Sobre a concepção intelectual de usos da cor e linha: Europa e China

July 1, 2017 | Autor: Maria Berbara | Categoria: Art History, Chinese Studies, Renaissance Studies, Disegno e colore
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Sobre a concepção intelectual de usos da cor e da linha: Europa e China

Bony Schachter e Maria Berbara

Sabe-se o que se passou entre Protógenes e ele [Apeles]. O primeiro vivia em Rodes. Tendo Apeles navegado para lá, desejoso de conhecer obras de quem conhecia só de fama, imediatamente dirigiu-se a seu estúdio. Protógenes não estava, mas havia um quadro de grandes proporções disposto num cavalete para ser pintado e uma velha tomando conta. Ela informou que Protógenes estava fora e perguntou quem deveria dizer que o procurou. ‘Este’, disse Apeles, e, tomando o pincel, traçou uma linha colorida extremamente fina através do quadro. Voltando Protógenes, a velha mostrou-lhe o que tinha acontecido. O artista, conta-se, observando tamanha sutileza, teria dito que fora Apeles que ali viera – nenhum outro seria capaz de obra tão perfeita. Ele próprio teria então traçado uma linha de outra cor, mais fina, sobre aquela, e, ao sair, teria recomendado que, se o outro voltasse, mostrasse-a a ele e acrescentasse que era aquele o homem a quem estava procurando. Foi o que aconteceu. Voltou, de fato, Apeles e, enrubescendo por ter sido vencido, cortou as linhas com uma outra cor, não deixando espaço para traçado mais fino. Protógenes, então, confessando-se derrotado, voou ao porto à procura do hóspede e decidiu que o quadro deveria ser entregue à posteridade, como digno da admiração especial de todos, mas sobretudo dos artistas (Plínio apud Lichtenstein, 2004, p. 78-79).

A passagem acima, extraída da que constitui, sem dúvida, a mais importante fonte literária para o estudo da arte greco-romana – a História Natural, de Plínio – tornou-se célebre. No parágrafo seguinte, Plínio narra como Apeles tinha o hábito de não passar um dia sequer sem traçar uma linha, o que dera origem a uma expressão proverbial. Essa expressão, sabese, é a famosa “nulla dies sine linea”, isto é, “nenhum dia sem uma linha”,

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utilizada para indicar não apenas o apreço do pintor pela pintura linear mas, metaforicamente, a ideia de que o êxito repousa na disciplina e perseverança. Este último sentido deve-se à possibilidade de ler-se o substantivo linea tanto como um traço quanto como a linha de um texto – o qual há de ser lido ou escrito. A controvérsia entre a prevalência da cor ou do desenho – entendido como atividade gráfica fundada primordialmente sobre a linha e também como processo mental que conceitualmente projeta uma determinada obra – nas artes visuais enraíza-se, portanto, na antiguidade greco-romana, e aparece, sob distintas formas, em vários momentos da história da arte europeia; a ela vinculam-se, sobretudo a partir dos quinhentos, binômios tradicionais como paisagem/figura; óleo/fresco; mão/cérebro; matéria/ intelecto; mundano/divino. Embora a importância do controle linear como pré-requisito indispensável para a realização de grandes obras surja em diversas passagens da História Natural de Plínio (como, por exemplo, a supracitada anedota da linha de Apeles e Protógenes), ao longo da Antiguidade, cor e linha (e, por extensão, desenho) eram fundamentalmente compreendidas como etapas independentes, mas igualmente importantes, do processo artístico. Durante o Renascimento (sobretudo a partir de meados dos quatrocentos), porém, a polêmica entre cor e desenho – concebidos agora enquanto valores estéticos opostos e formas antinômicas de produzir e definir a arte – emerge vigorosamente e associa-se distintamente a dois polos geográficos: Veneza e Florença. Ao longo das Vidas, mas, sobretudo, no proêmio à terceira parte, Vasari proclama continuamente a superioridade do desenho (o qual define como o pai das três artes, que nasce no intelecto como uma ideia das formas da natureza e que encontra sua expressão material por meio das mãos hábeis do artista), cuja pátria natural, segundo ele, é a Toscana – e cujo supremo realizador é Michelangelo. Teóricos venezianos como Lodovico Dolce e Paolo Pino, parcialmente amparados pelas pesquisas óticas e pictóricas de Leonardo, argumentam por sua vez que a supremacia da cor associa-se à sua capacidade de aproximar-se à variedade e vitalidade do mundo visível, que o objetivo fundamental da arte é a imitação da natureza, e que, portanto, Tiziano, e não Michelangelo, é quem estabelece os fundamentais paradigmas da pintura contemporânea. Em seu famoso Aretino (1557), Dolce afirma: Aquele que não sabe colorir não deve ser chamado pintor. Não basta realizar figuras excelentes em seu disegno, se às tintas das cores, que

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devem imitar a carne […], falta aquela coesão, suavidade e vivacidade que a natureza dá aos corpos. Por essa mesma razão lê-se nos textos dos antigos pintores que alguns enganavam pássaros, e outros, cavalos. E vós sabeis que, assim como pela qualidade do disegno ninguém supera Tiziano, assim também é certo que, no colorir, ele é insuperável. 1

Vasari, por sua vez, ao comentar os frescos da Capela Paolina, afirma que Michelangelo não almejou senão a perfeição, pois nem paisagens, nem árvores, nem casario, nem mesmo as diversas seduções da arte são admitidas nesta pintura, porque jamais nelas se deteve, talvez porque cônscio de não dever rebaixar seu engenho a coisas similares (Vasari, 2011, s.p.). Paralelamente, à vocação paisagística da pintura flamenga – com seus fortes acenos coloristas e a ênfase na mimese – opunha-se, na tratadística europeia, a pintura “intelectual” italiana, fundada nas noções de linha e geometria; a partir desse dualismo, o eixo desenho/cor desloca-se sobre o da figura/paisagem, e, consequentemente, história (ou estória) e descrição. Entretanto, a relação entre esses dois paradigmas artísticos, representados por polos geográficos, não foi constante ao longo da primeira época moderna. No campo da literatura, o século XV italiano produz abundantes elogios à arte flamenga. Enfatiza-se frequentemente o refinamento no emprego do óleo, o qual permite a sofisticação das esfumaturas e extrema a sutileza das gradações cromáticas. Na tratadística, ao menos até as primeiras décadas do século XVI, parece ter prevalecido um ideal de conciliação entre a pintura flamenga e italiana, segundo o qual se demarcava claramente as habilidades específicas de cada uma. No Trattato di pittura de Francesco Lancillotti, publicado em Roma em 1509, o autor afirma que “A paesi dappresso e a’lontani / bisogna un certo ingiegno a descretione / che me’ l’hanno e fiandreschi che italiani”, isto é, “para [pintar] paisagens próximas e distantes, são necessários um certo engenho e habilidade descritiva, as quais são mais próprias dos flamengos do que dos italianos” (Lancillotti, 1885 , p. 4, tradução nossa). Se à pintura flamenga atribuía-se a palma na representação de paisagens, implicitamente, a italiana era considerada superior na representação de figuras. A utilização da paisagem alla fiamminga pela pintura italiana, de fato, é ampla desde ao menos os anos 1470 (sobretudo na Itália central): pense-se, por exemplo, no São Jerônimo, de Perugino, da National Gallery de Washington, ou no 1

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Lodovico Dolce, L’ Aretino. Milão: G. Daelli, 1863. Tradução nossa.

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Encontro de Jesus e S. João Batista durante o retorno do Egito, de Ghirlandaio, atualmente na Gemäldegalerie de Berlim . Tanto no âmbito da reflexão estética quanto no da produção artística, porém, ocorre uma transformação radical – situável ao redor dos anos 1520-30 para a primeira e aproximadamente uma década antes para a segunda – na recepção da arte flamenga na Itália. As espetaculares realizações de Michelangelo na abóbada da Capela Sistina (1508-12) parecem excluir tudo o que não seja ou não se relacione diretamente com a figura humana, exprimindo quase epicamente o ideal artísticofilosófico renascentista da absoluta centralidade do homem. Ao longo dos anos seguintes, a oposição entre a divina arte michelangiana e as pinturas de paisagens – às quais passam a associar-se com cada vez maior solidez a pintura flamenga, a ponto de se tornarem termos praticamente intercambiáveis – reaparece nos escritos de diversos outros teóricos e tratadistas italianos; em sua carta a Benedetto Varchi, por exemplo, Benvenuto Cellini opõe a arte de Michelangelo à pintura anedótica de paisagens, que chama de ingannacontadini, isto é, “engana-camponeses”. Giovanbattista Gelli, por sua vez, compara aqueles que preferem os poetas elegantes, que discorrem sobre o amor à grande poesia de Dante, aos que preferem a pintura flamenga, com suas paisagens coloridas e variadas, à grande pintura de Michelangelo (Deswarte-Rrosa, 1997). O mais direto discurso jamais formulado no tocante ao novo confronto quinhentista entre arte italiana e flamenga surge, significativamente, não na Itália ou nos Países Baixos, mas em Portugal, nos assim chamados Diálogos em Roma, escritos pelo pintor e humanista português Francisco de Holanda, nos anos 1540. Em uma passagem relativa à arte flamenga – que é a de maior interesse aqui – Francisco, falando através de Michelangelo, afirma: Pintam em Flandres propriamente para enganar a vista exterior [...] O seu pintar é trapos, maçonarias, verduras de campos, sombras de árvores, e rios e pontes, a que chamam paisagens, e muitas figuras para cá e muitas para acolá. E tudo isto, ainda que pareça bem a alguns olhos, na verdade é feito sem razão nem arte, sem simetria nem proporção, sem advertência do escolher nem despejo, e finalmente sem nenhuma substância nem nervo. (De Holanda apud Mendes, 1955, p. 19-21)

Um pouco mais adiante, arremata:

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Somente às obras que se fazem em Itália podemos chamar quase verdadeira pintura, e por isso à boa chamamos italiana [...] nenhuma nação nem gente (deixo estar um ou dois espanhóis) pode perfeitamente fartar, nem imitar o modo de pintar de Itália, que é o grego antigo, que logo não seja conhecido facilmente por alheio, por mais que se nisso esforce e trabalhe (ibidem, p. 19-21).

Francisco elabora assim uma comparação extrema entre a arte flamenga e a italiana, associando a cada uma determinados conceitos e características: a primeira é manual, a segunda intelectual; a primeira é feita “para enganar a vista exterior”, limitando-se a paisagens e excedendo-se na quantidade de elementos representados, enquanto a segunda é essencial; é a pintura italiana, por fim, aquela que mais se aproxima do “modo de pintar grego antigo”, o qual permanece na Itália “mais que em outro reino do mundo”. Embora pareça culminar uma tradição dualista que se vinha desenvolvendo desde a primeira década dos quinhentos, nunca o confronto entre os princípios associados à arte flamenga e italiana haviam sido expressos de modo tão radical, enfático e lapidar. Este confronto, em termos muito distintos, pode ser igualmente detectado em um dos encontros mais férteis na história da arte do século XVI, a saber, aquele entre Giorgio Vasari e o pintor e humanista flamengo Domenicus Lampsonius (Bruges, 1532 – Liège, 1599). Assim como seu conterrâneo Van Mander no início do século XVII ou António Pacheco, na Espanha, Lampsonius herda o modelo genealógico vasariano – não original, de resto – de exaltação individual do artista, transformando a biografia em panegírico e sublinhando o papel de governantes, prelados e mecenas na determinação e criação do processo artístico. Vasari, por sua vez, pede-lhe que lhe envie informações sobre os pintores flamengos, e suas notas, publicadas na segunda edição das Vidas, formam um capítulo que os editores da obra posteriormente intitularam: “De diversi artefici fiamminghi”. Em diversas passagens do texto, Vasari menciona e agradece Lampsonius, com quem mantém uma fértil correspondência epistolar. Em 1572, na Antuérpia, o flamengo publica um livro que pela primeira vez se centra exclusivamente em artistas nórdicos: Pictorum aliquot celebrium Germaniae inferioris effigies. A obra contém 23 pranchas com gravuras representando retratos de pintores flamengos célebres, cada uma acompanhada por um texto em latim a respeito do artista em questão. Esses textos foram traduzidos ao holandês por van Mander e publicados na segunda edição

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de seu Schilderboek (Amsterdã, J. P. Wachter, 1618). Intenso admirador de Vasari, Lampsonius busca, a partir do próprio paradigma italiano, revalorizar a cultura artística de seu país, evidenciando a importância e especificidade do patrimônio artístico flamengo. Ao mesmo tempo em que revela seu apreço pela arte nacional, por outro lado, a produção literária de Lampsonius insere-se plenamente na tradição do confronto artístico Itália/Flandres que se instaura no século XVI; na vida de Jan van Amstel (ou Hollander, como é às vezes conhecido), por exemplo, Lampsonius afirma: “Propria Belgarum laus est bene pingere rura; Ausoniorum, homines pingere, sine deos. Nec mirum in capite Ausonius, sed Belga cerebrum, non temere in gnaua sertur habere manu”, isto é, “A glória própria dos belgas é bem pintar os campos; a dos italianos, homens ou deuses; é por isso que se diz, com razão, que o italiano tem o cérebro em sua cabeça, e o belga, em sua mão” (Lampsonius, 1572, s.p., tradução nossa). O texto ecoa, por sua vez, uma célebre passagem da correspondência michelangeana em que o artista florentino afirma: “Si dipinge col cervello, et non con le mani”, isto é, “Pinta-se com o cérebro, e não com as mãos” (apud Berbara, 2009, p. 96). Aludir pejorativamente à sedução fácil da pintura de paisagem flamenga como uma mera distração para os olhos de indivíduos pouco refinados parece ter sido moeda corrente da intelligentsia centro-italiana do período; em uma carta de 1547 ao acadêmico florentino Benedetto Varchi, por exemplo, Vasari escreve: “As paisagens com colinas e rios oferecem tal deleite aos olhos que não há casa de sapateiro onde não se encontrem essas paisagens ‘germânicas’” (apud Barocchi, 1971, v. I, p. 496). O debate relativo à superioridade da arte flamenga ou italiana, assim, roça várias questões fundamentais do debate artístico quinhentista: paisagem versus figura; cor versus linha; óleo versus fresco; mão versus cérebro. Nos séculos XVII e XVIII, o debate entre “coloristas” e “desenhistas” que inflama a Academia Francesa de Pintura a partir dos anos 1670 – conhecido como a “querela das cores” – associaria à cor e ao desenho, respectivamente, valores pictóricos vinculados a Rubens e a Poussin (ambos já falecidos a essa altura). Embora remeta à disputa quinhentista entre venezianos e florentinos, a querela tem uma espécie de “início oficial”: a publicação, em 1673, do Dialogue sur le coloris, de Roger de Piles. Eloquente defesa dos mestres venezianos, o livro critica Poussin – quem considera um mal colorista – e o historiador e teórico da arte André Félibien, afirmando que a cor possui uma importância equiparável à da composição e do desenho. À frieza e qualidade estática das telas de Poussin, De Piles opõe não apenas o virtuosismo colorístico de

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Rubens, mas também os grandes mestres venezianos – Giorgione, Tiziano, Veronese – e mesmo Rembrandt. Se Poussin representava, segundo Félibien e seus demais defensores, o apogeu de uma tradição que propõe o controle racional do artista sobre o meio, e o desenho enquanto expressão de uma ideia concebida intelectualmente, a exuberância colorista de Rubens, puramente nascida das formas mais básicas da experiência, não se dirigiria senão aos sentidos. Segundo os “poussinistas”, a cor não passa de um acréscimo não essencial à forma cunhada pela precisão do traço; De Piles, entretanto, sublinha que o elemento diferencial da pintura – por oposição à escultura e à arquitetura – é, justamente, o de recriar ilusionisticamente o mundo natural, e essa recriação tem na cor seu principal alicerce. De Piles retoma, como dito acima, uma oposição surgida no século XVI entre Veneza e Florença e teorizada, entre outros, por Dolce, para quem o objetivo do colorido não é simplesmente o de produzir um naturalismo de equivalência; graças a um colorismo superior, argumenta, a pintura ganha potência afetiva2. Somente a partir desse impacto afetivo o colorido pode atingir a grandeza da poesia. Ao racionalismo florentino, vinculado filosoficamente a Marsilio Ficino e ao revival platônico, teóricos e artistas venezianos souberam opor um certo sentido de abandono poético – o célebre il non so que. A partir desse momento, de Rubens e Poussin a Delacroix e Ingres, o colorido, princípio de via pictórica, emotiva, poética e retórica, opõe-se, enquanto princípio intelectual, ao disegno, que se vincula teoricamente, por sua vez, a uma arte do conhecimento, do controle intelectual e das aspirações idealistas. Os debates aos quais se acaba de acenar não deixam de pressupor, intrinsecamente, uma concepção binária da pintura, segundo a qual esta se constitui, fundamentalmente, a partir de linhas e cores. Será essa concepção algo exclusivamente, ou ao menos fundamentalmente, ocidental? Nesse artigo examinaremos o conceito de pintura como exposto na longa tradição de teoria da arte chinesa. Na Europa e nas Américas, a percepção da pintura chinesa foi, em grande parte, mediada pelas assim chamadas “chinoiseries”: das porcelanas brancas e azuis de Delft ao mobiliário de inspiração chinesa, tão comum na França do século XVIII; das tapeçarias ideadas por Boucher para a série produzida pela Manufacture Royale des Tapisseries, em Beauvais, às celebérrimas cerejeiras pintadas por Van Gogh, artistas europeus parecem ter assimilado, sobretudo, 2

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Sobre o Aretino de Dolce, no âmbito da tratadística italiana dos quinhentos, ver Dolce’s Arentino and Venetian Art Theory of the Cinquecento, de M. W. Roskill.

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o aspecto decorativo da tradição pictórica chinesa, adaptando-a a diferentes contextos, mas mantendo, quase sempre, motivos rurais ou silvestres. Na China, o termo “pintura”, entretanto, faz referência a uma tradição milenar e geograficamente muito mais abrangente do que a “pintura europeia”. Contrariamente aos europeus, que construíram sistemas artísticos que dialogassem, de uma ou outra forma, com os modelos greco-romanos, os chineses nunca tiveram por referência histórica uma cultura diferente da própria, desse modo experimentando uma forte sensação de coerência interna e continuidade. No que tange ao problema da linha e da cor, é necessário entender que, etimologicamente, a ideia de “pintura”, se levado em conta o próprio caractere chinês para o termo (畫HUA), parece estar mais relacionada ao conceito de linha do que ao de cor. Tal palavra é formada basicamente pelos caracteres聿 (YU, instrumento usado para escrever) e 田 (TIAN, campo). Segundo o Discurso sobre as palavras e explicação dos caracteres (說文解字) – obra de etimologia da dinastia Han do Leste (25220) atribuída a Xu Shen – pode-se ler: “HUA(畫):[significa] borda, como as quatro bordas do campo (田TIAN). YU (聿), [aquilo] através do que se traceja”.3 Aqui, a palavra HUA se relaciona com a linha ideal que caracteriza as divisórias dos campos (TIAN田), realizadas por meio do instrumento de escrita (YU聿). Antes da reforma ortográfica promovida pelo imperador Yingzheng, após a unificação da China em 221 a.C., a forma聿 (YU) era empregada como o termo para “pincel”. Ainda segundo Xu Shen, pode-se ler: “YU(聿):[aquilo] através do que se escreve. Em Chu era chamado por YU(聿). Em Wu era chamado por BU LÜ (不律). Em Yan era chamado por FU(弗)”.4 O Dicionário de Kangxi – obviamente compilado durante a dinastia Qing (1644-1911) – acrescenta a essa passagem do texto de Xu Shen uma nova informação: “Em Qin [foi] chamado por BI (筆)”.5 Qin é o reino ao qual pertencia Yingzheng, o primeiro imperador da China propriamente dito, aquele que submeteu por meio da guerra os reinos de Chu, Wu, Yan e tantos outros, dando início ao projeto de unificação cultural e política que marcará os esforços de todos os imperadores chineses, inclusive aqueles de etnias distintas da etnia Han. Também é perceptível que o termo HUA era empregado tanto como substantivo quanto como verbo. Xu Shen, citando Dong Zhongshu,

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Texto original: 畫:界也。象田四界。聿,所以畫之。

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Texto original: 聿:所以書也。楚謂之聿,吳謂之不律,燕謂之弗。

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Texto original: 秦謂之筆。

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oferece uma igualmente curiosa e inventiva etimologia para a palavra “rei” (王WANG), onde se lê: “Dong Zhongshu disse: ‘Aqueles que criavam palavras na antiguidade, com três traços [畫HUA] conectados pelo centro diziam rei. Os três [traços são] o céu, a terra e a humanidade, enquanto que aquele que os atravessa é o rei.”6 Nessa descrição quase anedótica da origem da palavra “rei” (王WANG), diz-se que os três traços horizontais representam a trindade básica do pensamento confucionista, enquanto a linha vertical seria aquele capaz de preservar a harmonia dos elementos de tal trindade, isto é, o rei ou o imperador, o líder político supremo. Se esta etimologia, assim como aquela para a palavra HUA (畫) é “correta” ou não, é algo que se poderia discutir, de qualquer modo, em ambos os casos, percebe-se o uso da palavra HUA (畫) como indicativo do ato de se usar linhas para representar formas abstratas ou as próprias formas, traços e linhas criadas por meio de tal ato. É evidente, portanto, que, no caso das explicações oferecidas por Xu Shen e Dong Zhongshu, o termo HUA (畫) não aponta ainda para o termo “pintura”, mas é por meio de tal palavra que os chineses se referirão, em outros contextos, às obras de configuração visual produzidas sobre os mais diversos suportes – paredes, caixões, vestimentas, seda, papel – e que correspondem àquilo a que se refere o termo ocidental “pintura”. O Registro da investigação dos ofícios (考工記) afirma que “pintura” (畫繪HUAHUI) significa “misturar as cinco cores”7. Nesse registro antigo, o termo pintura está inelutavelmente relacionado à aplicação das cores em um suporte, mais do que ao emprego do traço. De qualquer modo, é interessante pensar no que o referido texto entende por “cinco cores”. Essa noção está relacionada ao princípio fundamental da cosmologia chinesa, o QI (氣). QI, um termo que pode ser traduzido por “pneuma”, é um conceito polivalente, sendo aplicado a inúmeros campos do pensamento chinês, como a medicina, a filosofia, a religião e a arte. QI pode descrever tanto a origem do cosmos como o modo como o cosmos é e se comporta. É neste último sentido que a ideia de QI se relaciona com as “cinco cores”. Segundo a cosmologia chinesa, o QI se comporta de cinco maneiras diferentes. Esse conceito é referido pelo nome “cinco fases”, ou “cinco movimentos” (WU XING五行), muitas vezes traduzido no Ocidente de forma errônea por meio do termo “cinco elementos”. Nada poderia ser 6

Texto original: 董仲舒曰:「古之造文者,三畫而連其中謂之王。三者,天、地、人也,而 參通之者王也。」

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Texto original: 雜五色

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mais distante da verdade, já que o termo chinês 行(XING) está ligado à noção de deslocamento, movimentação, e não “elemento”, como se daria por meio de uma analogia errônea com as ideias grega e hindu de quatro elementos. Enquanto Platão empregava a ideia “elemento” (στοιχεῖον) para se referir a água, fogo, terra e ar, na literatura em sânscrito, tanto hindu quanto budista, o termo “bhūta” era usado de forma similar. Não importando aqui uma discussão aprofundada do que o termo “elemento” poderia significar nos contextos grego, hindu ou budista, é certo que não possuía qualquer relação com o termo chinês XING, fato comprovado, também, pelo emprego de outro termo em chinês na tradução da ideia de “elemento” proveniente da literatura budista. De qualquer maneira, a ideia de cinco fases relaciona todas as manifestações visuais e sonoras com o princípio de QI. As cinco fases – madeira, água, fogo, terra e metal – seriam representadas, respectivamente, pelas cores verde, negra, vermelha, amarela e branca. As mesmas cinco fases se manifestam na música por meio da escala pentatônica, além de se relacionarem com as quatro estações do ano (mais o período entre-estações), aos órgãos do corpo humano e, posteriormente, aos “ciclos” históricos e dinásticos. A ideia de cinco fases é um princípio globalizante e que relaciona a cor não com a luz, mas com os padrões de comportamento do princípio cósmico do QI. No contexto da teoria da arte chinesa, percebe-se uma tentativa de relacionar o termo “pintura” (HUA) com a linha, em detrimento da cor. Seria impossível apresentar um resumo da longa discussão envolvendo esses dois conceitos no contexto de toda a volumosa teoria da arte chinesa, mas é importante enfatizar que tal tendência se acentua principalmente a partir da dinastia Tang (618-907), por meio dos escritos de Zhang Yanyuan (張顏遠), que expõe em seu Registro dos pintores renomados de todas as dinastias (歷代名畫記) interessantes ideias acerca da pintura e sua origem. Zhang Yanyuan entende que, no início dos tempos, pintura e caligrafia eram um só corpo, separado de modo a representar formas e palavras. Para o erudito, os caracteres chineses classificados como “pictográficos” (象形 XIANGXING) são justamente a demonstração de que, no início, a pintura e a escrita eram uma coisa só, já que tais caracteres são formas altamente abstraídas de objetos da natureza. Um exemplo não citado por Zhang Yanyuan, mas que corrobora tal tese, é o caractere 龜 (GUI), que significa “tartaruga”. Com um pouco de esforço, não é impossível visualizar a cabeça do animal, o casco,

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duas patas e a sua cauda. De fato, o caractere para “tartaruga” pode ser entendido como um “desenho”, uma abstração estilizada feita a partir da observação visual do animal na natureza. A tese de Zhang Yanyuan, portanto, une pintura e escrita por meio do uso da linha. Do ponto de vista linguístico, tal tese não é completamente errada, apesar de ser folclórica e, em grande medida, conduzir a compreensões equivocadas acerca da natureza da escrita chinesa, que não é ideogramática, mas um sistema de palavras em que a multiplicidade visual está ligada à necessidade de variadas representações gráficas para sons semelhantes, como ocorre na língua inglesa com os vocábulos “see” e “sea”, só que em uma proporção muito maior. De qualquer modo, tanto Zhang Yanyuan quanto os teóricos anteriores que ele cita em sua obra entendem que o melhor pintor é aquele capaz de produzir a melhor linha. Zhang Yanyuan se refere a Wu Daozi, célebre pintor da dinastia Tang – e do qual não chegaram pinturas aos nossos dias –, como sendo capaz de produzir uma linha tão excelente que parece mesmo que sua mão é guiada pela divindade. Em relação ao problema da cor, Zhang Yanyuan também apresenta uma posição bem definida que, de certa forma, reside no cerne do modo como o problema será pensado na teoria da arte a partir do crescente “conflito” entre pintores literatos e pintores de ofício durante a dinastia Song (960-1279), uma dicotomia inerente àquela teoria, mas que é cada vez mais contestada por historiadores da arte atuais, especialmente os do Ocidente. O modo como Zhang Yanyuan entende o conceito de cor não poderia deixar de estar ligado à descrição padrão que conecta tal ideia com as cinco fases. No entanto, Zhang Yanyuan inaugura uma nova concepção acerca do uso da cor. Enquanto o Registro da investigação dos ofícios entende a pintura como o produto da mistura das cinco cores, Zhang Yanyuan se recusa a ver grande valor no uso do colorido. Aqui, ele parece concordar com Laozi, para quem “as cinco cores cegam os olhos”8, e adota uma postura intelectualista: o domínio da linha e do nanquim negro é suficiente para reproduzir das coisas a sua realidade, sendo o uso da cor um artifício banalizante: O claro e o escuro se engendram e se condensam, dispondo os dez mil fenômenos. A transformação misteriosa não fala, a obra divina segue sozinha. As árvores e gramíneas mostram seu esplendor sem precisar das cores do cinábrio e da malaquita. As nuvens e a neve flutuam em 8

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Texto original: “五色令人目盲”

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sua brancura sem precisar do alvaiade. As montanhas mostram sua coloração esmeralda sem necessitar da lazulita. A fênix aparece em seu colorido sem depender das cinco cores. Assim, possuir as cinco cores pelo movimento do nanquim se chama obter a ideia. Caso a ideia se concentre nas cinco cores, a coisa e a imagem entrarão em conflito (Yanyuan, 2009, p. 312).9

Apesar de toda a sua formação confucionista, nesse fragmento, Zhang Yanyuan dá a perceber uma forte ligação com o pensamento de Laozi e Zhuangzi, chamado de “daoísta” após a dinastia Han. Nesse trecho, Zhang Yanyuan enfatiza o fato de as transformações naturais serem sui-generis, referindo-se, como Laozi, ao “silêncio” que caracteriza a natureza. Parece haver aqui um paralelismo entre silêncio – ausência de som – e o uso do nanquim negro, isto é, a ausência de cor. A “obra divina”, ao produzir os objetos da natureza, não emprega o uso da pigmentação como subterfúgio, mas, ainda assim, os mesmos objetos da natureza são capazes de mostrar a si mesmos em todo o seu esplendor. De modo semelhante, o pintor deve ser capaz de empregar o negro do nanquim de tal modo que aquilo que se produz por meio de seu pincel seja capaz de atualizar na pintura o mesmo vigor da natureza. Para Zhang Yanyuan, isso se dá por meio da obtenção da “ideia” das coisas, e não por meio da aplicação da cor, que envolve um conflito entre a ideia e a coisa ela mesma. Essa tendência intelectualizante marcará a tensão entre a pintura dos literatos e a dos pintores de ofício. Todo o discurso da teoria da pintura chinesa foi produzido e sustentado pelos primeiros, para quem a pintura era (idealmente, mas não na prática) antes de tudo uma atividade autônoma e desvinculada de qualquer interesse econômico. Não são poucos os literatos que afirmavam retirar da pintura não o próprio sustento, mas a expressão mais autêntica de si. Tais eruditos não entendiam a pintura, portanto, como uma mera atividade técnica baseada na imitação da natureza. Em comparação com aquela feita pelos pintores de ofício, a pintura produzida pelos literatos tende a ser uma demonstração de capacidade inventiva, erudição visual e argumentação. Tal argumentação é construída por meio de esquemas visuais onde se percebe o modo como determinado pintor realiza a sua própria leitura da história da arte chinesa. A pintura dos pintores de oficio apresenta uma qualidade técnica muito superior no que 9

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Texto original:“夫陰陽陶蒸,万象錯布,玄化亡言,神工獨運。草木敷榮,不待丹碌之采; 云雪飄揚,不待鉛粉而白。山不待空青而翠,鳳不待五色而彩。是故運墨而五色具,謂之 得意。意在五色,則物象乖矣。”

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diz respeito à imitação da natureza. Os pintores de ofício são capazes de reproduzir interessantes efeitos de textura com um material tão limitado como o nanquim. Mas já durante a dinastia Song, tal busca pela semelhança com a natureza será ridicularizada, por exemplo, pelo literato Su Dongpo (1037-1101). Este entende que a pintura não pode estar a serviço de algo diferente dela mesma, isto é, a pintura não é um espelho do mundo natural, e seria “infantilidade” (este é o termo empregado por ele) buscar na pintura uma imagem idêntica à do mundo. Essa escolha teórica de Su Dongpo será visível em muitos outros teóricos e pintores chineses, produzindo uma arte de viés antirrealista. Através desta breve análise comparativa pretendemos demonstrar que, muito embora discussões teóricas relativas ao uso da cor e da linha na tradição chinesa e europeia tenham sido densas e complexas, os pressupostos sociais, culturais e estéticos que as fundamentam afundam suas raízes em sistemas muito distintos. Em ambos os casos trata-se, certamente, de uma discussão intelectual, na medida em que envolve conceitos como imitação ou ideia e que busca fundamentar um determinado fazer artístico a partir da criação de um pensamento estético e, mesmo, filosófico. Se neste ensaio, por um lado, indicamos o potencial que guarda esse tipo de análise, por outro, destacamos a delicadeza que se há de ter ao aproximar tradições artísticas tão distantes, nas quais os próprios termos “linha” ou “cor” associam-se a denotações e conotações particulares e diferenciadas no âmbito da teoria e do fazer artístico.

Referências BAROCCHI, P. Scritti d’Arte del Cinquecento. Milão/Nápoles: Ricciardi, 1971, v. I. BERBARA, M. Michelangelo Buonarroti – Cartas Escolhidas. Campinas: Editora da Unicamp/Editora Unifesp, 2009. DESWARTE-ROSA, S. “Si dipinge col cervello et non con le mani. Italie et Flandres”. In DACOS, N. (org.). Fiamminghi a Roma, 1508-1608 (Atas do Simpósio Internacional em Bruxelas, fevereiro de 1995). Bollettino d’Arte, suplemento ao vol. 100, 1997, pp. 277-94. LANCILLOTTI, F. e RAFFAELLI, R. Trattato di Pittura. Recanati: presso R. Simboli, 1885. LAMPSONIUS, Domenicus. Pictorum Aliquot Celebrium Germaniae Inferioris Effigies. Antuérpia: Quatuor Ventorum, 1572. MENDES. M. (org.). Diálogos de Roma de Francisco de Holanda. Lisboa: Sá da Costa, 1955. PLÍNIO. “História Natural, XXXV”. In LICHTENSTEIN, J. (org.). A Pintura. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, v. 1.

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CONEXÕES – ENSAIOS EM HISTÓRIA DA ARTE

VASARI, Giorgio. Vida de Michelangelo Buonarroti: Florentino, Pintor, Escultor e Arquiteto. Trad. Luiz Marques. Campinas: Editora da Unicamp, 2011 [1568]. YANYUAN, Zhang. Lidai minghua ji quanyi. Guizhou: Guizhou Chubanshe, 2009. 畫:界也。象田四界。聿,所以畫之。 聿:所以書也。楚謂之聿,吳謂之不律,燕謂之弗。 董仲舒曰:「古之造文者,三畫而連其中謂之王。三者,天、地、人也,而參 通之者王也。」

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