Soberania contra Constituição: Desconstruindo a PEC n. 33

July 22, 2017 | Autor: Marcelo Cattoni | Categoria: Constitutional Law, Jacques Derrida
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Soberania contra Constituição: Desconstruindo a PEC n. 331 “Car la démocratie reste à venir, c’est là son essence en tant qu’elle reste: non seulement elle restera indéfiniment perfectible, donc toujours insuffisante et future mais, appartenant au temps de la promesse, elle restera toujours, en chacun de ses temps futures, à venir: meme quand il y a la démocratie, celle-ci n’existe jamais, elle n’est jamais présente, elle reste le thème d’un concept non présentable. Est-il possible d’ouvrir au ‘viens’ d’une certain démocratie qui ne soit plus une insulte à l’amitié que nous avons essayé de penser par-delà le schème homofraternel et phallogocentrique? Quand serons-nous prêts pour une experience de la liberté et de l’égalité qui fasse l’épreuve respectueuse de cette amitié-là, et qui soit juste enfin, juste au-delà du droit, c’est-à-dire à la mesure de sa démesure? O mes amis démocrates...” (Derrida, Politique de l’amitié, p. 339-340)

Para Theresa Calvet de Magalhães

Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Na

presente

exposição,

quero

esboçar

uma

desconstrução

da

relação/diferenciação (différance) entre direito e política e entre política e democracia, no sentido de um constitucionalismo por vir, a partir de um caso bastante sintomático: o da discussão sobre a constitucionalidade da PEC n. 33, proposta pelo Dep. Federal Nazareno Fonteles (PT-PI) e outros, especialmente quanto ao seu art. 3º. O que, pois, pretendo fazer não é exatamente um “diálogo com as considerações de Derrida sobre o futuro/porvir e sobre a possibilidade da democracia hoje, especialmente através da desconstrução que Derrida faz dos conceitos schmittianos do político e da soberania”? Uma proposta bem aberta que me possibilitaria tratar especificamente de tantas questões, como disse em meu abstract ao propô-la? Pois bem, para isso, penso que tenho de partir de uma questão concreta. Não quero apenas retomar as considerações de Derrida em La Bête et le Souverain, em Politiques de l’Amitié ou mesmo em Force de Loi, mas de alguma forma mostrar em 1

Texto expandido da comunicação ao Special Workshop Derrida and Law, no XXVI World Congress of Philosophy of Law and Social Philosophy – IVR , Belo Horizonte, UFMG, 21 a 26 de julho de 2013 e publicado como capítulo 6 da obra CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade e GOMES, David. Constitucionalismo e Dilemas da Justiça. Belo Horizonte: Initia Via, 2014, p. 97-111.

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que sentido eu proporia, ao longo das minhas pesquisas acerca de uma nova história do processo de constitucionalização brasileiro, um diálogo com essas considerações de Derrida e qual a importância, do meu ponto de vista, para a filosofia do direito e para a teoria constitucional desse diálogo. A diferança entre direito e justiça, entre política e violência, entre violência e direito, entre direito e política, o tema da fundação - e da constituição - como promessa, o tema da democracia por vir, a desconstrução da comunidade/fraternidade e do lugar da soberania, tudo isso pode ser tratado a partir do fantasmagórico debate sobre a PEC n. 33, descontruindo-se a semântica da soberania que lhe é subjacente. Nesse debate sobre a constitucionalidade da PEC n. 33, portanto, “the big question is the question of sovereignty in general, of sovereignty of the State in particular” - eis o que tentarei mostrar a seguir. Com seu artigo 3º, a PEC n. 33 pretende submeter decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade de Emendas à Constituição ao Congresso Nacional; e, caso o Congresso venha a se manifestar contra essa decisão do tribunal, deverá submeter tal controvérsia à consulta popular. Em outras palavras, segundo esclarece a exposição de motivos, o que a PEC n. 33, em seu art. 3.º, propõe é submeter ao Congresso e a referendos populares decisões do STF, em sede de controle de constitucionalidade de Emendas à Constituição, sob o argumento da soberania popular. Alguns doutrinadores brasileiros, sobretudo aqueles com os olhos postos na experiência canadense e nas críticas mais recentes de autores como Waldron a Dworkin, viram nessa proposta a possibilidade de construir uma espécie de controle judicial de constitucionalidade fraco que, todavia, fortaleceria a experiência democrática. Pois, para esses doutrinadores, se a democracia é a expressão do autogoverno, uma instituição contramajoritária como o controle judicial de constitucionalidade sempre colocaria em risco a democracia. Afinal, para esses autores, a democracia não é aquela forma de governo cujas decisões são tomadas pela maioria? Todavia, mesmo onde uma maioria governa, a minoria não teria direitos assegurados? Se a resposta for sim, como assegurar direitos às minorias, em face das decisões da maioria governante? Atribuindo-se a uma instituição, ao judiciário, por exemplo, um poder contramajoritário? Assim, todas as

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vezes que a maioria lesasse direitos das minorias, o judiciário estaria autorizado a proteger esses direitos. Mas quem autorizaria, numa democracia, o judiciário, que sequer é eleito, a controlar as decisões majoritárias que supostamente violariam direitos das minorias? Resposta: A constituição. Mas por que uma constituição autorizaria o judiciário a controlar decisões tomadas pela maioria, para que elas não firam direitos das minorias? A constituição, nesses termos, não seria contrária à democracia? Resposta: Não, se entendermos que a constituição não foi estabelecida nem pela maioria, nem pela minoria, mas pela nação. A nação, portanto, acima das maiorias e das minorias, é quem soberanamente estabelece a constituição do estado para que, dentro do estado, decisões tomadas por maioria não violem os direitos das minorias. A nação é o fundamento de todo poder e de toda autoridade. Mas quem autoriza a nação a estabelecer uma constituição, que autoriza o judiciário a controlar decisões majoritárias, para que essas decisões não violem direitos das minorias? A própria nação. Pois se trataria de uma questão de fato, não de direito, ou, pelo menos, não de direito “positivo”, quem sabe “moral”, já que todo direito é posto pela nação? Não há direito sem nação. Mas se a nação cria o direito, quem cria a nação? Ora, uma nação se cria. Mas como uma nação se cria? Por uma fatalidade da história ou a história teria um sentido imanente? De toda forma, como um “fato” se afirma como nação, dotada de soberania, para estabelecer uma constituição, que autoriza o judiciário a controlar a maioria, que toma suas decisões, desde que não fira os direitos da minoria? Uma nação impõe-se pela sua própria soberania. No final, quer dizer, no princípio, está a própria soberania, ou seja, uma força que a todos submete e que não se submete a ninguém. Mas por que a nação quereria estabelecer uma constituição do estado em que, por um lado, as decisões fossem tomadas pela maioria, e, por outro, que as maiorias pudessem ser controladas pelo judiciário, para que a maioria não pudesse violar o direito das minorias? Se a nação é soberana para assim decidir, ela poderia ter decidido de outro modo, por exemplo, que a minoria governe sobre a maioria, ou seja, ter decidido por um governo de poucos ou até mesmo de uma só pessoa? A nação estaria obrigada a decidir pela democracia? O que faz com que a nação decida pela democracia? Ela teria, em princípio, outras opções? Por que não delegar a um ou a poucos o poder de tomada de decisão? Há um fundamento último para essa opção? Ou se trata, pois, sempre de uma escolha com certa margem de arbitrariedade? E, ao fazer essa escolha, quem interpreta as decisões da nação? Quem fala pela nação? A nação fala por si mesma? Não, para isso

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existe o estado. O estado encarna a nação, representa-a, no sentido de torná-la presente, para si mesma e para todos. O estado é a representação política da nação. E se o estado é a representação política da nação, quem representa o estado? O governo representa o estado. E, numa democracia, quem governa é a maioria. Se o governo da maioria representa o estado e se o estado representa a nação, em última análise, o governo representa a própria nação. Re-presenta – o governo é quem torna presente, quem atualiza, portanto, a nação. Ora, se o governo da maioria re-presenta a nação, se é ele quem incorpora o papel da nação, para que ou por que se falar em direitos para minorias, contra as decisões da maioria governante, e, mais ainda, decisões, essas, que seriam controladas pelo judiciário, ainda que fosse eleito pela maioria? Como falar em constituição, que garante as minorias em face das maiorias se a própria maioria governante representa a nação? Constituição, judiciário, direitos, minorias, para que ou por que tudo isso se a própria maioria governa representando a nação, se a maioria encarna a nação, se a maioria é, pois, a nação no governo, se o governo é a própria representação da soberania nacional? Assim, só se pode falar em constituição, judiciário e direitos, numa democracia, tão-somente nos próprios termos estabelecidos pelas decisões da maioria governante que, em qualquer tempo, re-presenta a nação, torna presente a nação, inclusive para si mesma, de tal sorte que, como num jogo de “espelhos” (Hobbes), o governo majoritário é, portanto, identifica-se com, a própria soberania nacional que se re-presenta? E de tudo isso resulta que certas instituições, como a constituição, que assegura direitos às minorias, seriam, por consequência, ingovernáveis e antidemocráticas, por serem, justamente, contramajoritárias? Afinal, uma democracia constitucional não seria, assim, uma união paradoxal de princípios contraditórios, a se fundamentar, em última análise, numa mera tautologia? Ou, então, quem sabe, a democracia talvez não deva ser reduzida tão-somente a uma mera forma política de governo cujas decisões são tomadas pela maioria? Ou quem sabe o constitucionalismo e sua garantia de direitos não devam ser tão-somente tomados como contramajoritários? Afinal de contas, o que é democracia? Governo da maioria? Política da maioria? O que é constituição? Um limite para o exercício do poder? A democracia é incompatível com uma constituição garantidora de direitos porque limitadora do governo majoritário? Como, pois, desconstruir as relações/distinções, a différance, entre direito e política, entre política e democracia?

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Embora já tenha escrito anteriormente sobre a inconstitucionalidade da PEC n. 3, também proposta pelo mesmo grupo de deputados federais, que pretende alterar o art. 49, V, da Constituição, com a finalidade de cassar, por meio de decretos legislativos, decisões do STF que, da perspectiva do Congresso, violariam as suas prerrogativas legislativas desse; assim como tenha publicado um artigo, em coautoria com Alexandre Bahia e Dierle Nunes, sobre a própria PEC n. 33, ainda não explorei suficientemente uma semântica do controle judicial de constitucionalidade subjacente a essas duas propostas de emenda à constituição. Qual seja: a de que embora a exposição de motivos da PEC n. 33 venha a criticar os excessos de judicialização da política ou de ativismo judicial, posto que tais excessos colocariam em risco as prerrogativas próprias do Congresso Nacional, diretamente eleito pelo povo soberano, contudo, os supostos subjacentes à PEC n. 33, no que se refere às tarefas e ao sentido do controle de constitucionalidade, não se diferem dos supostos da própria posição ali criticada como “ativista” e “judicialista”. Isso porque, em última análise, na perspectiva da exposição de motivos da PEC n. 33, o controle de constitucionalidade, numa democracia constitucional, seria tarefa “política” e “legislativa”, mesmo quando realizada por um tribunal constitucional. Em outras palavras, a PEC n. 33 pretende apenas inverter a lógica da soberania do tribunal para o legislativo sem, contudo, romper com a própria lógica da soberania. Nesse sentido, não chega a ser surpreendente como nessa discussão acerca da constitucionalidade da PEC 33 ressoam distorcidas e embaralhadas as posições de Kelsen e de Schmitt, sobretudo de um Kelsen lido a partir de Schmitt, quanto ao “grande tema” do guardião ou custódio da constituição. Pois a exposição de motivos da PEC n. 33 partiria de um suposto segundo o qual se o controle de constitucionalidade é kelsenianamente uma atividade legislativa (seja o tribunal constitucional tratado com legislador negativo, positivo, subsidiário ou concorrente), caberia schmittianamente àquele que encarna a soberania dizer a primeira e a última palavra sobre a constituição (num sentido hiperbólico do cuidar, guardar – para si - o sentido da constituição). Assim, o que parece ser uma espécie de combinação extramente inconsistente das posições kelsenianas e schmittianas leva a um paradoxo. Pois, afinal,

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por um lado, para Kelsen a atividade legislativa é (também) jurídica; e, por outro, para Schmitt o parlamento jamais poderia encarnar a soberania e guardar a constituição (para Schmitt, essa é tarefa do chefe de Estado, quem decide sobre o estado de exceção, quem encarna a unidade da soberania e quem, em última análise, distingue amigo e inimigo).2 Afinal, o que é uma constituição democrática? Para refletir sobre isso, proponho um brevíssimo diálogo com Luhmann, com Habermas e, sobretudo, com Derrida. 2

Do ponto de vista constitucional, o Congresso não tem competência constitucional para rever decisões do Judiciário. Nem emenda, nem lei alguma pode violar a coisa julgada (art. 5.º, XXXVI) A PEC n. 33 é inconstitucional porque viola o art. 60, § 4.º, IV, da Constituição da República. O fato de discordar e criticar o que poderiam ser considerados abusos cometidos pelo STF não me faz ser contra a própria instituição. Mas a lutar pela mudança da jurisprudência. E inclusive a defender uma discussão pública mais ampla sobre o perfil dos Ministros, do processo de indicação e de nomeação, etc. A supremacia no Estado Democrático de Direito não é mesmo do STF, é da Constituição. E é da República sobre o legislador majoritário. Além disso, limites do e ao controle jurisdicional não é sequer tema passível de plebiscito ou de referendo. Não vou nem discutir, a propósito disso, plebiscitos e referendos, o conceito de soberania. Esse fantasma, no dizer de Derrida, essa máscara totêmica, como dizia Kelsen. Numa democracia constitucional, devemos cuidar para que o lugar da soberania permaneça “vazio”. Não seja passível, portanto, de ser ocupado por ninguém. Na disputa entre o Judiciário e o Legislativo, quem tem supremacia é a esfera pública política, é a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Os dispositivos constitucionais do art. 49 (V e IX) da CR têm uma história no direito comparado, uma tradição, que é da garantia da supremacia da lei sobre o poder regulamentar. É de inspiração, inclusive, norte-americana, berço do presidencialismo. O que o Congresso pode por decreto legislativo é controlar o poder regulamentar do Executivo, jamais cassar decisões judiciais. Se o Congresso brasileiro puder rever decisões do STF em sede de controle de constitucionalidade teremos destruído o sistema de controle de constitucionalidade das leis no Brasil. Aliás, será a realização do sonho de Francisco Campos e da sua Polaca, de 10/11/1937... Mas quem disse que a Carta de 1937 era democrática? Além disso, cabe dizer que o Congresso, assim como os presidentes FHC, Lula e Dilma são corresponsáveis por um processo de ampliação das prerrogativas do STF e dos juízes em geral, sem falar na velha defesa doutrinária de um certo “constitucionalismo da efetividade”, a apostar tudo na jurisdição constitucional, que hoje cobra o seu preço. Infelizmente, no Brasil não se leva a sério o processo de indicação e nomeação de Ministros para o STF. A Presidência da República não discute (disse discussão, que não é negociação de bastidores) com ninguém, o Senado não reprova ninguém. A própria opinião pública especializada, faculdades de direito, associações de magistrados, OAB, MP, etc, não se mobiliza em torno de um debate mais amplo acerca das indicações presidenciais, nem acompanha devidamente as sabatinas, cada vez mais “pro forma”, dos indicados, no Senado. A Presidência acaba nomeando quem quer, e, ironia do destino, quando os Ministros não se comportam como “deveriam” (sic), a culpa é da instituição, é do STF... E, afinal, a Emenda n. 3/93 (ADC), as Leis n. 9868 e n. 9882/99 e a pior delas a EC n. 45, todas elas vieram de iniciativas cruzadas entre Executivo e Legislativo (e Judiciário). Enfim, legislam mal e o sistema, como sempre diz Lenio Streck, reage “darwinianamente”. Além disso, cabe perguntar, do que vive o Legislativo? Quais são as grandes pautas legislativas? Será que o legislativo vem enfrentando as grandes pautas nacionais? E de que forma? Temos de estudar mesmo e acompanhar o processo legislativo, dada a importância e centralidade dele na democracia. Sou a favor de uma profunda mudança na forma de indicação/nomeação dos Ministros do STF, que esse processo seja mais aberto e plural. Sou a favor de mandatos e não da vitaliciedade, inclusive. Mas do que adianta tudo isso se só se discute “seriamente” (sic) o papel institucional do STF quando alguém não se sente beneficiado ou está em desacordo com alguma decisão do STF? Temos aqui um sério e grave problema de cultura institucional. Direito não é instrumento! O Direito não se deixa funcionalizar assim tão facilmente, porque tem uma lógica própria de funcionamento que feliz ou infelizmente reproduz decisões “boas” (sic) e “ruins” (sic) sistemicamente. O que eu estou dizendo não é nenhuma novidade. Maior exemplo disso é a EC 32, as medidas provisórias, a tal comissão conjunta inventada pelo Congresso que nunca se reuniu para apreciar relevância e urgência... A PEC n. 33 é, além de inconstitucional, de uma ingenuidade tremenda. E eu já tive a oportunidade de dizer isso pessoalmente ao Dep. Nazareno Fonteles. Um deputado que pode ter boníssimas intenções e preocupações autênticas e sérias, mas que me pareceu, com todo o devido respeito que tenho por ele, muito ingênuo quanto à questão da tal “judicialização da política”. A PEC 33 é inconstitucional. Eu critico decisões, critico o perfil dos Ministros e as posições deles, critico a forma e o processo de nomeação dos Ministros e especial e tremendamente a extensão dos poderes do STF, como já fiz tantas vezes, nos últimos quase 20 anos. Mas não critico jamais a instituição do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, sou e serei sempre a favor dela. Como sou a favor do controle de convencionalidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que também é outra história. Alguém pode dizer desdenhosamente que essa posição é coisa de constitucionalista. Ora, mas é exatamente isso o que eu sou!

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A inovação semântica do conceito de constituição moderna é acompanhada e acompanha, ao longo do processo de modernização social do direito, o que se poderia chamar de deslocamento temporal acerca da questão do fundamento de validade do direito, do passado para o futuro. Da constituição medieval, mista, como conjunto de tradições jurídicas que se conformam à identidade cultural de uma sociedade política, no sentido da recuperação da chamada constituição material, à constituição moderna como “estatuto jurídico do político” e, adiante também, como “medida material da sociedade”, no sentido de Konrad Hesse. Mas como a constituição moderna passa a articular memória e projeto, entrevendo suas relações com o tempo? Bernard Bailyn, historiador da revolução norte-americana, em The Ideological Origins of the American Revolution, procura mostrar como no curso dos debates entre os antigos colonos da América do Norte e o Parlamento britânico, às vésperas da ruptura com a Inglaterra, uma distinção inventa-se, entre um direito constitucional e um direito inconstitucional, por meio da introdução de uma assimetria, por um lado, entre um direito superior no próprio interior do direito e, por outro, o demais direito que àquele direito superior deve submeter-se, sob pena de invalidade/ilegitimidade. As leis coloniais do Parlamento são, da perspectiva dos colonos norte-americanos, inconstitucionais, porque violam o princípio constitucional inglês do no taxation without representation. Um princípio do commom law que, em última análise, diga-se de passagem, havia levado, ao longo do século XVII, como bem nos mostra Maurizio Fioravanti em Costituzione, à justificação jurisprudencial da supremacia da lei do Rei no Parlamento, do King in Parliament. Do lado norte-americano do Atlântico essa distinção ali inventada entre um direito que é constitucional e um direito que não é direito porque é inconstitucional possibilita, pois, com o processo de independência, reconhecer, por um lado, na constituição do federalismo, como nos lembra Hannah Arendt em On Revolution, a base institucional de uma nova sociedade política e, por outro, o caráter de supremacia de uma lei que é expressão de uma promessa mútua e fundação de uma nova república, em outras palavras, a supremacia dessa constituição em face do legislativo, ao mesmo tempo que se cria jurisprudencialmente - e de forma tensa com, nessa e dessa constituição do federalismo - um controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do executivo, da administração, como desdobramento e

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confirmação a posteriori do ato de fundação, portanto, que essa constituição mesma expressa. Do lado francês do Atlântico a distinção entre poder constituinte e poder constituído também procura lidar com o problema da ausência de um fundamento absoluto, de uma tradição que se perdeu. O Terceiro Estado não é nem constituído nem inconstitucional, é constituinte, como diz Emmanuel Sieyes. Sua soberania nacional consiste em instaurar uma nova distinção acima de toda distinção. Um poder constituinte que expressa ao mesmo tempo, como diria Luhmann, um direito e um poder paradoxalmente ilimitados de autolimitar-se. Esse deslocamento temporal do direito do passado para o futuro é observado em Luhmann como inerente à própria positivação do direito: a constituição é uma aquisição evolutiva, uma estrutura, um acoplamento estrutural, que possibilita a) prestações recíprocas entre direito e política enquanto sistemas funcionalmente diferenciados, b) e, assim, diferenciar tanto uma política que é direito de uma política que não é direito ou um direito que é constitucional de um direito não ou mesmo inconstitucional, paradoxalmente reduzindo e mantendo complexidade e c) deslocar a questão da validade para o futuro na medida que qualquer norma jurídica estaria em princípio passível de um controle a posteriori de constitucionalidade. O que em outras palavras significaria dizer que o fundamento de validade do direito desloca-se para o futuro, para a possibilidade de sua validação a posteriori, em função da positivação ou da recorrência das operações do sistema. Algo que, de certa forma, já estava presente na teoria kelseniana da revolução e do poder constituinte: em Kelsen, somente se pode retrospectivamente, ou seja, futuramente, falar da validade do sistema jurídico, uma vez que somente no futuro se pode constatar a condição para se pressupor a validade do sistema, para se pressupor a norma fundamental: a condição de eficácia geral. Esse deslocamento temporal do direito, do passado para o futuro, é reconstruído em Habermas como a abertura da constituição para o futuro. Em seu debate com Frank Michelman sobre o problema do fundamento, ao mesmo tempo jurídico e político, da democracia constitucional, que se remete à própria plausibilidade do ponto de vista histórico da tese da relação interna entre Estado de direito e democracia, Habermas sustenta a posição segundo a qual se deve interpretar a busca por

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um momento constituinte e do próprio risco nessa busca de um regresso ao infinito como sendo a exigência de compreensão do caráter de abertura ao futuro das constituições democráticas, e não a busca de um ponto de fechamento no passado, de uma espécie de fiat jurídico ou político. Ou seja, de que elas, as constituições democráticas, podem ser interpretadas como um processo político e social de aprendizagem de longo prazo, no curso do tempo histórico, sujeito a tropeços, mas capaz de corrigir a si mesmo. O que em última análise relativiza as distinções entre poder constituinte e poder constituído, uma vez que no exercício da sua autonomia pública, ao longo do tempo, os próprios cidadãos podem rever as condições materiais justas de garantia do exercício da sua autonomia privada sem, contudo, dela poder dispor, porque condição da própria autonomia pública. Esse deslocamento temporal do direito do passado para o futuro é desconstruído em Derrida como a caracterização da fundação como promessa. E promessa irrealizável na medida em que paradoxalmente o direito jamais coincidirá plenamente com a justiça e, com isso, a justiça será sempre a possibilidade de desconstrução de sua própria distinção, distância, diferança, com o direito. Todavia, com a concepção de por vir em Derrida radicaliza-se uma nova perspectiva sobre a relação entre direito e tempo, que bem pode ser explorada no sentido das preocupações centrais de um autor como Marramao em seu diálogo crítico com a distinção em Koselleck entre campo de experiência e horizonte expectativa: a questão da hipertrofia moderna do futuro às custas da redução do passado e da perda do presente – a chamada síndrome da pressa. Derrida, como sabemos, fala em por-vir (avenir) – abertura - e não em futuro (futur) - fechamento. Pois se Luhmann ainda guarda a preocupação de uma descrição sociológica do direito como dever-ser - entenda-se, da norma como expectativa generalizada de comportamento, como programa condicional -, de um dever-ser que desloca o devido do passado ao dever do futuro, ainda que se admita a sua contingência. E em Habermas se resgata, ainda que numa visão pós-hegeliana, mas não necessariamente anti-hegeliana, um devir do direito, ainda que admita a sua abertura à contingência. Em Derrida já se pode falar, da perspectiva da justiça como desconstrução ou possibilidade permanente de desconstrução, numa justiça por vir, no seu caráter

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hiperbólico, extra-vazador e insaturável. Mas também, e para além dele, Derrida, no que seria um constitucionalismo por vir. Um constitucionalismo cujo fundamento ausente não está simplesmente deslocado do passado para o futuro, mas aberto ao por vir, sem condições. Um constitucionalismo out of joint, cuja legitimidade jamais se fecha, guarda contemporaneidade ou coincide a si, como presença a si: uma ausência, não uma falta, e que se abre ao “outro da justiça”, da justiça como possibilidade permanente de desconstrução. Como afirmei na obra Constitucionalismo e História do Direito, “o constitucionalismo democrático não possui necessariamente uma legitimidade vivida como falta de um fundamento último, como uma espécie de nostalgia desse fundamento, como dor e obsessão da perda de fundamento último, soberano, enfim, como se um fundamento último fizesse falta ao constitucionalismo democrático. O fundamento último e soberano não faz falta. Ao contrário, o constitucionalismo democrático lança-se, pois, aqui e agora, a um por-vir, a um futuro-em-aberto, como projeto falível, mas no sentido de que o presente pode ser o futuro de um passado que agora é redimido pelo agir político-jurídico, constitucional, que o constitui. Essa abertura remete à própria questão da legitimidade vivida como vazio, não mais passível de ser preenchido, e como ausência assimilada – e não como falta – de fundamento último, ao processo jurídico-político de construção da legitimidade por meio da realização no tempo histórico da relação interna entre as noções de autogoverno e de iguais direitos individuais de liberdade, concretizadores de uma noção complexa de autonomia”. Numa chave de leitura com e além de Derrida, que busca recepcionar parte das críticas de Ranciére a Derrida, sobretudo em La démocracie est-elle à venir?, eu diria que, no marco do que poderia ser considerado um constitucionalismo por vir, em que direito jamais se identifica totalmente com as exigências principiológicas do constitucionalismo, a constituição democrática seria não apenas a própria expressão da diferança (différance) entre constitucionalismo e direito, mas também entre direito e política, por um lado, e política e democracia por outro... Isso porque na constituição democrática, do ponto de vista de um constitucionalismo por vir, em que o constitucionalismo jamais se deixa reduzir ao direito, direito e política, por um lado, e

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política e democracia, por outro, estão implicados ao mesmo tempo em que se diferenciam entre si. Tal compreensão tem, portanto, implicações para a compreensão da democracia constitucional: pois se essa diferança é vivida como uma tensão permanente, “The identity of the constitutional subject” (nos três sentidos de subject, ou seja, sujeito, assujeitado e matéria) jamais se fecharia: é uma identidade não idêntica a si, não presente a si - ela é sempre por vir... O mes amis (constitutionalistes et) démocrates...

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