SOBRE A NATUREZA DO DESENHO

June 9, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Desenho, Artistas Britânicos
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SOBRE A NATUREZA DO DESENHO1 Emília Ferreira

Pai de todas as artes, como lhe chamou Vasari, o desenho tem movido a relação do homem com o mundo, desde a apreensão mágica do universo, nos traços ingénuos, misteriosos e impressivos das grutas de Lascaux e Altamira. Por isso mesmo, e apesar de já muito se ter escrito sobre ele, permanece matéria de complexa definição. A isto não serão alheias as alterações plásticas operadas ao longo dos últimos cem anos. Quando nos propusemos a realização desta exposição de obras que vão do final da década de 50 até ao início dos anos 70, pertencentes ao acervo do CAMJAP e genericamente conhecidas como “Desenhos Britânicos”, foi de imediato claro que nos seria difícil justificar a inclusão de algumas peças – que, por conveniência de taxonomia, se encontram catalogadas como desenho – nessa categoria plástica. Com efeito, se trabalhos como os de Peter Lloyd-Jones, John Wells, David Hockney, David Annesley ou Bernard Cohen não nos colocavam quaisquer dificuldades quanto à sua inquestionável gramática, já obras como as Adrian Heath, William Scott, Henry Mundy ou Patrick Heron nos levantavam objecções sobre a sua natureza. Mais definidas pela mancha cromática do que pela linha, ponto ou contorno, ou seja, mais determinadas pela cor do que pela opção de um traçado, estas peças faziam-nos pender para uma classificação pictórica. É certo que o desenho sempre comportou cor (veja-se o clássico uso da sanguínea, dos sépias, ou do modulado dos cinzas da grafite), porém, nunca foi ela o seu principal elemento definidor. Mais ligado ao pensamento e portanto à linha que retira do visível da natureza a sua síntese racional, do que à cor que vive das alterações da percepção sensível e que sobretudo estimula os sentidos, o desenho escusa-se a

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Texto do catálogo da exposição Artistas Britânicos. Trabalhos sobre papel, 1956-1971, Colecção do Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian. Exposição realizada na Casa da CercaCentro de Arte Contemporânea, 2002. 972-8392-98-2.

uma definição menos evidente quando a linguagem usada pelo autor é notoriamente a da mancha. Como qualificar, então, estes trabalhos? Tendo em conta que as obras escolhidas foram todas elaboradas sobre papel, considerámos a possibilidade de as nomear apenas como trabalhos sobre papel, sem demais compartimentações plásticas, escusando-nos assim a problemas de distinção dos limites entre o desenho e a pintura. No entanto, e apesar de o suporte não ser determinante, ele poderia levar-nos a optar pela cómoda definição destas peças como sendo, afinal, desenho. Com efeito, embora este possa inscrever-se sobre tela, madeira, ou até placa de metal, a sua história cruza-se incontornavelmente com a do papel, tendo a sua autonomia enquanto expressão artística coincidido com um momento da história em que este suporte se tornou mais económico e, portanto, mais acessível. A consequente vulgarização dos cadernos de esboços resultou numa maior liberdade e inovação do desenho mas, simultaneamente, manteve-o prisioneiro de uma imagem de trabalho preparatório, uma representação artística menor, privada e preliminar da grande arte final da pintura ou da escultura, expressas em suportes mais nobres e duradouros e, muitas vezes, em dimensões mais generosas e impressionantes, participantes activas no mundo exterior, no espectáculo da arte. O ensaio, por assim dizer, repousa com toda a conveniência no papel, enquanto a obra dita definitiva encontra mais apropriada escora na nobreza e resistência do linho ou do cânhamo. Ora o ensaio é justamente o desenho, aquele que se faz em gesto íntimo, acompanhando o pensamento, as suas inquietações e buscas, numa proximidade com o verbo que o faz parente da escrita. Desenha-se como quem pensa, como quem prepara ou sonda as palavras antes do discurso final. O advento das vanguardas do século XX pôs, porém, em causa a tradicional classificação das artes, não apenas através da alteração das linguagens como também pela convocação de materiais tidos como menos nobres. A revolução assim operada sob o nosso olhar – da renovação do traço até à colagem, por exemplo –, redefinindo

o

definitivo

e

o

final

em

consequentemente, dificultar classificações.

arte,

veio

dissolver

fronteiras

e,

Em 1988, no catálogo da exposição itinerante Sightings: Drawing with colour, (Valladolid, Barcelona, Nova Iorque e Lisboa), Donald Kuspit, no texto introdutório, interrogava-se precisamente sobre a natureza do desenho. Embora confirmando a fragilidade das fronteiras artísticas, e sustentando que a incerteza na sua definição vem comprovar a actual inexistência de hierarquias, o autor defende que o desenho continua a ser um caminho para um destino que está para além de si mesmo. Processo, em vez de fim em si, trabalhando, portanto, num nível intuitivo, sem préconceitos nem projecto, ele equipara-se assim ao próprio pensamento (assim estabelecendo linhas de comunicação e proximidade com a escrita, como também afirmou Bruce Nauman, em 1995), ao processo de auto-descoberta e autorevelação, inscrevendo-se num espaço mental. No final de 2001, a exposição “A Century of Drawing: Works on Paper from Degas to LeWitt”, patente na National Gallery de Washington, recolocava o problema dos limites do desenho. Como se pode ler no texto de abertura do catálogo, “the question of what constitutes a drawing is delightfully complex in twentieth-century art and has led to some of the most stimulating discussions with colleagues.”2 Semelhantes discussões levaram a equipa a hesitar, durante algum tempo, em relação ao nome a dar à exposição. Se as obras de Degas, que pretendiam expor, não constituíam problema à classificação, já os trabalhos de Rothko levantavam dúvidas. A cor era sem dúvida um dos obstáculos, ponderando-se também nas aguarelas. Poderiam ser estas classificadas como desenhos ou dever-se-ia seguir o critério usado em Inglaterra e que as define como pinturas? A locução “trabalhos sobre papel” colocava ainda outras reticências, já que gravura e fotografia cabem igualmente nesta distinção. Para a National Gallery de Washington a definição de desenho colocava-se nos seguintes termos: trabalho realizado sobre papel e com carácter único (ou seja, não multiplicável, como a gravura ou a fotografia). Quanto ao medium, pode ser “linear” ou “líquido”. Apesar de todas estas ressalvas, ficou também claro que algumas obras, sobretudo com grandes superfícies cobertas de tinta seriam mais facilmente definíveis como pintura. Enfim, o debate permanece e não se prevêem respostas definitivas. Nem de absoluta transparência. 2

A questão sobre o que constitui um desenho é deliciosamente complexa na arte do séc. XX, e originou algumas das

mais estimulantes discussões entre colegas.

Tendo

em

conta

as

várias

premissas

apresentadas

e

considerando

as

especificidades dos trabalhos desta mostra, e também que alguns dos autores envolvidos tiveram, apesar da escolha do papel como suporte, a claríssima intenção de um fazer pictórico, decidimos dar à exposição uma nomeação mais abrangente. Optámos assim pela designação de “Trabalhos sobre Papel”.

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