Sobre a dor e delicia de ser o que é: as faces transgressoras do discurso homoerótico em Chico Buarque durante a Ditadura Militar.

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Sobre a dor e a delicia de ser o que é: as faces transgressoras do discurso homoerótico em Chico Buarque durante a Ditadura Militar. Maria Clara de C. Lima1 Resumo Chico Buarque é um construtor de perfis femininos. Desde o discurso da mulher idealizada,

até

o

que

pretende

questionar

seu

papel

na

sociedade.

A

homossexualidade é uma das manifestações de ser mulher na história, e o papel de Chico aqui, é utilizar desse discurso para questionar tanto o lugar social da mulher, como de sua sexualidade. Nesse sentido, este ensaio pretende fazer uma leitura dos sujeitos homoeróticos na obra de Chico Buarque, considerando que seus discursos sobre homossexualidade são marcados pelo momento em que estes foram produzidos, servindo como testemunho histórico da contestação dos discursos binários fortemente presentes durante o regime militar. 1. Introdução “Mesmo miseráveis os poetas Os seus versos serão bons (...) Saiba que os poetas como os cegos Podem ver na escuridão”. (Chico Buarque – Choro Bandido) A discussão comum que gira em torno da música é se esta deve ou não ser considerada poesia. Esse questionamento me parece um pouco vazio em si mesmo, uma vez que o papel da poesia vai além do simples enquadramento em uma métrica, uma rima, uma regra. A poesia pretende-se muito mais liberdade. Permite ao poeta contar a sua própria história, criar sua realidade imaginária, imagética, que lhe proporciona a fuga, a ida a um outro espaço, um outro tempo produto do seu consciente ou do seu inconsciente. O fazer poético implica a criação de um outro tempo na tentativa de dominálo, de administrá-lo. O poeta canta um tempo com a pretensão de modificar o tempo real em uma temporalidade que possa ser dominada, controlada. É uma

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Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Email: [email protected]

temporalidade que permite ao autor uma relação espaço-tempo só alcançável através da criação, do imaginário, do não-real. O tempo da poesia se pretende eterno. O ciclo da poesia sempre se fecha. Começa e termina no mesmo ponto. Uma temporalidade palpável. É um tempo que não atende ao devir do tempo humano, um tempo que não cessa: onde este acaba é exatamente onde também começa. Por seres tão inventivo, e pareceres contínuo.2 A poesia desenha, assim, um tempo total. A inspiração poética, disse Platão, dá-se através de uma divindade, daimon, que habita o poeta e fala por ele. Aqui, o fazer poético é passivo, o poeta seria e não seria sujeito de sua criação. Mas, permito-me acrescentar a ideia platônica, de que o instante criador do poeta é também consequência de seu próprio fazer (poiéo), de sua tentativa de modular um espaço a partir daquele em que habita, de criar um tempo que corresponda a uma diferenciação do real. A poesia não é sujeito em si mesma, é produto da ação do autor que atua no fazer e no ser, uma vez que este, ao mesmo tempo em que cria um novo tempo, vive neste tempo, atua no seu próprio cenário, é protagonista do seu próprio teatro. A poesia é sempre verbo. O poeta é seus próprios personagens, estes são faces do seu consciente e inconsciente, de forma que, ele cria-os e vive-os, é passividade e atividade. É atuação. Ato e ação.3 A criação dos espaços na poesia permite, entre outras coisas, dar materialidade a realidade que existe dentro do universo poético. O poeta canta (cria) o espaço, a paisagem com o intuito de torná-lo material. Aqui, a música vem dar materialidade aos devaneios artísticos do compositor. Esses espaços, até tornarem-se “reais” seguem o curso do interno ao externo, da intimidade para exposição. O autor imprime no mundo paisagens ficcionais criadas a partir do seu consciente e do seu inconsciente, que vem modular o ambiente existente dentro da poesia. É uma paisagem que nasce da experiência espacial do poeta, que desenhará em sua poesia um novo mundo que reflete aquele como um universo

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Referência à canção Oração ao Tempo, de Caetano Veloso, que compõe o álbum Cinema Transcendental, 1979. 3

Ver FERNANDES, Rinaldo. Chico Buarque do Brasil. Rio de Janeiro: Garamond/Fundação Biblioteca Nacional, 2004.

íntimo, pessoal, particular de sua experiência. Da janela o mundo até parece o meu quintal. 4 Em Chico Buarque, esses universos paralelos aparecem representados por personagens e cenários que se igualam e se diferenciam entre si. Do malandro à prostituta, da região à nação, as idealizações de Chico são claramente perpassadas pelo subjetivo, pelas paixões que lhe são particulares. Michel de Certeau vai afirmar que o papel essencial de Freud nos estudos psicanalíticos é a ideia de que o discurso é sempre perpassado pelos afetos, no sentido de que estes são marcados pela presença das subjetividades5; em Chico percebem-se essas marcas essencialmente em sua produção em relação ao feminino como uma possível experiência maternal, de maneira que, o contato com uma figura feminina reflete no discurso sobre a mulher e na vontade incessante de tentar decifrá-la. A mãe como figura central por excelência. O discurso homoerótico buarqueano é no feminino. É a relação erótica entre mulheres que Chico procurou abordar em suas canções. Talvez por cantar as mulheres a partir de um olhar masculino e, portanto, não está prisioneiro de paradigmas sociais e a formalidade atribuída ao comportamento feminino, o autor consiga tratar de uma intimidade feminina que as próprias mulheres não ousam fazê-lo, avança em relação a dados particulares do que seria o ser mulher e canta-o. Quem sabe na tentativa, que sempre estará fadada ao fracasso, de decifrá-lo. As mulheres em Chico Buarque são versões de si mesmo, do feminino nele inscrito, é um eu que vem à tona, que acende a luz da poesia e faz-se arte através das palavras; Esse discurso que aparece como a respeito do outro é afetado, perpassado pelo si mesmo. É arte suja de corpo. Chico Buarque é um construtor de perfis femininos. São canções que moldam perfis de mulheres que se pretendem transgressoras. O homoerotismo feminino seria uma das manifestações desse ser mulher na história. Tratar do amor entre mulheres é afirmar que estas possuem sexualidade, possuem corpo, é trazê-las para a história como sujeitos de si mesmas. É dar-lhes poder para serem elas

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Referência à música Paisagem na Janela, de Milton Nascimento e Lô Borges, que compõe o álbum Clube da Esquina, 1972. 5 Ver CERTEAU, Michel. Uma estilística dos afetos. IN:____. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

mesmas e amarem-se entre si e, portanto, descontruir a ideia do prazer feminino necessariamente vinculado ao homem. Produto de um tempo determinado, as músicas de Chico tem poder de testemunho histórico. Elas estão inseridas em um contexto específico, mas constroem e participam de outros tempos. Marcam os trilhos da história e são marcadas por ela, são sempre resignificadas pelo tempo, pelo ouvinte, pelos sujeitos. A música é rasgada pelo tempo, carrega em si as cicatrizes deixadas pelo curso temporal que percorre. Nesse sentido, a obra buarqueana é composta por um todo e por seus pedaços, retalhos que vão se unindo ao corpo da canção ao longo tempo, detalhes do tempo real que marcam o tempo único da poesia. A canção é um universo centrado em si, pois cria seu próprio tempo e espaço, mas que se faz aberto às passagens, as transversalidades de outros tempos, que configuram outros espaços. Cada vez que se ouve/sente uma música se revive todas as suas camadas temporais, toda sua espessura histórica, todos os significados que ela carrega. As palavras são sempre o eco que se tenta decifrar em vão, são retratos de um tempo, de sujeitos, vestígios de estranha civilização.6 Tratando-se de Chico Buarque e da já citada questão do enquadramento em poeta ou não poeta, sua obra não deve se desvincular da música, da melodia, tratando-o somente como letrista. A sonoridade está ligada inseparavelmente a letra. A rotulação de poeta, letrista, compositor não cabe a Chico Buarque; este está além desses rótulos, transborda-os, supera-os. A obra buarqueana é um todo. As letras, as melodias, os arranjos completam-se entre si, funcionam compondo um só corpo, onde cada membro necessita do outro mutuamente. É partitura pros olhos e ouvidos7. É, acima de tudo, arte. Arte que vai além da superficialidade dos estereótipos, arte profunda que toca o subjetivo. Na água das palavras, Chico Buarque não navega, afunda e explora. 8 O presente artigo pretende abordar, mesmo que de forma breve, o discurso homoerótico em Chico Buarque e a sua relação com um contexto marcado pela 6

Referência à música Futuros Amantes, de Chico Buarque de Hollanda, que compõe o álbum Paratodos, 1993. 7

Ver GOES, Frederico Augusto Liberali de. Gil engendra Gil em rouxinol: a letra da canção em Gilberto Gil. Rio deJaneiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1992. Tese de doutoramento em Teoria da Literatura. 8 Referência à música Terceira Margem do Rio, de Caetano Veloso, que compõe o álbum Circuladô, 1991.

censura, pela repressão e pelo conservadorismo político, ético e estético: a Ditadura Militar brasileira. Músicas como Geni e o Zepelim9, Bárbara10 e Mar e Lua pretendem-se questionamentoa mais do que confirmação, crítica mais do que aceitação; configuram o eu transgressor de Chico, materializam as inquietações de um compositor, de um poeta que sonhava com um outro país, uma outra realidade. Chico canta a homoafetividade a partir de uma realidade que a nega; afirma a partir do contrário. Aqui, o contrário é potência e a afirmação, crítica. A exuberância está em transformar em arte o detalhe, transformar em ritmo o cotidiano dos espaços, a realidade em poesia. Não é Octavio Paz que desenvolve a ideia de que “o mundo é um poema11”? 2. Bárbara e a carnavalização da história “Cala a boca, Bárbara” 1973. Chico Buarque e Ruy Guerra escrevem a peça intitulada Calabar: o elogio da traição cinco anos após a decretação do AI-5. Uma das mais caras produções teatrais da época, após três meses de preparação foi proibida em 20 de outubro de 1974, e os autores foram proibidos até de divulgarem a censura que lhes foi imposta. Calabar retrata a figura emblemática de Domingos Fernandes Calabar, considerado traidor pela coroa portuguesa por auxiliar os holandeses na conquista de algumas capitanias no norte brasileiro e discute a rotulação de Calabar como traidor da pátria. Bárbara, amante de Calabar, quando já viúva, relaciona-se com Ana de Amsterdam, prostituta holandesa que vem para o Brasil. A canção Bárbara retrata a súplica de Ana pelo retorno da amada. A construção da peça deu-se através da análise de documentos coloniais, na qual foram utilizados trechos dos mesmos para compor o roteiro e os diálogos, introduzindo trechos dos textos oficiais nas falas dos personagens. Essa bricolagem é feita por Chico e Ruy na tentativa de carnavalizar o discurso histórico. Os trechos dos documentos oficiais são encaixados em partes da peça em que prevalecem a 9

Ver HOLLANDA, C. B. de. Geni e o Zepelim. In: Ópera do Malandro. Rio de Janeiro: Polygram’Phillips, 1978/1979. 10 Ver BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar – o elogio da traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

Ver PAZ, Octávio. “Analogia y ironia”. In: Los hijos del limo. 2º ed. Barcelona. Seix Barral, 1974. 11

ironia, os insultos e palavrões. Os personagens utilizam-se dos trechos documentais como forma de ironia no universo da peça. Calabar recorta trechos dos textos históricos e os insere em diálogos notadamente populares. 12 Os personagens são representados na peça como que alheios à estratificação social. Da prostituta (Anna de Amsterdam) ao Frei Manoel Salvador, todos estão colocados em um mesmo plano, num mesmo patamar na peça, no sentido de que pertencem ao mesmo universo e, portanto, passam a ter o mesmo valor. Assim como no carnaval, em Calabar as vozes sociais se misturam, se fazem indiferentes às classes. Aqui existe uma tentativa de quebrar a sacralização do discurso histórico. Os personagens colocados igualmente no mesmo plano são profanados e ao mesmo tempo dessacralizam o discurso oficial utilizado para construí-los à medida que quebram-no, modificam-no, questionando a ideia de verdade absoluta e com a tentativa de ir ao documento com a pretensão de encontrar nele a prova da realidade. Calabar mostra que a realidade se perde. Não só no tempo, mas na mão dos autores que escrevem e reescrevem a história. Exceto a prostituta Anna, todos os personagens são baseados em figuras históricas. Quando Chico Buarque vem tentar questionar a ideia de traidor e traição a partir do relato dos feitos de Fernandes Calabar, na verdade, Chico está implicitamente referindo-se ao coronel do exército e líder da oposição a ditadura, Carlos Lamarca. Calabar é, na verdade, uma crítica, não ao regime colonial propriamente, mas sim ao cenário repressor da Ditadura Militar. No decorrer na peça, percebem-se claras referências aos anos 70 e a efervescência da censura, justapondo imagens e tempos numa colagem narrativa que se faz incômodo mais do que simples reprodução. Ao superpor temporalidades para estabelecer uma crítica ao regime militar, Chico constrói o que Walter Benjamin chamou de imagens dialéticas13. Toma-se a imagem, a cena, o evento repressor colonial e o traz os ao encontro do agora da Ditadura Militar produzindo, assim, o que Benjamin chamou de uma imagem

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Ver NUNES, Elzimar Fernanda. A reescrita da História em Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque a Ruy Guerra. 2002. 141 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Departamento de Teoria Literária e Literatura, Universidade de Brasília, Brasília. 2002. 13 Ver BENJAMIN, Walter. Libro de los pasajes. Madrid: Ediciones Akal, 2005

crítica14, que questione a repressão da temporalidade em que a peça foi escrita (HUBERMAN, 2015). Em clara alusão a conjuntura política da época, a peça faz uma crítica ao regime ditatorial brasileiro a partir da desconstrução de uma ideia sólida e fixa de traição. Passado e presente unem-se aqui para formar novas constelações, novas possibilidades de discurso, novas versões. Chico vai ao passado a partir de um olhar do presente, para, através da dialética entre os tempos, perceber a historicidade da repressão no Brasil. Calabar abre uma fenda no tempo da história oficial e a possibilidade de que novas versões venham dar lugar à história dos vencedores. Retorna ao passado com a pretensão de trazê-lo para o presente, ressignificado. É o discurso que não conta a história dos vencedores e que, portanto, não derrota novamente os vencidos. O passado é revisto com a lucidez de quem vive o presente: com a consciência de quem mergulha na história em busca de uma compreensão do mundo de hoje.15 As vozes em Calabar se horizontalizam. Entre elas, destaca-se aqui a figura de Bárbara, viúva de Fernandes Calabar. A personagem, ao contrariar a rotulação de Calabar como traidor, contraria o discurso histórico oficial, construído a partir do interesse daqueles que o produzem. Bárbara questiona a utilização do discurso como verdade absoluta e a ideia de traição e traidor, e é, por esse motivo, ponto chave da peça, por carregar consigo a causa pela qual Calabar foi escrita: ressaltar como a ideia de traição/traidor da pátria é vazia. Afinal, quem Calabar ou Lamarca – ao serem chamados de traidores – estariam traindo de fato? Surge no tema ressaltado por Chico e Ruy a ideia de que quem fez de Calabar um traidor, na verdade, foram os únicos a terem seus interesses contrariados. O maestro bem falou: a ofensa é pessoal, quem aponta o traidor é quem foi traído 16. Para Bárbara, seu amado só sonhava com um futuro de liberdade para o Brasil. Mesmo que a personagem ressalte sempre a figura de Calabar, Bárbara deita-se com Ana na peça, esta, prostituta holandesa, entra como representação de transgressão junto à Bárbara. Na canção que descreve a relação sexual entre 14

Referência aos conceitos do historiador Georges Didi-Huberman acerca do anacronismo das imagens, em estudo sobre Walter Benjamin. Para mais, ver: DIDIHUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: UFMG, 2015. 15

Ver PEIXOTO, Fernandes. Duas vezes Calabar. In: BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar – o elogio da traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 16 Referência à música Fracasso, da banda Pitty, que integra o álbum Chiaroscuro, 2009.

ambas, existe uma homossexualidade cantada de forma muito mais crua, rasgada. Utilizando-se sempre de metáforas relacionadas ao corpo e a relação sexual (bocas cruas, nua, hemorragia), Chico pretende bater de frente com a censura artística e com a onda conservadora que prevalecia na época, pensamento que procurava sombrear a sexualidade feminina, que nega o corpo da mulher sexualizado, e que, portanto, escreve as mulheres na história massificadas, atendendo a um modelo esperado da mulher que a descorporeifica, tratando-a como mais uma. Dá corpo as mulheres é permitir que elas sejam sujeitos de si mesmas, permitir que elas possam usá-los de qualquer forma e, acima de tudo, assumi-los. Nesse sentido, a poesia buarqueana veio trazer a luz da história o corpo invisível da mulher. Cantar a corporeidade de Bárbara é assumir que ela existe. Considerando que Calabar vive a efervescência do AI-5, tendo como plano de fundo esse cenário, tentar jogar nos palcos uma personagem assim tão nua, é afronta clara e forte a censura políticoartística. Na canção Bárbara, Ana de Amsterdam canta a saudade de sua amada, clama para que Bárbara volte; como se Ana se sentisse desterritorializada com a ausência de Bárbara (onde estou, onde estás?), como se a distância a fizesse sem lar. É Bárbara a sua casa, colocando o amor como guia. Ana, prostituta holandesa, faz de Bárbara o seu lugar. Aqui é o meu país, nos seios da minha amada. 17 A música cantada para Bárbara por Ana, ao mesmo tempo em que descreve a distância existente entre as duas, mostra a sexualidade que existe entre ambas. Ana sente saudade da paixão que a fazia sentir prazer, do toque, da nudez de Bárbara. Esse prazer existente entre as personagens vem quebrar a ideia falocêntrica de que o prazer feminino está necessariamente associado à figura do homem. Colocar o corpo da mulher como sexualizado a partir da relação entre duas personagens é assumir a autossuficiência do prazer feminino, é desligar o vínculo hierárquico entre corpo masculino e corpo feminino. Bárbara e Ana só precisam delas mesmas. Em Calabar não existe verdade absoluta. Chico e Ruy não pretenderam com a peça criar uma verdade sobre Calabar ou Lamarca. Na verdade o que se constrói é uma imagem onde se abrem vãos para ilimitadas interpretações. É dado ao observador o papel de interpretar o discurso de Calabar, é ele que tem o poder de jugar para si a validez das suposições da peça. Por isso, em lugar de epílogo, quero 17

Referência à música Meu País, de Ivan Lins, 1999.

vos oferecer uma sentença à guisa de charada: odeio ouvinte com memória fiel demais18. Chico e Ruy vão além da desconstrução do discurso histórico oficial, estabelecendo principalmente uma nova forma de escrever a história, uma forma que não pretenda-se detentora da

verdade absoluta, que vá ao documentos e

arquivos com a ideia de que estes foram manipulados de maneira interessada. Todo esse discurso posto em cena no início dos anos 70 me parece transgressor não só das normas da sociedade patriarcal, mas em relação ao conservadorismo como um todo, e permanece na militância buarquena. Para Fernando Silva, a obra de Chico Buarque vive uma relação entre fluxos e fixos, no sentido de que alguns elementos permanecem e outros são rompidos ao longo do tempo19. Chico escreve de maneiras diferentes quando em momentos diferentes, mas mantendo sempre uma coerência na produção de suas letras. Sendo sempre a mesma, sua obra será sempre diferente (SILVA, 2004). O Chico que canta Cala a boca, Bárbara, é o mesmo que, um ano depois nos clama poeticamente: Pai afasta de mim esse cálice. 3. Geni e o realismo dos fracos A multidão vai estar é seduzida. (Ópera do Malandro, 1978) Chico Buarque, em 1978, escreve a peça Ópera do Malandro, dirigida por Luís Antônio Martinez Corrêa e encenada pela primeira vez em 1980. Inspirada na Ópera dos Três Vintes de Bertold Brecht, a peça se passa na década de 1940 e aborda temas polêmicos como a prostituição, o travestismo, os jogos ilegais e a corrupção das instituições estatais.

Os acontecimentos são narrados no decorrer da peça

através de canções. Com trilha sonora toda composta por Chico Buarque, as músicas da Ópera do Malandro, mesmo podendo ser entendidas alheias à peça,

18

Referência à fala da personagem Bárbara, já nas partes finais da peça, onde sua fala une-se a dos autores, pág. 119. 19

Em estudo comparativo entre a obra de Caetano Veloso e Chico Buarque, Fernando vai afirmar que, ao mesmo tempo em que Caetano está em constante mudança, este mantémse sempre fiel a sua raiz tropicalista. “A incoerência de Caetano o empurra de volta para a origem e para dentro de si mesmo, numa espécie de círculo narcísico condenado ao útero tropicalista. Já a coerência de Chico o projeta para fora e para frente, obrigando-o a responder a novos desafios sem tê-los previamente codificados.” Para mais, ver: SILVA, Fernando de Barros e. Chico Buarque. São Paulo: PubliFolha, 2004

complementam os diálogos dos personagens, sendo a música uma expressão potencializada da fala. A personagem de Geni, travesti e prostituta, trabalha em um bordel e é construída enfatizando a repressão que sofre, tanto relacionada ao travestismo como a prostituição. A Ópera do Malandro se inscreve num contexto histórico em que já se vivia a iminência da abertura política. Mesmo tratando de temas cercados de tabus, a peça não foi proibida pela censura militar como ocorrera em Calabar. A obra pretende criticar elementos sociais, mas agora, a escrita de Chico não mais acontece com a preocupação de ser amputada pela censura. As metáforas implícitas vão dando lugar as poesias mais viscerais. A canção Geni e o Zepelim narra como a prostituta Geni marginalizada socialmente, assume o lugar de heroína. Um comandante que ameaça destruir a cidade, diz que deitar-se com a prostituta é a forma de evitar a catástrofe. Mas posso evitar o drama se aquela formosa dama esta noite me servir. A personagem desloca-se do lugar de inutilidade social para salvar a cidade, sendo uma crítica à hipocrisia. A cidade que condena Geni é a mesma que precisa dela para ser salva. Considerando-se também que é a própria cidade quem cria a figura da prostituta; as relações imagéticas que a prostituição carrega são produzidas socialmente. Na poesia de Geni e o Zepelim, os versos metrificados constroem um cenário como uma arena de vozes. Nela, todos os personagens representam elementos significativos para a trama, soam como vozes sociais. Cria-se uma relação na qual cada sujeito partícipe da canção interfere na história de maneira que corresponde aquilo que ele significa, estabelecendo-se um jogo de falas que criam imagens que ecoam significados determinados. Geni não atende a uma caracterização absoluta. Na Ópera do Malandro, Geni(valdo) é um travesti que aparece ao público vestido de mulher. Sua aparição na Ópera do Malandro transita entre o masculino e o feminino, alarga as expressões dos sexos uma vez que ao mesmo tempo em que aparece com trajes femininos, este possui corporeidade masculina e, portanto, assume as duas formas. O personagem de Geni, como sujeito oprimido por excelência, representa a homoafetividade relacionada à marginalidade. Seu discurso homoerótico pretendese transgressor não só em suas relações homossexuais, mas também pela sua condição, digamos, proletarizada. Ao descrever seus “amantes”, o travesti é quase

animalizado, prefere amar com os bichos, ele pertence à categoria dos que não tem mais nada. O homoerotismo aqui se faz crítica a partir de uma poesia que canta os desvalidos, traça a realidade na qual a ele é imposto o lugar oprimido devido sua qualidade de homossexual Dentro desse universo, o prefeito, o bispo e o banqueiro representam as instituições pilares da sociedade moderna: o Estado, a Igreja e as instituições econômicas. Esses personagens, ao mesmo tempo em que imploram pela misericórdia de Geni, também representam as instituições que criam discursos que a oprimem, atuando duas vezes implicitamente: ao mesmo tempo em que se veem ameaçados pelo caos, são mecanismos de produção desse caos. Aqui, entra a figura do comandante. Este representa a tensão vivida pela modernidade, pois, os personagens que vem a ameaçar representam elementos trazidos pelo próprio mundo moderno. Símbolo da modernidade juntamente ao seu Zepelim, ele aparece como força devastadora, que civiliza e barbariza ao mesmo tempo. O comandante é a contradição da civilização moderna. É cultura e barbárie20. Percebe-se

então,

que

as

vozes

dos

personagens

são

claramente

hierarquizadas, na tentativa de criar a ideia de superioridade de um personagem a outro. Todos os personagens falam, representam seu poder de voz de alguma maneira. O comandante ao mudar de ideia, a cidade ao jogar pedras em Geni, as instituições sociais ao implorar sua misericórdia. Todas as vozes são ouvidas, exceto a de Geni. Esta é construída a partir da supressão de suas vontades, de maneira que é conduzida na história sempre pela vontade de um outro, nunca se impõe plenamente, permanece nadificada. É o silêncio, então, o principal elemento da estratégia de refletir a opressão no oprimido. É o teatro do mundo por excelência.

Geni e o Zepelim, diferente do discurso que se encontra em Bárbara (1973), é uma música descorporeificada, porque canta um sujeito diferente daquilo que diz a peça teatral. Não há descrição do corpo, este não é adjetivado com a pretensão de não ser visto. Ele existe na música (o seu corpo é dos errantes), mas só como elemento de entrega, aquilo que se dá. Os personagens são descritos, em grande medida, a partir de um olhar distanciado. Aqui, corpo e discurso não se conectam,

20

Ver BENJAMIN, Walter. Libro de los pasajes. Madrid: Ediciones Akal, 2005.

como se a materialidade do corpo (peça) viesse descontruir uma imagem montada pelas palavras (canção). É uma obra aberta a figurações, pois a leitura da música e a criação de relações imagéticas são particulares, individuais. Cada observador imaginará uma materialidade para personagem, que não é delimitada pela música; é onde visão e imaginação de desconectam para fulgurar um céu aberto, onde se desenharão sempre novas constelações. Geni é uma totalidade eternamente incompleta. Além disso, a canção aparece com um discurso diferenciado sobre a homossexualidade em relação à Bárbara, pois Geni e o Zepelim vive a quarta fase da censura, já no início da abertura política, quando a censura teatral encontra-se mais descentralizada21. A corporeidade crua de Bárbara que ataca frontalmente a censura, não aparece aqui. A prostituta recusa-se a deitar-se com o comandante que representa alguém que está acima dela, é o nobre que cheira a brilho e a cobre. O personagem é prostituta, mas só se entrega aos seus iguais, entre os que não têm mais nada. Geni vive entre os desvalidos e limita-se a isso, ao ponto de só fazer sexo com eles. Mesmo sem vergonha, pode ter consciência de viver como os porcos22. Ao entregar-se apenas aos seus iguais, dando-se e não propriamente se vendendo, Geni vem quebrar o modelo esperado da prostituta. Esta não mercantiliza o corpo, doa-o. Foge do padrão da prostituta moderna: vamos participar dessa evolução, vamos todas entrar na linha de produção, vamos abandonar o sexo artesanal, vamos todas amar em escala industrial. 23 Existe nessa canção uma qualidade de história processual que se desfaz no final. A música é construída em fases, pedaços que vão se desdobrando em uma ordem cronológica, no sentido de que a canção vai caminhando em direção a um desfecho. A passagem do tempo é explícita em sua construção. Tijolo por tijolo num

21

Garcia (2008) divide a censura em cinco fases. Na primeira (1964 a 1968) destaca-se a censura as peças teatrais; a segunda, até os anos 1970, muda-se o foco da moralidade para a questão política; na terceira fase (primeira metade dos anos 70) criam-se normas censórias como forma dar efetividade a essa censura; na quarta fase inicia-se a adequação ao processo de abertura política; entre 1981 e 1985, retoma-se a atividade censória. 22 BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989. ____. O erotismo. Lisboa: Moraes, [s/d]. 23 Referência à canção Ópera, que compõe o álbum da peça Ópera do Malandro, 1978.

desenho lógico24. Contudo, o final da história vem quebrar esse tempo processual, esse tempo que exige mudança. Ao afirmar na última estrofe que a cidade em cantoria não deixou ela dormir, Chico explicita o caráter trágico da canção, pois aqui retoma-se o ciclo, como se para Geni, o tempo não tivesse passado. A tragicidade presente

no

discurso

homoerótico

buarqueano

está

na

não-mudança.

A

permanência da opressão social sobre Geni nadifica seu heroísmo; vive e permanece no realismo dos fracos. É o tempo cíclico da poesia que serve como mecanismo de sublimação de um final feliz e projeção de um final infeliz, de um eterno retorno. Estabelece o não-progresso da cidade, que permanece com o mesmo discurso conservador, dá a ideia da eternidade do sofrimento de Geni, no sentido de que o ciclo sempre retornará. A cidade nunca a deixará dormir. 4. Mar e Lua: uma tragédia festiva “Amavam o amor proibido Pois hoje é sabido, todo mundo conta Que uma andava tonta, grávida de lua E outra andava nua, ávida de mar.” (Chico Buarque – Mar e Lua)

Baseada numa tragédia relatada por uma crônica jornalística, Mar e Lua integra o álbum Vida de 1980, disco marcado pelas suas reflexões existencialistas, proposta iniciada já no disco anterior Meus Caros Amigos. O disco é produzido em uma fase da obra buarqueana em que prevaleceram as discussões humanísticas e a preocupação com a perfeição estética e poética. Os delírios da paixão ausente vivida intensamente e o amor proibido caminham paralelamente em Mar e Lua e Eu Te Amo. As canções que contrariavam a censura e a repressão em discos como Chico Buarque e Chico Canta, dão lugar as discussões existencialistas de canções como Bye Bye Brasil, que aborda a saudade relacionada ao exílio na Itália Revelando a maturidade do compositor na sintonia entre imagem e melodia, Mar e Lua reflete a capacidade de Chico Buarque de tratar da realidade de maneiras tão poéticas, modificando a partir da poesia o realismo cru do mundo real. Tratando de um acontecimento jornalístico, Chico cria um mundo lúdico, onírico onde faz-se marcadas sua subjetividade e criatividades de poeta. O autor parte da realidade e 24

Referência à música Construção de Chico Buarque de Hollanda, que compõe o álbum Construção, 1971.

constrói um universo ficcional, sobre o qual ele tem domínio, um universo que lhe pertence, no qual suas interpretações são explicitadas para o observador. Retomando Michel de Certeau25, esse discurso criado por Chico Buarque é lugar de retomada dos afetos, no qual vem à tona sua sensibilidade, é onde o olho do poeta se mostra, onde a ficção une-se a vida. O olhar colorido da poesia tem lugar em Mar e Lua. O poeta se faz numa relação entre cobrir-se e descobrir-se. Ao compor, o poeta se despe, deixa a mostra seus devaneios, suas subjetividades, vem à tona uma intimidade, particularidade que até então só é conhecida pelo próprio poeta, de maneira que suas interpretações materializadas na poesia são desenhadas a partir de suas emoções, sensibilidades que contornam o fazer poético e se iluminam para o público, se despem da intimidade. É o deslocamento de espaço, do privado ao público. E, ao compor, o poeta assume um outro eu, cobre-se, veste-se de uma identidade que o assume durante o fazer poético. Descobrir-se aqui, assume duas espessuras significativas. Ao mesmo tempo em que o poeta se descobre de sua intimidade, este também encontra em si um novo eu, uma nova identidade que habitava seu inconsciente, descobre uma face de si que vem a tona no fazer poético. Descobrir, portanto, como o despir e a descoberta. A poesia é, assim, a nudez da imaginação. Em Mar e Lua cria-se um universo no qual Chico Buarque revela um olhar sobre a realidade perpassado pelo subjetivo, ele se dispõe de um outro eu que o habita para construir perfis femininos que transgridem os paradigmas sociais. Assume uma feminilidade para cantá-la questionando o próprio mundo reservado as mulheres, é uma identidade que assume o poeta para questionar a si mesma, criando-se uma dialética entre a mulher em Chico e aquela que este pretende questionar. É Imagem que critica a imagem. Dividida em três adjetivos principais, a música nomeia o amor vivido pelas mulheres como “urgente”, “serenado” e “proibido”, sendo este último como àquele que vem qualificar o amor já realizado, uma vez que mesmo o amor urgente e serenado foi desde sempre limitado pelas proibições, a qualidade de amor proibido 25

Ver Ver CERTEAU, Michel. Uma estilística dos afetos. IN:____. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

prevalece sobre as outras (FONTES, 2003). E foram ficando marcadas, ouvindo risadas, sentindo arrepios. A canção é ambientada entre espaços antitéticos: a natureza e a cidade. Amaram o amor urgente. As bocas salgadas pela maresia, as costas lanhadas pela tempestade naquela cidade distante do mar. Sendo a natureza como representação do amor natural entre as mulheres, este aparece como o elemento transgressor da cidade que nega a natureza, a cidade distante do mar, que não tem luar. A cidade que nega mar e lua26. Ao amar nesta cidade, as personagens (mar e lua) surgem como elemento de questionamento, a natureza expulsa pela cidade é o amor oprimido pelo preconceito, pela moralidade que exclui a mulher e suas naturezas, seu corpo e sexualidade. Além de representarem as personagens, o mar e a lua são os espaços naturais nos quais não existem limites, no sentido de que a lua é onipresente, pode ser vista de qualquer lugar, e o mar está presente em todos os continentes, é o elemento da natureza que não se consegue controlar. Não existem, portanto, limites geográficos que possam ser impostos ao mar e a lua, estes representam o amor que é, por excelência, o sentimento comum a todos, que leva as paixões incessantes, o que não tem censura nem nunca terá27. O discurso sobre a homoafetividade de Mar e Lua não enquadra-se mais na tragédia predestinada às relações homoeróticas descritas por Chico Buarque em Bárbara e Geni e o Zepelim. Em ambas as músicas, a história descrita é sempre finalizada pela tragédia, sendo o elemento trágico o reflexo da opressão sofrida pelas mulheres e homossexuais. Existe tragédia em Mar e Lua, mas esta é construída a partir de um olhar que não pretende a finalização absoluta do amor, mas sim, como uma forma de atingir a plenitude desse amor, as personagens rendem-se como forma de unirem-se uma a outra, o amor que nega a vida e se faz na morte onde o sofrimento assume a coadjuvância. E foram correnteza abaixo, rolando no leito, engolindo água, boiando com as algas, arrastando folhas, carregando flores e a se desmanchar.

26

Ver FONTES. M.H.S. Sem Fantasia: masculino-feminino em Chico Buarque. 2. Ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2003. 27 Referência à música O que será (à flor da pele) de Chico Buarque de Hollanda composta para a peça Dona Flor e Seus Dois Maridos e que compõe o álbum Meus Caros Amigos, 1976.

Esse novo discurso é reflexo de um Chico Buarque que vive uma certa liberdade de expressão trazida pelo início da abertura política, que viu suas peças serem finalmente encenadas;28 Chico, ao compor Mar e Lua, deixa explícito no fim da canção a esperança que a realidade lhe inspirava, uma sopro de liberdade que perpassa a composição. Mais uma vez a realidade interfere no fazer poético buarqueano. Ao finalizar a canção, Chico descreve as personagens unindo-se ao mar. Simulando o som de um rio (virando peixes, virando conchas, virando seixos), criase a ideia de que as moças, ao cometerem suicídios juntas, transformam-se em mar. Pensando em termos estéticos, a relação imagética que há entre o mar e a lua é, de acordo com seus movimentos tendenciais, estes unem-se no fim do dia, encontramse e criam uma ilusão de infinito. O mar é uma extensão do céu, e é o céu o espaço que abriga a lua por excelência. Ao unir-se mar e lua e criar-se uma noção de infinito, encaixa-se o destino das personagens da canção, estas unem-se para alcançar a plenitude do seu amor, o infinito, tendo o infinito sempre caráter de eterno. Porém, o mar e a lua só unem-se no plano da imaginação, estes sentem uma atração forte entre si, mas nunca conseguem ficar juntos realmente. No plano do real, o mar e a lua interferem em suas ações, mas nunca sua atração se concretiza. O infinito só existe no não real. E é isso que as personagens buscam, a fuga da realidade, a eternidade que lhes levará a outra dimensão, do eterno, do amor pleno. Ao unirem-se ao mar, estas se fazem numa realidade que não mais atende as limitações, passam a viver num mundo onde prevalece o eterno. E para questionar porque exatamente esses elementos da natureza, e não outros quaisquer, são escolhidos para representar a mulher, penso: não foram ambos explorados pelo homem?29

5. Conclusão Após a abertura, “Calabar”, peça proibida na primeira metade da década de 1970, foi liberada e encenada, em 1980. A Ópera do Malandro, escrita em 1978, chega aos palcos e discos sem cortes. 29 Aqui, faz-se alusão à exploração do mar pelas Grandes Navegações e a primeira ida do homem a lua. 28

“E quem garante que a História é carroça abandonada, Numa beira de estrada ou numa estação inglória. A História é um carro alegre, cheia de um povo contente Que atropela indiferente todo aquele que a negue” (Chico Buarque e Milton NascimentoCanción por la unidad de Latino America) Dentro do que foi analisado, o discurso homoerótico em Chico Buarque é mais uma manifestação do poder da canção e da poesia. A criação de perfis femininos que questionem o conservadorismo, a opressão, o patriarcado é dar oportunidade das mulheres aparecem na história. Música é discurso, é testemunho histórico. As canções de autores como Chico Buarque tem a importância de imprimir na história representações de um contexto histórico, possibilitando que estas sejam ouvidas ao longo do tempo como retrato de uma dada temporalidade, como resultado de um cenário onde reproduzia-se determinados discursos. A canção de Chico carrega espessura histórica. Sempre que se volta ao momento em que elas foram produzidas, é possível enxerga-las como fonte histórica para análise do cenário musical, estético, político e social da Ditadura Militar brasileira; como Chico foi afetado pela censura, como essa mudou ao longo do tempo, e como essa mudança pode ser percebida na obra buarqueana. A mudança no discurso homoerótico feminino nas canções analisadas é resultado também da mudança no contexto histórico em que estas foram produzidas; Chico acompanha essa mudança e as imprime em sua obra, consciente ou inconscientemente. Os discursos que perpetuam na sociedade atual acerca das questões de gênero e sexualidade são fundamentalmente anacrônicos, na medida em que percebem-se neles cada vez mais as sobrevivências do passado retratado por Chico Buarque. O passado está inscrito numa pulsação entre luz e sombra 30. Este aparece como lampejos que se mostram no presente e que são percebidos a partir de olhares também do presente. Ao enxergar as continuidades e rupturas do discurso que oprime a sexualidade feminina, percebe-se a historicidade das limitações 30

Ver DIDI-HUBERMAN, Georges. A sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte:

UFMG, 2011.

impostas às mulheres e como estas limitações são perpetuadas, tanto pelos discursos institucionais, como pelos sujeitos que escrevem a história. A história carrega o fardo do passado opressor da Ditadura, mas ao mesmo tempo, exige essencialmente a mudança. A história está sempre criando, se modificando, é uma relação entre fluxos e fixos, continuidades e rupturas. É um trem riscando trilhos, abrindo novos espaços31. Reviver a obra de Chico Buarque é também emergir a possibilidade de se contar uma nova história, e contar de uma outra forma, considerando e elevando a mulher como sujeito de si e da história. Estabelecer uma dialética entre o outrora e o agora é condição para a crítica ao lugar social da mulher no presente. O passado deve ser revisto com a lucidez de quem vive o presente, de quem mergulha na história e usa-a como ferramenta para questionar o hoje, com a pretensão de modificar não só o presente, mas o futuro que se seguirá, para que a chama transgressora que existe na crítica e questionamentos possíveis a cada um de nós saia iluminando o cenário, saia incendiando o plenário, saia inventando outra trama. Referências Bibliográficas BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989. ____. O erotismo. Lisboa: Moraes, [s/d]. BENJAMIN, Walter. Libro de los pasajes. Madrid: Ediciones Akal, 2005. BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar – o elogio da traição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. CERTEAU, Michel. Uma estilística dos afetos. IN:____. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: UFMG, 2015. FERNANDES, Rinaldo. Chico Buarque do Garamond/Fundação Biblioteca Nacional, 2004.

Brasil.

Rio

de

Janeiro:

FONTES. M.H.S. Sem Fantasia: masculino-feminino em Chico Buarque. 2. Ed. Rio de Janeiro: Graphia, 2003.

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Referência à musica Canción por la unidad de Latino America de Chico Buarque de Hollanda e Milton Nascimento, que compõe o álbum Clube das Esquina 2, 1978.

HOLLANDA, C. B. de. Geni e o Zepelim. In: Ópera do Malandro. Rio de Janeiro: Polygram’Phillips, 1978/1979.

NUNES, Elzimar Fernanda. A reescrita da História em Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque a Ruy Guerra. 2002. 141 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Departamento de Teoria Literária e Literatura, Universidade de Brasília, Brasília. 2002. PAZ, Octávio. “Analogia y ironia”. In: Los hijos del limo. 2º ed. Barcelona. Seix Barral, 1974.

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