré, lugar onde afluíam homens em busca de prazeres, mas também onde mulheres construíam carreiras alternativas ao seu itinerário de gênero. Tal mudança de percepção da noite como momento de derives e prazeres, e não como momento de descanso, conforme até então era vista, foi fundamental para a produção de um mercado de consumo do lazer ao qual se conectaram compositores populares, empresários, atores, figurinistas, cenógrafos, etc. Esse mercado produziu seus próprios objetos culturais – como as vedetes, as marchinhas, os atores bufões, etc. –, responsáveis por uma nova gramática da cidade moderna. Dessa forma, este tipo de linguagem teatral criou condições específicas para que esses homens inventassem sentimentos de identificação, associando vida cotidiana com fazer artístico. O “sentimento de communitas” vivenciado pelos artistas do Teatro de Revista teria atraído, como “um imã”, toda sorte de homens e mulheres que não se identificavam com as convenções vigentes acerca de gênero e sexualidade. O Teatro de Revista surgiu no Brasil ainda na virada do século XIX para o XX. Desde a sua origem esteve vinculado aos acontecimentos histórico-sociais que movimentaram a sociedade brasileira nesse período. Mais do que isso, o Teatro de Revista exerceu papel fundamental no desenvolvimento do gosto estético das camadas populares, na organização espacial do lazer na cidade do Rio de Janeiro e, sobretudo, na propagação de valores e sensibilidades associadas ao estilo de vida moderno, tal como aquele que vinha sendo difundido nos países da Europa e nos Estados Unidos.

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De acordo com Paiva (1991), a primeira Revista de que se tem notícia data de 9 de janeiro de 1859. Seu título foi As surpresas do Sr. José da Piedade. A Revista ficou apenas três dias em cartaz, sendo proibida pela polícia por ofender a moral e os bons costumes vigentes na época. Contudo, nela já se percebem elementos em voga nos teatros parisienses, principalmente em relação ao seu escopo principal: comentar de forma bem-humorada acontecimentos do ano anterior e também os costumes que se materializavam em moda. A chamada Revista do Ano se constituía em uma crônica – uma retrospectiva – que abusava da linguagem do humor para evidenciar de forma crítica problemas vivenciados pelo conjunto da sociedade brasileira. O cenário político associado aos seus bastidores serviu de matéria-prima para a construção de peças que riam com desdém da recém-renascida República brasileira, a qual havia sido proclamada sem que a população tivesse tomado conhecimento. Apesar do pouco tempo em cartaz da primeira Revista, esse gênero de teatro teria tomado projeção entre nós com a inauguração, no centro do Rio de Janeiro, na Rua da Vala (hoje Rua Uruguaiana), do café cantante Alcázar Lyrique, em 1859. Este estabelecimento logo abriu as suas portas para artistas individuais e trupes radicadas em Paris. No repertório constavam operetas, romanças, cançonetas, duetos e outros estilos. Logo, o lugar passaria a ser ocupado por um grupo variado de tipos sociais formado por boêmios, literatos e a média burguesia ávida por novidades (PAIVA, 1991). Nas adjacências do novo estabelecimento se fixou uma exuberante vida noturna, que se irradiava pelas ruas do Sabão (hoje, lado par da Avenida Presidente Vargas), São Jorge (hoje, Senhor dos Passos) e Ouvidor. Nessas vias interagiam toda a sorte de mulheres que, aproveitando o crescente fluxo de pedestres na área em tão avançada hora, exploravam o negócio da prostituição. O Alcázar Lyrique conseguiu muito mais do que consolidar um gênero de teatro já estabelecido na capital francesa. Esse espaço instituiu a vida noturna na então capital da República, cidade que passou a contar com uma noite cada vez mais cosmopolita, na qual a circulação de diferentes pessoas em estabelecimentos notívagos passou a ser um hábito urbano. Esse processo provocou implicações não somente no comportamento dos moradores da cidade, mas ainda promoveu a existência de modos de vida até então não inteligíveis. Para Calmon (1967): A nova cidade elaborou tipos sociais observados com surpresa e escândalo, curiosa e ironicamente pelos cronistas de costumes. A urbanização da vida, o desenvolvimento do Estado, a democratização da lavoura, a prosperidade das classes liberais, a vasta democracia entretida pela política, que faz do emprego público um dos seus esteios partidários, subvertem a antiga estrutura pacata, hierárquica, definida, da sociedade brasileira (CALMON apud PAIVA, 1991).

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Essa nova cidade tomava Paris como modelo, valorizando em seu novo desenho não somente os artistas vindos de lá, mas também seu estilo de vida urbano. Desse primeiro momento do Teatro de Revista destacam-se as obras do teatrólogo brasileiro Artur de Azevedo, que escreveu peças que marcaram a história desse gênero, tais como O bilontra; Há alguma novidade? – partitura da maestrina Chiquinha Gonzaga –; Comeu! e a Capital Federal. O conjunto dessas peças expressava críticas e opiniões sobre os acontecimentos do ano, principalmente aqueles relacionados à vida política. Além das críticas mordazes evocadas nos textos, o Teatro de Revista instituiu modas e operou mudanças nas convenções sociais, sobretudo no que se relaciona a gênero e sexualidade. Um importante registro desse processo pode ser observado no sucesso do penteado à la garçonne, que triunfou entre as coristas e instituiu uma tendência entre as mulheres, que começaram a cortar seus cabelos à altura da nuca, verdadeiro escândalo em uma época em que os cabelos longos eram um importante marcador de gênero. O Teatro de Revista se constituiu como um vivaz catalisador de sentimentos coletivos em um período no qual a cidade do Rio de Janeiro, já representada como centro irradiador cultural e político brasileiro, passava por transformações estruturais que afetavam seu traçado urbano e a sua percepção de uma recente cidadania cosmopolita. Esse encontro entre o tradicional e o moderno se manifestou de forma exemplar na transformação do carnaval operada neste momento. A buliçosa festa popular começava a tomar ares mais comportados, demonstrando a adesão aos modelos dos carnavais festejados em Nice e Veneza – banhos de mar à fantasia, bailes de máscaras e desfiles mais comedidos. Esses novos hábitos carnavalescos ganharam uma camada da sociedade que possuía dinheiro e prestígio e que passou a frequentar os cafés cantantes, como o Alcázar Lyrique, evidenciando a ascensão burguesa pari passu ao vertiginoso crescimento urbano (PAIVA, 1991). Essas transformações foram retratadas em diferentes peças desse gênero teatral. A invenção da Revista pré-carnavalesca, ainda na mudança do século XIX para o XX, marcou a aproximação definitiva entre o Teatro de Revista e os festejos dessa festa. Disso resultaram imagens que se fixaram na imaginação popular e que são, ainda hoje, enaltecidas como símbolos de brasilidade, como a baiana branca, tão presente nos festejos momescos. O Teatro de Revista foi grande propagandista dos inventos populares da festa de momo. Se em sua origem esse teatro demandava o gênio criativo de artistas estrangeiros, ao travar intimidade com o carnaval passou a ser palco de ritmos como os maxixes, lundus, toadas, xotes, polcas, das famosas marchinhas e do tão aclamado samba. Mas a afinidade do Teatro de Revista com o carnaval ia muito além. Acredito que esse gênero de teatro foi um impulsionador do que iria

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ocorrer décadas depois com o carnaval, ou seja, o desfile das escolas de samba. Foi nos bastidores das Revistas que se iniciaram nomes como Fernando Pamplona, carnavalesco que revolucionou o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro nas décadas posteriores. Os sucessos aclamados pela audiência popular que embalaram os salões de bailes de carnaval tinham o seu prelúdio nas Revistas pré-carnavalescas. Temas imortalizados, como Linda Flor (ai, yoyo); Taí; O teu cabelo não nega; Pastorinhas; Yes, nós temos bananas, entre muitos outros de importância para a formação do nosso cancioneiro e gosto popular, surgiram no contexto desse tipo de teatro. Simultaneamente, ganharam projeção os compositores e intérpretes vindos das classes populares que singularizaram a sua presença na cena musical, tais como Sinhô, Ismael Silva, Lamartine Babo, Ary Barroso, Mário Lago, etc. Ao mesmo tempo, esse teatro tornara-se moda entre a jeunesse doreé intelectual que, associada aos cantores populares, consolidou esse gênero como nacional, resistente ao assédio estrangeiro (PAIVA, 1991). Em suma, o Teatro de Revista constituiu-se como o primeiro canal de comunicação em massa, antes mesmo do rádio, ao divulgar os sons que se conformariam em moda nos salões lotados de foliões. Com o advento do rádio, que alcançou a sua época áurea nas décadas de 1940 e 1950 (AVANCINI, 1996), o Teatro de Revista manteve conexões íntimas com a radiofonia, oferecendo espaço para os cantores da Rádio Nacional, como Herivelto Martins, Dalva de Oliveira e Emilinha. Ainda que a aproximação com o carnaval tenha sido decisiva, o Teatro de Revista sofreu grande influência das companhias francesas e italianas que vinham para cá se apresentar. Essas turnês revestiam ainda mais a capital da República de “brilhos civilizatórios”, inserindo definitivamente o Rio de Janeiro no circuito cultural internacional. Esse prestígio marcou uma mudança no formato das Revistas até então encenadas. A chamada “época de ouro” do Teatro de Revista data de 1922 a 1940, a partir da chegada, de Paris, da companhia de Revistas Ba-ta-clan, conduzida por Madame Rasimi. A companhia resplandecia de novidades e engenhosas técnicas de apresentação corporal no palco, sendo o nu feminino uma de suas mais importantes contribuições ao nosso Teatro de Revista. Combinada a essa inovação, a companhia trazia novidades na iluminação, cenários grandiosos e técnicas de movimentação que ampliavam o efeito lúdico dos espetáculos (PAIVA, 1991). A nudez de mulheres com corpos marcantes foi ainda influenciada em função da cada vez maior atração que se tinha do cinema, uma nova arte que arrebataria multidões fascinadas pela mistura de movimento e fantasia. É atribuída ainda à formação do Teatro de Revista a profissionalização do mercado de produção de shows e entretenimento no Brasil, promovendo, mormente, a figura do

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empresário como profissional que passou a ganhar cada vez mais fama com as produções. O italiano Pascoal Segreto foi um precursor, ao comprar o Teatro Santana, incrementando a sua presença no mundo dos espetáculos. Porém, Walter Pinto, com seus espetáculos adornados pelo luxo e estilo broadwayano, marcou a história desse gênero teatral e, mais do que isso, as imagens que evocamos dele. Filho mais novo de Manoel Pinto, também empresário destacado do Teatro de Revista no estilo Ba-ta-clan, Walter Pinto assumiu os negócios da família após a morte de seu pai e do irmão mais velho (PAIVA, 1991). Além da nova estética que estabeleceu para o gênero, Pinto iniciou um processo de vinculação do nome dos produtores às companhias de revistas. Ele tinha o hábito de fixar seu nome em letras ainda maiores do que as dos artistas presentes no show na entrada dos teatros, fazendo-se reconhecer entre as plateias. Esse produtor inaugurou uma nova fase no Teatro de Revista, conhecida como féerie, um tipo de espetáculo trazido da França que misturava diferentes linguagens artísticas, tais como canto, dança, acrobacias, iluminação cênica, movimentos, etc. Foi pelas mãos de Walter Pinto, sempre ávido por novidades, que, em 1953, Ivaná, o primeiro artista “em travesti” midiatizado no Brasil, estreou nos palcos do Teatro Recreio. Ivaná atuou e dançou na Revista É fogo na jaca, sendo celebrizada por sua execução da canção Cherchez le milionaire. A revista Manchete, em seu número 75, de 26 de setembro de 1953, trazia sua foto estampada na capa. Dentro da revista, na matéria intitulada Ivaná – a grande dúvida, o jornalista Ivo Serra chamava a atenção para aspectos pessoais da vida da artista. Nascido Ivan Monteiro Damião, de pais portugueses, veio ao Brasil com outros artistas franceses importados por Walter Pinto. A participação de homens “em travesti” não era novidade no Teatro de Revista, mas Ivaná despertava o interesse pela perfeita imitação do feminino que materializava. Já na publicidade do espetáculo, Pinto noticiou que uma das artistas que o compunham era uma “transformista”, mas sem revelar quem. Foi a Manchete, no citado número, que cumpriu a tarefa de revelar o segredo de Ivaná. Escreveu Ivo Serra que era hábito comum no Teatro de Revista usar o “gênero travesti”, popularizado nas personagens vividas por atores como Oscarito, Grande Otelo e Carlos Gil, mas, afirmou, Ivaná surpreendia por “viver mesmo uma atriz famosa”.

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Tal perfeição foi encarada pelo público com certo desconforto. Na revista Ronda da Noite, número 03, data desconhecida (acervo do CEDOC-FUNARTE)27, periódico que dedicava muitas de suas páginas às vedetes do Teatro de Revista, na matéria intitulada Êle, traz um esclarecimento ao leitor sobre o “gênero travesti”. Ao se referir sobre essa prática, o autor destaca Ivaná com uma das artistas mais experientes nesse métier, fazendo-o conhecido em diferentes regiões do Brasil. “Fazer travesti” aparece na matéria como uma arte, no sentido estrito do termo. Ao afirmá-lo como tal, a matéria ressalta que a “arte de Ivaná” é produzida sem os “atributos condenáveis, sem o auxílio do homossexualismo”. Tal defesa do gênero se justifica em função das reações negativas da plateia que, como salienta a revista, vaiava Ivaná em suas apresentações. As vaias direcionadas são percebidas pela matéria como manifestações grosseiras da falta de espírito do público brasileiro para esse tipo de espetáculo. Ao finalizar, o crítico chama a atenção para a necessidade de aprimoramento do senso artístico das plateias brasileiras que, mesmo pagando caro para ter acesso ao espetáculo, não possuíam ainda capital cultural acumulado para apreciar o conjunto das linguagens da arte ali exibidas. Acredito que o Teatro de Revista, ao mesmo tempo que ofereceu um importante espaço de exibição desses novos tipos sociais, criou

condições

assimilados

pela

para

que

sociedade,

estes

fossem

através

da

formação de um público que afluía aos espetáculos. Outro grande empresário reconhecido pelo nome que emprestava às Revistas foi Carlos Machado, o chamado “Rei da noite”. Esse indivíduo foi um mediador importante no período de transição entre o Teatro de Revista no estilo féerie e o período de surgimento das Imagem 07 – Ivaná (Revista Manchete, nº 75, 26

grandes boates no Rio de Janeiro. Carlos Set. 1953. Fonte: acervo pessoal de Rita Colaço). Machado foi entusiasta do estilo burlesque típico do Moulin Rouge, de Paris, que virou moda nessa cidade e passou a ser reproduzido no Brasil. Sua carreira de empresário nas boates se deu na proibição dos cassinos no Brasil, em 27

Agradeço a Rita Colaço pela disponibilização dessa revista, bem como da revista Manchete que possuía Ivaná na capa.

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1946, estabelecimentos onde costumava apresentar a sua orquestra. Logo, Machado seria convidado para ser diretor artístico da boate Night and day, na Cinelândia, local que marcou a noite carioca com a presença de personalidades de grande valor artístico, como Amália Rodrigues. Em 1948, ele criou a própria boate, a Monte Carlo. Em 1953, inaugurou, na Praia Vermelha, a boate Casablanca. Os shows organizados por Machado ganharam audiências mundiais, nas quais se fazia reconhecer o valor do cancioneiro popular brasileiro, como no espetáculo Brasil, apresentado no Radio City Music Hall, em Nova York. Suas boates ofereciam empregos às “novatas” que decidiam se aventurar na arte de “fazer travesti”. Além da herança musical deixada pelo teatro de Carlos Machado, outro traço característico deste revisteiro, como eram conhecidos esses empresários, eram as vedetes consideradas as mais belas mulheres da época. Segundo Marquesa, só chegavam a ser vedete de Machado aquelas mulheres que reuniam um conjunto de atributos quase que inalcançáveis pelas mulheres comuns, como medidas invejáveis de pernas, cintura, quadril e bumbum. Segundo esse empresário, para ser vedete a mulher teria que ser milimetricamente perfeita, dotada de uma quase extraordinária beleza, sem a qual não obteria êxito profissional. O revisteiro selecionava minuciosamente as moças, chamando para ser vedete somente aquelas dotadas desses atributos. As outras eram aproveitadas como girls, ou seja, serviam de figurantes, sendo dispostas nas bordas do espetáculo – uma espécie de moldura. Acredito que as vedetes do Teatro de Revista contribuíram para a construção de um imaginário acerca do “feminino glamouroso”, pois em nenhum outro espaço o glamour foi tão abertamente dramatizado quanto nesse mundo, e as figuras que o materializaram de forma mais bem-acabada foram certamente essas mulheres. Nenhum outro corpo e performance também foram tão representativos do savoir-faire do Teatro de Revista quanto o dessas moças que, sobretudo na fase féerie, foram retratadas com trajes sensuais e acessórios que acentuariam ainda mais as curvas dos seus corpos. Nomes como Virgínia Lane, Mara Rúbia, Íris Bruzzi, Brigitte Blair, Eva Todor, entre outras, alimentaram a imaginação de muitos homens que convergiam aos teatros da Praça Tiradentes para apreciar seus dotes sinuosos. A aparição dessas mulheres constituiu um momento importante na construção de um erotismo à brasileira, que algumas décadas depois ganhou sua versão mais bem acabada nos programas de auditório. A tese de Bispo (2013) sobre a trajetória de vida das chacretes da primeira geração dos programas do Chacrinha evidencia a relação de contiguidade entre essas mulheres e aquelas do Teatro de Revista. Essa relação refletiu-se na formulação dos projetos

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de vida das chacretes analisadas pelo autor28. Algumas delas chegaram a revelar que o seu “aprendizado da sensualidade” teria se dado justamente com as vedetes ainda quando jovens, como afirmou Ivone, ex-chacrete entrevistada por Bispo (2013), que atribui a Mara Rúbia sua desenvoltura corporal, uma vez que foi com esta vedete que aprendeu que: “Uma verdadeira mulher deve ser sensual até mesmo descendo escadas” (BISPO, 2013, p. 82). Mas essas mulheres não serviam apenas aos anseios de uma geração de homens que aprendiam a ser machos a partir do erotismo emanado de seus corpos e performances. Elas nutriam a imaginação de outro conjunto de homens, que viam em sua performance um “mundo de ideias” (BAKHTIN, 1993) para inventar sua própria existência. As vedetes constituíram muito mais do que um fenômeno erótico, elas marcaram a trajetória de vida de muitos indivíduos que, como as chacretes da primeira geração, circulavam em meio ao rebuliço da Praça Tiradentes e da Cinelândia, a exemplo de Divina Valéria, Marquesa e Rogéria. Marquesa disse que o seu primeiro contato com um “homem em travesti” para além do carnaval foi no Teatro de Revista. Ao ver Sophia Loren, “homem em travesti” assim nomeado em função de sua semelhança com a atriz italiana, Marquesa percebeu em si mesma uma espécie de atração para aquele universo no qual o glamour era um valor central e articulador. Considerando essas relações, é possível inferir que as vedetes possibilitaram a construção de um repertório de performances, técnicas corporais e imagens que foram cristalizadas na memória coletiva de toda uma geração de homens e mulheres. Elas consolidaram uma representação hiperfeminilizada de si, muito semelhante àquela observada por Bispo (2013) entre as chacretes que pesquisou. A noção de superfêmea é elaborada por este autor, à luz do conceito de performatividade de Butler (2003), para explicar a produção performática de um modelo de feminilidade convencional dramatizado ao exagero pelo uso dos corpos, dança e performance em cena – sempre motivando uma apresentação de si extremamente sensual e sexualmente disponível (BISPO, 2013). A noção de superfêmea adotada por Bispo (2013) está intimamente relacionada com o desenvolvimento dos veículos de comunicação de massa e a produção de imagens para um público cada vez mais interessado na vida dessas personagens. As vedetes do Teatro de Revista estamparam as capas dos principais veículos de comunicação da época, tais como a Revista do Rádio e O Cruzeiro, atraindo um público variado que ambicionava penetrar na intimidade dessas mulheres poderosas. 28

De acordo com Raphael Bispo (2013), as chacretes podem ser divididas em duas gerações: as da década de 1970 e de 1980.

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A repercussão midiática de personagens que encarnavam a superfêmea seria ainda mais estreita com a emergência de uma tecnologia que explodiria com toda a força nas décadas de 1940 e 1950: o rádio, trazendo com ele o aparecimento das cantoras do rádio, consagrados fenômenos da cultura de massa que marcaram a sociedade brasileira. As vedetes não possuíram o mesmo poder de atração exercido pelas cantoras do rádio sobre o seu público, mas já conseguimos observar nas formas como eram representadas pelos veículos da época a produção de uma feminilidade prestigiosa, para adotarmos expressão de Mauss (2003). Tal feminilidade foi explorada ainda mais pelas cantoras do rádio na construção de personas midiáticas, como fica evidente na rixa entre Emilinha e Marlene que ganhava as manchetes da Revista do Rádio (AVANCINI, 1996). Ambas encarnavam faces da superfêmea em suas aparições públicas que faziam com que a audiência se identificasse com uma ou outra. Acredito que a espetacularização da superfêmea através dos veículos de comunicação da época, também logo depois celebrada nos auditórios da Rádio Nacional (AVANCINI, 1996), foi fundamental para a produção de sensibilidades com as quais se identificariam as “bichas”. Tal performance, ao mesmo tempo que valorizava elementos que impunham sobre as mulheres estereótipos de gênero, revelava a artificialidade das convenções de gênero e evidenciava uma “performance de poder” – poder de sedução, de conquista, de domínio, de glamour. Foi essa “performance de poder” que atraiu a idolatria de tantos indivíduos que cobiçavam a existência para além dos dias de carnaval. Essa atração, mais do que isso, gerou solidariedade entre os mesmos, o que será analisado nos próximos capítulos desta tese. Paiva (1991) afirma que a decadência do Teatro de Revista no Brasil se explica por vários fatores, dentre os quais talvez o mais representativo tenha sido a massificação do nu feminino, o que implicou um recuo das “famílias de bem” ao teatro e o seu progressivo descarte. Acredito que esse momento final da era do Teatro de Revista foi essencial para a emergência de uma categoria de pessoas que, ainda que estivessem presentes desde a origem desse teatro, como fica evidente no elenco das montagens29, assumiriam a ribalta: as “travestis”. Foi no Teatro de Revista que aqueles jovens que aproveitavam a atmosfera lúdica do carnaval para celebrar solidariedades a partir da aproximação com outros que compartilhavam desejos sexuais semelhantes encontraram permissão para “serem eles 29

No livro Viva do rebolado, Salvyano Cavalcanti de Paiva (1991) traz informações valiosas sobre o elenco e equipe técnica de diferentes espetáculos de Revista ao longo de sua trajetória. Em muitas ocasiões, era possível observar os nomes de “travestis” que estavam presentes nos shows, sobretudo Ivaná, que aparece no elenco de várias revistas. Paulo Varelli também é apresentado como “um travesti” nas revistas. Infelizmente, o autor dá pouco destaque à presença dessas pessoas na sua história de Revista. Aparentemente, o aumento das “travestis” nas Revistas é identificado por ele como um sintoma da decadência desse gênero no Brasil.

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mesmos”, sem os riscos de perseguição ou demissões sumárias. Foi no Teatro de Revista que se experimentou a personagem etérea do carnaval na vida cotidiana. O Teatro de Revista se constituiu como uma possibilidade de agência na qual era possível remodelar projetos de vida de que as diversidades de gênero e sexualidade passaram a ser parte constitutiva. É possível acreditar que foi nesses teatros da Praça Tiradentes que muitos desses homens começaram a redesenhar suas trajetórias de vida, reunindo fragmentos de outras vidas em um processo de agenciamento. Esse mundo inventado pelas vedetes e performatizado pelas “travestis” que se profissionalizariam30 desestabilizava as convenções sociais relacionadas a gênero, uma vez que mostra como o feminino – ou o hiperfeminino – não corresponde a uma biologia específica, mas antes é o resultado da repetição contínua de “atos performativos” (BUTLER, 2003). Um exemplo significativo dessa artificialidade das convenções sociais referenciadas à produção do feminino é dado por Bispo (2003) a partir da análise da trajetória de algumas chacretes da década de 1970. Bispo (2013) revela que, em um dado momento, não são apenas as vedetes que oferecem inspiração para essas mulheres no processo de construção das suas performances de superfêmea, as “travestis” passaram a ser celebradas pelas chacretes como exemplos de feminilidade a ser seguida e copiada. Em sua tese, Bispo (2013) analisa o depoimento de Rita Cadillac em um documentário sobre a sua trajetória de vida, no qual fica evidente o quanto Rogéria foi fundamental para compor a sua performance de superfêmea. Essa tese me aguçou a curiosidade sobre tal depoimento. Ao assistir à película, pude constatar a vedete afirmando ser Rogéria o exemplo de feminilidade que adotou para desenvolver a sua performance, tanto nas aparições que fazia na televisão quanto em outros trabalhos, como em fotografias para revistas. Foi com Rogéria que Rita aprendeu a se comportar, a se maquiar, a usar roupas que realçavam a sua hiperfeminilidade, enfim, a ser uma “mulher fatal”. As “travestis” ressignificaram a noção de superfêmea. Foram essas personagens que começaram a originar sentidos não somente acerca das sexualidades não-normativas, mas também sobre a produção de sensibilidades femininas que contribuíram para a formação da cultura de massas. Não se está mais abordando aqueles “homens em travesti” que faziam da prática de se vestir do outro gênero uma rotina carnavalesca: nesse período começou a emergir um conjunto de indivíduos que, como “desbravadores”, ganhariam a cena pública, despertando para si não o horror dos jornais que demarcavam os “perigos” dos bailes carnavalescos com “homens em travesti”, mas a curiosidade dos que queriam conhecer o seu

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Falaremos sobre esse processo no Capítulo II.

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cotidiano, seus projetos e anseios – reconhecendo uma mudança operada nas convenções de gênero e sexualidade que estruturavam a sociedade brasileira, associados a uma “vontade de civilização”, evocada, principalmente, por uma elite que tornara a cidade seu teatro.

1.4 – Concursos de miss

Importantes estudos sobre a construção das sexualidades não-normativas no Brasil marcam a década de 1960 como um momento de eclosão de espaços dedicados à “sociabilidade bichal”31 nas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo (GREEN, 2000; TREVISAN, 2000; FACCHINI, 2005; FIGARI, 2007; FACCHINI e SIMÕES, 2009). Esses trabalhos caracterizam essa “movimentação”32 inicial como particularmente marcada pela clandestinidade, mas, também, pela intimidade dos encontros que se beneficiaram das redes de relações, sobretudo estabelecidas entre as “bichas”33, os quais consolidaram fortes laços de amizade. Na literatura especializada sobre a construção das sexualidades não-normativas no Brasil são abundantes os dados acerca da importância dos concursos de Miss na forma como as “bichas”34 das décadas de 1950 e 1960 construíram suas pautas de sociabilidade. Esses concursos ofereciam uma oportunidade única para essas “bichas” interagirem e negociarem pertencimentos identitários em um contexto de invisibilidade marcado pela experiência da clandestinidade. O interesse pelos concursos de Miss está intimamente ligado à consolidação

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Apesar de não ser uma categoria nativa, acredito que a noção de “sociabilidade bichal” é mais apropriada para se referir a esses espaços e grupos dos quais as “bichas” faziam parte. 32 A noção de “movimentação” está presente nas análises de Regina Facchini e Júlio Simões (2009) sobre o surgimento do movimento homossexual no Brasil. Segundo os autores, essa dinâmica de “homens homossexuais” em redes de amizades nas décadas de 1950 e 1960 foi fundamental para a constituição do movimento que surgiria na década de 1970. 33 São muitos os trabalhos sobre sociabilidade de “bichas”, se comparados à exiguidade de estudos sobre a sociabilidade de “mulheres lésbicas”. Os estudos que se dedicaram a estudar a história social dessa sociabilidade não deram atenção às formas encontradas pelas “mulheres lésbicas” para se encontrarem e se relacionarem afetivo-sexualmente. Acredito que a invisibilidade dessa sociabilidade se deu em função das contingências a que estavam submetidas essas mulheres: muitas não possuíam apartamentos próprios, não tinham uma vida financeira estável, etc., elementos que limitavam os seus acessos ao espaço público. A etnografia de MacRae (1990) sobre o grupo Somos oferece valiosas informações sobre as “mulheres lésbicas” participantes desse movimento. Os trabalhos de Andrea Lacombe (2010) e de Nádia Meinerz (2011) apresentam-se também como importantes referências em meio a essa escassez de estudos. 34 Divina Valéria, Marquesa e Anuar adotam a categoria “bicha” para falar desses jovens identificados como “homossexuais” que frequentavam os bastidores do Rádio e os Concursos de Miss. Adoto a noção de “bicha” a partir de agora como categoria nativa que emerge dos discursos desses interlocutores.

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da sociabilidade “bichal” no país. Esse interesse, assim como o carnaval, possibilitou a ocupação de espaços e a materialização de sexualidades não normativas. A escolha da Miss Brasil, o famoso concurso realizado no Maracanãzinho, estádio do Rio de Janeiro, que tinha por objetivo selecionar a mulher mais bela do Brasil, foi o primeiro espaço público apropriado pelas “bichas” para além do período de carnaval. Tal apropriação permitia a esses homens, em um espaço público compartilhado inclusive por “pessoas de família”, vivenciar algumas liberdades, como, por exemplo, dar “pinta”35 e “fechar”36, sem se preocuparem com o rígido controle moral a que eram submetidos em outros locais. Anuar esteve nos concursos de Miss Brasil realizados no Maracanãzinho. Ele já morava no Rio de Janeiro quando o certame acontecia, com toda a opulência daquele período. De acordo com o seu relato, os concursos eram momentos únicos na vida de uma “bicha”. Eram, portanto, aguardados com grandes expectativas por essas pessoas. Neles, podia-se usar toda a criatividade e artifícios para dar vazão a uma vida controlada por moralidades bem rígidas. Conforme o depoimento de Anuar para a minha dissertação de mestrado, defendida em 2012: O chique, o maravilhoso, era você sentar-se na arquibancada, no último lance da arquibancada... No último lance, as “deslumbradas”, aquelas “bichas”... aquelas louquinhas, elas desfilavam lá em cima, e cá embaixo nós todas lindas, maravilhosas, modelos lindas. Cada uma fazia a sua roupa para ir no coisa, tinha gente lá... de estola de pele, mil coisas (SOLIVA, 2012, 35).

Essa experiência também aparece na trajetória de Divina Valéria, que desde muito jovem ocupou a região da Cinelândia com outras “bichas” da mesma idade. Essas mesmas pessoas tomavam as arquibancadas do Maracanãzinho e, em um espetáculo à parte daquele que ocorria no palco, promoviam um concurso paralelo onde eram os principais protagonistas. No intervalo, a gente ficava na arquibancada do Maracanãzinho, e no intervalo tinha sempre um intervalo assim: para contar os pontos, não sei o que, para depois vir as finalistas. Nesse intervalo, nós, eu e minhas amigas, que era um grupo mais ou menos grande, nós fazíamos, em cima na arquibancada, o desfile. E o Maracanãzinho vinha abaixo! Nós desfilando. Cada um íamos... era frio, era junho sempre, com pulôver, gola rulê enorme, cada um, e nós desfilávamos. Dávamos mais show do que elas lá em baixo. E elas mesmo, não elas, por que elas tudo pelo camarim, mas todo mundo que estava passando, os convidados, o júri, tudo lá embaixo, assim, ficavam tudo olhando e aplaudia (Divina Valéria).

Anuar Farah e Divina Valéria fazem parte dessa primeira geração de “bichas” que viam nesses eventos uma oportunidade de espetacularizar a “bichice”, rompendo

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Exibir de forma exagerada a “homossexualidade”. Segundo Costa (2002), a “fechação” seria uma forma abrasileirada da estética e linguagem camp. Discuto de forma mais detida o camp a seguir.

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momentaneamente com o silêncio da experiência de vivenciar uma sexualidade não normativa. De forma concomitante a essa espetacularização, com os concursos se promovia uma oportunidade de “estar junto”, no sentido proposto por Simmel (1983) acerca da condição plena da sociabilidade, não somente no evento, mas nos dias que o antecediam. Com essa aproximação espacial motivada pela sintonia de interesses, acredito que esses indivíduos tinham a oportunidade de perceber que possuíam muito mais coisas em comum do que somente torcer pelas misses na fila indiana. Valéria conta como os concursos de miss agregavam, na porta do Hotel Serrador, na Cinelândia, centro do Rio, um contingente expressivo de “bichas” (expressão adotada por ela), que formavam filas para ver de perto as candidatas. A gente ia ao Maracanãzinho! Antes nós escolhíamos a nossa favorita, miss, que agente quisesse torcer. A gente escolhia olhando elas pessoalmente todo o dia quando elas viam de ensaiar ou de algum jantar, por que todas ficavam na Cinelândia, no Hotel Serrador, elas ficavam ali, todas as misses, anos após anos. Aí a gente já sabia qual era a hora que elas chegavam mais ou menos, aí a gente ficava tudo ali. Aí fazia aquela fila indiana na porta do hotel, elas iam soltando do ônibus e passando na fila indiana entrando no hotel e o pessoal aplaudia. Ih a do Rio Grande do Sul é a mais bonita! Ah não, gostei mais a da Paraíba! E olha aquela...E isso era durante uns dez dias que elas estavam ensaiando, elas estavam todas reunidas ali (Divina Valéria).

Acredito que essa convivência prolongada instigou reconhecer gostos semelhantes capazes de estruturar redes de amizades que não se esgotavam no evento. Os concursos de miss não eram somente frequentados pelas “bichas”: eles marcaram todo um período da história brasileira mais recente, sendo um dos mais destacados eventos do ano, recebendo ampla cobertura das mídias da época. Entretanto, para as “bichas”, se constituíam como um calendário pleno de sentidos, através do qual se podia celebrar publicamente a “bichice”, serem “elas mesmas”, sem que com isso fossem rejeitadas. Foi um período de suspensão provisória das convenções sociais que beneficiou esses jovens e, ainda, um momento de dar vazão, através do gozo e do lúdico, à imaginação Acredito que os concursos contribuíram significativamente para a consolidação de uma sociabilidade entre esses jovens que possuíam interesses semelhantes. Essa sociabilidade ganhou forma nas “turmas de bichas e bofes”, grupos que se reuniam em festinhas íntimas realizadas em apartamentos na década de 1950. As “turmas de bichas e bofes” foram fundamentais para a construção de um “espírito de coletividade”, agregando homens identificados como “bichas” que se reconheciam não somente pelas preferências sexuais, mas também pelos gostos em comum. Emergiram dessas interações diferentes identidades que produziram sentidos sobre as sexualidades não normativas.

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A existência desses espaços possibilitou a esses homens não somente o deleite com a liberdade confinada, mas também “colher vestígios” para depois reproduzir esse espetáculo nos apartamentos em que eram oferecidas as festas entre amigos. Os famosos concursos de miss foram elementos centrais na forma como organizavam a sua sociabilidade e forjavam uma identidade grupal. Quando a Turma OK, a única “turma de bichas” da década de 1960 que se mantém até hoje, se instalou em um casarão na Lapa, na década de 1980, esses concursos começaram a ter projeção ainda maior. Quando entrevistei Anuar Farah, antigo presidente da associação, para a minha dissertação, ele disse que os concursos de miss ocuparam grande parte de sua energia como presidente. O mais importante desses concursos era a escolha da Miss OK, para a qual Anuar teria tentado, inclusive, alugar o próprio Maracanãzinho, sem obter sucesso. Na intimidade dos apartamentos ocorria uma movimentada vida social que conferia contornos a essa sociabilidade. Lá se organizavam encontros, festinhas de amigos, rodas de conversa e os esperados concursos de Miss, que exigiam muita organização e eram aguardados com expectativa pelos envolvidos nessas redes. Vestir-se de outro sexo era prática lúdica que se constituía como um elemento central na composição desses encontros. Em minha pesquisa de mestrado sobre a Turma OK, alguns homens que participaram da primeira formação desse grupo disseram que os concursos de miss eram os momentos mais importantes dos encontros nos apartamentos. Em um contexto de ditadura militar, que impedia que muitas pessoas se encontrassem em um mesmo espaço, era prática comum aplaudir as candidatas (as “bichas”) com o estalar de dedos (FIGARI, 2007; SOLIVA, 2012), para assim evitar o alarde de vizinhos que poderiam recorrer à polícia. Os concursos de miss foram eventos que singularizaram trajetórias individuais e, simultaneamente, impulsionaram a produção de identidades grupais pelo convívio entre homens que se agregavam em função do certame. Lá ganhavam reconhecimento os símbolos de distinção – elegância, beleza e luxo – pela plateia e jurados. Esse conjunto de valores sociais deveria estar evidente não somente nas roupas luxuosas, mas também na hexis corporal das concorrentes. Ou seja, deveria estar inscrito em seus corpos, produzindo um tipo de corporalidade específica, capaz de materializar o glamour, tão importante nesse universo. Essa corporalidade foi ressignificada por esses homens nos encontros de amigos, na praia de Copacabana e na ocupação de outros espaços da cidade, como a Cinelândia e a Praça Tiradentes.

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1.5 – Nos bastidores da Rádio Nacional

Os concursos de miss e o carnaval foram importantes espaços ocupados pelas “bichas” em um momento marcado pela clandestinidade. Porém, aqueles não foram somente os objetos de interesse dessa sociabilidade que começava a se complexificar. Os fã-clubes das cantoras do rádio, ainda na década de 1950, já conectavam esses homens em torno da idolatria a figuras femininas, as grandes divas do rádio. Lembrados por Green (2000) e Figari (2007) em seus estudos sobre a construção de sexualidades não normativas no Brasil, esses fã-clubes mobilizavam milhares de jovens “bichas” em todo o Brasil, em um contexto de expansão dos meios de comunicação de massa. Green (2000) afirma que: O hábito de comparecer às representações na estação de rádio ou aos eventos organizados pelo fã-clube colocava os homossexuais em contato próximo com outros que compartilhavam as mesmas paixões e interesses. Amizades eram estabelecidas, e aqueles que desconheciam a topografia homossexual do Rio de Janeiro ou de São Paulo eram iniciados numa subcultura por meio desses contatos (GREEN, 2000, p. 272).

Nos bastidores dessas rádios, seguindo ícones como Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira, entre outras, estavam aquelas que se tornariam mais tarde personalidades importantes para uma geração de “bichas”, como Divina Valéria e Marquesa. Divina Valéria disse que começou a frequentar o mundo artístico ainda muito cedo, sendo essa inserção fundamental na sua vida. Eu devia ter o quê?... 13, 14 anos, no máximo. Eu já frequentava a rádio, né? Porque naquela época não tinha televisão. Eu frequentava a rádio, ia ver os meus grandes ídolos, que depois passei a ser amiga de todas elas, de todos os ídolos. Era Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Elizete Cardoso, eram os grandes ícones da época, e Marlene. Então, eu frequentava muito a rádio e fazia no meu bairro, tinha um clube em frente a minha casa, onde eu mesma organizava, com as menininhas da rua shows onde nós nos apresentávamos domingo à tarde – e eu sempre era a pessoa mais desembaraçada para se apresentar, para se organizar e já cantava, sempre cantava (Divina Valéria, em entrevista concedida ao programa Perfil & Opinião, 12 ago. 2012).

Pode-se perceber, na sua fala, que a inserção nos bastidores da Rádio permitiu que esses indivíduos construíssem um mundo alternativo àquele em que estavam estabelecidos. Esse “mundo de sonhos” não era apenas compartilhado por pessoas como ela, mas também por muitas mulheres que afluíam aos auditórios para recreação. Divina Valéria afirma que se descobriu artista e também “travesti profissional” através dessa aproximação com o universo material e simbólico das rádios e o acesso às celebridades. Tendo uma experiência familiar hostil – sua mãe ficara viúva com dois filhos, ainda quando grávida dela, e casara-se

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novamente com um homem com quem teve mais dois filhos, o qual lhe infligiu maus-tratos, obrigando-a a trabalhar desde muito cedo apesar de seu pai ter deixado a família em uma boa situação financeira –, Divina Valéria encontrou no glamour dos auditórios das rádios a matéria-prima para se isolar desse universo doméstico. Através de brincadeiras nas quais encenava a dinâmica de programas de auditório e concursos de miss com as amigas do bairro forjou não somente uma carreira, mas também contribuiu para a construção de um “lugar social” para si. Ainda morando com os pais no bairro de Piedade, subúrbio do Rio de Janeiro, Divina Valéria começou a se dedicar ainda mais aos bastidores do rádio. Segundo ela, seus irmãos foram saindo aos poucos de casa, em função da pouca sensibilidade do padrasto. Quando tinha entre 17 e 18 anos, este descobriu o seu “segredo”, expulsando-a de casa e impedindo-a de voltar. Diante desse episódio, Divina Valéria foi viver sozinha, quando uma amiga, Fabete, que se tornou logo depois “travesti profissional” e trabalhava na TV Rio, a levou para morar consigo no bairro de Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Lá, Divina Valéria conseguiu emprego como boy em uma empresa de engenharia, a Cosmo Engenharia, mas continuou frequentando a Rádio Nacional e, logo depois, a TV Rio. Da mesma forma que na trajetória de Divina Valéria, o auditório da Rádio Nacional foi um espaço de suspensão da vida ordinária para Susy Parker. Nascida no bairro de Vila Isabel, Zona Norte carioca, Susy Parker é a filha única de uma família de classe média. Desde muito cedo, ela disse que percebeu que não tinha aptidão para a carreira escolar. Sempre “matava” aulas para circular pelos cinemas da região da Cinelândia à procura de diversão com rapazes. As ondas radiofônicas foram sua primeira aproximação com o mundo do entretenimento. As cantoras Emilinha e Marlene despertavam-lhe uma atração desmedida. Descobriu, então, que o endereço da Rádio Nacional era a Praça Mauá. A partir daí suas rotinas de cabular aulas somente aumentariam, gerando a fúria da mãe, que chegou mesmo a conseguir uma agenda com Emilinha, através de uma amiga importante, para fazer com que a cantora censurasse as desventuras do filho no horário escolar. A bronca de Emilinha adiantou pouca coisa, admitiu Susy Parker. O auditório da Nacional forneceu as repostas para as suas inquietações pessoais. Era aquela vida que queria para si, logo, tratou de investir em uma carreira. As trajetórias de Divina Valéria e Susy Parker revelam que a aproximação dessas pessoas com as cantoras da antiga Rádio Nacional era muito mais íntima do que se supõe. Divina Valéria chegou a secretariar Emilinha Borba, não como uma funcionária formalmente

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registrada, mas como uma amiga responsável até mesmo pela organização de sua vida nos bastidores, como pode ser observado no relato a seguir: Foi secretariando com a amizade, adoração, que eu a acompanhava em tudo que era lugar. Então eu que ficava com ela. Acabava na Rádio Nacional, ela com o Paulo Gracindo, que era aos domingos de tarde. Aí ela fazia com o Paulo Gracindo, terminava às 15 horas e aí tinha que vir para a TV Rio que às 18, 19 horas tinha ODD Show, que ela era estrela também. E aí eu saia da Rádio Nacional, vinha para a televisão com as partituras dela, entregava para os músicos para eles irem ensaiando para quando ela chegar já estava adiantado, porque ela ia aqui para a Rodolfo Dantas [rua de Copacabana], onde tinha um grande cabeleireiro que era o Augusto Silva, que abria o salão exclusivamente para pentear ela para ela ir para a televisão (Divina Valéria).

A inserção dessas pessoas nos bastidores da Rádio Nacional foi profundamente marcada por essa aproximação afetiva com as cantoras, que se transformaram em amigas pessoais e confidentes. Divina Valéria contou que nesse período essas cantoras exerciam grande fascínio sobre ela e em outras pessoas que circulavam nos bastidores da Rádio, posto que tinham a capacidade de corporificar aquela voz apreciada através do aparelho de radiofusão. Como ela relata, nos dias de hoje é muito fácil ter acesso aos artistas. Naquela época, afirma, era uma coisa mais distante. Acredito que Divina Valéria esteja se referindo mais à imagem dos artistas do que à sua presença física. A televisão – ou seja, a imagem em movimento – ainda não tinha uma presença destacada nos lares brasileiros. O rádio permitia uma intimidade distante, e com a televisão essa intimidade tornou-se mais próxima. Nesse contexto, somente a ida aos auditórios da Rádio proporcionava essa aproximação. O impacto dos bastidores do rádio na trajetória de Divina Valéria não é um fenômeno isolado. De acordo com estudos sobre a força do rádio no cotidiano dos brasileiros (CALABRE, 2002; AVANCINI, 2006), essa nova tecnologia foi responsável por constituir um poder de mobilização muito maior que qualquer outro já conhecido até então. O rádio propiciou um circuito cultural dotado de práticas, tipos de sociabilidade e estéticas próprias cuja centralidade foi ocupada por suas estrelas, cantoras femininas que começam a emergir com força total entre os fins da década de 1940 e meados da de 1950 (CALABRE, 2002; AVANCINI, 2006). Dessa realidade, os fã-clubes e os programas de auditório surgiram como fenômenos do mercado de bens culturais, que têm na Capital Federal, o Rio de Janeiro, seu centro irradiador. Os fã-clubes e a sociabilidade que instituíam merecem uma atenção especial. De acordo com Avancini (2006), as moças e as senhoras eram as principais agenciadoras desse universo, mas a autora não esquece a presença de “alguns rapazes” nas fileiras da Rádio. De acordo com as publicações especializadas sobre o rádio do período, material adotado por

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Avancini (2006), essas pessoas que frequentavam a Rádio Nacional derivavam dos estratos sociais menos abastados da população, mas a emergência dos fã-clubes não pode ser analisada sem compreender a sua articulação aos programas de auditório e à produção de uma noção de uma radiofonia popular. Foi por meio dos auditórios que esses indivíduos que amavam as cantoras começaram a forjar uma sociabilidade específica, que ia além daqueles espaços. No caso dos rapazes, essa sociabilidade gerou ainda outros sentidos e possibilidades de agenciamento. Os programas de auditório passaram a fazer parte das transmissões radiofônicas entre fins dos anos 1930 e início dos anos 194037 (AVANCINI, 2006). Sua inclusão na grade das rádios segue uma transformação mais ampla na programação radiofônica, que passou a perseguir uma dimensão mais lúdica em suas irradiações. Dentro dessa perspectiva ganharam espaço, além dos programas de auditório, os programas humorísticos, as radionovelas e os programas de calouros. Esse último gênero, cuja lógica se aproxima dos programas de auditório, foi o responsável pelo imediato sucesso das rádios no cenário brasileiro. Um dos pioneiros desse gênero foi o programa Calouros em desfile, conduzido por Ary Barroso na Tupi, em fins da década de 1930. O sucesso desse programa fez com que as outras rádios colocassem em suas grades de programação os concursos como itens obrigatórios (AVANCINI, 2006). Esse gênero conseguia promover a participação imediata do público na dinâmica do programa, enquanto nos programas de auditório o público tinha somente uma participação passiva. O conjunto dessas inovações imprimidas pelo rádio vai ser transportado para a televisão alguns anos mais tarde. Nessa nova tecnologia, os programas de auditório e de calouros encontrarão seu apogeu, consolidando representações estereotipadas sobre as sexualidades não normativas. Essas representações foram tão bem-sucedidas quanto perigosas, uma vez que causavam atração em um público cada vez mais usuário da televisão como mecanismo de entretenimento38. Nos auditórios das rádios, os fã-clubes protagonizavam manifestações apaixonadas direcionadas às estrelas do rádio. Todavia, o que interessa depreender desses fã-clubes é o seu poder de agregação. Tendo a vontade de “estar junto” de sua estrela como propósito comum, sugiro que eles acabaram por descobrir que possuíam outras “famílias de interesses”, e 37

A tecnologia do rádio foi oficialmente introduzida no Brasil em 07 de setembro de 1922, com a irradiação do discurso do presidente Epitácio Pessoa como parte da abertura da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, realizada durante as comemorações pelo centenário da Independência. Em sua gênese, o rádio perseguia uma perspectiva educativa, sobretudo pela agência de Roquete Pinto e Henrique Moritze, fundadores da primeira emissora brasileira, a Rádio Sociedade, em 1923. Somente entre finais da década de 1940 e início da década de 1950 essa perspectiva ganhou outros contornos, principalmente pela necessidade de conseguir anunciantes. 38 No Capítulo III analisarei de forma mais detida essas questões.

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também experiências de exclusão e violência familiar muito semelhantes, como Divina Valéria percebeu. Susy Parker também reconhece que nos auditórios das rádios se tornou possível fazer amizades que iam além daquele espaço. Esta vontade de estar junto à estrela se transmutou em uma vontade de estar junto com outros iguais, sendo a cantora um mediador nesse processo. O gosto desses rapazes por esse universo lúdico das cantoras do rádio, e também das misses, criava um espaço de comunicação simbólica entre eles que começava a dar sentido a trajetórias e “modos de ser” não convencionais à norma sexual hegemônica. Este capítulo se dedicou a analisar a produção de uma percepção pública sobre as sexualidades não normativas a partir de diferentes contextos relacionados à emergência de uma cultura do “refinamento do prazer” no Brasil. Foi sugerido que tal processo estimulou a espetacularização da efeminação associada às sexualidades não normativas, que é convertida em “espetáculo de consumo”. O argumento principal desta seção é que esses espaços ofereceram condições para provocar a visibilidade de “formas de ser” relacionadas às sexualidades não normativas. A fotografia e os filmes de viagens produzidos sobre o Brasil, principalmente sobre o carnaval, foram “tecnologias do olho” que colaboraram para esse processo. Foi através dos registros produzidos por essas tecnologias que o espetáculo da transgressão de gênero ganhou o resto do país e do mundo, encorajando homens com vontades semelhantes a caírem na folia trajando roupas não conformes em relação ao sexo de nascimento. Esses homens ocuparam as ruas e bailes de carnaval, ressignificando a sua forma de se ver no mundo e experimentando um reconhecimento que não era possível em dias comuns. Simultaneamente, outro evento carnavalesco, os concursos de fantasia, ajudava a construir uma imagem do carnaval consumida mundialmente, na qual homens considerados efeminados, como Clóvis Bornay, eram figuras emblemáticas da festa. De forma contígua ao carnaval, o Teatro de Revista, os concursos de miss e a radiofonia proporcionam uma solução de continuidade a essas “formas de ser”, que passaram a ter nas vedetes, misses e cantoras do rádio exemplos pedagógicos de vida, convertidos em projetos nas suas trajetórias individuais. É através desses espaços que o glamour se constitui como uma tecnologia do “refinamento do prazer” (DUARTE, 1999), operada a partir de uma equação que marca a experiência moderna: a associação entre tecnologias e a cultura. A combinação entre cultura e desenvolvimento tecnológico (INGLIS, 2012) – decorrente do advento do rádio, do cinema, da televisão e do mercado editorial – ofereceu outros modelos de regulação da vida social, capazes de produzir discursos e novas subjetividades relacionadas às dimensões consideradas mais íntimas, tais como a sexualidade. Para o historiador Inglis (2012), analisando esse

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processo na Europa, o nexo entre cultura e tecnologia foi constitutivo de um fenômeno sem o qual não seria possível entender a modernidade: o aparecimento da noção de “celebridade”. Entretanto, o surgimento da “celebridade” não é um fenômeno isolado de outros processos de distinção que operaram mudanças nos grandes centros urbanos europeus do primeiro pós-guerra. Segundo Inglis (2012), diferentes fatores correlacionados facultaram a emergência da “celebridade”. São eles: a espetacularização do lazer, o surgimento da indústria da moda e a instituição das colunas de fofocas nos veículos de comunicação (INGLIS, 2012). Novas convenções sociais foram instituídas a partir desses processos que, articulados, promoveram o glamour com um valor. A iconografia do glamour, ou seja, a produção de imagens de uma vida de sonhos, é um processo constitutivo da moderna sociedade capitalista, cosmopolita e urbana. Foi em busca dessa iconografia que uma dada elite se consolidou, a partir do consumo e acesso a determinados bens, mas, sobretudo, das imagens que esse consumo poderia gerar para outras pessoas – distinguindo-a como uma classe exclusiva de indivíduos. A consolidação de uma cultura do “refinamento do prazer” (DUARTE, 1999), associada à promessa da chegada de uma modernidade no Brasil, expandiu possibilidades de existência não convencionais à norma sexual hegemônica. Foram nesses territórios que as “bichas” encontraram espaços de resistência, exercício de criatividade e agência ativa, uma vez que era ali que podiam ser “elas mesmas” sem as ansiedades de ter seus “segredos” ou sua “vida dupla” revelados. Contudo, ao mesmo tempo que se realizavam para fora das convenções, esses indivíduos iam construindo trajetórias nas quais vida e arte se combinavam, muito semelhantemente ao que ocorria com os bufões analisados por Bakhtin (1993) nas origens da cultura popular. A imagem do bufão será uma importante metáfora na construção de representações sobre as sexualidades não normativas, sobretudo quando esses indivíduos abandonam o “mundo das ideias” para habitarem a realidade da vida cotidiana. Será através desse “mundo de ideias” que novas “formas de vida” relacionadas às sexualidades não normativas serão instituídas, incluindo as chamadas “travestis profissionais”, cujo processo será analisado no próximo capítulo.

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CAPÍTULO II

Internacionais e glamourosas: a invenção da “travesti profissional” como “espetáculo de consumo” Esta é a Praça Onze tão querida Do carnaval a própria vida Tudo é sempre carnaval Vamos ver desta Praça a poesia E sempre em tom de alegria Fazê-la internacional A Praça existe alegre ou triste Em nossa imaginação A Praça é nossa e como é nossa No Rio quatrocentão Este é o meu Rio boa praça Simbolizando nesta Praça Tantas praças que ele tem Vamos da Zona Norte à Zona Sul Deixar a vida toda azul Mostrar da vida o que faz bem Praça Onze, Praça Onze. João Roberto Kelly39 No capítulo anterior focalizou-se a importância de diferentes contextos relacionados à emergência de uma indústria de consumo do “espetacular” e do “moderno” para a construção de sentidos sobre as sexualidades não normativas no Brasil. Esses contextos combinados ofereceram condições para a irrupção de “novas formas de vida”, como no caso dos “homens em travesti”. Afetadas por esses processos, duas dinâmicas serão aqui examinadas. Uma delas é o processo de construção da noção de “travesti profissional” conectado ao surgimento de um interesse cada vez maior do público brasileiro e internacional para os “shows de travestis”. São aqui analisados os espetáculos – International Set e Les Girls –, pioneiros nesse gênero, e os seus impactos nas trajetórias de vida de uma geração de pessoas que hoje se identificam como “travestis”. O segundo item a ser analisado são as circulações internacionais dessas “travestis”, eventos significativos para a noção de “travesti profissional”. Esse mercado de entretenimento

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Canção Rancho da Praça Onze, interpretada por Divina Valéria no espetáculo Les Girls, cuja parte musical foi produzida por João Roberto Kelly.

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envolvendo as “travestis profissionais” consolidou redes de interlocução entre indivíduos que começam a perceber a prática de “fazer travesti” como central em suas trajetórias de vida e construção de carreiras. Neste contexto, o Brasil constitui um ponto central nessa rede de deslocamentos e derives, que incluem países sul-americanos, africanos e europeus. As “travestis” são convertidas em produtos genuinamente nacionais, exportadas para outros países e motivo de orgulho, disseminado pelas mídias da época. Essas dinâmicas marcam o surgimento de uma reflexividade sobre a prática de “fazer travesti”, assentada na indistinta relação entre “ser travesti” e “ser bicha”.

2.1 – Sobre o talento de ser fabulosa40: os “shows de travestis” e a invenção da “travesti profissional”

Os eventos carnavalescos, o Teatro de Revista, os concursos de miss e os bastidores do rádio ofereceram muito mais do que recreação aos “poucos rapazes” que acompanhavam essas estrelas radiofônicas, vedetes e misses. Pela mediação desses espaços, jovens com experiências de vida semelhantes se agregaram e se reconheceram como amigos. Acompanhar a carreira de misses e estrelas do rádio consolidou uma experiência coletiva entre esses rapazes que, até então, possuíam trajetórias atomizadas – marcadas quase sempre por histórias de conflito com a família de origem em razão de sua aparente “desajuste” às convenções de gênero e sexualidade. Foi assim que Rogéria, Divina Valéria, Marquesa, Jane Di Castro e outras dessa geração iniciaram suas carreiras. A narrativa de Rogéria acerca de sua trajetória realça essa estreita relação com o backstage artístico e a importância que teve para a sua carreira. Ainda muito jovem, tendo que trabalhar como maquiadora da extinta TV Rio41 para ajudar em casa, Rogéria teve contato com muitas artistas conhecidas, como Fernanda Montenegro que, segundo ela, foi uma das principais estimuladoras da sua entrada no mundo artístico. Ela diz42: “Eu não era apenas um gay maquiador, era um artista que cantava. Fernanda me dizia que era preciso talento e vocação. E eu, preocupada: ‘Mas vestida de homem?’. E ela: ‘Pode ser como você quiser’”. A afinidade com a imagem de atrizes renomadas se constitui como um “mito de origem” da

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Expressão de Marcia Ochoa (2008). Emissora de televisão que existiu entre 1955 e 1977. 42 Entrevista concedida ao repórter Valmir Moratelli (Portal IG), em 23 de outubro de 2012. 41

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própria Rogéria como atriz. A invenção de seu nome artístico foi o reflexo dessa aproximação, já que a atriz Zélia Hoffman teria julgado mais fácil chamar aquele jovem maquiador de Rogério, ao invés de Astolfo. A feminilização do nome veio com sua participação no concurso de fantasias do Teatro República, em 1964. Assim como Madame Satã no passado, foi sob o reinado de Momo que Rogéria foi batizada. Estava completa a história de sua entrada na vida artística. Logo, ela abandonaria a profissão de maquiadora para participar de peças de teatro e, mais tarde, programas de televisão. Com essa frequência assídua aos bastidores desses espaços, incluindo as perambulações pela Praça Tiradentes e Cinelândia, surgiu a ideia de construir um show exclusivamente com “travestis”, em 1964. Marquesa, uma das “travestis” que participaram dessa primeira tentativa de montagem de espetáculos, conta como foi realizado, em uma boate da Galeria Alaska, reduto boêmio da Zona Sul do Rio de Janeiro, o primeiro “show de travesti”: International Set. O Stop, na Galeria Alaska, era uma boate que o dono estava falindo. Ele tinha 15 dias para pagar uma dívida séria ao governo se não ele ia à falência. Aí ele pensou e disse assim: a única solução... Ele resolveu montar um show de travesti. Aí foi aí que reunimos Rogéria, eu, Brigitte de Búzios, Biju Blanche, Gigi Sancir, Jerry di Marco e Manon. Éramos sete, e montamos um show chamado International Set. Coisinha rapidinha, o que você faz, o que você faz... e final. Em uma semana, esse homem tinha pago todas as dívidas e estava entrando em lucro. A fila na Avenida Atlântica, saia da Galeria Alaska e foi parar na Avenida Atlântica, entrava na Souza Lima e seguia. Era madame fulana de tal, fulano de tal, não sei o que, tudo esperando para ver. O homem ficou louco, quando ele viu (...) quando eles começaram a entrar dinheiro e tudo, aí o homem ficou louco. O que ele fez: primeiro, neste ponto tem que se dizer que ele foi extraordinário, ele duplicou o nosso salário, que nós estávamos ganhando na época o salário que Dercy Gonçalves ganhava na Excelsior, era o mesmo. E as segundas-feiras, que era a nossa folga, ele fazia a gente trabalhar e ganhávamos em dobro. Aí passou um ano, o show durou um ano, um sucesso, um sucesso, um sucesso! Aí ele resolveu fazer um outro show, foi quando ele montou Les Girls. Aí Les Girls era um show com... Por que foi assim, Silveira Guimarães, o Luiz Haroldo e o João Roberto Kelly trabalhavam na extinta TV Rio, aqui no posto 6, no antigo Cassino, e eles faziam um show musicado, naquela época tinha Times Square, não sei o que... Eram shows musicados, com as vedetes do Carlos Machado, com atrizes como Norma Bengell, estrelas: Elizabeth Casper. Era um escândalo, o show! E a Rogéria era maquiador da TV Rio, e um dia ela disse: ai vocês não gostariam de fazer um show para travesti... Aí a Rogéria virase e convida eles para nos assistir. Eles ficaram loucos, loucos com a gente. Eles nunca imaginaram que tinha talento, que existia talento. E nós botávamos aquele público de pé. Então, ele ficou tão entusiasmado que topou a ideia e montamos Les Girls (Marquesa).

O show International Set afetou profundamente a trajetória de vida de uma geração de indivíduos que passaram a vivenciar o “fazer travesti” como parte integrante de suas vidas, não mais como prática lúdica associada ao carnaval, conforme evidenciado no capítulo anterior. Essa transição não foi apenas vivenciada do ponto de vista artístico-profissional: ela implicou o surgimento de uma identidade coletiva entre essas pessoas, que começaram a

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produzir uma reflexividade acerca do lugar ocupado pela prática de “fazer travesti” nas suas trajetórias. Esses shows constituíram um “divisor de águas” nas vidas desses indivíduos, que passariam gradativamente a não mais “fazer travesti”, mas “ser travesti”. O “ser travesti” tornou-se um elemento central na forma como interagiam com a sociedade e consigo mesmos. Constituía-se uma identidade. Jane Di Castro chamou atenção para essa mudança: “Ah, as pessoas só viam homens vestidos de mulher nos grandes bailes de carnaval. Na rua não via, daí nosso grande sucesso. O público vinha nos ver mais pela curiosidade do que pela arte. Eu, Rogéria e Veruska fomos as primeiras a fazer esse tipo de espetáculo no Brasil”. A curiosidade do público, segundo Jane, foi um sentimento valioso neste processo. Ao elenco original de International Set juntaram-se outros sujeitos com trajetórias semelhantes, como Divina Valéria: Aí aconteceu que eu sempre frequentando a TV Rio, o meio artístico, os bastidores e tudo mais...Surgiu a ideia de grandes produtores da época montarem Les Girls, que foi um espetáculo de grande sucesso onde eu fui trabalhar, que ai que eu comecei a fazer travesti profissionalmente. Que até então, eu só fazia nos carnavais, em festas... Então aí que eu comecei a fazer em Les Girls profissionalmente, que foi um espetáculo profissional belíssimo onde estava eu, Rogéria, Marquesa, Brigitte de Búzios, Carlos Gill, Jerry Di Marco, Carmem, Jean Jacques, éramos onze. E aí, eu fiquei como boy de dia e girl de noite, porque eu continuei na companhia de engenharia também trabalhando como boy, e à noite fazendo o espetáculo. Só que saiu uma reportagem muito grande na Manchete com todas nós, de mulheres e de homem também e eu não apareci mais na companhia de engenharia nem para dar baixa na carteira, porque fiquei envergonhada que todo mundo ia descobrir que eu estava fazendo travesti (Divina Valéria).

A estreia de Les Girls foi um sucesso nacional, mesmo em um contexto de ditadura, no qual a indústria de entretenimento brasileira passou a ser objeto de censura e controle. Já na abertura do espetáculo, o elenco vestia négligée e espartilho, em uma alusão direta aos shows do Teatro de Revista no estilo burlesco. Tratava-se de uma comédia musical no melhor estilo, que misturava a estética da Broadway com o Teatro de Revista brasileiro. Eram onze “travestis” que acorriam a um médico para resolver seus “problemas de cabeça”. Cada uma delas era responsável por um esquete. Cabia ao doutor solucionar o “problema” das moças. Ao fim do show, a famosa canção, que tanto marcou a vida de toda essa geração, era entoada em coro. Les girls, oh Les Girls Oooh Les Girls Les Girls é ter charme, touché! Ser podre de bem todo o dia Les Girls é esnobar, é beber É ter sexy, sexy mania Sou Les Girls, sou Les Girls, sou Les Girls...

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O show não foi apenas sucesso no Rio de Janeiro. Marquesa contou que a boate Oásis, uma das casas noturnas mais elegantes de São Paulo, decidiu chamá-las para a sua reinauguração. Ao chegar a São Paulo, Marquesa disse que ficaram espantadas com a pouca quantidade de pessoas na plateia, uma vez que no Rio de Janeiro a bilheteria mantinha um volume considerável de frequentadores. Mesmo com a casa vazia, fizeram a estreia. Para a surpresa de todas, estava presente uma das mais destacadas figuras das altas rodas paulistanas. No dia seguinte, segundo Marquesa, a casa foi ocupada pelas famílias mais importantes da capital paulista. A entrevistada afirmou que o sucesso da trupe não ficou circunscrito à boate: elas foram chamadas a fazer outros eventos, incluindo o aniversário do então governador de São Paulo, Ademar de Barros. Assim, Les Girls que ficaria um mês em cartaz na boate Oásis, ficou por três meses. Ao fim da tournée em São Paulo, a trupe retornou ao Rio, resultando novamente em bons números de bilheteria. Marquesa disse que ao final desse período de sucessos, já se falava em outro espetáculo, que se chamaria Mulheres, baseado na peça The women, de Clare Boothe Luce, diplomata e escritora norte-americana. Mas ela se recusou conceder os direitos autorais de sua peça. Diante da negativa, ficou acordada a produção de uma nova peça, que se chamaria Nunca vi mulheres tão mulheres, com cada uma desempenhando o papel de uma mulher famosa. Marquesa contou que seria Maria Antonieta no palco. Nesse ínterim, o dono do Stop decidiu mandá-las para Londrina, onde fariam uma tournée contratada pelo Teatro de Londrina. Marquesa contou que o “patrão”, o dono do Stop, ficou muito rico com os shows feitos pela trupe, e que gastava uma fortuna com mulheres. Hospedadas no melhor hotel da cidade, elas foram surpreendidas com o desaparecimento repentino do “patrão”, que voltou para o Rio, deixando-as para trás, fugindo com o dinheiro e sem ter pagado as diárias vultosas do estabelecimento. A saída, revelou Marquesa, foi fazer show na zona de meretrício da cidade para juntar dinheiro, com o objetivo de voltar para São Paulo. Do hotel luxuoso foram elas para um hotel de beira de estrada. O grupo se dividiu para fazer show nos diferentes bordéis da região. De Londrina a São Paulo, elas foram fazendo shows nas zonas de prostituição até chegar ao seu destino final. Marquesa disse que fazer prostituição não foi cogitado como possibilidade para elas conseguirem pagar as contas, mas que essa vivência nos bordéis dispôs para elas uma imensa quantidade de amantes. Já em São Paulo, a trupe de Les Girls fez mais uma temporada em algumas boates, mas não com a pompa de antes. Nesse momento, meados da década de 1970, o grupo começou a se dissolver: Rogéria regressou ao Rio. Divina

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Valéria, apesar de ter participado de algumas montagens, partiu para o Uruguai. Saíram também Brigitte de Búzios e Jean Jacques. Nesse contexto de reestruturação da companhia, Susy Parker foi convidada a compor o grupo. A possibilidade de estar do lado das “pioneiras” foi o motivo principal para seu aceite imediato, afirma a própria. Ela conta que ganhava muito dinheiro e também amantes fazendo shows em casas noturnas do Rio de Janeiro nesse período, sobretudo na Alcatraz, em Copacabana, mas decidiu ir para São Paulo com Les Girls em função do prestígio que a companhia detinha junto às “travestis” de sua geração. Como todos os quadros do espetáculo estavam completos, Susy Parker entrou como stand-by, sendo obrigada a conhecer todos os esquetes para que, na falta de alguma das suas colegas, pudesse desempenhar adequadamente aquele papel. Essa situação, contudo, foi logo deixada de lado quando Calos Gill, percebendo a sua desenvoltura teatral, decidiu incorporá-la definitivamente ao elenco principal. Susy Parker pertenceu a esta que poderíamos chamar de “segunda geração” do elenco de Les Girls. O impresso da revista Alta Tensão (Imagem 08), feita pela companhia no Teatro das Nações, em São Paulo, mostra as alterações no elenco original. Alguns artistas, como Marquesa, Divina Valéria, Manon e Jerry Di Marco permaneceram no elenco. Outras artistas passaram a compor o staff dos shows de Les Girls, como Susy Parker, Yeda Brown e Akiko, as quais fariam muito sucesso em capitais da América do Sul, como Buenos Aires, na Argentina, e Montevidéu, no Uruguai. Susy Parker, Yeda Brown e Akiko também se fixaram em Barcelona, construindo carreiras internacionalmente conhecidas nos nightclubs desta cidade.

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Imagem 08 – Impresso do espetáculo Alta Tensão, realizado pela trupe de Les Girls, no Teatro das Nações, São Paulo (Fonte: acervo pessoal de Susy Parker).

Além do Les Girls em Alta Tensão, a companhia estreou em São Paulo mais dois espetáculos: Les Girls em Times Square e Tem Boneca na Folia. Apesar das tentativas de Carlos Gill, um dos integrantes do grupo e detentor dos direitos autorais do espetáculo, a equipe não alcançaria mais o êxito dos anos anteriores. Jerry Di Marco acabou por comprar os direitos autorais de Carlos Gill e levou o espetáculo para Belo Horizonte. Na capital mineira, Les Girls sofreu severas críticas das Mulheres da Liga Católica. Susy Parker conta que mesmo assim o show foi aprovado pelas autoridades locais. Após a aprovação, teria ficado a indecisão sobre onde alocá-las. Ficou acordado, então, que o grupo ocuparia um hotel de estudantes, iniciativa glorificada pela trupe. Susy Parker relata que ficarem hospedadas em um estabelecimento dedicado a jovens estudantes fez surgir muitas histórias de romance e aventuras entre elas e os rapazes. As portas dos seus quartos nem eram trancadas, afirmou, tamanho era o movimento de entrada e saída nos mesmos. Foi ainda em Belo Horizonte que Jerry Di Marco, lendo um jornal local, encontra Yeda Brown, que se apresentava em uma boate de classe média-alta chamada Sukata. Tratava-se de uma “travesti” de formas exuberantes. O jornal local destacava o ponto alto do espetáculo de Yeda Brown na Sukata, o

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strip-tease. Impressionados com a beleza de Yeda Brown, a qual se assemelhava com a atriz norte-americana Raquel Welch, sex symbol da década de 1960, Jerry Di Marco decide convidá-la a entrar na companhia, pedido que foi aceito de imediato. Com Yeda Brown já fazendo parte da trupe, Les Girls faz espetáculos primeiramente no Cine México, e logo depois no Teatro Francisco Nunes, importante equipamento cultural da capital mineira. No Rio de Janeiro, o Teatro Rival tentava fazer ressurgir os tempos áureos do Teatro de Revista e trazia Rogéria como estrela de Vem quente que eu estou fervendo. Marquesa, que não acompanhou Les Girls em sua temporada mineira, foi convidada por Rogéria a completar o elenco, o que foi aprovado de imediato por Gomes Leal, dono do teatro, que passaria a ser grande estimulador dos “shows de travesti”. A parceria entre Marquesa e Rogéria se estendeu por três anos, quando esta última iniciou a sua carreira internacional, indo para Angola, na África. Neste período, os “shows de travesti” fizeram parte integrante da programação dos teatros do Rio de Janeiro. Susy Parker conta que, nesse período, era um sucesso absoluto de público esse tipo de show. Dois donos de teatros se estabeleceram como os principais promotores desse tipo de espetáculo: Gomes Leal, no Teatro Rival, e Brigitte Blair, no teatro que leva o seu nome. Blair foi uma antiga vedete do Teatro de Revista que comprou um teatro com a ajuda de um dos seus admiradores, contou-me Marquesa. Para Marquesa, as montagens posteriores a Les Girls não investiram muito no luxo, o que tornou esses espetáculos menos extravagantes e atraentes. Além desse fato, Marquesa disse que os produtores como Brigitte Blair eram extremamente grosseiros, diferentes daqueles dos tempos áureos de Les Girls. O espetáculo Les Girls constitui um “mito de

Imagem 09 – Trecho d’O Globo sobre o show Les Girls, na boate Stop (Fonte: arquivos do jornal O Globo, 05/12/1964)

origem” dos “shows de travesti” no Brasil, dado o seu alcance e o seu tempo de duração em cartaz. A importância de Les Girls, em particular para essa geração de pessoas, pode ser avaliada em função da memória permanentemente acionada por elas quando falam de suas carreiras. Aparentemente, esse show está intimamente associado ao seu reconhecimento público como artistas, o que teria oferecido uma espécie de portfólio para que as mesmas se apresentassem nas casas noturnas latino-americanas e europeias. Entretanto, mais do que a carreira artística, o espetáculo propiciou construir uma

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rede de amizades e cooperação. Essa colaboração foi fundamental quando elas deram continuidade às suas carreiras na tão sonhada Europa. O uso de “travestis” em shows não era exatamente uma novidade no Brasil. O Teatro de Revista foi um precursor desse tipo de espetáculo, mas a consolidação da “travesti profissional”, como afirma Divina Valéria, só ocorreu na década de 1960, quando determinados produtores começaram a investir nesse tipo de linguagem teatral, atentos ao que já vinha ocorrendo em grandes centros urbanos no mundo. Desta forma, as “travestis” deixam de compor os shows para serem o próprio espetáculo. Em um levantamento nos arquivos do jornal O Globo, pode-se constatar o aumento expressivo de propaganda dedicada a esse tipo de evento, como é evidenciado no trecho de jornal com o banner de divulgação do show. Um dos idealizadores pioneiros desse tipo de espetáculo foi Luís Haroldo. Na ocasião da estreia de Les Girls, em 1966, Luís Haroldo tinha dez anos de carreira, sendo já reconhecido por suas produções. Em matéria publicada em 27 de maio de 1966 no jornal O Globo, ele é apresentado como o único produtor e diretor de espetáculos “à base de ‘travestis’”. Quando perguntado acerca desse tipo de espetáculo e a sua produção, ele respondeu: Eu produzo e dirijo “shows de travestis” para civilizar uma cidade, e não precisar ir a Paris para tomar banho de civilização, se aqui mesmo é possível. Acontece que no Brasil já se pode fazer algo de válido nesse gênero, tão ingrato em outras épocas (O GLOBO, 1966).

Ao que parece, o argumento que o produtor evoca sobre os “shows de travestis” no Brasil se relaciona à suposta necessidade de trazer um “verniz civilizador” para a nossa sociedade quando comparada a algumas cidades da Europa Ocidental, onde esses espetáculos são parte integrante dos guias turísticos. A fala de Luís Haroldo perfaz uma percepção do Brasil e, claro, dos seus habitantes como um país estacionado na história, uma espécie de “espaço anacrônico”, expressão cunhada por McClintock (2010) para se referir àqueles “humanos anacrônicos” – ou seja, aquelas pessoas que, mesmo dentro da metrópole, tais como as mulheres trabalhadoras, são percebidas como fora da história, manifestação acabada do arcaico, do primitivo. Tal estratégia de divulgação parece ser orientada diretamente às classes mais abastadas da sociedade brasileira, as quais tradicionalmente veem na europeização dos hábitos de consumo um mecanismo de distinção social. Balieiro (2014), em seu estudo sobre a construção da identidade nacional a partir da imagem de Carmem Miranda, oferece um panorama muito semelhante do uso de determinados hábitos de consumo para produzir

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distinção social. Para esse autor, a cultura nacional forjada à época de Carmem Miranda pelo mercado de entretenimento carioca era nutrida pela ideia básica de um “ideal moderno”, com o qual se esperava um alinhamento das elites brasileiras com as “nações civilizadas”. É a partir desse “ideal moderno” que toda a publicidade de Luiz Haroldo, e também de outros depois dele, foi construída em relação aos “shows de travesti”. Transitar nesses shows era uma forma de vincular esses indivíduos a uma concepção de modernidade, uma estratégia de compressão tempo-espacial (HALL, 2006) com os países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. As “travestis profissionais” constituíram uma forma de negociar a modernidade. Acredito que a estratégia de Luiz Haroldo em adotar a noção de “falta de civilização” para falar de uma característica de nós, brasileiros, que precisava ser ultrapassada teve um desfecho bem-sucedido, uma vez que os shows produzidos por ele não apenas lotaram de uma audiência variada – principalmente a elite – como também ajudaram a organizar sensibilidades menos nocivas às “travestis”. Preocupado em se aproximar das convenções europeias, um público crescente afluía aos “shows de travestis”, tornando o gênero um sucesso e projetando suas protagonistas em diferentes veículos de comunicação. Acredito que conforme a elite buscava distinção – tentando se aproximar dos países europeus que já constituam tradição nesse tipo de apresentação –, ela promovia reconhecimento às sexualidades não normativas, aproximando-a das noções de cosmopolitismo e modernidade. A elite foi uma importante mediadora na mudança do regime de visibilidade das sexualidades não normativas, uma vez que, consumindo esses espetáculos e os indivíduos que dele faziam parte – através da busca do refinamento dos seus prazeres (DUARTE, 1999) –, reconhecia a existência dessas pessoas. A aclamada “falta de civilização” no Brasil para esse gênero de show não era um argumento somente adotado por Haroldo para garantir público aos seus projetos. A propaganda que circulava nos jornais e revistas populares na época revela a preocupação em associar esse tipo de exibição a referências internacionais, dotando de “civilização” esse tipo de empreendimento. Daí os nomes dos shows serem sempre em outros idiomas: Very, Very Sexy; The International Set e Les Girls, para citar os mais importantes. Essas referências também eram realçadas na caracterização do elenco, quase sempre identificado como formado por artistas “internacionais”, como é observado na peça publicitária veiculada em O Globo de 17 de julho de 1965.

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Imagem 10 – Trecho de O Globo sobre o show Very, Very Sexy realizado no Top Club, Rio de Janeiro, em 1965 (Fonte: arquivo do Jornal O Globo, 17 jul. 1965).

O discurso de Luís Haroldo acerca de nosso “atraso cultural” em relação à Europa ganhou eco na imprensa da época, que noticiava entusiasmada o novo empreendimento, o qual, de acordo com o veículo Correio da Manhã, de 20 de dezembro de 1964, não era tão novo assim entre nós, mas antes carecia de “uma certa dignidade”. O jornal destaca que as iniciativas anteriores a Les Girls de se fazer “show de travestis” eram sempre consideradas pouco profissionais, caindo na esparrela da “gratuidade exótica”. Tal entusiasmo da imprensa pode ser observado no trecho do Correio da Manhã, que destaca o caráter internacional desse gênero de espetáculo. O travesti é um fato internacionalmente aceito como uma das atrações noturnas das grandes cidades onde há boates e teatros especializados na exploração e cultivo do gênero. O travesti é a arte de transformar homens em mulheres e vice-versa. Muito mais versa do que vice, é a arte transformista por excelência. Em Paris, Nova York, Londres, Berlim e Hamburgo há espetáculos deslumbrantes neste sentido e sentimento, onde todo um mundo plural de celebridades se reúne e diverte com o equívoco natural, provocado ou artístico (CORREIO DA MANHÃ, 1964).

O legado de Haroldo foi além da publicidade positiva a esses shows nos veículos de comunicação brasileiros. Foi ele, de acordo com Marquesa, que ajudou a profissionalizar essas “travestis” na etiqueta do show business. De acordo com ela, o produtor as ensinou

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sobre o apreço pela pontualidade, a respeitar a disciplina do teatro, a se antecipar nos bastidores no que se relaciona a maquiagem, cabelo, etc. Para Marquesa, esse repertório de aprendizagens iria possibilitar que, quando elas saíssem do Brasil, realizassem sua adequação aos palcos internacionais com relativa facilidade, produzindo uma percepção positiva das “travestis” brasileiras no exterior. A associação entre as “travestis”, transformações corporais e o glamour internacional ficou ainda mais evidente com a vinda de Coccinelle, a famosa transexual francesa, ao Brasil. O “desembarque-surpresa” (como alertaram as manchetes dos jornais) de Coccinelle no Rio de Janeiro despertou grande interesse da imprensa na época. Os veículos de comunicação fizeram diferentes reportagens com a corista, fotografando-a na pérgula do hotel Copacabana Palace e publicando falas suas acerca da suposta vontade de ser mãe, como foi o caso do periódico Última Hora, em 13 de março de 1963. Nos jornais, Coccinelle foi apresentada como o “ex-travesti” Jacques Charles Dufresnoy43, recruta do exército francês que se tornou Jacqueline Charlotte Dufresnoy. Coccinelle, ao chegar ao Brasil, já havia construído uma sólida e polêmica carreira na França, sobretudo nos famosos cabarés Chez Madame Arthur e Carrousel de Paris, ainda na primeira metade dos anos 1950. Em 1958, a corista fez a cirurgia de “mudança de sexo” – conforme era chamada na época – em Casablanca44, no Marrocos, tornando-se a primeira pessoa francesa a se submeter a esse tipo de procedimento. Apesar do ineditismo de sua iniciativa, o dado de sua vida que causou maior comoção popular foi o seu primeiro casamento, em 10 de março de 1960, com o jornalista esportivo Francis Paul Bonnet45, em uma igreja. Tal informação só fez aumentar a sua reputação, consolidando sua fama internacional. Em O Globo de 11 de março de 1963, uma foto ao lado do bailarino Mário Heynes ilustra a informação sobre a sua estadia de três dias na cidade enquanto estava à espera da passagem de avião para conduzi-la novamente à Paris, onde iria se apresentar no Olympia, ao lado de Edith Piaf e Frank Sinatra. Elementos sedutores não faltavam na publicação, os quais causaram grande comoção a um conjunto de pessoas que começavam a construir suas trajetórias a partir da mediação do mundo artístico com a vida cotidiana. 43

Na década de 1950, George Jorgensen escandalizou os Estados Unidos chegando de avião ao país após ter realizado na Dinamarca aquela que ficou conhecida como a primeira experiência midiatizada de operação de “mudança de sexo” (PRECIADO, 2008; PELÚCIO, 2009). Tal feito incidiu diretamente no interesse da medicina norte-americana, que passou a estimular pesquisas nessa área. 44 Barbosa (2015) chama a atenção para alguns países que se tornaram atraentes para o que ele chama de “turismo cirúrgico”, dentre os quais o Marrocos e a Dinamarca. Muitas pessoas iguais a Coccinelle afluíam a esses países para procedimentos cirúrgicos visando à transformação corporal. 45 INDEPENDENT. Obituaries: Coccinelle, transexual entertainer. Disponível em:< http://www.independent.co.uk/news/obituaries/coccinelle-6230828.html>. Acesso em: 17 abr. 2016.

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Acredito que a passagem de Coccinelle pelo Brasil, mais do que despertar o interesse da imprensa ávida por notícias sensacionalistas, encorajou um conjunto de pessoas que via na “ex-travesti” fotografada no Copacabana Palace um projeto de vida. As notícias destacavam a hiperfeminilidade de Coccinelle, seu marido perfeito, seu corpo e, sobretudo, a sua carreira de sucesso internacional. Associadas aos seus já propalados feitos extraordinários, essas notícias serviram de dínamo para esses indivíduos começarem a reconstruir seus projetos de vida, fascinados que estavam com a possibilidade de serem iguais à corista. A fala de Jane Di Castro ao jornal O Pasquim, em 1983, informa com bastante precisão os efeitos que esta presença causou na sua imaginação e nas suas escolhas: Ela me entusiasmou muito, porque senti os recursos que podia usar. Li tudo sobre ela, vi suas fotos de homem, as de mulher, soube que ela serviu o exército. Um dia faltei a aula e fui ao Copacabana Palace assistir Coccinelle tomar banho de piscina, pensando: “ainda vou ficar igual a ela” (Jane Di Castro em entrevista para O Pasquim).

Coccinelle revela-se como uma mediadora entre essas pessoas e a “moderna Europa”, onde as “travestis” já faziam parte da paisagem e eram inclusive assumidas como atrações nos guias turísticos, associadas aos shows de entretenimento noturno. Mais à frente, pode-se ver como ela foi importante para as trajetórias de vida de Divina Valéria, Marquesa e Rogéria quando estas iniciam as suas carreiras na Europa.

Imagem 11 – Valéria, Coccinelle e Rogéria (Fotografia: acervo pessoal de Divina Valéria).

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Não somente a presença física de Coccinelle encorajou essas pessoas a construírem projetos de vida cujo “fazer travesti” possuía centralidade. As informações que circulavam acerca da transexual francesa acentuavam o clima de fascinação e atração acerca dessas inovações associadas à possibilidade de mudar o corpo. O seu casamento ganhou projeção internacional, chegando ao Brasil através de diferentes veículos de comunicação. O “efeito Coccinelle” foi importante também para a trajetória de vida de Marquesa, que ficou conhecida pela reprodução que fez do casamento da famosa transexual em um nightclub carioca cuja frequência começava a ser marcadamente “bichal”: o Alfredão46. O Alfredão resolveu reabrir a boate, aumentar, comprou do lado.... E ele quis então formular uma peça de publicidade para a abertura dessa casa, publicidade. Naquela época, a Coccinelle, que foi a primeira a operar, tinha casado, tinha sido um escândalo! Então, ele queria uma noiva. Aí ele precisava de uma noiva pra boate, pra festa. Como eu vivia sempre lá, ele disse: “Ah, Marquesa, você não quer fazer a noiva?” Eu na hora: “É claro!”;“Pois bem, eu te monto, e tudo, dou tudo”. Na época, o maior cabeleireiro era o cabeleireiro da Maria Teresa Goulart, que era a primeiradama na época. Modelo da Casa Canadá, enfim, de noiva. Eu estava impecável, impecável! E casei. Só que esta festa foi o maior escândalo que aconteceu no Brasil na época (Marquesa).

O escândalo provocado pelo “casamento de mentira” gerou imensa comoção popular, sobretudo pela visibilidade promovida pela revista Fatos & Fotos, que estampou em sua capa da edição de 22 de dezembro de 1962 o seguinte título: As bodas do diabo. Marquesa ganhou quatro folhas inteiras nas quais o jornalista João Luiz de Albuquerque noticiou o que considerava a “solenidade mais espantosa do século”. Os registros da solenidade incluíam fotos de Marquesa ganhando conselhos de suas amigas “travestis” sobre os deveres da noiva, sua felicidade diante dos presentes de casamento que ganhou de amigos e o famoso brinde com os noivos cruzando os braços diante da plateia. Marquesa, então com 17 anos, disse que, ao sair da boate naquela noite, foi cercada por uma legião de jornalistas que queriam registrar o feito: o primeiro casamento de “anormais” realizado no Brasil. Muito embora tenha conseguido sair ilesa do episódio, foi presa dias depois, durante o carnaval. Em um baile do Teatro República, foi interpelada por dois agentes que julgara interessados nos seus dotes corporais, mas que, no fim das contas, prenderam-na sob a acusação de atentado ao pudor. De acordo com Alfredão (o dono do bar, um empresário português cujo pai era proprietário de um botequim na Rua do Lavradio, centro do Rio de Janeiro), em entrevista ao jornal O Globo de 12 de dezembro de 1983, o que deveria ter sido “uma noite engraçada” acabou se constituindo em escândalo de tamanha proporção que o governador Carlos Lacerda 46

O Alfredão foi assim batizado por Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto. O bar, de acordo com entrevista feita pelo jornal O Globo, publicada em 12 de dezembro de 1983, foi reduto da boemia de Copacabana, sendo frequentado pelas “travestis” que serviam de coristas nos shows de Carlos Machado nas boates da região.

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mandou fechar a casa. Alfredão foi trabalhar na casa Fred’s, onde, depois de um tempo, conseguiu recuperar o dinheiro perdido para reabrir, em 1964, o Barman Club, na Praça do Lido, Copacabana. O casamento não incomodou somente o governador. Dom Hélder Câmara, um dos líderes mais destacados da Igreja Católica no Brasil, se manifestou contrário em seu programa no rádio sobre a possibilidade de se fazer uma cerimônia religiosa entre dois homens. Da noite para o dia, Marquesa tornou-se conhecida em todo o Brasil como a “Marquesa do Casamento”. Em meio a todo esse alarde, foi convidada a integrar a equipe de International Set. Até o fim da década de 1960, os “shows de travesti” se constituiriam como um lugarcomum, sendo frequentados por diferentes setores da sociedade. O Les Girls, certamente, foi o mais importante, por ter revelado um conjunto de indivíduos que, é possível afirmar, foram precursores na produção de sentidos e performances relacionadas às convenções acerca da diversidade sexual e de gênero. Rogéria, Divina Valéria, Marquesa, Eloína e Jane Di Castro saíram desses shows – elas marcaram uma geração de “travestis” que transitaram dos bastidores dos espaços de entretenimento para os holofotes da vida cotidiana. É interessante destacar que o florescimento dos “shows de travestis” no cenário cultural brasileiro se deu ao mesmo tempo que houve a instituição, em 1964, da ditadura militar, fato que manifesta a atitude ambígua do governo brasileiro face às sexualidades não normativas. De acordo com Jane Di Castro: Os militares não se metiam com a gente não, viu? A censura... tinha aquele problema de assistir [a]o espetáculo, e como nosso espetáculo não tinha nenhuma conotação política, então, nós nunca tivemos problemas com a polícia, com os militares. Por que eles sabiam que o nosso show era um show muito de frescura. E quando tinha censura, porque tinha aquelas três ou quatro cadeiras da censura, o empresário avisava: oh tem o censor aí! Aí nós tirávamos todos os cacos, porque a gente brincava, claro, também em cima. Mas como tinha sempre um censor no teatro, um olheiro vinha avisar no camarim para todo mundo cortar aquele texto assim e ficava uma coisa mais suave. Então, nós nunca tivemos esse problema. Nós tivemos problema com um delegado, que se chamava Padilha, que num certo dia veio proibir o show de travesti, mas tinha uma censora com o nome de Dona Marina que adorava... que ela adorava os travestis, né? E sempre tem um anjo bom, né? E ele falava: não, não vai não! Eles vão continuar. O senhor não vai fechar o Rival, porque elas são artistas. Ela vinha ao censor, e lutava contra esse delegado (LADO BI, 2014).

Pode-se perceber, através do relato mencionado, que os “shows de travestis” não constituíam preocupação primeira dos governos militares. A inquietação com esse tipo de show era antes residual e moldada pela subjetividade do censor responsável pela autorização ou não do espetáculo. Aparentemente, a preocupação dos órgãos de repressão era com indivíduos identificados como potencialmente perigosos à manutenção do sistema, tais como

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os adeptos do regime comunista. A noção de “show muito de frescura” evocada por Jane Di Castro revela o lugar de menor prestígio ocupado por esse tipo de espetáculo no conjunto das programações culturais consideradas transgressoras pelos militares. Diante dessa quase ausência de preocupações, Jane Di Castro e as outras podiam realizar com relativa liberdade seus shows, contando com uma audiência cativa. A ideia de que a ditadura percebia as diversidades de gênero e sexualidade como algo de menor peso diante do conjunto de supostas ameaças ao sistema começou a ser modificada quando essas pessoas passaram a se infiltrar em uma nova tecnologia, mais abrangente que os palcos cariosas e paulistas, a televisão47. O sucesso dos “shows de travestis” continuaria nas décadas posteriores à de 1960. Luiz Haroldo abriu um espaço importante para esse gênero teatral no Brasil, provocando a existência de um mercado para as “travestis” que se consolidaria entre fins da década de 1970 e início da década de 1980. O reconhecimento desse gênero, de certa forma, amoleceu alguns veículos de comunicação, como o Jornal do Brasil que, conforme diz Adão Acosta, colunista do Lampião da Esquina, era famoso por suas páginas preconceituosas, não oferecendo espaço aos temas relacionados às diversidades de gênero e sexualidade. O sucesso desses shows, inclusive internacionalmente, gerou visibilidade a essas pessoas, que foram retiradas momentaneamente das sombras das casas noturnas em que se apresentavam. Tal reconhecimento não foi obtido de forma automática. Para que assim ocorresse concorreram diferentes ações coletivas da própria indústria cultural, que começava a mobilizar esforços no sentido de construir um público e uma estética própria a esse tipo de espetáculo. Tal ação coletiva contou com a preciosa atenção de indivíduos com carreiras consolidadas na indústria cultural brasileira, como as atrizes/cantoras e diretoras: Marlene, Bibi Ferreira e Berta Loran. Não somente essas diretoras emprestaram prestígio a esses shows, mas ainda mobilizavam uma equipe de reputação, que ficava responsável por outros momentos da produção, como cenografia e figurino. O resultado de todo esse investimento foi uma adesão crescente de uma certa elite a esse tipo de espetáculo, incluindo muitos turistas, que afluíram aos teatros. Tamanho sucesso foi registrado na crítica de Aguinaldo Silva, no jornal Lampião da Esquina, de 1981, ao espetáculo Gay Fantasy. Gay Fantasy, como estava na primeira semana, sem os cacos que os artistas certamente vão acrescentar ao texto pobre de Arnaud, já é espetáculo pare ficar dois anos em cartaz. Eu, por exemplo, pretendo vê-lo muitas vezes ainda. Mesmo que, para isso, tenha que fazer como fiz da primeira vez: disputar um ingresso, a socos e pontapés, com a legião de heterossexuais, principalmente argentinos e 47

No Capítulo IV será discutida mais detalhadamente a relação entre a televisão e as sexualidades não normativas.

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assemelhados, que para lá acorrem todas as noites. E incrível, mas, por causa deste show, até na Galeria Alaska as bichas agora também são minoria... (LAMPIÃO DA ESQUINA, 1981).

O envolvimento desse staff tão prestigiado no campo artístico brasileiro nos “shows de travestis” investiu de autoridade esse gênero teatral, bem como as “travestis” que dele faziam parte. Através da agência desse conjunto de diretores – Luiz Haroldo, Marlene, Bibi Ferreira, Lennie Dale e Berta Loran – as “travestis” foram convertidas em mercadorias culturais (MORIN, 2007), passando, via mercado de bens culturais, a fazer parte do quadro de atrações turísticas da cidade do Rio de Janeiro. Esse envolvimento não se deu exclusivamente a partir dessa elite artística: ele atingiu, sobretudo, uma outra elite, esta formada por “damas da alta sociedade”: mulheres bem-nascidas e consagradas pelos veículos de comunicação por sua reputação nos círculos sociais. Este era o caso da ex-primeira-dama D. Yolanda Costa e Silva que, em entrevista à revista O Cruzeiro48 de 15 de outubro de 1979, dizia adorar “shows de travestis”, informação estampada na capa da referida revista. Dando continuidade à entrevista, Yolanda afirmou que frequentava esse gênero de espetáculo pois “os considero pessoas como nós e nos shows deles me sinto perfeitamente à vontade”. O tom que ela assume na entrevista d’O Cruzeiro parece tentar produzir uma imagem de si leve e arrojada, talvez na tentativa de desconstruir uma associação com o período da ditadura, perto do fim. Ao adotar os “shows de travesti” para construir essa imagem moderna, Yolanda Costa e Silva consolida uma percepção entre as elites de que esses shows são modernos e, portanto, espaços que devem ser ocupados por essas pessoas e, mais do que isso, pelas chamadas “famílias de bem”. Mas não era apenas D. Yolanda Costa e Silva que circulava nestes shows. Todo um grupo de “damas da alta sociedade” também o fazia. Essa frequência é evidenciada na fala das “travestis” que faziam shows, as quais destacam as presenças ilustres que compunham o seu público. Mais do que assistir, essas “damas da alta sociedade” tinham alguma agência no que diz respeito à manutenção desses espetáculos durante o período mais duro da ditadura, uma vez que, como afirma Jane Di Castro, eram estas que intervinham diretamente nos órgãos censores para que os shows pudessem ocorrer. É válido destacar a importância dessa elite cultural e política para o desenvolvimento de uma sensibilidade para esses shows e, por conseguinte, para a produção de percepções menos hostis sobre as diversidades de gênero e sexualidade. Tal lógica muito se aproxima daquela analisada por Fry (1982) no processo de construção do candomblé e do samba como mercadorias culturais.

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Agradeço a Milton Ribeiro por essa referência.

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No pequeno artigo Feijoada e Soul Food, o autor destaca o quanto o pacto com as elites foi fundamental para “fazer existir” tanto o candomblé quanto o samba, ainda que estes tenham sido produzidos pelos negros em situação de dominação. Tal infiltração das elites implicou a conversão desses símbolos, antes circunscritos a espaços de resistência étnica, em “instituições nacionais lucrativas” (FRY, 1982, p. 52). Para o autor, essa conversão por meio da cultura de massas trouxe consequências funestas, entre as quais a mais nociva: a difícil tarefa de denunciar a situação de dominação racial, invisibilizada pelo sentido de nação produzido a partir desses símbolos. Processo muito semelhante foi analisado por Vianna (1995) em seu estudo sobre a transformação do samba, indo de ritmo execrado a símbolo da identidade nacional, item constitutivo da brasilidade. Para Vianna (1995), a relação entre cultura erudita e cultura popular nunca foi propriamente estanque, a história dos ritmos populares pré-samba, como as modinhas, são exemplos importantes desse argumento. De acordo com suas análises, os saraus e outros eventos protagonizados pela elite carioca desde sempre convocaram instrumentos, artistas e ritmos populares. A construção do samba como ritmo autenticamente brasileiro foi facilitada por essa elite intelectual, econômica e mesmo política que mediou o processo de ressignificação do ritmo em questão, afastando-o das percepções racistas que a ele se associavam. No caso das “travestis”, a relação com uma elite também fez existir outros sentidos acerca das diversidades de gênero e sexualidade. Sem a agência dessa elite cultural certamente este grupo não passaria a existir além dos limites dados pelo Teatro de Revista e pelo carnaval. Ainda que Fry (1982) e Vianna (1995) estejam se referindo a produtos culturais distintos, sua reflexão acerca dos impactos da cultura de massas sobre símbolos étnicos oferece pistas para compreender como tipos sociais considerados tão perigosos e corruptores aos olhos das autoridades, como eram os “homens em travesti”, foram convertidos em mercadorias culturais – representantes legítimos de nossa adesão a uma concepção de modernidade.

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Logo, o lucrativo mercado dos “shows de travestis” chamaria as atenções de espectadores de todas as partes do país e do mundo, chegando a despertar até mesmo sentimentos nacionalistas acerca

das

“nossas

travestis”,

produto

genuinamente nacional. Matérias de revistas de ampla circulação no Brasil, como a Manchete e a Fatos & Fotos, que documentaram o período áureo dos “shows de travestis”, adotavam no título de suas matérias, em letras garrafais, chamadas que

destacavam

travesti”.

Tais

o

bem-sucedido

matérias

atentam

“negócio para

o

crescimento desse mercado e dos indivíduos que a Imagem 12 – Jane Di Castro na revista Fatos & Fotos, 1981. (Fonte: acervo pessoal de Jane Di Castro).

partir dele construíam suas carreiras. Na matéria Escola de Bonecas, da revista Fatos & Fotos, de 1981, o veículo afirmaria que o “negócio travesti” estava superando em renovação de valores até mesmo uma das instituições brasileiras mais consolidadas, o futebol. Tal associação com o símbolo máximo de brasilidade também foi verificada na capa da edição 32 de o Lampião da Esquina, de janeiro de 1981. Nela, é possível ver onze “travestis”, dentre as quais Jane Di Castro, na pose tradicional adotada pelos jogadores de futebol em fotografias de divulgação do time. Todas elas trajavam blusas do clube carioca Vasco da Gama. Na chamada da matéria destacam-se as cinco páginas dedicadas às chamadas “bichas biônicas”, como a equipe do Lampião se referia às “travestis”, e ainda ressaltava uma entrevista exclusiva com a “Zico” dessa seleção: Rogéria. Já em uma revista

Imagem 13 – Matéria da revista Manchete, 1981. (Fonte: acervo pessoal de Jane Di Castro).

Manchete de 1981, o título Travestis S.A., uma

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sociedade nada anônima (nem limitada) realça o caráter internacional desses espetáculos, chamando a atenção para a “graça” das “travestis” cariocas como um traço superior das “nossas travestis” quando comparadas com aquelas de origem internacional. Aparentemente, essas matérias – associadas àquelas sobre o retorno dessas “travestis” da Europa – ajudaram a amolecer a opinião pública acerca dessa presença até então incômoda. A construção do orgulho associado à produção de sentimentos nacionalistas é um ponto interessante a ser analisado a partir dessa publicidade dirigida às “travestis”. Vianna (1995) chamou atenção para essa construção no processo de consolidação do samba como símbolo nacional. Esse material sobre o “boom travesti” sugere uma tentativa de produzir orgulho nacional a partir das “travestis” brasileiras que circulavam internacionalmente. É interessante destacar que o orgulho nacional era produzido concomitantemente às iniciativas hostis da ditadura a essas pessoas. Simultaneamente, a “institucionalização das travestis” via ideiais nacionalistas produziu um modelo domesticado de ser “travesti”, controlado desde o palco. É

possível

inferir

que

a

aproximação das “travestis” com símbolos de brasilidade – como a “mulata”, o “samba” e o “carnaval”-, Imagem 14 – Divulgação da boate Sucata no Correio da Manhã, 18 jan. 1974. (Fonte: Biblioteca Nacional).

não somente ajudou a compor a imagem de um Brasil liberal e

moderno, mas favoreceu a visibilidade desse grupo de pessoas junto à sociedade. A entrada de Rogéria na condução do espetáculo com “mulatas” da boate Sucata49, no Rio de Janeiro, papel ocupado antes por Rosemary, constiuiu outro exemplo valioso desse processo. Rogéria confundia-se definitivamente com a brasilidade patrocinada por esse espaço, cujo produto principal era a “mulata”. Este foi um dos primeiros trabalhos dela recém-chegada da Europa, logo após a sua experiência com a peça dirigida por Agildo Ribeiro. Outro dado que sugere a conversão das “travestis” em mercadorias culturais é a estreita relação dos “shows de travesti” com o calendário turístico do Rio de Janeiro, como já era conhecido em alguns países europeus. A publicidade construída para dar visibilidade a esses eventos sempre os associava ao período de verão, época do ano marcado pelas altas temperaturas que, combinadas às praias, resultam em representações sobre os corpos e os 49

A Sucata era de propriedade de Osvaldo Sargentelli, um dos grandes responsáveis pela popularização dos “shows de mulata” na noite carioca.

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desejos que evocam. Esses elementos são responsáveis pela construção de representações sobre a cidade, consumida pelos turistas que aqui desembarcam. Shows como o Vídeo Gay, em 1985, dirigido por Berta Loran e com concepção visual de Joãozinho Trinta, e Adorável Rogéria, do mesmo ano, fazem suas estreias adotando o verão como pano de fundo, talvez na tentativa de associar as “travestis” a noções de tropicalidade, portanto, de brasilidade. Tal conexão fica evidente nos impressos jornalísticos deste último espetáculo: “Muita arte, muito visual e muito alto astral para receber os turistas que desembarcam no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, no verão de muito sol e calor” (CORREIO DO BRASIL, 1986). Mesmo aquelas que iam trabalhar em outros estados regressavam ao Rio de Janeiro para temporadas de verão em casas noturnas e teatros de menor dimensão, como afirmou Susy Parker. Rogéria

protagonizou

momentos

importantes de sua carreira nesse contexto de valorização dos “shows de travesti”, como pode ser ressaltado no sucesso de bilheteria do acima comentado Gay Fantasy e do espetáculo Gay Girls, em que ambas as montagens compartilhavam o formato do antigo Les Girls. Sua estreia brasileira após a temporada europeia foi em 03 de outubro de 1973, com o espetáculo Por vias das dúvidas

Imagem 15 – Impresso do espetáculo Misto Quente no Correio da Manhã, 20 jul. 1972. (Fonte: acervo Biblioteca Nacional).

ou por dúvidas das vias, dirigido por Agildo Ribeiro, no teatro Princesa Isabel, em Copacabana. Foi Agildo Ribeiro também que, em 1972, afiançou a primeira aparição de Divina Valéria nos palcos brasileiros depois do seu regresso da Europa. A peça Misto Quente tinha direção de Augusto César Vannucci, e estreou em julho de 1972, no teatro Princesa Isabel. A publicidade da peça recaía, sobretudo, na imagem de Valéria, apresentada na imprensa como a mais perfeita transformação. A crítica feita por Moli Ferreira, no Correio da Manhã, de 28 de julho de 1972, destacou a sua perfeição como atriz e cantora. Segundo a especialista, a sua potência vocal lhe permitia cantar sem fazer uso do microfone. A importância de Rogéria e Valéria para essa geração de “travestis” não se deve apenas as suas participações neste conjunto de espetáculos tidos como específicos – “shows de travesti” –: elas fizeram papéis destacados na cena teatral. Rogéria atuou em dois

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importantes espetáculos: o Alta Rotatividade, em parceria com Agildo Ribeiro, em 1976; e Roque Santeiro, dirigido por Bibi Ferreira, em 1987. Sua atuação no teatro lhe rendeu o prêmio Mambembe, em 1979. Os trânsitos por esse universo cultural mainstream foram convertidos em capital simbólico na trajetória de vida de Rogéria, sendo sempre lembrados em diferentes entrevistas que ela oferece a veículos de comunicação com o objetivo de agregar valor à sua vida artística e pessoal. O espetáculo Alta Rotatividade foi um sucesso de audiência nacional. Agildo Ribeiro, em uma revisão de sua trajetória de vida organizada pela Imprensa Oficial de São Paulo, afirma que este espetáculo foi o maior sucesso de sua carreira. O espetáculo rodou todo o Brasil, entre 1979 a 1984. Agildo Ribeiro disse que o show só teve seu final porque não havia mais teatros para ir. Sobre a forma como o espetáculo foi concebido, ele disse: O espetáculo seria comigo, a Rogéria, o Ary Fontoura e a Leila Cravo. Ia ser tipo uma entrevista de televisão. Começava com o cara sentado no palco respondendo: Seu nome? Que ano você nasceu? É verdade que aconteceu isso e aquilo quando você era garoto? E por aí continuaria. Algo meio Tudo é Verdade, aqueles programas do Flávio Cavalcanti, tipo Essa é Sua Vida. O Machado olhou, pensou e disse: Muito bom, mas quem escreve? Nós, ora. Cada um monta o que gostaria de falar a partir das perguntas do outro. O Ary Fontoura entrava como se fosse um apresentador. Era uma abertura. Música alta. E depois entrava a Rogéria toda vestida de gala como se fosse a primeira entrevistada da noite. O Ary dizia: Boa noite, senhora, qual o seu nome? Astolfo Pinto, respondia a Rogéria. E daí pode-se imaginar como a coisa engrenava. A Rogéria contava histórias homéricas. Desde como sua primeira vez até a última vez. Sem censuras. Descia o verbo mesmo. As pessoas se acabavam de rir. Era uma revelação ter aquele artista com nome e voz de homem, jeito de mulher, histórias femininas, masculinas, uma festa só. (Agildo Ribeiro).

Em 1985, com o espetáculo Adorável Rogéria, ela desponta como produtora e diretora teatral. O show recebeu atenção midiática em diferentes veículos, sendo o único do gênero que possui material disponível para consulta nos arquivos da Fundação Nacional de Artes– FUNARTE, no Rio de Janeiro. Adorável Rogéria foi considerado um show de variedades, cujo objetivo era fazer ressurgir os tempo áureos dos “shows de travesti” no Teatro Alaska. Além de Rogéria, atuaram Elaine, Desirée e Andréa Gasparelli. Nas tiras jornalísticas, o espetáculo era propagandeado como voltado, sobretudo, aos turistas, que procuravam entretenimento de alta qualidade quando de férias no verão carioca. A montagem não ficou restrita ao Rio de Janeiro, tendo viajado por Brasília, Recife e Belo Horizonte. Adorável Rogéria constituiu ainda a primeira iniciativa de retirar a expressão “gay” dos letreiros dos espetáculos cujo foco eram as “travestis”. Rogéria, em entrevista ao Jornal de Brasília, na ocasião de sua estreia na capital, explica suas opções por retirar a palavra “gay” dos títulos dos espetáculos.

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Resolvi tirar o nome gay da fachada dos espetáculos. Travesti não precisa ser uma coisa vulgar, pode e deve fazer shows alinhados. Não tenho preconceitos em relação ao homossexualismo e acho que demonstro isso no palco. Trabalho com honestidade, dedicação. Por isso, recebo constantemente o reconhecimento do público (Rogéria).

Aparentemente, as etiquetas “travesti” e “gay” passaram a provocar incômodo em Rogéria, o qual parece estar associado às mudanças da percepção pública sobre as “travestis”. Em nota de imprensa veiculada no jornal O Dia de 18 de dezembro de 1985, Rogéria dizia que o espetáculo seria encenado por atores transformistas de talento, não por “travestis” estereotipados. Aparentemente, a adoção da noção de “travesti” para descrever um estereótipo supostamente negativo visava a distinguir a “arte de Rogéria”, como sublinhava a matéria, da população de “travestis” que crescia nas ruas da cidade, aumento também evidente no exterior. Entretanto, o apelo midiático às “travestis” gerou outros sentidos. O palco, de certa forma, estabilizava a presença das “travestis” na sociedade – a domesticava –, situando essas pessoas dentro de um espaço demarcado e controlado. Enquanto estivessem no palco, esses seres teriam assegurada a sua existência. O problema foi quando elas começaram a penetrar em outro espaço, mais perigoso em função de seu alcance mais global: a televisão. Tal ingresso evidenciou as fronteiras simbólicas que as “travestis” deveriam respeitar para que pudessem preservar a sua existência50. O aparecimento cada vez mais frequente das “travestis” na televisão gerou agitação de setores da sociedade brasileira preocupados com os ditos valores morais. Essa preocupação ficara ainda mais expressiva quando da descoberta de uma doença que supostamente só acometia pessoas com “comportamento homossexual”, a AIDS. Tais questões serão analisadas de forma mais detida no próximo capítulo. A conversão das “travestis profissionais” em mercadorias culturais foi um processo importante para a construção de um lugar simbólico para essas pessoas. Tal processo esteve conectado à circulação internacional dessa primeira geração de “travestis”. Foi através desses espaços e do fazer artístico produzido para o consumo das massas que encontraram o ambiente propício para inventar uma identidade. Essa conexão com o fazer artístico mediou uma mudança vivenciada por elas na percepção acerca da prática de se “fazer travesti”. O surgimento da chamada “travesti profissional”, categoria que emerge do relato de vida de Divina Valéria, considerada uma pioneira dessa geração, é um desdobramento desse processo. Na trajetória de vida de Rogéria, noções de “profissional” e “artista” também foram fundamentais no processo de construção de si. No próximo tópico passaremos a analisar a 50

Discutirei no Capítulo III as relações das “travestis” com o mundo televisivo.

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circulação internacional, sobretudo pela Europa, dessa primeira geração, bem como seu retorno ao Brasil, atentando para os impactos desse trânsito na invenção da noção de “travesti profissional”.

2.2 – Deslocamentos latinos

Ao mesmo tempo em que as “travestis” surgiam como profissionais e profissionalizavam os “shows de travestis” no Brasil, constituía-se um mercado para elas em outros países da América do Sul. Aproveitando esse momento, muitas como Divina Valéria acabaram por se fixar durante algum tempo em países como Uruguai e Argentina. Susy Parker e Yeda Brown também fizeram carreiras nesses países. O fascínio pelas “travestis” não era um fenômeno somente brasileiro, mas antes internacional. Logo, o Brasil ficou conhecido como um grande exportador de “travestis” para o mundo. Após o longo período brasileiro, Montevidéu, no Uruguai, foi a primeira cidade a receber a companhia de Les Girls. A trupe não era mais a mesma daquela que estreou no Rio de Janeiro. De acordo com Yeda Brown e Susy Parker, muitas adaptações haviam sido feitas no elenco, mas o enredo da peça continuou o mesmo. Nessa cidade, o grupo fez shows no Cabaré Bonanza, uma casa de shows famosa da região. Susy Parker e Yeda Brown falaram pouco dessa experiência no Uruguai, o mesmo ocorrendo com Divina Valéria. Os fatos que mais marcaram a trajetória de Yeda Brown e Susy Parker parecem ter ocorrido em Buenos Aires, capital argentina. As duas me contaram que a passagem pelo Uruguai foi pouco alardeada pelos uruguaios, uma vez que os mesmos já conheciam os “shows de travesti” nas casas noturnas da cidade. Em Buenos Aires, falaram as duas, é que as “travestis” se constituíam em uma novidade, pois ainda não havia registros de shows envolvendo-as no elenco, nem mesmo no Teatro de Revista argentino. Foi nesse contexto de ansiedades que o grupo chegou a Buenos Aires. Apesar da inquietude dos argentinos para conhecer as “travestis” brasileiras, a entrada no país não foi tão fácil como havia sido no Uruguai. Elas chegaram em 1972, durante o governo de Alejandro Agustín Lanusse, ditador que ocupou o cargo de presidente de 1971 a 1973. Para receberem o permiso, como Yeda Brown e Susy Parker se referem à autorização para trabalhar no país, foram submetidas a um exaustivo escrutínio de suas capacidades artísticas. Segundo contaram as duas, elas foram obrigadas a fazer um show para um público

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formado pelos altos cargos militares daquele país. Ao fim do espetáculo, o grupo recebeu a autorização para atuar nos teatros de toda a Argentina. O primeiro teatro a receber o grupo foi o El Nacional, localizado na Avenida Corrientes, no coração cultural de Buenos Aires. Como nesse teatro já estava em cartaz um espetáculo produzido com vedetes argentinas, a trupe de Les Girls foi encaixada dentro do referido show, com um período de tempo de 45 minutos, uma espécie de atração especial do espetáculo. Yeda Brown e Susy Parker contam que este curto período de tempo foi o suficiente para lotar o teatro com uma plateia que parecia estar ali unicamente para ver a trupe de “travestis”. A Revista era Neron vuelve. Trata-se de uma espécie de paródia saudosista do governo do antigo presidente da República Argentina, Juan Domingo Péron, cujo nome na peça foi transformado em “Neron”. A montagem contou com a atuação de Adolfo Stray, prestigiado ator argentino reconhecido por sua participação em Revistas. Além do teatro El Nacional, Susy Parker, assim como outras que acompanhavam a trupe, transitaram por diferentes boates de Buenos Aires, tais com a Casa de Lince e o Rugantino51. Imagem 16 – Impresso do espetáculo Les

A circulação das “travestis” não ficou Girls, no Teatro Nacional, em Buenos circunscrita à capital: as cidades costeiras de Mar del Aires, em 1972. (Fonte: acervo pessoal de Susy Parker).

Plata

e

Bahía

Blanca

também

constituíram

importantes mercados pelos quais o fenômeno “travesti” foi entendido como “espetáculo de consumo”. Nessas cidades elas fixavam residência temporária, até serem convidadas para irem para outro local. Como afirmaram Yeda Brown e Susy Parker, onde quer que elas se apresentassem, conseguiam encher as cadeiras dos teatros ou das boates. A experiência dessas “travestis” nesses países latino-americanos serviu de trampolim para algumas delas partirem para países da Europa. Foi o caso de Yeda Brown, que viajou de Buenos Aires para Barcelona, lá fixando residência. Susy Parker seguiu o mesmo itinerário. A viagem para a Europa provocou rupturas definitivas na trajetória de vida de muitas das 51

Muitos dos impressos contendo a propaganda dos shows de Yeda Brown e Susy Parker foram guardados por elas, o que facilitou o exercício de lembrar durante a condução das entrevistas. Parte desse material foi fotografado por amigos das duas e publicado em álbuns de fotos virtuais no Facebook. Agradeço a Rita Colaço pelas fotografias a mim disponibilizadas para a construção da trajetória de vida de Susy Parker e Yeda Brown.

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“travestis” dessa geração. Algumas como Yeda Brown optariam pela cirurgia de “mudança de sexo”. Muitas outras fariam uso de técnicas corporais diversas, sem passarem pela famosa cirurgia acima aludida. Mais do que as transformações cirúrgicas, a viagem para a Europa implicaria uma mudança no self dessas pessoas. Passarei a uma análise dessas mudanças nas linhas que se seguem.

2.3 – A viagem e o seu retorno: o début das “travestis profissionais” na Europa

O furacão que tira Dorothy Gale do Kansas e a leva para um mundo maravilhoso, onde os sonhos da jovem menina ganham materialidade: esse é o início de uma das mais famosas histórias infantis do século XX. O Mágico de Oz52, filme de 1939, traz consigo uma metáfora interessante que ajuda a pensar o deslocamento espacial e subjetivo de indivíduos que se sentem “fora do lugar”. Na narrativa do filme, esse deslocamento é provocado pelo profundo descontentamento promovido pela incompatibilidade entre as expectativas da menina e a realidade na qual estava inserida. Essa incompatibilidade entre projetos de vida e expectativas sociais se manifestava na trajetória de vida de muitos homens e mulheres que não se ajustavam aos padrões sociossexuais hegemônicos na virada do século XIX para o XX. Sugada por um turbilhão que a transporta para fora desse universo em tons sépia, Dorothy se vê em um mundo colorido, cercada de seres diferentes e fantásticos. Saída das pradarias do Kansas, encontra o Mundo de Oz que, para além de sua dimensão onírica, é um mundo cosmopolita onde diferentes povos se cruzam. A busca pela Cidade das Esmeraldas e pelo Grande Mágico de Oz – o desafio infligido a Dorothy para voltar ao Kansas – são uma alegoria que ajuda a pensar acerca da procura de jovens não adequados à norma heterossexual pela “grande cidade”, que, além do arco-íris, promete uma vivência mais adequada aos seus modos de vida não sancionados pelas regras sociais. Essa busca não apenas implicava um desejo de sair do profundo silêncio imposto a suas sexualidades não apresentáveis por grupos de convívio, como a família e a vizinhança, mas também um encontro de si mesmo através da aproximação com semelhantes que se encontravam dispersos. Muitos autores brasileiros (GREEN, 2000; GUIMARÃES, 2005; FIGARI, 2007) e estrangeiros (CHAUNCEY, 1994, HUMPHREYS, 1979; WESTON, 2003) chamam a 52

Filme baseado no livro do escritor norte-americano L. Frank Baum. O livro tornou-se peça da Broadway e em 1939 ganhou uma versão cinematográfica, protagonizada por Judy Garland.

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atenção para a migração de homens e mulheres que compartilhavam o desejo sexual por outros iguais para cidades grandes. O sociólogo norte-americano Humphreys (1979) classifica de “êxodo homossexual” esse deslocamento de pessoas “homossexuais” de cidades com menos densidade populacional – e também comandadas por uma moral mais fechada – para os grandes centros urbanos. Eribon (2008) afirma que esse afluxo se constitui como uma mitologia no imaginário coletivo da “homossexualidade”, provocando uma fantasmagoria do “outro lugar” entre as pessoas que se identificam como “homossexuais”. Esse fenômeno pode ser identificado, sobretudo, através das trajetórias individuais dessas pessoas, evidenciadas por pesquisas que identificavam que elas quase sempre não eram nascidas nesses grandes centros urbanos (WESTON, 2003). A literatura antropológica sobre a vida nas grandes cidades chama atenção para esses fluxos populacionais que possibilitaram a constituição de diferentes existências culturais em uma mesma área geográfica. A cidade aparece nesse tipo de literatura como uma “unidade simbólica”, expressão consagrada por Simmel (1973), cuja extensão funcional extrapola fronteiras físicas determinadas pela geografia e pela demografia. Sua capacidade globalizante ofereceria espaços e situações privilegiados para a realização de uma dada liberdade, cujos reflexos se expressariam em uma ampliação das possibilidades de movimentos, deslocamentos, encontros, trânsitos, fixações e derivas (PERLONGHER, 1987). A “grande cidade” – como uma construção analítica – ligaria mundos distintos, às vezes até opostos entre si. Contudo, também ofereceria a possibilidade de “trânsito entre mundos”, uma vez que proporcionaria aos seus habitantes “passar rápida e facilmente de um meio moral a outro, e encoraja a experiência fascinante, mas perigosa, de viver ao mesmo tempo em vários mundos diferentes e contíguos, mas de outras formas amplamente separados” (PARK, 1973, p. 62). Por acolher essa diversidade de mundos, é uma característica da cidade oferecer de forma relativamente fácil aos seus habitantes um mundo no qual se sintam à vontade, pelo qual se sentem atraídos. A “atração da metrópole”, como definiu Park (1973), encontra explicação nessa possibilidade de acolhimentos, de encontros, de identificações com outros indivíduos que compartilham de um mesmo “código moral divergente” (PARK, 1973). Um componente que acentua essa atração é o “anonimato relativo” (VELHO, 2003) atribuído aos grandes centros urbanos. Atraídos por essas e outras possibilidades que a cidade propicia saíram muitos jovens – como no turbilhão que levara Dorothy do Kansas – de suas realidades em tons sépia, abandonando suas famílias de origem e antigas redes de relações para integrarem novas redes de convívio e afeto. Diferentes símbolos associados à cultura

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urbana contribuíram para a construção desse imaginário acerca da relação das sexualidades não normativas com as grandes cidades. O cinema foi certamente um deles, sobretudo em razão de seu mais marcante produto cultural: as divas. Aqui no Brasil, os jornaizinhos que circulavam nas turmas de “bichas” e “bofes” cumpriram um papel importante na construção desse imaginário, fazendo circular informações das “liberdades” permitidas nas nossas duas maiores capitais: Rio de Janeiro e São Paulo. Em um dado momento, a cidade tornou-se ponto central de uma sociabilidade que articulava pessoas de diferentes regiões que se associavam em função de um marcador específico – o amor por iguais. Essa sociabilidade fazia circular informações, pessoas, símbolos e objetos que dotavam de sentido as sexualidades não normativas. Certo imaginário foi se constituindo em torno de cidades onde supostamente viviam-se mais abertamente as relações eróticas entre iguais, e uma dessas cidades era Paris. Paris era, certamente, a cidade mais procurada e cobiçada por esses indivíduos que viam no glamour da Cidade-Luz o contexto favorável para vivenciar o seu momento de glória. Jane Di Castro foi uma das muitas “travestis” que realizaram o sonho da viagem internacional. Ela, assim como Rogéria, Marquesa e Divina Valéria, conheceram o fausto do Carrossel de Paris, do Madame Arthur e do Moulin Rouge, casas de shows disputadas por artistas de diferentes partes do mundo. Jane Di Castro53 conta: O maior mercado de trabalho para o travesti é Paris, em termos de tudo, pois lá é a cidade maravilhosa das bonecas. Infelizmente este mercado vai acabar, pois existe em Paris travestis que não têm a cabeça feita para enfrentar a barra diária da CidadeLuz (Jane Di Castro).

Se durante o carnaval o “fazer travesti” era integrada ao contexto lúdico dos bailes e das festas de rua, essa prática se transforma com a ida de algumas dessas pessoas para a Europa. Apesar do relativo sucesso dos “shows de travestis” materializado por Les Girls, essas pessoas continuavam dividindo as suas vidas entre a diva do palco e o “boyzinho” cotidiano. Foi somente quando começaram a circular pela Europa que essa relação se modificou. Divina Valéria contou que só começou a se vestir regularmente com roupas convencionados como do outro sexo quando chegou à Europa. Sua primeira experiência fora do Brasil foi no Uruguai, após já ter estreado Les Girls, onde teria se apaixonado por um rapaz, lá fixando residência por um período. O primeiro país que visitou fora da América Latina foi a Espanha, chegando à cidade de Barcelona em meados de 1969.

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BITTENCOURT, Francisco. Brasil: campeão mundial de travestis. Lampião da esquina, Rio de Janeiro, a.03, n. 32, jan. 1981.

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Lá foi surpreendida pela ditadura de Francisco Franco, a qual, segundo ela, proibia shows com “homens vestidos de outro sexo” nos palcos espanhóis. Divina Valéria conta que chegou a fazer show “desmontada”54 nesse período, pois tinha que sobreviver de alguma forma. Ela afirma que conseguiu uma autorização especial para “fazer travesti” em uma casa de espetáculos chamada Sena. Ela conta que obteve grande projeção, sendo, em um dos shows que fez, assistida por Coccinelle, a famosa transexual francesa que ganhou notoriedade por ser a primeira a ser “operada”. Coccinelle ficou curiosa ao saber que existia “uma bicha não operada fazendo travesti” nessa casa. Ao assistir à sua apresentação, Divina Valéria afirma que a famosa transexual gostou e logo ficaram amigas. Na ocasião, Coccinelle a aconselhou a partir para Paris, posto que, segundo ela, lá poderia se apresentar como quisesse, sem que sofresse a intervenção das forças policiais franquistas. Assim, a famosa Coccinelle fez uma carta de apresentação para Divina Valéria performar no Carrousel de Paris, onde foi recebida. Lá, Divina Valéria entrou em contato com um mundo cosmopolita povoado de personalidades importantes que ampliaram o seu “campo de possibilidades”, mas, principalmente, começou a se relacionar com outras iguais que “se transformaram”. O Carrousel era glorioso, né, porque no Carrousel frequentava les tout Paris. O Carrousel era lotado todo dia, com as pessoas mais importantes, fosse brasileiro ou de toda a parte do mundo. É como se fosse o Lido, o Moulin Rouge, né? Então, era um espetáculo só de travestis, todas muito maravilhosas, ali você tinha holandesa, espanhola, grega, alemã, brasileira era pouca. Tava eu, no momento estava eu. Depois chegou Rogéria, é porque eu cheguei no Carrousel, aí a Rogéria que estava na África, em Moçambique, por aí, veio para a Espanha. A Rogéria, ao vir para a Espanha, eu já estava em Paris. E aí parece que a Espanha foi liberando o que eu não pude fazer já estava podendo fazer. Aí a Rogéria aproveitou essa fase, e aí eu me comunicando com Rogéria fiz contato para ela vir para Paris. Aí ela veio para Paris, também para o Carrousel. E aí... Mas no Carrousel eu e Rogéria trabalhamos pouco juntas, porque ela ia em tournée para um lado e eu ia em tournée para o outro. Porque o Carrousel eram mais de trinta artistas e sempre tinha tournée viajando pelo mundo. Eu fui pro... Ah, eu fui para tanta parte, eu viajei, eu fui até o Japão, Teerã, Beirute, Istambul, Jacarta, Hong Kong, ah, muitos lugares e toda a Europa. Por que tinha tournée para todo o lado. Então foram aqueles anos que eu vivi lá, que eram os anos 70 e que eu fazia isso e o Carrousel divino, porque ali também conheci muitas personalidades: Maria Callas, Jane Monroe, Jean Seberg, tanta gente... (Divina Valéria).

Já Rogéria experimentou o début internacional na África portuguesa, tendo passado uma temporada de um ano e dois meses em Luanda, em Angola. Ela foi para a África seguindo a Companhia de Dinis Duarte, após uma temporada bem-sucedida no Teatro Rival, no Rio de Janeiro. De acordo com entrevista concedida ao jornal O Pasquim, em 1973, Rogéria confidenciou que em Luanda sua arte não fez o sucesso que tinha feito no Brasil. De acordo com ela, o “transformismo” não foi bem recepcionado pela plateia, posto que “a 54

Categoria nativa para se referir ao fato de estar usando roupas consideradas em conformidade ao sexo designado no nascimento.

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África portuguesa não é Lisboa”, destacou taxativa. Nesta entrevista, Rogéria afirma que a Companhia de Dinis Duarte buscava conectar o seu espetáculo a um certo imaginário do que era o Brasil. A música popular brasileira, as “mulatas” e ela, a “travesti”, eram itens que faziam parte desse “negócio de Brasil”, expressão que ela mesma adota. Para Rogéria, a Europa se abriu através da cidade de Barcelona. Foi lá que ela viveu seis meses e meio na casa de Coccinelle, trabalhando como “ator transformista” na noite. O embarque para Paris se deu com o apoio de Coccinelle, que lhe entregou uma carta de apresentação endereçada ao Monsieur Marcel, dono do Carrousel de Paris. Rogéria afirmou que jamais usou esta carta, uma vez que acreditava que o seu talento era o suficiente para conseguir penetrar no staff da casa de espetáculos. Diferentes de outras iniciantes que, como ela, começavam no Madame Arthur, Rogéria revela ao jornal O Pasquim que estreou de imediato no Carrousel, pois havia se destacado nas audições pelo fato de saber cantar. Assim como Divina Valéria, Rogéria interage com um mundo novo, repleto de informações, indivíduos e possibilidades. A Paris da década de 1970 fervilhava de novas tendências que impulsionavam mudanças nas convenções sociais. Após maio de 1968, a juventude passou a dominar a cena cultural, deslocando a política para outras dimensões da vida social, tais como o corpo, a sexualidade, a música e a moda. Simultaneamente, a cidade convivia com as novas ideias importadas dos Estados Unidos, que via eclodir movimentos identitários, tais como o feminista, negro e gay. Todas essas mudanças afetavam de formas distintas as vidas dos indivíduos que lá conviviam. Localizado na Rue Vavin55, Montparnasse56, o Carrousel de Paris ocupa um lugar de destaque no imaginário de uma geração de pessoas que hoje se conhece como “travestis”. Naquele espaço, entre um show e outro, essas pessoas iam construindo uma percepção de si que transbordava os homens “em travesti” do carnaval brasileiro. O Carrousel constituiu um epicentro onde se podia obter informações sobre transformações corporais e até mesmo conquistar um posto de trabalho nas inúmeras tournées realizadas pelo cabaré (BARBOSA, 2015). Era lá também que se conhecia a rota do “turismo

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O Carrousel de Paris conhecido por Divina Valéria, Rogéria, Marquesa e demais “travestis” dessa geração permaneceu na Rue Vavin de 1962 a 1985, ano em que fez vez a sua última apresentação, na qual estava presente Divina Valéria. Antes de 1962, o cabaré situava-se no 40 da Rue du Colisée, no 8e arrondissement. A partir de 2000, o Carrousel se transformou em um moderno musichall, agora situado no 40 da Rue Pierre Fontaine, no 9e arrondissement, mantendo a decoração dos tempos de outrora. Fonte: CARROUSEL DE PARIS. Site. Disponível em: < http://www.carrouseldeparis.fr.>. Acesso em: 14 de março de 2014. 56 Divina Valéria afirmou que a Rue Vavin estaria localizada em Montparnasse, famoso bairro parisiense. Contudo, a sua localização no mapa de Paris é no Quartier Notre-Dame-des-Champs, no 6e arrondissement.

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cirúrgico” (BARBOSA, 2015), ou seja, os locais e especialistas médicos que ofereciam cirurgias que promoviam a mudança corporal. Mais do que um nicho de mercado para as “travestis”, os cabarés como o Carrousel e o Madame Arthur constituíam uma rede de solidariedade entre essas pessoas. Eram nesses espaços que muitas encontravam uma “família de escolha” (WESTON, 2003), composta por indivíduos com histórias de vida semelhantes, na qual era possível depositar expectativas de cooperação e lealdade.

Imagem 17 – Impressos do Carrousel de Paris e do Madame Arthur, data não identificada (Fonte: J. D. Doyle Collection).

Mais do que o Madame Arthur, o Carrousel de Paris era o ponto cardeal de uma rede de circulação na qual se movimentavam essas “travestis” pela Europa. Essa rede envolvia outras casas noturnas de Paris, como o próprio Madame Arthur e também o Trafalgar, mas se expandia e ramificava para cidades como Berlim, Barcelona, Madrid, Sevilha, Valença, Nice, etc. As tournées do Carrousel também se ampliavam para cidades fora do eixo europeu, tais como Jacarta, Hong Kong, Casablanca e Teerã. Os shows da casa eram produzidos a partir da combinação de diferentes estilos, tais como o Music Hall, o Burlesco e o Vaudeville. Havia strip-tease, dublagens, música ao vivo acompanhada de orquestra57, esquetes e danças 57

Divina Valéria apresentava-se cantando ao vivo no cabaré. Além de músicas francesas, ela interpretava criações do cancioneiro popular brasileiro, como O que será (À flor da pele), de Chico Buarque. Tal habilidade a fez ser conhecida no Carrousel como a “cantante”. Uma das únicas apresentações que consegui coletar de

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individuais. As atrações que despertavam mais o interesse dos seus frequentadores, e distinguia a casa de outras que evocavam a boemia estilo Belle Èpoque, como o famoso Moulin Rouge, eram as suas famosas vedettes, todas “travestis”. As “travestis” eram o ponto alto do local, sendo inclusive retratadas no material produzido para sua divulgação, como é observado nas imagens dedicadas a Coccinelle e Tracy-Lee, coristas no Carrousel na década de 1960, no programa de apresentação elaborado pela casa (Imagem 18).

Imagem 18 – Coccinelle e Tracy-Lee, primeira geração do Carrousel de Paris (Fotografia: Marti. Acervo: J. Doyle).

As fotografias exibidas pelo Carrousel para divulgar a sua principal atração ressaltavam a metamorfose de rapazes de aparência comum em mulheres elegantes e portadoras de uma beleza excepcional. Tal jogo de contrastes atendia ao objetivo de atrair um público curioso em saber como tais transformações eram possíveis, mais até do que as habilidades artísticas dessas pessoas no palco. A “metamorfose de gênero” desses rapazes era então percebida como um “prodígio” a ser exibido, uma “maravilha”, como na expressão de Leite Júnior (2006). A propaganda do Carrousel assumia esse jogo de contrastes como

Valéria no período em que esteve trabalhando no Carrousel encontra-se neste canal do YouTube: .

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matéria-prima de seus shows, semelhante à lógica dos

freak

shows

norte-americanos

(LEITE

JÚNIOR, 2006). Era justamente na habilidade de confundir o público que essa propaganda era organizada. Aparentemente, a geração posterior ao Carrousel da década de 1960 já não foi mais divulgada a partir desse jogo de contrastes. Foi antes privilegiado

o

resultado

perfeito

dessa

metamorfose, sem nenhuma alusão visual à sua performance de “boy”. Só se sabia que era uma “travesti” por conta da fama do cabaré nesse tipo de mister. A divulgação das artistas da geração de Jane, por exemplo, que chegou um pouco depois Imagem 19 – Jane Di Castro para o Carrousel de Paris. (Fotografia: acervo pessoal de Jane Di Castro).

de Divina Valéria e Rogéria ao Carrousel, já na década de 1970, parece fazer uso mais intenso da

exibição do corpo, sobretudo nu, talvez para mostrar ao público não mais o contraste entre antes e depois, responsável por provocar espanto, mas o corpo com um resultado final, sem marcas visíveis de ambiguidades. Outro sentido sobre a adoção do nu nessas fotografias é oferecido por Jane Di Castro. Em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1983, ela afirma que o Carrousel que conheceu havia sido convertido em uma vitrine de prostituição. Segundo ela, ficar nua era um critério de elegibilidade da casa, aquelas que apenas queriam cantar não conseguiam mais fazer carreira por lá. Em função disso, ela conseguiu emprego no Trafalgar, outra casa que reunia as características dos antigos shows do Carrousel. Tal exibição parece se relacionar com o contexto de intensa divulgação popular daquilo que Leite Júnior (2008) chamou de “milagres da tecnologia médica”: a ideia de que é possível “trocar o sexo”. A partir das análises de Meyerowitz (apud LEITE JÚNIOR, 2008) no contexto norte-americano, o autor ressalta o surgimento de uma nova categoria de “maravilhas”, agora não mais assimiladas às aberrações, mas antes a seres plenamente modificados pelas modernas técnicas médicas que vinham se desenvolvendo na Europa e nos Estados Unidos. Diante desses “milagres”, as formas de exibição desse corpo não mais recorriam ao contraste masculino/feminino para aguçar a curiosidade da plateia, mas começam a ser informadas pelo jogo de revelação e dissimulação, como sugere Williams (2012), provocando a imaginação do espectador, sobretudo para uma região específica: a

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genittália. Analissarei esse joogo mais à frente, mass é interessaante observaar como as fotografiass de Jaane Di Casttro e Yeda Brown paraa o Carroussel de Pariis são exem mplos ilustraativos dessaa novaa forma de exibição e desste corpo “pprodígio” (L LEITE JÚNIIOR, 2006). Com

essaas

fotoggrafias do Carrousel C d de Pariss,

as

“travestiss”

consttituíam um portfólio, a que o carimbbo da cassa confe feria

prestíígio,

como

podee ser vistoo ainda naas Imaggens 19 e 20, 2 nas quaiis Jane e Yeda Brrown posam m para uma das muitas m fotoos B para o Carrousel dde Paris (Fon nte: acervo publiicitárias do local. Atuaar Imagem 20 – Yeda Brown pessoal de d Yeda Brown n).

no Carrousel C im mplicava seer reconnhecida com mo artista competente. c . Todos os artistas quee compunhaam a equipe possuíam m fotoss carimbadaas pela cassa, as quaiss ilustravam m os progrramas dos espetáculoss. As fotoss ressaaltavam a hiiperfeminiliidade das “ttravestis”, produzida p soobre um corrpo erotizad do. Acreditoo que em função de uma auusência de formalizaçã f ão desse meercado de eespetáculos,, as fotos e progrramas do Carrousel C e do Madam me Arthur possibilitara p am a constrrução de um m currículoo docuumentado paara essas peessoas58. As circuulações mottivadas peloo Carrouseel ganharam m materialiddade em um m conjuntoo diverrsificado dee agendas cujos c comprromissos see deslocavaam de um ppolo consid derado maiss glam mourizado, como c os evventos ondee estavam presentes o jet set intternacional em festas,, jantaares, locais da moda, etc., e enquannto no outro o polo se concentrava c am aquelas circulaçõess menoos divulgaddas, mas quue marcaram m profundam mente a traj ajetória de vvida das meesmas. Noss dadoos a que tivve acesso, as a circulações dessa geeração de “ttravestis” ppor esse uniiverso “nãoo oficial” foram tratadas coom certa reeserva. O conjunto c deesse materiial – jornaiis, revistas,, entreevistas à impprensa, etc. – permite inferir i que existia e um silenciamen s nto tácito accerca dessass práticas, talvezz em funçãão de umaa preocupaação de see distanciarrem do “eestigma daa prosttituição”. Os O deslocam mentos e aquuisições desssas “travesttis” dentro dessa rede de relaçõess

58

Alggumas “travesstis” chegaram m a receber uma u espécie de d aposentadoria por conta de sua estadiia na Europa.. Marquuesa, por exem mplo, recebiaa do governo alemão uma pequena p rendda mensal, acrredito que frutto do períodoo em quue trabalhou na n Alemanha, tendo contribuuído com o sistema de proteção social alemão.

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é um exercício importante para compreender a forma como elas construíram a sua trajetória artística e de vida. A experiência no Carrousel transcendia Paris, e um exemplo disto foram as tournées internacionais a que elas eram solicitadas a participar. Marquesa, apesar de não ter iniciado sua carreira na Europa, pois foi primeiro para Nova York59, é um exemplo da circulação do Carrousel de Paris pelo mundo, sobretudo na própria Europa Ocidental. A tournée de Gay International Show marcou a presença de Marquesa nos palcos espanhóis. Lá, ela esteve, inclusive, na companhia de Coccinelle fazendo shows. Os impressos promocionais de suas participações em diferentes casas noturnas europeias ilustram essa circulação.

Imagem 21 – Impressos jornalísticos veiculados na imprensa espanhola divulgando o Gay International Show, espetáculo do Carrousel de Paris com Marquesa (Fonte: acervo pessoal de David Vilches).

A publicidade produzida sobre os “shows de travestis” a partir desses cartazes é marcada pela espetacularização da ambiguidade de gênero, situação não muito diferente do

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Marquesa trabalhou no Club 82 quando passou uma temporada em Nova York. Trata-se de um bar underground frequentado por drags aberto em 1958. Funcionou até 1978 na 4th Street, em Nova York.

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que ocorria nos shows brasileiros. Como o show International Set alguns anos antes no Brasil, o Gay International Show, do Carrousel de Paris, continuaria vinculando esse tipo de entretenimento a uma experiência moderna e cosmopolita, tal como sugere ainda o destaque dado à ascendência internacional de algumas de suas artistas. Nesses shows, a ambiguidade de gênero é percebida com um negócio lucrativo, como pode ser visto nas figuras presentes em dois desses cartazes: uma possui um sinal de interrogação na região da genitália e a outra possui metade do corpo caracterizado com elementos femininos e o outro masculino. O próprio “corpo travesti” é o espetáculo. É sobre esse corpo que recai a curiosidade do expectador, assentada nessa ambiguidade, uma “maravilha” (LEITE JUNIOR, 2008). Tais imagens sugerem ainda um jogo entre revelação e dissimulação, semelhante ao que Williams (2012) chamou de screening sex ao analisar a história da exibição do sexo nos Estados Unidos. Para a autora, o verbo exibir, examinar (screen), possui um duplo sentido. Ao mesmo tempo que implica revelar algo, ele também possui um significado relacionado ao esconder. Essa dissimulação presente nos filmes pornográficos abre um espaço, segundo Williams (2012), a ser preenchido pela imaginação do expectador. Este é um ponto que é de interesse reter. As imagens provocadoras dos impressos parecem brincar com o público de revelar e esconder, estimulando a imaginação sobre esse corpo indecifrável. Talvez fosse por acionar essa imaginação que esse tipo de shows se tornou tão bem-sucedido entre as décadas de 1960 e 1970. Outro dado importante no conjunto desses impressos é a associação estabelecida entre as noções de luxo, sexy, humor e a ideia de frivolidade. Tais características sugerem uma “estética do deboche”, através da qual os “corpos travestis” são produzidos como itens de exibição da ambiguidade de gênero: são corpos exotizados com vias a comercialização. Essa exotização produz um corpo para venda através do humor e do riso que evoca. Associados a esses elementos, acredito que a curiosidade também foi um sentimento que fez com que as plateias afluíssem a estes shows. Nenhum destaque internacional é dado à Marquesa, talvez em função de sua dupla nacionalidade, já que seus pais eram franceses. Em um dos materiais de divulgação da sua estadia em Barcelona, ela é identificada como carioca, mas também europeia. Outro dado que chama atenção é o uso da categoria “gay” exibida no título do show, marcando assim uma indistinção de sentidos entre “travestis” e “gays”, uma nova categoria que emergia no contexto europeu, importada dos Estados Unidos. A noção de “internacional” é recorrente nas formas de exibição dos “shows de travesti” nos diferentes impressos com que tive contato. Sugiro que tal exibição seja um

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recurso adotado pelo empresariado do entretenimento na tentativa de provocar a sensação de uma diversidade de artistas. Mesmo divulgando a ideia de um show internacional, nenhum dos impressos que recolhi associava a imagem das “travestis” a estereótipos nacionalistas. No caso das “travestis” brasileiras, não pude observar, em imagens ou discursos, ideias que reforçavam representações desses indivíduos como potencialmente mais sensuais, tal como a literatura sobre o tema tem chamado a atenção (PISCITELLI, 2013). A ideia de uma “brasilidade” com seus conteúdos de exotização é abandonada, assim como ocorre com outras nacionalidades, em favor de uma percepção de que o exótico, nesse contexto, é menos a singularidade étnica do que o próprio corpo metamorfoseado. Um dado, contudo, merece destaque: a predominância de Carmem Miranda nas escolhas feitas por essas “travestis” em seus repertórios de shows. Rogéria, em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1973, disse que no período em que estava no Carrousel todas as brasileiras que lá faziam show tinham algum número de Carmem Miranda em suas composições, talvez na tentativa de acionar uma “brasilidade” a partir da imagem da famosa cantora. Além das cidades espanholas, Marquesa fez temporadas no Cabaret Chez Nous e no Chez Romy Haag, ambos em Berlim. Esta última foi uma importante casa noturna da capital alemã, aberta em 1974 por Romy Haag, famosa transexual holandesa que fixou residência na Alemanha. O Chez Romy Haag era, na década de 1970, um reduto dos apreciadores da disco music na capital alemã. Haag ficou conhecida mundialmente em função de seu romance com David Bowie, que se mudou para Berlim, em 1976, por causa dessa relação. Haag foi musa inspiradora de Bowie nos anos em que durou o romance. As produções60 do Chez Romy Haag eram bem elaboradas e contavam com figurinos luxuosos. As performances incluíam dublagem e danças coreografadas, assim como esquetes curtas, nas quais o humor e a ironia marcavam a interação das artistas com o público, muito semelhantes às modernas boates dedicadas ao público LGBT. Havia ainda espetáculos mais longos, como o Las Estupidas, do qual participou Marquesa, em 1983. O conjunto desses shows conjugava performances de “travestis” com homens adotando um visual ambíguo, muito semelhante ao da trupe brasileira Dzi Croquettes. Cintas-liga, meia-calças, maquiagem, sungas cavadas e bigodes marcavam as aparições desses homens no palco. A nudez masculina também era outra característica marcante das produções do Chez Romy Haag. A vida noturna em espaços como o Carrousel, o Madame Arthur e o Chez Romy Haag proporcionou a essas “travestis” conviver com um cardápio diversificado de pessoas – 60

Alguns dos shows produzidos no Chez Romy Haag, incluindo aqueles nos quais Marquesa trabalhou, podem ser vistos pelo YouTube: .

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sobretudo o jet set internacional. Considerados espaços underground, essas casas noturnas tinham como fregueses artistas e indivíduos ricos, alguns vinculados a importantes famílias da Europa. Tal presença produzia reconhecimento a esse gênero de espetáculo e às artistas que o comandavam. Simultaneamente, conhecer pessoas ilustres proporcionava construir um capital social que, compondo suas narrativas sobre sua temporada europeia, ajudaria a consolidar uma imagem de glamour sobre si mesma quando elas voltaram ao Brasil. Outro dado marcante da circulação proporcionada pelas redes da vida noturna europeia é aquela que se relaciona ao bas-fond. De acordo com Bispo (2013), a expressão francesa basfond se relaciona ao “submundo, ao não oficial, às práticas que eclodem por baixo dos olhares reguladores, que castram comportamentos indesejáveis” (BISPO, 2013, p. 99). Tal formulação permite vislumbrar um campo de deslocamento tensionado por valores e lógicas próprias, posto que relacionado a regiões fronteiriças, perigosas e contagiosas. Kullick (2008), em seu livro sobre as “travestis” da cidade de Salvador, Bahia, destaca essa dimensão, que considera sensacionalista, das histórias de vida das suas interlocutoras. Por outro lado, tal incursão ao bas-fond dos nightclubs europeus daquele período pode, seguindo as formulações de Díaz Benítez (2010) acerca da noção de redes sociais, ajudar a compreender o cruzamento entre esse mundo e outros contíguos – espaços porosos através dos quais essas “travestis profissionais” construíram para si uma carreira considerada de sucesso na Europa. Foi através da circulação no bas-fond, por exemplo, que foi possível se conectar a personalidades, como foi a relação de Yeda Brown com o pintor espanhol Salvador Dalí. Tal conexão foi instituída por um sistema de trocas no qual o que estava em jogo era o valor simbólico da imagem do pintor para Yeda, que construía a sua carreira na Espanha. Yeda chegou a pertencer a entourage de Dalí circulando com o pintor por diferentes espaços, deixando-se fotografar ao lado dele para veículos espanhóis. Yeda conquistou com esta tarefa não somente a confiança de Dalí, mas, principalmente, conseguiu projetar para si a sua influente imagem – consolidando sua carreira como a “última musa de Salvador Dalí”, título que ainda hoje lhe confere notoriedade. Mas o bas-fond proporcionou também trocas simbólicas de outros gêneros. Compartilhar o glamour dos espaços considerados impenetráveis por simples mortais era um momento singular na trajetória de vida dessas “travestis”. Divina Valéria falou das muitas vezes que, ao final dos shows do Carrousel, foi convidada por diferentes cavalheiros para acompanhá-los aos seus hotéis, sempre de cinco estrelas, destaca. Curtos passeios a localidades destacadas pelo luxo, como a Riviera Francesa, também faziam parte desses itinerários de glamour. Foi assim que Divina Valéria conheceu homens ricos e perdulários

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que ofereceram a ela não somente um estilo de vida faustoso, mas também bens materiais como joias, roupas caras e os tão desejados casacos de pele. Mais do que os valores monetários investidos nesses objetos, as relações delas com esses homens e o seu círculo social se destacam como o bem simbólico mais valioso. São essas conexões, mais do que os bens materiais que conquistaram, que ganham importância quando elas falam de suas trajetórias. Tal infiltração do simbólico no conjunto dessas trocas atualiza as contribuições de Mauss (2003) acerca da natureza das trocas nas sociedades. Quando falam de si, essas “travestis” não destacam as conquistas materiais que tiveram ao longo da vida, mas antes as relações que construíam. Os “cavalheiros”, como destaca Divina Valéria, proporcionaram uma circulação de bens materiais e simbólicos em torno delas, agregando valores e sentidos às suas trajetórias e carreiras. Quanto à associação ao imaginário da prostituição, essa categoria faz pouco ou nenhum sentido para algumas “travestis” dessa geração, sobretudo para Divina Valéria e Rogéria, consideradas pioneiras. O ingresso nos mercados do sexo era mais uma possibilidade em meio a outras que se colocavam durante suas estadias na Europa. A experiência com os “cavalheiros” era mais vivenciada na chave da corte amorosa à La Traviata61, do que do sexo pago no sentido estrito. Tal experiência remete menos a uma ideia de mercantilização do sexo do que a uma lógica da dádiva e da reciprocidade, semelhante àquelas formas de intercâmbios de serviços sexuais analisadas por Piscitelli (2013) em relação às brasileiras envolvidas nos mercados transnacionais do sexo. Para essa autora, as noções correntes de prostituição não contribuem satisfatoriamente para a compreensão das diferentes formas de inserção nos jogos que envolvem sexo e dinheiro. Muitas dessas inserções não assumem a forma contratual do sexo pago, são antes abertas à interpretação dos agentes que participam desses jogos. No caso das “travestis” dessa geração, tais relações eram antes o resultado de uma carreira bem-sucedida do que um recurso para conquistar esta carreira. Os “cavalheiros”, no sentido narrado por Divina Valéria, se interessavam por aquelas que reuniam atributos físicos e que conseguiam se destacar nas apresentações do Carrousel. A lógica do cortejo incluía oferecer-lhes joias, vestidos da haute couture e passeios exclusivos – presentes – com os quais eles podiam negociar sua companhia conjugando uma dinâmica de conquista.

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Ópera de Giuseppe Verdi, baseada no livro A dama das camélias, de Alexandre Dumas. O livro conta a história de amor entre um jovem estudante, Armand, com a cortesã mais procurada de Paris, Marguerite Gaultier. Na ópera de Verdi, estes personagens são convertidos em Alfredo e Violetta. A comparação dos romances dessas “travestis” com La Traviata aqui é oportuna no sentido de que a personagem da cortesã evoca para si uma incapacidade de poder amar, o seu amor é única e exclusivamente pelos bens materiais. Tal característica faz com que seus amantes lhe ofereçam toda a sorte de presentes para dela obter atenção.

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O Carrousel proporcionava ainda outro tipo de circulação, aquela relativa ao recémcriado mundo das transformações corporais. Divina Valéria revela que no Carrousel era possível ter acesso a informações sobre formas de se “transformar”. Com as outras “travestis profissionais” que já tinham carreira consolidada, elas puderam ter contato com diferentes estratégias e “tecnologias de gênero” (DE LAURETS, 1994) para construir seu corpo e sua performance: processos de hormonização, cirurgias para corrigir imperfeições, formas de apresentação de si, etiqueta, etc. Eloína, em entrevista ao jornal Lampião da Esquina, revela as mais variadas possibilidades abertas a elas para transformarem o corpo quando ainda no Carrousel. Ela diz que tomou hormônio e injetou silicone para produzir seu corpo. Fala ainda de uma droga que era moda entre as “travestis profissionais” chamada Amplan. Em entrevista ao jornal Lampião da Esquina de fevereiro de 1980 diz Eloína: O Amplan só é vendido na Europa e nos Estados Unidos. Você consegue a receita com um médico, são umas pílulas. Aí você procura um cirurgião plástico que faz um corte nas duas virilhas e coloca duas dessas pílulas em cada. Aí vem toda a reação. Os cabelos crescem mais, a voz afina, os músculos somem, os seios crescem. Mas isso enfraquece muito o organismo. E não é em todas as pessoas que faz efeito. Depende do organismo de cada um (Eloína).

Uma das primeiras transformações que operavam em seu corpo era abandonar as perucas com as quais trabalhavam nos shows no Brasil, e se permitiam deixar crescer os cabelos, sobretudo resultado da ingestão de hormônios. O uso de hormônio, entretanto, era cercado de histórias, muitas das quais com desfechos tristes. Yeda Brown, por exemplo, afirma que no período em que começou a se hormonizar, com 18 anos, ouvia relatos de colegas nos quais a morte aparecia como o resultado do uso descomedido de hormônios no corpo. Ela me disse que, quando as pessoas de sua época começavam o processo de hormonização, eram tomadas por uma “ansiedade de ser mulher” tão acentuada que algumas tinham como destino a morte. Rogéria também aciona lembranças bastante dolorosas do período em que começou a operar transformações no seu corpo. Para ela, transformar um homem em mulher no palco é tarefa fácil, na realidade que é fogo, revelou ao jornal O Pasquim, em 1973. Ela disse ter chorado muito durante todo o processo. Apesar de atentas ao exemplo de Coccinelle, “operar” ou “mudar de sexo” era a única transformação que foi unanimemente rejeitada por essas pessoas dessa geração com quem tive contato, com exceção de Yeda Brown. Eloína e Rogéria, por exemplo, nunca disseram pensar em passar por essa intervenção. Eloína, quando perguntada pelo jornal Lampião da Esquina sobre essa possibilidade, disse que jamais faria, posto que, para uma pessoa realizar o procedimento, é necessário ser muito “preparado de cuca”, afirmou taxativa. Na mesma

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matéria, ela cita exemplos de outras que fizeram a operação e tiveram desfechos infelizes, tais como morte por infecção no hospital durante o pós-operatório e o suicídio. Eloína mobiliza representações correntes acerca desse tipo de intervenção cirúrgica naquele período e ainda hoje. Dentre essas representações, a mais marcante é aquela que se cruza à ideia de loucura62, fazendo com que as candidatas à operação sejam indivíduos suspeitos de uma demência latente, com o suicídio se tornando sempre uma possibilidade. Rogéria, em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1973, caracteriza Coccinelle como uma pessoa frustrada, uma pessoa com muitos problemas cujos motivos ela atribui serem originados na cirurgia de “mudança de sexo”. Marquesa, em entrevista a um veículo espanhol, afirma que somente tomava hormônios para fazer crescer os seios, mas os produtos também deixavam o seu rosto mais liso. Já Jane Di Castro diz ter pensado operar, mas que foi em função da “má orientação” de uma “operada” que tentou fazer a sua cabeça. As mudanças corporais de Jane foram feitas em Nova York, onde trabalhou uma temporada para conseguir pagar as cirurgias de aplicação de silicone no quadril, nos seios e no rosto. Jane revela, além disso, o lado obscuro desse período de experimentações corporais, no qual, segundo ela, elas serviam de cobaias. Ela explica essa questão falando de uma situação pela qual passou, quando injetou silicone líquido nas pernas, orientação de uma amiga, cujas consequências são até hoje refletidas na sua saúde. Após estes procedimentos, muitas voltavam da Europa com um equipamento corporal totalmente modificado, chegando mesmo a desestabilizar em exuberância muitos símbolos nacionais forjados na “matriz heterossexual” (BUTLER, 2003), tais como a “mulata do carnaval”. Eloína, antes de ser a Eloína dos Leopardos, era a “mulata” que, em 1976, levantou a Sapucaí quando desfilou na frente da bateria pela campeã daquele carnaval, a Beija-Flor de Nilópolis. As experiências dessas “travestis” na Europa podem ser condensadas em dois tipos de aprendizados-saberes que, associados ao fazer artístico, começam a ganhar materialidade nas suas práticas e técnicas corporais. Esses aprendizados implicam uma nova forma de gestão do corpo na qual as cirurgias plásticas e terapias hormonais são as responsáveis por um sex design (PRECIADO, 2008). Preciado, em Testo Yonqui (2008), fala de uma “era farmacopornográfica”, um momento da modernidade capitalista na qual os índices que aferem a produtividade não são mais aqueles da economia fordista, ainda que lá encontre suas raízes, mas sim os relacionados a “todo aquel complejo material-virtual que puede ayudar a la producción de estados mentales y psicosomáticos de excitación, relajación y descarga, de 62

A ideia de loucura associada à cirurgia hoje nomeada de “resignação sexual” ainda é recorrente na visão de mundo de muitas “travestis”, tal como mostram os estudos de Kullick (2008) e Pelúcio (2009).

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omnipotencia y de total control” (PRECIADO, 2008, p. 31). Neste complexo é que se situam os hormônios, medicamentos, terapias, cirurgias, etc. – itens que implicam uma nova forma de governo da subjetividade. Os sucessos das “travestis profissionais” no Carrousel e cá no Brasil são exemplos paradigmáticos do imperialismo “farmacopornográfico”. Aparentemente, esses “sujeitos silicone”, nos termos de Preciado (2008), passam a ser um item iconográfico desse regime, estando a meio caminho entre o Amplan, de que fala Eloína, e a ideia de loucura, da nosografia médica. Porém, essas experimentações não passavam apenas pelo conhecimento das técnicas cirúrgicas e dos novos fármacos para hormonização adotadas pelas “travestis profissionais” europeias, mas também incluíam a adesão a um comportamento elaborado, sobretudo esnobe, que articulava um rico repertório cultural, que englobava arte, teatro, cinema, etc. Mais do que esses elementos, esse repertório cultural compreendia, sobretudo, conhecer pessoas ilustres que pertenciam ao jet set internacional. Isso fica muito evidente nas narrativas de vida de Divina Valéria, Marquesa e Rogéria. Todas elas se reportam a uma constelação de atores, atrizes, cantores, socialites, magnatas e até nobres que conheceram, ou mesmo de que se tornaram amigas ou amantes. Acessar essa rede social permitia a elas operar um “travestismo de classe”, nos termos de Mcclintock (2010), evidenciando os mecanismos simbólicos dessas convenções. Ao mesmo tempo, permitia com que elas habitassem as normas (MAHMOOD, 2006) a partir da incorporação das convenções de classe e gênero, resistindo, dentro destas, aos estigmas a ela associados. Aparentemente, esse capital social tende a atrair sobre elas reconhecimento, invisibilizando a estigmatização aliada à sua experiência social marcada pela injúria. Esse repertório de capitais materializava um “corpo exibível” (RANGEL, 2015), cuja manutenção era feita por uma gestão cotidiana de gestos, atos de fala e de uma performance milimetricamente elaborada. Sobre esse “corpo exibível”, acho interessante destacar um pouco de minhas impressões pessoais sobre a performance dessas pessoas quando tive a oportunidade de realizar entrevistas com algumas delas. Era inevitável perceber o quanto o corpo dessas “travestis” evocava glamour nos gestos mais básicos, como nos movimentos das mãos e no ajeitar dos cabelos. Fascinou-me ver como Divina Valéria fazia uso de um repertório corporal que capitaneava para si uma imagem hiperfeminina e espetacular. Parecia que estava sendo fotografada a todo o momento. Tais observações sugerem que os corpos criados por Divina Valéria, Rogéria e outras dessa geração possui uma memória associada ao contexto onde foram produzidos: o mundo dos espetáculos. Tais processos estão assentados em um treinamento constante da memória,

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desejo e intelecto, como sugere Mahmood (2006), provocando uma relação constitutiva entre aprendizagem corporal e sentido corporal. A mútua interação entre esses dois componentes é analisada por Mahmood (2006) através da concepção aristotélica de habitus. A autora alerta para que não confunda essa noção com aquela elaborada por Bourdieu (2013), uma vez que se trata de uma disposição consciente de reorientação da vontade, a qual provoca o alinhamento entre comportamentos externos e disposições internas (MAHMOOD, 2006). Esses aprendizados, continuando nas linhas da autora, sugerem uma modalidade de ação que se relaciona à forma como as normas são incorporadas e performadas por esses agentes em um dado contexto. Considerando essas referências, é possível afirmar que a ideia de glamour e a performance a ela associada foram importantes itens para o processo pelo qual essas “travestis” performaram a norma e, simultaneamente, a subverteram. Refletindo sobre essas questões, argumento que a aquisição de técnicas corporais associada à formação de capital social foi o principal critério que instituiu fronteiras entre as modernas “travestis profissionais” e aquela prática, considerada grotesca e que ficou no passado, de “fazer travesti”. Outro dado importante relacionado à circulação europeia é a noção de profissionalização contida na expressão “travestis profissionais”. À “travesti profissional” se impõem certos atributos, que passam pelo corpo, comportamento e relações sociais. Mas esses atributos só faziam sentido dentro de uma lógica na qual essas pessoas começam a ganhar existência a partir do discurso produzido por diferentes agentes. Ao analisar um curso no Rio de Janeiro dedicado a formar “mulatas profissionais”, Giacomini (2006) chega à conclusão que a marca e prova da profissionalização como “mulata” estava condicionada à aquisição de certos atributos que não eram inatos, mesmo em se tratando de mulheres negras. Os atributos de que fala Giacomini (2006) são estruturados por um conjunto ordenado de valores e sentidos que oferecem significados ao “ser mulata” – uma “identidade idealizada” que não se completa, segundo ela. Articulando as análises de Giacomini (2006) com aquelas de Corrêa (1996) é possível afirmar que tal “identidade idealizada” é uma invenção construída por discursos médicos, literários e carnavalescos, responsáveis pela produção dessa figura de forma tão singular na sociedade brasileira (CORRÊA, 1996). A ideia de profissionalização se insere nesse processo como um mediador que faz com que corpos sejam materializados como “mulatas”, algo que não depende exclusivamente da cor da pele das envolvidas no curso, mas antes é o resultado de um aprendizado vinculado aos efeitos desses discursos. A profissionalização buscada no curso sugere um aprendizado da

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forma como deve ser uma “mulata estilizada”, cuja brasilidade materializada no corpo será objeto de consumo “tipo exportação”, sobretudo de turistas que para cá afluem. Para as “travestis profissionais”, a ideia de profissionalização se aproxima da lógica do curso para formar mulatas. Construir um corpo cirurgicamente era um momento importante no processo de construção da “travesti profissional”, mas não as profissionalizava. Era necessário um investimento simbólico ainda maior, que se relaciona diretamente à viagem para a Europa e à incorporação de etiquetas relacionadas à classe social e gênero. Reunindo esses atributos que não eram naturais, elas operavam diferentes “travestismos” (MCCLINTOCK, 2010) que as tornavam exibíveis. Tornar-se exibível implicava ser profissional, algo diametralmente diferente das grosseiras exibições de feminilidade que representavam os “homens em travesti”. Para esse fim, o glamour se constituía em um bem simbólico valioso, adquirido a duras penas em função de uma incorporação constante das regras de gênero e classe. Neste sentido, ser profissional era adequar-se a Coccinelle, cuja performance materializava os discursos que a inventaram. Para a geração de Divina Valéria e Rogéria, a noção de “travesti profissional” está intimamente relacionada aos seus processos de construção de si. Na verdade, na trajetória de vida de Rogéria, a noção de “travesti” aparece mais tardiamente, posto que, para ela, a dualidade Astolfo/Rogéria foi constitutiva. Em muitas de suas aparições públicas, Rogéria permite transparecer pouca preocupação em ser definida como “travesti” ou mesmo “homossexual”. De acordo com esses relatos, sua carreira e apresentação de si são dimensões que se imiscuem em uma síntese, que gerou Rogéria: uma “forma de vida” e um artista. Acionando essas duas categorias, Rogéria acredita que teria driblado as situações de preconceito em função do respeito que teria adquirido no palco63. Em entrevista ao programa Canal Livre, da TV Bandeirantes, de 1983, a fala de Rogéria ilustra bem essa percepção de si: “Quando você é artista, realmente, a palavra homossexual, bicha, fica inferiorizada, lá embaixo, porque não me atinge!”. Nessa entrevista, ela ressalta o caráter fluido com que se constrói como indivíduo: transitando entre Rogéria e Astolfo. A circularidade de gênero marca a forma como ela se percebe como um sujeito dotado de agência. Apesar da estadia europeia proporcionar capital simbólico indispensável à construção das “travestis profissionais”, para algumas delas, a viagem implicou pouca ou quase nenhuma ascensão econômica. Rogéria, em entrevista ao Lampião da Esquina, afirma que foi o

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As implicações desse processo no cenário político do moderno movimento LGBT serão problematizadas no Capítulo V.

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regresso ao Brasil, combinado ao capital simbólico conquistado na Europa, que a fez acumular algum recurso material. Não ganhei dinheiro nenhum na Europa. Consegui fazer uma boca maravilhosa, porque eu botei jaqueta na boca inteira, mas foi aqui, com o Dr. Hamilton Mourão, um mineiro divino. Comprei um triplex, mas foi tudo com o dinheiro do Brasil. Mesmo com essa inflação, com esse dinheiro horroroso, que não dá para nada, tudo o que eu consegui foi com dinheiro brasileiro. Mas eu precisei ir antes pra Europa, pra depois voltar e começar a ganhá-lo, tá? (Rogéria)64.

Ao que parece, a riqueza disponível na Europa correspondia aos recursos tecnológicos de transformação corporal e ao capital simbólico, nos termos de Bourdieu (2004; 2013), relacionados à montagem de um corpo-glamour. É possível sugerir que na Europa elas ganhavam dinheiro, mas, ao mesmo tempo, tinham que investir na construção de seus corpos, seja na aplicação de silicone ou outros recursos cirúrgicos, seja na aquisição de um guardaroupa faustoso e requintado, para que assim pudessem dar continuidade às suas carreiras. Era na Europa que elas adquiriam o “talento de ser fabulosa” (OCHOA, 2004). Quando voltou ao Brasil, Divina Valéria assumiu uma apresentação de si totalmente feminina, provocando grande alarde entre diferentes setores da sociedade brasileira da época, principalmente motivado pela imprensa. Eu voltei em 72, eu voltei. Eu voltei, mas eu vim para passear, por que eu já tinha rodado um pouco pelo mundo, eu já estava em uma situação financeira legal, porque eu tinha, inclusive, encontrado um homem – um milionário, um conde – que me deu a possibilidade de me vestir com os grandes modistas, usar brilhantes, peles, tudo era... Eu estava rica com este homem que me proporcionava tudo isso: viajando pelos melhores hotéis do mundo, frequentando os melhores restaurantes... Bem, eu estava com tudo isso já algum tempo, então bem, eu estava... mas já acostumada até com isso e vim ao Brasil passear. Aí vim ao Brasil passear e até então, naquela época, nenhuma amiga minha, as travestis da época e tudo, nenhuma estava de mulher ainda, nenhuma ousava viver de mulher, a não ser quando fizesse show. E eu para mim já vivia no meu cotidiano, diariamente, normalmente, já estava acostumada... pra mim era natural! E quando eu vim ao Brasil, algumas amigas minha diziam assim: você não vai conseguir desembarcar no Brasil, porque não vão deixar. Eu, pensei, eu vou ao Brasil, eu viajo para todo o mundo sem ter problema, não vou ter problema, é elas que não estão acostumadas e estão pensando que não pode, porque não é possível que isso vá acontecer no Brasil, todo lugar do mundo nenhum me aconteceu, vai me acontecer no meu país? Aí, eu vim e pensando se não deixam eu entrar, me barram a minha entrada, eu não vou ter que me vestir de homem para passar, eu volto do aeroporto! Mas não aconteceu nada, inclusive quando eu desembarquei, estava muitas delas, estavam tudo de homem, tudo me esperando porque queria ver a reação, o que iria acontecer. Porque todos já estavam me acompanhando minha trajetória lá, tudo que eu estava fazendo, que saia aqui nas revistas. A Nina Chaves65, que na época era a cronista mais importante do Rio, deu meia página do Globo comunicando a minha volta ao Brasil. Uma foto de Antonio

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Entrevista para o Lampião da Esquina, ano 3, nº 32, janeiro de 1981. Nina Chaves foi criadora e editora do Caderno Ela, coluna do jornal O Globo cujo principal objetivo era introduzir no periódico um tipo de colunismo de fofoca, moda e entrevistas sintonizado às tendências norteamericanas. A coluna chegou até mesmo a publicar uma parte dedicada ao público gay, chamada “Rapazes da Banda”. Através da iniciativa, Nina fazia circular entra as mulheres das camadas médias cariocas noções de estilo e “bom gosto”.

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Guerreiro maravilhosa. Aí as pessoas, não é possível! Sabe? Não estão acostumadas. Eu cheguei, não houve problema! Elas ficaram tudo surpresas. Eu tinha que ir para algum lugar para me hospedar, fui direto para o Hotel Glória, que era um hotel que tinha uma história que me encantava. Fui para o Glória. Todas achando que eu ia ter problema, que não ia... com o passaporte de homem não iam me deixar eu estar de mulher. Não teve nenhum problema! Imagina! Foi como se fosse na Europa ou em qualquer lugar do mundo. O problema era elas que não estavam acostumadas e não tinham esse hábito, né? E para mim já era uma coisa normal. Então, fui muito bem tratada e cheguei no hotel e aí começaram... saiu no repórter Esso, no jornal de televisão uma notícia que chegou Divina Valéria, desembarcou de mulher. Detalhe: em determinado momento se dirigiu ao toalete feminino, como isso fosse uma coisa... saiu como notícia. Bem, eu no Hotel Glória, eu sei que eu não tive mais tempo nem para sentar numa mesa para comer, porque a imprensa era o dia inteiro me procurando, me fotografando. Eu, encantada também com tudo aquilo, no fundo era também, pra qualquer artista, era também o que a gente está esperando que chegue esse momento – de poder divulgar o seu trabalho e tudo – eu não estava vindo com essa intenção, mas aproveitei aquele momento. (Divina Valéria).

O longo relato de sua chegada ao Brasil, depois de sua primeira temporada na Europa, permite inferir um conjunto de questões importantes. Divina Valéria fala de um momento no qual o que se entende hoje como “travesti” tinha outros sentidos. Sua ida à França e o contato estabelecido com as “meninas” do Carrousel lhe proporcionaram a possibilidade de adquirir um “capital travesti” ainda não disponível no Brasil. O desafio lançado por suas amigas – chegar ao aeroporto “montada” – foi um marco importante na construção da noção de “travesti” com uma forma de se apresentar no mundo. Acredito que toda a movimentação da imprensa contribuiu decididamente para projetar uma representação dessa nova “forma de vida” para milhares de brasileiros, transformando a sua vida em uma “vida fetiche” (MCCLINTOCK, 2010), alvo preferido das ansiedades da imprensa que, simultaneamente, escandalizava e fascinava a sociedade brasileira do período. A “travesti profissional” converteu-se definitivamente em “espetáculo de consumo” (MCCLINTOCK, 2010). Divina Valéria ganhou muito espaço em vários veículos de comunicação importantes ao desembarcar trajando roupas femininas e usando o banheiro adequado à sua apresentação corporal. No Brasil, Divina Valéria projetou a imagem de uma mulher hiperfeminilizada, cuja existência, como colocado pela mídia da época, parecia ameaçada pelo suposto “endurecimento do feminino”, motivado pela emergência dos movimentos feministas nos países ocidentais. É possível sugerir que a imprensa via na imagem de Divina Valéria uma tentativa de restaurar a essência dessa “mulher glamourosa” que ocupou o imaginário coletivo nas décadas anteriores à emergência daquele movimento. Quando entrevistada pela colunista Nina Chaves acerca do Ano Internacional da Mulher, essa mensagem fica bem evidente: Acho feminista, de maneira geral, feia e frustrada. Jamais entraria nem participaria de nenhum movimento dela, visando [a] ter os mesmos direitos que o homem. Direitos existem e a inteligência, a astúcia é que podem fazer a mulher “dobrar” o homem e com isso superá-lo. Jamais agrediria um homem. Nada existe de mais

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maravilhoso que ele acendendo cigarro, abrindo a porta do carro, colocando um “mink” sobre suas costas num bistrô. Tenho amigas feministas no Brasil, mas acho que deveriam usar sua inteligência para conquistar o macho e não brigar com ele (Divina Valéria).

Ao que parece, a preocupação que a imprensa carioca dedicou à Divina Valéria possuía outros contornos para além da curiosidade despertada pela “novidade” de ver “o homem que virou mulher”. Ela implica tensões nas camadas médias acerca da recepção das mudanças nas convenções sociais emanadas dos grandes centros mundiais. Se para Fry (1982) o surgimento da categoria “entendido” estava associado à emergência dos valores igualitários constitutivos das camadas médias dos grandes centros urbanos brasileiros, acredito que essas ideias não eram recebidas de forma tão homogênea como se supõe. O Caderno Ela nasce justamente para incentivar a produção de uma “nova mulher”, a qual deveria ter estilo, se vestir com roupas da moda e possuir um comportamento adequado. Interessante realçar que o tipo de “mulher ideal” que a coluna tenta alcançar adota Divina Valéria como um exemplo pedagógico. Divina Valéria constituía o modelo-fetiche de uma “feminilidade burguesa”, adotando a expressão de Leite Júnior (2008), posto que materializava no seu corpo e performance uma imagem própria à domesticidade. Simultaneamente, a coluna dirigida para um público feminino oriundo das camadas médias e altas da sociedade brasileira oferecia a oportunidade de conferir existência a essas pessoas, até então não apresentáveis ou parcialmente apresentáveis durante os dias de carnaval. Divina Valéria e Rogéria evocariam uma iconografia perfeita da domesticidade, contribuindo de forma paradoxal com o projeto feminista, já que ao mesmo tempo em que reforçavam as convenções de gênero, elas lembravam que essas mesmas convenções eram artificiais, visto que sua feminilidade não se baseava em um corpo biologicamente determinado, mas era antes materializada por discursos (BUTLER, 2003). Essa iconografia da domesticidade tinha na interface com o glamour um eixo estruturante. Foi através do glamour66 que essas “travestis profissionais” puderam incorporar as normas de classe e gênero hegemônicas, performando, assim, a norma (MAHMOOD, 2006). O glamour acabou se constituindo como uma forma de agência, através da qual esses corpos, visibilizados na chave do exótico, puderam resistir à heteronormatividade, conseguindo penetrar em espaços restritos dentro da sociedade. Porém, a penetração nesses espaços só era possível através da sujeição às normas de gênero e classe. Talvez por isso essas 66

Carvalho (2011), em sua dissertação sobre a constituição do movimento social organizado de “travestis” e “transexuais”, chama a atenção sobre o glamour como uma forma de “purificação” da poluição de gênero relacionado a esses sujeitos.

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“travestis” incomodavam tanto as feministas, que as viam com profundo desdém por acreditarem que elas representavam a imagem da “mulher perfeita” que estava sendo revista pelo nascente feminismo. O trânsito pela norma não implica afirmar que elas eram destituídas de agência, como sugere (MAHMOOD, 2006). Ao habitar a norma heterossexual, essas “travestis” evidenciavam a sua artificialidade, uma vez que só performavam essas normas através dos “travestismos de gênero e classe” (MCCLINTOCK, 2010) que operavam. É possível inferir que, a partir desse conjunto de dados, a viagem à Europa implicava muito mais que um deslocamento espacial: promovia uma transformação subjetiva e uma ampliação da visão de mundo dessas “travestis” – as tornavam internacionais e cosmopolitas, logo glamourizadas. Velho (2010), escrevendo sobre o cosmopolitismo, “supõe que a experiência cosmopolita amplie o universo de experiências e o acesso a visões de mundo diferenciadas” (VELHO, 2010, p. 17). Essa ampliação e acesso de que fala o autor, teve duas consequências nas trajetórias dessas “travestis”, uma externa e outra interna. Ao mesmo tempo que contribuiu para uma mudança na forma como a opinião pública construía representações sobre a imagem da “travesti”, promoveu um empoderamento desse grupo, o qual acabou por se constituir em um projeto de vida para outras, que assim como essas “travestis” se identificavam com esse universo e viam na vida delas uma ampliação do seu “campo de possibilidades”. Os trânsitos pela Europa figuravam como um importante episódio na trajetória de vida de qualquer “travesti”. Foi através dessas viagens, semelhante ao processo de formação de grupos étnicos no Nordeste analisado por Oliveira (1998), que esses indivíduos começaram a instituir mecanismos de representação de si, começaram a elaborar e a divulgar projetos de futuro e, sobretudo, fizeram florescer uma unidade identitária antes não existente. A viagem é parte constitutiva do currículo daquelas que procuram se destacar nesse universo e na sociedade mais abrangente. Ter passado uma temporada em Paris, agregava capitais social, cultural e, principalmente, simbólico a essas pessoas, as quais negociavam essa informação de forma intensa em suas trajetórias. Ter passado uma temporada em Paris oferecia uma oportunidade de distinção em diferentes situações. Adotar expressões em idioma estrangeiro constituía-se como um emblema de distinção importante, mas, simultaneamente, promovia convenções sobre como ser uma “travesti profissional”. Ainda mais importante do que estar em Paris era o regresso dessas pessoas ao Brasil. Esse retorno era, como é possível observar na narrativa de Claudia Celeste sobre Divina Valéria, triunfal, obedecendo ao script de uma entrada da diva em cena em um musical da Broadway. Essa chegada era sempre acompanhada de muito alarde aqui no Brasil, sobretudo

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da imprensa, que alimentava uma representação exótica dessas personagens. Com o regresso vinham os segredos de uma transformação bem-sucedida. A viagem implicava uma mudança dramática na forma como essas “travestis” negociavam sua existência com o mundo hostil que as cercava. Essa negociação só era possível quando elas articulavam um discurso que realçava o glamour de suas histórias pela Europa – o cortejo de “cavalheiros”, as joias, os shows, os lugares de luxo –, narrativas fundamentais para uma construção de si.

2.4 – Impactos duradouros

Acredito que a invenção da “travesti profissional” constituiu momento importante na produção de convenções sobre as diversidades de gênero e sexualidade. Tal categoria abrangia um conjunto de pessoas que começavam a construir suas subjetividades a partir da prática de transformar o corpo masculino em feminino– mas não era qualquer feminino, tratava-se de uma hiperfeminilidade, uma performance glamourosa, que passou a ser reproduzida inclusive por mulheres como Rita Cadilac, a famosa chacrete. A “travesti profissional” não foi convertida apenas em mercadoria cultural, ela passou a conformar um destino, um projeto, ampliando assim o “campo de possibilidades” (VELHO, 2003) relacionado às expressões de gênero. A experiência de circulação internacional foi parte constitutiva dessas trajetórias, a qual, com o passar do tempo, foi se conformando como projeto de vida para outras iguais. A noção de projeto, tal como conceituada por Velho (2003), está relacionada diretamente a experiência moderna e cosmopolita evocada pelas sociedades modernas contemporâneas. Para esse autor, o projeto consiste em uma ação orientada para um dado fim. A bem-sucedida carreira na Europa associada às transformações corporais fez com que a “travesti profissional” fosse convertida em um projeto de vida para muitas que aqui no Brasil as percebiam como possibilidade de fuga de vidas marcadas pelo silenciamento e clandestinidade. Em curto prazo, toda a publicidade dedicada a essas “travestis” bem-sucedidas encorajou o début de muitas outras, mesmo aquelas que não tinham o mundo artístico como parte de seu horizonte de vida. Se para Rogéria e Divina Valéria a famosa Coccinelle constituíra um elo com as redes de circulação dos nightclubs europeus, a ida dessas duas para a Europa e, sobretudo, a sua permanência bem-sucedida em Paris foram episódios que encorajaram outras com as quais

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mantinham alguma relação de amizade. Foi o que ocorreu com Eloína, que partiu para Paris com o auxílio oferecido por Rogéria e Divina Valéria. Eloína começou a sua vida artística como camareira da vedete Nélia Paula, logo após passando a trabalhar na boate Pigalle, no Rio de Janeiro. Possivelmente, foi nesses espaços que travou contato com Divina Valéria e Rogéria. Diz Eloína ao jornal Lampião da Esquina, em fevereiro de 1980 Eu mantinha correspondência com Rogéria e Valéria que já moravam lá e me incentivaram muito. Nessa época eu morava com um rapaz, que foi quem me financiou a viagem. Tudo. Eu cheguei em Paris em 72 sem falar nem boa noite em francês. E nessa época não tinha nenhuma brasileira lá. Fui para o Hotel Perrot, na Place Pigalle, e minha sorte foi que a mulher que me atendeu era espanhola (Eloína).

A fixação dessas “travestis” em cidades da Europa e dos Estados Unidos possibilitou formar uma rede de ajuda mútua, através da qual outras como elas podiam migrar com mais segurança para os países sobre os quais tanto ouviam histórias de sucesso. Não somente Eloína foi beneficiada com essa rede, mas também Jane Di Castro e Marquesa. Todas elas migraram para o exterior, seguindo a trilha deixada por “travestis” que já trabalhavam em algum estabelecimento por lá. A migração tornava-se mais fácil, posto que na cidade ainda desconhecida elas garantiam hospedagem, um rede de confiança e o tão sonhado emprego em algum dos cabarés. No Brasil, o impacto das carreiras de Divina Valéria e Rogéria, para citar as mais conhecidas, estimulou outras que assim como elas viam na “travesti profissional” um projeto de vida. Divina Valéria, Rogéria e Jane Di Castro não somente chamaram a atenção da mídia: elas conseguiram ser aceitas e até admiradas por diferentes setores da sociedade, incluindo intelectuais e artistas. Nas entrevistas concedidas à imprensa, as “travestis profissionais” falam de sua experiência como algo que existiu desde a infância. Sempre se acharam diferentes, sempre buscaram brincadeiras identificadas como do outro gênero. Tal êxito encorajou muitos que se identificavam com a história de vida dessas “travestis”, os quais se sentiam fortalecidos com a imagem de sucesso correntemente vinculada na imprensa sobre elas. Vislumbrando o “mudar dos tempos” a partir dessas trajetórias, alguns jovens rapazes decidiram romper com o silêncio, investindo em “formas de vida” alternativas à “matriz heterossexual” (BUTLER, 2003). A trajetória de Weluma Brown é um exemplo interessante das mudanças que estavam ocorrendo na sociedade brasileira no que se relaciona aos usos da noção de “travesti”. Ela conta que, quando ainda muito jovem, não existia o nome “travesti”. Diferente de Divina Valéria, Weluma Brown foi ter consciência dessa categoria através do mundo da prostituição que ocorria na Central do Brasil, região central do Rio de Janeiro. Já como “travesti”, pôde

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experimentar o mundo dos programas de auditório, fundamentais para a sua trajetória. Ela revela como se tornou a única “chacrete travesti” depois de ter transitado no mundo da prostituição de rua. Eu comecei a frequentar a Jovem Guarda, que até então no auge era a TV Record, na Avenida Consolação [São Paulo] e me tornei a presidente do fã-clube da cantora Wanderléia. Eu tinha 14 anos, 14 para 15 anos. Aí andando para cima e para baixo com Wanderléia. Isso eu fiquei muitos e muitos anos, muitos e muitos anos com Wanderléia. Fui voltei para o Rio de Janeiro, porque a minha vida era entre o Rio e São Paulo, o que aconteceu: eu, muito feminina, frequentava o Programa do Chacrinha, como eu frequentava vários programas de auditório. E quero frisar também heim, que fui uma das primeiras do Programa do Édson “Bolinha” Cury onde concorri com 50 travestis e fiquei em terceiro lugar. [...] O que aconteceu? Eu já estava com os meus 19 anos, o programa [Chacrinha] entrava ao ar, a Discoteca do Chacrinha entrava ao ar pela TV Globo todas as quartas-feiras, começava no horário nobre das 21:00 às 23 horas da noite e havia a Buzina do Chacrinha, que era aos domingos, das 21:00 às 23 horas. Bom, como o programa era ao vivo, não havia playback, não havia videotape na época, o que aconteceu: ele só olhou para mim – faltava meia hora para começar o programa – ele olhou para mim “Não, não, ela!”, até então, eu era conhecida como Cláudia, foi Elke Maravilha que me batizou. A Elke Maravilha, 42 anos atrás, me batizou com o nome de “Weluma” (Weluma Brown).

Assim como na trajetória de Weluma Brown, outras “travestis” desse período também encontraram no mundo artístico uma possibilidade real de ascensão social e construção de uma identidade, mesmo que este acesso tenha se dado de outras formas, como em seu caso. O acesso a esse mundo não somente propiciava a formação de uma rede social – na qual circulavam pessoas, objetos e símbolos –, mas também contribuía para a construção de um “lugar social” para as “travestis” na sociedade brasileira. Há alguma controvérsia envolvendo o fato de Weluma Brown ter sido chacrete. Conversando com uma amiga pessoal sua, que acompanhou Weluma nos seus últimos dias de vida, foi possível perceber que a verdade sobre essa história era muito menos importante do que os sentidos em disputa em torno dela. Essa amiga se recusou a me conceder uma entrevista pessoal sobre a trajetória de vida de Weluma, mas via Facebook me explicou os motivos pelos quais não poderia fazê-lo. Weluma supostamente havia pedido em vida para que, após a sua morte, nada fosse dito sobre ela, incluindo homenagens. Tal argumento não se sustenta na fala de outras pessoas da rede social da artista com as quais tive contato, uma vez que, como afirmam, em vida, ela nunca deixou de falar sobre sua trajetória e nada sabiam de seus desejos após a morte. Diante do fato de que não era unânime o argumento dessa amiga, decidi colocar na tese o motivo de tal negação. A amiga disse que havia uma outra razão para este silenciamento postmortem, que envolvia a construção da trajetória da artista como chacrete. De acordo com ela, Weluma teria sido uma tiete de Chacrinha, chegando a ajudá-lo em algumas turnês. Teria morado em um apartamento junto com algumas chacretes, mas nunca teria sido de fato uma destas. A

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proximidade desse universo possibilitou a Weluma vivenciar uma realidade que, acredito, não pôde se efetivar em função das restrições à presença dessas pessoas na televisão. Mesmo não ocorrendo no plano da realidade, a invenção de Weluma como chacrete lhe rendeu possibilidades que não seriam reveladas sem esse evento em sua trajetória. Aparentemente, ela construiu um mito em torno de sua própria imagem, isso só foi possível em função do espaço, via mercado de bens culturais, que as “travestis” começaram a ocupar dentro da sociedade brasileira.

Imagem 22 – Weluma Brown entre outras Chacretes no Programa do Chacrinha (Fotografia: Internet).

O impacto duradouro das imagens de Rogéria e Divina Valéria foi fundamental para toda uma geração que estaria por vir. A trajetória de Claudia Celeste também é um exemplo emblemático da forma como a noção de “travesti” foi sendo significada através do discurso do glamour. Nascida em uma família do subúrbio carioca, Irajá, Claudia Celeste começa a ter contato com os espaços de sociabilidade “bichal” carioca através de um amigo, o Pereira, quando ainda era cabo do Exército Brasileiro. Esse primeiro contato foi feito através de suas idas às diferentes casas de santo frequentadas por Pereira na Baixada Fluminense e subúrbio do Rio de Janeiro. Com 19 anos, já fora do exército, Claudia decide abandonar os estudos para fazer um curso de maquiagem. Após esse curso, ela consegue um emprego em um salão

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em Copacabana, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua trajetória está diretamente relacionada à ascensão de algumas travestis ao imaginário da diva: muitas delas saíram do Brasil e regressaram logo em seguida aclamadas pela audiência popular, como foi o caso de Divina Valéria. Eu estava trabalhando em um salão em Copacabana, Valéria volta para o Brasil. Já era famosa, já tinha saído daqui, foi para a Europa, voltou em 1972. Em 1972, ela voltou por cima, então foi um escândalo! Saiu na capa da Manchete [revista] vestida por Clodovil, Guilherme Guimarães – grandes costureiros, entendeu? De Paris e não sei o que... De Givenchy e não sei o que... E aquela bicha alta e coisa: Valter ou Valéria? [...] Aí eu estava trabalhando no salão, quando eu vejo aquela revista: Valter ou Valéria? Aquilo me intrigou, porque eu nunca tinha visto aquilo na minha vida, eu estava com 20 anos, mas naquela época a gente era inocente. [...] Aí quando eu vi aquela mulher belíssima, dizendo que era Valter Fernando Gonzalez, eu fiquei louca, fiquei nervosa, fiquei atacada – era aquilo que eu queria, que eu estava buscando e não sabia. Desde criança eu não ficava botando os batons de mamãe escondido no banheiro, botando toalha na cabeça para dizer que era mulher, brincava com as bonecas da minha irmã e não sei o que [...]. Quando eu vi a Valéria assumida, que chegou de Paris e dentro de um vestido que eu olhei aquele peito, como é que ela conseguiu aquilo? Aquelas reportagens enormes, comprei e li todas as reportagens e tudo. Ela no Teatro Princesa Isabel, ela ia fazer um show com Miéli, e aí montaram aquele show e tudo, e aí a primeira coisa que eu fiz: eu comprei ingresso para eu assistir. Eu queria assistir. Fui lá para trás assim para... nervosa para ninguém me ver, aquelas coisas toda. Então, quando eu vi a bicha, que abriu a cortina e ela começa a cantar e aquelas coisas. Que eu vi aquela mulher belíssima, sob aqueles holofotes, aquele glamour, aquela coisa toda – eu fiquei alucinada, eu falei: “Ah, não, é isso que eu quero para a minha vida!” Pronto, aí comecei (Claudia Celeste).

Divina Valéria aparece na narrativa de Claudia Celeste como um marco importante na descoberta de seus projetos de vida e construção de si. Ainda que tivesse percebido desde muito jovem que era muito feminina, Claudia não sabia nomear, tampouco o que fazer com essa feminilidade. O glamour manifestado pela imagem de Divina Valéria no palco se constituiu como uma referência pedagógica para Claudia. A diva encarnada por Divina Valéria encorajou Claudia a assumir definitivamente outros projetos de vida, ela começou então a se hormonizar e a dançar em diferentes boates da Zona Sul do Rio de Janeiro, abandonando o trabalho de cabeleireiro. Foram esses espaços que a levariam mais tarde para a televisão. Claudia Celeste fala um pouco das transformações corporais que se deram a partir dos trânsitos dessas travestis pela Europa nesse período. Por que na época delas, da Valéria, Rogéria, porque elas vieram antes de mim, nos anos 1960, né? Então, elas eram todas transformistas, não tinha assim, peito! Veio depois. Tinham algumas, que eram mais malucas na época, entendeu? Como a Jaqueline de Poir, que começou a tomar aquelas pílulas, porque ninguém sabia, porque era pílula anticoncepcional – foi nos anos 1960 que apareceu a pílula anticoncepcional. Por consequência, o travesti [sic] de peito começou aí [...]. No homem nascia peito, crescia os peitos, entendeu? Em alguns, em outros não. Mas a maioria tomava, começou a tomar, os peitos cresciam. [...] Mas muitas tinha medo,

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né? Rogéria, Valéria e tudo, tanto que elas foram para a Europa, na Europa que, em Paris é que elas aprenderam, entendeu? Porque lá, já tinham até operadas!

A consolidação das “travestis” produziu outros sentidos sobre as diversidades de gênero e sexualidade. A existência dessas pessoas marca rupturas no processo de construção da “bicha” como uma categoria englobante marcada pela fluidez entre gênero e sexualidade. As “travestis profissionais” emergem em um contexto onde as noções de “homossexualismo” e “travestismo” começam a ser diferenciadas, tendo como pano de fundo as novas técnicas cirúrgicas que materializam definitivamente o feminino no corpo. Esses processos de distinção geraram tensões importantes na forma como os indivíduos dessa geração elaboraram percepções de si relacionadas às mudanças nas convenções sobre as diversidades de gênero e sexualidade. Na entrevista realizada com Jane Di Castro no jornal O Pasquim, de 1983, ela afirma taxativa: “Esse negócio de gay é uma tentativa de imitar a cabeça dos americanos, não tem como dar certo”. Na mesma entrevista, ela afirma que “nós travestis é que fomos um avanço”, para se referir ao lugar delas na diminuição da repressão associada às diversidades de gênero e sexualidade na sociedade brasileira. O desabafo de Jane está vinculado ao avanço da visibilidade do movimento homossexual

norte-americano

pós-Stonewall

e

a

exportação

de

um

“estilo

de

homossexualidade” cujo foco de irradiação é a cultura Leather, tal como elaborada nas cidades de Nova York e São Francisco. Tal cultura via na imagem do macho man67 um repertório de performances e símbolos que deveria reorientar as escolhas, a sociabilidade e até mesmo o erotismo de homens com “condutas homossexuais”. Continuando com a crítica de Jane, ela via estas mudanças como um modismo, uma cópia sem crítica do que vinha ocorrendo nos Estados Unidos. Para ela, “o brasileiro copia tudo, até a roupa de couro igual usam em Nova Iorque. Na minha época, era viado mesmo, era bicha louca, não era moda não. Eu andava na rua e levava tapa na cara, só porque era bicha. Tudo mudou, querido” (Jane Di Castro para O Pasquim). Apesar da percepção de que a repressão diminuíra, Jane parece sugerir que essa diminuição se deu em função de uma perda fundamental relacionada à sua experiência e a de sua geração, a possibilidade de ser “bicha”,

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Referência a famosa música do grupo norte-americano Village People. Na minha dissertação, já havia analisado, a partir de Pollack (1987), como essa imagem de homens másculos e relacionada a personagens que remetem ao masculino: como o policial, o índio, o operário e o cowboy; promoveu uma redefinição da “identidade homossexual”. No último capítulo desta tese, ao analisar o espaço de ressignificação promovido pelo jornal O Snob, é possível perceber como a masculinização da “homossexualidade” foi vivenciada pelas turmas de “bichas” e “bofes”.

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de ser você mesmo, sem ter que se adequar ao um modelo de masculinidade hegemônico, considerado convencional. Este capítulo se ocupou do processo de construção da noção de “travesti profissional”. A categoria “travesti profissional” aparece como categoria nativa na fala dessas pessoas que viveram nesse período, como uma forma de marcar uma ruptura definitiva com aquele personagem do carnaval, “os homens em travesti”. A noção de profissionalização implica reconhecer todo um repertório corporal e performativo necessário para produzir estas “travestis profissional” em corpos. Simultaneamente, a existência dessas pessoas marca rupturas no processo de construção do “ser bicha” e do “ser travesti” como experiências distintas. As “travestis profissionais” emergem em um contexto onde as categorias “homossexualismo” e “travestismo” começam a ser diferenciadas, tendo como pano de fundo as novas técnicas cirúrgicas que materializam definitivamente o feminino no corpo. O afluxo dessas pessoas para a Europa cresce com o passar do tempo, todas seguindo as trilhas abertas pelas “pioneiras” que se estabeleceram por lá na década de 1960 e voltaram para o Brasil glamourizadas. Com o tempo, as “travestis” passam a fazer parte da paisagem das ruas e não apenas dos cabarés. Rogéria menciona este processo em uma entrevista que concedeu ao jornal Lampião da Esquina, no qual fala do crescimento da presença “travesti” na Europa e da sua associação com o negócio da prostituição. Em sua narrativa, a noção de profissional não é agregada à expressão “travesti”. Não por acaso, Rogéria chama a atenção para um outro personagem, que acaba se tornando parte integrante da geografia dos grandes centros urbanos – a “travesti” que se prostitui. A constituição dessa nova “forma de vida” será adotada para marcar uma profunda diferença – fundamental para a formação do moderno movimento homossexual, que começa a se desenhar em fins da década de 1970. Na década de 1960, as “travestis” se consolidaram como personalidades cujas vidas recebiam atenção de revistas e jornais da época. Até mesmo Chacrinha, que tomaria o lugar de Flávio Cavalcanti como líder de audiência nos famosos programas de auditório das décadas de 1970 e 1980, supostamente tinha uma “travesti” como uma de suas assistentes de palco. Até a década de 1960, essas “formas de vida” tinham uma existência muito intermitente, vinculada ao calendário carnavalesco. Com a emergência do mercado de bens culturais e da crescente espetacularização da vida social nos meios de comunicação, esses indivíduos tomaram uma existência própria, recebendo o reconhecimento através de sua vinculação ao lazer e ao entretenimento – os “shows de travestis” são bons exemplos disso. Acredito que a busca por distinção de uma elite que afluía aos teatros para ver esses shows foi fundamental para a construção das diversidades

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de gênero e sexualidade dentro do registro da normalidade, e as “travestis” foram fundamentais para esse processo, uma vez que eram identificadas com as modernas convenções europeias. A “travesti” converteu-se definitivamente em uma mercadoria cultural, cobiçada em shows e por publicações de luxo que a estampavam em suas capas e miolos. Ao mesmo tempo que tal visibilidade recai sobre essas pessoas, a prática de “fazer travesti” vai se constituindo como componente agregador da sociabilidade “bichal” que se consolidava nos grandes centros urbanos, como se percebe na importância da reprodução dos concursos de miss nas “turmas” que foram se avolumando em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Acredito que foram as “travestis” as responsáveis pelo primeiro rompimento do “armário”, para adotar uma metáfora famosa entre nós, gays, para caracterizar o processo de visibilização de uma identidade sexual marcada pela injúria, antes mesmo da emergência do movimento homossexual organizado.

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CAPÍTULO III

Sobre trejeitos e faceirices: o espetáculo das afetações e extravagâncias entre interdições e insurgências

Diz que vai dar, meu bem Seu coração pra mim Eu deixei aquela vida de lado E não sou mais um transviado (ref.) Telma, eu não sou gay O que falam de mim são calúnias, meu bem Eu parei . . .. Não me maltrate assim, não posso mais sofrer Vamos ser um casal moderno Você de bobes e eu de terno (ref.) Eu sou introvertido até no futebol Isso tudo não faz sentido E não é meu esse baby doll (ref.) Telma, ô Telminha, não faz assim comigo Não me puna por essas manchas no meu passado Já passou, esses rapazes são apenas meus amigos Agora eu sou somente seu, meu amor Ney Matogrosso68

A partir da noção de “guerras sexuais” presente em Rubin (2011), analiso neste capítulo algumas tensões e disputas relacionados à construção de representações sobre as diversidades de gênero e sexualidade em um contexto de florescimento dos programas de auditório no Brasil, item ilustrativo do mercado de bens culturais instituído pela nova “tecnologia do olho”, a televisão. Examino como a trajetória do costureiro Dener e a sua aproximação das elites promoveu a sua entrada no cotidiano dos brasileiros através de suas aparições em um programa de auditório da televisão brasileira. Dener, ainda que não se identificasse publicamente como “bicha”, com seu estilo extravagante de ser, consolidou

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Música Calúnias, presente no LP Pois é, de 1983. Trata-se de uma versão parodiada da música Tell me once again, do grupo Light Reflections.

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imagens sobre as diversidades de gênero e sexualidade associadas ao “estigma da efeminação”, amplamente reconhecidas e, para o horror da ditadura, apreciadas pela sociedade brasileira consumidora dos produtos televisivos. Sua performance evocava a ideia de um glamour masculino relacionada ao dandismo, com o qual abria-se um espaço de reconhecimento da experiência daqueles indivíduos fora da norma heterossexual para além do homem “em travesti”. Sua presença na televisão gerou uma intensa “cruzada moral”, na qual diferentes agentes interagiram no processo que desencadeou a proibição expressa do governo federal sobre a exibição pública de sua imagem. Outro dado significativo da carreira de Dener diz respeito à sua rixa pública com outro costureiro, Clodovil Hernandes. As manifestações de rechaço de Dener sobre Clodovil realçam a fronteira moral na qual as “travestis” começam a ser colocadas na sociedade brasileira. A briga entre os dois costureiros é mais um registro do processo de construção das sexualidades não normativas como um “espetáculo de consumo”, aprofundado entre fins da década de 1970 e início de 1980. Nesse período assiste-se a uma enxurrada de “formas de vida” não heterossexuais habitando a nova “tecnologia do olho” – a televisão. Busco analisar a relação instável desses indivíduos com esta nova tecnologia, a qual, em um contexto de ditadura, contribuía para a produção de uma percepção pública das diversidades de gênero e sexualidade que era, ao mesmo tempo, exótica, portanto estimulada pelo mercado de bens culturais e de entretenimento, e proibida, em função dos supostos efeitos tóxicos à moral e aos bons costumes que poderia acarretar. Por fim, examino o impacto de dois contextos que revigoram essas “guerras sexuais” em torno das diversidades de gênero e sexualidade, atualizando “pânicos morais” relacionados às “formas de vida” não heterossexuais. O fenômeno Roberta Close e o advento da AIDS são abordados como dispositivos discursivos cujas implicações transformaram a dinâmica das sexualidades não normativas como “lugar social” na sociedade brasileira. Esses dois processos incitaram uma discussão mais ampla sobre os destinos da nação, considerada ameaçada pela infiltração dessas novas “formas de vida”.

3.1 – Dener é um luxo! Dandismo e as parafernálias de classe e gênero

A “ponte” entre o interesse da imprensa pelos luxuosos concursos de fantasia e a emergência de homens como Clóvis Bornay como um personagem singular na televisão

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brasileira é um exercício de reflexão que ajuda a entender como as sexualidades não normativas foram sendo construídas como um “lugar simbólico” na sociedade brasileira via mercado de bens culturais e de entretenimento. Com Clóvis Bornay, a televisão passou a exibir muito mais que apenas as fantasias de luxo. Começou a espetacularizar performances relacionadas às sexualidades não normativas, através de sua inserção neste espaço. Porém, não foram apenas homens do carnaval, como Bornay, que exerceram o papel de “mediadores” nesse processo. A trajetória do costureiro Dener, conhecido como o primeiro estilista brasileiro, pode ser considerada um importante registro da construção das sexualidades não normativas como “espetáculo de consumo” associado à consolidação de determinadas representações sobre tal prática na sociedade do Brasil. Mais do que isso: esse estilista foi peça fundamental para operar importantes processos de distinção na elite paulistana, e mesmo brasileira. Nascido em Soure, Ilha de Marajó, no estado do Pará, região Norte, Dener Pamplona de Abreu, ainda muito jovem, migrou para o Rio de Janeiro. Sua mãe, Dona Lolita, decidiu morar nessa cidade após a morte prematura de seu pai, Alfredo, um trabalhador da Companhia Docas do Pará, levando consigo Dener e a sua irmã, nove anos mais velha. No Rio, Dona Lolita e seus filhos moraram em uma pensão em Copacabana por quatro anos, quando então conseguiu emprego como secretária da diretoria da presidência da Panair69, graças ao fato de falar muito bem inglês, mudando-se para um apartamento. A carreira de Dener como estilista profissional se iniciou aos treze anos de idade quando foi convidado a ingressar como desenhista no ateliê da Casa Canadá70, conhecido estabelecimento de moda no Rio de Janeiro, responsável por vestir as “mulheres da sociedade” na década de 1950. Na biografia de Dener, escrita pelo sociólogo Carlos Dória, o autor diz que a descoberta de suas aptidões para a moda ocorreu como que por acidente, uma vez que um de seus desenhos teria parado na mesa da gerente da Casa Canadá, que era avó de duas colegas suas da escola onde estudava. Ao conhecer os desenhos do jovem rapaz, a diretora da maison imediatamente o convidou para participar de sua equipe. Dener foi considerado um fenômeno, sendo convidado a viajar para a Europa para se aplicar ainda mais nos estudos de desenho. Sua mãe, Dona Lolita, resistiu, uma vez que temia a associação mecânica entre moda e “homossexualismo”. A Casa Canadá, contudo, produzia um tipo de moda por demais tradicional para as pretensões de Dener. A modelo Danuza Leão alertou o costureiro sobre o fato de que uma

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Panair do Brasil S.A. foi uma empresa aérea que operou no Brasil até meados da década de 1960. A mesma casa de moda que fez o vestido de Marquesa no evento popularizado pela imprensa como “Bodas do Diabo”.

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amiga sua ambicionava abrir uma maison que ditaria a moda no Brasil. A maison que pretendia ser a grande atração da moda brasileira era de propriedade de Ruth Silveira. Entre suas clientes figuravam nomes de peso da alta sociedade, como Carmem Mayrink Veiga e a própria Danuza Leão. Dener começou a acompanhar Ruth Silveira em viagens a São Paulo, onde descobre um mercado formado por mulheres que apreciavam seus vestidos. Aos 18 anos, já percebendo que sua moda estava cada vez mais inclinada à capital paulistana, Dener conheceu Maria Augusta Dias Teixeira, dona da Boutique Scarlett, que lhe fez um convite de trabalho. Em São Paulo, ele descobriu uma elite que via nas roupas de grandes estilistas internacionais “objetos de distinção” que marcavam a sua posição de classe. As casas de moda copiavam as tendências internacionais, sem produzir um tipo de moda própria. A mulher da alta sociedade era aquela dotada de recursos suficientes para ter o seu guarda-roupa montado com peças da moda internacional, sobretudo vindas de Paris. A moda brasileira não tinha existência própria antes da emergência de Dener como um fenômeno do consumo. Nesse mesmo período, a empresa de tecidos Rhodia começou a produzir fios sintéticos, obrigando as empresas Matarazzo a tomar medidas para assumir a liderança do mercado de tecidos. Como resultado dessa concorrência, a moda produzida no Brasil tomou vulto com a produção de desfiles que atraíam a atenção da imprensa. Aproveitando-se desse contexto, Dener abriu a sua primeira loja na Praça da República, região central de São Paulo. Pouco tempo depois, se associou ao dono do curso de idiomas Yázigi, abrindo o seu ateliê na Avenida Paulista, esquina com a Rua Joaquim Eugênio de Lima, lado a lado com a loja de Henri Matarazzo. A partir desse momento, Dener promoveu mudanças significativas na moda e no comportamento no Brasil. Entretanto, mais do que a “moda brasileira”, Dener foi responsável pela propagação de um estilo de vida perseguido e sonhado pela grande maioria da população, o qual tinha no luxo um elemento essencial que conferia sentidos a esse universo. Dener foi o impulsionador de um tipo de performance muito próximo àquela que se desenvolveu em Londres no século XIX (INGLIS, 2013), período no qual o lazer deixou de ser vivenciado como algo de foro íntimo para ocupar os parques e bulevares da cidade – a espetacularização do lazer. O sair para ver e ser visto se constituiu em uma rotina de distinção de uma classe que enriqueceu em um contexto de crescimento econômico que marcou a sociedade brasileira no período imediato ao golpe militar. A vida social de Dener evidenciava de forma bem acabada essa dinâmica. Em sua casa ele recebia artistas, políticos, cantores e o jet set da sociedade brasileira. A chegada de sua limusine, que pertenceu ao embaixador Lincoln Gordon, sempre acompanhada de sua entourage, composta de sua mulher e amigos ilustres, era um

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acontecimento nos lugares que instituía como “lugares da moda” na região central de São Paulo. É nesse momento que o colunismo social ganhou vulto, se constituindo como uma tecnologia motivadora da construção e de mudanças nas convenções sociais. Nesse contexto Dener se constrói em algo mais que um costureiro, ele adentra a cena pública – chocando e seduzindo – com uma vida marcada por excentricidades e espetacularizações. Ele soube projetar-se a partir de uma elite que via em suas roupas elementos de ascensão social. Nessa mesma época emergiram outras personalidades que ficaram conhecidas por sua inserção nos meios de comunicação e também por uma performance de gênero não conforme o sexo biológico, como Clodovil.

Imagem 23 – Dener na porta de sua boutique, em São Paulo (Fonte: acervo jornal O Globo).

A trajetória de vida de Dener foi profundamente transformada quando ele passou a ser o estilista oficial da primeira-dama, dona Maria Teresa Goulart, esposa do então presidente João Goulart. Dener soube usar muito bem a projeção da primeira-dama a seu favor. Afinal, Maria Teresa era objeto de atenção de quase todos os veículos de comunicação da época. Sua intimidade era invadida por várias revistas e jornais que se preocupavam com o que fazia em sua vida cotidiana, o que vestia e como se comportava. Essa atenção incluía peças exclusivas,

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elaboradas por Dener para adornar Maria Teresa nos mais diferentes eventos sociais, muitos dos quais ele mesmo se fazia presente. A relação entre os dois teria se iniciado com a notícia da visita da família Kennedy ao Brasil. Diante de momento tão oportuno das duas das primeiras-damas mais bonitas do mundo se encontrarem, a imprensa logo tratou de especular o que Maria Teresa usaria. O colunista social Alik Kostakis alertou que Jackie Kennedy adotara em seu guarda-roupa somente peças de um estilista norte-americano: Oleg Cassini. A mensagem parece ter sido acatada pela primeira-dama, que em um rompante nacionalista tratou de convidar três estilistas brasileiros para a empreitada – dois do Rio, José Ronaldo e Joãozinho Miranda, e um de São Paulo, Dener. A visita dos Kennedy não ocorreu, em função de problemas externos envolvendo os Estados Unidos e a União Soviética, mas Maria Teresa vestida por Dener figurou entre as dez mulheres mais elegantes do país naquele ano de 1963, título conferido pelo colunista Jacinto de Thormes, Maneco Miller, um dos precursores desse tipo de ranking71 (DÓRIA, 1998). Com a ditadura e a deportação da família Goulart, Dener foi observado de perto pelos militares, que não lhe deram sossego. Foram os militares os responsáveis pelo momento, de acordo com sua biografia produzida por Carlos Dória, mais nebuloso e desgastante de sua vida: o período que ele deixou as revistas e jornais e passou a ocupar a televisão. Sua participação no Programa Flávio Cavalcanti teve uma repercussão estrondosa, chamando a atenção dos militares que viam nele a representação de um perigo que ameaçava a nação por sua “falta de virilidade”72. O estilo afetado de Dener entrou definitivamente na vida cotidiana dos brasileiros. Claro que a sua importância artística foi uma significativa característica sem a qual ele não obteria todo esse reconhecimento. O estilo de vida que levava o costureiro foi, certamente, um dos principais motivos que faziam a imprensa a buscar tantos assuntos envolvendo-o. De acordo com José Gayegos, o único ajudante de Dener em seu ateliê, o estilista vivia em um “ambiente barroco”, sua casa permanecia fechada com cortinas em todos os horários do dia, e era mantida uma iluminação permanente de velas. O ambiente em que Dener vivia não era considerado mais excêntrico do que a forma como ele mesmo se relacionava com as rotinas domésticas e de trabalho. O estilista tinha o 71

As “dez mais” foi uma das pautas de assuntos mais recorrentes no jornal O Snob, publicação artesanal voltada para as “bichas”, produzida por Agildo Guimarães. Acredito que o ranking “as dez mais”, tratado pelo colunismo produzido pelos jornais e, sobretudo, pela revista Manchete, foi uma referência fundamental na construção de performances entre as “bichas”, que ressignificavam esses certames promovendo a celebração da diversidade de gênero e sexualidades em suas reuniões clandestinas. 72 Essa parte da trajetória de Dener será problematizada no Capítulo IV.

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hábito de acordar muito tarde, conta Gayegos. Quando voltava do seu ateliê, era rotina ligar para o seu mordomo ordenando que as velas, assegurando a penumbra, e uma ópera, sempre cadenciada por Maria Callas, lhe recebessem já na entrada. Acordar, segundo Gayegos, algo tão simples para os simples mortais, era para Dener um ritual elaborado, que envolvia ser higienizado com bolas de algodão embebidas em licor de Hoffman, uma combinação de éter e álcool, cuja função era retirar a oleosidade da pele. No café, ovo quente e cerveja eram sua quase única refeição diária. O contorno dos olhos, sempre enegrecidos por fortes olheiras, ganhava ainda mais destaque, posto que tinha o hábito de colocar vaselina nos mesmos. Nenhuma outra personalidade materializou com tanta teatralidade a vida cotidiana da elite e evidenciou a sua artificialidade. Observando os bastidores da vida de Dener é possível perceber a construção de uma personagem – um lorde – profundamente marcada por gostos refinados e ares soberbos. A história de seu mordomo, Pierre, é um bom exemplo de como Dener produzia sua trajetória trazendo à baila o quão artificiais são as hierarquias do gosto. Pierre, seu mordomo francês, nasceu Pedro Vila, em Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Ele foi rebatizado por Dener em uma estratégia de construir para si uma personagem emoldurada por uma atmosfera de luxo e ostentação, para a qual a figura do mordomo estrangeiro era fundamental. Uma figura cênica que enaltecia sua teatralidade de classe, realizando suas manias excêntricas relacionadas às suas técnicas corporais. Pierre constituía um elemento importante para a exibição da “parafernália de classe” que se construía ao redor de Dener. A teatralidade de Dener não seria considerada tão perturbadora se não estivesse associada a outra dimensão profundamente marcante em sua trajetória de vida, o “estigma da efeminação”. Enquanto suas excentricidades ocupavam apenas o lazer da elite paulistana estava assegurado seu espetáculo da vida. O problema foi quando esse espetáculo chegou, através da televisão, às massas. Sua presença destacada no Programa Flávio Cavalcanti lhe proporcionou reconhecimento público imediato. Mais do que isso, conformou entre os brasileiros uma percepção das sexualidades não normativas que seria reproduzida por outros programas da televisão, sobretudo nos programas humorísticos e de auditório. A teatralidade de Dener logo seria copiada, redesenhada e colocada ao público mais amplo, através de personagens forjados na linha do exagero. Uma persona televisiva seria produzida a partir de Dener. Tal construção deu publicidade à associação oitocentista do estigma da efeminação com a figura do dândi, ou seja, aquele homem com modos afetados cuja característica distintiva é ser esnobe, acionando uma atitude blasé em relação a tudo e a todos que o cercam. Esta performance baseada na combinação entre exagero e esnobismo foi fundamental para a criação de personagens pela televisão que vinha se desenvolvendo no Brasil.

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A construção de uma persona “bicha” na TV encontrou em Dener e em outros que, assim como ele, possuíam uma performance identificada como efeminada a sua expressão mais bem-acabada. Esses homens certamente não inventaram a imagem do dândi, que já existia na paisagem urbana desde o século XIX, mas certamente consolidaram uma associação entre essa figura e a “bicha” para um público muito mais amplo do que aquele que lia os periódicos e publicações especializados na virada do século. Assim, o “Efeito Dener” seria sentido na produção de personagens identificados como fora da norma sexual vigente, cujos ares afetados seria a marca característica dos mesmos. Essa percepção cristalizou uma imagem de todas as sexualidades não normativas como algo perturbadoramente feminino, refletindo na vida cotidiana de milhares de indivíduos que foram assimilados a esses personagens.

3.2 – A guerra das tesouras: distinção e mudança social

Em 1987, João Antonio Mascarenhas, advogado, importante ativista histórico do nascente Movimento Homossexual Brasileiro– MHB, foi ao púlpito da Câmara dos Deputados, durante os eventos que marcaram o processo constituinte, para defender a inclusão da “homossexualidade” no rol dos direitos fundamentais – parágrafo 1º da Constituição. Em seu discurso, o militante defendeu a incorporação da “orientação sexual” no conjunto dos direitos que deveriam ser assegurados pela Constituição. Ao fazer essa defesa, Mascarenhas explicou a diferença entre os “homossexuais” e as “travestis”. Apesar de não ter conseguido a tão esperada inclusão, os efeitos de tal ato foram irreversíveis, por dois motivos. Ele marcou definitivamente a inclusão da “homossexualidade” na agenda pública e, simultaneamente, contribuiu para a construção de uma fronteira definitiva entre os “homossexuais” e as “travestis”. De acordo com Câmara (2002), a produção das “travestis” como persona non grata desse recém-criado movimento implicou reconhecer um redimensionamento estratégico desse sujeito político, no qual foram selecionados os novos rostos da militância. As “travestis” estariam fora da questão, por sua associação ao negócio da prostituição e por reificarem a imagem estereotipada da “homossexualidade” como associada à inversão sexual. Sugiro, contudo, que esse processo de distinção não começou com o pronunciamento público de João Antonio Mascarenhas na Constituinte: este já vinha sendo delineado em

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outros eventos, como na rixa entre Dener e Clodovil, que despertava a atenção dos veículos de comunicação. Um dos principais dramas que emergiam desse intenso clima de competição entre os dois costureiros eram as acusações públicas que Dener fazia a Clodovil, chamando-o de “travesti” ou adotando as expressões pejorativas “Nega Vina” ou “Nêga Jupira”. A difícil relação entre Dener e Clodovil ganhou repercussão pública em diferentes veículos de comunicação, sobretudo no programa A grande chance, apresentado por Flávio Cavalcanti, na TV Tupi. As intensas desavenças entre os dois costureiros foram apelidadas em um dos números da revista Fatos & Fotos, de 1962, de A guerra das tesouras, dadas as fofocas e intrigas que os cercavam e aos seus ofícios de costureiros. De acordo com Pedro Diniz, jornalista que entrevistou Matteo Amalfi, costureiro que vivenciou esse período, a chamada Guerra das tesouras foi tão amplamente conhecida entre os brasileiros que inspirou a construção, em 1985, dos dois principais personagens da telenovela Ti-ti-ti: Jacques Leclair e Victor Valentin, vividos pelos atores Reginaldo Faria e Luis Gustavo, respectivamente. O conteúdo dessas rixas quase sempre não passava pelas aptidões de costureiro de um ou do outro, mas sim por seus repertórios de “capitais”, no sentido atribuído a Bourdieu (2004; 2013). De acordo com o relato de Gayegos sobre a trajetória de vida de Dener, as relações sociais e o dinheiro foram elementos que distinguiam efetivamente um do outro. Para esse estilista, Clodovil nunca possuiu dinheiro suficiente para fazer frente aos luxos de Dener, tampouco nutria relações íntimas com o jet set paulistano. Pelo contrário, Clodovil sempre orbitava em torno de Dener nas festas e demais eventos sociais nos quais apareciam. As relações com o jet set implicavam ter uma habilidade de circulação por espaços marcados por um tipo de consumo excepcionalmente custoso, dado que, para Gayegos, foi fundamental para traçar diferenças entre os dois costureiros. Outra marca de distinção era a casa de Dener, uma mansão na região dos Jardins, área nobre da cidade de São Paulo, preparada para receber pessoas abastadas, o que Clodovil não possuía, alegava Gayegos. A suposta falta de dinheiro de Clodovil se materializava de diferentes formas no discurso de Dener, que adotava categorias de acusação como “Nêga Vina” ou “Nêga Júpira” para falar de Clodovil em diferentes veículos de comunicação. Gayegos afirma que Clodovil, diferente de Dener, possuía um “pé na cozinha”, ou seja, era marcado por um pertencimento de classe e cor que conspiravam contra a sua reputação social. Era lugar-comum ainda chamar Clodovil de “travesti”, evidenciando assim um uso dessa categoria carregado de estereótipos relacionados a outros marcadores sociais da diferença, tais como cor e classe social. Ao convocar esse conjunto de marcadores para produzir uma distinção sobre Clodovil, Dener contribuía para a construção e disseminação de imagens negativas sobre a noção de “travesti”

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a partir da racialização dessa categoria. O que chama atenção é o uso da categoria “travesti” para produzir distinção de classe e cor/raça sobre Clodovil. Ao que parece, para Dener, “ser travesti” implicava ser mais preta e mais pobre, ou seja, significava ser um indivíduo destituído de habilidades para transitar entre a elite paulistana da qual se sentia parte. Apesar de nunca ter assumido abertamente que possuía “condutas homossexuais” nos veículos em que aparecia, Dener, como um dândi oitocentista, possuía um comportamento marcado pelo exagero e identificado como feminino, fato que o teria tirado da televisão. Sua vida sexual nunca foi diretamente relatada por ele em nenhum lugar, ficando somente a menção de que tinha um comportamento livre e que valorizava a beleza. Sua participação no Programa Flávio Cavalcanti foi decisiva no sentido de torná-lo uma celebridade nacional, projetando-o para fora da elite que o cercava. O ponto alto dessa idolatria nacional era justamente o comportamento exagerado e efeminado, pelo qual também ficou famoso seu rival, Clodovil, quando começou a participar de diferentes programas de televisão entre fins da década de 1970 e na década posterior. Apesar de não se identificar como “bicha”, Dener mantinha uma circulação intensa nos espaços de sociabilidade “bichal” da noite paulistana, muitos dos quais ajudou inclusive a criar a reputação. Mais do que isto, Dener exercia a função de um taste marker, em expressão consagrada por Bourdieu (2013), do universo “bichal” paulistano, inventando tendências que eram seguidas pelas “bichas” frequentadoras desses espaços. Isso fica evidente no episódio narrado por Dória (2008): chegando a uma boate do centro de São Paulo, Dener tira seus sapatos e coloca em um dos dedos do pé um anel que tirara da mão. Tal ato foi o suficiente para ser divulgado nas colunas sociais e para, no dia seguinte, fazer os frequentadores daquele espaço repetir o uso dos anéis daquela forma. Portanto, não estavam em disputa entre esses costureiros estereótipos relacionados à efeminação, mas antes noções de classe e cor/raça que eram materializadas na categoria “travesti”, esses indivíduos que para Dener queriam ser mulher, e que afluíam cada vez mais para a Europa para realizarem esse sonho. A “Nêga Vina” / “Nêga Jupira” só fazia realçar as associações já tradicionais na sociedade brasileira entre raça/cor, gênero e classe social. Essas categorias perfaziam estereótipos vinculados à suposta origem étnica e social de Clodovil, o que ficava ainda mais evidente em suas fotografias nas quais, a exemplo de Yves Saint Laurent, está nu em meio a muita natureza, como que em uma representação nativa de si mesmo. Com a acusação de Dener contra Clodovil pode-se perceber um processo de contaminação da noção de “travesti” por um outro campo de percepção no qual as noções de

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raça/cor e classe ganhavam materialidade. Dener já antecipava essa associação na década de 1970. Imagens de “travestis” racializadas começam novamente a ocupar a atenção dos veículos de comunicação de forma mais sistemática na década de 1980. Daí em diante, a geração de Divina Valéria perde o seu poder de simbolizar o glamour em função do crescimento constante dessa nova forma de vida no cenário urbano, sobretudo constituindo outras sendas no negócio da prostituição. Percebendo os processos de acusação como capazes de revelar mais sobre as sociedades em que são produzidos do que sobre uma possível natureza daqueles que são acusados, é possível sugerir que o processo de rotulação operado contra as “travestis” foi revelador da forma como a sociedade brasileira constrói esquemas evitativos sobre indivíduos a partir da associação entre cor/raça e classe social. Enquanto faziam parte do lazer da “família brasileira”, ocupando o espaço controlado do palco, esses seres podiam até gozar de reputação e reconhecimento. O problema surge quando estes começaram a reivindicar existência fora do palco. A consequência mais imediata do crescimento da visibilidade das “travestis” na sociedade brasileira foi torná-las objeto de escárnio de pessoas, que, assim como Dener, associavam essas “formas de vida” às margens da sociedade. Essa acusação se relaciona diretamente ao processo de mudança na percepção pública acerca desses indivíduos.

3.3 – Insurgências na televisão: a “bichice” entre a proibição e o freak show

Percebe-se que os veículos de comunicação de massa foram um dos principais responsáveis por produzir imagens das sexualidades não normativas que transbordavam as publicações médicas (FRY, 1982). Com a emergência da televisão como “tecnologia do olho” (BRAH, 2006), essa produção ganha projeções nacionais, constituindo-se como um problema para as autoridades, as quais logo tomariam medidas radicais para sua redução. Por outro lado, a construção das sexualidades não normativas como “espetáculo de consumo” foi constitutiva do mercado de bens culturais e de entretenimento no Brasil, como pode ser percebido no sucesso das apresentações dos chamados “transformistas”, como Erick Barreto, em programas de calouros de grande adesão popular, como os programas de auditório. Foi a partir desse movimento pendular, entre a proibição e o freak show, que as sexualidades não normativas passaram a ser consumidas pelos lares brasileiros. A reflexão sobre esse

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movimento pendular é um exercício importante para compreender a inscrição das sexualidades não normativas no cotidiano nacional. A proibição foi certamente a primeira relação instituída entre as sexualidades não normativas e a televisão. O dramático desfecho de Dener no Programa Flávio Cavalcanti foi um episódio emblemático para se compreender a dinâmica dessas interdições e os interesses conectados a esta. O programa ficou conhecido nacionalmente pela irreverência de seu apresentador, o jornalista Flávio Cavalcanti. Iniciando a sua carreira em 1954, na rádio Mayrink Veiga, Cavalcanti passou pela Rádio Nacional e, logo depois, pela TV Rio. Na década de 1970, ele começou a apresentar na TV Tupi carioca o Programa Flávio Cavalcanti, uma exibição de variedades que ia ao ar aos domingos, às 20 horas. O show se tornou líder de audiência, sendo o primeiro desse formato a ser exibido via Embratel para todo o Brasil. A audiência se sustentava pela ousadia do seu apresentador, que ficou conhecido pelas entrevistas polêmicas consideradas nocivas às convenções morais da época. Foi Flávio Cavalcanti que instituiu o júri nos programas de auditório, um conjunto de pessoas formado por personalidades que eram consultadas sobre um dado tema. Esse tipo de formato – baseado na espontaneidade da resposta – gerou muitos problemas ao programa e ao seu apresentador em função da censura aos meios de comunicação operada em tempos de ditadura. Um dos mais famosos episódios foi reputado à presença da atriz Leila Diniz em seu júri. Considerada por demais transgressora, Leila chegou a sair disfarçada em uma das gravações quando a Polícia Federal apareceu ao estúdio para levá-la presa. Não somente Leila Diniz foi perseguida e teve a sua imagem cortada do programa:a presença de Dener era entendida como perigosa às noções correntes de moral e bons costumes. Sua atuação no júri tornou-se ainda mais nociva à medida que a audiência crescia – cada vez mais interessada nas opiniões do estilista sobre os calouros que se apresentavam no palco do programa. Os bordões “É um luuuxo!”, “É um liiixo!” e “É uma glóóória!” se constituíam como hinos que seduziam uma plateia que via em Dener uma celebridade. Para Dória (1998), o Programa Flávio Cavalcanti produziu nos seus jurados personagens – etiquetas – que seriam reproduzidos em outros programas com o mesmo formato, como a Buzina do Chacrinha. Essas etiquetas serviam como referências acerca do comportamento dessas personalidades – o “bonzinho”, o “exibido”, o “malvado”, etc. Simultaneamente, o formato ao vivo oferecia uma oportunidade para essas pessoas falarem abertamente, sem censura, sobre diferentes temas, muitos dos quais proibidos pelos órgãos de repressão. Aparentemente, Dener ameaçava a censura não por suas opiniões nada ortodoxas, tais como as de Leila Diniz acerca da sexualidade das mulheres, mas antes pelo que

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representava. Seus trejeitos evidenciavam “uma ausência de virilidade” que começava a incomodar os censores. Esse incômodo foi incentivado por correspondências de pessoas comuns que exigiam que o estilista fosse retirado da televisão. Entretanto, o sucesso de Dener na televisão foi incontestável. Evidentemente, esse sucesso estava associado às transformações pelas quais passaram a televisão no início da década de 1970, tal como a instituição da TV em cores e a busca por altos índices de audiência, que fizeram com que cada vez mais pessoas famosas, em diferentes ramos da sociedade, fossem convidadas a aparecer no vídeo. Após estrear no Programa Flávio Cavalcanti, o estilista foi convidado pela TV Itacolomi, de Belo Horizonte, para ser o apresentador de um programa de variedades, o primeiro em cores da televisão mineira, a ser reproduzido pela TV Tupi pelo resto do país (conforme edição do Estado de Minas, de 13 de abril de 1972). A TV Bandeirantes, de São Paulo, também lhe fez uma proposta, um programa de duração diária de dez minutos – Repórter indiscreto – no qual opinaria sobre moda, costumes, comportamento, etc. Ambas as emissoras só destacaram uma exigência: que Dener reproduzisse nos novos programas o ar afetado que lhe era característico no Programa Flávio Cavalcanti (DÓRIA, 1998). O desfecho não foi tão bem-sucedido como foi lucrativo. Um grupo de jornalistas de São Paulo logo se manifestou contrário ao Repórter indiscreto, alegando “total falta de masculinidade”, e ainda acusaram Dener de não possuir registro profissional (DÓRIA, 1998). Em Minas Gerais, a TV Itacolomi, que começou a transmitir Dener é um luxo, se viu impelida por entidades femininas do estado, sobretudo a Liga das Senhoras Católicas, a cancelar o programa, apesar dos índices de audiência terem alcançado picos na sua primeira e última apresentação. A essas senhoras juntou-se o comissário de menores de Belo Horizonte, Anael Pereira, o qual alertava para os riscos que os jovens corriam se o programa fosse mantido no ar. O comissário requereu junto ao Juizado de Menores medida de censura contra as aparições de Dener em emissoras de televisão em Minas Gerais (conforme O Jornal de Minas, em 27 de abril de 1972). Nesse contexto nada favorável, a censura começou a agir, retirando não somente Dener, mas também outros que assim como ele eram considerados tóxicos aos costumes por sua performance caracterizada por uma “total falta de masculinidade”. Sugiro que Dener começou a representar um problema quando sua imagem fugiu ao controle, momento em que as diversidades de gênero e sexualidade passaram a transbordar, a partir da televisão, para outros setores da vida social, sobretudo aqueles dotados de grande prestígio, como a academia. Na edição da Folha de S. Paulo de 29 de abril de 1972, Dener recebeu críticas dos deputados da Assembleia Legislativa de Pernambuco em função de um

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convite feito pelos alunos do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco para ser patrono dos formandos daquela turma. A matéria dá destaque à fala eloquente e apaixonada do deputado Severino Cavalcanti, da ARENA, no sentido de retirar da TV a figura de Dener e todos aqueles que se assemelhavam a ele em comportamento. O político ressalta o quão perigoso era aquela presença para preservação moral da sociedade. A fala foi aplaudida por outros colegas, como Monsenhor Ferreira Lima, João Guilherme de Pontes e Manoel Gilberto. O jornal reporta que Monsenhor Ferreira Lima teria recorrido ao ministro da Justiça para que este expulsasse tal presença da televisão. Toda essa polêmica teria começado quando um dos professores da Universidade Católica de Pernambuco, Rafael de Meneses, renunciou à cátedra como forma de repúdio ao convite feito pelos alunos. Tal fato provocou o alarde dos parlamentares, sendo mencionado por Severino Cavalcanti na referida matéria d’A Folha. O professor reforçava, em seus argumentos para abandonar a cátedra, o desrespeito dos universitários que fizeram o convite pela universidade e pelo ensino superior lecionado naquele estado. De acordo com ele, “Dener é um criador de deformações em nossos costumes e exorta o homem brasileiro a uma atitude demissionária” (DÓRIA, 1998, p. 139). O apelo ao ministro da Justiça surtiu o efeito esperado. Ao analisar os episódios finais da vida de Oscar Wilde, Didier Eribon (2008) destaca os eventos que levaram Wilde a ser preso naquele início do século XX. Semelhante ao que ocorreu com Dener, Wilde teve a sua vida íntima devassada diante da alegada suspeita de “homossexualidade” que o levou aos tribunais. Os episódios que marcaram o processo e posterior condenação de Wilde suscitaram debates acirrados acerca da “homossexualidade” naquela sociedade. No Brasil, já na década de 1970, Dener sofreu a condenação simbólica por sua performance não conforme em relação às convenções de masculinidade vigentes. Sofreu o peso da injúria de ser assimilado à “homossexualidade”. Seguindo o raciocínio de Eribon (2003), para quem a morte de Wilde converteu-se em um momento de mudanças no “papel homossexual” naquele país, Dener de algum modo fez o mesmo. Sua audiência, o triunfo de sua performance na televisão, promoveu uma consciência coletiva sobre as diversidades de gênero e sexualidade e ainda uma consciência de si entre as pessoas que o viam como exemplo pedagógico. Como afirma Eribon (2008), “toda palavra contra a homossexualidade é, ao mesmo tempo, uma palavra sobre a homossexualidade” (ERIBON, 2008, p. 181), assim essa palavra é encarada com inquietação por indivíduos que, através do caso Dener, ouviam falar de si e do seu “jeito de ser”, rompendo o indizível de sua experiência.

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Da mesma forma que Dener, Clóvis Bornay, Mauro Rosas, Clodovil e as “travestis profissionais” foram proibidos de ter suas imagens vinculadas à televisão. Clodovil foi desligado do programa Hora da buzina e Clóvis Bornay, do Programa Sílvio Santos. Ao vetar a aparição dessas pessoas, os censores acreditavam na eliminação dos perigos associados ao estigma da efeminação, sobretudo pela suposta ameaça à juventude73. A censura tornara-se ainda mais severa a qualquer artista ou personalidade que, aparecendo na televisão, comunicasse exemplos considerados negativos ao espectador. O ministro das Comunicações, Hygino Corsetti, acreditava na existência de uma televisão cuja programação estivesse livre de demonstrações de alcoolismo, erotismo e, sobretudo, das inversões sexuais (conforme a revista Veja de 17 de maio de 1972). Dessas orientações compartilhavam os ministros da Educação, Jarbas Passarinho, e da Justiça, Alfredo Buzaid (DÓRIA, 1998). Dessas determinações resultaram iniciativas mais rígidas de controle da programação televisiva, as chamadas Normas de Conduta da TV. Essas normas obrigavam os veículos a gravarem toda a sua programação, incluindo os programas de auditório, para submeterem à censura prévia. O vídeotape74 constitui a principal tecnologia de supervisão nesse período. Através dele era possível assistir previamente o conteúdo dos programas e retê-los antes de irem ao ar. Das transformações ocorridas nos programas de auditório, destacam-se as mudanças no Programa Flávio Cavalcanti, que saiu do ar no dia 11 de junho de 1972, retornando em 23 de agosto do mesmo ano totalmente reformulado, mais curto, atendendo às ideias do ministro das Comunicações. Já na rede Globo, dois programas sofreriam intervenção. O Programa Sílvio Santos passaria a ser mais curto, e o apresentador Chacrinha perderia um dos seus programas, possivelmente, afirmava a Veja, a Discoteca do Chacrinha, televisionado às quartas-feiras (Veja, 17 de maio de 1972). Também estavam fora os “tipos perigosos” da televisão brasileira. A revista Veja, em sua edição 180, de 26 de abril de 1972, tratou de registrar os episódios das demissões desses “tipos sem masculinidade” nas emissoras brasileiras, em matéria intitulada Veto ao trejeito:

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Gayle Rubin (2011) tece comentários muito próximos sobre a suposta ameaça que a “homossexualidade” proporciona aos jovens quando se debruça sobre a sociedade norte-americana. A autora utiliza a noção de “pânico moral” para analisar os jogos políticos que instituem controle sobre a sexualidade. A ameaça de corrupção da juventude é um dos principais argumentos adotados quando se quer exercer o controle sobre um dado comportamento sexual considerado transgressor das convenções sexuais. 74 Quem se beneficiou com a proibição expressa dos mecanismos de censura aos “tipos efeminados” foi a Rede Globo, através do seu mais destacado executivo, Boni. Com o pretexto de identificar e bloquear o conteúdo transgressor antes de ir ao ar, ele fez o governo federal investir na compra de custosos equipamentos de gravação, os quais foram cedidos à emissora.

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A guerra está declarada e já fez a primeira vítima: Clóvis Bornay atingido por um fulminante bilhetinho da direção da rede Globo e afastado do Programa Sílvio Santos, na mesma semana. A ordem, atendendo “sugestão” da censura, era apenas desarmá-lo dos “trejeitos e das faceirices”, mas, como sem essas armas Bornay não tinha função no júri, a solução foi mandá-lo embora. E, agora, um cerrado bombardeio moralista visa a desalojar dos programas de auditório (onde se tornaram figuras obrigatórias ultimamente) todos os militantes dos “trejeitos” (VEJA, 1972).

A matéria destacava ainda o “beco sem saída” em que essas pessoas eram colocadas, uma vez que o autopoliciamento dos “trejeitos” não era suficiente para mantê-los na televisão, já que eram os mesmos gestos que construíam o interesse da plateia sobre eles. A matéria diz que Dener tentava contornar a situação controlando mais o corpo e tecendo elogios ao Mobral75, mas não obteve êxito. Clóvis Bornay constituía um escândalo ainda maior, posto que costumava aparecer no Programa Sílvio Santos com salto alto, bolsa e peruca, como podemos ver em uma foto pessoal logo abaixo (Imagem 24).

Imagem 24 – Clóvis Bornay participando do Programa Sílvio Santos (Fonte: acervo pessoal das filhas de Clóvis Bornay).

A TV Itacolomi, diante do novo cenário, logo desfez o contrato com Dener, assumindo os altos custos de tal feito. O episódio com as senhoras mineiras foi descrito por David Nasser, da revista O Cruzeiro, em matéria intitulada O sexo dos anjos, na qual criticava o

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Movimento Brasileiro de Alfabetização. Trata-se de um projeto social do governo militar brasileiro cujo objetivo era promover a alfabetização para indivíduos acima da idade escolar convencional.

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pendor dos mineiros por tudo aquilo que era sólido no que se relaciona à vida social. O assunto ganhou muita projeção, demandando de Nasser um outro artigo que ele intitulou de Go home, bicharada!, no qual debate, em forma de novela, a situação dos excluídos da tela naqueles episódios. Os personagens Clóvis Bornay, Clodovil e Dener estão comentando, na matéria, as suas exclusões do vídeo, evidenciando uma crítica ácida às atitudes da ditadura contra um tipo de comportamento que, querendo ou não, estava consolidado, ficando a cargo da “natureza de cada um”, afirmava Nasser, revelar-se. Se a censura de hábitos teme a nossa presença no vídeo e receia o nascimento de inúmeros clodovis, bornays e deners pela semeadura das micro-ondas, respeitemos o zelo da censura. Voltemos aos nossos ateliês, às nossas passarelas, aos nossos teatros, aos nossos livros, às nossas canções, e deixemos que a natureza de cada um se manifeste livremente, antes que exploda nas ruas, numa estúpida marcha de protesto da família, as tabuletas mandando voltar para casa a bicharada, entre a qual, diga-se de passagem, não me coloco (NASSER, 1972).

A crítica de Nasser não ficou solitária entre a imprensa brasileira do período. O humor foi uma linguagem corrente adotada pelos veículos de comunicação para noticiar os episódios das demissões dessas pessoas das emissoras de televisão. O Estado de Minas, em 27 de abril de 1972, noticiava que uma gripe apelidada “Dener” afligiu Fortaleza em decorrência do tempo frio que chegou à região. O jornal destacou que as crianças eram as maiores vítimas da gripe, que assolou a capital e o interior cearenses. Tal notícia evidencia a habilidade com que a cultura popular assimilou as informações produzidas pelo governo em relação a essa presença na TV. O cartum do então iniciante Nani (Imagem 25), em O Jornal de Minas de 05 de maio de 1972, mostra com muito humor a interrupção dos trabalhos de Clodovil de Dener na televisão. Fica evidente na Imagem 25 – Cartum de Nani sobre as demissões de Dener e charge

o

quanto

os

Clodovil. (Fonte: O Jornal de Minas, 05 mai. 1972. Acervo

“trejeitos”, pessoal de Luiz Morando).

materializados no “ui” emitido por um dos personagens, foram o principal responsável pelo violento pontapé, ao mesmo tempo súbito, que extirpou as imagens dessas personalidades da televisão brasileira. As reações, contudo, não foram somente da imprensa especializada. O público, apaixonado pelos bordões e jeito de ser dessas personalidades, protagonizou tentativas de

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resistência às censuras dos gestores públicos. O Jornal de Minas, em 07 de maio de 1972, noticiou a organização de uma passeata por um grupo de jovens em frente ao Canal 4, em São Paulo, solicitando o retorno do estilista Dener às telas. De acordo com Marcos Souza Lima, repórter responsável pela matéria, os jovens confeccionaram faixas com os dizeres: “Nós somos do Bloco do Luxo, exigimos a volta de Denner” (O JORNAL DE MINAS, 1972). O apresentador Chacrinha também chegou a se pronunciar contra o veto das autoridades, segundo ele, na época, “o povo está ávido de gargalhar, de brincar e eles proporcionam isso” (VEJA, 1972). O conjunto desses eventos mostra evidências da ainda pouco explorada relação entre sexualidades não normativas e ditadura. É possível perceber que essa conexão é cercada de silêncios que carecem de pesquisas mais intensas sobre o período. Colaço (2014), no artigo De Denner à Chrysóstomo, a repressão invisibilizada: as homossexualidades na ditadura (1972 a 1983), afirma que a repressão contra as “homossexualidades” pelo estado autoritário, apesar de não contar com um dispositivo jurídico específico, não deixou de ser intensa, atuando, sobretudo, na proibição desses indivíduos nos grandes veículos de comunicação e no controle exercido sobre os eventos de entretenimento envolvendo as “travestis”. Porém, ao contrário do que queriam os censores, as sexualidades não normativas já ocupavam a cena pública. Mais do que a afetação que animava a plateia dos auditórios, a presença desses homens nesses programas de grande popularidade implicava uma insurgência das sexualidades não normativas nos lares brasileiros, contribuindo para a construção de um “papel não heterossexual” na nossa sociedade. O público não apenas gostava dessa presença como exigia os trejeitos, gritinhos, bordões e afetações característicos de Dener, o que representava não apenas um risco à moral e aos bons costumes da “família brasileira”, mas, sobretudo, à autoridade militar – cujo poder foi conquistado graças ao apoio desses setores mais conservadores da sociedade. A performance desses indivíduos foi produzida a partir do contato com esse público. O que era considerado pior pelos militares, o público reproduzia, em seus bordões. Essa recepção da audiência encorajava uma aceitação parcial das sexualidades não normativas. Parcial no sentido de que essa visibilidade era produzida na chave do grotesco, provocando, simultaneamente, risos e estranhamento. Mesmo que aprisionada a estereótipos, as sexualidades não normativas passam a fazer parte do cotidiano dos lares brasileiros. Visualizada por centenas de aparelhos de televisão, especialmente em horários familiares, como o domingo, aqueles seres que antes habitavam o carnaval passaram a integrar a

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regularidade da vida cotidiana, sendo capturados por sentidos associados ao excêntrico e ao exótico. Não somente a proibição marcou a relação da televisão com essas novas “formas de vida”. Os programas de auditório promoveram ainda uma verdadeira espetacularização das sexualidades não normativas através de estratégias que muito se assemelhavam aos freak shows, como ocorria na cobertura pelos jornais e revistas dos bailes dos teatros da região da Praça Tiradentes. Os programas Show de Calouros, do apresentador Sílvio Santos, e o famoso Clube do Bolinha, apresentado por Édson Cury (Bolinha), se destacaram por essa presença “excêntrica” que promovia sentidos em torno da noção de “bichice”, revelando personagens que se consolidaram na vida cotidiana dos brasileiros. Dos programas que mais contribuíram para a promoção de imagens sobre as sexualidades não normativas, o Clube do Bolinha é o mais representativo. Capitaneado por Édson Cury, o Bolinha, esse show televisivo, através do seu quadro Eles e Elas, foi o responsável por produzir performances relacionadas à “bichice” que seriam consolidadas na memória coletiva dos brasileiros. Édson Cury começou a sua carreira como animador de um programa chamado Chuveiro Lorenzetti, no segundo canal da Tupi76. Tratava-se de um programa de calouros, no qual os cantores desafinados eram parados de cantar com um banho de ducha. Ganhou fama como locutor de campo na rádio Excelsior. Começou a fazer o Clube do Bolinha em 1974, ficando até 1994, sendo considerado um dos programas-líderes da TV Bandeirantes. Tamanha era a repercussão do quadro em nível nacional que se refletia na vida do seu apresentador. De acordo com ele, em entrevista ao programa Jô Soares, em 1997, esse quadro teria despertado para si uma “fama”, a qual, segundo ele, era de “viado”. Chegaram mesmo a produzir rumores de que estaria casado com Telma Lipp, famosa “travesti” que compunha o seu corpo de jurados. O caso ganhou projeção pública quando uma jornalista do veículo Notícias Populares teria investido na notícia de que Bolinha e Telma iriam se casar. Bolinha foi entrevistado por diferentes veículos, chegando a ser sabatinado publicamente na Rádio Capital, quando muitas ouvintes manifestaram sua condenação ao caso. O Eles e Elas foi criado em 1979, diante de um clima de intensa repressão instituído pela ditadura. De acordo com Bolinha, para que o quadro fosse ao ar, ele não podia nomear as calouras com a categoria “travesti”. Deveria apenas dizer o nome da concorrente, ficando ao público a compreensão do conteúdo das apresentações. A dinâmica do quadro consistia em

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A TV Tupi possuía dois canais.

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um concurso no qual as competidoras se apresentavam no palco, geralmente dublando cantoras ou músicas famosas. Quando Bolinha começava a apresentar o Eles e Elas, a músicatema Calúnia (Telma eu não sou gay) ganhava o auditório, demarcando o campo simbólico sobre o qual as calouras se inseriam. Coincidentemente, a Telma aclamada por Ney Matogrosso na música-tema tinha o mesmo nome da famosa Telma Lipp, a “travesti” que compunha o corpo de jurados do programa, com quem Bolinha, de acordo com a mídia, teria um “caso”. Além dessa aproximação simbólica, a música é plena de outros simbolismos relacionados às sexualidades não normativas, começando com o título, Calúnia. A noção de calúnia se aproxima da ideia de injúria, com a qual Eribon (2008) analisa a construção da subjetividade das pessoas identificadas como “homossexuais”. O fio condutor da canção é um pedido para reatar uma relação amorosa estremecida pela suposta “homossexualidade” do rapaz, ressaltando a redenção do ator de suas experiências passadas, assumidamente “homossexuais”. O personagem da canção afirma serem calúnias as acusações de que não teria se redimido do comportamento considerado moralmente reprovável. Nesse pedido fica implícita a percepção da “homossexualidade” como, simultaneamente, vergonhosa e anormal. O pedido para reatar a relação é acompanhado da certeza de uma redenção dos atos que ficaram no passado, reabilitando o personagem às convenções sociais associadas a estereótipos de gênero: bobes para ela, terno para ele, elementos formadores da felicidade do casal. O tom melancólico da música afirma ainda mais o seu potencial de deboche dessas convenções, uma vez que era o caluniado quem, narrando o seu drama, expunha o dilema da vida dupla vivida por muitos “homens homossexuais”, muitos dos quais mantêm mulher e família associados a uma outra vida na qual se entregam ao deleite sexual com iguais. A injúria envolvendo “travestis” famosas, tais como Telma Lipp, foi recorrente na década de 1980, não apenas Bolinha fora envolvido nessa teia, mas também o cantor Erasmo Carlos. Tais processos de acusação revelam o suposto potencial contagioso que as sexualidades não normativas tendem a atrair para aqueles que ousam exibi-las. O Show de Calouros do apresentador Sílvio Santos foi outro exemplo de programa de auditório no qual as sexualidades não normativas ganhavam ares de “espetáculo de consumo”. O Show de Calouros começou a ser televisionado em 1973 pelos veículos TV Record e TV Tupi, em São Paulo, e TVS, no Rio de Janeiro. Em 1981, com o início das atividades do Sistema Brasileiro de Televisão – SBT, o programa ganhou mais projeção, sendo a marca de Sílvio Santos. Neste momento, a bancada do júri começou a ser formada por outros artistas da emissora convocadas pelo “patrão”. Foi ainda na década de 1980 que os chamados

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“transformistas” começaram a ser destaque no programa, aguçando a curiosidade popular a esse respeito. Sugiro que essa presença foi um dos motivos da manutenção da audiência e da longevidade desse programa no ar. O Show de Calouros consistia em um concurso de variedades no qual os calouros apresentavam os seus prodígios no palco para concorrer a prêmios. Aquele que conseguisse ir para grande final – contabilizando cinco apresentações – se estabelecia como grande vencedor. No júri, nomes como Consuelo Leandro, Aracy de Almeida, Pedro de Lara, Elke Maravilha, entre outros, revelavam a sua opinião acerca das apresentações. Algumas dessas manifestações eram marcadas pelo deboche e pelo desdém ao personagem freak que se encontrava no palco. Eram várias as modalidades de participação, sobretudo dos chamados “transformistas”, os quais se notabilizaram como principais atrações do Show de Calouros. Um desses “transformistas” que mais despertou a atenção do público foi Erick Barreto, que ficou conhecido por suas reproduções da performance de Carmem Miranda. Erick ficou conhecido do público mais amplo, assim como nos espaços dedicados à sociabilidade “bichal”, tais como a Turma OK. Nesse espaço, o célebre “transformista” ainda hoje é lembrado como uma das figuras de destaque da arte do “transformismo”. Erick é uma espécie de ícone recordado quando se quer realçar as personalidades importantes que passaram pela Turma OK. Ser consumido como freak implicava algumas reações no plano da vida cotidiana. Em um dado momento, parece que todas as pessoas que eram identificadas como fora da norma sexual vigente deveriam agir conforme os moldes de comportamento daqueles que apareciam na televisão. A imagem das sexualidades não normativas como associada aos papéis de gênero foi uma construção tão bem-sucedida quanto perigosa para as gerações que viriam depois. Essa construção ofereceu uma moldura de significados erguida pelo mundo televisivo que consolidou expectativas sociais relacionadas às pessoas identificadas como fora da norma sexual. A percepção das sexualidades não normativas como freak foi consolidada de forma ainda mais acabada nas transmissões do Baile Gala Gay, importante baile de carnaval dedicado às “bichas” e “bonecas” realizado no Scalla – famosa casa de shows do Rio de Janeiro. Essas coberturas muito se assemelhavam àquelas realizadas nos bailes de “enxutos” e “bonecas” da Praça Tiradentes. A entrada e saída das pessoas que o frequentavam se constituía em “espetáculo de consumo”, onde o que estava sendo consumido era o excesso – homens vestidos de mulher, silicone, frescura, erotismo, etc. –, elementos que foram

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responsáveis por consolidar um imaginário coletivo sobre as sexualidades não normativas nos marcos do estranhamento e do estigma. Aparentemente, a noção de “transformista” parece ter sido adotada pela linguagem televisiva como um recurso para não mencionar a expressão “travesti”. Interessante destacar que a linguagem grotesca dos programas de auditório autorizava a presença desses indivíduos que vivenciavam o feminino no registro da paródia, mas, ao mesmo tempo, a presença das “travestis”, como Rogéria e Divina Valéria, era silenciosamente negligenciada. Na revista Amiga de dezembro de 1972, o apresentador Chacrinha chama a atenção para o sucesso de Rogéria, a quem chama de “nossa Rogéria”, em sua tournée pelo exterior, lamentando os problemas enfrentados pelas emissoras com a censura quando resolviam trazê-la ao ar. Tal proibição parece estar circunscrita à televisão, quando considerado o alarde protagonizado pela imprensa na época de retorno dessas “travestis” de suas estadias pela Europa. Profissionais importantes de veículos de comunicação, tais como Nina Chaves e Ibrahim Sued, noticiaram com entusiasmo essa chegada, dedicando páginas inteiras de revistas e jornais para divulgar especificidades da vida dessas “travestis”.

3.4 – A breve conquista do horário nobre

Não foi somente nos programas de auditório que as sexualidades não normativas se converteriam em “espetáculo de consumo”. As novelas foram ainda um palco de tensões referentes as diversidades de gênero e sexualidade que merece um exercício de reflexão. Diferentes trabalhos têm se debruçado sobre a presença de personagens não heterossexuais nas tramas brasileiras. Não busco aqui revisar essa literatura, tampouco compreender a forma como essas personagens são construídas no curso das tramas. Procuro, antes, através da trajetória de Claudia Celeste, a primeira “travesti” a fazer novela no Brasil77, compreender como a proibição marcou a sua experiência de vida, ao mesmo tempo que delineava um espaço restrito para essas pessoas. 77

Rogéria fez, ao longo da sua carreira, participações em diferentes novelas da TV Globo. Algumas de suas personagens ficaram famosas, como foi o caso da Ninete, em Tieta, de 1989 e Alzira Celeste, em Lado a Lado, de 2012. Esta última personagem foi celebrada por Rogéria em diferentes entrevistas que concedeu a veículos de comunicação: ela foi percebida como o coroamento de sua carreira, já que se tratava de uma “travesti” atuando como uma mulher da sociedade, e não fazendo o papel de si mesma. Tal feito foi considerado por Rogéria como um dos momentos mais importantes de sua longa carreira, uma vez que teria definitivamente sido reconhecida como atriz.

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A primeira atuação de Claudia Celeste em uma novela foi em 1977, em Espelho Mágico. O contexto da trama era o próprio meio artístico, que servia de fio condutor para a personagem de Sonia Braga, a qual fazia de tudo para ser reconhecida como artista, não se furtando, inclusive, a praticar sexo com pessoas que a ajudassem neste processo. Claudia já participava do bas-fond noturno carioca há algum tempo, dançando em boates e fazendo “shows de travesti” no Teatro Brigitte Blair quando foi surpreendida pelo convite feito pela equipe da novela. Aí foram no Teatro da Brigitte Blair, que ela estava com uma peça de mulheres lá que tinha, que era com as chacretes na época, entendeu? E eu era uma das atrações também, Claudia Celeste. Não dizia a travesti Claudia Celeste, eu era apresentada Claudia Celeste, acabou, entendeu? Quem soubesse que eu era travesti, sabe, quem não sabe ficava por ali mesmo. Eu era um artista que estava em cena. Aí eles contrataram algumas cenas no teatro dela para levar para a novela. E numa dessas cenas, o diretor Daniel Filho, gostou do número que eu fazia, que era Big Spender, eu fazia um balé que eu cantava Big Spender: “Hey, big spender! Spend a little time with me...”, trum na cadeira com umas perucas tudo Black Power coloridas, umas coisas assim de puta, com umas sainhas curta e tudo, balé de cadeira que tinha com as bailarinas. E aí ele gostou desse balé, e queria que fosse o número pra Sonia Braga entrar nesse balé, dentro do balé, e tal e coisa. E aí foi feita assim a cena com esse balé. E aí eu fui contratada também porque eu estava lá no meio disso. Ninguém estava sabendo de nada que eu era travesti. Não foi comentado. Daniel Filho nem imaginava. Ninguém imaginou nada! (Claudia Celeste)

De acordo com Claudia, ninguém suspeitou que ela era “travesti” até que um jornal de Copacabana, o qual, de acordo com ela, tinha uma coluna dedicada a temas de interesse das “bichas”, fez uma nota, assinada por Glorinha Pereira, usando uma foto e noticiando a sua participação na novela. Instantaneamente, Claudia Celeste ficou conhecida pelo público mais amplo como a “travesti” que estava na novela. A Gazeta de Notícias de 07 de agosto de 1977 noticiou em letras garrafais Cláudia (ou melhor, Cláudio), o travesti que enganou todo mundo, e revelou aspectos da trajetória de vida de Claudia, como a sua precoce ingestão de hormônio, com 17 anos, e a afirmação de que ela não escondeu de ninguém sua real “condição de travesti”. A matéria finalizava destacando a incerteza do futuro de Claudia na Rede Globo. Diante do falatório motivado pela aparição de Claudia na televisão, a direção da telenovela optou por retirá-la dos capítulos que tinha gravado, restando somente quatro capítulos que contaram com a sua presença. Claudia afirma que foi por causa dos militares que a sua participação não teve continuidade na novela. Entretanto, de acordo com reportagem da Contigo, revista de amenidades especializada na vida de famosos, na época da novela Olho por Olho, foi Daniel Filho que teria feito um escândalo quando descobriu que Claudia era “travesti”, antes mesmo de qualquer investida dos censores federais, impedindo imediatamente que as cenas que já

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tinham sido gravadas fossem ao ar. A reação de Daniel Filho tinha uma razão de ser, já que, de acordo com a Gazeta de Notícias, de 07 de agosto de 1977, havia uma proibição federal que impedia que “travestis” como Valéria e Rogéria aparecessem no programa Fantástico. Apesar de Claudia Celeste não ter um personagem considerado importante para o conjunto da trama, sua presença em si era considerada perigosa em função da conhecida proibição dessas pessoas na TV. Mesmo tendo sido retirada da trama, a aparição pública em dimensões como aquela estimulou a carreira de Claudia, que começou a participar de outras produções, sobretudo em boates do Rio de Janeiro. Nessas apresentações, Claudia quase sempre chocava a plateia com um strip-tease cuja função era borrar definitivamente as convenções relacionadas a sexo e gênero, uma vez que a informação de Claudia ser uma “travesti” era acompanhada da retirada completa da roupa, deixando todos os presentes com a marca da dúvida. Foi somente em 1988 que Claudia Celeste retornou ao ar, com a novela Olho por Olho da Rede Manchete. Essa novela fazia parte de um conjunto de mudanças operadas na grade de programação desta emissora. A Rede Manchete iniciou as suas transmissões oficialmente em 05 de junho de 1983, às 19 horas, com um pronunciamento de Adolpho Bloch78, que destacava que a nova emissora seria responsável por uma programação de alto nível (FRANCFORT, 2008). Em 1988, então comemorando um lustro, a emissora revia seu objetivo inicial, dada a enorme dívida associada à baixa audiência de muitos de seus produtos. A grade de programação composta de programas de entrevista, documentários e jornalismo não conseguia competir com uma programação de feição mais popular, tal como a Globo e o SBT produziam. Diante desse contexto, a novela Olho por Olho buscou repetir o êxito de Corpo Santo e Carmem, lançamentos anteriores que combinavam elementos polêmicos em seus enredos, que iam desde a prostituição até a participação de seus personagens em religiões afro-brasileiras. Tais elementos eram enredados em tramas com forte inspiração nos romances policiais. Essa mistura de marginalidades parecia atrair o público, fazendo a Rede Manchete liderar a audiência em relação a sua concorrente no negócio das novelas, a Rede Globo (FRANCFORT, 2008). A dimensão policialesca não fugia ao enredo de Olho por Olho, que tinha como ponto alto da história a vingança de três irmãos que tiveram o pai assassinado. A exemplo de Corpo

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O pronunciamento de Adolph Bloch na ocasião da inauguração da rede Manchete foi subitamente interrompido por uma chamada publicitária da Lubrax (óleo lubrificante da Petrobras). Retornando após o incidente, ele justificou a falha afirmando se tratar de “coisas eletrônicas” (FRANCFORT, 2008).

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Santo, a dimensão marginal da cidade do Rio de Janeiro com seus “tipos humanos” e “zonas morais” constitui o pano de fundo para os dramas e histórias dos personagens. Foi nessa teia de relações morais que Dinorá foi concebida. A personagem Dinorá foi pensada para ser vivida por uma “travesti”, admite Claudia. Os autores, José Louzeiro e Geraldo Carneiro79, queriam oferecer autenticidade a este personagem, uma “travesti” que morava com Paula, prostituta interpretada por Beth Goulart. Claudia disse que para o personagem foram feitos vários testes, sem que tivesse sido escolhida a atriz. Aproveitando a sua expertise conquistada em sua outra experiência com novelas, Claudia fez um teste considerado adequado aos objetivos do papel de Dinorá. Foram 157 capítulos dos quais Claudia Celeste participou profissionalmente como atriz do elenco fixo ao longo da trama, não apenas fazendo uma “ponta”, ela ressalta. Além de atuar, Claudia prestava uma espécie de consultoria sobre o “mundo dos inferninhos” do Rio de Janeiro para os escritores da novela e para a atriz Beth Goulart. Mesmo tendo feito uma participação que pode ser considerada histórica como a primeira “travesti” a entrar no espaço mais cobiçado da televisão na época, as novelas, Claudia acredita que a projeção que sua personagem poderia ter conquistado foi prejudicada por dois motivos: 1) o fato de a novela não ter sido produzida pela Rede Globo, mas sim por uma emissora em processo de formação de público, como a Manchete; e 2) a intensa visibilidade dedicada a Roberta Close no período, a qual impedia que os refletores fossem virados para outro personagem com as mesmas características. Ainda que a participação na novela seja vista como um evento importante na sua trajetória, Claudia afirma que essa participação teria limitado profundamente o seu “campo de possibilidades” como artista. Segundo ela, depois da experiência como Dinorá, todos passaram a vê-la como apenas uma “travesti”, que teria vivido o seu próprio drama particular – enredado nas tramas da prostituição – na novela. Claudia conta que ficou desapontada com a falta de oportunidades que encontrou pela frente depois da novela, o que a levou para a Europa, como fez a geração anterior de “travestis”.

3.5 – Do glamour à abjeção

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Leila Miccolis, escritora e importante militante do movimento homossexual que surgia na época, participou do processo de confecção do texto da novela posteriormente (FRANCFORT, 2008).

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A televisão, junto a outras “tecnologias do olho” (BRAH, 2006), como as revistas de grande circulação, tiveram imenso protagonismo no processo de consolidação das sexualidades não normativas como um “lugar simbólico e social” na sociedade brasileira. Ainda que esse lugar tenha sido forjado em imagens estereotipadas do que vinha a ser esse indivíduo, as sexualidades não normativas haviam definitivamente deixado as sombras da vida social para se apresentar na ordem do discurso (ERIBON, 2008). Entre fins da década de 1970 e início da década de 1980, as “travestis profissionais” eram reconhecidas e até mesmo celebradas como produtos genuinamente brasileiros. Mas não parava por aí, os barulhentos programas de auditório, que se avolumavam na televisão brasileira, sempre garantiam, no júri ou no palco, uma persona televisiva que fosse relacionado a uma performance “bicha” – espectros de Dener. Apesar do êxito das carreiras das “travestis profissionais” que foram para a Europa e do sucesso de personalidades como Dener e Clóvis Bornay, toda essa visibilidade, contudo, não foi convertida em mais liberdade de trânsito pelos espaços sociais. O impedimento de serem exibidas na televisão é um exemplo importante dessa dinâmica. Claudia Celeste experimentou essa proibição intensamente em sua curta carreira como atriz de novelas. Retornando às ideias de Foucault (1988) sobre a proliferação dos discursos sobre o sexo, é possível perceber que não é falando sobre ele que se pode superar as suas proibições e afiançar sua liberdade. É mais fecundo, segundo o autor, ficar atento a quem fala e de onde se fala para compreender a lógica desses discursos. Se, pelo filtro do mercado de bens culturais, esses indivíduos foram ressignificados pela lógica do glamour, através da incorporação de discursos relacionados a gênero e classe social, dois processos que ocorreram na década de 1980 mudaram esse foco: o fenômeno Roberta Close e o consumo espetacular da AIDS nos veículos de comunicação de massa. Ambos os fenômenos foram tomados como ameaças a ideia de nação, estimulando políticas de abjeção dirigidas às sexualidades não normativas. Juntos, esses processos desencadearam uma proliferação dos discursos acerca das sexualidades não normativas no Brasil, ao mesmo tempo em que acentuaram as “guerras sexuais” em torno da regulação da mesma. Essas mudanças tiveram muitas implicações, mas creio que a principal delas gira em torno do paradoxo que causou sobre a exibição das sexualidades não normativas na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo que esses eventos aprofundaram o debate sobre as sexualidades não normativas de forma sistemática e exponencial, eles evocaram antigos e novos “pânicos morais” que tinham sido serenados durante o período em que as sexualidades não normativas foram tidas como objeto de fascínio. Dessa forma, a entrada na norma através do glamour passou a ceder lugar a uma

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severa política de abjeção, através da qual os discursos sobre as sexualidades não normativas começaram a produzir seus novos sujeitos. Existe no Brasil ampla literatura dedicada a entender os impactos da AIDS na construção de representações sobre as sexualidades não normativas (TERTO JR, GUIMARÃES E PARKER, 1992; TREVISAN, 2000; PARKER, 2002). Sobre Roberta Close há também alguma literatura, mais volumosa do que aquela dedicada a “travestis” como Rogéria, Divina Valéria, Marquesa e outras dessa primeira geração. Roberta Close tem, inclusive, uma biografia dedicada à sua vida. Não se busca aqui detalhar esses processos de maneira pormenorizada, mas compreender os impactos que as iconografias relacionadas a tais fenômenos em dois momentos pontuais tiveram na exibição das sexualidades não normativas para o conjunto da sociedade. Para tanto, o campo de análise será delimitado a dois momentos específicos: o primeiro diz respeito à emergência de Roberta Close como mito erótico, em 1984, com a publicação da Playboy e as implicações nos debates que surgiram naquele ano em diferentes setores da sociedade brasileira. Já o segundo se relaciona à história do surgimento da AIDS no Brasil, destacando a publicidade em torno das mortes do estilista Markito e do ator Rock Hudson, ambos em decorrência dessa síndrome, no curto período de dois anos, entre 1983 e 1985. Esses eventos reacenderam “pânicos morais” originados da associação das sexualidades não normativas com uma combinação de doença e pecado – nociva à família e à sociedade – e impactaram na percepção pública dessa prática e dos seus sujeitos, mas consolidaram essas sexualidades como um enunciado público. Sobre esses pontos é que quero me deter. No início da década de 1980, a sociedade brasileira se viu abalada pela emergência de uma figura que entraria, mesmo que a contragosto, para a história: Roberta Close. Ela estampou, em maio de 1984, a capa de uma revista dedicada quase que exclusivamente ao erotismo heterossexual masculino, a Playboy. Mesmo não figurando como modelo principal daquela capa, que era ocupada por Lídia Bizzocchi, ganhou destaque em uma chamada lateral, em que, abaixo de sua foto, lia-se: “Incrível: as fotos revelam por que Roberta Close confunde tanta gente!” (PLAYBOY, 1984). Famosa por levar às bancas modelos de curvas sinuosas, muito das quais famosas da televisão, a Playboy daquele maio de 1984 esgotou em três dias uma tiragem de 200 mil exemplares. Tal façanha, em meio ao que Ruy Castro, jornalista da Folha de S. Paulo, chamou de momento de decadência da indústria pornográfica, com a queda substancial do número de revistas do gênero vendidas, exerceu uma repercussão sem precedentes na vida da jovem modelo. Do dia para noite, Roberta Close foi catapultada à principal celebridade brasileira, aparecendo diariamente em diferentes veículos de

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comunicação. Dado o sucesso de vendas, a Playboy lhe dedicou um número especial, trazendo novas fotos, incluindo a capa principal, e reunindo informações sobre a carreira do chamado “fenômeno nacional”. Ao aparecer em uma revista de consumo erótico masculino de tão grande circulação, Roberta Close foi convertida em símbolo do desejo erótico do homem brasileiro, o que desencadeou diferentes discursos sobre os rumos da sociedade brasileira. Tais discursos partiram de antropólogos renomados, passando por psicanalistas, até jornalistas e políticos. Roberta Close colocou definitivamente as sexualidades não normativas na “ordem do discurso”, em expressão consagrada por Foucault (1999). Essa proliferação discursiva expunha as diferentes formas com que a sociedade brasileira construía e consumia representações sobre as diversidades de gênero e sexualidade que iam ganhando visibilidade. Uma nova personagem surge com Roberta Close, a “transexual”, ainda que a mídia da época adotasse a categoria “travesti” para falar dela. Roberta Close reatualizava uma imprecisão classificatória, muito semelhante àquela dos “homens em travesti” do passado. Mas esta imprecisão agora era reforçada pelas novas descobertas científicas e sua atuação nos corpos, dotando-os de uma perfeição grega. Todas essas dimensões fizeram com que Roberta Close fosse saudada pela mídia como um “enigma”. A repórter Junia Nogueira de Sá começava a matéria intitulada Roberta Close, a bela esfinge para o jornal Folha de S. Paulo, de 31 de maio de 1985, da seguinte forma: “A mulher da moda no Brasil, hoje, a mais cobiçada, a mais sensual, a mais fotografada, perseguida e até beliscada em suas aparições públicas é...um homem” (SÁ, 1985). A matéria destacava pontos importantes da trajetória de vida de Roberta Close, ressaltando a sua infância, momento identificado como crítico para a construção de sua identidade. A modelo afirmou na reportagem que sua mãe identificara, ainda quando criança, características femininas em seu corpo e personalidade. Recorrendo a um médico para avaliar essas “diferenças” sob a autoridade de sua mãe, ela disse que começou a tomar hormônios femininos. Com 14 anos, ela alegou que ninguém notava suas transformações, uma vez que todos nessa época usavam cabelos compridos, jeans e tênis. Aos 17 anos, ela foi convidada a ingressar no mundo das passarelas. O que mais chamava a atenção sobre Roberta Close era a naturalidade de seu corpo e performance. Ela “passava por uma garota comum”. A imagem da “mulher fatal” não se aplicava à sua performance nesta primeira aparição pública. Diferente das “travestis” da geração de Divina Valéria, ela não tinha relação com o mundo do show business, o que a encaixava ainda mais em uma iconografia da normalidade. A inserção da geração de Divina

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Valéria no mundo dos espetáculos consolidava uma percepção de artificialidade sobre essas “travestis”. Ainda que parecessem “mulheres de verdade”, elas eram reconhecidas como “travestis” e ganhavam a vida a partir desse reconhecimento. Com o crescimento do número de “travestis” que migraram para a Europa e aquelas que ficaram por aqui associado ao pouco espaço nos meios artísticos, muitas construíram as suas trajetórias relacionadas à prostituição. Já no início da década de 1980, as reportagens sobre Roberta Close realçavam sua diferença em relação a essas “travestis”. A “diferença” de Roberta Close era construída em contraste com essas “travestis”, assimiladas ao exagero. A iconografia da normalidade evidenciada na performance de Roberta Close punha em risco a própria normalidade, posto que desafiava as fronteiras simbólicas impostas como naturalmente dadas sobre o que era ser homem e mulher na sociedade brasileira. Se, até então, as “travestis” eram consideradas seres que não se confundiam com as mulheres biológicas, com a construção de Roberta Close como mito erótico no Brasil essa relação é desfeita. Divina Valéria, Rogéria e outras podiam até mesmo ser erotizadas em revistas e outros veículos, mas jamais foram assumidas como veículos do desejo sexual masculino, nunca foram consumidas como ícones do imaginário pornográfico. Roberta Close colocou em xeque a naturalização da relação sexo-gênero-desejo, nos termos de Butler (2003), afirmando a possibilidade de o homem brasileiro ter desejos por uma mulher cujo corpo, ainda que feminino, preservava a marca distintiva do corpo masculino, o pênis. Tal crise logo seria reconhecida, sobretudo, por determinados especialistas vinculados aos meios de comunicação, como o psicanalista Guilherme W. Machado, que em seu artigo ao jornal Folha de S. Paulo, de 24 de junho de 1984, intitulado Roberta Close, por que tão próxima?, chama atenção, a partir de uma interpretação psicanalítica de cunho lacaniano sobre esse desejo que tomou de assalto grande parte da população masculina brasileira. O ponto alto da preocupação do psicanalista era o assombroso sucesso de vendas de Roberta Close, mesmo tendo sido de conhecimento público o fato de que ela possuía um pênis, como bem fez questão de ressaltar na matéria. De acordo com o psicanalista: A teoria psicanalítica ensina que um ser torna-se desejável na medida em que se confunde com uma imagem que trazemos conosco, imagem que se estrutura desde nosso nascimento como sujeito e que, segundo as circunstâncias de nossa formação, é mais ou menos neurótica ou perversa. Essa imagem é, de fato, uma acumulação de restos de experiências eróticas – orais, anais, fálicas, do ver e do ouvir – que é variável e individual tal como uma combinação matemática complexa. Aquilo que encontramos no ser amado é algo de pessoal e o outro é o seu suporte imaginário (MACHADO, 1984).

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Ele afirma que o pênis de Roberta Close constituiria, no pensamento lacaniano, uma “atração à parte”, reputando uma grande vantagem de Roberta Close sobre as mulheres, posto que ela teria a habilidade de despertar “desejos diferentes”. Marta Suplicy, em reportagem no jornal Folha de S. Paulo de 09 de julho de 1984, sobre a publicação de seu livro Condição da mulher, também traz argumentos que se coadunam com os do psicanalista Guilherme W. Machado. Para ela, Roberta Close, a “nova namoradinha do Brasil”, afirmava ela, refletiria de forma acabada a situação de nosso subdesenvolvimento, uma vez que representaria “a sublimação do desejo homossexual latente nos homens” (SUPLICY, 1984). Continuando sua análise, Marta Suplicy afirma que muito do sucesso de Roberta Close decorre de sua ambiguidade sexual, colocando em dúvida se este teria solução de contiguidade caso ela fizesse a cirurgia e ganhasse uma “vagina artificial”. Tais percepções foram vivenciadas de forma ambígua pelas mulheres da época, sobretudo por aquelas ligadas aos debates feministas. Muitas feministas, como afirma Ruy Castro, em matéria da Folha de S. Paulo, achavam engraçado o fato de Roberta Close ter provocado a libido dos machos brasileiros. Outras encaravam o “fenômeno” como uma ameaça. A atriz Dercy Gonçalves, que foi uma impulsionadora dos concursos de fantasias de homens “em travesti”, expressou opinião contrária ao sucesso de Roberta Close nos veículos de comunicação. No programa da apresentadora Hebe Camargo, televisionado pela rede de TV Bandeirantes, em um ato controvertido, colocou os seios para fora e perguntou se Roberta Close tinha o que ela tem, sendo respondida por um silêncio constrangedor da plateia, afirmava a matéria da Folha de S. Paulo de 03 de julho de 1984. Outras ainda acreditavam que o sucesso de Roberta Close só fazia acentuar o compromisso nacional de organizar a sexualidade a partir da instituição do “jeitinho brasileiro”, uma vez que afirmava a impossibilidade de um homem “homossexual” vivenciar sua sexualidade sem ter que se vestir de mulher. Em outras palavras, só atualizou o compromisso brasileiro com o machismo (FOLHA DE S. PAULO, 1984). Mas não foram somente os especialistas psi e as feministas que opinaram sobre a presença de Roberta Close na mídia. Colegas antropólogos também realçaram as consequências de tamanha repercussão na sociedade brasileira. Em matéria publicada pela Folha de S. Paulo de 10 de julho de 1984 sobre a mesa redonda Antropologia das sociedades complexas, realizada durante a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Peter Fry chama a atenção para um traço característico da sociedade brasileira: o desrespeito às regras. Para Fry, a noção de “adiantar” se constitui como uma categoria analítica significativa que ajuda a

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entender este desrespeito como uma forma de obter algum benefício para si e para o seu círculo pessoal. Adotando o caso Roberta Close como emblemático, por se tratar de uma pessoa que alcançou fama e riqueza, o antropólogo afirma que a “aceitação” dela pelo grupo familiar é sempre mediada por compensações financeiras, que “adiantam” sua vida. As análises da antropologia também ocuparam a atenção na matéria intitulada A exceção virou regra, de Ruy Castro, publicada na Folha de S. Paulo de 16 de junho de 1984, na qual o jornalista expõe algumas ideias do antropólogo Roberto DaMatta sobre o fenômeno Roberta Close. Na matéria, o autor destaca o livro Carnaval, malandros e heróis, de DaMatta, colocando em relevo os argumentos do antropólogo acerca das noções de transgressão e estrutura. O ponto central do argumento do texto do jornal é que existe a possibilidade de a exceção – ou seja, a transgressão – se converter em regra. Reproduzindo os argumentos do antropólogo, o jornalista acredita que o êxito de Roberta Close se justifica em função do estado atual da sociedade brasileira naquele período, no qual a mulher assumia a condição de “índice da crise” dada a sua situação de ambiguidade. Esta ambiguidade ofereceu condições para que um indivíduo que fizesse a síntese masculino/feminino de forma plena, como Roberta Close, se convertesse em um símbolo. Acredito que Ruy Castro estivesse querendo realçar as mudanças nos códigos de comportamento e nas convenções de gênero levadas a cabo pelo aprofundamento do feminismo. Ao finalizar a matéria, ele mostra uma visão melancólica das consequências do “fenômeno Roberta Close”. Se Roberto DaMatta estiver certo, Roberta Close veio para ficar. Fatalmente acabará na Globo – se não for capturada antes por um nobre europeu ou um fazendeiro de Marajó. Até lá, Carmem Miranda volta para a prateleira, Rogéria entra na compulsória, Ney Matogrosso vai ter de reformar todo o seu guarda-plumas, porque outro valor mais alto se alevantou. E com justiça, porque esses três eram simples representantes de tal ambiguidade. Como tal, nunca nos enganaram, nem pretenderam. Foi fácil para Roberta Close pô-los no chinelo. O que me preocupa é o futuro das moças citadas no começo e que, até há pouco, embalavam as nossas fantasias. E agora, vão embalar o quê?Stanislaw Ponte Preta dizia há anos que, daquele jeito, o terceiro sexo ainda acabaria em segundo. Errou.Agora que a exceção virou regra, o terceiro sexo, correndo por fora, atropela e cruza o disco final (CASTRO, 1984).

O que esse conjunto de argumentos tem em comum é a visão fatalista, mesmo apocalíptica, que a exibição de Roberta Close nos veículos de comunicação representa para os rumos da sociedade brasileira. Sugiro que Roberta Close desestabilizou de vez as convenções de gênero sendo catapultada a símbolo erótico no imaginário masculino brasileiro. Gagnon (2006) ressalta a ideia de que a sexualidade é construída por meio de roteiros sexuais. Para este autor, as noções de instinto e natureza não fazem sentido algum, dado o caráter produzido das convenções relacionadas a sexo e gênero. Mesmo as fantasias sexuais, algo tão

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comumente associado ao psiquismo, são para Gagnon (2006) construídos por esses roteiros. A pornografia, para este autor, exerce papel fundamental neste processo, oferecendo artefatos para a construção da sexualidade e dos roteiros eróticos. Considerando essas questões, sugiro que o consumo de Roberta Close pela pornografia, espaço de construção da masculinidade, afetou profundamente o campo de percepção sobre gênero e sexualidade na sociedade brasileira. Ao ser reconhecida como objeto de desejo do homem brasileiro, Roberta Close se infiltrou nos processos pedagógicos da construção da “matriz heterossexual” constituindo um perigo para a normalidade materializada na equação sexo-gênero-desejo. As consequências de tal infiltração foram objeto de ansiedade dos “empresários morais”, incluindo as mulheres, preocupadas com a manutenção do seu papel. Isto fica evidente não somente com o ato espetacular de Dercy Gonçalves, mas também em outras tensões, como nas desavenças com outras modelos de sucesso na época, a exemplo de Monique Evans, que alegava que Roberta Close não deveria receber pagamento como modelo, posto que não tinha formação para tal. Em um momento em que o mercado de modelos no Brasil não tinha o grau de formalização de hoje, essa alegação parece ser um tanto quanto vazia, em função da quantidade de mulheres que transitavam no espaço das revistas sem terem feito qualquer curso. Acredito que o que estava em jogo era a equidade no tratamento dado a Roberta Close, mesmo se tratando de uma “mulher diferente”. As tensões não param por aí. Naquele ano de 1984, Roberta Close foi convidada a compor o júri do concurso Miss Brasil. Tal certame tem o objetivo de escolher a mulher mais bela do país. A presença de Roberta Close em tal evento sugere muitos sentidos, o mais importante deles, talvez, seja o reconhecimento dela como taste maker da beleza feminina. Essa afirmação foi consubstanciada quando Sílvio Santos a convidou para o palco e disse que ela poderia concorrer com qualquer das meninas no concurso. Mas a chancela definitiva da ideia de que a “exceção virara regra”, como anunciado na matéria de Ruy Castro, foi o boato que correu na imprensa de que Roberta Close e Erasmo Carlos estariam tendo um romance. Este famoso cantor teria inclusive se inspirado em Roberta Close para compor a música Close, da qual ela mesma participou do clipe (conforme a Folha de S. Paulo de 29 mai. 1984). Era o golpe definitivo nos sentidos e valores atribuídas a masculinidade no contexto brasileiro. O Tremendão, apelido que a Jovem Guarda consagrou a Erasmo Carlos, constituía um exemplo pedagógico de homem a ser copiado. Tratava-se de um ícone da masculinidade produzida pelos veículos de comunicação cuja masculinidade hegemônica era nesse ato colocada à prova por uma suposta relação afetiva com Roberta Close.

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O ponto alto desse drama foi a suposta tentativa de suicídio de sua mulher, Narinha, na noite de 04 de junho de 1984. A imprensa noticiou que Narinha teria cometido tal ato-limite em função dos indícios da relação de Erasmo Carlos com Roberta Close. Erasmo Carlos, na tentativa de afastar a hipótese de suicídio da mulher, deu uma entrevista nas dependências da Polygram, na qual narrou os eventos que ocorreram naquela noite (segundo a Folha de S. Paulo de 12 jun.1984). Conforme narrou, ele estava assistindo televisão quando ouviu o disparo. Seguindo para o quarto, encontrou Narinha na cama ensanguentada. De acordo com essa reportagem, o motivo de Erasmo Carlos ter mentido sobre a real causa da internação da esposa no momento imediato ao acidente foi para preservar os familiares das afirmações maliciosas acerca do ocorrido. Ele afirmara, nesse primeiro momento, que a esposa estava internada para uma operação de peritonite aguda, o que talvez tenha aumentado as alegações da imprensa de que a fonte de todo esse imbróglio era o suposto romance com Roberta Close. Esses eventos causaram grande comoção popular dada a reputação de Erasmo Carlos manchada pela suposta traição cometida com uma “não mulher”, associada à ameaça simbólica representada por Roberta Close contra a ideia de família, expressa na imagem de Narinha e seu drama particular. Tal enredo preencheu as páginas de diferentes veículos de comunicação, produzindo imagens controversas das sexualidades não normativas, posto que, ao mesmo tempo que oferecia uma visibilidade sem precedentes a esse tema, reforçava antigos preconceitos contra o mesmo, como, por exemplo, a ideia de que tal prática desestabilizaria a família tradicional brasileira. A esfinge Roberta Close estava longe de ser decifrada, posto que implicava decifrar a própria forma como a sociedade brasileira organizava suas convenções de gênero e sexualidade. O caso Narinha ofereceu a oportunidade perfeita para restituir as fraturas que Roberta Close provocou no processo de formação da masculinidade do brasileiro. O ato de Narinha constituiu um sacrifício. Mas já era tarde para silenciar as vozes acerca da existência dessas pessoas. Essa amplificação dos discursos relacionados às sexualidades não normativas foi importante para situar um lugar de existência para essas sexualidades, ainda que estivesse imerso neste conjunto de tensões. Outro evento daquela década de 1980 acentuaria os discursos acerca das sexualidades não normativas na sociedade brasileira: a AIDS. As primeiras informações sobre a AIDS no Brasil foram divulgadas por revistas e jornais de grande circulação no Rio de Janeiro e São Paulo. A revista Veja, por exemplo, foi um dos principais veículos a começar a abordar o aparecimento de uma doença considerada restrita a um grupo específico de pessoas, os “homossexuais” masculinos. Duas representações foram conjugadas nessas primeiras aparições públicas da AIDS no Brasil: 1) a

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ideia de que a doença era um mal particular, restrito aos “homens homossexuais” e 2) a percepção de que a doença teria surgido nos Estados Unidos, mais especificamente entre os “homens homossexuais” norte-americanos. Até então, o espaço de confinamento da doença permitiu certo conforto entre outros setores da sociedade, já que se tratava de uma doença que somente podia acometer o “corpo homossexual”. Aqueles que adotavam um comportamento heterossexual, mesmo que com várias parceiras, estavam seguros de que tal doença não os afetaria, em função da particularidade da escolha do agente patogênico. Várias hipóteses foram cogitadas acerca das origens desse “mal particular”. Todas, sem exceção, davam como verdade absoluta a noção de que a AIDS era “coisa de homossexual”. Logo, todos os veículos declaravam em uníssono a inseparável associação entre AIDS e “homossexualidade”. Tal associação ficou ainda mais evidente quando da morte do estilista mineiro Markito, reconhecido por vestir atrizes e mulheres do jet set nacional e internacional. Este estilista foi uma grande vitrine da moda brasileira para o exterior, sendo objeto de cobiça de mulheres aqui e lá fora em função de seus vestidos cobertos de paetês, uma marca distintiva de suas roupas. O brilho de seus vestidos parecia ser feito exclusivamente para as discotecas, então produtos básicos da cena disco da década de 1970. Esta cena era intensamente conhecida por Markito, habitué das boates mais badaladas deste cenário, como a Gallery e Hippopotamus, em São Paulo, e o Studio 54, em Nova York. Tal reputação fez com que Markito ganhasse fama e riqueza, fixando residência em Nova York. A morte de Markito não chegou a ocupar matérias muito longas nos veículos de comunicação brasileiros, mas acredito que exerceram um significativo impacto na percepção coletiva sobre essas primeiras visões sobre a AIDS. Até então nenhum nome nacional, muito menos famoso, havia sido noticiado como vítima da doença. Markito foi certamente o primeiro. O estilista estava morando em Nova York quando faleceu, em 04 de junho de 1983. De forma geral, as informações sobre a morte do estilista reforçavam as duas noções que supostamente caracterizavam a transmissão da doença. Markito era assumidamente “homossexual” e habitué do nightworld nova-iorquino, incluindo o polêmico e igualmente famoso Studio 54. Em matéria veiculada na Folha de S. Paulo de 07 de junho de 1983, os antropólogos Peter Fry e Edward MacRae refletiam, a partir da morte de Markito, sobre os rumos dos debates acerca da AIDS no Brasil. Para Peter Fry, apesar de nada ainda ter sido provado no que dizia respeito à doença naquele momento, a morte de Markito trazia ao Brasil a atualidade de um assunto que já vinha sendo abraçado pela opinião pública no exterior. Ambos os antropólogos revelaram-se preocupados com a possibilidade desses debates serem tragados por uma moral conservadora, o que não tardou a ocorrer.

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A mesma Folha noticiava no dia seguinte, 08 de junho de 1983matéria alarmante, agora não mais convocando antropólogos para expor suas opiniões, mas sim médicos ligados a universidades paulistanas, como os especialistas Nelson Figueiredo Mendes e Ricardo Veronesi. Ambos reforçavam pânicos em relação aos “homens homossexuais” norteamericanos e sobre aqueles que permaneceram durante um período de tempo nos Estados Unidos, tal como Markito (Folha de S. Paulo, 08 jun. 1983). Os médicos exaltavam para uma suposta predileção do vírus pelos homens, sobretudo os “homossexuais”, em função daquilo que chamavam de “promiscuidade sexual” marcante nesse grupo. O esquema perceptivo sobre a AIDS estava plenamente formado a esta altura graças à agência desses especialistas. Como temiam os antropólogos, a moral brasileira só arranhou a discussão, reproduzindo as noções norte-americanas sobre a doença assentadas nas noções de “peste gay”, “síndrome gay” ou “doença dos homossexuais”. A morte de Markito serviu de exemplo inconteste para esses médicos de que a doença só se desenvolvia combinando dois aspectos biossocioestruturantes: um corpo e um contexto específicos. Esse corpo era o dos “homossexuais” masculinos, cujo ânus, analisavam os médicos, não possuía anticorpos para barrar o vírus adquirido em uma rotina de intensa atividade sexual (Folha de S. Paulo, 08 de junho de 1983); e o contexto era o seu habitat, portanto os bathroons, os sexyclubs e os nigthclubs – instituições consideradas de frequência “homossexual”. Essa associação ganhou eco em todos os veículos de comunicação, provocando uma verdadeira devassa na vida de pessoas publicamente reconhecidas como não heterossexuais, como as “travestis”. Como exemplo, O Pasquim de número 371, de 30 de junho a 06 de julho de 1983, no qual Jane Di Castro é figura de capa da matéria Como se tornar um travesti super-star. A informação do pequeno ratinho Sig, símbolo do jornal, alerta a “verdade” sobre ela: “Sem AIDS!”. Nas páginas dedicadas a entrevista com Jane, a AIDS é retratada com o “câncer gay”, sendo associada aos “homens homossexuais” norte-americanos. Para Jane, a doença nada mais era do que um retorno à repressão tal qual vivenciada nos anos anteriores a década de 1980.

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Imagem 26 – Jane Di Castro para O Pasquim, 1983. Fonte: acervo pessoal de Jane Di Castro.

A segurança da sociedade estava garantida, pois o vírus não ultrapassaria a fronteira do “corpo homossexual”, logo, a fronteira moral entre uma “boa” e uma “má sexualidade”. Tal afirmação foi abruptamente desconstruída com a notícia da morte de Rock Hudson, o ator hollywoodiano, proprietário de uma masculinidade supostamente imune a qualquer traço de “homossexualidade”, logo, à AIDS. O impacto da morte de Hudson foi avassalador para o conjunto da sociedade, uma vez que, com ele, as informações sobre a AIDS se avolumaram ainda mais, provocando quase sempre alarde entre a população. A invenção de Rock Hudson como astro de Hollywood foi, desde suas primeiras aparições no cinema, associada a uma imagem hipermasculinizada. Seu próprio nome foi inventado para conseguir captar em apenas uma equação de palavras as sensações que sua persona midiática deveria evocar: Rock, de Rocha de Gibraltar, e Hudson, do Rio Hudson (PEOPLE, 12 ago. 1985). Assim evidenciavam em um só corpo a dureza de uma rocha e a suavidade de um rio. Apesar de não ser celebrado como um ator de grandes potencialidades dramáticas, como afirmara Ruy Castro na ocasião de sua morte, na Folha de S. Paulo de 03 de outubro de 1985, o ator foi adotado pela Universal como um exemplo bem-acabado de masculinidade a ser comercializado nas telas do cinema norte-americano. Tal imagem foi instituída com certa facilidade, em função da performance exibida pelo ator. Com uma altura de 1,93 cm distribuídos em um corpo torneado, Rock Hudson conseguiu administrar de forma

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bem-sucedida na tela a imagem que Hollywood propunha tornar “espetáculo de consumo”: o straight-man. Essa gestão, contudo, nem sempre era refletida em sua vida particular. Os rumores sobre a suposta “homossexualidade” de Rock Hudson já vinham desde a década de 1950, quando a Universal, em busca de uma solução para estas especulações, estimulou o seu casamento com Phyllis Gates, a secretária de seu empresário, que durou menos de dois anos (Folha de S. Paulo, 03 out. 1985). Logo Rock Hudson retornaria ao seu ritmo de vida, do qual casamentos e relações afetivas com mulheres não faziam parte. Apesar das especulações acerca da sua sexualidade, Rock Hudson conseguiu manter uma reputação ilibada junto à Universal até aquele ano de 1985, quando adoeceu em Paris e foi internado. Seu estado de saúde era tão delicado que o ator teve que retornar aos Estados Unidos fretando um voo particular, levando consigo apenas seus médicos (PEOPLE, 1985). Rock Hudson morreu em sua casa em Beverly Hills na manhã de 02 de outubro de 1985, noticiavam os veículos de comunicação. Logo após o anúncio de sua morte, uma verdadeira devassa foi operada na vida do ator, buscando os reais motivos que levaram Rock Hudson a morrer em consequência daquele vírus considerado quase inteiramente circunscrito aos “homens homossexuais”. A People, importante revista norte-americana, levou às bancas em 12 de agosto de 1985 uma edição que ostentava os seguintes dizeres: A outra vida de Rock Hudson, em uma flagrante tentativa de chamar atenção para a “verdade” de sua doença, ou seja, a sua “homossexualidade”. Tais manchetes pareciam refletir o estado de espírito do cidadão norte-americano, perplexo pelas informações de que o ícone supostamente incólume a algo insidioso pudesse ter morrido em decorrência do mesmo. O anúncio público da doença e morte de Rock Hudson deflagrou ainda uma guerra em Hollywood cujo alvo principal era o elemento básico do amor romântico imortalizado nos filmes do cinema norte-americano: o beijo. De acordo com a People de 23 de dezembro de 1985, que oferecia uma visão panorâmica dos Estados Unidos após a morte de Rock Hudson, o beijo havia se constituído em um perigo para a saúde entre os artistas, principalmente porque as pesquisas científicas revelaram que o vírus causador da AIDS também estava presente na saliva humana. O fio condutor de tal dilema foram os beijos que Rock Hudson deu na atriz Linda Evans durante a filmagem da soap opera Dynasty. Os debates em torno do beijo ocuparam a atenção dos sindicatos de atores e também de produtores, os quais enfatizavam os perigos a que as atrizes estavam expostas, uma vez que era sabido que muitos lover-boys do cinema eram “homossexuais” em suas vidas particulares. Os inflamados

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debates estabelecidos pelas instituições do backstage do cinema produzido por Hollywood acabaram por assumir abertamente a existência das sexualidades não normativas entre os seus mais celebrados artistas, sobretudo entre aqueles que ofereciam modelos de masculinidade a serem seguidos. A morte de Rock Hudson estava, com um golpe único, evidenciando a artificialidade do sistema de produção de modelos hollywoodiano, o star system. Este sistema ele conhecia muito bem, informava a People, já que ao longo de sua carreira ele conseguiu de forma exitosa separar sua vida pública da vida privada. A fronteira rígida entre essas duas dimensões foi dramatizada pelo ator ao longo de toda a sua vida, sendo rompida somente em episódios que antecederam a sua morte. Contudo, a morte de Rock Hudson também produziu outros planos de discussão. O mesmo número da revista People de dezembro de 1985 chamava a atenção para a mudança na percepção da opinião pública norte-americana acerca da doença. Vários artistas iniciaram uma peregrinação para coletar donativos para a pesquisa e tratamento da AIDS nos Estados Unidos. A atriz Elizabeth Taylor foi uma das pioneiras nesse processo. Tendo atuado com Rock Hudson, ela sensibilizou outros artistas a usarem a sua imagem para ajudar a reunir dinheiro para produzir ações contra o avanço da doença. De acordo com matéria, em 1985, ano em que a doença e morte do ator foram anunciados, as contribuições privadas com o objetivo de apoiar a investigação científica e cuidar das vítimas da AIDS dobraram, se comparadas ao ano de 1984. A construção da solidariedade não ficou circunscrita a apoios individuais. O congresso norte-americano destinou, naquele ano de 1985, um orçamento significativo para desenvolver uma cura. Esse conjunto de ações coletivas estava associado ao impacto que a morte de Rock Hudson provocou na sociedade americana, mas não ficou circunscrito somente àquela sociedade. Aqui no Brasil, a opinião pública norte-americana também modificou o campo de percepções acerca da doença, afinal, a morte de Rock Hudson não havia apenas sido um evento norte-americano, mas teria mostrado a artificialidade de um ícone constitutivo da normalidade heterossexual – o straight-man ou galã dos filmes de Hollywood. Esse personagem que povoa a memória coletiva, responsável que é por uma pedagogia da heterossexualidade, havia sofrido uma derrota incalculável. O martírio de Rock Hudson revelou que a AIDS, como mostrou a People, de 23 de dezembro de 1985, era mais próxima do que de imediato se imaginava. Enquanto o número de vítimas aumentava entre os “homens homossexuais”, mantinha-se a percepção de que era um mal – consequência de um pecado consubstanciado em doença – afeto somente àqueles que comungavam de uma prática sexual

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considerada degradante. Tal percepção impedia que os governos, incluindo o brasileiro, destinassem recursos para cuidar das vítimas da doença. No Brasil, mesmo quando o Estado buscou fazer algo contra a doença tinha que lidar com críticas de setores da sociedade preocupados com os chamados assuntos prioritários, como a pobreza, considerados mais urgentes que o “mal que atacava os homossexuais”. Jece Valadão, um dos ícones da masculinidade brasileira, pronunciou-se abertamente contra a destinação de recursos públicos para o cuidado com a doença (TREVISAN, 2000). A morte de Markito conferiu materialidade à AIDS, que até então não tinha atingido nenhuma figura conhecida por um público maior. Simultaneamente, tal morte confirmava as percepções correntes sobre a doença, posto que se tratava de um homem reconhecido por suas perambulações nos espaços de frequência “homossexual” paulistanos e nova-iorquinos, como bem fez questão de lembrar a imprensa. Mas Rock Hudson era próximo demais de todos, era um homem que habitava os lares, entrando sala adentro de milhares de famílias tradicionais que consumiam sua masculinidade. Rock Hudson materializava em sua performance um membro da família – um pai, um namorado, um amigo –, que se via naquele momento morrendo, em decorrência da atuação de uma doença tão destrutiva do ponto de vista moral quanto o era para o corpo na acepção dos médicos. O destaque dado à sua morte havia definitivamente confirmado que não somente a AIDS poderia afetar qualquer um, mas que a “homossexualidade” não poderia ser mais reduzida a um não discurso. A “homossexualidade” era, dessa forma, colocada definitivamente na “ordem do discurso”. Este capítulo analisou como os homens não conformes às convenções relacionadas a gênero e sexualidade conquistaram o feito de colocar as sexualidades não normativas na “ordem do discurso”, processo que só ficou evidente para os “empresários morais” quando a visibilidade desses seres ultrapassou o esperado, assediando a televisão, veículo de comunicação com alcance quase incalculável. Na década de 1980, dois eventos aprofundaram a exibição das sexualidades não normativas, causando irrupções definitivas na visibilidade desse grupo: a erotização do corpo de Roberta Close e a construção da AIDS como uma “doença de homossexuais” atualizou a “perigosa” relação dessas pessoas com o sexo dito não natural. Ficou evidente que a sexualidade era um espaço de exercício de poder sobre o qual se movimentam diferentes atores sociais, como o Estado, a imprensa, a família, etc. Considerando, porém, a máxima de Foucault (1988), “onde há poder, há resistência”, esses dois eventos revelaram possibilidades antes inimagináveis para a construção das sexualidades não normativas como “lugar social” no Brasil. Uma dessas possibilidades foi a visibilidade sem precedentes que as sexualidade não normativas, sobretudo a “homossexualidade”

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masculina, tiveram no espaço público, a qual seria convertida, na década de 1990, em ações políticas concretas. O surgimento do movimento homossexual talvez seja o efeito mais substancial dessas ações.

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CAPÍTULO IV

Imaginando comunidades, parodiando convenções: diva, imaginação, resistência e agenciamentos

Camp is to gay what soul is to black. Dennis Altman

A possibilidade de existir foi, certamente, uma das lutas mais importantes travadas por aqueles indivíduos que, assim como Divina Valéria, Marquesa, Rogéria e outras dessa geração, tiveram suas trajetórias de vida marcadas pelos efeitos da diferença em relação à norma. Essa tarefa contou com estratégias simbólicas sem as quais essa possibilidade não se efetivaria. A criatividade, a invenção, a imaginação e a ressignificação foram aliadas neste processo. Tais elementos remetem ao bricoleur levi-straussiano. Ao definir a bricolagem como um mecanismo através do qual a sociedade se reinventa com elementos que já existem, Lévi-Strauss (2005) está chamando a atenção para este “lugar de criação” presente em todo o pensamento humano. Para existir, as pessoas marcadas pelo “destino da homossexualidade”, nos termos de Pollack (1987), foram levadas a criar um outro universo de signos, um outro sistema de comunicação, um “segundo mundo”, nos termos de Bakhtin (1993). A reinvenção de universos simbólicos por essas pessoas se assentou em dois itens centrais da “cultura do entretenimento” (LEITE JÚNIOR, 2010), a ideia de diva e o glamour. Este capítulo é um esforço teórico cujo foco recai sobre esses processos de reinvenção e subjetivação. Sugiro que a importância da ideia de diva está relacionada a um contexto de silenciamento no qual a possibilidade de existir fora da norma heterossexual era vivenciada por estratégias de clandestinidade. Argumento que as divas – materializadas nas atrizes do cinema, cantoras do rádio e nas mulheres famosas do jet set – foram responsáveis por construir um self e, ao mesmo tempo, um “espírito de solidariedade” entre homens que, por suas preferências sexuais, possuíam experiências de vida atomizadas. Simultaneamente, elas permitiam que esses indivíduos habitassem o mundo incorporando normas de gênero e classe social vinculadas a noção de glamour. Tal como um totem, as divas constituíam uma “comunidade imaginada”, que agregava homens que as idolatravam, mas que, simultaneamente, se buscavam e se reconheciam pelas semelhanças que nutriam. Pretendo ainda historicizar essa categoria, a qual teria relação com a noção de “mulher fatal”, figura

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constante na literatura, no teatro e no cinema e materializada nas cocottes e vedetes sobre as quais recai a acusação de perigosas. A diva, por fim, contribuiu para a reinvenção de performances, práticas e significados que consolidaram uma relação das sexualidades não normativas com aquilo que a tradição de estudos sobre gays e lésbicas norte-americanos vem chamando de camp. Ambas, diva e camp, possuem um efeito comum – provocar existências – em um processo que este capítulo busca investigar. Por fim, encerro este capítulo evidenciando a forma como a diva foi convertida em performance, não apenas pela agência das “travestis” que foram para a Europa, mas também por aqueles homens que por aqui ficaram e consolidaram uma sociabilidade manifestadamente “bichal”: as turmas.

4.1 – Uma arqueologia da diva: o mito da “mulher fatal”

Discursos sobre a “mulher fatal” estão presentes em diferentes culturas. Esses discursos, de forma geral, conjugam imagens de uma mulher devoradora de homens, dotada de uma sensualidade aflorada e de um comportamento sádico não compatível com as convenções sociais relacionadas a gênero e sexualidade, um feminino abjeto. Buscar reconstruir a historicidade dessa personagem implica reconhecer a sua dimensão dispersiva, de transbordamento de sentidos. A noção de arqueologia, consagrada por Foucault (1995), não é adotada aqui por acaso. É através dela que busco reconhecer uma “regularidade na dispersão”, um “acaso nos começos”, uma irrupção com a qual os discursos sobre essa construção do feminino foram sedimentando significados sobre a noção de diva central para agregar “formas de vida” relacionadas às sexualidades não normativas. Esse recurso pretende mostrar que a diva é o resultado de uma constelação de enunciados acerca do feminino relacionados às suas condições de produção. A construção dessas imagens acerca do feminino instituiu, nos termos de Douglas (1976), fronteiras simbólicas responsáveis por demarcar espaços estanques relacionados ao masculino e ao feminino. Este último foi assimilado ao perigo, inclusive de contaminação e morte. A Bíblia oferece valiosos exemplos dessa presença nefasta das mulheres corruptoras, tais como Eva, Dalila e a famosa Salomé. Ambas estão associadas à desestabilização das normas, inclusive aquelas instituídas por Deus, como é o caso de Eva. Traição e vingança são sentimentos que também marcam a aparição dessas personagens nesse livro. O conjunto

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desses sentimentos negativos, ou mesmo antissociais, é responsável pela produção de representações sobre o feminino associadas à abjeção. As imagens bíblicas do feminino no registro da abjeção foi central em nosso processo civilizador. Mas a “mulher fatal” não se expressou somente nas narrativas bíblicas. Ela se consolida como mitologia entre diferentes culturas no tempo e no espaço, tendo em vista as distintas lendas que narram a presença de mulheres guerreiras, tais como as amazonas na Grécia Antiga, ou entre algumas tribos ameríndias; ou as Candaces, rainhas guerreiras que exerciam o poder no reino de Meroé, região sul do Egito Antigo. A própria construção histórica e literária de Cleópatra, rainha do Egito, evoca essas representações que associam o feminino à sedução e à usurpação do poder masculino. Todos esses registros relacionam a presença dessas mulheres ao exercício do poder e à evidente inversão das engrenagens que regem a sociedade, as quais preveem a coesão social a partir de um desequilíbrio de poder em benefício do masculino. No Medievo, em função da alta ingerência da Igreja Católica na vida social e na produção das formas de pensamento e sensibilidades, as “mulheres fatais” são assimiladas às bruxas. Esses personagens conformam um elemento importante na construção de mitologias associadas ao abjeto feminino e adotadas, inclusive, para o processo pedagógico das crianças, tal como registrado nos contos dos Irmãos Grimm – constitutivos do folclore alemão. O que essas narrativas têm em comum é a percepção do empoderamento feminino como algo potencialmente abjeto, sendo o erotismo um recurso quase sempre adotado para fazer valer esse poder. A associação entre erotismo, insurgência e perigo são conjugados na “mulher fatal”. No contexto colonial, os mitos e lendas acerca da “mulher fatal” converteram-se em narrativas sobre o “outro”. As imagens do feminino como abjeto proporcionaram acentuar o corte provocado pelo contato cultural, assimilando as culturas não europeias ao feminino. Em outras palavras, o exótico convertera-se em feminino. A “feminilização do exótico” foi um dos recursos mais bem adotados na construção de narrativas sobre o “outro”, os quais foram quase sempre assimilados a uma natureza perversa, posto que não celebravam das mesmas convenções sociais, portanto identificadas ao feminino – esses seres perigosos cuja ligação com a natureza desestabilizava os feitos da civilização. Tais imagens são recorrentes na literatura de viagem, entre os cronistas e mesmo entre os modernos antropólogos. Nessa literatura pode-se perceber a produção do feminino como constitutivo do exótico. Said (2007), em seu clássico Orientalismo,abordou como a noção de Oriente foi instituída por oposição à ideia de Ocidente. Um das implicações desse processo foi

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a feminização do Oriente, dotando as mulheres que lá viviam de representações associadas a uma sensualidade e sexualidade afloradas, ou seja, não compatível às convenções sociais adotadas na Europa. O Oriente produzido pelos discursos dos chamados ocidentais é assimilado por uma percepção do feminino como, simultaneamente, sedutor e perigoso. A obra de Gilberto Freyre, sobretudo seu clássico Casa grande e senzala, também destaca essa “feminilização do exótico” relacionado ao encontro cultural nas terras brasileiras pós-descobrimento. O autor chama atenção para a transposição de sentidos entre as representações da “moura encantada”, resultado dos contatos entre os ibéricos e os sarracenos, e a indígena de terras brasileiras. Ambas conjugavam imagens de “um tipo delicioso de mulher morena e olhos pretos, envolta em misticismo sexual” (FREYRE, 2002, p.38). Figura considerada perigosa, mas, ao mesmo tempo, fundamental para a empresa colonizadora dada a sua sexualidade descontrolada que, associada à plasticidade sexual do colonizador português, possibilitou povoar tão vastas terras. As representações relacionadas à “moura encantada” sugerem um feminino exótico, porque sensual e perigoso. No processo colonizador construído por Freyre (2002), a erotização foi um recurso adotado não somente para dotar as mulheres indígenas de qualidades excepcionalmente sensuais, mas também as terras colonizadas foram assimiladas a esse feminino. O conjunto dessas imagens foi objeto de ansiedades de uma sociedade marcada por uma moral vitoriana, mas, ao mesmo tempo, serviu de inspiração para artistas de diferentes campos de criação produzirem personagens que se identificavam com esse mito. Na área artística, essa personagem ganha uma dimensão ainda mais marcada pela combinação de sadismo e sedução. Na literatura, no cinema e no teatro, a “mulher fatal” é uma personagem que assombra a trama dificultando a vida dos heróis, mas também acentua a atmosfera de desejo e atração. A literatura, principalmente, buscou nesta personagem inspiração para modelar personagens que retratariam a difícil tensão entre os vícios e a virtude. A “mulher fatal” é construída em oposição à “mulher romântica”, cuja vida é marcada por amores impossíveis e episódios dramáticos. Tal tensão entre esses dois tipos é celebrada de forma bem-acabada na obra do Marquês de Sade através de suas personagens, as irmãs Justine e Juliette. A Justine de Sade encarna os ideais da virtude que somente são possíveis, na obra sadiana, em função dos vícios que a atormentam. Os vícios e a crueldade, materializados em sua irmã Juliette, são constitutivos da virtude que emana de Justine – a qual é sempre desestabilizada por episódios que marcam de forma negativa a sua trajetória. A tensão e simultânea reciprocidade entre as duas irmãs oferecem a simetria perfeita para a

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construção do universo de Sade, marcado por perversidades e deboches acerca das convenções sociais relacionadas à sexualidade. Assim como a Juliette de Sade é particularizada por experiências de abjeção, mostrando um evidente desdém pelas instituições mais consolidadas de sua época, tais como a Igreja Católica, as narrativas envilecimento sobre o feminino são plenas de imagens que revelam mulheres perigosas, portadoras do mal e estimuladoras do pecado. Essa mulher que traz consigo o perigo também serviu de inspiração a Oscar Wilde em Salomé. Nesse texto teatral, Wilde reconstrói o drama bíblico de Salomé, mulher misteriosa e de excepcional beleza, cujo desejo era beijar os lábios de Iokanaan (João Batista). A Salomé construída por Wilde é extremamente sensual, cujo corpo e a dança são os condutores de um erotismo fatal. A concretização do seu desejo combina prazer e morte, uma vez que só se realiza através da decapitação de Iokanaan, seu pedido ao tetrarca após ter lhe oferecido uma dança inebriante em um banquete no palácio. Com sua cabeça nas mãos Salomé finaliza a sua vontade, beijando-lhe os lábios frios e sem vida, causando repulsa em Herodes Antipas, o tetrarca, que manda executá-la. Sugiro que a Salomé de Wilde, assim como em outros momentos de sua obra, cumpria o papel de libertá-lo das convenções que literalmente o aprisionaram em função de sua predileção por pessoas do mesmo sexo80. Wilde expressava em Salomé as transformações ocorridas no que se relaciona à mulher na sociedade vitoriana, as quais já estavam em curso desde a Revolução Francesa. Salomé institui uma nova mulher, que no texto de Wilde implica uma ruptura com os rígidos padrões morais da época. A noção de “mulher fatal” é um tema com o qual a diva do século XX se institui e se modela. As Juliettes e Salomés ganharam, por intervenção do mercado de bens culturais, uma existência renovada. Certamente, foram personagens como estas que tornaram possível a construção da noção de diva, tal como é concebida ainda hoje. A “mulher fatal” sai das páginas dos livros e ganha espaço em outras “tecnologias do olho” (BRAH, 2006), como o cinema, que conjugando sedução e perigo produziram as divas consumidas como espetáculo. Na década de 1940, o film noir, expressão francesa adotada para descrever um gênero de filmes policiais em estética preto e branco que fizeram muito sucesso nos Estados Unidos, consolidaram a “mulher fatal” como personagem fundamental da indústria cinematográfica. Corpo, performance, erotismo e perigo eram características que se fundiam nessa personagem para qual o filme Gilda, representada pela atriz norte-americana Rita Hayworth, em 1946, foi peça essencial. O longa narra a história de um triângulo amoroso vivenciado pelos 80

Coincidentemente, a tradução brasileira de Salomé foi feita por João do Rio, nosso cronista e dândi mais famoso, reputado como “pederasta” assumido por diferentes documentos históricos.

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personagens Johnny Farrell, Ballin Mundson e Gilda. Ambientada em Buenos Aires, o fio condutor da história é a relação de amizade entre Johnny, um vigarista jogador de cartas, e Ballin, dono de um famoso clube noturno na capital portenha, o qual mantém um cassino clandestino. Ao salvar a vida de Johnny, os dois se tornam grandes amigos. Ballin celebra esta amizade convidando Johnny para se tornar o gerente do seu negócio. A relação se desestabiliza quando Ballin regressa de uma viagem casado com Gilda, com quem Johnny teve um romance no passado. A partir de então, Gilda dedica sua vida a destruir aquela amizade usando subterfúgios que a inscreveram na memória de gerações. Gilda materializa os ideais mais bem-acabados da “mulher fatal”, ou, em expressão consagrada pelo cinema, femme fatale. Ela manifesta em sua performance, capaz de erotizar tudo que toca, o triunfo do mal. De acordo com Castro (2006), Rita Hayworth foi a primeira atriz a ser classificada como “superstar” pelo crítico do New York Times, Bosley Crowther.

Imagem 27 – Cartaz promocional do filme Gilda, Columbia Pictures, 1946.

Todo esse repertório de imagens é materializado no slogan do filme, como pode ser observado na imagem acima, “Nunca houve uma mulher como Gilda!”, o qual demarca o lugar de destaque exercido por essa personagem na construção de uma memória coletiva

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compartilhada por mulheres e homens de várias gerações, como analisa Castro (2006) no trecho que segue. De 1946 pra cá, todas as vezes em que Gilda foi exibido em cinema ou TV, legiões de mulheres, ao fim do filme, juraram não descansar enquanto não se parecessem com Gilda. Legiões de rapazes também. Note bem: os representantes de uma e de outra categoria não queriam parecer-se com Rita Hayworth – mas com a Gilda de Rita Hayworth. E não se tratava apenas de imitar o seu jeito quase imoral de jogar o cabelo, de transformar inocentes saboneteiras numa tentação erótica ou de fumar como se cada lenta baforada quisesse dizer alguma coisa. Era algo mais profundo e complexo: tentar apossar-se do seu fogo gelado, só se pode chamá-lo assim – a capacidade de inflamar uma paixão e, ao mesmo tempo, esnobar o ser inflamado a ponto de reduzi-lo à servidão total, ao nada. Não devia ser fácil. Tanto que, em nenhum outro filme, antes ou depois, e muito menos na vida real, nem a própria atriz conseguiu. Nem é preciso repetir a sua triste e batida frase, de que os homens dormiam com Gilda e acordavam com ela, Rita (CASTRO, 2006, p. 22).

Castro (2006) enfatiza o quanto a performance de Gilda foi responsável por modelar trajetórias de vida, muitas das quais de “jovens rapazes”. Gilda dilatou essas trajetórias, sendo consumida por quem recriava sua própria performance a partir da incorporação dos traços desta personagens a sua personalidade. Essa personagem foi dramatizada e ritualizada por milhares de mulheres e homens cujo desejo era insurgir contra as convenções sociais como Gilda o fez – e fazia sempre que era vista e revista por seus admiradores. O film noir foi estruturante para a construção desse universo do qual Gilda foi um expoente. Mas esta linguagem também aprofundou a noção de “mulher fatal” acentuando a relação entre erotismo e perigo através da invenção de outros tipos cinematográficos, tais como a “loura fatal”, cuja melhor versão seria conjugada não mais em uma personagem, mas na atriz Marilyn Monroe. O desenvolvimento do film noir se deu para fora de Hollywood, tendo em vista que as produções organizadas sobre essa etiqueta foram feitas em um contexto de perseguição e censura no campo cultural norte-americano atribuído ao macarthismo. Tais produções contrastavam com aquelas de Hollywood por apresentarem personagens moralmente reprováveis, como a femme fatale, e enredos marcados por um senso de fatalismo, obsessões, vinganças e corrupção, enquanto em Hollywood eram privilegiados os filmes com mensagens consideradas mais positivas. Ainda que a Gilda de Rita Hayworth tenha espetacularizado a “mulher fatal” a um público incalculável, sugiro que foi Marilyn Monroe que, ligada a Hollywood, consolidou na cultura popular um imaginário acerca dessa personagem, ainda que seus maiores sucessos não se encaixem nas características do film noir. Argumento que a “mulher fatal” converteu-se em diva com Marilyn Monroe, sobretudo em sua histórica performance em Gentlemen Prefer Blondes (1953), cantando e dançando o clássico Diamonds Are Girl’s Best Friend. A

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performance dessa atriz celebrava o universo moral dos cabarés e cafés dançantes, espaço social das cocottes, vedetes, coristas e atrizes, personagens que inauguram a vida noturna em fins do século XIX e, o que era considerado pior, tinham o poder de retirar da ficção as Juliettes e Salomés e materializá-las na vida cotidiana. O que há de comum no conjunto dessas mulheres é o sentimento de não conformidade com a situação de domesticidade a que são submetidas. A presença da “mulher fatal” em narrativas, lendas e mitologias constitui um tema simbólico importante em diferentes sociedades, mas foi somente nas nossas sociedades que esta personagem, por mediação do mercado de bens culturais, converteu-se em emblema agregador sobre a qual recaem sentimentos de idolatria e de pertencimento. A combinação da diva com as imagens da “mulher fatal” serviu muito mais do que produzir um personagem consumido pela literatura, pelo teatro e pelo cinema, ela converteu-se em um emblema através do qual mulheres e homens, sobretudo aqueles fora da norma heterossexual, puderam construir reflexividade sobre si mesmos. Desta forma, compreender a diva como um símbolo é um exercício importante para entender aspectos reveladores da forma como indivíduos fora da norma heterossexual construíram para si todo um sistema simbólico capaz de ressignificar sua experiência silenciada.

4.2 – As divas como totens

A noção de diva se constitui em um emblema simbólico cuja matriz de significados se encontra na noção de “mulher fatal”. Essas imagens foram centrais para estruturar performances, sensibilidades e, mais do que isto, instituir pautas de sociabilidade entre pessoas que passaram a se relacionar a partir do efeito agregador que as divas produziam. Como afirmou Castro (2006) em sua análise sobre o filme Gilda, essa personagem foi procurada por mulheres e homens nas partes mais encobertas de suas personalidades. Todos queriam ser Gilda, todos queiram se reconhecer como ela. Esta atração e afetividade, responsáveis por modelar sensibilidades e performances e, principalmente, instituir sociabilidades entre grupos silenciados, foi fundamental para produzir insurgências, instituir mudanças nas sexualidades não normativas como “lugar social”. Dada essa importância, busco compreender como a idolatria às divas foi um componente central na trajetória de vida de indivíduos como as “travestis profissionais” ou os

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homens da Turma OK, para quem essas mulheres possibilitaram a construção de um “mundo de ideias”, segundo Bakhtin (1993), capaz de retirá-los de uma vida marcada pelo silenciamento para outra onde eram ressignificadas a partir da incorporação de marcadores sociais como classe social e gênero. A diva pôde fazer com que esses indivíduos habitassem a norma (MAHMOOD, 2006), tornando o glamour uma forma de agência, através da qual negociavam sua existência dentro das convenções sociais vigentes. Toda uma geração de pessoas que viveram nos marcos daquilo que Meccia (2011) chama de “regime de homossexualidade” teve suas vidas marcadas por experiências de vida para as quais a diva teve importância fundamental. Foi através das divas que indivíduos cuja sexualidade era vivenciada na chave do segredo podiam viver “por procuração”, segundo expressão de Eribon (2008), outras vidas, geralmente vistas como mais glamourosas e tecidas em enredos menos hostis. Na trajetória de vida de Divina Valéria, as grandes divas do rádio ofereciam o modelo de estar no mundo a ser seguido. Foi através da frequência assídua aos bastidores da Rádio Nacional, atraída pela imagem de Emilinha Borba, que o rapaz Valter adquiriu o capital simbólico indispensável para a materialização de Divina Valéria. Para Rogéria, foi o cinema que ajudou a forjar esse imaginário sobre o qual a sua própria trajetória foi construída. Para ela, a feminilidade fatal de Marilyn Monroe foi um elemento importante para a construção de Rogéria. A atriz norte-americana apareceu em sua vida quando ela ainda era muito jovem. Segundo ela, em entrevista para o Portal IG, em 23 de outubro de 2012: Eu tinha 12 anos quando botei um maiô catalina e uma saia amarela, eu não tinha peruca coloquei um chapeuzinho. Minha tia viu, foi contar para minha mãe, ela me deu um soco, falou “mas porque você deixou sua tia ver isso? Vai para o cinema!” O que eu fui ver? How to marry a millionaire81, entrei duas horas saí meia-noite. Se já era viado, fiquei mais ainda e feliz da vida porque Marilyn [Monroe] eu considero a mulher mais feminina do cinema, fêmea! (Rogéria)

Não somente Rogéria e Divina Valéria, personagens emblemáticos dessa geração, encontraram nesses símbolos do mercado de bens culturais os elementos para construir suas carreiras artísticas e trajetórias de vida. Quando pesquisei na Turma OK, percebi que muitos homens que frequentavam aquele espaço tinham sempre uma atriz ou cantora como objeto de veneração. Esses homens incorporavam essas divas para si, promovendo aproximações possíveis com a sua performance e história de vida. Ao que parece, essas divas exerciam o papel semelhante àquele dos santos padroeiros, ao mesmo tempo íntimos e distantes, aos

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Traduzido por Como agarrar um milionário. Trata-se de um filme de 1953, estrelado por Marilyn Monroe, Betty Grable e Lauren Bacall.

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quais são atribuídos poderes especiais e uma intimidade devocional. Muitos shows da Turma OK eram dedicados a homenagear essas mulheres – os projetos82 especiais da casa. É possível sugerir que era através dessas divas que esses homens recolhiam fragmentos de outras vidas, em um processo pedagógico que ao mesmo tempo em que produzia sentidos sobre as sexualidades não normativas construía os códigos simbólicos necessários para a comunicação desse grupo. Mas afinal de contas, porque essas cantoras, atrizes e, até mesmo socialites, eram convertidas em divas? Em sua pesquisa sobre a relação entre fãs “homossexuais” e cantoras da MPB, Noleto (2012) chegou à conclusão de que a influência dessas mulheres sobre esse público era bem maior do que apenas a de contemplação passiva. As demonstrações de afeto a essas cantoras iam muito além de ouvir e cantar suas músicas, conhecer sua biografia e discografia e acompanhar os seus shows. Para o autor, Essas demonstrações se refletiam em suas escolhas cotidianas, nas palavras que escolhiam para discorrer sobre algum assunto, nas suas formas de perceber o mundo ao seu redor. Todos eles apresentaram uma consciência muito clara acerca do grau de inserção e de relevância dessas cantoras em suas vidas, mostrando que as utilizam em suas rotinas como uma forma de compreenderem a si mesmos (NOLETO, 2012, p. 68).

As análises de Noleto (2012) sugerem um tipo de relação de contiguidade – poderia arriscar uma forma de possessão – entre essas cantoras e os fãs “homossexuais” que nutrem sentimentos por elas. Esse processo envolve um complexo intercâmbio de vidas, muito semelhante àquele observado por Maggie (2001) em seu estudo em um terreiro de umbanda da Zona Norte do Rio de Janeiro. Para essa autora, o fenômeno da possessão estreitaria os laços entre indivíduo e sociedade, posto que, ao mesmo tempo em que é um processo socialmente aceito no qual as entidades integram um dado sistema de crenças, ele é ainda uma “individualização do coletivo”, pois cada indivíduo possuído confere uma interpretação pessoal ao conjunto das entidades que o tomam como “cavalo”, uma identidade. Essa identidade é construída na estreita ou mesmo íntima relação entre o “cavalo” (fiéis) e a “entidade” (deuses). Como afirma a autora, “o médium é uma pessoa que se transforma em deus, mas esse deus é exclusivamente o seu deus” (MAGGIE, 2001, p. 84), assim como a diva interfere diretamente na forma como esses que a idolatram elaboram suas vidas. Essa relação de contato entre homens e deuses é análoga àquela entre cantoras e seus fãs. A interação entre esses dois entes produz algo diferente: uma identidade singular, organizada em torno de valores sociais que estes adotam para caracterizar as suas “deusas”,

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Projetos é o nome dado aos programas de shows conduzidos pelos sócios da Turma OK.

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como glamour, luxo, carisma e beleza. Ocorre uma espécie de mimetismo operado no encontro entre esses homens e essas cantoras, fenômeno muito semelhante àquele analisado por Harris (1997) em relação aos jovens gays norte-americanos de cidades do interior e as grandes estrelas de Hollywood. Harris (1997) se coloca como um dos jovens que, no passado, sofreram influência do que ele chama de “ventriloquismo”. Criado em uma pequena cidade do estado norte-americano da Carolina do Norte, esse autor via nas divas do cinema a possibilidade de experienciar outro universo simbólico diferente daquele marcado pela lógica rural onde ele estava inserido, como pode ser percebido no seu relato. The influence of Hollywood films was so pervasive among young homosexuals that it insinuated itself into our voices, weakening the grip of our regional accents, which were gradually overridden by the artificial language of this imaginary elite. Even today I have never succeeded in exorcising Joan, Bette, Grace, and Kate from my vocal cords, where they are still speaking, having left the indelible mark of Hollywood's spurious interpretation of classiness, culture, and gentility branded into my personality (HARRIS, 1997, p. 09).

O “ventriloquismo” a que se referiu Harris (1997) foi um mediador importante na “movimentação” iniciada por esses “homens homossexuais” entre as décadas de 1950 e 1960. Os sentimentos de idolatria às divas foi parte constitutiva de um universo simbólico que organizou e deu sentido não somente aos espaços apropriados pelos “homens homossexuais”, mais ainda às vidas desses indivíduos. As razões pelas quais esses homens despendiam suas energias no culto às divas são interpretadas de formas distintas por diferentes autores. Green (2000), a partir da leitura do livro de Lenharo sobre as cantoras do rádio, chega à conclusão de que no Brasil a síntese diva/“bichas” não correspondia à mesma lógica que aquela dos Estados Unidos, onde divas como Judy Garland, por exemplo, eram idolatradas em função da identificação dos “homens homossexuais” com histórias de vida marcadas pelo sofrimento, muito semelhante às suas próprias histórias, as quais eram elaboradas a partir da injúria (ERIBON, 2008). Noleto (2012) argumenta que a aproximação desses homens com as cantoras da MPB ocorre em razão de um “encontro de marginalidades”, ou seja, uma identificação de aspectos marginais presentes nessas cantoras que se associam à sexualidade considerada periférica vivenciada pelos seus fãs “homossexuais”. Não estou muito certo sobre até que ponto esses dois argumentos explicam o culto às divas. No caso de Green (2000), as suas próprias leituras sobre as cantoras do rádio brasileiras desconstruíram a sua hipótese baseada na experiência melancólica norte-americana. Sobre a ideia de “encontro de marginalidades” adotada por Noleto (2012), não consigo perceber em que sentido essa idolatria difere daqueles sentimentos coletivos que animavam a geração pós1964 – um momento político no qual a ideia de marginalidade era compartilhada por vários

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segmentos sociais como contraponto a um Estado ditatorial e em um contexto de emergência de movimentos contraculturais. Aparentemente, a própria emergência da diva como elemento constitutivo da sociabilidade “bichal” se beneficiou desse contexto de grandes transformações ideológicas – a chamada contracultura – ambas diretamente relacionadas à consolidação do mercado de bens culturais. No meu entender, faz mais sentido o argumento de Harris (1997), para quem a idolatria às divas se relaciona a uma forma de resistência diante de um profundo descontentamento social experienciado pelos “homens homossexuais”, que proporcionou um deslocamento desses indivíduos de suas realidades hostis, ressignificadas a partir da incorporação de elementos relacionados à classe e gênero. In my unconscious imitation of the voices of the great film stars, I was seeking to demonstrate my separateness, to show others how out of place I felt, and, moreover, to fight back against the hostility I sensed from homophobic rednecks by belittling their crudeness through unremitting displays of my own polish and sophistication. I was not attracted to Hollywood stars because of their femininity, nor did my admiration of them reflect any burning desire to be a woman, as the homosexual's fascination with actresses is usually explained, as if diva worship were simply a ridiculous side effect of gender conflicts. Instead, it was their world, not their femininity, that appealed to me, the irrepressibly madcap in-crowd of Antie Mame, of high spirits and unconventional "characters," of nudists and Freudians, symphony conductors and Broadway prima donnas, who lived in a protective enclave that promised immunity from shame and judgment, beckoning me with its broadmindedness and indulgence of sexual eccentricities(HARRIS, 1997, p. 09-10).

As divas eram menos importantes pelo que materialmente eram. Interessavam, sim, pelo que representavam. Elas serviam para “pensar”, parafraseando Lévi-Strauss (1980), posto que, ligando esses homens por laços de solidariedade através da idolatria, acabavam por estimular uma reflexividade acerca da situação de silenciamento a que suas sexualidades eram submetidas, produzindo um compartilhamento de experiências comuns. Portanto, esses homens não se aproximavam desses ídolos femininos porque, no fundo, desejavam ser uma mulher, mas tão somente porque essas divas os articulavam, possibilitando a existência de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008). Para Harris (1997), elas forneceram uma espécie de imã, “cujo glamour emprestou uma centralidade sem precedentes para a natureza anteriormente desconexa e atomizada da vida gay83” (HARRIS, 1997, p. 17). Diferente de outras minorias que se organizam em função do compartilhamento de sinais evidentes que significam a sua exclusão social – como a cor da pele, o idioma, a ascendência familiar ou algumas deficiências físicas –, as “pessoas homossexuais” se constituem como uma minoria invisível (HARRIS, 1997). Essa invisibilidade, contudo, tornou-se evidente por meio do 83

Tradução livre de “Whose glamor lent an unprecedented centrality to the previously disjointed and atomized nature of gay life” (HARRIS, 1997, p. 17).

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reconhecimento de gostos e símbolos específicos, os quais esses homens começaram a compartilhar quando se ligavam a fã-clubes ou frequentavam aos espetáculos dessas divas. A partir dessas ideias, é possível sugerir que a noção de diva, tal como elaborada por Harris (1994), constituía-se em uma espécie de totem, um emblema simbólico, nos termos de Durkheim (2003), sobre o qual eram depositados sentimentos coletivos. Nas análises de Durkheim (2003), ritual e símbolo são elementos indissociáveis. O emblema totêmico expressa de uma forma única toda a coletividade, a qual celebra através da idolatria sua própria condição associativa. Evocando as ideias de Durkheim (2003), é possível inferir que a diva constituiu um símbolo que comunicava a ideia de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008), depositária de expectativas, anseios e sentimentos de identificação, sobre os quais, mais tarde, se assentou a “identidade homossexual moderna”. Semelhante lógica é observada por Dyer (2004) em sua análise sobre a construção de Judy Garland como um mito do público “gay” masculino norte-americano através de sua produção fílmica. Para esse autor, “homens homossexuais” adotaram imagens da mídia dominante como um veículo de comunicação de suas próprias experiências dado o contexto de silenciamento a que estavam submetidos, sobretudo nos Estados Unidos do período marcarthista, no qual ser “homossexual” implicava um conjunto de suspensões jurídicas e sociais (RUBIN, 2011). Para Dyer (2004), as estrelas de cinema são intertextuais, no sentido de que suas imagens são produzidas a partir de uma íntima relação com o seu público. O caso de Judy Garland é ilustrativo sobre esses argumentos. Mesmo não sendo considerada uma femme fatale nos termos discutidos mais acima, Judy Garland se constituiu como símbolo máximo de uma geração de “homens homossexuais”84. Ela possuía a “força de um imã”, oferecendo, em seus shows, o pretexto para uma celebração pública das sexualidades não normativas, retirando, momentaneamente, essas sexualidades do lugar social não apresentável que ocupavam. Judy Garland está atrelada, inclusive, aos mitos de origem do surgimento do movimento homossexual organizado. Isso porque se consolidou uma memória de que os indivíduos presentes naquela noite de 28 de junho de 1969 no bar Stonewall Inn, em Nova York, estavam lastimando a sua morte, ocorrida em 22 de junho do mesmo ano, quando foram alvejados por uma batida de policiais, algo muito comum naquele estabelecimento. O sentimento de perda associado à impossibilidade de prantear a morte da diva se constituiu em dínamo para a revolta.

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Entre muitos homens da Turma OK, Judy Garland ainda é um ícone.

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A veracidade histórica dessa memória não é um dado importante aqui, mas sim a centralidade desse símbolo para organizar as narrativas sobre aquela que seria a revolta que deu início ao processo de construção desses homens como sujeitos de direitos. Stonewall Inn ainda está lá como “lugar de memória”, preservando com ele o legado de Judy Garland. Quando fui à Nova York, em março de 2013, visitei o bar e pude presenciar essa memória ser materializada no vestido quadriculado azul e branco afixado na vitrine que se projeta para a Christopher Street, Greenwich Village. O vestido parece estar lá para lembrar aquele personagem que foi o mais reconhecido da carreira de Judy Garland, a Dorothy de O Mágico de Oz, filme de 1939. Lá pendurado, ele faz todos que passam ou entram recordarem que Stonewall Inn é mais do que somente um bar para gays, é um espaço de resistência e memória, componentes construídos a partir da mobilização desses símbolos. A dimensão reflexiva atribuída à relação diva/“bichas” foi, de uma forma ou de outra, objeto de debates entre diferentes pesquisadores, principalmente norte-americanos (HARRIS, 1991; BABUSCIO, 1999; HALPERIN, 2002; DYER, 2004). O conjunto desses estudos consolida a ideia de que a diva foi fundamental para o estabelecimento de laços de solidariedade entre esses indivíduos, produzindo sociabilidade e sentimentos de identificação. Contudo, outra dimensão dessa discussão cabe ser lembrada, aquela que se liga aos motivos que levaram essas personalidades a exercerem a “força de um imã” sobre essas pessoas. A melancólica frase de Rita Hayworth acerca de Gilda, sua mais importante personagem, “A maioria dos homens se apaixona por Gilda, mas acorda comigo!”, é ilustrativa da tensão inscrita entre persona cinematográfica e trajetória individual, um caminho para se pensar a construção dessa idolatria de indivíduos fora da norma heterossexual a estas que foram promovidas a divas. Tal tensão foi sublinhada por Dyer (2004) em sua análise da trajetória e carreira de Judy Garland. De acordo com esse autor, as leituras que homens e mulheres “homossexuais” efetuam das divas são distintas. Garland teve uma outra recepção, menos impactante, entre mulheres lésbicas, afirma ele. O autor, analisando a construção de sua persona cinematográfica antes da década de 1950, destaca como a performance da atriz era construída em função da ideia de uma garota comum – girl next door –, imagens que a enquadravam dentro de um modelo de família heterossexual, uma iconografia da normalidade, como aquela com que são obrigados a se relacionar cotidianamente indivíduos fora da norma heterossexual. Tal iconografia, afirma o autor, encontrou em Dorothy, de O Mágico de Oz, sua forma mais plena. Uma garota simples morando em uma pequena fazenda com os tios, elementos carregados de normalidade

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heterossexual. Porém, a própria Dorothy mostra-se insatisfeita com as condições de sua vida e, através de sua rebeldia, é lançada ao Mundo de Oz. Essa “iconografia da normalidade” associada à carreira de Judy Garland foi rompida após a década de 1950, quando ela tenta o suicídio. Tal episódio redimensiona o regime de representação associado à artista, evidenciando uma ruptura significativa entre esta iconografia que a MGM85 evocava sobre ela e os episódios de sua vida, marcados pelo sofrimento e uso compulsivo de medicamentos. Para Balieiro (2014), esse evento rompeu com a retórica que tende a estabelecer relações de complementaridade entre a diva e o seu público, provocando assim uma percepção de que a sua normalidade de “garota comum” era produzida na tela, ficando a sugestão de que Garland se autoparodiava nos filmes. Dyer (2014) acredita que este evento crítico na sua trajetória tenha oferecido a razão para Judy Garland ter se convertido em “ícone gay”, expressão adotada por ele. Trabalhando com fã-clubes virtuais dedicados a idolatria de Judy Garland no Brasil atualmente, Patrícia Coralis (2014) chega a conclusões semelhantes acerca da vida da artista. Para ela, a biografia de Judy Garland, principalmente após o contrato com a MGM, foi fundamental para atrair a atenção dos fãs que viam na artista um exemplo de resistência e perseverança. Para Coralis (2014), o item principal que agrega os fãs de Judy Garland em torno de sua biografia é a noção de que a artista era “ela mesma”, ela reproduzia em sua voz e canções a verdade de seus sentimentos: dor, sofrimento e frustrações. Ao que parece, a artista passa a ser “ela mesma” após a tentativa de suicídio midiatizada por vários veículos de comunicação, que passam a dar extrema atenção a vida íntima da mesma. Tal interpretação, de certa forma, remete à discussão empreendida logo acima acerca da aproximação pelo sofrimento, a qual Green (2000) adere. Mas, seguindo a interpretação de Dyer (2004), é possível afirmar que o nó do problema está na contradição. Ao tentar o suicídio, sugiro que Judy Garland estava “saindo do armário”, revelando a artificialidade e a superfície da “iconografia da normalidade”. A atriz acabou por evidenciar a paródia com que as convenções relacionadas à normalidade eram concebidas em suas atuações e entrelaçadas à sua vida particular. Tal motim gerou sentimentos de identificação com aqueles homens que também experimentavam a contradição entre a iconografia da normalidade e o seu desejo de insurgência em suas vidas. Esse exemplo permite afirmar que as divas são construídas a partir de uma relação que conjuga simultaneamente glamour e abjeção, poder e vulnerabilidade, força e sofrimento – tal

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Metro-Goldwyn-Mayer é uma empresa norte-americana de comunicação, cuja fundação data de 1924.

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como Halperin (2012) já havia sugerido quando analisou esse problema a partir da atriz Joan Crawford. A relação de Rita Hayworth com Gilda pode ser interpretada a partir dessa contradição. A trajetória de vida e a carreira artística de Marilyn Monroe também estão articuladas a essas duas dimensões. Objetos culturais como as divas, sugere Balieiro (2014), não articularam explicitamente representações sobre as sexualidades não normativas, seu poder de representação sobre e entre este grupo residiu antes na potencialidade com que instituíram desafios à normalidade. É no trânsito entre esses termos – glamour e abjeção – que se fundou a aliança entre a diva e aqueles homens que vivenciaram um profundo sentimento de descontentamento associado à sua inserção em uma sociedade marcada por iconografias heterossexuais. Sugiro que essa potencialidade subversiva só tenha se cumprido em função do desenvolvimento de um delicado mecanismo de comunicação – uma linguagem codificada –, cuja chave de interpretação encontra-se na performatividade construída entre as divas e sua audiência formada de indivíduos percebidos como fora da norma heterossexual. Tal performatividade foi responsável pela criação de uma intimidade entre elas e sua audiência constituída por homens que se percebiam como fora da norma. A leitura desses homens sobre a performance dessas artistas produzia outros sentidos acerca da piscadinha maliciosa de Marilyn Monroe ou da piscadela estilizada de Carmem Miranda; ou mesmo do levantar de cabelos acompanhado do strip-tease de luvas da Gilda de Rita Hayworth. Mais do que intimidade, essas performances sugeriam uma cumplicidade entre os dois agentes da relação, como se ela, a diva, soubesse do “segredo” guardado por aquele fã do outro lado da tela, adotando a piscadinha para comunicar tal fato. Um “segredo” compartilhado pelos dois. Para este fim, a imaginação foi um aliado significativo, já que, como salienta Balieiro (2014), “em vez de lutar por uma identidade mais aceita socialmente, os produtos fílmicos, em especial relacionados a estrelas de cinema, têm como norte utópico um outro mundo” (BALIEIRO, 2014, p. 265). A produção deste “outro mundo” proporcionou uma releitura da norma, convertida em objeto de ironia e humor. Retornando novamente a Harris (1994), foi essa sensação de “desajuste” que possibilitou que indivíduos fora da norma heterossexual construíssem um mundo de utopia – realizado em potência e não em realidade. Ao analisar o lugar ocupado pelos musicais no imaginário de “homens homossexuais”, Halperin (2012) chegou às mesmas conclusões que Harris (1994), ao falar dos musicais de Hollywood, ou seja, a estética provocativa desses objetos culturais proporcionou uma evasão momentânea das realidades inóspitas vivenciadas por essas pessoas, um deslocamento, levando-as para uma outra

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realidade algo imaginada. Halperin (2012) elucida de forma interessante este processo. Para ele, os musicais da indústria de Hollywood obtiveram efeitos inesperados nesses indivíduos cujos desejos eram marcados pelo indizível. Através do consumo desses objetos culturais era viável ser catapultado de seus universos familiares e lançados a um ambiente mais lírico e lúdico: Of a magical Technicolor world somewhere over the rainbow, “theatrical rather than realistic”, where normal people (even major-league baseball teams) unexpectedly burst into song and dance, the lyrical ethos of the Broadway Musical – its interruptive, reality suspending, mode-shifting form – expresses gay desire, and answers to what gay men want, far better than anyone who literally denotes or embodies gay-ness (HALPERIN, 2012, p 104).

A diva constituía-se, então, em um ensaio – uma micropolítica – com a qual se abria um “campo de possibilidades” (VELHO, 2003) mais ampliado para as demonstrações públicas das sexualidades não normativas em uma sociedade marcada por registros homofóbicos. Se, para Sedgwick (2007), o “armário” é uma metáfora importante para se pensar a construção das subjetividades “homossexuais” estruturadas em um rígido regime de opressão, a diva se constituiu como uma resistência possível e criativa em um período de originação de subjetividades marcadas pelo silenciamento das práticas sexuais entre iguais – características que compunham o “regime de homossexualidade” (MECCIA, 2011). A diva permitiu, nos termos de Foucault (1988), a produção de “formas de vida” não inteligíveis pelo registro da normalidade ocidental. Esses processos de subjetivação contaram com um agudo senso de invenção para o qual a ironia e o humor tiveram importância crucial. Mas as divas não estimulavam somente a imaginação. Foi ainda através das divas que se estruturou um universo de significados que ofereceu aos indivíduos fora da norma heterossexual um repertório de sentidos, performances e ações que canalizavam as frustrações do apagamento de suas relações e vivências não apresentáveis em uma linguagem que traduzia o seu descontentamento social, o camp. A relação celebrada entre o camp e as divas vem sendo explorada amplamente por diferentes estudos, sobretudo anglófonos, os quais se concentraram na contribuição do cinema e suas estrelas para a produção de uma “sensibilidade gay” (DYER, 2004; BABUSCIO, 1999). Tal questão já se encontra presente nas reflexões de Susan Sontag na década de 1960. Para Sontag (1987), o universo inclassificável a que o camp se liga possui características que fogem à ordem regular das coisas. Em função disso, a tarefa de definir o camp é quase impossível. Contudo, algumas “notas” fundamentais podem ser extraídas da noção de camp, uma das quais é o seu “esteticismo extravagante”, o exagero e a artificialidade – elementos

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associados à postura de desdém, características que completam a visão cômica a que o camp se propõe (SONTAG, 1987). A autora estabelece uma relação de correspondência entre a estética camp e a figura do dândi, aquele personagem da paisagem urbana excessivamente cultivado, cujo objetivo era a busca por sensações raras, aquelas ainda não experienciadas pela turba popular. Para Sontag (1987), a história do gosto camp se entrelaça com a própria história do gosto esnobe – ou seja, a própria essência da distinção. Com a decadência da velha aristocracia, os gostos especiais ou raros, que distinguiam essa classe das outras, foram sendo revelados por outros grupos, especialmente os “homossexuais”, chamados pela autora de “aristocratas do gosto”. Em função disso, desenvolve-se nesse grupo uma agência criativa, capaz de produzir novas sensibilidades. Para ela, foi através dessa agência criativa que esse grupo pôde articular a sua integração na sociedade. Harris (1991), contudo, não percebe o desenvolvimento do camp entre os “homens homossexuais” como uma possibilidade de integração à sociedade, mas sim de alienação da mesma – uma espécie de fuga a partir da construção de uma utopia. Ainda que discordem nesse ponto, as ideias de Sontag (1987) se aproximam das de Harris (1991) acerca de uma característica fundamental do camp: o deslocamento simbólico. Tanto Sontag (1987) quanto Harris (1991) veem no distanciamento uma característica constitutiva do camp, o qual produziria uma sensibilidade particular nos indivíduos que compartilham dessa estética. O espírito elitista teria surgido entre eles como uma possibilidade de se distanciar psiquicamente e simbolicamente do contexto hostil estabelecido contra as suas sexualidades não apresentáveis. Essa experiência é vivenciada com uma dose intensa de ironia, uma vez que nem todos pertenciam de fato a uma elite econômica, mas se percebiam, como mostra Harris (1991), deslocados de seus contextos sociais. Tal consciência fez com que esses indivíduos construíssem um mundo imaginado, um mundo onde as convenções seriam ressignificadas a favor deles mesmos. Como afirma Babuscio (1999), são quatro os elementos que caracterizam o camp: ironia, esteticismo, teatralidade e humor. Essas características se entrelaçam na construção daquilo que o autor chama de uma “sensibilidade gay”. Ao falar dessas características de forma isolada, o autor põe em relevo algumas possibilidades de interpretação dessa “sensibilidade gay” a partir do camp. De forma geral, o autor ressalta que essas quatro dimensões estão articuladas na noção de “contrastes incongruentes”, sobretudo acerca do masculino/feminino. A linguagem fílmica seria um veículo importante do camp, principalmente por evidenciar personagens e estrelas com qualidades andróginas, a femme fatele seria um bom exemplo disso. Para Babuscio (1999), o ponto central dessa percepção de

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incongruência é a ideia de que as sexualidades não normativas são um desvio moral, portanto ela representa uma ruptura com a ordem heterossexual das coisas. Babuscio (1999) define o que chama “sensibilidade gay” como uma “energia criativa”, a qual reflete uma consciência elevada acerca da diferença em relação a aquilo que é considerado convencional. Em outras palavras, indivíduos fora da norma heterossexual reuniriam mais condições de identificar a artificialidade das convenções sociais, dada a sua habilidade em se passar – passing – por heterossexuais. Estes últimos não desenvolveriam tal habilidade, em razão da naturalização internalizada de sua experiência. O desenvolvimento dessa energia criativa se relaciona diretamente ao camp. A incorporação das normas de gênero e classe, bem como a aproximação estética do “gosto esnobe” foram certamente uma estratégia de insurgência possível que, quando teatralizada por esses indivíduos, refletia as suas contradições – tanto subjetivas quanto sociais. Nisso o camp se aproxima das análises de Lopes (2011), a quem essa noção parece ser uma “força gerativa”, que assimila o problema e o transforma em outra coisa. Essa força gerativa estaria relacionada a uma habilidade comportamental através da qual o camp seria uma forma encontrada por indivíduos fora da norma heterossexual de lidarem com situações de preconceito e discriminação – o que, em contexto brasileiro, receberia o nome de “fechação” (COSTA, 1992), ou, mais contemporaneamente, a “lacração”. Dessa forma, o camp poderia ser percebido como uma experiência de “communitas”, termo consagrado por Turner (2005) para se referir ao deslocamento para um outro “estado da sociedade”. Daí a percepção de Sontag (1987) de que o camp é um “solvente moral”, uma vez que tem a capacidade de deixar as coisas fora do lugar. Foi através da teatralidade camp que esses indivíduos fora da norma heterossexual puderam negociar sentidos entre eles mesmos e com o mundo que os rodeava. Acredito que o camp evoca um jogo entre aproximações e distanciamentos que se relaciona a uma luta simbólica por reconhecimento. Nessa luta, a aproximação com as noções de luxo, glamour e “gosto cultivado” marcam a vontade de reconhecimento de um grupo alijado de bens simbólicos que construíram uma sensação de pertencimento através da incorporação dos “símbolos distintivos” de uma elite dominante. No Brasil, as produções hollywoodianas se articularam a outros universos simbólicos na construção dessa expressão da “sensibilidade gay”, o camp. A apropriação dos concursos de miss, das cantoras de rádio, dos bailes e concursos de Carnaval e, logo depois, da televisão foram elementos constitutivos dessa estética e estilo camp, como visto nos capítulos anteriores. Foi dentro desse universo simbólico que ocorreram as apropriações mais diversas das contradições sociais – gênero, classe, cor/raça e sexualidade – e sua tradução pela lógica

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do riso e da galhofa. A figura que acredito materializava de um só golpe todos esses universos simbólicos e também evidencia um conjunto de contradições fundamentais que organizam a sociedade brasileira foi Carmen Miranda. A menina dos balangandãs, pulseiras e sandálias altas representa o espírito do camp de forma mais acabada por evidenciar em sua estética espalhafatosa e eclética grandes antagonismos fundantes da sociedade brasileira: preto/branco, nacional/internacional, popular/erudito, etc. Para além das discussões que os usos da imagem de Carmen Miranda envolve na construção da ideia de nação no Brasil e fora dele, essa personagem se constituiu como uma mediadora na construção da ideia de cultura popular brasileira – herdeira das culturas africanas representada, sobretudo, pela imagem da baiana que tanto evocou –, mas também à confusão e à ambiguidade – energias gerativas do camp. Carmen Miranda reúne de uma só vez a confusão, a mistura e o excesso, performatizando em gestos e indumentárias elementos considerados característicos da cultura brasileira. O conjunto de significados associados a Carmen Miranda foi absorvido por uma audiência formada por indivíduos fora da norma heterossexual que viam em seus filmes, aparições em revistas e no rádio as respostas para sua sensação de desajuste. Logo, a parafernália de significados diferentes ilustrados por Carmen Miranda se constituiria como elemento estruturante de uma sociabilidade “bichal” vibrante que ganhava as ruas por meio de linguagens, símbolos e apropriação de espaços próprios. A “pequena notável” se constituiria como grande diva, oferecendo uma fundação para esse universo camp. Carmen Miranda representava, simultaneamente, o glamour de Hollywood e a confusão da estética carnavalesca. Sua vida e obra foram entrelaçadas às vidas desses indivíduos que se identificavam com a estética que ela propunha. O simbolismo que se constituiu sobre as sexualidades não normativas girava em torno dessas grandes divas, sobretudo, popularizadas pelo rádio e pela televisão – tecnologias que passaram a se tornar cada vez mais populares na década de 1960 (FIGARI, 2007). Foi a partir da difusão do rádio, e depois da televisão, que essas figuras surgiram como polos agregadores de indivíduos fora da

norma

heterossexual

responsáveis

por

torná-las

populares,

singularizando,

simultaneamente, uma experiência comunitária em torno de símbolos que davam sustentação a esse universo. Na introdução desta tese discuti alguns pontos da minha experiência de pesquisa com a Turma OK que me colocavam questões a serem aprofundadas, dentre as quais estavam a idolatria daqueles indivíduos com mais de 50 anos a atrizes e cantoras das décadas de 1950 em diante. Quando comecei a interpretar esse material associado àquele que obtive junto às

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“travestis profissionais” que entrevistei, percebi o quanto a diva foi e continua sendo um símbolo importante na memória desse grupo e, mais do que isso, foi constitutivo da noção moderna de “homossexualidade”.

4.3 – Parodiando a sociedade, ritualizando a diva: o Snob, as turmas e a invenção de uma “sociedade bichal”

Como foi analisado, a diva se constituiu como um totem através do qual experiências de vida atomizadas foram ganhando sentido graças à aproximação física que a idolatria dessas mulheres proporcionava aos indivíduos fora da norma heterossexual. Uma parte importante desse processo se relaciona à dimensão da sociabilidade, terreno sobre o qual a diva foi convertida em performance. Em nenhum outro espaço a diva e o seu universo simbólico ganharam tanto destaque quanto na dinâmica das turmas de “bichas” e “bofes” que se instituíram em razão desse símbolo. Foi através da mediação dessas turmas que se negociou uma possibilidade de insurgência, de fuga das convenções rígidas da vida social, sobretudo aquelas relacionadas ao plano da sexualidade. Esta sociabilidade não seria possível sem aquele “poder de invenção”, característica do “estado de communitas” (TURNER, 2013) com a qual esses homens ressignificavam toda a sociedade projetando suas aspirações de reconhecimento e existência. Uma das manifestações mais significativas desse “poder de invenção” deu-se certamente com jornais artesanais, como O Snob – principal canal de articulação e resistência das “bichas” na década de 1960. Esse veículo constituiu-se em um espaço social através do qual esses símbolos ganhavam vida, nos quais a diva era ritualizada. Foi também através deste universo que esses homens incorporavam a norma através do glamour e, simultaneamente, a parodiavam. O trabalho de Costa (2010) sobre o jornal O Snob revela aspectos interessantes da dinâmica da sociabilidade das turmas de “bichas” que se constituíram no Rio de Janeiro entre as décadas de 1960 e 1970. De acordo com esse autor, esses grupos tinham uma forma bem específica de ordenar seu mundo, considerando-se participantes de uma “sociedade bichal” (COSTA, 2010), da qual eram uma espécie de crème de la crème. O clima de “alta sociedade” estruturava a forma pela qual esses homens se relacionavam entre si e com o meio social que os rodeava. A noção de “sociedade bichal” é reveladora das dinâmicas de ressignificação que O Snob e as turmas de “bichas” protagonizavam.

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Através das relações e fluxos produzidos a partir desses jornais e das turmas, a sociedade era percebida como uma “paródia”, nos termos adotados por Butler (2003), cujo objetivo é denunciar o essencialismo das relações sociais. Para esses homens, a própria sociedade e suas hierarquias de pessoas era uma “paródia”. A chamada “alta sociedade” era o fio condutor através do qual toda essa parafernália social ganhava efeito. As “bichas” se colocavam como o ponto principal dessa pirâmide, rejeitando e ressignificando o não lugar a que estavam restritas. Nos jornais e nos encontros íntimos promovidos pelas turmas, as “bichas” podiam ser rainhas, divas, princesas e, principalmente, misses. As capas do Snob, as quais reproduziam as fotografias da revista Manchete, são um bom exemplo desse processo, como já havia identificado Costa (2010). Com os jornais era possível inverter o jogo de exclusão, assumindo simbolicamente o topo da pirâmide, evidenciando o quão artificial eram essas relações. Esses homens, ao operarem “travestismos de gênero e classe” (MCCLINTOCK, 2010), transitavam pela norma, evidenciando o caráter não essencialista da mesma.

Imagem 28 – Capa do número 08 d’O Snob, na qual Gilka Dantas (Agildo Bezerra Guimarães) aparece coroada (Fonte: acervo pessoal).

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O mundo construído pelo Snob revelou muito mais do que a artificialidade das hierarquias sociais: ele produziu sentidos sobre as sexualidades não normativas e como estes eram percebidos pelos participantes das turmas, reconhecendo diferenças entre os mesmos. Nas páginas desse jornal era possível encontrar indícios importantes da forma como as “bichas” desse período produziam reflexão acerca de diferentes aspectos da vida social, como relações sexuais, política, ditadura e cotidiano. As ideias presentes no jornal expunham ainda determinadas estruturas daquela “comunidade de interesses”, revelando hierarquias, tensões e mudanças na percepção em torno da experiência de “ser bicha”. A divisão dualista entre “bichas” e “bofes” era um dos principais pontos dessas inquietações. O mundo inventado pelo Snob se dividia entre “bichas” e “bofes”, personagens que negociavam sentidos a partir das diferenças inscritas, sobretudo, na articulação entre gênero e classe social. A “bicha” ocupava um lugar de destaque na economia dessas relações. Ainda que reproduzisse o imaginário de que era a “sola do pé do macho” (FRY, 1985), era ela a principal agenciadora desse mundo. A “bicha” era responsável pela organização das festas, das recepções, pela feitura e distribuição dos pequenos jornais, entre outras atividades. Além dessas incumbências, elas possuíam uma vida financeira mais estável, que incluía ter um apartamento próprio, e um rico repertório cultural. O “bofe” era uma espécie de corpo celeste que orbitava ao redor do astro principal, a “bicha”, limitando sua participação apenas aos eventos sociais – as festas –, nas quais podia ser visto ao lado da “bicha” com quem mantinha um “caso”86 (SOLIVA, 2012).Eles eram ainda menos eruditos e não possuíam uma vida financeira consolidada. Essa peculiar interpretação do mundo era refletida diretamente na dinâmica das relações afetivo-sexuais. A relação bicha/bofe tinha que ser uma relação obrigatoriamente instável. De acordo com Anuar Farah, o “bofe” era aquele que desprezava a “bicha”, batia nela, pegava o seu dinheiro e, no fim, acabava se casando com uma mulher, roteiro muito próximo daquele dos romances naturalistas, tal qual ocorrera em Bom Criolo87, de Adolfo

86

Expressão utilizada pelos “entendidos” da década de 1970 para caracterizar uma relação sexual e amorosa duradoura entre dois parceiros do mesmo sexo. Trata-se de uma tentativa de dissociação da ideia de “casamento”, empregada por parceiros heterossexuais em suas relações amorosas. O “caso” seria o oposto da “pegação”, esta uma relação sem vínculo amoroso, uma relação sexual furtiva, episódica e ocasional (GUIMARÃES, 1984). É interessante notar que ainda hoje os sócios da Turma OK usam essa expressão quando estão falando sobre as suas relações amorosas. 87 Livro de Adolfo Caminha que narra a história de Amaro, um marinheiro, e Aleixo, um grumete, por quem o primeiro se apaixona perdidamente. O desfecho da história é trágico, posto que a dona da pensão onde os dois amantes foram morar acaba se relacionando com o jovem amante de Amaro. Atordoado pelos ciúmes, o marinheiro mata o amante. A história reproduz a ideia de que as relações “homossexuais” são necessariamente instáveis, nas quais a felicidade é sempre inacabada em função do evidente desajuste da relação. O amor, nesses

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Caminha. A existência de uma relação mais duradoura com uma “bicha” poderia fazer cair sobre o “bofe” o estigma de não ser de fato um “homem de verdade”. Na cama, essa divisão se expressava de forma ainda mais imperativa. A posição no coito demarcaria os limites físicos e simbólicos entre os “verdadeiros homossexuais”, “bichas”, e os “não homossexuais”, “bofes”. À “bicha” estaria reservado o papel de sexualmente passiva, sendo penetrada pelo “bofe”, submetida ao poder de um macho. Este último seria assim um “homem de verdade”, posto que “come” a “bicha” e a submete pelo “pau”. Nessa relação, cabe à “bicha” a autoridade moral sobre o “bofe”, visto que é ela quem dita a masculinidade mais legítima. A alegada passividade sexual dela afirma a masculinidade do outro, posto que desvaloriza a sua própria masculinidade (PARKER, 2002). As análises de Peter Fry sobre a “construção histórica da homossexualidade” no Brasil oferecem pistas elucidativas para compreender a lógica das relações entre as “bichas” e os “bofes”, tal como foram vivenciadas pelas turmas desse período. Fry (1982) sugere dois “modelos ideais” utilizados no Brasil para se organizar as “homossexualidades”. No primeiro modelo, a que o autor chama de “hierárquico”, o comportamento sexual e os papéis de gênero ocupariam importância crucial na forma com alguns brasileiros organizam a sua sexualidade. Nesse modelo, a divisão dos gêneros é rígida e se expressa nos binômios homem/ativo sexual e mulher e bicha/passivos sexuais. Assim, o papel da “bicha” é reservado àquele que “dá”, excluindo aquele que “come”, entendido com um homem sem quaisquer perdas substanciais de seu status sociossexual (CARRARA; SIMÕES, 2007). Na virada do século XIX para o XX, o crescimento do interesse médico em relação à “homossexualidade masculina” teve como reflexo a construção de uma nova taxionomia para as relações sexuais entre homens. Para Fry (1982), essas classificações teriam sido operadas pelos médicos que em um dado momento retiraram a “homossexualidade” do campo religioso e a colocaram no campo científico. As preocupações de Leonídio Ribeiro sobre o “homossexualismo” marcaram de forma definitiva esse processo, como analisado. No modelo adotado pelos médicos para classificar o “homossexual”, pouco importava a posição ocupada no coito, já que a “condição homossexual” era atribuída a ambos os praticantes do mesmo sexo envolvidos em uma relação sexual. Essa divisão punha em evidência a orientação sexual dos parceiros, dividindo o mundo entre “sexualidade normal” e “pervertidos sexuais”. Essa dinâmica guarda relação com a emergência daquilo que Fry (1982) chama de segundo modelo: o “igualitário”, que teve sua origem no pensamento médico fartamente contextos, é percebido como algo impossível de ocorrer por se tratar de duas pessoas do mesmo sexo. O resultado desta tensão é sempre a tragédia.

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disseminado no século XIX. Fry (1982) argumenta que o surgimento desse modelo está relacionado com o processo de transformação social das classes médias e altas das grandes cidades brasileiras, ou mesmo com o próprio processo de constituição dessas classes (FRY, 1982). Nesse modelo, surgem novas concepções sobre a “homossexualidade”, livres do signo da anormalidade e animadas por uma valorização da “identidade homossexual” influenciada pelo surgimento do movimento homossexual internacional. Tem-se a gradativa substituição do termo “homossexual” por “gay”, compatível com as concepções que marcaram o surgimento do gay power. É possível perceber o quanto a categoria “gay” foi adotada para pelos produtores de “shows de travestis” para construir seus letreiros, identificando a essa expressão concepções de modernidade. A transição do que o autor chama de “modelo hierárquico” para o “modelo igualitário” foi tratada nas páginas dos pequenos jornais quando da emergência da categoria “entendido”. A categoria “entendido” ganhou visibilidade nos trabalhos de Guimarães (1977) quando estudou uma rede de amigos “homossexuais” moradores da Zona Sul carioca que se encontravam para diversão e lazer. Segundo a autora, esses homens não mais se interessavam pela organização da “experiência homossexual” na díade “bicha/bofe88”. Eles estariam em busca de parceiros que valorizariam uma postura igualitária em relação à organização dos papéis sexuais. No tocante às técnicas sexuais, a dicotomia ativo/passivo cederia lugar a formas menos fixas de se organizar o prazer. Contudo, a categoria “entendido” nem sempre foi usada pelos indivíduos que compunham esses grupos com essa perspectiva igualitária. De acordo com Costa (2010), entre os anos de 1963 e 1964 essa expressão fazia referência à totalidade dos indivíduos que se ligavam de alguma forma à rede do Snob. Com as mudanças de comportamento protagonizadas por esses homens, o “entendido” assume um novo significado, agora em sintonia com concepções que criticavam a centralidade do gênero na essencialização dos indivíduos. As disputas em torno dessa nova identidade não foram pacíficas. Entre as “bichas”, o aparecimento dessas novas identidades era percebido como ameaçador ao mundo constituído por elas. Assim, a reação das “bichas” era a de rejeição e desqualificação dos indivíduos que se identificavam com essas novas formas de vir-a-ser. Um exemplo desse processo é o uso da expressão “entendido passado a ferro”, adotada pelas “bichas” para se

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Os inquéritos dos médicos que escreveram sobre a “homossexualidade” no século XIX já haviam revelado que os homens que se relacionavam sexualmente com outros homens nem sempre eram exclusivamente “ativos” ou “passivos” sexuais (GREEN, 2000; FIGARI, 2007).

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referirem ao caráter desestabilizador que essas práticas e identidades geravam nos indivíduos que as assumiam (COSTA, 2010). Não somente a dinâmica sexual diferenciava as “bichas” dos “bofes”, um outro componente organizava essa distinção – as “bichas” eram detentoras de um “capital cultural” mais ampliado, que incluía uma vasta gama de conhecimentos. Elas falavam de peças de teatro, livros, revistas, viagens – elementos através dos quais se distanciavam não somente dos “bofes” como de grande parte da sociedade brasileira. A percepção de que faziam parte de um “crème de la crème” não estava tão dissociada da realidade quanto se imagina. Muitos já possuíam seu próprio apartamento, trabalhavam como funcionários públicos e estavam antenados com as inovações trazidas dos grandes centros urbanos internacionais, como Nova York, Londres e Paris. Essas características os atrelavam a um determinado tipo de experiência de classe que começara a ganhar contornos entre as décadas de 1960 e 1970 no Rio de Janeiro, as classes médias. Foi através de um imaginário sobre o glamour que as “bichas” escolheram a moderna Copacabana para ritualizar seu universo simbólico. Neste bairro, a privacidade das casas se misturava ao alvoroço das ruas, o lazer diurno e familiar da praia coexistia com os prazeres noturnos dos bares, cinemas e casas noturnas que começaram a consolidar uma presença exclusivamente de “bichas” já na década de 1960, com bares como o Alfredão. Copacabana se constitui como símbolo da modernidade e do cosmopolitismo ao mesmo tempo em que se intensifica a sua procura pelas camadas médias da sociedade brasileira. O jornal O Snob refletia esse imaginário sobre o glamour. A escolha do nome do jornal foi certamente uma coincidência significativa dos rituais de distinção constitutivos dessas turmas. De acordo com Agildo Bezerra Guimarães – criador d’O Snob – em entrevista a Costa (2010), o nome teria vindo de um antiquário localizado na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Contudo, o simbolismo desse título remete diretamente a um tipo específico de experiência social no qual a solidariedade do grupo está associada à posse de um capital simbólico que o distingue de outrem: um exclusivismo social. Aparentemente, este é relacionado à própria experiência do “ser bicha” que o destacaria em relação ao conjunto da população. Aparentemente, a evocação desse exclusivismo articulava uma agência ativa dessas pessoas, as quais incorporavam esses símbolos relacionados ao glamour para reelaborar de forma camp toda a sociedade. O glamour, nesses termos, era uma chave para habitar o mundo hostil que os circundava. A solução foi performar a norma, incorporando as etiquetas sociais e de gênero articuladas a um imaginário sobre o glamour. O interesse pelos concursos de miss, pelas

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“listas dos 10 mais do ano” e pelas fofocas do grupo foram traços característicos que davam forma a essa “sociedade bichal”. A “lista dos 10 mais”, principalmente, era o grande destaque no conjunto de eventos que marcavam o calendário dessas turmas. As “escolhidas” eram objeto de prestígio e admiração pelas demais. Esse interesse, contudo, não foi exclusivo das “turmas de bichas” do Rio de Janeiro: está ligado ao crescimento do interesse público pela vida social da chamada “alta sociedade” e das celebridades que organizavam um “mundo de sonhos” veiculado pelas publicações brasileiras, principalmente a partir da década de 195089. As características editorias e comunicacionais de O Snob o aproximam de um tipo de jornalismo que ganhou vulto no Brasil a partir da década de 1950, o colunismo social. Esse tipo de linguagem editorial, que surgiu nos Estados Unidos ainda na década de 192090, implicou não só mudanças na forma como a imprensa começou a produzir o seu material, mas também uma ampliação na noção de high society91 (MARIA, 2008). Foi através do colunismo, principalmente da atuação dos colunistas sociais, que começaram a ter destaque nos impressos não somente aqueles sujeitos que possuíam algum vínculo familiar reconhecido – uma “boa família” – nos círculos sociais, mas ainda outros indivíduos e grupos. Não apenas os “novos ricos” se beneficiaram dessa ampliação da cobertura pelos colunistas sociais, mas também toda aquelas pessoas que não necessariamente possuíam recursos materiais e uma “boa família”. Maneco Muller e Ibrahim Sued foram os representantes mais destacados desse tipo de fazer jornalístico. Ambos, principalmente este último, tiveram uma longa trajetória profissional em jornais de grande circulação. Em 1951, Ibrahim Sued começou a sua carreira como colunista, escrevendo para uma coluna diária chamada Zum Zum no jornal Vanguarda. Desde então, teve suas ideias veiculadas no jornal O Globo até 1995, ano de sua morte. Sua popularidade lhe rendeu décadas de inserção em veículos de comunicação, através dos quais apresentava suas opiniões pessoais e seus julgamentos, no que se relacionava às “altas rodas sociais” e também à política brasileira (TRAVANCAS, 2001). Ibrahim Sued desenvolveu um tipo de jornalismo atravessado por sua subjetividade moldada em uma dada experiência de classe – associada às elites econômicas e culturais. Isso implicou o uso de linguagens e 89

As crônicas sociais são anteriores a esse período. Elas veiculavam um conjunto de informações concernentes a rituais que marcavam a vida da “alta sociedade”, tais como funerais, batizados, casamentos, etc. 90 Maria (2008) vai argumentar que a diferença entre os colunismos que se desenvolveram no Brasil e nos EUA reside na acidez política com que este último se inseriu na realidade daquele país, onde os colunistas tiveram grande inserção nos debates políticos, modificando amplamente determinadas dinâmicas estatais. 91 Antes da atuação dos colunistas sociais, a noção de “altas rodas”, termo consagrado por Mill para se referir ao círculo íntimo das elites sociais, era basicamente organizada pela linhagem e descendência, as “boas famílias”. A partir desses personagens, novos grupos passaram a ter acesso às “altas rodas”, passando a acessar, portanto, os bens simbólicos a que estas eram privilegiadas (MARIA, 2008).

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ostentação de “objetos de distinção” – viagens, repertório de consumo, comportamento, etc. – que eram observados atentamente por determinadas classes sociais que não podiam ter acesso a esses bens. Sugiro que esse tipo de linguagem foi profundamente apropriado pelos grupos de amigos que faziam circular os jornaizinhos das turmas de “bichas” e “bofes”. Essa linguagem exercia atração entre estes homens por apresentar o “mundo de sonhos” das elites, o qual era parodiado pelas turmas e veiculado nos pequenos jornais. Essa paródia, ou “inversão do mundo”, tinha uma dupla função: celebrar reconhecimento entre eles mesmos através da agência coletiva e criar um espaço de resistência possível no qual a rejeição poderia ser momentaneamente esquecida graças ao glamour, ao lúdico e ao criativo. De certa forma, eles reelaboravam na experiência das turmas aquele “sentimento de communitas” que, como visto, o carnaval proporcionava. Aparentemente, os jornaizinhos das turmas não somente fizeram circular novas formas de classificação sobre as sexualidades não normativas – como mostrou a polêmica em torno das classificações “bicha/bofe” e “entendidos” –: como ainda imprimiam estilos e gostos que informavam sobre o “mundo bichal”. Através desses jornais, principalmente O Snob, era possível penetrar no universo simbólico das turmas, oferecendo a quem não fazia parte delas, sobretudo em função da distância geográfica, uma sensação de pertencimento. Como aponta Costa (2010), através dos jornais esses homens fundaram uma densa rede de relações, mas também, acredito, faziam circular significados sobre o que era ser “bicha”. O sentido sobre as sexualidades não normativas era orientado por gostos sofisticados, que eram divulgados por esses jornais. Esses jornais não escoavam apenas fofocas e informações do “mundo bichal”, faziam também circular “objetos de distinção”. Assim como no colunismo de Ibrahim Sued, Agildo, Anuar e outros colaboradores dessa publicação reproduziam nas matérias que escreviam estilos e gostos que foram sendo consolidados por essas pessoas. Os textos eram extremamente personalistas, ganhando destaque as viagens, festas, fofocas e outras informações sobre o estilo de vida de Copacabana. Ser “bicha” implicava reconhecer esse universo simbólico, cuja leitura dos jornais permitia que fosse compartilhado por indivíduos em diferentes regiões do país. Aparentemente, os jornais passaram a assumir a função social dos fã-clubes das cantoras do rádio, estreitando os laços desses homens, apesar das distâncias. Essas publicações chegavam a esses homens de fora do Rio de Janeiro através dos correios ou, principalmente, por meio das viagens que aqueles que moravam no Rio de Janeiro e São Paulo faziam em outras regiões brasileiras. Como percebeu Newton (1979) nos

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dois anos de pesquisa em que participou ativamente da sociabilidade “homossexual” de grandes cidades americanas, um dos principais meios de circulação das informações acerca desse tipo de sociabilidade era através da agência individual – ou seja, por meio das viagens e dos itinerários feitos por esses indivíduos em diferentes contextos. Essa percepção implica reconhecer a circularidade da sociabilidade “homossexual”. As divas eram símbolos através dos quais essa sociabilidade se organizava para fora de um espaço específico. Através das divas, esses homens tinham acesso a fragmentos simbólicos com os quais construíam sua performance, incorporando normas de classe e gênero. Elas ofereciam a eles acesso a um mundo de glamour, como o qual ressignificavam suas próprias trajetórias e escolhas individuais. Ao mesmo tempo que as turmas se mobilizavam através dos jornais artesanais, as “travestis profissionais” se projetavam na Europa. A imagem delas foi fundamental para o universo dessas turmas. Elas eram vistas como exemplo de profissionalismo e arautos dos novos tempos. Rogéria chegou a oferecer duas entrevistas ao Snob ao longo da existência desse veículo. A faustosa temporada europeia dessas “travestis” oferecia ainda mais material simbólico para a dinâmica dessas turmas. Ver o sucesso dessas “travestis” encoraja ainda mais o début dessas turmas na sociedade. As “travestis” criaram o ambiente propício para que eventos realizados no silêncio dos apartamentos, como eram os concursos de miss, fossem realizados em clubes da cidade, contando com a presença de diferentes segmentos sociais. É possível sugerir que com as “travestis profissionais” as divas passam da imaginação à realidade, materializada em trajetórias de vida e carreiras de fundamental importância para esses homens cuja experiência era marcada pela clandestinidade. Este capítulo se dedicou a analisar a ideia de diva e sua relação com as sexualidades não normativas. Foi possível perceber que a diva está diretamente conectada a um personagem ainda mais antigo, a “mulher fatal”, presente na literatura e na mitologia em diferentes contextos. A “mulher fatal” foi reelaborada pelo mercado de bens culturais, convertendo-se na diva moderna. A importância dessa personagem na trajetória de vida de indivíduos fora da norma heterossexual ganhou centralidade nesta análise. Foi através das divas que indivíduos com trajetórias de vidas atomizadas em função de sua experiência não heterossexual puderam se reconhecer e se agregar. Sugeri que as divas possuíam a força de um imã para essas trajetórias, configurando um totem animado por relações de sociabilidade e solidariedade. As divas e seu mundo de glamour foram o material simbólico central na construção de pautas de sociabilidade e

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também por um tipo de agência capaz de fazer com que esses indivíduos penetrassem na sociedade. O jornal O Snob foi um exemplo importante da forma como essa imaginação sobre a diva e o glamour operou um universo simbólico que, incorporando normas relacionadas a classe social e gênero, pôde resistir à norma sexual hegemônica.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando comecei esta tese, meu objetivo era dar continuidade aos achados da pesquisa que realizei no mestrado entre os frequentadores de um espaço de sociabilidade “homossexual” que existe desde a década de 1960, a Turma OK. Neste espaço tive vários insights interessantes acerca desse grupo e de sua lógica de funcionamento, mas, dentre todas as observações que fiz, nenhuma me chamou mais atenção do que o apreço dessas pessoas pela ideia de glamour. Foi a partir dessa percepção que comecei a esboçar uma tentativa de compreensão desse universo que oferecia sentidos, significados e valores às sexualidades não normativas tal como vivenciada por esses sujeitos. Logo, pude perceber que o glamour era muito mais que um valor ou modo de vida a ser perseguido por essas pessoas hoje tidas como mais velhas: ele estava inscrito em suas trajetórias e memórias, era parte indelével de uma identidade coletiva. Tal identidade havia sido forjada em um passado não tão distante, mas articulada a diferentes eventos impulsionadores de transformações sociais importantes. Dada essa motivação de analisar essas questões, comecei a perceber a necessidade de pesquisar as conexões entre as sexualidades não normativas e um mundo novo para mim, um mundo povoado de vedetes, “mulheres fatais”, misses e divas. Foi a partir desse mundo de sonhos e imagens (MORIN, 2007) da “cultura do entretenimento” que busquei compreender os agenciamentos sociais e políticos, a produção de sujeitos, as “comunidades imaginadas” e as mudanças nas convenções relacionadas à produção social das sexualidades não normativas no Brasil. Estudos envolvendo a relação entre as sexualidades não normativas e o mercado de bens culturais e de entretenimento são ainda escassos na academia brasileira. Associada a esta insuficiência, a literatura antropológica sobre as “homossexualidades” também não possui muitas iniciativas de pesquisa sobre as décadas anteriores ao surgimento do movimento homossexual no Brasil. Considerando essas lacunas, pensava poder contribuir tanto para o campo antropológico de estudos de gênero e sexualidade quanto para a história das “formas de vida” relacionadas às sexualidades não normativas no país, um campo marcado por fontes de dados fragmentadas ou sentenciadas ao apagamento. Essa última ambição parte de um interesse individual e político, que é pautado pela necessidade de melhor conhecer nossos antecedentes históricos. Com essas ideias como desafio, comecei a reunir fontes que convergiam, sobretudo, para um grupo específico de pessoas quando associadas à ideia de glamour: as “travestis

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profissionais”. Esse grupo conformava um conjunto de sujeitos considerados pioneiros na carreira, legitimada por viagens e estadias em outros países, e pelas primeiras iniciativas de transformação corporal registradas no Brasil e no mundo. A documentação histórica e as trajetórias de vida que ia reunindo foram evidenciando para mim que, em um período não muito longe, década de 1960 até meados de 1980, essas “travestis profissionais” foram sendo transformadas: antes objeto de escárnio nos bailes da Praça Tiradentes, tornaram-se objeto de fascínio de um público que afluía aos teatros para vê-las e celebrá-las. Foi a celebração deste “corpo travesti” o responsável por levar um público cada vez mais amplo aos teatros para prestigiar aquela agora considerada “maravilha” da modernidade. O conjunto dos dados apresentados possibilita perceber a intensa negociação de espaço, tendo como foco o nascente mercado de bens culturais, entre estas “travestis profissionais” e uma sociedade cuja elite foi um importante mecanismo de ressignificação e reconhecimento das mesmas. Foi através do consumo dessa elite – composta por artistas consagrados, damas da sociedade e até mesmo uma ex-primeira-dama de um presidente da ditadura – que essas trajetórias exemplares foram recriando um outro lugar na sociedade. Ressignificadas pela chave do moderno e cosmopolita, as “travestis profissionais” inverteram o jogo a seu favor, convertendo o desprestígio social associado aos seus estigmas em valores centralizados em um simbolismo corporal específico. Comecei a perceber que por trás dessas “travestis profissionais” confluíam diferentes contextos responsáveis por provocar existências alternativas à heteronormatividade. Esses contextos ofereciam o material simbólico indispensável à imaginação de sujeitos que se viam “fora da norma”. Tais contextos estavam relacionados ao mercado de bens culturais e de entretenimento que se formava no Brasil. Com ele, crescia o interesse por cantoras do rádio, pelas misses e também pelos concursos de fantasias nos bailes de carnaval. Nesses espaços que celebravam o glamour, sujeitos tidos como fora da norma heterossexual puderam constituir uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008), um espaço de cooperação e compartilhamento de interesses comuns, onde podia negociar sentidos e significados associados ao seu estigma. Fui levado a crer que o glamour foi uma forma vista por esses indivíduos para habitar um mundo hostil às suas sexualidades não convencionais. Ofereceu ainda um “mundo de ideias” (BAKHTIN, 1993) para que essas pessoas organizassem sua experiência individual e coletiva através de símbolos que de modo mais pleno o dramatizaram: as divas. Pelo que pude perceber, o glamour era a única linguagem através da qual essas pessoas podiam elaborar as suas trajetórias de vida, seus projetos de futuro e ampliar seu “campo de possibilidades”

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(VELHO, 2003). Não é sem motivo que as narrativas e performances desses indivíduos incorporam de forma tão plena essa performance de glamour. Parece que esta ficou retida em suas memórias e em seus corpos, sendo ainda hoje vivenciada como resistência através de performances materializadas nas noções de “close”, “fechação” e “lacração”. Mas não foram somente as “travestis profissionais” que agenciaram essas mudanças através do espectro do glamour. No capítulo 3 é possível perceber o quanto a trajetória do costureiro Dener e o seu edulcorado mundo povoado pelo Jet Set paulistano favoreceu a construção de sentidos e significados sobre as sexualidades não normativas. Tido com um dândi por seus modos considerados afetados e hábitos excêntricos, Dener foi objeto de consumo de uma elite em plena ascensão que via em suas roupas uma forma de acesso ao cosmopolitismo. Sua fama o levaria a um dos programas de auditório mais vistos naquele contexto, o Programa Flávio Cavalcanti. Tal presença em um veículo tão massificado converteria a imagem e performance de Dener, e outros como ele, em um “pânico moral” dada a sedução que seus “trejeitos” e “faceirices” exerciam sobre este imenso público. Nunca se falaria tanto sobre estes “tipos efeminados” como a partir de Dener. Tanto as “travestis profissionais” quanto Dener promoveram rupturas no sentido de clandestinidade relacionado às sexualidades não normativas. Mesmo sendo assimilados a um lugar-comum, a “bicha”, esses sujeitos possibilitaram ressignificar aquele lugar de desprestígio relacionado a essas formas de sexualidade. Tal lugar é revisitado por antigos “pânicos morais” quando diante de dois processos analisados nesta tese: o fenômeno Roberta Close e o advento da AIDS. Pensados a partir de seus impactos nos sentidos e valores relacionados às sexualidades não normativas, esses eventos tiveram dois resultados imediatos: a abrupta tentativa de recolocar essas sexualidades naquele lugar simbólico de desprestígio e a acentuação dos discursos referidos às sexualidades não convencionais. Atualmente, o mundo em que essas pessoas consolidaram suas trajetórias de vida é parte de um passado ainda pouco explorado pelos estudiosos do tema. Os concursos de miss, a radiofonia, os concursos de fantasia carnavalesca e os “shows de travestis” são itens de um passado cada vez mais menosprezado por uma geração de pessoas, incluindo os modernos “gays”. Seria oportuno, para encerrar esta tese, perguntar onde se situam, nos dias atuais, essas a quem reputamos de “pioneiras” e “desbravadoras”. Daquele conjunto de pessoas restaram algumas poucas que continuam organizando as suas vidas aliadas à lógica do show business. Divina Valéria, hoje septuagenária, segue viajando e morando nas cidades onde faz apresentações. As poucas joias que sobraram, ela pôs à venda. Disse que não mais as usava, pois os tempos não são mais como aqueles de

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antes. São tempos sem glamour, afirmou. Quando a entrevistei, em uma tarde em Copacabana, seu discurso era nostálgico daquelas épocas áureas em que transitava na Riviera Francesa. Contudo, essa nostalgia não parecia se relacionar aos bens materiais à sua disposição naquele momento de sua vida, mas antes à forma como habitava os espaços, daquele “lugar social” que não é mais o mesmo. O apagamento desse lugar é um ponto importante a ser ressaltado. O glamour permitiu que essas pessoas penetrassem na norma, dotando-as de um “privilégio de exibição”. Ou seja: constituiu uma forma de gestão da visibilidade, agenciando o estigma associado aos pânicos morais relacionados às sexualidades não normativas. Entretanto, em algum momento, pessoas como Dener, Clóvis Bornay, as “travestis profissionais” e mesmo a Turma OK foram sentenciadas a um lugar de silêncio. O conjunto dos dados analisados ajudou a compreender como essas pessoas passaram de “espetáculos de consumo” (MCCLINTOCK, 2010) a ocupar um lugar de silêncios e apagamentos. Poucas estratégias têm sido construídas para restituir esse lugar de fala dessas pessoas. A atriz Leandra Leal é uma das raras pessoas que vêm contribuindo neste sentido. Seu protagonismo no projeto Divinas Divas vem cooperando para revelar à sociedade brasileira o protagonismo dessas “travestis profissionais”, no tocante a suas contribuições para a história do teatro musicado. Não somente o projeto Divinas Divas busca restituir esse “privilégio de exibição” apagado dessas pessoas, outras dessa geração, como Yeda Brown, Susy Parker e Claudia Celeste, também intendem, através de uma agência ativa, contribuir com esse processo. Yeda Brown e Susy Parker moram juntas em um pequeno apartamento na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. As duas e Claudia Celeste também mantêm uma agenda de apresentações em diferentes locais que se abrem para elas. A idolatria à cantora Marlene segue viva em um programa de shows cujo objetivo é reviver as cantoras do rádio. Dessa forma, elas são seguidas pelos “marlenistas”, fãs de Marlene que buscam nas três estratégias para reviver o estrelato daquela diva. Somente em 2016 Yeda conseguiu a documentação civil com o seu nome feminino, uma importante celebração dessa geração com os ganhos da política pró-LGBT moderna. Rogéria, a mais midiatizada atualmente, segue também fazendo pequenas participações na televisão. Sua imagem, junto à de Roberta Close, é a mais lembrada quando é referida a participação das “travestis” na mídia. Essa lembrança gera ansiedades entre as demais dessa geração, posto que, afirmam, parece que no Brasil existiram e existem apenas as duas. As posições de Rogéria sobre a “homossexualidade” são motivo de grande desprezo

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pelo movimento LGBT moderno. Contudo, o coroamento de sua carreira ocorreu bem recentemente, segundo seus relatos. Foi quando ela viveu uma mulher biológica na novela da Rede Globo, Lado a Lado. Tal feito é digno de reflexão, uma vez que aponta para valores e sentidos articulados à sua trajetória de vida e carreira artística. Rogéria sempre tratou de construir a sua carreira associando-a à ideia de “família brasileira”. O slogan que persiste em acionar em diferentes veículos de comunicação em que aparece só faz ratificar esse compromisso: “a travesti da família brasileira”. O esforço de Rogéria pode parecer aos militantes modernos extremamente conservador e inútil ao ativismo LGBT, mas ele comunica muito acerca dessa geração de pessoas que viram no glamour um mecanismo simbólico importante. A atuação como uma personagem feminina, não “travesti”, implicou para Rogéria a sua adesão plena pelas normas. Mais do que abrilhantar a sua carreira de atriz, ela estava habitando definitivamente a sociedade. O conjunto dessas trajetórias de vida ainda é uma fonte inesgotável de informações sobre a construção histórica das sexualidades não normativas no Brasil. Já havia destacado tal questão na dissertação de mestrado. Considerando a relevância dessas trajetórias, retomo aqui o problema que identifiquei logo no começo dessa tese, quando narrei minhas impressões sobre o velório de Marquesa: o perigoso desaparecimento dessas pessoas. Por fim, não quero afirmar com isso que exista um “pessimismo sentimental”, em expressão de Salhins (1997), envolvendo a pesquisa sobre sexualidades não normativas. Quero, antes, alertar para o quão fragmentadas ainda se encontram essas informações, que sem a agência desses interlocutores privilegiados torna-se tarefa quase impossível acessar.

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241

ANEXO I – Capa do disco gravado por Divina Valéria em 1966

242

ANEXO II – Capa do jornal O Pasquim, 1973.

243

ANEXO III – Programa do espetáculo O planeta é das bonecas

244

ANEXO IV – Capa da revista Fatos & Fotos com o elenco do espetáculo Gay Fantasy

245

ANEXO V – Capa do jornal Lampião da Esquina com as “travestis” da geração de Rogéria, 1981.

246

ANEXO VI – Marquesa no Chez Romy Haag

247

ANEXO VII – Entrevistas de Marquesa a veículos decomunicação em países da Europa

248

ANEXO VIII – Fotografias do espetáculo Misto Quente, com Valéria e Agildo Ribeiro

249

ANEXO IX – Divina Valéria fotografada por Antonio Guerreiro

250

ANEXO X – Capas da revista Playboy com Roberta Close

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