Sobre a dialética assimilação-luta de libertação

Share Embed


Descrição do Produto

Sara Marrone
Sobre a dialética assimilação-luta de libertação
Quando os portugueses começaram a sua aventura ao longo das costas da África, no século XV, o mundo então conhecido dos europeus limitava-se ao Norte da África (o Saara Ocidental era considerado o fim do mundo), ao atual Médio Oriente e, obviamente, à Europa. O objetivo oficial, comum a todos os europeus, foi o comércio de especiarias no Oceano Índico, ao qual se adicionava o de prosseguir a luta contra os Mouros, ou seja, os muçulmanos, ou "infieis": com um autêntico «espírito de cruzada"» (Sellier, 2004), a intenção dos portugueses foi, entre outras coisas, converter ao Cristianismo qualquer população encontrada. Ao longo de todo o século, os exploradores europeus encontraram, nas costas do misterioso continente africano, povos tecnicamente e, ao que parecia, culturalmente "atrasados": isto só serviu para fortalecer a convicção, construída pelos intelectuais europeus do Iluminismo, da necessidade da dominação territorial, política e, especialmente, cultural pela Europa fora das suas fronteiras, em nome da construcção e da difusão da civilização. É, pois, neste momento, com a Europa a pôr tiranicamente si mesma como centro geo-cultural do mundo, que nasce a ideia de modernidade. Modernidade como sinônimo de exploração: política, de matérias-primas, de homens como trabalhadores escravos, de mulheres como escravas sexuais. Modernidade como sinônimo de assimilação: europeização, desnaturalização, alienação. Em duas palavras, modernidade como privação da liberdade, em benefício da metrópole. Isto é o que vai alimentar a metrópole Europa, pelo menos até o século XIX, quando a sua expansão atinge o seu pico (afirmação plena do colonialismo, concorrência feroz entre potências européias), e mais além, até hoje, em que as mesmas características persistem, mas em formas diferentes (o imperialismo contemporâneo). Durante séculos, os africanos têm enfrentado e, muitas vezes, infelizmente absorvido, esta invasão e eradicação mando de países civilizados. Por séculos, os africanos estavam viver uma colonização que, antes de ser política e económica, é mental. Neste sentido, considero significativa a definição que o jornalista espanhol M. Madridejos (1980) dá do colonialismo: uma terrível realidade que se impôs ao mundo e que é, em primeiro lugar, «uma justificação».

A dominação colonial, embora diferente para cada país dominador, é caracterizada por três aspectos essenciais que o etnólogo e africanista francês Georges Balandier resume desta forma: contato entre duas civilizações totalmente diferentes (por causa da religião, da economia, do ritmo de vida); dominação por parte duma minoria estrangeira, que exerce uma suposta superioridade cultural sobre uma minoria nativa sem meios técnicos e, portanto, materialmente inferior; a civilização tecnicamente avançada impõe-se sobre todos os aspectos da cultura autóctone, através de formas de organização política e administrativa.
É nesta ordem que as fases agora citadas sucederam-se durante o primeiro contato, em 1482, entre a chusma de Diogo Cão e um grande reino africano na foz do rio Zaire: o Kongo. Aqui, o explorador português foi recebido com alegria e curiosidade pelo Mwene Kongo ('senhor do Congo') e procedeu rapidamente a assimilação cultural daquele povo acabado de ser "descoberto": seqüestrou quatro homens e os levou para Lisboa, onde foram tratados como convidados de honra, a fim de os apresentar as maravilhas do Cristianismo. Quando eles voltaram, em 1486, o soberano batizou-se, adoptando o novo nome de João, e espalhou entre os súbditos a nova religião importada pelos navegadores portugueses, pedindo para ser enviados da Europa novos sacerdotes, por causa das novas necessidades espirituais do reino. Podemos, portanto, observar como a assimilação se começou através da religião. Trata-se duma divulgação dum credo entre as mais extraordinárias que a história regista, por causa da sua extrema rapidez e facilidade. João obrigou os seus súbditos para entregar os ídolos deles e ordenou que lhes fosse pegado fogo: é entre aquela fumaça que uma boa parte da cultura tradicional daquela zona desapareceu (Almeida Martins, 2015).

Já dissemos que a modernidade nasce quando a Europa, desde o Iluminismo, e durante quase 500 anos, define si mesma como o centro do mundo, então ao centro, e no início, da história e da cultura humana. O filósofo argentino Enrique Dussel desenvolve esta tese, afirmando que essa modernidade autocentrada consiste numa relação dialética entre o "nós" Europa e uma alteridade não européia. Neste sentido, a "periferia" é parte constitutiva, e objeto último, da autodefinição do "centro" em torno do qual ela rodeia (Dussel, 1993). A identidade, afinal, apénas se construi através da oposição a uma alteridade: Ocidente contra Oriente, civilizado contra bárbaro.
A missão civilizadora por parte do europeu consiste em educar o bárbaro, forçando-o a segui-lo no seu próprio processo de desenvolvimento. Sempre que o colonizado se opuser a tal missão, é previsto o uso da violência: nesta maneira o bárbaro existe num estado de culpa, por causa da sua oposição, e o papel do "herói civilizador" é emancipar a sua v tima da sua culpa. A modernidade dá, então, a si mesma um caráter redentor, por isso os sacrifícios impostos pela civilização ao bárbaro são inevitáveis e necessários.
Para utilizar as palavras apaixonadas dum protagonista da luta contra a assimilação cultural, cujo pensamento resume uma época inteira, os métodos ocidentais «tomam-no escravo de um pensamento e de uma visão estrangeiras do mundo» (E. W. Blyden, 1880). Ele fala de europeização e desnaturalização do Africano por parte das instituções e das escolas européias, considerando-as a maior obra de destruição de massa contra a humanidade negra.
Lembro-me de alguns versos do "Poema da alienação", do angolano António Jacinto: «o meu poema sou eu-branco " montado em mim-preto " a cavalgar pela vida». Quem está no poder é o branco e quem é explorado é o negro. Uma etnia, uma classe, uma nação assumem os seus valores porque é neles que encontram o seu próprio equilíbrio e a sua autonomia. Um patrimonio cultural externo aliena aqueles que o adoptam.

As construções culturais de pretensão universalista sempre escondem um desenho hegemonista (Diagne, 1980). A ideologia etnocentrista imperial sufocou durante quase um século as culturas nacionais do continente africano, alterando um equilibrio social milenário. Uma reacção para reconquistar o espaço cultural e, em seguida, o equilíbrio, do homem negro contra a hegemonia ocidental era inevitável, depois da presença europeia tinha cortado as raízes dele. No início do século XX, o marxismo-leninismo denunciou o imperialismo como "o estado supremo do capitalismo" (Lenin, 1916). A Revolução Russa de outubro 1917 representou um modelo para as sociedades indígenas, mostrando-lhes a necessidade e a eficácia da luta armada para a emancipação contra a opressão colonial. Depois da revolução egípcia em 1952 e da Conferência de Bandung em 1955, na qual 29 países da África e da Ásia expressaram a sua revolta moral contra a dominação europeia, nasceram movimentos de libertação nacional em outras partes do continente Africano.

Em 1956, nasceu o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo-Verde), fundado por Amílcar Cabral e o irmão dele, Luís. Amílcar sempre se apercebeu de que a cultura era uma garantia de sucesso da luta de libertação nacional. Em conjunto com a arma do conhecimento, no entanto, apoiava a luta armada e exortava os seus combatentes no sentido de «pensar para agir e agir para melhor pensar» (Cabral, 1974). No mesmo ano, também foi fundado o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), composto por intelectuais da capital Luanda. Em 1961, este ficava entre as três forças responsáveis (com o FNLA e o UPA) duma primeira ruptura com o colonizador, atacando pontos estratégicos da cidade. O FRELIMO (Frente de Libertação do Moçambique) foi em vez fundado em 1962, por Moçambicanos exilados na Tanzânia, e também foi de orientação socialista. Com a Revolução dos Cravos em 1974, liderada por militares da ala progressista entre as forças armadas do Portugal, chegou ao fim o regime autoritário fundado por Salazar e os portugueses foram obrigados a abandonar as colônias em vista do avanço democratico que anunciava-se no seu próprio país.

Como è possível que povos bárbaros, fora da história, desprovidos de cultura e consciência nacional, dentro dum século foram capazes de construir a sua própria consciência política e comunicar como iguais com o homem branco?
Os europeus têm exportado, para a África e a Ásia, não apenas capitais, administradores coloniais, a técnica, mas também o pensamento político, social, científico (Madridejos, 1980). Como sugere o historiador indiano Kawalam Penikkar, a dominação europeia forçou os povos desses continentes a adaptarem-se às novas idéias do mundo ocidental moderno, e foram estas novas ideias as únicas capazes de ajudar os nativos a libertar-se da opressão: foram de facto à base de movimentos fundamentais da história dos negros, como o Negrismo, o Panafricanismo, a Negritude. Então as sociedades africanas (e asiáticas) se apropriaram destes "condicionantes civilizacionais", impostos da colonização, para adotar a sua própria autonomia. A historadora portuguesa Dalila Cabral Mateus (1999) confirma a tese no seu livro "A Luta pela Independência" (1999), em que analisa em pormenor o impacto da política de assimilação nas colônias, considerando-a elemento essencial à base do processo de formação das elites africanas. O sistema colonialista, ao desenvolver-se, gerou o germen da sua destruição.
Parece claro, nesta altura, como assimilação e luta de libertação nacional são nada mais que duas faces da mesma moeda, membros complementares e dependentes um do outro numa dialética sutil, o que lembra aquela do senhor-servo já identificada por Hegel em 1807: o colonizador, para garantir a sobrevivência do sistema que ele mesmo criou e subjugar o colonizado, não pode deixar de servir o colonizado dos meios de que ele necessita para ser livre.
Hoje, estas duas forças opostas e complementares continuam a colidir, dentro do que é chamado neocolonialismo, ou seja, aquela nova manifestação do imperialismo para a qual as grandes potências europeias (e ocidentais em geral, depois do decentramento da Europa e da emergência dos Estados Unidos como potência económica e militar do mundo com o advento da pós-modernidade) continuam a exercitar o seu domínio e a sua inflência sobre os países descolonizados oficialmente, sem necessariamente recorrer à força militar ou ao controlo político directo.
Em suma, estamos a viver a colonização 2.0, que utiliza estratégias mais veladas e definições mais brandas: as antigas colônias são o que nós chamamos hoje os países em desenvolvimento, as tribos primitivas e bárbaras tornaram-se "povos tradicionais". Termos que evocavam o imperialismo foram substituídos por eufemismos aparentemente neutrais (Pletsch, 1981).
Pathé Diagne (1980) aponta que as culturas, bem como as nações, constituem entre si relações de força, defendendo interesses. Interesses, hoje, principalmente económicos, que levam à tentativa de assimilação que uma cultura exerce sobre a outra. Se conseguimos entender a relação de causa e efeito que liga as duas forças assimilação-luta, não será difícil compreender as razões que sustentam a luta que hoje estão a realizar as organizações militares e pseudo-religiosas da Ásia e da África contra a Europa e as manifestações da cultura europea. Europa, então, vítima, hoje, mas também carrasco. Os monstros são criados por monstros: a violência nunca é justificada, mas sempre surge por uma razão, seja ela mesquinha (o colonialismo europeu), seja ela desesperada (al-Qaeda, IS).
Compreender as razões da luta em curso no nosso tempo, que arriscaria, sem muita hesitação, a definir guerra, leva-nos a perceber que ela não é mais do que o produto do que os nossos pais tem querido e criado num passado não muito distante.
Bibliografia
ALMEIDA MARTINS, Luís, Kongo. O reino esquecido em Visão História, nº31, Outubro 2015.
BLYDEN, Edward Wilmot, Christianity, Islam and the Negro Race, Londres, 1880.
CABRAL, Amílcar Cabral, A cultura nacional: o papel da cultura na luta pela independência, Departamento de Informação, Propaganda e Cultura do C.C. do PAIGC, 1984.
GORJÃO HENRIQUES, Joana, "Houve independência mas não descolonização das mentes na série "Racismo em portugûes, Angola", Público, 1/11/2015.
LENIN, L'Imperialismo fase suprema del capitalismo, 1916.
MADRIDEJOS, Mateo, Colonialismo e neocolonialismo, Rio de Janeiro, Salvat do Brasil, 1980.
MATEUS, Dalila Cabrita, A luta pela independência, - A Formação das Elites Fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC, Editorial Inquérito, 1999.
MIGNOLO, Walter, Historias globais/diseños globales. Colonialidad, conocimento subalternos y pensamiento fronterizo, Madrid, Akal, 2003.
NETO, Agostinho, Poema da alienação em Sagrada esperança, 1974.
PLETSCH, Carl, The Three Worlds, or the Division of Social Scientific Labor, circa 1950-1975. Comparative Studies in Society and History, 1981.
SELLIER, Jean, Atlas dos povos da África, Lisboa, Campo da Comunicação, 2004.
SOW, Alpha I et alii, Introdução à cultura africana, Lisboa, Ed. 70, 1980.BÇLY

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.