Sobre a escritura, o luto e a festa. Prefácio para \"Viagens Textuais\", de Léa Perez

May 21, 2017 | Autor: Bruno Reinhardt | Categoria: Anthropology, Antropología, Festa, Linguagem, Escritura, Luto e morte, Antropologia, Luto e morte, Antropologia
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Sobre a escritura, o luto e a festa Bruno Mafra Ney Reinhardt1

Relendo a Léa após alguns anos de separação física, vejo que nada mudou, e esse pequeno prólogo refere-se àquilo que não mudou (ou, em um registro mais formal, não se diferenciou em seu modo de diferenciar). Refiro-me a um traço que cruza todos os textos desta compilação e que me deixou com a sensação de volta ao lar: uma relação cuidadosa mas passional com as práticas mais fundamentais da vida acadêmica, a leitura e a escritura. Nesse sentido, ler Viagens textuais foi para mim uma viagem de volta aos meus tempos de aluno da Universidade Federal de Minas Gerais (Ufmg), onde durante aulas e grupos de leitura e pesquisa organizados por Léa passávamos por uma pedagogia silenciosa, onde (para ficar com o Bateson citado por ela) aprendíamos a aprender. Um dos segredos de qualquer deuteroaprendizagem é a capacidade de ensinar sem trazer de modo explícito e reflexivo para o primeiro plano (como um modelo formal ou regras de conduta) aquilo que está sendo em última instância transmitido ao aprendiz. Trata-se, portanto, de um ensinar incorporado no nível da prática e do estilo, onde forma e conteúdo são indissociáveis. No bojo do fazer-ensinar, ao qual fui silenciosamente atraído, está a importância de se cultivar uma prática de leitura a um só tempo rigorosa e generosa. Sob esse ponto de vista, ler é sempre entrar respeitosamente em um cânone, em uma história do discurso, ao invés de buscar a inovação a qualquer custo, muitas vezes através da inflação estética de nossas ideias, um dos hábitos mais irritantes na academia contemporânea. De forma alguma, esse modo de ler significa não simplesmente corroborar os “antigos”, mas sim submetê-los a uma 1 Doutor em Antropologia pela Universidade da Califórnia, em Berkeley (2013). Pós-doutorado na Utrecht University (2014).

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recepção generativa, grávida, um “pensar através” do texto sempre com um pé no contemporâneo, e logo transformar a leitura em mais escritura (LéviStrauss, 1989: 15-49). Vejo nesse ensinamento silencioso rastros do mestre Marcel Mauss. A própria biografia de Mauss demonstra que, apesar de a antropologia moderna ser frequentemente definida pelo uso de um método particular – o trabalho de campo etnográfico – isso de modo algum resume o que é nossa disciplina, especialmente se entendemos “disciplina” aqui não como uma área institucional do saber acadêmico, mas como uma educação sentimental. Mauss desenvolveu um pensamento etnográfico totalmente baseado na leitura-escritura, na relação com a alteridade já textualizada, assim como em sua atividade docente. Com isso, ele revolucionou o pensamento ocidental através de um talento até hoje incomparável de ler nas entrelinhas das palavras e das coisas. Permanecendo nessa tradição, considero os textos que se seguem uma etnografia sobre a vida dos textos, guiada por um determinado estilo de escritura dotado de uma ética e de uma temporalidade específicas: o que eu chamaria de uma forma festiva de luto. A relação entre morte e escritura é quase autoevidente e, como argumenta Jacques Derrida, um dos acompanhantes da viagem que se segue, esse é um dos temas centrais sobre o qual se desenrola o pensamento ocidental. Convencionalmente, quando escrevemos algo, produzimos um artefato cuja circulação sobrevive à ausência tanto do autor quanto do leitor ideal e/ou concreto para o qual o texto foi designado. Escreve-se sempre “para a posteridade” e a escrita é frequentemente tida como uma tecnologia fundamental para a manutenção de uma cultura “viva”, ou seja, transmitida através das gerações. Mas, como observa Derrida, de Platão a Saussure e além, a escritura também aparece nas narrativas canônicas do Ocidente como “a letra morta, aquilo que transporta a morte. Ela exaure a vida” (1973: 17). Nesse sentido, a palavra escrita é no fundo um artifício, um suplemento necessário para a reverberação da voz e da fala no tempo, essas, sim, autênticas e vivas. É fundamentalmente dentro desta tensão que nasce a antropologia moderna, enquanto uma disciplina (aqui no sentido de campo institucionalizado de discurso) responsável por salvar a “cultura oral” dos destroços

Léa Freitas Perez

deixados pela expansão colonial do Ocidente. Assim, o antropólogo efetua a função heroica de produtor de posteridades alheias, que pode assumir a forma de artefatos guardados em museus ou textos arquivados em bibliotecas. Nessa fase heroica, ele (e raras vezes ela) apropria-se da autoridade do xamã, do ancião, do griot, de narrar a história dos “sem história”. Assim, se instala no nível da escrita etnográfica um estilo nostálgico, que James Clifford chama de “pastoral”: a alegoria do resgate. Mas, resgatamos apenas destroços, fragmentos, como a máscara africana que descansa nas prateleiras de um velho museu colonial europeu, que olhamos admirados, tentando inflá-la de forma metonímica em um modo de vida ou “cultura”, a vida que ela esconde ou que dela se esvaiu. De fato, a sombra da morte nunca nos deixa e, como destacam Alain Resnais, Chris Marker e Ghislain Cloquet na abertura de seu brilhante documentário As estátuas também morrem (1953): “Quando os homens morrem, eles entram na história. Quando as estátuas morrem, elas entram na arte. Essa botânica da morte é o que chamamos de cultura”. Como Léa e eu exploramos no capítulo quatro, Derrida provincializa a relação transparente entre voz e presença que subjaz à alegoria do resgate. Sem replicar nosso argumento, quero apenas destacar que, para Derrida, estivemos sempre mortos, já que para ele a própria voz e sua aparente presença-a-si esconde um espaçamento, uma diferença, o ocultamento de uma luta que ele chama de arché-escritura. Como Derrida demonstra em um trabalho posterior (1988), o que faz uma linguagem não é nem a existência de um código (langue) transcendental, nem a presença-a-si de um sujeito que sopra sentido imaterial em significantes materiais, mas sim uma capacidade que associamos mais comumente à linguagem escrita: a possibilidade de uma enunciação ser citada, uma propriedade que ele chama de citacionalidade. Sob essa ótica, o que faz a escrita fonética ou a escrita carnal do grafismo corporal serem uma linguagem (ou uma escritura) é o seu poder comum de referir-se a uma história de discurso através da citação, uma prática performativa de evocação do passado que é desde sempre a sua atualização, aquilo que no fundo (nada mais, nada menos) qualquer “tradição” é. A citação, portanto, não é viva nem morta, ela é um fantasma, um ser liminal, um constante trazer à vida do que era morto, um processo de fazer

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de uma presença ausente uma ausência presente. Como nos lembra Ricardo Reis (ou Fernando Pessoa): “A lembrança esquece, Mortos, inda morremos” (2006). Mas também ressuscitamos, como faz Mauss em seus ensaios sobre a dádiva, o sacrifício, as técnicas corporais, e muitos outros, onde ele propõe, através de uma escrita dadivosa, um novo modo de andar nos destroços da modernidade: ao invés de meramente resgatar fragmentos pertencentes a outros tempos, trazê-los à vida, ao centro da vida do ocidente, uma estratégia transgressora. O fato de que os mortos podem ser muito mais vivos do que os vivos – no sentido de poderosos, efetivos e afetivos, sejam eles gloriosos, amorosos, ou assustadores – é conhecimento comum de várias tradições, e as levou a desenvolver formas específicas de luto, de apaziguamento, de celebração, em suma, de viver-com os mortos-fantasmas. As chamadas religiões do Livro, a psicanálise, o espiritismo, os cultos afro-brasileiros, os cultos africanos aos ancestrais, o xamanismo, e muitos outros modos de vida contêm, de forma implícita e explícita, noções e práticas de cuidado-de-si relativas aos mortos, à sua memória, à sua capacidade de agência no mundo e no sujeito. Em comparação, nós, modernos seculares, demonstramos aqui uma evidente deficiência. Não sabemos morrer, uma arte que qualquer camponês medieval (o cliché máximo da “era das trevas”, esse monstro criado pelo Iluminismo) dominava com certa destreza. Em parte, não sabemos morrer porque o que há de mais universal, a base sobre a qual poderíamos buscar uma linguagem, ou seja, uma citacionalidade englobante, a morte, tenha se tornado um assunto “privado” e mesmo tabu (Ariès, 2003). Em consequência, também perdemos as artes do luto, como demonstra a impopularidade mesmo da psicanálise (essa fantasmagoria secular) no mundo contemporâneo. Ou resgatamos ou esquecemos. Não sabemos mais viver dentre fantasmas. É aqui que eu vejo uma certa abertura ética e civilizatória na escritura, ou melhor, em uma certa escritura, assim como em outras artes humanísticas, que podem se tornar um espaço de luto, não de resgate. Em um de seus vários textos sobre esse tema, escrito como um memorial ao seu colega e amigo Louis Marin, Derrida evoca o tratado do renascentista Leon Battista Alberti “Sobre a Pintura” (De Pictura) tendo em vista destacar o

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vínculo inescapável entre o luto, a arte, e a amizade. De acordo com Alberti, a pintura “contém uma força absolutamente divina [in se vim admo dum divinam habet] que não apenas faz homens ausentes presentes, assim como o faz a amizade, mas mostra os mortos aos vivos, para que mesmo após vários séculos [defunctus long post saecula viventi bus exhibeat] eles possam ser reconhecidos com grande prazer e através de grande admiração pelo pintor” (apud Derrida, 1996: 184). A passagem é brilhante em vários sentidos. Destaco apenas dois. Primeiro, pelo verdadeiro cemitério que essa cadeia de citações guarda: os mortos-tema e o morto-autor da pintura a que se refere Alberti; Alberti ele mesmo, que nos traz a sua sapiência de outros tempos; Marin, cuja morte moveu Derrida a essa reflexão (ela mesma um luto, já que para Derrida, não há como falar sobre o luto sem habitá-lo); e hoje, Derrida ele mesmo, que nos deixou em 2004. A escritura e a citação nos permite adentrar nesse cemitério e aprender sobre e através da força do luto, esse conector que atravessa os tempos. Segundo, esse cemitério textual torna-se vivo e fantasmagórico ao se recusar a ser reduzido a uma alegoria do resgate, abrindo-se como uma série de atos de amizade, tema que marca tanto a analogia-chave de Alberti quanto o memorial de Derrida. Aprendemos, através desse luto comum, que o mundo dos vivos, dos que restam, desenrola-se ele mesmo através de constantes micro-lutos, a sua mais explícita forma de atualização sendo o afeto cotidiano que temos por amigos que, ainda vivos, nos faltam, fazendo-os assim presenças ausentes, mortos-vivos. É essa prática de dar vida ao passado (repetível ou não), como uma prática de amizade que chamei logo acima de luto festivo, e foi nessa direção que me moveu a leitura de Viagens textuais. O novo livro de Léa Perez é pleno de vitalidade, dono de uma graça quase infantil, que satura o texto no nível da forma, mas que também aparece como tema, sobretudo em seu delicioso capítulo final. Lá temos o Jesuscriança de Pessoa, a evocação saudosa das cenas da infância e a presença constante da parceira de viagem e de vida (como distingui-las?), Helena, tudo isso ao longo de um brilhante devaneio azul sobre o Auto da história de Deus, de Gil Vicente. Lendo este livro e lendo o estilo que orienta seus atos de escritura, aprendemos que as bibliografias não são cemitérios de ideias esperando ser replicadas, criticadas ou emendadas, são vozes que

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podem ser invocadas através da festa da escritura, formando uma orquestra fantasma. Escreve-se com, e o que se segue são viagens fortemente intertextuais, cujo tema central são outros textos: Darcy Ribeiro, Pierre Sanchis, Derrida e Clifford, Weber e a Escola de Chicago, Lévi-Strauss, Vattimo e Gil Vicente. Nesse sentido, o livro é um conjunto de citações e de glosas, produzidas com o mesmo cuidado ao qual pude testemunhar no passado e cuja arte pude começar a absorver nos meus tempos de aprendiz (que ainda sou). Mas também se escreve através, convidando novos autores para o cânone antropológico (Derrida, Vattimo) ou demonstrando a atualidade de velhas narrativas (Lévi-Strauss, Gil Vicente e outros). Com Viagens textuais continuamos a aprender, sobre textos, e a aprender a aprender, sobre como tratá-los, cuidá-los, e fazê-los nossos textos. Assim, a “letra morta” da escritura se transforma em uma festa, uma celebração que demonstra que escrevemos não só porque morremos, mas porque vivemos, nós, os próximos, os distantes, e os que já se foram.

Referências ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. DERRIDA, Jacques. Of grammatology. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973. DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Evanston: Northwestern University Press, 1988. DERRIDA, Jacques. By force of mourning. Critical inquiry, 22: 171–192, 1996. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. PESSOA, Fernando. “Mortos, ainda morremos”. In: Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. Obra Poética III. São Paulo: L&PM, 2006. Filme RESNAIS, Alain; MARKER, Chris; CLOQUET, Ghislain (dirs). Les statues meurent aussi. Paris: Présence Africaine Editions, 2012 [1953].

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