Sobre a loucura e sobre o social: práticas psiquiátricas contemporâneas e suas (re)configurações

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Sobre a loucura e sobre o social: práticas psiquiátricas contemporâneas e suas (re)configurações Fernando José Ciello1 RESUMO: As reflexões deste trabalho tem origem em pesquisa de campo realizada entre 2011 e 2013 com sujeitos de uma clínica-dia no sul do Brasil e buscam uma abordagem antropológica das práticas terapêuticas no campo da saúde mental, que apesar de percebidas como resocializadoras e promotoras de direitos humanos ainda engendram processos de medicalização e normalização. Tomam-se como eixos de análise duas características do movimento de Reforma Psiquiátrica: 1) a relativização do(s) conceito(s) de doença e loucura e 2) a aproximação de uma perspectiva ‘social’ de tratamento. Estas características se relacionam com uma série de processos, dentre eles a constante transformação do tratamento nas últimas décadas, que acompanha a também reforma da medicina e da psicologia com relação a abordagem da loucura; e, ligado a isto, a formação de um “campo” da saúde mental, onde múltiplos saberes apareceriam ao lado da psiquiatria como forma de aproximar o tratamento de um paradigma de ressocialização. O argumento que será perseguido é o de que neste contexto de tratamento busca-se que os/as pacientes assumam determinadas posições e agências vistas como saudáveis para a vida em sociedade, tais como a autonomia, a espontaneidade, a felicidade, o auto-cuidado, etc. Estes aspectos estão no centro das práticas de tratamento observadas e são importantes na definição de agendas políticas e terapêuticas no cotidiano da instituição de saúde pesquisada, pois conferem legitimidade à busca de terapias alternativas; refletem uma nova roupagem para a medicina psiquiátrica; e veiculam perspectivas de identidade, noção de pessoa, individualidade, etc. Pretende-se argumentar, assim, que as terapias em questão tem como objetivo a reelaboração do que os pacientes concebem como trajetória de vida ou como opiniões acertadas (ou não) em esferas decisórias individuais, o que conduz, por um lado, a novas formas de normalização e, por outro, a uma necessidade de reflexão crítica em torno das práticas da reforma psiquiátrica, objetivo ao qual, enfim, se endereça este artigo. Palavras-chave: reforma psiquiátrica; (campo da) saúde mental; loucura; sociedade.

1. Questões iniciais Praticamente todos os dias, a partir das oito horas da manhã, um grupo significativo de pessoas se encontra em uma casa na região central de uma das capitais do sul do Brasil para participar de atividades e programas de tratamento em saúde mental. A partir deste horário começa seus trabalhos diários, para encerrá-los por volta das cinco da tarde, o espaço

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Doutorando em Antropologia Social (TRANSES/PPGAS/UFSC).

conhecido como clínica-dia2, um serviço de saúde privado para tratamento de sujeitos considerados portadores de transtornos mentais. A clínica faz parte de um grupo de outras unidades de um Hospital de Psiquiatria que, entre outras coisas, presta atendimentos de emergência e ambulatoriais na área de saúde mental. Várias das pessoas que chegam ao hospital estão em momentos que entendem como de crise e são atendidas neste serviço. Em muitos casos a consulta ambulatorial conduz ao internamento do paciente para acompanhamento no período de crise e em outros inicia uma trajetória pelas unidades de atendimento (hospitais-dia, CAPS, clínica-dia) existentes na cidade, pertencentes ou não ao Hospital em questão. A experiência da qual gostaria de falar neste ensaio emergiu de meu contato com a unidade clínica-dia deste hospital de psiquiatria. As pessoas que vivenciam a clínica vêm de distintos itinerários terapêuticos, psiquiátricos ou não: um grande número delas encontram a clínica mediados por iniciativas familiares; outras a frequentam assiduamente em função de tratamentos que já se prolongam por muitas décadas dadas as particularidades atuais do atendimento em saúde mental; muitas ainda vivem experiências específicas em suas vidas e acabam internadas ou atendidas pela instituição, o que as conduziu para etapas outras de tratamento; entre outros motivos. Seja qual for a trajetória ou o itinerário específico de cada sujeito que frequenta diariamente a clínica-dia, o que eles tem em comum é a experiência do enquadramento na categoria do sofrimento psíquico, ou ainda, da participação numa rede de pertencimentos e discursos que trata basicamente deste algo chamado de “saúde mental”. Seguindo as pistas do argumento de Maluf (2010) o termo “saúde mental” é, também aqui, utilizado como forma de buscar descrever com mais propriedade o universo empírico onde a pesquisa se realizou. Comentando sua própria pesquisa a autora afirma que a utilização contribui para a contextualização das práticas e representações envolvendo sofrimento psíquico, experiência que vai além da conceituação habitual da doença dos nervos e também traz a problemática das políticas públicas e programas formulados em torno de um ‘campo da saúde mental’(p. 53-54). Este universo da saúde mental se organiza em consonância com a proposta de reforma psiquiátrica que vêm se desenvolvendo ao longo das últimas três ou quatro décadas e que tem como mote a desinstitucionalização, por um lado, e por outro, a criação de serviços substitutivos que representem uma nova “ideologia” do tratamento para sujeitos em sofrimento psíquico. As políticas públicas de saúde mental e o conjunto de ações governamentais na direção da atenção psicossocial e do desenvolvimento de um atendimento 2

O espaço em questão não será identificado ao longo do texto por meio do seu nome institucional. Quando o termo clinicadia aparecer, portanto, ele busca nomear mais a experiência de campo específica com uma clinica-dia (da qual se está partindo aqui) do que genericamente os serviços terapêuticos que levam o mesmo nome na atualidade.

mais humano, complexo terapeuticamente, holístico, são agendas que aparecem de maneira contundente nos discursos dos agentes do campo da saúde mental e nas políticas públicas desta esfera. Na primeira sessão do trabalho gostaria de oferecer algumas discussões sobre o cruzamento entre saúde mental e reforma psiquiátrica pensando especialmente a partir de meu campo de pesquisa na clínica-dia e na formulação de um conjunto de “saberes” que torna este campo empírico uma realidade que agrega e reconfigura constantemente diversas modalidades de tratamento de saúde, de origens religiosas, da “nova era”, de origem biomédica. Na segunda sessão gostaria de analisar as implicações destes distintos saberes na criação de um discurso mais geral sobre a vida em sociedade e sobre uma concepção de “social” própria deste universo da saúde mental, que remete a temas recorrentes em teoria antropológica sobre noção de pessoa e reflexões sobre a noção de sujeito.

2. Reforma(s) psiquiátrica(s) e complexidades terapêuticas Após chegarem a clínica-dia no período da manhã – período reservado para o grupo chamado de álcool e drogas (AD)3 – nosso grupo tem uma série de atividades e deveres a cumprir, a começar pelos horários rígidos, dos quais só se pode escapar com autorização de algum membro da equipe terapêutica ou ao alcançar uma fase de tratamento onde já se está “mais fora” do que dentro, numa fase chamada de “integração”. Efetivamente, ao longo da estadia neste espaço, a participação das atividades em horários flexíveis é um direito ratificado pela equipe em resposta somente a uma melhora do(a) paciente. Diferente do internamento integral onde a vigilância se mostraria mais constante sobre a vida pessoal destes sujeitos, na clínica-dia, isto é, num momento onde a crise já não mais seria uma ameaça para o grupo, espera-se que cada membro desenvolva autonomia, espontaneidade e interesse na vivencia cotidiana. Assim, logo que chegam há, na parte dos fundos da casa, numa espécie de edícula, um desjejum que os espera, com pães, doces, café, leite. De imediato todos são convocados para assumir posturas que garantam a boa convivência na clínica, mantendo o espaço do café da manhã limpo e, após a alimentação, empreendendo a entrega de xícaras e utensílios do café para a pessoa responsável pela cozinha. Por quase todo o período em que lá estive, entre as nove da manhã e as onze aproximadamente, nenhuma outra atividade era realizada e a experiência do “não fazer nada” indicava À equipe que as/os pacientes não estavam conseguindo dar alguma utilidade para sua 3

No período da tarde, a partir do meio-dia, se inicia o horário do grupo denominado Transtorno Mental (TM).

presença na clínica-dia. De um lado a proposta do espaço clínica-dia é a de que os sujeitos sejam reintegrados na “vida social” ou “em comunidade”, que desenvolvam novamente habilidades sociais que os permitam viver de maneira saudável experiências de trabalho, família, faculdade, relacionamentos, festas e, de modo geral, toda a grande variedade de experiências sociais que podem acontecer na vida de alguém: desemprego, mortes, a própria doença, e assim por diante. Portanto, estar na clínica-dia com outras pessoas e, logicamente, com outras pessoas que também carecem de “relações sociais” seria, em si mesmo, uma atividade terapêutica da perspectiva da saúde mental, pois a partir do encontro, uma mimetização das relações na vida real seria promovida. De outro lado, porém, há um grupo grande de pessoas que procuram (e pagam) por um espaço que acreditam que deve proporcionar o maior número de atividades para mantê-los “com a cabeça ocupada” ou para fazê-los sentirem-se “úteis” e efetivamente integrados numa comunidade. Desta tensão brotaria uma das formas através das quais a vida cotidiana se estabelece no espaço em que pesquisei. Antes de refletir mais a este respeito gostaria de escrever alguns parágrafos sobre a reforma psiquiátrica.

2.1. Reforma(s)

A reforma psiquiátrica é um componente importante do universo empírico da saúde mental, sendo provenientes dela quase que a integralidade das reivindicações e aspectos ideológicos que o campo da saúde mental irá assumir ao longo dos últimos trinta anos. De acordo com Birman e Costa (1994) a partir da segunda guerra mundial se inicia um conjunto de questionamentos em torno do campo da saúde que entre outros fatores tem como conteúdo uma agenda política marcada pela ideia de direitos humanos e pela renovação de programas de tratamento que envolvem os seres humanos. Uma série de propostas ou, efetivamente, reformas, passam a surgir a partir deste período por todo o mundo e tematizam aspectos diversos a respeito das modalidades de tratamento dos sujeitos em sofrimento psíquico. A partir disto não só a psiquiatria passará a ser repensada, mas um conjunto de outros saberes passará a fazer parte dos questionamentos em torno do cuidado dos sujeitos ditos loucos. Pelo menos quatro momentos de reforma podem ser descritos (AMARANTE, 1995; 2007; BIRMAN & COSTA, 1994): (I) psiquiatria institucional – voltada para o questionamento da instituição hospitalar e para a promoção de “comunidades terapêuticas” de auxilio para a ressocialização; (II) psiquiatria preventiva – relacionada ao desenvolvimento de ações que extrapolam o espaço institucional promovendo “saúde mental comunitária” ou

ações além da psiquiatria como saber único sobre a “doença mental”; (III) a antipsiquiatria – momento de negação da própria psiquiatria como uma forma de leitura do sofrimento psíquico, passando-se a entender que a loucura seria uma forma de denuncia das contradições sociais e um produto das relações entre sujeito e sociedade e não uma patologia enquanto tal; e, por fim, (IV) a chamada psiquiatria democrática, que é vista como uma síntese destes processos anteriores e que adotaria o fechamento das instituições hospitalares e a criação de serviços substitutivos como mote político e ideológico. Como se observa distintos elementos que constituíam a experiência do cuidado de sujeitos em sofrimento psíquico até então foram questionados e, no lugar deles, passaram a existir formas mais gerais de reflexão das próprias estruturas que constituíam aquela experiência. A reforma psiquiátrica, ou como sugere Fonseca et al, as reformas psiquiátricas (2007 apud Andrade & Maluf, 2014: 33), geram um conjunto heterogêneo de discursos, representações, atravessamentos políticos e sociais que se relacionam com a constituição de um campo da saúde mental. A ideia de campo aqui é sempre resgatada pelos agentes deste universo empírico como uma maneira de significar empreendimentos terapêuticos e práticas profissionais que tem a intenção de se relacionar com quadros de conhecimento que extrapolam a biomedicina, que defendem a multidisciplinaridade, o holismo e a humanização do tratamento psiquiátrico. Em minha experiência de campo com uma clínica privada, portanto pertencente a uma realidade econômica e institucional bastante particular, mas também em algumas incursões de campo em hospitais-dia e CAPS e, enfim, como já se noticia em várias publicações de pesquisas em serviços de atendimento em saúde mental (Venâncio, 1990; Monnerat, 2009; Maluf, 2010; Toniol, 2014; Carvalho, 2014; entre outros) há um grande número de práticas terapêuticas endereçadas ao desenvolvimento de reflexões sobre a subjetividade dos usuários dos serviços de saúde ou a provocar o questionamento das biografias pessoais em torno de elementos morais e subjetivos. Neste sentido, como aponta Maluf (2010), se pode falar em um deslocamento da experiência de sofrimento e aflição nas culturas urbanas contemporâneas para o campo da saúde em detrimento de outras esferas explicativas. O que há, simultaneamente, é um casamento entre

perspectivas biomédicas e perspectivas

complementares, dando uma roupagem muito específica para este deslocamento, que torna o campo da saúde mental não somente um universo atravessado pelas instabilidades políticas e econômicas do processo de fechamento dos hospitais, mas também um campo de profundos debates em torno das maneiras corretas de promover o tratamento de portadores de transtornos mentais.

2.2. Terapias e tensões

Retomando agora o início desta sessão estamos em condição de refletir melhor as tensões que atravessaram meu campo de pesquisa e observar em que medida esta complexidade do campo da saúde mental se materializa na realidade empírica da clínica-dia em que pesquisei. Por se tratar a saúde mental, portanto, de uma realidade altamente refletida em torno de múltiplos agenciamentos políticos e institucionais e de um conjunto de concepções terapêuticas capitaneadas pela reforma psiquiátrica, a clínica-dia – bem como outros espaços de tratamento psiquiátrico contemporâneos – carregam estes discursos e práticas de distintas maneiras. Ao questionar algum dos membros do grupo sobre o que pensam sobre saúde mental ou o que entendem pela sua participação naquele espaço de tratamento, um grande número de explicações pode surgir, desde uma explicação mais voltada aos padrões biomédicos tal como a ideia de que não existiria subjetividade na experiência da doença mental, mas tão somente desequilíbrios químicos que precisariam ser consertados; até a explicação de que a participação na clínica-dia é uma mostra de que se vive de maneira errada contemporaneamente, dando pouca atenção para os reais temas da existência humana: a felicidade, o amor, a liberdade, etc. Tanto uma explicação como a outra, polarizadas aqui para efeitos metodológicos, não representam perfeitamente os discursos com os quais convivi no período de campo. Mas há um continuum entre um e outro momento e entre eles um gradiente interessante de atravessamentos entre a experiência biomédica do transtorno mental e a experiência “alternativa” do transtorno mental. Convivem perfeitamente na clínica-dia explicações e experiências que congregam a utilização de medicamentos, a legitimidade química e biológica da doença, e a influencia de espíritos, do cotidiano atribulado da modernidade, a necessidade de adotar práticas de vida saudáveis, entre outras explicações. A questão para a qual gostaria de atrair atenção é a de que estas práticas todas são, não obstante, compreendidas dentro da rubrica saúde mental e é neste sentido que a categoria (‘nativa’) se torna altamente porosa e fluída nos contextos em que é utilizada, devendo ser compreendida num primeiro momento – me parece – a partir das agencias do sujeitos e da maneira com que cada grupo lida com ela. Sugeri em outro momento (Ciello, 2013) que é possível encontrar na clínica-dia três grandes grupos de terapias associadas a este complexo da saúde mental: terapias a partir da fala; terapias do corpo e terapias de religiosidade e auto-ajuda. Gostaria de abordar

brevemente o conjunto de terapias da fala para compor o quadro que busco aqui construir sobre o contexto pesquisado e sua relação com o campo da saúde mental. Todos que se encontram na clínica devem fazer alguns horários específicos de atendimento individual com psicoterapeuta e com psiquiatra, mas também devem participar nos demais horários de outras atividades desenvolvidas na clínica como é o caso destas atividades que mencionei. O que chamo lá de terapias da fala são aquelas atividades que envolvem a produção de reflexões em grupo por parte dos pacientes, mediadas por um terapeuta, que apresenta temas ou problemas para serem problematizados pelos participantes. Existem, assim, horários específicos nos quais os participantes se reúnem (eventualmente estes encontros recebem o nome de ‘reunião’) por durante aproximadamente uma hora para apresentar suas reflexões sobre os temas que são trazidos pelo(a) terapeuta. No entanto toda a estrutura de atividades da clínica está centrada num principio terapêutico da capacidade subjetiva do(a) paciente em produzir discursos razoáveis sobre sua situação e sobre a realidade envolvente. A habilidade de fala é ali um epifenomeno da capacidade de socialização e da vida em comunidade, sendo uma das formas de atividade mais comuns. A este grupo pertencem distintos tipos de práticas: grupos de sentimentos (ou grupo do auto-perdão) onde as pessoas são estimuladas a falarem sobre o que sentem e a refletirem sobre suas emoções; grupos de reflexão sobre mensagens da semana, que envolvem como o nome sugere a escolha de alguma mensagem que será o guia para o desenvolvimento pessoal daquela semana de atividades; grupos de gênero, realizados separadamente entre homens e mulheres, onde são tematizados problemas e questões de cada “gênero” com relação ao outro; e grupos muito variados que podiam envolver desde debates coletivos sobre características de cada transtorno ou temas decididos pelos terapeutas a cada semana. A dinâmica dos grupos de fala é a do reconhecimento pessoal e também interpessoal de que há um problema a ser tratado. Sujeitos que se negam a falar em geral também demoram mais tempo para serem considerados aptos a integrar outros níveis do tratamento (aqueles mais próximos da alta) e levam mais tempo para serem, assim, publicamente e medicamente reconhecidos como pacientes que estão em efetivo processo de melhora (ou que se interessam por sua melhora). A fala do paciente sobre seus problemas e suas vidas é o que gera uma autorização subjetiva para que o(a) terapeuta produza o debate coletivo e isto muitas vezes gera uma situação desconfortável pois os/as pacientes reconhecem a necessidade incômoda de terem que se expor para poder contar com as benesses da equipe terapêutica. O conceito de biopolítica formulado por Foucault (1988) para diferenciar/ qualificar os mecanismos de poder político desenvolvidos, sobretudo a partir do século XVII, pode lançar

alguma luz ao que acontece neste contexto. De acordo com o autor ao passo que no governo soberano há uma configuração das relações de poder nas quais o soberano é capaz de decidir pela vida ou pela morte de seus súditos, a partir do classicismo o objeto destas relações de poder se transforma não mais no poder de “tirar a vida” mas no poder de gerenciá-la, ordenála, controlá-la. Tornam-se objetos das vicissitudes políticas temas como a natalidade, a mortalidade, níveis de saúde, isto é, a esfera política se volta para a população como um instrumento de controle. Maluf (2015)4 apresenta em texto recente a produção de novos regimes biopolíticos no campo da saúde mental no Brasil contemporâneo e, segundo suas reflexões, não somente o tema da centralidade da vida aparece na política como já anunciara Foucault mas, amparada em outros autores, ela se torna um fundamento para se pensar a política (s/p). Neste sentido é que se pode falar no conceito de biolegitimidades que é objeto das reflexões da autora, o qual se endereça ao problema contemporâneo do reconhecimento político de determinadas demandas sociais a partir do reconhecimento da legitimidade biológica das mesmas. Isto é, o reconhecimento de transtornos ou determinados tipos de doenças é o que conduz à legitimação de demandas a ela relacionadas junto ao Estado. Um movimento comparável, penso, acontece no contexto da clínica-dia quando, para serem reconhecidos como sujeitos em processo de cura – o que envolve serem vistos como sujeitos que demonstram localmente sua preocupação com sua cura, isto é, falando nas atividades, demonstrando interesse, estando presentes, cumprindo as normas da clínica – eles precisam antes de mais nada do auto-reconhecimento – em geral também feito em público – de que se encontram doentes. Esta aceitação é inclusive um objeto nosológico, compondo a reflexão médica em torno do quanto o/a paciente busca melhorar. O reconhecimento da necessidade de uma ingerência médica nas materiais da vida íntima dos usuários da clínica é uma dimensão muito importante do tratamento. A tensão principal da qual falei inicialmente se relaciona, assim, com o fato de conviverem com a grande abrangência e discursos polivalentes do campo da saúde mental a busca constante de uma normatização dos comportamentos. Isto é, ao mesmo tempo em que se espera que os sujeitos desenvolvam autonomia e espontaneidade, espera-se também que o produto saudável de assumir posturas espontâneas e autônomas seja a decisão por um determinado tipo de atitudes e julgamentos, quais sejam num momento mais imediato a de participar das atividades que a clínica propõe, estabelecer vínculos com os demais membros da clínica, não perder tempo assistindo televisão, não faltar, “correr atrás”, e num nível mais abrangente produzir discursos sobre a vida social e agencias específicas “fora” da clínica. 4

No prelo - VIBRANT

2.3. “Dentro e fora” da clínica-dia A tensão entre o “dentro” e “fora” da clínica ou de outras formas de institucionalização perpassa várias narrativas das pessoas com quem pesquisei. Há uma tensão entre o que encaram ser a vida tranquila e facilitada que a instituição propicia e a crueza da vida fora do hospital, que se encarnaria basicamente na necessidade de estarem novamente em círculos sociais que em muitos casos são vistos como razões pelas quais foram parar em instituições de tratamento psiquiátrico antes de mais nada, como é o caso dos universos do trabalho e da família principalmente. Estar na clínica-dia, para muitos é um alívio da vida cotidiana e o diagnóstico gera uma aceitação nas relações sociais mais amplas, pois é como se permitisse fugir de caracterizações da irracionalidade da loucura para uma legitimidade dada pelo quadro bio-patológico. Este tipo de narrativa, no entanto, não é hegemônico, e pensar o seu contrário ajuda a ter uma ideia da própria resistência dos usuários do sistema de saúde pesquisado. Há, assim, pacientes5 que defendem a ideia de que o tratamento proposto na clínica não expressa as reais necessidades que possuem ou que o tratamento permanece “desumano” como antigamente. Há aqui novamente uma tensão nas relações presentes na clínica-dia. Quando um/a paciente julga que a equipe terapêutica está incorreta ou que suas necessidades terapêuticas não são atendidas pelas práticas da instituição, como esta observação é percebida nos serviços de saúde? Na instituição com a qual pesquisei esta interação geralmente aponta para a posição hierárquica que a equipe terapêutica ocupa e, ao mesmo tempo, para a operacionalidade de categorias psiquiátricas diversas naquele contexto. Num dos momentos da pesquisa, enquanto esperava uma das coordenadoras da instituição para uma conversa, observei uma cena de processo de alta de um paciente:

(...) um homem de aproximadamente quarenta anos passa em frente ao lugar onde eu estava sentado e se dirige a recepção principal. Alguém já estava esperando por ele na recepção. Passados alguns minutos de acertos e de idas e vindas pelo mesmo corredor, se esboça uma discussão sobre o pagamento de chocolates e de cafés que o paciente haveria comprado enquanto estivera dentro da instituição. Se instaura alguma discussão entre equipe e paciente, que é encerrada quando o homem, já alterado, grita: “Eu sou bipolar, mas não sou idiota. Aliás, os bipolares são os mais inteligentes”. Em seguida ele diz: “Tchau menina!”. (...) retorna algum tempo depois da discussão reclamando a falta de um isqueiro e de um cinto de couro em suas 5

Há uma grande variedade de denominações para as pessoas que participam dos tratamentos em saúde mental. Entendo as discussões existentes a respeito do uso da denominação “paciente”, mas mantenho sua utilização em alguns momentos do texto, por ser a maneira mais usual através da qual eles/elas são percebidos/as pela equipe dentro da clínica-dia e por acreditar que isto contribui na tarefa de expressar textualmente aquele contexto empírico.

coisas. Acontece, novamente, uma discussão entre equipe e paciente. O homem afirmava ter deixado suas coisas naquela mesma recepção e que, portanto, elas deveriam estar ali. Afirmava, ainda, que uma das funcionárias que estava lá naquele momento é quem tinha recolhido suas coisas no dia da entrada. Na sequência a equipe pergunta por diversas vezes se o paciente tinha certeza do que estava dizendo, (“O senhor tem certeza?”), para o que ele respondia com tom infantil e debochado “Siiiim, tenho certeza!”. Este toma lá – da cá se repete por mais alguns minutos até que uma das funcionárias da equipe assevera: “Não, o senhor não tem certeza!”, e passa a alegar um conjunto de motivos médicos e não médicos para o esquecimento do paciente. Em seguida a mesma funcionária afirma que o isqueiro e a cinta só poderiam estar na casa do paciente, uma vez que não se deixavam pertences naquela recepção. O homem, então, em tom de voz mais elevado diz: “Se ele [o isqueiro] não estiver em casa sabe o que eu vou fazer...?! (silêncio)...Vou comprar outro!! (risadas)” e, encerrando a discussão, sai do hospital. Algum tempo depois, ainda, o mesmo paciente volta uma derradeira vez dizendo em tom preocupado “Eu ia embora sem atestado!” e pede a equipe – que já não tem nada do habitual tom amigável – que emita um atestado de sua estadia no hospital. (Clínicadia. Diário de Campo. 02/04/2012).

Não sei, nem procurei saber, quem de fato estaria certo com relação à querela estabelecida entre instituição e usuário neste dia de pesquisa, mas fora a discussão propriamente, o que acho relevante apontar é a circulação da “acusação” sobre “não certeza” que pode pesar sobre pacientes. Situação muito semelhante viria a acontecer em outro dia de visita à instituição, quando um usuário sugere à uma enfermeira da equipe terapêutica que busque ajuda de um podólogo para tratar problemas com uma unha encravada, para o que recebe severas críticas por “se meter” em assuntos que não conhece, uma vez que claramente aquele era um problema para ser tratado por profissionais da dermatologia. Entendo que estes tipos de comentários ou situações vividos pelos pacientes nestes casos que citei poderiam ser alvos de interações sociais muito diferentes, tivessem elas acontecido em outros contextos. Goffman (1982) comentando sobre o estigma, afirma que pode ser difícil para ex-pacientes provenientes de instituições de tratamento expressar suas emoções em níveis mais interpessoais (em interações diretas) em razão da insegurança sobre o tipo de interpretação que podem ser feitos a partir dela (p. 15). Quando me remeto aqui, portanto, à falas de usuários da clínica-dia não é na expectativa de que seus discursos sejam vistos como meros epifenômenos do contexto pesquisado, mas como – por um lado – representações do tipo de leitura que o “discurso do doente” gera no plano institucional e – por outro – como forma de conferir um valor às falas das pessoas com quem pesquisei, tendo em vista que paira sobre elas um olhar institucional que é altamente desabonador e deslegitimador. O contexto empírico da clínica-dia, no sentido dos argumentos que apresentei até o momento, além de mobilizar explicações “antimanicomiais” expressa em seu cotidiano em algumas práticas uma relação com a “loucura” que ainda é a de uma “ausência da razão” (Foucault, 2010) que, portanto não

faculta capacidades usuais de arrazoamento da vida e das interações cotidianas, capacidades que segundo se depreende da obra de Goffman (2010, 1982) pertence ao próprio ritual de interação da vida em sociedade. Ressalto, no entanto, que estas categorias restam muito fluidas neste contexto e são mobilizadas em momentos chave da experiência entre equipe e paciente. 3. Um ‘social’ no tratamento psiquiátrico? Como comentei anteriormente gostaria de problematizar nesta segunda sessão implicações da reforma psiquiátrica e seu discurso multidisciplinar na criação de um discurso mais geral sobre a vida em sociedade e de uma concepção de “social” própria deste universo da saúde mental. Se por um lado os tratamentos na clínica-dia apontam para a necessidade dos usuários de adotarem práticas e comportamentos locais que condigam com uma condição de ressocialização e de “busca” pela cura dos transtornos mentais, por outro, estas agencias individuais não se esgotariam no plano local, tendo como um de seus desdobramentos também a adoção de determinadas práticas na vida cotidiana fora da clínica-dia. Brota de uma das usuárias da clínica-dia uma das falas para a qual gostaria de dar especial atenção nesta sessão. Cito um trecho de meu diário de campo onde descrevi um comentário de Renata6: Renata nos conta, então, uma breve mas interessantíssima história sobre como o médico a diagnosticou como portadora de Transtorno de Personalidade. A fala de Renata é absolutamente articulada, é pessoa severa e aparenta muita austeridade, mas tem um senso de humor que lhe é inerente. Segundo ela, em uma de suas consultas o médico afirmou, em concordância com o CID (Código Internacional de Doenças), que seu problema era qualificado como Transtorno de Personalidade. Lembra então a todos de maneira jocosa que “além de tudo” também tem transtorno de humor bipolar, é depressiva, anoréxica, e bulímica, como quem duvidasse da simultaneidade de tantos transtornos. Diz então que mesmo questionando o médico ela não entende por que “cargas d’água” ela é vista desta forma pela medicina, uma vez que a principal característica da doença, em sua fala, é que tais pessoas [com transtorno de personalidade] manifestam distintos comportamentos em distintos momentos. Sempre recorrendo a tons mesclados de ironia e severidade, Renata então diz acreditar que todas as pessoas, em distintos momentos de suas vidas, tem distintos comportamentos. Usa então de exemplos para demonstrar o que queria dizer: o “professor” – apontando para mim – tem comportamentos diferentes quando está na universidade, ele se dirige a outra platéia, e quando está no hospital da mesma forma. Diz também que ela não tem como ser a mesma o tempo inteiro, pois vivencia momentos diferentes ao longo do dia. Jogando a bola para mim diz não saber afinal o que é este transtorno de personalidade. Quando digo que também não sei ela afirma com tom de vitória e desgosto ao mesmo tempo: “Pois então!”. (Clínica-dia. Diário de Campo. 25/04/2012).

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Nome fictício.

A descrição etnográfica que emergiu de meu contato com a clínica-dia se deu basicamente a partir de uma inserção como voluntário na instituição em questão. Neste trabalho de voluntariado eu desenvolvia o que a instituição nomeou “Oficinas de Antropologia” uma vez por semana, inicialmente com o grupo TM e mais próximo ao fim da pesquisa também o grupo AD. Nestas oficinas de antropologia a proposta era tornar meu ‘conhecimento’ disponível para os usuários daquele serviço de saúde, que poderiam então passar a enxergar suas respectivas doenças a partir de “outras cores” que não a coloração usual da biomedicina. A antropologia em meu contexto de pesquisa era vista como altamente vocacionada a produzir reflexões sobre os ‘temas complicados’ da vida humana: a morte, a loucura, os diversos hábitos sociais, entre outros. Para pessoas que estavam tão habituadas a enxergarem somente suas próprias perspectivas de vida, olhar para práticas de outros grupos ou ouvir outros discursos de mundo seria uma forma terapêutica para promover a abertura dos usuários para o ‘mundo real’. A fala de Renata surgiu numa destas oficinas quando se discutia o tema da EMOÇÃO e de duas implicações que as pessoas presentes naquele dia de oficina julgaram existir: a emoção estaria dentro do ser humano (é uma característica que lhe é inerente?) ou ela é construída em contextos externos a subjetividade humana?7 Aparentemente tomada como um desdobramento do campo das emoções, para Renata seu diagnóstico indicava que ela era ‘doente’ precisamente por assumir uma postura social que é totalmente normal fora daquele contexto de medicalização. Em termos acadêmicos, assim, o problema clássico da emoção8 ganha uma importante reflexão nas palavras de Renata, pois seguindo o raciocínio que ela desenvolvera naquele dia, o produto externo de uma emoção, o risco, o choro, ou a total falta destes ‘produtos externos’, são imensamente variáveis na sociedade. Se emoções distintas podem ser geradas a partir de sentimentos e pertencimentos distintos, porque afinal alguns deles acabam sendo parametrizados como formas exclusivas de descrever ‘emoções específicas’? Embora não tenha produzido esta relação causal entre os argumentos, o ponto que Renata queria descrever me parece precisamente o de que muitas de suas emoções ou ações sociais corriqueiras eram lidas ali naquele ambiente médico através da interpretação rasteira da doença mental, o que gerava nela e em muitos uma frustração muito profunda. Embora este depoimento tenha surgido num momento específico de minha inserção em campo (oficinas de antropologia) e não se possa retirar – para o contexto deste trabalho – 7

Não apresento este aspecto neste artigo, mas um grande número de pessoas da clínica-dia possuía ensino superior e em alguns casos pós-graduações lato e stricto senso, embora um grande número não fosse necessariamente atuante em suas áreas de formação. O caso de Renata era de alguém que possuía mestrado na área de Letras e fora, durante muitos anos, professora universitária. 8 Conferir Rezende e Coelho (2010) para uma reflexão sobre antropologia das emoções.

conclusões de ordem analítica explicitamente sobre o conteúdo abordado por Renata (isto é, o questionamento de seu diagnóstico, e as possíveis reflexões que este questionamento poderia acender tendo em vista as próprias interações na clínica-dia envolvendo equipe e usuários/as), gostaria de questionar a partir dele em que medida o contexto diagnóstico e terapêutico proposto na clínica-dia pode ser considerado gerador de uma medicalização das relações sociais, em beneficio de uma concepção específica de sociedade. Distintas autoras tem descrito a relação entre padrões sociais e diagnósticos médicos, de loucura ou não, ao longo do tempo apontando a estreita relação entre a consolidação do saber

psiquiátrico,

e

do

saber

médico

como

um

todo,

e

processos

de

normatização/normalização da vida em sociedade, envolvendo movimentos mais gerais que viriam a ser reconhecidos como processos de medicalização/psiquiatrização da pobreza, das relações de gênero, do trabalho, entre outras esferas. Analisando um centro de saúde na cidade de Itamarandiba, no Vale do Jequitinhonha (Minas Gerais), Marina Cardoso (1999) apresenta uma importante reflexão sobre o surgimento do diagnóstico psiquiátrico em centros de saúde do interior mineiro. Para os médicos que então passavam a assumir tarefa de ampliar o tratamento psiquiátrico para um perfil “comunitário”, o processo de migração e de transformação das realidades rurais típicas do período em questão no interior mineiro, conduziam à personalidades que tendiam à doença e mais particularmente à doença mental. (cf. CARDOSO, 1999, passim). O argumento que se produzia – já apontado pela bibliografia para outros contextos – pensava “o meio como estruturante da personalidade ou do comportamento do individuo” (Cardoso, 1999: 103) e no caso da pesquisa da autora, se relacionava com a produção de personalidades “mal-estruturadas” (ignorantes, queixosas, influenciáveis, preguiçosos, sem educação, entre uma série de outros argumentos que Cardoso aponta no discurso médico sobre os trabalhadores rurais que acessavam o centro de saúde) e que os/as predisporia ao desenvolvimento de transtornos mentais. Embora o argumento da medicalização a partir de padrões sociais estabelecidos culturalmente seja muito comum na história da reflexão sobre o saber psiquiátrico, Cardoso (1999) apresenta uma leitura antropológica do momento em que o paradigma de assistência de sujeitos portadores de transtornos mentais se transforma. A autora relata o aumento significativo de prescrições de medicamentos psicotrópicos em seu contexto de pesquisa na década de 1980, fato que era então acompanhado pela própria mudança na estrutura ideológica das políticas públicas nacionais e, como apontei acima, à uma compreensão específica sobre “doença mental” que emergia de relações no eixo trabalho-personalidadedoença. O produto desta transformação – a despeito de seu conteúdo humanístico – era, entre

outros, a produção – como a autora chamou – de um “discurso sobre o social” (p. 101). Por um lado haveria a produção de articulações locais entre doença mental e manifestações populares, isto é, o diagnóstico de doença mental era corroborado pela manifestação de comportamentos vistos como “ignorantes” ou “mal educados”. Por outro lado, havia a própria intervenção médica em casos em que julgavam ser a clientela (que possuía os qualificativos que já citei) resistente aos ditames do mundo do trabalho e da família, portanto entendendo serem doentes também aqueles/as que “manipulavam” experiências de doença para granjear benefícios trabalhistas ou pessoais. Conforme Cardoso (1999): Nesse contexto, a operação terapêutica da “doença mental” não se restringia ao atendimento dos casos socialmente reconhecidos como pertinentes ou adequados ao tratamento psiquiátrico, mas aparecia produzida na própria situação de consulta pela reinterpretação que o médico fazia dos sintomas expressos do paciente. Esta reinterpretação encontrava-se articulada a um conjunto de representações sobre a clientela, avaliadoras do comportamento social ou do “padrão cultural” que orientava a conduta dos pacientes. (p. 107).

Outra autora que também escreve num período próximo ao de Cardoso (Idem) é Ana Teresa Venâncio (1990, 1993) que defendeu no início a década de 1990 dissertação sobre hospital-dia do instituto de psiquiatria no Rio de Janeiro. Aparentemente pouco discutida nos estudos sobre a reforma psiquiátrica, a dissertação de Ana Venâncio (1990) apresenta uma leitura antropológica das práticas terapêuticas no contexto de surgimento da “nova psiquiatria”, isto é, de uma psiquiatria que passa a investir na desinstitucionalização e na ressocialização como um paradigma terapêutico. Mais do que reapresentar as considerações da autora – que envolvem uma discussão própria do período sobre as tensões entre aspectos físicos e morais9 da constituição do saber psiquiátrico e da própria ‘pessoa ocidental’ (VENANCIO, 1993) – minha intenção é chamar atenção para o argumento da proximidade entre a nova psiquiatria com esforços que afinal eram típicos da própria consolidação da psiquiatria como um todo no século XIX, resgatando uma contribuição deste argumento para pensarmos as terapêuticas contemporâneas. Segundo Venâncio (1993) a psiquiatria foi um dos conhecimentos específicos e especializantes que surgiram na passagem do século XVIII para o XIX, juntamente com a transformação geral do quadro de reflexão científica característico deste período, que contribuíram para a geração de uma noção moderna, ou da especificidade moderna, da ideia de Pessoa. Questões referentes à loucura, e à doença de modo geral, passam a ser objeto de reflexão destes saberes e a psiquiatria é um resultado de um contexto e de tensões que estavam sendo alimentadas já na própria dinâmica social e cultural de consolidação da própria 9

A respeito da consolidação de uma linha importante de debates na antropologia da saúde brasileira deste período, ver balanço crítico de Langdon, Follér & Maluf (2012).

modernidade. Ao passo que até o século XVII as descrições da doença poderiam ser encontradas numa perspectiva naturalista e, portanto vinculando perturbações à um lugar/órgão onde a loucura estaria sediada, a partir deste período de reelaboração conceitual, passagem que se encontra afinal bem descrita na obra de Foucault (2010), a loucura estaria nas paixões excessivas, na falta de vontade, no não julgamento, nos afetos, etc. Venâncio (1993) ressalta a passagem como uma passagem para um tratamento, enfim, de natureza moral, das relações entre as pessoas. Temas que aparecem na dissertação de Venâncio (1990) como participantes do processo de tratamento de pacientes no hospital-dia, tais como a restituição da capacidade de decidir e da vontade, a espontaneidade, o estabelecimento de laços afetivos, produção de consciência para atividades profissionalizantes e expressivas (tais como a terapia ocupacional), psicoterapias voltadas para a produção da fala, entre outros aspectos, foram muito recorrentes em minha pesquisa junto à clínica-dia. Estes temas, de acordo com a autora, são temas que remetem aos problemas que a psiquiatria nascente já trazia em seu bojo: isto é, que era necessário através do tratamento psiquiátrico reconstituir este domínio da vontade e reimbuir o sujeito do potencial de considerar-se como capaz de integrar-se a um meio social como individuo (Venâncio, 1993). Não quero sugerir aqui que haja uma comparação causal a ser estabelecida entre o século XIX e as práticas terapêuticas da contemporaneidade. Além de anacrônico o procedimento poderia se revelar pouco elucidativo quanto ao contexto contemporâneo – quando a própria ideia de uma noção de pessoa já é questionada. O que acho intrigante no argumento da autora e ainda produtivo para um contexto contemporâneo é precisamente inquirir o potencial gerativo e também reelaborativo de práticas culturais tais como o tratamento psiquiátrico quando pensadas, afinal, articuladamente com o próprio contexto empírico. Isto é, entender a maneira como discursos sobre a vida social aparecem mobilizados num tratamento que se propõe exatamente a “consertar” o social parece crucial, precisamente num momento em que há um aumento nos deslocamentos entre este campo da saúde mental e camadas significativas da sociedade. Comentando novamente seu contexto de pesquisa, Venâncio (1990) afirma: Esse “novo” modelo assistencial invoca de forma marcante a questão da participação necessária de todos os envolvidos na assistência prestada: os profissionais, os pacientes e seus familiares. Com relação ao paciente, sua participação é traduzida pela importância de sua presença ativa nas atividades terapêuticas oferecidas, mas também na “consciência” que o paciente deveria ter dessa participação: a responsabilidade que teria que assumir com relação ao tratamento, responsabilidade que impediria o paciente de se identificar totalmente com o estado de doença, proporcionando a integração do ego (p. 144).

Assim, se noticia um deslocamento deste tratamento psiquiátrico para uma esfera da própria responsabilidade individual, do compromisso do sujeito atendido em desenvolver comportamentos que possibilitem o seu curso de melhora. Quando, portanto, em minha pesquisa, os/as pacientes são convocados a participarem de atividades como psicodrama onde devem desenvolver sua espontaneidade e capacidades expressivas (com vistas a reintegraremse na própria performance cotidiana das relações sociais) é também com vistas a confrontar o/a paciente com sua vontade de melhorar ou não e quando, porventura, decide por não fazêlo, a interpretação de suas decisões podem ser negativas, na medida em que ele/ela corre o risco de ser tomado como alguém que não está buscando restituir aquilo que – como individuo – perdeu. Neste aspecto, portanto, naquilo que diz respeito aos valores que historicamente foram constituídos em torno destes atributos da vontade, da espontaneidade, da participação, da individualidade, entre outros que poderíamos pensar como correlatos, penso que se possa pensar a defesa do ‘social’ (com aspas, representando o social acalentado pela reforma) como uma social que se aproxima da noção individualista de pessoa. E é precisamente pelo fato de que os modos de constituição da pessoa não se encarnam (ver considerações de Maluf (2015) sobre a “falência” do potencial explicativo da ideia de noção de pessoa) mais nas possibilidades contemporâneas de “ser pessoa” que o tratamento psiquiátrico proposto a partir da reforma também ainda é gerador do problema que espera resolver: a estigmatização e a institucionalização, como tentarei refletir na seguinte e final sessão deste texto.

4. Discussões finais e problemas futuros

Como apontei em alguns momentos do texto há um campo de debates e pesquisas com relação ao qual se remetem os profissionais e com relação ao qual pensam seus itinerários os pacientes. Do ponto de vista da reforma psiquiátrica o “campo” é uma conformação contemporânea para uma área que não pretende mais se pensar a partir da univocidade do saber psiquiátrico e que, ademais, questiona a própria psiquiatria. Também é neste campo que se passa a valorizar múltiplas experiências profissionais como constituintes do processo terapêutico e, além disto, onde se constrói a relevância do discurso político e terapêutico sobre “saúde mental” e não mais sobre doença mental10. Este “campo da saúde mental” é, como já se apontou anteriormente, o universo empírico onde a pesquisa aqui relatada aconteceu e com relação ao qual busco estabelecer alguns debates. Uma questão final para a qual gostaria de 10

Para um relato mais aprofundado a respeito conferir Amarante (1994, 1995, 2007).

apontar, assim, na expectativa de que se esboce uma tentativa de fechamento momentâneo dos problemas que levantei é se o campo da saúde mental – referenciado pela reforma psiquiátrica – é capaz de explicar completamente os agenciamentos, pertencimentos, reflexões, problemas vivenciados pelas pessoas que participam deste tratamento. Quando, no cotidiano da clínica-dia, as pessoas partilhavam suas experiências de vida e expectativas sobre o tratamento não era na lente da multiplicidade de discursos que estes sujeitos se amparavam para refletir seus itinerários. Uma das mulheres da clínica-dia, considerada psicótica, explicava que participava simultaneamente de tratamentos espíritas (passes por irradiação, passes diretos, aceite de orações por terceiros), REIKI, tratamento medicamentoso, e propriamente religioso (ela respondia como pertencente do grupo conhecido como Testemunhas de Jeová), precisamente porque da perspectiva de sua religião teria havido na ascensão de Jesus Cristo aos céus a queda de vários espíritos ‘ruins’, com os quais terapeutas alternativos na terra estariam autorizados para lidar. Sua perspectiva de tratamento, portanto, mesmo se considerarmos a grande rede de atividades das quais participava dentro da clínica (psicoterapia, psicodrama, REIKI, tai-chi, meditação, oficinas diversas, terapia ocupacional, artesanato, entre outros) era somente um ponto numa rede ainda maior de pertencimentos e reflexões que a ela produzia em sua vida cotidiana. Esta autoridade de decidir pela rede de atividades e práticas que gostaria de ter em sua vida particular, no entanto, não era vista necessariamente como ressocializadora ou valorizada como pertencimentos que a reintegrava em esferas sociais mais amplas. Os temas que sempre eram abordados do ponto de vista clínico – visto que as atividades de terapia se davam majoritariamente em grupo – diziam respeito ao fato de estar sem trabalho, de não se concentrar em seu tratamento, de ser pessoa impressionável (e portanto adepta de múltiplas formas terapêuticas), entre outros. A perspectiva com a qual a equipe terapêutica trabalha em sua “lida” cotidiana com pacientes que constantemente “fogem” aos “tentáculos” da instituição é uma perspectiva basicamente unívoca da realidade social, que reflete temas como a necessidade de autonomia, participação, auto-cuidado, espontaneidade, liberdade, individualidade. Se pensarmos na proposta da luta antimanicomial de passar, a partir da reforma, a perceber as pessoas como integrais e possuidoras de direitos humanos e, portanto, “adequadas” para a vida social como quaisquer outras pessoas (mudando, portanto, uma chave interpretativa com relação à doença), estas expectativas de desenvolvimento moral parecem mais aceitáveis e até mesmo necessárias num contexto político e ideológico onde reiteradamente retiram-se direitos e legitimidade participativa de distintos grupos. A reforma psiquiátrica, neste sentido, abre uma

luz e uma possibilidade de reflexão em torno de uma categoria de sujeitos altamente estigmatizada ao longo da história. No entanto, a despeito da validade de defendermos, por exemplo, maior participação dos sujeitos na vida pública (faculdade que estaria ‘abalada’ na maioria dos/das participantes do tratamento na clínica-dia), este reestabelecimento de vínculos do sujeito com suas capacidades de participação e ação no mundo são encaradas singularmente a partir de suas vidas intimas e pessoais, portanto, se participam ou não das atividades, se estão ou não disponíveis para atividades comunitárias (igreja, clube, etc), se buscam e mantém seus trabalhos, se “correm atrás”, entre uma série de outros fatores. Num universo de pessoas que se encontram medicalizadas precisamente por não suportarem mais a experiência frustrante do trabalho na sociedade contemporânea11 – para citar apenas um exemplo – questiono a validade de se considerar terapêutica a constante pressão para que as pessoas encontrem um trabalho. Naturalmente, esta não era uma reação padrão da equipe em todos os casos, mas o entendimento do trabalho como ressocializador era uma constante nos discursos da equipe. Como sugeri acima ao comentar os trabalhos de Cardoso (1999) e Venâncio (1990, 1993), a questão é a de que a noção de pessoa com a qual os terapeutas desta clínica operam, a qual se pode dizer é orientada por perspectivas da própria reforma psiquiátrica e, como afirmou Venâncio (1990, 1993) reflete problemas típicos da ideia de pessoa moderna individualizada, é um dos pontos onde podemos nos amparar para refletir este contexto em termos mais gerais. É importante encontrar outro pontos, compreender outras maneiras através das quais contemporaneamente as subjetividades, a(s) pessoa(s) são constituídas, não nos referenciando somente nas reflexões da escola francesa quanto à noção individualista moderna de pessoa. Uma das pistas que, em minha pesquisa, tem parecido interessante perseguir é a questão da felicidade, isto é, da reiteração da busca da felicidade como uma forma de mensurar a busca individual e subjetiva pela melhora. A felicidade, como quero apontar no mais como uma característica geral de meu argumento aqui, é um ponto a ser compulsado no pantanoso quadro de atravessamentos e pertencimentos que o campo da saúde mental produz e atualiza constantemente no momento contemporâneo. Assim, como aparece nos questionamentos de Ahmed (2010), a felicidade começa a aparecer como uma técnica do bem viver e num mais ou menos consensual projeto contemporâneo de utilizar a felicidade como forma de descrever algo específico, um destino, um resultado de relações certas, uma vontade individual, uma busca incessante, uma geradora de saúde mental. 11

Um grande número dos interlocutores da clínica entendia que se encontrava naquela situação por trabalharem demais, por humilhações no trabalho, por assédios morais, entre outros. O mesmo quadro se encontrava no universo da “família”. Perdas familiares, separações, traições, abandono familiar, entre tantos outros, eram temas recorrentes nas trajetórias que construíam.

Acredito que a primeira sessão do trabalho seja uma tentativa de resposta para a pergunta “o que é a loucura contemporaneamente?” pergunta feita exaustivamente ao longo da pesquisa e por muitos que se interessaram pela temática. A “experiência da loucura”, para aproximarmos o tema menos de uma explicação utilitarista ou genérica do tema e mais do fato de que ela se relaciona com as experiências dos sujeitos com determinadas esferas institucionais ou não do contemporâneo, se relaciona com este conjunto de fatores: com a reforma e com a desospitalização, mas também com a “política do bem-estar”, com a busca da felicidade e, ainda, conforme Lavrador e Machado (2002 apud Andrade e Maluf, 2014:53)12 “desejos de manicômio” que ainda pululam nas experiências reformistas por todo o Brasil. Por um lado quando falo de reforma psiquiátrica no contexto deste trabalho e de minha pesquisa falo de um universo empírico específico que lê e que interpreta a reforma psiquiátrica desde sua história político-institucional e sua trajetória com relação a adoção das práticas da reforma. Portanto, por mais que o texto carregue a marca de um discurso sobre A reforma psiquiátrica, é importante registrar que não há “uma” experiência única de reforma psiquiátrica e se vem apontando em distintas vertentes que afinal este não é um fenômeno homogêneo no plano de sua efetivação institucional. Por outro lado, como fiz ao longo do artigo, entendo que seja necessário compulsar a reforma psiquiátrica em suas distintas manifestações no contexto contemporâneo, para atentarmos para desdobramentos, deslocamentos, configurações e reconfigurações em distintos campos da vida social.

5. Referencias Bibliográficas

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12

Segundo discussões das autoras citadas apesar das práticas contemporâneas de transformação, algumas realidades ainda mesclam experiências reformistas com uma lógica ‘teimosa’ dos manicômios.

BIRMAN, J. e COSTA, J. F. Organização de Instituições para uma Psiquiatria Comunitária. In: Paulo Amarante (Org.). Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994, pp. 41-71. CARDOSO, Marina. Médicos e Clientela: da assistência psiquiátrica à comunidade. São Carlos: EdUFSCAR, 1999. CARVALHO, Marcos. Dilemas na/da Reforma Psiquiátrica: notas etnográficas sobre o cotidiano de um Centro de Atenção Psicossocial. In: FERREIRA, Jaqueline e FLEISCHER, Soraya. Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro, Garamond: 2014, pp. 81-106. CIELLO, Fernando J. Saúde mental, loucura e saberes: reforma psiquiátrica, interações e identidades em uma clínica-dia. 162 fls. (Dissertação) Mestrado em Antropologia Social – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013. FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2010. GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2010. ______. Interaction ritual. Essays on face to face behavior. New York: Pantheon Books, 1982. MALUF, Sônia W. Gênero, saúde e aflição: políticas públicas, ativismo e experiências sociais. In: MALUF, Sonia Weidner e TORNQUIST, Carmen Susana (Org.). Gênero, Saúde e Aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis, Santa Catarina: Letras Contemporaneas, 2010, pp.21-67. MALUF, Sônia W. Biolegitimacy, rights and social policies: New biopolitical regimes in mental healthcare in Brazil. Vibrant, 2015. (no prelo) MALUF, Sônia W. Por uma antropologia do sujeito: da Pessoa aos modos de subjetivação. Campos (UFPR), 2015. (no prelo) MONNERAT, Sílvia. Trajetórias, acusações e sociabilidade: uma etnografia em um centro de convivência para pacientes psiquiátricos. 99 fls. (Dissertação) Mestrado em Antropologia Social – Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. REZENDE, Claudia Barcellos e COELHO, Maria Claudia. Antropologia das Emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. 136p. TONIOL, Rodrigo. Integralidade, holismo e responsabilidade: etnografia da promoção de terapias alternativas/complementares no SUS. In: FERREIRA, Jaqueline e FLEISCHER, Soraya. Etnografias em serviços de saúde. Rio de Janeiro, Garamond: 2014, pp. 155-180. VENÂNCIO, Ana Teresa A., Sobre a “nova psiquiatria” no Brasil: um estudo de caso do hospital-dia do Instituto de Psiquiatria. Dissertação de Mestrado. Programa de Pósgraduação em Antropologia Social (Museu Nacional). 1990

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