Sobre a Natureza e Pertinência da Dicotomia Público-Privado na Era das Comunicações Móveis

May 28, 2017 | Autor: Joao Carlos Correia | Categoria: Civil Society and the Public Sphere, Public Space
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Descrição do Produto

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

JOSÉ RICARDO CARVALHEIRO (org.)

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

|MinervaCoimbra

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olecção omunicação

dirigida por Mário Mesquita

Ficha Técnica colecção

Comunicação

título

Público e Privado nas Comunicações Móveis

organizador

José Ricardo Carvalheiro

capa

Victor Torres

foto da capa

Fernando Gonçalves

composição

MinervaCoimbra

impressão

RealBase

edição e distribuição

Edições MinervaCoimbra Rua dos Gatos, 10 – 3000-200 Coimbra Telef.: 239 701 117 [email protected] www.minervacoimbra.blogspot.com

depósito legal isbn 1.ª edição

Maio de 2015

© Copyright José Ricardo Carvalheiro e Edições MinervaCoimbra Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.

ÍNDICE Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

PRIMEIRA PARTE

Reflexões teóricas CAPÍTULO 1. SOBRE A NATUREZA E PERTINÊNCIA DA DICOTOMIA “PÚBLICO -PRIVADO” NA ERA DAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

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João Carlos Correia

capítulo 2. re-conceptualizar público e privado – sociabilidade e vida cívica na era da internet . . . . . . . . . Gil Baptista Ferreira CAPÍTULO 3. A ECONOMIA POLÍTICA DA PRIVACIDADE NO 1984 DE GEORGE ORWELL

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António Bento CAPÍTULO 4. A (IM)PROBABILIDADE DE UMA ÉTICA PARA AS COMUNICAÇÕES MÓVEIS .

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António J. Domingues

SEGUNDA PARTE

Interações empíricas CAPÍTULO 5. PRIVATISMO E PRIVACIDADE

José Ricardo Carvalheiro

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CAPÍTULO 6. NEGOCIAÇÕES DA PRIVACIDADE NOS DISPOSITIVOS MÓVEIS

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Ana Serrano Tellería, Sara Portovedo, Ana Isabel Albuquerque CAPÍTULO 7. UMA EXPLORAÇÃO À OPINIÃO NA TWITTOSFERA: ENTRE E DISCUSSÃO POLÍTICA E A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO .

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Antónia Carmo Barriga CAPÍTULO 8. INTERAÇÕES PORTÁTEIS: PENSAR AS COMUNICAÇÕES MÓVEIS À LUZ DE ERVING GOFFMAN

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Maria João Silveirinha CAPÍTULO 9. O QUOTIDIANO TECNOLOGIZADO: GERINDO SITUAÇÕES ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

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José Ricardo Carvalheiro, Sara Portovedo, João Sousa

TERCEIRA PARTE

Ecrãs e imagens

CAPÍTULO 10. A UBIQUIDADE DO ECRÃ

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Catarina Rodrigues CAPÍTULO 11. INSTANTFACES: IDENTIDADE E ESTÉTICA NAS SELFIES DE CELEBRIDADES – UM PRETEXTO PARA O (NÃO) DESVELAMENTO NOS AUTORRETRATOS DIGITAIS .

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Ana Isabel Albuquerque CAPÍTULO 12. INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS DOS UTILIZADORES .

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Ana Serrano Tellería, Pedro Pereira

INTRODUÇÃO A cronologia do último século e meio de expansão mediática e de inovações tecnológicas está cheia de narrativas sobre “revoluções”, supostas ruturas e admiráveis mundos novos, assim como também alberga visões temerosas ou catastrofistas acerca do próximo futuro. A propósito de dispositivos móveis e da dicotomia público/privado, pode, por isso, ser útil começar-se por um brevíssimo relance sobre a evolução mediática num largo âmbito histórico. O historiador dos media Patrice Flichy identificou uma mutação de profundo alcance quando – no início do século XX – as tecnologias da comunicação instantânea à distância transitaram de um predomínio das transmissões ponto-a-ponto para as transmissões por difusão, o chamado broadcast (a passagem da comunicação telefónica e telegráfica entre dois pontos para as emissões via radiodifusão). Notemos, a este propósito, que se a comunicação mediada pontoa-ponto é a extensão tecnológica das condições de privacidade, a difusão insere por natureza os conteúdos das transmissões em contextos de comunicação pública. O espectro tecnológico mantinha, de qualquer modo, meios distintos e claramente separados para a comunicação privada e para a comunicação pública. Não demorou muito até que a domesticação da receção broadcast – estimulada por uma indústria de aparelhos de rádio, e depois de televisão, que se direcionou para o consumo familiar –, introduzisse, porém, as condições daquilo a que Raymond Williams chamou “privatização móvel”, isto é, a conjugação societal entre uma crescente mobilidade (incluindo a dos conteúdos comunicativos) e a retração das sociabilidades em público, canalizando-se os fluxos comunicacionais radio-televisivos (que são públicos) para os espaços privados do universo doméstico. Muitas décadas mais tarde, das várias transformações que acompanharam a expansão da Internet, a mais célebre será, certamente, a metáfora da comunicação em rede. O que cabe aqui notar é que o produto dessa rede é precisamente uma confluência, no mesmo meio, das comunicações

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ponto-a-ponto e da transmissão em difusão, ou seja, a aproximação tecnológica entre comunicações de índole eminentemente privada e aquilo que são os âmbitos da comunicação pública. Numa primeira fase, o telefone móvel continuou a ser exatamente isso, um telefone sem fios, ou seja, o incremento das possibilidades de comunicação ponto-a-ponto ao longo do espaço. O desenvolvimento de dispositivos digitais móveis ligados em rede e com acesso simultâneo a fontes de difusão veio criar condições, porém, para outros incrementos. Por um lado, o incremento do entrelaçar e comutar constante num mesmo aparelho entre comunicação ponto-a-ponto (privada nesse sentido) e comunicação pública. Por outro lado, o alargamento dessas práticas a um leque crescente de tempos e espaços do quotidiano, onde se mesclam e articulam elas próprias com situações privadas e públicas do mundo ‘físico’. Em terceiro lugar, a miscibilidade de conteúdos que, ao serem digitais, são eles próprios indiferenciados na sua natureza técnica e na imbricação de canais comunicativos. Por fim, um incremento mais na já longuíssima história de mercadorização de todos esses conteúdos, estendendo-se os atos de consumo e de troca comercial a uma série de novos espaços e tempos que anteriormente ficavam aparte das solicitações mercantis. Todos estes vetores de mudança alimentam constantes tendências para renegociar, defender, adaptar ou desafiar as noções de público e de privado por parte dos indivíduos nas suas vidas quotidianas e por parte das instituições sociais com as suas normas e objetivos. Dos elementos comummente apontados ao ecossistema digital móvel, a portabilidade dos suportes parece ser apenas um detalhe, que só se torna decisivo em conjugação com a ubiquidade das múltiplas ligações instantâneas. Que também o semi-milenar jornal impresso é uma tecnologia eminentemente portátil é algo que tendemos a esquecer (mas que terá contribuído grandemente para a apropriação social da imprensa). Se, porém, nunca classificámos o jornal em papel como tecnologia móvel, é pela ausência dessa conjugação com multimedialidade e multidirecionalidade permanentes que produzem condições triviais para a reorientação do broadcast em ponto-a-ponto e para a transformação do pessoal em disseminável, cadinho onde hoje se cruzam e mesclam em grande medida o público e o privado. Se a negociação do que é público e do que é privado sempre se colocou aos atores sociais nas próprias situações do quotidiano ‘físico’, e se é certo que os seus limites e natureza constituem uma questão cultural construída em cada época e sociedade, não deixa de ser igualmente verdade que parecemos confrontar-nos hoje com uma série de novas situações emergentes, em parte ligadas ao uso dos media móveis, e que se impõem

INTRODUÇÃO

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a ponto de suscitarem concetualizações que vão para além dos habituais termos da dicotomia e que acolhem a caraterização de semi-públicas ou semi-privadas. Este livro, resultado de um projeto de investigação desenvolvido no Labcom.IFP e financiado pelo programa Mais Centro, inicia a sua primeira parte – dedicada a um conjunto de reflexões teóricas – justamente com uma avaliação acerca da pertinência dos dois termos dessa ‘grande’ e multifacetada dicotomia, em que João Carlos Correia enuncia as suas várias vertentes e pondera a sua aplicação ao atual contexto das comunicações móveis. No segundo capítulo, Gil Baptista Ferreira trilha a via da desnaturalização dos conceitos de público e privado, traçando a sua genealogia teórica e histórica de modo a abordar as reconceptualizações que hodiernamente lhes são proporcionadas por fatores tecnológicos e culturais em que os ‘novos media’ têm uma presença crucial. O capítulo 3 constitui uma leitura do valor económico da privacidade e da imbricação da tecnologia móvel nas questões da vigilância e do poder (público e, sobretudo, privado), que António Bento leva a cabo à estimulante luz da obra de George Orwell, 1984. A consideração das questões éticas surge de forma central no quarto capítulo, em que José António Domingues reflete acerca da confrontação entre as responsabilidades humanas e o mundo da técnica num tempo marcado pela fluidez e pelas metáforas ‘líquidas’. Na segunda parte deste volume encontramos abordagens mais focadas na pesquisa empírica realizada no projeto “Público e Privado nas Comunicações Móveis”, que decorreu entre abril de 2013 e março de 2015. A noção de privacidade é um objeto privilegiado nas análises desta parte do livro, o que acontece logo no capítulo 5, onde José Ricardo Carvalheiro a relaciona inversamente com o fenómeno do “privatismo”, conceito utilizado para designar a saliência das preocupações pessoais e familiares, bem como a concomitante retração do envolvimento cívico e das sociabilidades tipicamente públicas. O sexto capítulo, em autoria conjunta de Ana Serrano Tellería, Sara Portovedo e Ana Albuquerque, expõe com algum detalhe expositivo o material coligido através das várias técnicas de recolha empregadas no projeto, prestando atenção a parâmetros como as perceções geracionais no uso dos dispositivos móveis ou as estratégias de salvaguarda da privacidade. O capítulo 7 centra-se prioritariamente na abordagem da discussão política nas redes sociais, com Antónia Barriga a analisar a plataforma Twitter de modo a avaliar as tendências para a democratização do debate cívico ou para a privatização do público. Maria João Silveirnha elege, no oitavo capítulo, as interações sociais como objeto fulcral de análise, retomando o filão teórico iniciado por Erving Goffman

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e indagando os atuais contextos de profunda interligação entre a interação mediada e a interação co-presente. Esta é a via prosseguida também no capítulo 9 com base na observação etnográfica das articulações entre interações sociais, usos do telemóvel e ocupação do espaço semi-público de uma grande superfície comercial na cidade da Covilhã, análise realizada por José Ricardo Carvalheiro, Sara Portovedo e João Sousa. A terceira parte do livro é dedicada, sobretudo, ao uso das imagens no ambiente digital móvel, com as inerentes questões da exposição e da apresentação do self em territórios onde a publicitação e a privacidade são questionadas através de sucessivas práticas e nuances. Catarina Rodrigues toma como mote, no capítulo 10, a presente ubiquidade dos ecrãs e faz uma avaliação global das funcionalidades utilizadas nos dispositivivos móveis, indicando que a saliência da captação e circulação de imagens é um facto, mas simultanemante relativizando a sua importância no seio de um leque variado de usos não menos preponderantes. O aprofundamento das questões que se colocam em torno das imagens faz-se no capítulo 11, onde Ana Albuquerque, após extensa teorização e recurso a resultados de inquérito do projeto, enfatiza especificamente o caso dos autorretratos digitais e das suas utilizações por parte de “celebridades”, recorrendo a abundante material ilustrativo recolhido em redes sociais online. No último capítulo, Ana Serrano Tellería e Pedro Pereira voltam a abordar as redes sociais, particularmente a plataforma Instagram, agora para analisar o uso que delas é feito por pessoas comuns no contexto da Covilha e detetando uma significativa diferença de género no que respeita à captação e partilha de imagens através de dispositivos móveis.

PRIMEIRA PARTE

Reflexões Teóricas

CAPÍTULO 1

SOBRE A NATUREZA E PERTINÊNCIA DA DICOTOMIA “PÚBLICO-PRIVADO” NA ERA DAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS João Carlos Correia

Neste texto, os conceitos de “público” e de “privado” são abordados como configuração dicotómica variável, objeto de constante negociação através de práticas significantes desenvolvidas no quotidiano. Sem confundir as realizações históricas dos conceitos e as lutas e que se desenvolvem ao seu redor com a dissolução do valor heurístico dos próprios conceitos, reconhece-se que estes possuem um lastro histórico. É ao nível da vida quotidiana e da prática social, cultural e política que os diversos agentes individuais e coletivos definem e redefinem as suas fronteiras . Assim, público e o privado não são espaços predefinidos como tais. Adjetivam situações em que se intersetam parâmetros de ordem comunicativa com instâncias de ordem, social, cultural, institucional e política. O uso de esquemas cognitivos que nos ajudam a compreender a realidade não impede a consciência clara dos seus limites: a) A construção dos conceitos é objeto de uma história em que intervêm forças sociais que se posicionam no terreno em condições estratégicas, motivações sociais e correlações de força diversas b) A natureza ideal típica dos conceitos que permite a construção dos parâmetros operacionais que orientam a realização de pesquisa não pode ignorar os seus usos individuais e coletivos, neste caso, no contexto particular das comunicações móveis. c) Proceder à criação de tipos ideais implica reconhecer que são sempre uma construção mental  estabelecida com base nas escolhas pessoais anteriores daquele que analisa. O que faz com que algo seja “público” ou “privado” é acima de tudo, a experiência social.

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1. Público vs. Privado: uma dicotomia multifacetada A abordagem da dicotomia entre os conceitos de “público” e de “privado” enfrenta a demanda de um esforço arqueológico de desvelamento dos significados: “Na categoria do público estão condensados hoje múltiplos estratos, o que lhe confere efeitos caleidoscópicos imprevisíveis e utilizações tácticas importantes, graças à sua natureza transversal e aos efeitos de encaixe e desencaixe dos seus elementos” (Rodrigues, 1985). Desde logo, os conceitos de “público” e de privado apresentam facetas que decorrem dos seus contextos de uso: – Como instância social (espaço público ou espaço privado); – Como modo de classificação de um assunto (um tema público ou, ao invés, como pertencente à vida privada); – Como modo de classificação de uma forma de debate (em função de critérios que permitam classificar esse debate como público ou privado); – Como conjunto de regras que se aplicam à regulação do mercado e do Estado (Direito Público versus Direito Privado); – Como designação de uma forma de acesso (ausência ou presença de restrição); – Como espaço ou objeto furtado ao comércio, suscetível de ser usado como recurso comum, ou pelo, contrário, vedado à circulação ou utilização de pessoas que não são titulares da sua propriedade; – Como forma de reconhecimento – o reconhecimento público – que se atribui a uma figura cuja visibilidade e notoriedade são partilhadas por muitos e que, por isso, encontra dificuldades em definir a sua privacidade; – Como o resultado de atividades social de indivíduos partilhando representações simbólicas e emoções comuns (Mateus, 2014) ou, ao invés, como o resultado de uma atividade que tenta furtar-se a essa mesma partilha. 1.1. A dimensão simbólica da dicotomia público-privado

Ao mesmo tempo que apesentam esta dimensão fugaz e multifacetada, os conceitos de “público” e “privado”, implicam, sempre uma dimensão simbólica e imaginada. É neste sentido que Tarde irá propor a sua famosa definição de público como «uma colectividade puramente espiritual, como

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uma dispersão de indivíduos fisicamente separados e entre os quais existe uma coesão somente mental» (Tarde, 1986:43). O público implica a conexão à distância . Por isso, a sua evolução e a sua presente amplitude estão ligadas aos processos de urbanização e seriam impossíveis sem a coexistência de três grandes invenções: a tipografia, o telégrafo e o caminho-de-ferro. Determinado tipo de ação ou formação só pode ser considerada como pública, se for percecionada como tal e se os seus participantes agirem como se esta idealidade tivesse uma existência similar à que costumamos adjetivar como “concreta”. Por isso mesmo, a existência de media é um elemento fundamental para a compreensão atual do conceito de “publicidade”. Esta pode ser entendida no sentido fraco quanto à visibilidade, à exposição social de fenómenos, intenções e planos que se oferecem ao conhecimento de todos ou entendida num sentido forte, como criando condições ou contribuindo mesmo para a realização do diálogo e para a formação do juízo público. Ao invés, a constituição do domínio do privado será sempre nesse sentido, por um lado, a invenção de uma distância, a interposição de barreiras que limitam um espaço que se furta à visibilidade e à partilha coletivas. Tal não significa que a natureza pública ou privada das formas de sociabilidade resulte apenas da intervenção do imaginário coletivo, no decurso de um processo de construção social de significados. Há condições objetivas que se constituem como bases do que se pode divisar como público ou privado A constituição do sentido moderno de público e de privado dependeu de transformações arquitetónicas, culturais e comunicativas. Referindo-se especificamente as transformações comunicativas o entendimento moderno da dicotomia “público vs privado” dependeu em larga medida da invenção da imprensa. Mais tarde, virá a depender do audiovisual e, mais recentemente, das redes sociais e das comunicações móveis. 1.2. O público e privado: uma existência dicotómica

Uma terceira dificuldade para a análise dos conceitos resulta do facto de que provavelmente será raro encontrar dentro das Ciências Sociais muitos pares de conceitos que funcionem de modo tão estreitamente vinculados enquanto opostos um do outro. Nas diferentes abordagens teóricas que se debruçam sobre o tema, constata-se que a análise da constituição,

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formação, e transformações de um dos conceitos arrasta consigo, com frequência, o outro. A formação do público na polis grega surge como antítese do domínio privado ligado ao lar e ao universo da necessidade. A esfera pública era constituída por oposição à esfera privada da domesticidade e da economia, enquanto espaço de reconhecimento da notoriedade dos homens livres e iguais, alcançada através da sua participação nos assuntos da Polis. Hannah Arendt (1986), uma das intérpretes desta narrativa irá identificar o reino do privado com o domínio da necessidade enquanto o domínio do público se identificaria com o domínio da liberdade. Já a constituição do público moderno implica o aparecimento de uma articulação entre a forma de subjetividade constituída na vivência da família restrita, da literatura e da propriedade, e a sua tradução política na emergência do cidadão, isto é, do sujeito livre e racional que desenha o seu destino e participa, de modo autónomo, na formação de uma opinião esclarecida. A esfera pública liberal é precedida de a dimensão literária e estética, forjada num ambiente crítico, onde o texto impresso desempenhou um papel central na formação de um novo tipo de subjetividade. Implica claramente a sua postura crítica de afirmação de um juízo e de um gosto autónomo. “Ainda antes que a natureza do poder público tenha sido contestada pelo raciocínio político das pessoas privadas” formou-se sob proteção da família “o esboço literário de uma esfera pública a pensar politicamente.” (Habermas, 1982: 44). A análise do entendimento moderno da dicotomia entre público e privado é algo que só pode ser apreendido em toda a sua complexidade em torno de questões como a propriedade, a família, a escola, a arquitetura das casas, a divisão dos quartos, a prática epistolar, a noção de crime e de pena, a noção de doença e de saúde mentais, entre outros elementos constituintes. Na emergência do público moderno, não se pode separar o novo sujeito racional, o cidadão, o homem público, nem da sua dimensão de proprietário nem do pai de família. Enquanto proprietário individual, torna-se objeto de um conjunto de regulamentações estatais que resultam da emergência do Estado Nação e da constituição da Economia Política moderna. Será sujeito portador de críticas e opiniões que se tornam publicamente relevantes. Enquanto pai, ele gere o espaço íntimo da pequena família, onde se desenvolve uma intimidade projetada nas atividades literárias. A construção do sujeito moderno pressupõe um aprofundamento da intimidade que se manifesta na família restrita. Esta pressupõe, por seu lado,

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um conjunto de modificações na própria estrutura arquitetónica do lar que se traduzem na existência de um maior número de quartos de dimensão mais reduzida e de um salão que ocupa um lugar central. O quarto é o lugar da intimidade. O salão é o lugar da recepção em sociedade. Nesse sentido, a separação e a articulação entre a esfera pública e a esfera privada passa pelo meio da casa. A esfera pública política articula-se com a literária, que funciona no interior das próprias casas onde a vivência quotidiana da intimidade gera a autocompreensão quotidiana da subjetividade, expressa nos diários íntimos, na prática da correspondência privada e na literatura epistolar. A constituição de um domínio público moderno está assim, associado, a um processo de emancipação psicológica a qual, por sua vez, está relacionada com a independência económica e com a constituição do burguês proprietário, pelo que fará sentido falar de uma efetiva dependência do sector íntimo em relação ao sector privado do mercado. A intimidade só é possível no âmbito de um Direito privado que garanta o direito à propriedade. Porém, esta dependência não exclui a autenticidade da crença na autonomia da esfera íntima. 2. Público/Privado: principais abordagens teóricas Seguindo de perto o modelo de Weintraub, citado por Aboim (2012), atrevemo-nos a apresentar quatro significações, embora com conteúdos modificados em relação ao modelo inspirador. A primeira significação da dicotomia emerge do modelo da economia liberal que associa a divisão público–privado à distinção entre Estado e mercado., formulada por teóricos liberais fundadores como Locke ou Adam Smith. Uma segunda aceção clássica parte de autores como Tocqueville ou Habermas concebe a esfera pública como sociedade civil distinta tanto do Estado como do mercado, essencial para a criação de uma comunidade ativa de cidadãos capazes de sustentar uma sociedade democrática. Uma terceira distinção, teorizada por autores como Sennett (1979), emerge, por outro lado, da definição de público como espaço de sociabilidade oposto à clausura do doméstico e da família. Esta abordagem enfatiza o movimento de erosão da sociabilidade pública coletiva, capaz de engendrar laços de solidariedade, a favor das relações privadas, baseadas nas emoções e no individualismo. Num certo sentido, ao contrário de Weintbraub, identificamos Hannah Arendt (1986) com esta corrente,

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ao contrário da terceira, embora a autora alemã apresente vastas zonas de sobreposição que autorizariam a sua classificação numa ou noutra das categorias propostas. Finalmente, as propostas feministas desde a primeira vaga na Inglaterra e nos EUA dos finais do século XIX, tendem a associar o privado à família e o público à ordem política e económica na tentativa demonstrar a relação entre uma ordem de género desigual e a construção moderna da dicotomia artificialmente criada entre público–privado. Esta traduz a diferenciação entre homens e mulheres, reproduzindo diferenças e excluindo as segundas do espaço público. Tendemos a alargar a categoria proposta de forma a abarcar diversos críticas das conceções universalistas de público provenientes do pensamento liberal burguês tradicional. 2.1. O modelo capitalista de espaço público

As noções liberais de espaço público colocaram o centro das suas preocupações na distinção entre Estado e Mercado, como grandes domínios de regulação e de medição. As perspetivas liberais foram objeto de uma crítica que designou o potencial destrutivo de uma competitividade entre privados que não fosse objeto de regulação. A sociedade civil burguesa, plasmada sobretudo nos “Princípios da Filosofia do Direito”, já surgira aos olhos de Hegel como o dominada, predominantemente, pelo atomismo. A pessoa concreta, mista de apetite natural e de arbítrio, é um dos seus princípios. De modo a negar a multiplicação das patologias resultantes da natureza egoísta dos indivíduos nesta instância, designadamente a multiplicação dos desejos, a desigualdade e a miséria, Hegel enfatizará a racionalidade do Estado contra a arbitrariedade e o particularismo vigentes no interior da sociedade civil (Hegel, 1997: 251). O mundo do privado é, pois, uma vez um mundo sombrio: num sistema social que faz depender da concorrência a existência do indivíduo, a única garantia de uma realização, ao menos parcial, de um interesse comum não pode ser senão o assentimento da liberdade individual à ordem ética. Em face do carácter irreconciliável dos interesses particulares, o Estado deve surgir como relação objetiva e necessária. A liberdade exterior só possível no seio de uma comunidade organizada, lugar de realização da vida ética na qual o indivíduo encontra no dever a sua libertação (Hegel, s/d: 180). A conceção que Hegel apresenta da modernidade é a do estado

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de carência em que o puro cálculo egoísta é assumido como a base de um sistema de dependências recíprocas (Hegel, 1997: 203). Na perspetiva da Teoria Crítica e de Marx, a mercadoria subordinou a si todas as restantes dimensões sociais, impondo o campo económico e a sua legitimidade aos restantes campos sociais, nomeadamente o político, o religioso, o familiar, o lúdico: todos os campos sociais se subordinam ao campo da produção económica. O próprio espaço público se autonomiza e transforma em objeto de troca, numa pura forma abstrata de publicidade (cfr. Rodrigues, 1985). A opinião pública torna-se assim cada vez mais dependente da máquina discursiva dos media, que se afigura autonomamente como esfera obrigatória da visibilidade e da notoriedade que reflete todos os campos sociais. Logo, a legitimidade do poder alimenta-se através dele pela publicidade que assegura às estantes dimensões da prática social. 2.2. O modelo normativo de espaço público

Quando se analisa a valoração do público como instância social, verifica-se que a a sua genealogia recua à Grécia: neste contexto, a esfera do bios politikos distingue-se da esfera da oikos. A liberdade que rege a primeira contrapõe-se à lei da necessidade que vigora na segunda . Esta assente no domínio exercido pelo oiko despotes e sobre as mulheres e os escravos, assegurando a manutenção da ordem doméstica nos domínios da reprodução e do trabalho, exercendo aí um poder inalienável sobre a vida e sobre a morte (Rodrigues, 1995). Ao contrário deste modelo particularmente vigoroso na descrição de Hannah Arendt (1986), a descrição de Habermas identifica a constituição de um espaço público que, ao menos parcialmente, implica a existência das condições descritas como “a erupção do social” (Habermas, 1982: 33) . A constituição da moderna economia política, a formação do Estado de Direito e a emergência da opinião pública moderna não se reduzem a um universo de pobreza e de alienação mas, ainda que de forma contraditória e imperfeita, aparecem associadas à aspiração universal de realização de uma comunidade de homens livres, que exerciam de forma igualitária a racionalidade. Esse ideal normativo, por fugidio que se venha a revelar, tem o seu solo nas próprias condições de vida burguesa, designadamente nas transformações económicas verificadas com a emergência do capitalismo. Dentro desta perspetiva normativa mais recente, a opinião pública nascente traduz-se no direito inalienável de formação de correntes alargadas

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de uma razão separada e muitas vezes contraditória da razão do Estado, e uma vontade independente da vontade do soberano. Ergue-se nas sociedades, nos clubes privados e, mais tarde, nos cafés que as correntes de opinião se formam a partir de discussões animadas e controversas. Destas discussões surgem textos de imprensa que se apresentam como críticas de arte, de literatura, de teatro, de ideias. O público torna-se sujeito de discurso, na medida em que se arroga o direito e o dever de informar e de ser informado, situando para isso a sua legitimidade sob o modo do “saber”, em oposição à modalidade da legitimidade do soberano que se concretiza pela modalidade do “querer”, expressa na autoridade. A opinião pública aparece assim como a instância do saber, dos factos, da honestidade, da razão, em luta contra o querer, associado à corrupção, ao obscurantismo despótico do soberano. É neste contexto que se reivindica a transparência dos atos do poder perante o julgamento da opinião pública instituída como tribunal de recurso (cf. Rodrigues, 1985). 2.3. As tiranias da intimidade

Sennett (1979) será um dos grandes teóricos de um novo tema – as tiranias da intimidade – para quem o privado se transformou numa ameaça capaz de corromper as formas de sociabilidade públicas outrora existentes. Na sua ótica, o processo de privatização e de erosão das barreiras entre público e privado teria, na realidade, tido início na Europa do século XIX, precisamente graças ao florescimento do capitalismo urbano, fenómeno catalisador do crescimento de uma preocupação excessiva com a vida pessoal, os sentimentos e as afeções. A privatização burguesa da vida cívica surge como um constrangimento, psicologizando o domínio do político. A consequência mais grave adviria do enorme crescimento de uma cultura individualista e narcísica, completamente centrada no Eu e esquecida do coletivo. Nesta cultura o fascínio pelas relações humanas “autênticas”, a enfâse na sinceridade diluem o espaço público como espaço de exercício da liberdade, favorecendo, ocasionalmente, formas regressivas e destrutivas de particularismo. A obsessão pelas pessoas “conduz-nos a considerar a comunidade como um meio de revelação mútua dos indivíduos e a subestimar as relações sociais com os desconhecidos, tal como elas se produzem, em especial nas cidades” (Sennett, 1979:13). O lugar da vida pública na sociedade contemporânea torna-se ambíguo: as condutas ou as questões impessoais não suscitam o nosso interesse a não ser quando

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as encaramos sob o ponto de vista personalizado. “Nas comunidades, por exemplo, as pessoas sentem que é necessário conhecer os outros para poder agir com eles.” A revelação em relação aos outros no plano pessoal supera o desejo de agir juntos (Sennett, 1979:20). Esta perspetiva manterá algumas similitudes com a Hannah Arendt. A a interpenetração da esfera pública e da esfera privada é encarada como um produto da modernidade, perpetrada pelo Estado que se configura como uma espécie de família alargada a toda a humanidade, levada até às últimas consequências na fusão empreendida no Estado-nação. A expansão da esfera significa o desaparecimento do universal e da preocupação comum pela associação política e pela cidadania dos corações e mentes dos humanos. Na modernidade, assiste-se, segundo Arendt, à transformação do espaço público político num pseudo-espaço de interação no qual os indivíduos já não agem mas apenas reagem como produtores económicos e consumidores (Arendt, 1986: 74). Por outro lado, a emergência do social é vista como um exemplo de perda de liberdade no sentido mais essencial que a autora atribuía ao termo. O critério da ordem já não é a liberdade mas a segurança (a pax) dos cidadãos. Ao mesmo tempo, insistindo no modelo do espaço público grego pelo facto de só aí vislumbrar uma ideia de liberdade subtraída ao espírito de posse dos indivíduos, isto é, subtraída ao domínio privado como mundo da necessidade e da luta pela sobrevivência, Arendt formula uma conceção de ação política que pressupõe que o agente seja capaz de partilhar um mundo comum colocando-se no lugar de qualquer outro (Arendt, 1993: 281). Nesta revisitação normativa de um ideal de liberdade reside o motivo pela qual a obra de Arendt parece poder ombrear com Sennett na categoria dos que criticam o devir narcísico e egocêntrico da modernidade capitalista ou com Habermas numa concepção normativa, de índole neo-kantianna, do agir político. Este paradoxo tem sido particularmente explorado por críticas (ver Benhabib, 1993) que chamam a atenção para o paradoxo de Arendt fundar o seu conceito de público, ignorando as exclusões que marcavam a antiguidade ao mesmo tempo que ignorava os processos emancipatórios realizados na modernidade. 2.4. Críticas ao universalismo

Finalmente, para muitos teóricos, a intromissão do espaço público pelos temas relacionados com o privado constituem não uma privatização do público exemplar mas a oportunidade de conferirem publicidade às

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formas de exclusão que predominam no privado. Grande parte das críticas provenientes dos novos movimentos sociais, de entre os quais sobressai, entre outros, o feminismo, interroga a universalidade do espaço público burguês: Será que o apelo à universalidade, inscrito no próprio cerne da ideia de público, não constitui uma forma subtil de ocultar as exclusões e os numerosos problemas imanentes ao funcionamento do modelo de agir democrático? Como garantir a universalidade quando proliferam as identidades, numa sociedade que tende para a diversificação plural, e assegurar que essa universalidade não é assente numa exclusão de diferenças possíveis? Que sentido pode ser dado à comunidade política quanto tantos grupos se sentem fora dela? (…) que género de solidariedade será possível se desistirmos da pretensão de uma humanidade indiferenciada?”(Phillips, 1993:2) Ou ainda: “O que significa para nós cidadãos com diferentes identidades culturais, muitas vezes fundamentadas na etnia, na raça, no sexo, ou na religião, reconhecermo-nos como iguais na maneira como somos tratados em política?” (Gutmann, 1994: 25). De acordo com estas críticas, a publicidade tem que ter em conta novos desafios que surgem da reconfiguração do privado e que se manifestam, nomeadamente, através dos problemas levantados pelas identidades. Hoje, não é possível deixar de ter em conta uma visão mais complexa das situações de interesse, dos conflitos e dos poderes nas sociedades capitalistas avançadas. Muitas das vezes, os movimentos sociais gerados nesses processos conflituais já não têm por modelo os tradicionais movimentos de emancipação, antes se identificando com os modelos de crítica à sociedade burguesa e produtivista e de afirmação das diferenças e particularismos. Nas sociedades diferenciadas, surgem novas formas políticas centradas na resistência ao racismo, e em temas relacionados com o género, a sexualidade, a questão ambiental e os estilos de vida (Hirst, 1994:9). Como resposta à generalização das relações sociais capitalistas a sectores até há pouco inimagináveis, surgem novas formas de antagonismo que lutam pela politização de sectores da vida individual (Mouffe, 1988:92-93). Estamos diante de um grupo que compreende as teorias que vêem na luta pelo reconhecimento e afirmação das identidades – ao nível da própria constituição do self – uma oportunidade para a afirmação da autonomia, para a inquirição crítica, e para a resistência à hegemonia dos media funcionais, através da afirmação política no contexto das relações entre o poder e a subjetividade. Trata-se de uma plataforma vasta de hipóteses teóricas, muitas vezes com relações escassas entre si, mas que enfatizam o facto de a política e o poder já não se jogarem apenas em

SOBRE A NATUREZA E PERTINÊNCIA DA DICOTOMIA

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termos institucionais, mas também no plano microssocial, ao nível da qualidade da vida quotidiana. A extensão a teorização levada a efeito pelas feministas relativamente àa articulação entre público e privado conduziu a conclusões críticas que a afastam da defesa clássica da universalidade de direitos, nomeadamente quando sustenta a ideia segundo a qual a dicotomia tradicional entre público e privado oculta a sujeição das mulheres aos homens dentro de uma ordem aparentemente universal e igualitária. No caso do reconhecimento dos problemas relacionados com o género, o problema é trazer à luz do dia as especificidades, iluminar as desvantagens que lhe estão associadas graças à valorização da diferença. É neste sentido que a diferença entre publico e privado se re-articula em torno da politização das relações desenvolvidas no interior do universo privado. “O que é pessoal é político”, eis uma discussão que desperta outros problemas associados à variação dos limites entre os pólos da dicotomia em análise. 3. Conclusões orientadoras para o trabalho empírico A conceção normativa que aqui se defende da dicotomia entre público e privado como uma dicotomia entre espaços de geometria variável com limites ditados pela sua experimentação pode ser transposta, com especial vantagem, para a as redes sociais e dispositivos móveis: o que estes últimos fazem é criar novas injunções entre os dois pólos da dicotomia, desta feita em condições aparentemente mais fluidas. Por um lado, como já acontecera com as primeiras experiências de miniaturização dos mass media (Televisão e Rádio), o grande público passou a funcionar dentro do espaço doméstico. Por seu lado, a miniaturização crescente dos media e a crescente flexibilidade na sua utilização induzida pela Internet, pelas redes sociais e pelos dispositivos móveis tornou a presença do “grande público” ainda mais omnipresente em todas as situações de vida dos diversos agentes sociais. A esfera da vida quotidiana passou a níveis de mediatização crescente, nos mais variados níveis: formação de opinião, hábitos de consumo e gostos quotidianos. Assiste-se a formação de uma subjetividade em que o proprietário do telemóvel se torna potencialmente interlocutor privado, confidente, escritor de diários “íntimos”, editor, publicista, líder de opinião, sendo que as distinções entre estes diferentes papéis deixam de ser estanques, antes se verificando uma alternância rápida entre eles.

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Referências bibliográficas Aboim, S. (2012). Introdução: a (re)construção moderna de uma dicotomia fundadora. Estudos Feministas, Florianópolis, 20(1). Arendt, H. (1986). The human condition. Chicago: Chicago University Press (1958). Arendt, H. (1993). Lições sobre a filosofia política de Kant. Rio de Janeiro: Relume- Dumará. Benhabib, S. (1992). «Models of public space» In Craig Calhoun, Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT Press. Castells, C. (Comp.) (1996). Perspectivas feministas en teoría política, Barcelona, Paidós. Gutman, A. (1994). «Prefácio». In C. Taylor et al., Multiculturalismo. Lisboa, Instituto Piaget. Habermas, J. (1982). Mudança estrutural da esfera pública. Tempo Brasileiro. Hegel, G. W. F. (s/d). O sistema da vida ética. Lisboa: Edições 70. Hegel, G. W. F. (1997). Principes de la philosophie du droit. Paris: Gallimard. Hirst, P. (1994). Associative democracy – new forms of economic and social governance. Cambridge: Polity Press. Mateus, S. (2014). Regimes de Visibilidade. Matrizes, V. 8 – Nº 2, pp. 259-281 Mouffe, C. (1988). Hegemony and new political subjects: toward a new concept of democracy. In C. Nelson, e L. Grosseberg, Marxism and the interpretation of culture. University of Illinois Press. Pateman, C. (1996). Críticas feministas a la dicotomía publico/privado. In C. Castells (Comp.), Perspectivas feministas en teoría política. Barcelona: Paidós. Phillips, A. (1993). Democracy and difference. Oxford: Polity Press. Sennett, R. (1979). Les tyrannies de l’intimité. Paris: Editions du Séuil.

CAPÍTULO 2

RE-CONCEPTUALIZAR PÚBLICO E PRIVADO – SOCIABILIDADE E VIDA CÍVICA NA ERA DA INTERNET Gil Baptista Ferreira

Introdução É um elemento constante dos estudos da sociedade, ampliado pelo surgimento abrupto dos novos media nas últimas duas décadas: o debate sobre as transformações nas relações entre a vida pública e a vida privada, que, estritamente enredadas nas formas e estratégias de comunicação hoje disponíveis, se encontram de igual modo no âmago do desenvolvimento das sociedades modernas. Historicamente variável e de fronteiras imprecisas, a distinção entre público e privado, longe de assinalar um fenómeno singular e localizado, traduz antes vários processos de organização das sociedades ocidentais. Norberto Bobbio (1988: 13) chama-lhe, precisamente, a “grande dicotomia”, por se tratar de um binómio fundador que subsume muitos outros, de fonteiras indeléveis e intercambiáveis. Muito embora persistam enquanto categorias fundamentais da vida social moderna, público e privado mantêm problemática a sua definição, tanto em termos teóricos como práticos. O seu tratamento historicamente dicotómico deu forma a muitos aspetos da vida social, desde as relações de género ao desenvolvimento, por exemplo, de zonas de habitação puramente residenciais (privadas), geograficamente separadas da esfera (pública) do trabalho. Recobrem simultaneamente lugares ou espaços físicos (praças, salões, cafés, a própria habitação), mas igualmente os princípios constitutivos da ação política e identitária que neles se desenrolam ou podem desenrolar. Designam ao mesmo tempo realidades empíricas (desde a sociabilidade burguesa do século XVIII às recentes formas de apresentação da identidade nas redes digitais) e princípios normativos que se sobrepõem às singularidades históricas e se refletem na apreciação dos

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diferentes equilíbrios entre os dois conceitos. Mas denotam ainda uma realidade mediadora entre o indivíduo e a sociedade, entre a sociedade civil e o Estado, a sociabilidade e a cidadania ou os costumes e a política. O modo como pensamos hoje a exposição pública, os espaços públicos e privado e as noções que lhes estão associadas, tem como fonte primeira de inspiração o modelo tradicional de espaço público derivado das cidadesEstado da Grécia clássica. A recuperação deste modelo, enquanto quadro de análise e de compreensão das sociedades modernas, deve-se essencialmente aos trabalhos de Hannah Arendt e Jürgen Habermas a partir da segunda metade do século XX. A partir desse ponto específico (anos 50-60 do século passado) e tomando como referência as noções clássicas de público e privado, foi possível identificar importantes transformações nesses espaços, indelevelmente intrincadas no desenvolvimento da Modernidade. Nas últimas décadas, diferentes versões da distinção público/privado adquiriram visibilidade num conjunto de disciplinas e áreas de interesse, desde a “escolha pública” da teoria económica às teorias da história social e do feminismo. Ao mesmo tempo que as relações entre o “setor público” e as “privatizações” se tornaram tema cimeiro do debate sobre política económica, cresceu igualmente um interesse renovado sobre a história das transformações da “vida privada” – designadamente da mutação dos modos de intimidade, sexualidade, família e amizade. O desenvolvimento dos meios de comunicação nos últimos 50 anos – em primeiro lugar a comunicação eletrónica com a rádio e a televisão, e depois a Internet – veio implicar a necessidade de uma nova forma de pensar estes conceitos, no âmbito de uma reflexão mais alargada sobre a mediação técnica. A visão dicotómica de separação entre o público e o privado é hoje olhada como datada e sem correspondência com a vida social contemporânea, e não descreve, com rigor, os modos como público e privado operam. Com efeito, onde havia separação entre as duas esferas, há hoje sobreposição e interação (Ford, 2011). A quebra do abismo entre público e privado ocorreu em vários níveis, e possui uma relação estreita com o desenvolvimento e a ubiquidade das tecnologias de informação e comunicação, desde a Internet aos diversos dispositivos de comunicação móvel. Estas transformações, relativamente recentes, trouxeram consigo a necessidade de compreender, de um ponto de vista da sociologia dos media, o modo como as novas tecnologias da informação participam na redefinição das fronteiras entre público e privado, ao misturarem em permanência lugares e atividades públicas e privadas. O exemplo mais evidente desta realidade é a publicitação da intimidade nos media audiovisuais e na Internet, redefinindo fronteiras e confrontando-

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nos com o modo como olhamos para a exposição pública criada primeiro pelos meios de comunicação de massa, e, mais recentemente, renovada pelos media próprios da Internet. Neste âmbito, desde que os media sociais ocuparam o lugar de destaque que hoje detêm, são diversos os investigadores que apontam o amplo conjunto de transformações sociais e políticas que lhe estão associadas. Dado o caráter problemático da determinação destes conceitos, é hoje percetível que público e privado não existem de forma natural, e que a nossa atenção deve recair não apenas na evolução e na porosidade da fronteira entre público e privado, mas também na evolução das significações que estas noções transportam. Em suma, a nossa atenção deve recair nos processos de construção destas noções e nos problemas (públicos e privados) que lhe vêm associados. Partindo destas preocupações, este artigo irá investigar a aparente diluição do abismo clássico entre público e privado, e a sua relação com o desenvolvimento e a ubiquidade das tecnologias de comunicação – desde a Internet aos dispositivos de comunicação móvel. O objetivo principal é pensar a Internet enquanto espaço de publicitação do privado e de gestão da visibilidade – e apreciar a sua ligação estreita a elementos de voyeurismo –, ao mesmo tempo que avaliar as alterações de estatuto e relevância das dimensões pública e privada. Perante este enquadramento, e sem negligenciar os conceitos estruturantes do modelo clássico de espaço público, procurar-se-á aqui desenhar uma visão renovada sobre as noções de público e privado, transformadas e reorganizadas em sociedades marcadas por novas e inéditas formas de interação. Tal desígnio implica cumulativamente um conjunto de tarefas, que servirão de fio condutor a este texto: designadamente, uma nova perspetiva de análise, uma redefinição de conteúdos normativos e uma nova grelha concetual que permitam compreender as dimensões sociais e cívicas destas noções. 1. Paradoxos da privacidade Num tempo em que o impacto social das novas tecnologias de comunicação está a transformar (a esvaecer) as fronteiras entre “publicidade” e “privacidade”, em aspetos fundamentais, estes conceitos adquiriram um lugar central no debate sobre as formas de sociabilidade e as dimensões políticas que lhes estão associadas. Se um dos temas fundamentais do século XX dizia respeito ao poder esmagador do Estado e do mercado para interferirem e dominarem a vida privada, em contraste, à entrada do século XXI, a questão emergente parece ser a erosão da dimensão pública,

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ao ser permeada por processos que anteriormente se situavam no âmbito do privado. No essencial, os debates estruturam-se hoje em torno do “fim da privacidade” e da “privatização do espaço público”. São diversos os sinais que evidenciam estes desenvolvimentos. Entre eles, encontra-se a diminuição da participação na esfera pública através das suas formas de associação e de comunicação democrática, lado a lado com a destruição de antigos sentimentos de solidariedade e de pertença a comunidades específicas. Os espaços públicos das cidades, onde geminava a civilidade e a vida social, são hoje atravessados por “veículos privados” (enquanto metáfora da veloz circulação de indivíduos blindados no seu próprio ambiente), ao mesmo tempo que empresas privadas assumem o controlo de instituições públicas como escolas, hospitais, prisões, e, em certa medida, do próprio Estado, a que corresponde uma progressiva perda de controlo democrático (Sheller & Urry, 2002: 107). Simultaneamente, toda uma política de intimidade, pautada por um tom confessional, invade o espaço público, contagiando e ocupando um território antes definido em termos públicos, enquanto arena de debate político e de arbitragem de interesses coletivos. A partir de frentes diversas, os indícios convergem no sentido de o público tender a tornar-se privatizado, e de o privado crescer de modo desproporcionado – em ambos os casos com consequências relevantes na organização da vida social. Sabemos que as mutações que percorrem público e privado são físicas (sob a forma de pessoas que se movem, de objetos e espaços), mas são igualmente informacionais (sob a forma de comunicação eletrónica de dados, imagens visuais, textos e sons). Os sistemas de comunicação são cada vez mais móveis, e estão incorporados em aparelhos que permitem um número crescente de processos de participação mas igualmente de controlo (Sheller & Urry, 2002). É a partir daqui que as novas tecnologias de comunicação, suportadas e acedidas pela Internet, ocupam um lugar de importância inquestionável no que se refere às atuais relações entre os espaços público e privado, e igualmente nas noções de público e privado que os estruturam. Público e o privado, enquanto esferas de informação e de conteúdos simbólicos amplamente desvinculados de referenciais físicos, cada vez mais interligadas com as crescentes tecnologias da comunicação e dos fluxos de informação, criaram uma situação muito fluida em que os limites entre si são imprecisos e em constante mutação. Cada vez mais, as fronteiras são porosas, contestáveis, sujeitas a negociação e a disputas constantes. Verificamos como não só é possível experienciar eventos com dimensão pública a partir da privacidade da esfera pessoal, como a partir

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do lar o indivíduo pode articular formas de discurso público e exercitá-las em contextos locais ou mesmo globais. Ao mesmo tempo, a habilidade dos indivíduos para controlarem os seus territórios do self e limitarem-lhes o acesso é constantemente posta em causa, e, em alguns contextos, comprometida pelo facto de os outros poderem fazer uso de novos meios – tecnológicos, políticos e legais – para lhe acederem em benefício próprio e, em algumas situações, torná-los públicos. As fronteiras flutuantes entre a vida pública e a vida privada tornaram-se um terreno disputado, em que indivíduos e organizações usam os meios disponíveis para obter informações sobre os outros e para controlar as informações sobre si mesmos, muitas vezes esforçando-se para lidar com mudanças que não puderam prever e com agentes cujas intenções não puderam entender (Thompson, 2010). É neste contexto, incerto e de risco, que a ação humana atravessa os planos privados, públicos e sociais – não necessariamente nesta ordem nem de forma exclusiva –, numa multiplicidade de espaços acompanhada pela multiplicidade de escolhas à disposição de cada indivíduo. O resultado, como descrevia recentemente Barnes (2006), é vivermos num mundo de privacidade paradoxal. Por um lado, os indivíduos (Barnes refere-se a adolescentes) revelam os seus pensamentos e comportamentos íntimos online; por outro lado, desde agências de administração pública a profissionais de marketing, são diversas as instâncias que recolhem e processam dados pessoais sobre si. Barnes descreve como muitos registos governamentais foram transformados em arquivos digitais que podem ser pesquisados por meio da Internet; como cada vez que usamos um cartão de compras são recolhidos dados sobre os nossos hábitos de consumo; ou ainda como, a partir de todas estas informações, as empresas gestoras de cartões de crédito podem criar perfis que abarcam muitos dos nossos comportamentos, com cada vez mais precisão. Guardados em centenas de servidores estarão detalhes de cada dia das nossas vidas, das nossas preferências de compra aos nossos pensamentos e comunicações. Embora muitas pessoas desconheçam o facto de a sua privacidade poder estar em causa, Galkin (1996) verificava, há quase duas décadas, como muitas das informações que as pessoas gostariam de manter em segredo se encontram, de forma perfeitamente legal, na posse de alguma entidade, empresa ou governo. Em resultado, o estatuto paradoxal da privacidade implica a redefinição do seu sentido. Ora, este sentido pode ser desenhado a partir do modo como o privado é concebido nas diversas situações da vida quotidiana. Mencionemos de passagem o exemplo dos telemóveis – e como o seu uso

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mais banal é muitas vezes intrusivo e modifica as noções de público e de privado, ao tornar possível o contato com estranhos ausentes enquanto se participa numa reunião de família, ou estar fisicamente presente mas distante em termos de comunicação. “As novas tecnologias da informação e da comunicação aboliram a distância e erigiram no seu lugar uma proximidade virtual (ou semiótica). E o mesmo é verdade para as relações temporais: correio eletrónico, telemóveis, videoconferências entre outros são formas de simultaneidade comunicativa e de proximidade que afetam e definem a própria qualidade da mensagem” (Fortunati, Katz & Riccini, 2003: 165). Como revela Sherry Turkle, estamos a assistir a formas de sociabilidade em que, no âmbito de espaços públicos, as pessoas reclamam a possibilidade de estar em privado, ligadas à tecnologia. “Uma caminhada no bairro revela um mundo de homens e mulheres loucos, falando para si próprios, por vezes gritando consigo mesmos, pouco preocupados com o que se passa à sua volta, felizes por terem conversas íntimas em espaços públicos. Na verdade, os bairros tornaram-se eles próprios espaços liminares, nem inteiramente públicos nem inteiramente privados” (Turkle, 2008: 122). 2. A publicitação do privado Ao situarmos o ponto de partida desta análise na Internet, merecem um olhar atento as páginas pessoais (homepages), por terem sido pioneiras numa orientação que se aprofundaria nos anos seguintes com outras formas de mediatização mais elaboradas, como vieram a ser os weblogs, os microblogs e as diversas redes sociais. Com o início do uso generalizado da Internet em meados da década de 1990, de imediato as páginas pessoais se popularizaram e se constituíram enquanto forma de produção e difusão mediática. Desde logo, porque projetar e desenhar uma página pessoal é um ato relativamente fácil e de baixo custo, que permite tanto alcançar uma audiência potencialmente global como o envolvimento com uma comunidade restrita de interesses específicos mas geograficamente dispersa. E consegue-o com um alcance que ultrapassa em escala qualquer outra forma de comunicação anterior. O termo “homepage”, em si próprio, destaca e enfatiza a permeabilidade entre as dimensões pública e privada que confluem nas páginas pessoais online (Lister et al, 2009: 267). Um “lar”, no mundo real, é entre outras coisas uma forma de separar – proteger – o indivíduo do mundo. Já um “lar” online, por seu lado, é ao mesmo tempo a “abertura de um rasgo na parede

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para deixar o mundo entrar”, e a transferência desse “lar” para o mundo externo (Seabrook, 1998). Em certa medida, e de modo conceptualmente paradoxal, esta “casa” ter-se-á tornado parte integrante da esfera pública – ou antes, o ponto estreito onde a esfera pública e uma das esferas privadas (o “lar”) se encontram para compor um mundo da vida mais integrado que o concebido por Habermas (1962). No que respeita à relação público/privado, um dos aspetos relevantes destes novos espaços tem a ver com as formas como os indivíduos ali se “apresentam”, e com o modo como gerem a sua visibilidade. Tal como num espaço de representação teatral, a presença online exige que se seja visível, que se atue perante uma audiência – que o indivíduo seja chamado a representar a sua própria “pessoa”. Em consequência, ocorre uma transformação progressiva, desde “habitante da identidade” a “ator” dessa identidade, habilitado e potenciado pelo baixo custo e pela facilidade de uso das tecnologias. Ora, uma das características definidoras destes espaços é serem marcados pela revelação, pelo desvelamento e, inevitavelmente, por práticas de voyeurismo. Com efeito, cada vez mais aspetos pessoais de cada indivíduo têm que ser revelados; primeiro, para obter visibilidade, depois, para a permanente validação e negociação dessa visibilidade. Nesta medida, a mera necessidade de diferenciação do espaço pessoal da enorme quantidade de outros espaços pessoais induz o aumento de perspetivas cada vez mais íntimas (porque distintivas), num crescendo que aprisiona o autor numa “quase pornográfica lógica da visibilidade” (Cavanagh, 2007: 126). No mesmo sentido, é possível identificar uma ligação entre esta propensão para a visibilidade e o surgimento, anterior e mais geral, de uma cultura da celebridade, que cria o impulso para a participação num ambiente cultural em que a visibilidade pública e a fama se assumem como índices reconhecidos de estatuto. A esperança numa renovação sucessiva dos “quinze minutos de fama” seria o estímulo para a participação numa cultura da revelação – a cada tweet, a cada post, a cada partilha. Contudo, esta propensão voyeurista deve ser vista como parte de uma tendência mais ampla da vida moderna. A prevalência de páginas pessoais, álbuns fotográficos ou outros conteúdos de âmbito pessoal, disponibilizados online de forma livre, corresponde a uma orientação generalizada que se manifesta igualmente na proliferação de reality shows televisivos, no jornalismo paparazzi ou no desenvolvimento de indústrias de entretenimento baseadas em aspetos privados de pessoas públicas. Bunting (2001) descreve de forma muito concreta este fenómeno, particularmente emergente nas últimas décadas do século XX, de

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publicitação do que antes era estritamente privado. Refere, como exemplos, programas televisivos dedicados a detalhes íntimos de vidas conjugais, a disputas entre vizinhos, e à manifesta disponibilidade das pessoas implicadas para desvelar estes assuntos na televisão e na imprensa. Como escreve: “A nossa cultura tornou-se compulsivamente auto-revelatória e voyeurista. Esta publicitação da vida privada é o corolário da privatização da vida pública que dominou o debate político durante duas décadas. Do mesmo modo que a privatização removeu muitas atividades da esfera pública, o pessoal ter-se-á movido para preencher o espaço deixado vazio” (Bunting, citada em Cavanagh, 2007: 127, itálicos meus). Esta perceção encontra-se igualmente presente em pensadores como Bauman, quando argumenta que “o ‘público’ é colonizado pelo ‘privado’; o ‘interesse público’ é reduzido a curiosidades sobre as vidas privadas de figuras públicas, e a arte da vida pública é reduzida à exibição de assuntos particulares e a confissões públicas de sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor)” (Bauman, 2000: 37). O resultado destes processos, que se equivalem e equilibram, foi a transformação dos termos e dos entendimentos hoje existentes sobre os domínios privado e público, e, correspondentemente, do próprio discurso acerca deles. Em síntese, é certo que as mudanças ocorridas nas últimas décadas, ampliadas nos últimos anos, implicam que se considere de modo diferente a “apresentação pública”, ou a visibilidade. Nesta medida, se as noções de público e privado, desenvolvidas antes, se colocaram sob a perspetiva da gestão dos espaços da publicidade, a Internet pode hoje ser entendida como um espaço de desdobramentos de representações, onde, em potência, a diversidade global ganha visibilidade pública. Contudo, no que se refere às potencialidades disponíveis, a escala é hoje outra: enquanto o acesso às esferas públicas tradicionais era reservado a minorias ilustres, a Internet permite agora (exige mesmo) a integração de cada utilizador singular no espaço público. Mas, paradoxalmente, esta integração pode resultar numa perda de relevância e de dimensão pública. A Internet publica, mas não cria necessariamente públicos. Multiplica e dá resposta a pedidos de publicitação e de representação, mas minimiza a ressonância pública da generalidade dos espaços. Por um lado, as diversas plataformas de comunicação, hoje, longe de serem espaços de uma publicidade discursivamente densa e publicamente relevante (do ponto de vista da reflexão e da deliberação), cumprirão em grande parte dos casos funções de autorrepresentação e de promoção pessoal ao serviço de políticas de construção de imagem (Trenz, 2009). Por outro lado, a “brutal exposição aos media e a autoritária

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classificação das vidas privadas” torna problemática qualquer noção de intimidade; tanto atores como processos políticos são dados a conhecer a partir de uma mistura de público e privado. Muitas vezes, com resultados demolidores para a reputação de ambos (Seaton, 2003: 174). 3. Reconceptualização da distinção público/privado As transformações descritas até aqui mostram a necessidade de (re) pensar o modo como os media transformam e reorganizam a esfera pública, o público e o privado, e qual o sentido dessas transformações. O que supõe a apreciação da ação que desempenham e dos resultados que obtêm. Ora, qualquer apreciação é feita em função de um conjunto de expectativas, e medida com instrumentos de análise sustentados num determinado quadro normativo. Ao longo da História, a introdução de novos meios de comunicação trouxe mudanças importantes ao nível das infraestruturas da esfera pública, designadamente no que se refere aos seus elementos normativos essenciais. Desta vez, e numa primeira fase, os novos media não se caracterizaram por uma contestação visível da normatividade de um conceito de esfera pública – o qual, como se sabe, reivindica a sua validade dentro de um determinado espaço político, definido historicamente. Ao manter a normatividade da esfera pública como variável constante, cada novo meio tem atraído esperanças e ansiedades semelhantes, em tempos e contextos distintos. Assim, os media são analisados de acordo com os seus potenciais para estimular, envolver e integrar, ou na pior alternativa, para distrair, desintegrar e fragmentar o espaço político (Couldry et al, 2007, 26). Os media digitais não são, pois, excepção: muitos dos discursos comuns trazem consigo a promessa da redefinição do espaço em que a esfera pública se desenrola, sem contudo integrarem qualquer redefinição dos seus conteúdos normativos. Uma analogia pertinente é a que nos mostra que, mantendo como referentes os conceitos clássicos de público e privado, é possível identificar no tipo de publicidade promovido pelos media digitais afinidades estruturais com a autoridade representativa da era feudal. As pesquisas desenvolvidas sobre as publicações na Internet descrevem como os indivíduos criam uma representação pessoal que não tem como referentes prioritários a força do argumento, a sua validade e o consenso – mas antes pretende proclamar a verdade e a autoridade de um ponto de vista. É isso que torna possível afirmar que “a Internet é a Corte que manifesta prestígio e reputação. O paradigma desta manifestação de representação é o guestbook, que

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recolhe as aclamações e apreciações dos visitantes (onde as vozes críticas são frequentemente censuradas)” (Trenz, 2009: 45). Cremos haver duas perspetivas que enquadram a discussão e, posteriormente, a compreensão desta problemática. Primeiro, ideias como a da refeudalização da esfera pública não serão, necessariamente, sintoma do seu declínio, como Habermas diagnosticou em 1962, mas antes da sua mudança de natureza. Nos termos seguintes: a representação através dos media digitais já não é aristocrática, mas possui um pendor democrático, na medida em decorre num campo imensamente povoado por potenciais “manipuladores,” em acesa disputa pela sempre escassa atenção pública. É nesta medida que é possível identificar na Internet o que alguns designam como formas de “publicidade demonstrativa” (Trenz, 2009: 45), levada a cabo a partir da redescoberta dos elementos representativos da esfera pública, agora numa nova escala e, certamente, com diferente alcance normativo. Segundo: ao contrário do que poderão sugerir algumas leituras, não terão sido as tecnologias digitais a falhar o teste da esfera pública – se admitirmos a possibilidade de não ser esse o instrumento de análise adequado à essa análise. Ao procurarmos apreciá-las com a luz da noção clássica de esfera pública, as tecnologias online terão o seu potencial subestimado e a sua compreensão condicionada. Por isso, é necessária a identificação de novas perspectivas conceptuais que permitam enquadrar e compreender as suas diversas dimensões, designadamente as sociais e as cívicas. É esta a proposta de Zizi Papacharissi (2010: 125), quando escreve que: “à medida que os indivíduos se tornam mais confortáveis com os media online, novas apropriações da Internet sugerem tendências singulares que situam as atividades cívicas fora da esfera pública ideal, numa direção que poderá ser provida de significado, mas não do modo que experimentámos no nosso passado cívico.” Estas tendências, se possuem pouco em comum com a esfera pública habermasiana, possuem muito mais em comum com um vasto conjunto de impulsos e desejos contemporâneos. Nesta perspectiva, o desafio que se coloca hoje passará por, não negligenciando os conceitos estruturantes do modelo clássico de esfera pública (e a relação público/privado), desenhar uma visão renovada sobre como os media, na sua diversidade de formas, transformaram e, na verdade, reorganizaram a esfera pública, o púbico e o privado. Esta visão possui duas coordenadas fundamentais. Primeiro, a noção de esfera pública não deve ser confundida com a de espaço púbico. A importância desta distinção é decisiva: muito embora um espaço público forneça a dimensão onde se pode gerar uma esfera pública, não a garante por si. A Internet é um espaço público a que os

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indivíduos têm acesso, que podem usar e de que podem beneficiar. No entanto, espaços públicos “não dão lugar inevitavelmente a uma esfera pública” (Papacharissi, 2010: 124): factores como o acesso à informação, a reciprocidade da comunicação e a comercialização do espaço online funcionam como inibidores primários à transição de um espaço público para uma esfera pública. Na verdade, um espaço virtual realça a discussão, tão só, enquanto uma esfera virtual enalteceria a democracia. Em síntese: se as tecnologias online tornam possível a criação de novos espaços, públicos e privados, sem gerarem necessariamente uma esfera pública, estes espaços acomodam novos conceitos de público e de privado, construídos através da fusão de interesses comuns e individuais, com geometrias e amplitudes variáveis. Por outro lado, os termos clássicos em que a distinção pública/ privado foi desenhada, se aplicados às preocupações dominantes com a erosão da esfera pública e com a diluição das fronteiras entre público e privado, são incapazes de captar as múltiplas relações que envolvem toda a complexa hibridização das vidas pública e privada. E aqui a segunda coordenada: uma crítica às concepções estáticas de público e privado permitirá enfatizar a crescente fluidez de “onde “ e “quando” os momentos de publicidade e privacidade possam ocorrer. 4. Uma nova perspetiva de análise O resultado destas considerações traduz-se numa nova perspetiva de análise. Passamos a descrever os seus traços essenciais. Encontra-se amplamente descrito como os media eletrónicos se caracterizam pela sua capacidade para eliminar, ou pelo menos reorganizar, as fronteiras entre os espaços públicos e privados que afetam a nossa vida, não tanto através dos conteúdos mas antes alterando a “geografia situacional” da vida social (Meyrowitz, 1986: 6). Para explicar este efeito, Meyrowitz utilizou uma analogia arquitetónica: pediu a uma audiência que imaginar um mundo em que todas as paredes que separam quartos, casas e escritórios fossem removidas, combinando, assim, várias situações distintas. Constatou que esta fusão de privado e público (ou a confluência de fronteiras públicas e privadas) traz consigo consequências comportamentais para os indivíduos, que procuram ajustar os seus comportamentos de modo a torná-los adequados a uma variedade de diferentes situações e audiências. Ora, de um modo crescente, também o domínio da interação e da autoapresentação promovida pelos media eletrónicos tem vindo a

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caracterizar-se pela falta de um lugar situacional para orientar o indivíduo ou, na aceção célebre de Meyrowitz, pela ausência de noção de espaço. Décadas depois do livro clássico de Meyrowitz, é hoje muito mais sentido que as tecnologias e a comunicação mediada esbatem fonteiras e promovem a convergência entre público e privado. Esta confluência é especialmente pronunciada num meio como a Internet, e é particularmente relevante no âmbito das interação em redes sociais online, e nos dispositivos móveis de comunicação (por exemplo, Barnes, 2006; Boyd e Heer, 2006; Donath e Boyd, 2004). Num sentido lato, a convergência, enquanto característica intrínseca dos novos media, assume, neste processo, uma importância central, por conduzir a reconfigurações e reorganizações de vária ordem: 1) tecnológica, na medida em que modifica a forma como o cidadão se atualiza e reconfigura, através de uma diversidade de recursos distintos mas convergentes; 2) de espaços, alterando a localização das práticas cívicas; e 3) de práticas, sugerindo a continuidade das atividades através das categorias do social, do cultural, do económico ou do político. O resultado é, assim, uma plasticidade das fronteiras entre o público e o privado, através do uso de espaços mediados que promovem a privatização do público e a publicitação do privado. Em consequência, as fronteiras entre público e privado são permanentemente reajustadas ou esbatidas, num processo cujo resultado é “a privatização do espaço público e o regresso possível ao lar com espaço político” (Papacharissi, 2010: 126). A convergência vem potenciar estas tendências, designadamente quando multiplica ou pluraliza as nossas esferas de interação e as suas possíveis audiências – as quais, também por si, aumentam o grau de indeterminação das fronteiras entre os espaços clássicos. A nova perspetiva de análise é afirmada por Papacharissi de forma lapidar em outro parágrafo: “Muito embora no passado público tenha sido usado para demarcar o fim do privado, e privado sinalizasse o afastamento do público, estes termos não implicam mais esta oposição, especialmente no modo como são arquitecturalmente usados para a construção do espaço. Os espaços apresentados pelas tecnologias convergentes são espaços públicos e privados, de forma híbrida” (2010: 127-28, itálico meu). Se os últimos anos assistiram a múltiplas referências à necessidade de uma nova abordagem, é no âmbito das redes sociais, e no modo como nelas se misturam público e privado, que essa necessidade se mostra com maior eloquência. Os sites de redes sociais são apresentados, genericamente, como a última geração de “espaços públicos mediados” – neles, as pessoas podem reunir-se, de forma pública, através de tecnologias de mediatização.

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Em alguns sentidos, os públicos mediados são semelhantes aos públicos não mediados com que a maioria das pessoas está familiarizada, desde os cafés dos dias de hoje a outros espaços de encontro mais ou menos informal. De modo equivalente a outros espaços públicos, também as redes sociais têm efeitos na vida social. Deles se retira o sentido das normas que regulam a sociedade, e neles se constitui um espaço para a aprendizagem das formas de expressão a partir das reações de outros. Permitem que através de atos ou expressões se adquira a existência real, atribuída pelo reconhecimento de outos no sentido que lhe deu Arendt. É assim entendido que os sites de redes sociais se apresentam como mais uma forma de espaço público, a somar a outras anteriores. Possuem contudo propriedades exclusivas. Danah Boyd (2007) assinala quatro: 1) a persistência, na medida em que o que é dito permanece ao longo do tempo; 2) a procurabilidade, em potência, de toda a informação que alguma vez tenha sido digitalizada; 3) a replicabilidade de qualquer conversação, de contexto em contexto; e 4) a invisibilidade da audiência, em menor grau a presente que a futura. Descrita assim, esta realidade evidencia as dificuldades em utilizar conceitos clássicos para determinar o quão privado ou público é cada evento ou lugar. As escalas clássicas são acusadas de serem patologicamente mal equipadas para lidar com as perturbações trazidas pelas mais novas tecnologias de mediação (Boyd, 2007). Por isso, ao mesmo tempo que público e privado mudam, de forma acelerada, diante de nossos olhos, é denunciada a falta de linguagem, normas e estruturas sociais para lidar com as novas circunstâncias. É no esforço para suprir essa falta que, numa leitura próxima da feita por Meyrowitz duas décadas antes, é denunciada a existência de um “colapso do contexto” nas performances de sociabilidade na Internet (Boyd, 2008). Tradicionalmente, o contexto foi sempre entendido como um elemento estruturante, na medida em que é a instância que, em interações não mediadas, pauta as fronteiras públicas e privadas. Colapsado o contexto, e na medida em que a Internet está profundamente incorporada na vida social, as especificações contextuais do quotidiano tornam-se extensões de atividades online que lhes correspondem (Nissenbaum, 2011), e vice-versa. Em consequência, o privado surge como um domínio des-espacializado de conteúdos simbólicos, em relação aos quais o indivíduo possui níveis variáveis de controlo, independentemente de onde esse indivíduo e esses conteúdos se encontrem. Pelo outro lado, o público apresenta-se como “um espaço complexo de fluxos de informação”; “‘ser público’ significa ‘estar visível’ nesse espaço, ser capaz de ser visto e ouvido por outros” (Thompson, 2010: 29). Retomando

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uma ideia já presente em Hannah Arendt, o público mantém-se como espaço de aparição – o simples facto de aparecer confere às palavras e ações um tipo de realidade que não possuíam, justamente porque são vistas e ouvidas. Todavia, ao contrário do que sucedia com a noção clássica de espaço público, o espaço de aparição é agora des-espacializado por princípio. É ainda um espaço não totalmente controlável: a partir do momento em que palavras e ações surgem nele tornam-se um registo (um traço persistente que pode circular indefinidamente no âmbito dos fluxos de informação) e assim serem reproduzidas em muitos media e contextos diferentes. Palavras e ações, uma vez públicas neste espaço, são-no intemporalmente – são, em certa medida, “imortais”, embora num sentido diferente do tipo de imortalidade que os antigos gregos vinculavam à dimensão da ação pública. A adoção desta perspetiva de análise implica que consideremos duas condições interligadas: primeiro, que libertemos o nosso modo de pensar sobre a vida pública do controlo apertado que lhe impõe a abordagem tradicional; depois, que procuremos renovar esse modo de pensar ao mesmo tempo que refletimos sobre o novo tipo de publicidade agora criada. Esta perspetiva implica, necessariamente, revisitar a linguagem que empregamos para descrever as novas práticas online. Quer isto dizer que temos que “nos livrar da tentação de pensar a ‘esfera privada´ em termos de espaços físicos que sejam como a nossa casa.” A questão que se coloca é, agora, a seguinte: “hoje, quando um indivíduo está no espaço da sua casa ou quarto e entra na rede, divulgando informações sobre si mesmo a milhares ou milhões de outras pessoas, em que sentido este indivíduo está situado na esfera privada?” (Thompson, 2010: 28-29). 5. A vida mediada como continuum A necessidade de uma conceptualização não dicotómica da distinção público/privado verifica-se de um modo igual na dimensão espacial como na dimensão pessoal. Uma tentativa para preencher o vazio entre estas duas esferas é levada a cabo por Susan Gal, quando classifica a distinção público/privado como um “fenómeno comunicativo” (Gal, 2002: 77). Tomando como ponto de partida a clássica abordagem dicotómica, afirma que “a maioria das práticas, relações e transações sociais não estão limitadas pelos princípios associados a uma ou outra esfera”. Na verdade, “público e privado coexistem em combinações complexas nas rotinas vulgares do quotidiano.” (Gal, 2002: 78) Noutros termos: aspetos que têm vindo a ser tratados como totalmente diferentes da vida social não se encontram, na

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verdade, tão afastados entre si. A explicação pode ser resumida de forma breve: “a dicotomia público/privado é (…) uma distinção fractal” (Gal, 2002: 78), em que cada um dos elementos pode ser apresentado em partes menores, com as mesmas características que o todo embora com escalas e valores diferentes. Neste processo, público e privado encontram-se acomodados e enredados, e são continuamente renegociados e redefinidos, mantendo contudo a relação entre si. Não são conceitos verdadeiramente dicotómicos, embora os “participantes possam frequentemente ‘encaixálos’ numa única dicotomia, simplificando o que, na prática, é um recurso complexo” (Gal, 2002: 84). Público e privado, e as diferenças entre si, são, acima de tudo, contextuais e relacionais. Numa outra abordagem, a distinção público/privado pode ser formulada a partir da perspetiva do interacionismo simbólico, o que permitirá considerar público e privado como situacionais. Esta tese assenta em duas ideias interligadas: 1) a distinção público/privado é um continuum e 2) os verdadeiros público e privado são genericamente tipos ideais. Aqueles que vivem sob esta nova versão de público/privado reclamam a capacidade de “escolher cuidadosamente o que é desvelado ou ocultado, para quem e como” (Nippert-Eng, 2010: 140). Isto é, nada é verdadeiramente público ou privado; esforçamo-nos por dar mais ou menos acesso a informação sobre nós mesmos, a partir do que achamos ser “situacionalmente apropriado” (Ford, 2011: 560). Tendo em conta a leitura crítica apresentada acima em relação a uma interpretação dicotómica da relação público/privado, e considerando as mudanças sociais ocorridas em função dos novos meios de comunicação, a alternativa possível poderá passar por pensar o par público/privado, nas suas dimensões espaciais e pessoais, como um continuum (Gal, 2002). Concretamente, esta continuidade é ancorada por um lado no “privado” e, por outro, no “público”, sem contudo se fixar, de forma pura e permanente, em qualquer um destes conceitos. Os promotores desta tese advogam que uma leitura nestes termos não difere, de forma substancial, das que são feitas por Arendt ou Habermas, entre outros, designadamente quando sugerem explicações teóricas que incorporam categorias intermédias entre as conceções clássicas de público e privado – leia-se “o social”. Por outro lado, eventuais categorias intermédias alternativas, como semipúblico ou semiprivado, cumprirão de forma insatisfatória o objetivo de explicar a relação público/privado: em certa medida, “arrumam” nessas categorias eventos e interações sem evidenciar o carácter dinâmico que lhes é próprio. O aprofundamento desta relação permite-nos caraterizar a distinção público/privado como fractal (Gal, 2002). Significa isto que a fronteira

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entre o par público/privado não é a que se encontra expressa na fratura entre categorias opostas – mas uma linha fluida e negociada. Nos anos mais recentes, Sarah Michele Ford (2011) veio sugerir uma combinação ajustada aos desenvolvimentos trazidos pelas novas formas de interação. Esta combinação articula a perspetiva categórica (assente na oposição entre as categorias público/privado) com uma explicação fractal (dessa relação), para propor a explicação seguinte: entre o puramente privado e o puramente público existe um número infinitamente variável de configurações que caem algures entre as tradicionais categorias de ‘privado’ (nomeadamente coisas que ocorrem ou são ditas por detrás de portas fechadas, virtuais ou físicas) e ‘público’ (interações e eventos que ocorrem sob o olhar de uma audiência desconhecida. Toda a conceptualização do público e do privado que acabámos de descrever, embora parte de um conjunto de dinâmicas de natureza social, é facilitada pela estrutura de software dos chamados media sociais. Sobretudo as redes sociais mais comuns exemplificam de forma vibrante esta realidade – por exemplo, quando permitem aos seus utilizadores, enquanto administradores, o controlo detalhado da visibilidade da sua presença online. Não cabendo aqui desenvolver com detalhe os diversos recursos destas plataformas, assinalemos como, através da constituição de grupos com diferentes níveis de acesso, qualquer conteúdo pode ser público, privado ou possuir restrições de acesso com base em associações de rede ou pertença a listas definidas pelo utilizador. Os sites de redes sociais permitem ainda especificar indivíduos ou listas impedidos de aceder a qualquer conteúdo, admitir ou remover membros de qualquer lista e aplicar diversos filtros de privacidade/visibilidade. Resumindo: munidos de ferramentas adequadas, os utilizadores de redes sociais gerem de forma ativa a privacidade e adequam os seus conteúdos pessoais a públicos específicos de um modo que os leva a experimentar público/privado sob a forma de uma continuidade. Alguns conteúdos podem ser inteiramente privados, outros conteúdos inteiramente públicos, mas entre eles existe num número indeterminado de espaços dinâmicos, tanto de bloqueios como de publicitações não-privadas e não públicas. O que permite, na melhor das hipóteses, e de forma realista, caraterizar público e privado como espaços negociados, genericamente não pré-determinados. Esta maleabilidade do público e do privado estende-se para além das redes sociais na Internet, e está presente nas diversas dimensões do quotidiano – sendo embora potenciada pelas novas formas de comunicação. Desde o académico que trabalha a partir de casa, onde zela por uma criança adoentada (domínio privado), enquanto participa, através da internet,

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num debate académico (domínio público), ao empregado dedicado que durante as férias utiliza o smartphone para ler e responder a e-mails de trabalho – cada um destes indivíduos habita um espaço que não é público nem privado nas suas formas puras. Em vez disso, transitam de forma fluida entre os dois reinos. Este movimento rápido para a frente e para trás é a marca definidora da nova relação entre público e privado: ao viverem o quotidiano em movimento entre o online e o offline, os indivíduos “criam e destroem bolsas de espaços intersticiais que não podem ser classificados nem como públicos nem como privados” (Ford, 2011: 562). 6. A esfera privada e a vida cívica As conclusões alcançadas nas páginas anteriores, genericamente transversais á formas comuns de sociabilidade, implicam, pela sua dimensão estrutural, uma leitura equivalente no que se refere às questões da vida cívica. Isto é, as novas práticas de interação e os novos entendimentos de público e privado, ao atravessarem as diversas dimensões da vida social, definem de igual modo os padrões de ação e de compreensão das práticas de cidadania na chamada era digital. Verificámos como a contemporaneidade, num processo se agudizou com a emergência da sociedade de rede, se caracteriza por um conjunto vasto de ações, atomizadas, que ocorrem numa pluralidade de espaços, simultaneamente públicos e privados. Encontra-se igualmente demonstrada a eficácia da conversação sobre assuntos públicos no âmbito daquilo que, nos termos clássicos, seria o reduto do privado, o lar; isto é, falar sobre assuntos públicos na esfera privada, mesmo entre família e amigos, tem consequências políticas. Alguma pesquisa mostra que assuntos nacionais, internacionais, de Estado ou locais, ou ainda temas mais específicos como economia, são discutidos com razoável frequência em casa e no trabalho, e com menor frequência em organizações cívicas ou outros espaços institucionais (Wyatt, Katz & Kim, 2000). Quer isto dizer que conceções híbridas de “privado no público” e de “público no privado” não implicam automaticamente uma redução da dimensão política do indivíduo, ou um colapso do público, mas podem apontar para a proliferação de vários “espaços móveis”, de natureza privada, com elevado potencial público e político. Genericamente, mudanças estruturais de largo alcance, relacionadas com a globalização ou com a orientação do Estado, podem, a montante, estar interligadas e nalguns casos dependentes

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de ações geradas a partir de espaços concretos e particulares, móveis e mediados por computador (Sheller & Urry, 2002). O traço comum a estas ações pode ser encontrado no indivíduo que exerce a sua autonomia a partir de uma esfera cívica fundada, precisamente, na tensão entre público e privado – numa esfera privada digital (Papacharissi, 2010). Por exemplo: participar num protesto online, exprimir um ponto de vista político num blogue, colocar um vídeo no YouTube ou um comentário num grupo de discussão online representam formas de intromissão privada na agenda pública, tornada possível pelos novos media. Noutros termos: os indivíduos têm o poder de adquirir sentido público a partir de um dispositivo pessoal, situado no seu espaço privado, a partir de onde criam uma esfera privada de interação. Este espaço privado é adaptável e flexível, assente numa agenda pessoal, e não garante níveis de privacidade ou controlo totais. No seu conjunto vasto, as tecnologias digitais são compostas por estruturas que promovem a expressão de múltiplas esferas privadas, convergentes, garantindo a ligação dessas esferas e evitando o seu isolamento. Por isso, nessa esfera privada, o indivíduo está sozinho mas não está isolado, na medida em que está ligado a outros, existentes ou imaginados, com quem negoceia (ou a quem atribui) níveis variáveis de privacidade, com os quais debate questões públicas, participando desse modo na vida cívica. Entendido assim, o modelo de esfera privada descreve o trajeto de um indivíduo que se desloca desde a esfera pública de interação, onde antes se situava, para uma esfera privada digital de reflexão, de expressão e de reação – e fá-lo à procura daquele que se lhe apresenta como o último dos redutos da sua autonomia. Este processo não deve ser lido a partir de uma visão tecno-determinística: esta noção de esfera privada, e a mobilidade que lhe é intrínseca, emerge a partir de valores sociais e culturais como o individualismo e a autoexpressão que caracterizam as sociedades neoliberais da modernidade tardia. Marcado por esses valores, o indivíduo é integrado num vasto conjunto de rotinas que tendam a uma acessibilidade permanente, uma vida em linha, que vive com a sensação de exercer um controlo importante sobre a sua ação (Fenton, 2012: 141). Então, a autonomia conferida pelo espaço digital permite ao indivíduo o exercício de uma forma de cidadania que alguns autores designam como monitorial e líquida (Bauman, 2000 e Schudson, 2008), a partir de um “território” conhecido, onde desenvolve as suas práticas quotidianas e onde faz as suas escolhas – que adapta ao seu estilo de vida, ao seu ritmo e à sua vontade. Conformado nesta autonomia, o indivíduo cria hábitos, que Papacharissi enumera detalhadamente. Destacamos de entre eles a conetividade remota com outros indivíduos

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(networked self), que permite ampliar o alcance da sua esfera privada; o narcisismo digital, visível na elevada personalização dos conteúdos públicos; o recurso frequente à sátira e a subversão; e a eclosão de novas formas de ativismo social, protagonizadas a partir de espaços tendencialmente privados (Papacharissi, 2010). Concluindo: se tomarmos como referência os termos clássicos, a esfera privada digital não é classificável em termos de político nem pessoal – implica uma mistura peculiar de ambos, o que torna a o público menos político e o privado menos pessoal em relação à dicotomia tradicional (Papacharissi, 2010). Consequentemente, se todo o sentido da noção de “pessoal” carece ser repensado à luz das práticas desenvolvidas através das formas de interação online, também o “político” não pode ser articulado em termos de uma esfera democrática, se a entendermos à luz do seu sentido normativo tradicional. Desde logo, pelo facto de a própria esfera política ser uma esfera permeada pelo interesse pessoal, e, nessa medida, ser suscetível à instrumentalização por quem detém literacia tecnológica ou expertise discursiva, entre outros factores. Notas finais Este artigo permitiu identificar, desde bem cedo, a necessidade de uma nova forma de pensar público e privado e os conceitos que lhe estão associados, no âmbito de uma reflexão mais alargada sobre a mediação técnica. Feito este percurso, cremos ser possível enunciar um conjunto de ideias síntese, que, no seu todo, explicitam como os novos media detêm a capacidade para reorganizar as fronteiras entre os espaços públicos e privados que afetam a nossa vida, alterando a “geografia situacional” da vida social e das práticas cívicas. Considerámos a necessidade de revisitar a linguagem que empregamos para descrever as novas práticas online. Com efeito, os termos clássicos em que a distinção público/privado foi desenhada, se aplicados às preocupações dominantes com a erosão da esfera pública e com a diluição das fronteiras entre público e privado, são incapazes de captar as múltiplas relações que envolvem toda a complexa hibridização das vidas pública e privada. A ênfase deve ser deslocada no sentido da crescente fluidez do “onde“ e do “quando” em que os momentos de publicidade e privacidade ocorrem – ou possam ocorrer. Noutros termos, mostrou-se a necessidade de libertar o modo de pensar a vida pública do controlo imposto pela abordagem

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tradicional, renovando esse modo de pensar a partir da análise dos novos tipos de publicidade e privacidade hoje comuns. Com efeito, toda a conceptualização do público e do privado deve considerar o facto de pouco das nossas vidas ser hoje verdadeiramente público ou privado. Num tempo em que nos esforçamos por dar mais ou menos acesso a informação sobre nós mesmos, a partir do que achamos ser “situacionalmente apropriado”, aceitamos com naturalidade a privacidade como uma dimensão contextual e relacional, permanentemente redefinida e negociada. Mais que dimensões opostas, entre o puramente privado e o puramente público existe um número infinitamente variável de configurações que caem algures entre as tradicionais categorias de privado e público. O quotidiano do indivíduo e a sua sociabilidade que lhe é inerente decorrem num vai-e-vem através de uma linha de continuidade particular, ancorada no “privado” e no “público”, sem se fixar, de forma pura e permanente, em algum destes conceitos. O modo de enfrentar estas preocupações e alcançar privacidade online acaba por ser fruto de uma combinação peculiar de transparência e ocultamentos, resultante de escolhas que o indivíduo vai fazendo de forma mais ou menos consciente (Nissenbaum, 2011). Sendo uma dinâmica de natureza estrutural, possui uma dimensão equivalente no plano da vida cívica. Com efeito, concebemos que as concepções híbridas de “privado no público” e de “público no privado” não implicam por si uma redução da dimensão política do indivíduo, ou o colapso do público – como uma leitura a partir dos conceitos tradicionais levaria a supor (a leitura de Richard Sennett, 1978, entre outros). Podem antes contribuir para a proliferação de uma multiplicidade de “espaços móveis”, de natureza privada, mas com elevado potencial público e político. Em cada um desses espaços, estará, em potencia, um indivíduo que monitoriza e, sempre que pretende, exerce a sua autonomia a partir de uma esfera cívica fundada, precisamente, na tensão entre público e privado – numa esfera privada digital. Fazendo-o, os indivíduos adquirem sentido público a partir de um dispositivo pessoal, situado no seu espaço privado. No vai-e-vem contínuo descrito acima, ou a partir de uma esfera privada digital, desenha-se o trajeto de indivíduos que se deslocam desde a esfera pública de interação, onde antes se situavam, para uma esfera privada digital de reflexão, de expressão e de reação, em que momentos de publicidade e de privacidade podem ocorrer.

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CAPÍTULO 3 1

A ECONOMIA POLÍTICA DA PRIVACIDADE NO 1984 DE GEORGE ORWELL2 António Bento

Introdução Por que razão o adjectivo “orwelliano” irrompe, sem pedir licença, nos nossos discursos sempre que discutimos os efeitos das tecnologias da informação e da comunicação e o seu impacto na chamada «esfera privada»? Por que razão, sempre que o adjectivo “orwelliano” é usado, o seu significado mais comum e imediato é o que evoca um Estado – hoje será talvez mais correcto falarmos, não tanto do Estado ou de estados, mas dos grandes poderes privados económico-financeiros – omnividente e omnisciente capaz de extinguir totalmente a privacidade pessoal? Por que razão a nossa era de sofisticadas tecnologias de vigilância e de controlo parece dar cada vez mais relevo e actualidade às fantasmagorias “orwellianas”? Por que razão a metáfora cada vez mais ubíqua do «Big Brother» domina todos os discursos sobre a privacidade da informação e sobre a assim chamada «dataveillance»? Deve com certeza existir uma resposta suficientemente credível para todas estas perguntas e, ao mesmo tempo, uma resposta capaz de dar conta 1

Por vontade do autor, este capítulo utiliza a grafia anterior ao actual acordo ortográfico. 2 Por razões que se prendem com a comodidade da leitura e com a facilidade de consulta da obra de George Orwell, optámos por transcrever as passagens de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro a partir da versão portuguesa: Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, tradução de Ana Luísa Faria, Edições Antígona, Lisboa, 2004. Todavia, sempre que achámos necessário, fizemos nós próprios a tradução a partir de Nineteen Eighty-Four, Penguin Books, London, 2008.

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das nossas crescentes preocupações a respeito do instinto de George Orwell para a linguagem, da sua inusual capacidade para antecipar os registos políticos da língua numa paisagem cultural dominada pelo uso crescente e maciço das tecnologias. Seja como for, independentemente dos avanços científicos que a relativamente jovem disciplina da linguística possa entretanto ter efectuado, a verdade é que esta moderna rainha das ciências humanas não teve ainda em devida conta as preclaras intuições de George Orwell a respeito das complexas relações entre a linguagem e o poder. Não há aparentemente nenhuma razão que explique de modo satisfatório a eloquente ausência de uma, por assim dizer, “linguística orwelliana” no interior dos departamentos que nas universidades se consagram ao estudo das relações entre a linguagem e a política3. Contudo, o desenvolvimento consequente de uma tal linguística constituiria, sem dúvida, um elemento de grande valor e uma ferramenta de enorme utilidade no interior de uma perspectiva crítica alargada da cultura tecnológica contemporânea. Como Christopher Hitchens observa: «O que Orwell nos ensina, entre muitas outras coisas, é que algumas palavras-chave se encontram no nosso léxico por alguma razão; elas fazem parte do nosso vernacular por alguma razão»4. Com efeito, jornalistas, políticos e juristas descrevem muitas vezes os problemas criados pelas actuais bases de dados com a metáfora do «Big Brother». O «Big Brother» é um governo, ou antes, uma forma omnisciente e vigilante de «governamentalidade» (para usarmos uma expressão cunhada por Michel Foucault) que regula até à exaustão cada um dos inúmeros aspectos da nossa existência contemporânea. Um pouco à imagem do Leviathan de Thomas Hobbes, o «Big Brother» de George Orwell reclama uma obediência completa e integral dos indivíduos em todos os aspectos 3

A este respeito, a única excepção que conhecemos digna de menção, e que ao mesmo tempo se traduz num esforço sistemático de investigação, é a que se materializa na obra de Andrei Reznikov George Orwell’s Theory of Language, Writers Club Press, New York, 2001. Todavia, há que dizê-lo, o precursor deste tipo de análise foi, sem dúvida, Noam Chomsky, um reputado linguista e um incansável activista político que há longos anos trabalha na análise de uma espécie de zona cinzenta que resulta dos diferentes planos de intersecção entre a linguística e a política. Muito judiciosamente, Chomsky caracteriza a dificuldade de se reconhecer a efectividade da propaganda no mundo e na cultura contemporâneos como «o problema de Orwell». Cf. Noam Chomsky, “O problema de Orwell”, in O conhecimento da língua. Sua natureza, origem e uso [1986], Editorial Caminho, Lisboa, 1994. 4 Cf. Christopher Hitchens, “Orwell and the Liberal Experience of Totalitarianism”, in George Orwell into the Twenty-First Century, edited by Thomas Cushman and John Rodden, Paradigm Publishers, 2004, p. 79.

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das suas vidas. É ele que constrói a linguagem, que reescreve a história, que purga todos os seus críticos, que endoutrina os seus cidadãos e que oblitera (ou, na terminologia do newspeak, «vaporiza») todas as desagradáveis relíquias do passado, seja este recente ou remoto. Os objectivos do «Big Brother» são uma completa uniformização e disciplinamento da sociedade política, capaz mesmo de vigiar os pensamentos mais secretos e íntimos dos cidadãos. Este aterrorizador estado totalitário imaginado por George Orwell leva a cabo o seu controlo e dominação através de uma implacável observação e monitorização da vida privada, empregando várias tecnologias de poder para eliminar todo e qualquer sentido de privacidade. O «Big Brother» vê em todo o resquício de solidão, por mais ténue e involuntário que este possa parecer, um perigo eminente. O mesmo sucede, aparentemente, em relação a qualquer segredo útil que o indivíduo possa ocultar. As suas tecnologias de poder são predominantemente métodos de vigilância que tudo monitorizam e espiam. Digamos, para começar, que todos somos mais ou menos conscientes de que muito do nosso pensamento sobre os mais variados problemas envolve o uso – explícito ou implícito – de metáforas. Na verdade, tais metáforas estão profundamente incorporadas no próprio processo de pensamento, antes de mais porque o poder de qualquer metáfora reside precisamente na sua capacidade para tornar a compreensão de um qualquer objecto mais poderosa, dando-lhe forma ao mesmo tempo que a limita5. Hoje em dia, ninguém negará que o conhecimento e a descrição da vigilância e da espionagem condensadas na metáfora do «Big Brother» é a mais efectiva e pregnante que nos é dado conhecer. Com efeito, a metáfora do «Big Brother» compreende todo e qualquer conceito de privacidade em termos de poder, entendendo a privacidade como uma dimensão fundamental da estrutura política das nossas sociedades. Todos tememos a “cultura Big Brother”, na qual, de um modo ou de outro, todos actuamos como agentes de vigilância e de espionagem uns dos outros e uns face aos outros. Essa a razão por que alguns comentadores adoptaram insistentemente a metáfora do «Big Brother» para descreverem as ameaças à privacidade representadas pelas bases de dados do sector privado, muitas vezes referidas na linguagem dos negócios como «Litlle Brothers». Com efeito, a Internet cria hoje uma vigilância digital com possibilidades de armazenamento de dados e com

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Cf. George Lakoff and Mark Johnson, Metaphors We Live By, The University of Chicago Press, 2003.

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possibilidades de buscas eficientes praticamente ilimitadas. Deste modo, em vez de um único «Big Brother», somos hoje cada vez mais uma miríade de «Big and Litlle Brothers» coligindo freneticamente dados pessoais. Efectivamente, o panopticismo do «Big Brother» é cada vez mais usado como um poderoso recurso metafórico capaz de representar a tecnologia contemporânea de segmentação e de targeting. Como a este respeito observa Jerry Kang: «a recolha de dados no ciberespaço produz dados que são detalháveis, processáveis por computador, indexados ao indivíduo e permanentes. Combine-se isto com o facto de o ciberespaço tornar a recolha e a análise de dados exponencialmente mais barata e temos o que Roger Clarke identificou como a ameaça genuína da “dataveillance”»6. Mas, como definir a «dataveillance» (um neologismo que de algum modo nos remete para o newspeak orwelliano)? De um modo esquemático, digamos que a «dataveillance» é um uso sistemático de bases de dados pessoais na investigação ou na monitorização das acções ou das comunicações de uma ou de mais pessoas. A «dataveillance», em suma, é uma nova forma de vigilância, um método de observação não apenas através do olho ou da câmara (no que se assemelharia ao telescreen omnipresente em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro), mas fundamentalmente um modo muito exacto e exaustivo de coligir dados e factos pessoais. Escusado será dizer que são muitos os autores que consideram que a «dataveillance» induz conformidade, inibição e auto-censura, restringindo de maneira severa a liberdade individual e por vezes suprimindo mesmo a própria capacidade de uma livre escolha do indivíduo. Seja como for, mesmo se podemos concordar com a inevitabilidade da metáfora do «Big Brother» quando se trata de descrever as tecnologias contemporâneas de vigilância e controlo da privacidade, tal não significa que a visão “orwelliana” dos efeitos da tecnologia sobre a privacidade não apresente ela própria algumas limitações, sempre que se trate de compreender, em toda a sua actual extensão, e de uma maneira tão completa e satisfatória quanto possível, o problema da privacidade das bases de dados. A sua principal limitação, a meu ver, é que lhe falta um real conhecimento dos princípios da economia política.

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Citado em Daniel J. Solove, The Digital Person. Technology and Privacy in the Information Age, New York University Press, 2004, pp. 32-33.

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1. Tópicos de “orwellianismo” Qual a concepção da natureza humana presente em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro? Na verdade, esta ficção de George Orwell confrontanos com um notável conjunto de tópicos sobre as tecnologias de controlo da mente. Apoiando-me numa oportuna síntese elaborada por Philip G. Zimbardo7, recordo, ainda que de um modo um tanto ou quanto rapsódico, algumas tecnologias nucleares de controlo da mente presentes na conhecida distopia de Orwell: – Para impossibilitar ou anular a liberdade de acção existe um «Obedience Training» (Treino da Obediência). – Para constranger e destruir a liberdade de associação e a confiança interpessoal existem o isolamento social, a solidão forçada e uma rede de espionagem. – Para anular a independência de pensamento no indivíduo existem o «Newspeak» (Novilíngua), o «Thought Control» (Controlo do Pensamento), a «Thought Police» (Polícia do Pensamento) e o «Thoughtcrime» (Crimepensar). – Para manipular as percepções e as decisões baseadas na realidade existem o «Sense Impression Denial» (Negação das Impressões dos Sentidos), o «Doublethink» (Duplopensar) e o «Reality Control» (Controlo da Realidade). – Para o orgulho humano existem as «Interrogation Tactics» (Tácticas de Interrogatório) e as aterrorizadoras humilhações sofridas na «Room 101» (Sala 101). – Para anular a partilha de sentimentos de amizade e de ternura com os outros existem o «Aversive Emotional Conditioning» (Condicionamento das Emoções de Aversão), a eliminação dos impulsos sexuais e a inoculação de emoções de ódio ou de sentimentos a favor da guerra. – Para obstar e impedir o uso das funções cognitivas da linguagem existem o «Newspeak» (Novilíngua) e o «Crimestop» (Páracrime).

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Cf. Philip G. Zimbardo, “Mind Control in Orwell’s Nineteen Eighty Four: Fictional Concepts Become Operational Realities in Jim Jones’s Jungle Experiment”, in Nineteen Eighty Four. Orwell and Our Future, edited by Abbot Gleason, Jack Goldsmith, and Martha C. Nussbaum, Princeton University Press, 2005, pp. 127-154.

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– Para impossibilitar a solidão e a privacidade do indivíduo existe a vigilância do «Telescreen» (Telecrã). Para o individualismo, a excentricidade e a diversidade existe o «Crimestop» (Páracrime). – Para eliminar o sentido interno do tempo e o sentimento subjectivo da durée existem as tácticas de falsificação da memória e a implantação de amnésias selectivas executadas pelo «Ministry of Truth» (Ministério da Verdade). 1.1. Newspeak (Novilíngua)

A Novilíngua limita severamente a possibilidade e a efectividade do pensamento ao reduzir a escolha de palavras a um mínimo: «Pretendia-se que, quando a Novilíngua fosse definitivamente adoptada e a Velhilíngua (Oldspeak) caísse no esquecimento, todo o pensamento herético, pelo menos na medida em que o pensamento depende da palavra, se tornasse literalmente impossível. Conseguia-se isso em parte através da invenção de novas palavras, mas principalmente eliminando as palavras indesejáveis e despojando as que restavam dos seus sentidos não ortodoxos, e tanto quanto possível de todos e quaisquer sentidos secundários. Mesmo quando não se tratava de suprimir palavras manifestamente heréticas, encarava-se a redução do vocabulário como um fim em si, e não se permitia a sobrevivência de qualquer palavra dispensável. A Novilíngua foi concebida não para aumentar, mas para restringir o campo do pensamento, propósito indirectamente servido pela redução a um mínimo da gama das palavras» (299-300). No início do livro de George Orwell, Winston Smith, a personagem principal, conhece Syme. «Syme era filólogo, um especialista em Novilíngua. Na verdade, fazia parte da enorme equipa de peritos ocupados em compilar a Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua.» (54). «Como é que vai o Dicionário? – disse Winston.» «– “A Décima Primeira Edição vai ser a edição definitiva” – disse. “Estamos a dar ao idioma a sua forma final, a forma que há-de ter quando ninguém falar nenhuma outra língua. Quando chegarmos ao fim, pessoas como tu terão que aprendê-la de novo. Julgas com certeza que a nossa principal tarefa é inventar palavras novas. Mas não é nada disso! Estamos é a destruir palavras, dezenas, centenas de palavras por dia. Estamos a reduzir a língua ao seu esqueleto. A Décima Primeira Edição não há-de conter uma única palavra susceptível de se tornar obsoleta antes do ano 2050.» (56-57). E Syme prossegue: «– “É uma coisa bonita, a destruição de palavras. Claro que a

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grande desbaste é nos verbos e nos adjectivos, mas também há centenas de substantivos que podem ser dispensados. E não só os sinónimos; há também os antónimos. Afinal de contas, qual a razão de ser de uma palavra que seja simplesmente o contrário de outra? Cada palavra contém em si própria o seu contrário. Tome-se, por exemplo, ‘bom’. Se temos a palavra ‘bom’, para que é que precisamos da palavra ‘mau’? ‘Imbom’ (Ungood) faz o mesmo efeito. Melhor, até, porque é rigorosamente o oposto de ‘bom’, coisa que ‘mau’ não é. Ou ainda, se queremos uma versão mais forte de ‘bom’, que sentido faz termos toda uma série de palavras vagas e inúteis como ‘excelente’, ‘esplêndido’ ou outras que tais? ‘Extrabom’ (Plusgood) cobre perfeitamente o sentido; ou ‘duploextrabom’ (doubleplusgood), se se pretender um termo ainda mais forte. É claro, nós já usamos estas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim todo o conceito de bondade e maldade será abarcado apenas por seis palavras… que são, no findo, uma única. Não vês a beleza disto, Winston? Não compreendes a beleza da destruição das palavras? Sabias que a novilíngua é a única língua do mundo cujo vocabulário diminui ano após ano? Não vês que a finalidade da novilíngua é precisamente restringir o campo do pensamento? Acabaremos por fazer com que o crimepensar (thoughtcrime) seja literalmente impossível, pois não haverá palavras para o exprimir. Todos os conceitos de que possamos ter necessidade serão expressos, cada um deles, exclusivamente por uma palavra. De significação rigorosamente definida, sendo eliminados e votados ao esquecimento todos os seus sentidos subsidiários. Na Décima Primeira Edição já não estamos longe desse objectivo. Mas o processo continuará muito depois de tu e eu termos morrido. Ano após ano, cada vez menos palavras, e o alcance da consciência cada vez mais limitado. Mesmo hoje, como é evidente, não há motivo ou desculpa para se cometer crimepensar. Simples questão de autodisciplina, de controlo da realidade. Mas no futuro nem mesmo isso será necessário. A Revolução ficará completa quando a língua for perfeita. A Novilíngua é o Socing (Ingsoc) e o Socing (Ingsoc) é a novilíngua. Já alguma vez pensaste, Winston, que no ano de 2050, o mais tardar, não haverá um único ser humano capaz de entender uma conversa como a que estamos a ter agora?» (57-58). Há que recordar que na Novilíngua a palavra «pensamento» não existia. Em vez dela utilizava-se «pensar», servindo ao mesmo tempo de substantivo e de verbo. De uma maneira geral, as palavras da Novilíngua, pelo menos as pertencentes ao «vocabulário B», constituíam uma espécie de «estenografia verbal», condensando um encadeamento de ideias numas poucas de sílabas. Na novilíngua palavras como «liberdade», «honra», «justiça», «moralidade»,

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«democracia», tinham sido suprimidas ou então incluídas numa única palavra: «crimepensar» (crimethink): «Todas as palavras que se agrupavam em torno dos conceitos de liberdade e igualdade, estavam contidas numa única palavra, crimepensar (crimethink), enquanto as palavras que giravam em torno dos conceitos de objectividade e racionalismo foram absorvidas numa única palavra: velhopensar (oldthink)» (306). 1.2. Crimestop (Páracrime)

O «páracrime» (crimestop) é um dispositivo de controlo que previne a mera hipótese de um indivíduo poder vir a cometer um crime num futuro mais ou menos longínquo. Ele funda-se num intenso treino mental e numa rigorosa disciplina desenvolvidos desde a mais tenra infância. Assim, espera-se que qualquer indivíduo saiba como comportar-se em qualquer circunstância, e que, sem sequer raciocinar, adopte a crença correcta ou a emoção desejável, abstendo-se de qualquer emoção privada ou quebra de entusiasmo que possam prejudicar o Partido. A condição de eficácia do «páracrime» exige uma simplificação extrema da linguagem, distorcendo as suas funções cognitivas mais elementares: «O primeiro e o mais simples estádio dessa disciplina, que pode ser ensinado até mesmo a crianças de tenra idade, chama-se em novilíngua páracrime (crimestop). Páracrime significa a faculdade de parar, como por instinto, no limiar de qualquer pensamento perigoso. Inclui a faculdade de não captar certas analogias, de omitir erros de lógica, de não compreender argumentos elementares se forem hostis ao Socing, e de sentir enfado ou repulsa por qualquer raciocínio susceptível de tomar um rumo herético. Páracrime, em resumo, significa estupidez protectora.» (213). 1.3. Doublethink (Duplopensar)

«Duplopensar» (doublethink) está para a novilíngua tal como «controlo da realidade» (reality control) está para a velhilíngua. «Duplopensar», tal como a Teoria e Prática do Colectivismo Oligárquico de Emmanuel Goldstein no-lo ensina, é um estado de ilusão ou alucinação mental no qual a dúvida e a certeza sobre um mesmo evento coexistem: «Duplopensar significa a capacidade de albergar no espírito simultaneamente duas crenças contraditórias, aceitando-as a ambas. Até mesmo para se usar a palavra duplopensar há que recorrer ao duplopensar. Escusado será dizer que os mais

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subtis praticantes do duplopensar se encontram entre os que inventaram o duplopensar e sabem que se trata de um vasto sistema de batota mental.» (216) O duplopensar induz conscientemente a inconsciência, para depois, num segundo passo, se tornar inconsciente do acto de hipnose acabado de realizar. O duplopensar é, pois, uma espécie de experiência alucinatória coerciva que obriga a uma espécie de fractura catatónica da consciência. Num determinado nível da consciência, o indivíduo sabe que a alucinação que está a experimentar não é uma percepção empírica válida. Contudo, ao mesmo tempo, num outro nível de consciência, o indivíduo não se dá conta desse facto e acredita que a alucinação sugerira é real e verdadeira. O duplopensar implica, pois, um auto-engano simultaneamente consciente e inconsciente, de modo que os indivíduos sabem e não sabem que a ideologia do Partido é e não é falsa: «O processo de duplopensar tem de ser consciente, ou não seria levado a cabo com suficiente precisão, mas também inconsciente, ou acarretaria um sentimento de falsidade e, portanto, de culpa. O duplopensar é a pedra de toque do Socing, uma vez que a atitude mental do Partido consiste em recorrer à fraude consciente, mantendo ao mesmo tempo a firmeza de propósitos que acompanha a honestidade absoluta. Dizer mentiras deliberadas, nelas acreditando com sinceridade, esquecer qualquer facto que se haja tornado incómodo, para depois, quando de novo for necessário, o arrancar ao esquecimento enquanto for preciso e nunca por mais tempo; negar a existência da realidade objectiva continuando a levar em conta a realidade negada – tudo isso é absolutamente indispensável. Até mesmo para se usar a palavra duplopensar há que recorrer ao duplopensar. Pois quando se emprega essa palavra está-se a reconhecer implicitamente a falsificação da realidade; com um novo acto de duplopensar apaga-se essa consciência, e assim por diante, indefinidamente, com a mentira sempre um passo à frente da verdade. Em última análise, foi através do duplopensar que o Partido conseguiu – e tanto quanto sabemos, poderá continuar a conseguir por milhares de anos – deter o curso da História» (215-216). 1.4. Reality Control (Controlo da Realidade)

O «controlo da realidade» é uma função primária do duplopensar: «O Partido dizia às pessoas para rejeitarem a evidência dos seus olhos e dos seus ouvidos» (87). O controlo da realidade é, em suma, o processo de abolição da confiança na realidade externa enquanto mecanismo de

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validação e verificação das percepções internas. Ele torna indistintos e inoperativos os dualismos fundamentais interno-externo e subjectivoobjectivo. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, a realidade subjectiva individual é determinada pelo consenso do Partido, de tal modo que a realidade é sempre a subjectividade colectiva. 1.5. O Telescreen (Telecrã) ou «Big Brother is Watching You» («O Grande Irmão Está a Ver-te»)

Na distopia de George Orwell, a privacidade e tecnologia estão intimamente vinculadas no telecrã, um instrumento de vigilância total. O telecrã é uma poderosa metáfora para a perda de privacidade num estado totalitário como a «Oceânia». A odiosa máquina de vigilância de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro assegura uma permanente presença externa na vida privada e mesmo íntima de cada indivíduo, fazendo da privacidade um luxo ou um vício criminoso: «O telecrã captava e emitia ao mesmo tempo. Qualquer som que Winston fizesse acima do nível de um tenuíssimo sussurro, seria por ele registado; além disso, enquanto alguém permanecesse no campo de visão dominado pela placa metálica, podia ser não apenas ouvido, mas também visto. Não havia, é claro, maneira de as pessoas saberem se estavam a ser observadas num dado momento. Com que frequência, ou segundo que sistema, a Polícia do Pensamento ligava cada linha individual não podia senão ser objecto de conjecturas. Era até concebível que observassem toda a gente em permanência. Fosse como fosse, tinham acesso à linha de uma pessoa sempre que quisessem. Havia que viver – e vivia-se, graças a um hábito que se fazia instinto – no pressuposto de que cada som emitido estaria a ser escutado e, salvo na escuridão, cada movimento, escrutinado» (9). «Sempre aqueles olhos a fitar-nos e a voz a envolver-nos. Na vigília ou no sono, a trabalhar ou a comer, em casa ou na rua, no banho ou na cama – não havia fuga possível. Nada nos pertencia, excepto os poucos centímetros cúbicos dentro da nossa cabeça.» (32). Para além desta intrusão maciça e omnipresente do telecrã, existe ainda em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro uma táctica de controlo da mente ainda mais sinistra usada pelo Partido. Trata-se de uma permanente e institucionalizada máquina de espionagem executada pela própria família, pelos amigos e pelos vizinhos que elimina a confiança interpessoal, instaurando no seu lugar a desconfiança, a suspeição e toda a espécie de teorias da conspiração. Como sabemos, Winston Smith procura a todo

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o transe preservar uma réstia que seja de independência face à Polícia do Pensamento (Thought Police). Decidiu começar a escrever um diário, embora soubesse que, caso fosse descoberto, arriscaria a pena morte ou, no mínimo, vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. Escondeu-se numa alcova da sua sala de estar e começou a escrever. Quando, de repente, se deu conta de que escrevia, uma e outra vez, ABAIXO O GRANDE IRMÃO (DOWN WITH BIG BROTHER), entrou em pânico e pensou em desistir de tão perigosa tarefa: «Não o fez, todavia, pois sabia que era inútil. Quer escrevesse ABAIXO O GRANDE IRMÃO (DOWN WITH BIG BROTHER), quer se coibisse, não fazia diferença. Tanto adiantava que continuasse o diário como não. Fosse como fosse, a Polícia do Pensamento haveria de o apanhar. Tinha cometido – e teria cometido na mesma, ainda que não pegasse na caneta – o crime essencial que continha em si todos os outros. Pensarcrime (Thoughtcrime), assim lhe chamavam. O pensarcrime não era coisa que se pudesse esconder eternamente. Uma pessoa podia esquivar-se com êxito durante algum tempo, durante anos até, mas mais tarde ou mais cedo seria fatalmente apanhada» (24). Sujeito a uma permanente e total vigilância, Winston Smith arriscava-se a que os seus pensamentos mais secretos fossem, de um modo ou de outro, conhecidos da Polícia do Pensamento. Para tal, bastava apenas que ele tivesse uma pequena falha no domínio da expressão do rosto: «Seria perigosíssimo deixar-se arrastar pelos seus pensamentos num lugar público ou no campo de acção de um telecrã. O mais ínfimo pormenor poderia denunciar-nos. Um tique nervoso, uma expressão inconsciente de ansiedade, o hábito de resmungar para consigo – tudo quanto pudesse sugerir anormalidade ou desejo de esconder alguma coisa. De resto, o facto de se exibir no rosto expressões impróprias (mostrar-se incrédulo durante o anúncio das vitórias, por exemplo) constituía em si mesmo uma infracção punível. Em novilíngua havia até uma palavra para isso: rostocrime (facecrime), assim era chamada» (68). «O nosso pior inimigo, pensou, é o nosso próprio sistema nervoso. A qualquer momento, a tensão que há dentro de nós pode traduzir-se num sintoma visível. O perigo mais mortífero de todos consistia em falar durante o sono. Não havia maneira de uma pessoa se precaver contra isso, tanto quanto sabia» (70). «Um membro do Partido vive do berço à cova sob o olhar da Polícia do Pensamento. Até quando está sozinho nunca tem a certeza de estar sozinho. Onde quer que se encontre, acordado ou a dormir, a trabalhar ou a descansar, no banho ou na cama, pode vir a ser inspeccionado sem aviso e sem dar por isso. Nada daquilo que faz é indiferente. As suas amizades, divertimentos, a sua atitude para com a sua mulher e os seus filhos, a expressão do rosto

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quando está sozinho, palavras que murmure durante o sono, movimentos característicos do corpo, tudo vai sendo ciosamente escrutinado. Não apenas qualquer delito de facto cometido, mas excentricidades, mesmo a mais insignificante, qualquer alteração nos hábitos ou tique nervoso que possa sugerir sintomas de luta interior, tudo acaba fatalmente por ser detectado. Ele não tem liberdade de escolha, seja em que direcção for» (212). 1.6. Emotional Control (Controlo das Emoções)

Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro o controlo das emoções conhece diferentes aspectos. Seja como for, o Partido deve controlar até à exaustão todo e qualquer aspecto das actividades sexuais dos indivíduos. Eis como O’Brien apresenta o «puritanismo sexual» do Partido: «O objectivo do Partido não se baseava apenas em evitar que se criassem entre homens e mulheres laços de fidelidade susceptíveis de escapar ao controlo. O verdadeiro propósito, não explícito, consistia em privar o acto sexual de todo o prazer. O inimigo não era tanto o amor como o erotismo, quer dentro, quer fora do casamento» (72). Como Julia observa: «O mais importante residia no facto de a privação sexual induzir histeria, que era desejável porque poderia ser transformada em ímpeto guerreiro e culto do chefe.» Num determinado momento da conversa entre ambos, Julia pôs a questão a Winston do seguinte modo: “– Quando fazes amor estás a gastar energia; e a seguir sentes-te bem e estás-te lixando para o resto. Eles não suportam que uma pessoa se sinta assim. Querem que estejamos sempre cheios de energia» (138). Todavia, o controlo rigoroso do desejo sexual constituía apenas um meio em relação ao fim último do Partido: a supressão do próprio instinto sexual. Não apenas o acto sexual, logo que praticado com êxito, era uma inaceitável forma de rebelião, como o próprio desejo era crimepensar: «Aboliremos o orgasmo. Os nossos neurologistas já estão a tratar do assunto» (268). Em suma, o controlo das emoções em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro significa que «não haverá lugar para outras emoções além do medo, da raiva, da humilhação e do triunfo» (268). Neste particular, George Orwell utiliza uma variante do que em psicologia clínica se chama «condicionamento das emoções de aversão» («aversive emotional conditioning»). Com efeito, os programas dos «Dois Minutos de Ódio» constituem o paradigma central desta tecnologia de orientação das emoções: «O que os Dois Minutos de Ódio tinham de horrível não era

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a obrigatoriedade de cada um representar um papel, mas, pelo contrário, o facto de ser impossível não participar. Um pavoroso êxtase de medo e vingança, um desejo de matar, de torturar, de esmagar rostos com um malho, parecia percorrer todo aquele grupo de pessoas como uma corrente eléctrica, convertendo cada um dos presentes, mesmo contra a vontade, num lunático ululante e de face contorcida. E, no entanto, a raiva que cada pessoa sentia era uma emoção abstracta, sem objecto, que podia ser orientada de um lado para o outro, como a chama dos maçaricos» (20). A sociedade retratada em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é manifestamente hostil à família, a todo o tipo de família. Na verdade, a abolição da família constituía um dos objectivos de longo prazo do Partido. Um dos instrumentos para atingir esse fim era o dispositivo que encorajava as crianças a denunciar o pensarcrime (thoughtcrime) nos próprios pais. 1.7. Time and Memory Manipulation (Manipulação do Tempo e da Memória)

Talvez a mais poderosa e eficaz tecnologia de controlo da mente presente em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro seja a sua insidiosa manipulação do tempo e da memória. A alteração do passado levada a cabo pelo «Ministério da Verdade» é essencial ao regime de poder que vigora na «Oceânia». O permanente reajustamento do passado explica-se também pela necessidade de salvaguardar a infabilidade do Partido. Esta mutabilidade do passado garante que qualquer indivíduo possua a capacidade de acreditar, e mais ainda, a capacidade de saber, que o preto é branco, esquecendo que alguma vez se possa ter pensado o contrário. Toda a «mística do Partido» seria impossível sem esta possibilidade de alteração dos factos e de reescrita da história. Como Winston Smith declara: «“Quem controla o passado”, dizia a palavra de ordem do Partido, “controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. E, no entanto, o passado, embora por natureza alterável, nunca tinha sido alterado. A verdade actual era a verdade para todo o sempre. Para tal bastava apenas uma série de vitórias de cada um sobre a sua própria memória» (40). Algumas páginas adiante, Winston Smith procura tenta explicar a Julia o modo de operar desta amnésia selectiva: «Todos os registos foram destruídos ou falsificados, todos os livros reescritos, todos os quadros pintados de novo, toas as ruas, estátuas e edifícios, rebaptizados, as datas foram alteradas. E este processo avança, dia após dia, minuto após minuto. A História parou. Nada existe a não ser um presente sem fim em que o Partido tem sempre razão. Eu sei,

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claro, que o passado foi falsificado; só que nunca terei a possibilidade de o provar, mesmo sendo eu o autor da falsificação» (160). Como podemos observar, em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro a História é objecto de uma permanente revisão e reescrita. Não existe um passado cuja existência possa ser objecto de investigação e verificação, pois o passado restringe-se àquilo que merece o consenso dos arquivos e dos documentos: «Esta falsificação quotidiana do passado, levada a cabo pelo Ministério da Verdade, é tão indispensável à estabilidade do regime como o trabalho de repressão e de vigilância levado a cabo pelo Ministério do Amor» (214). 1.8. The Malleability of Human Nature (A Maleabilidade da Natureza Humana)

Em todas as tecnologias de controlo da mente apresentadas em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, podemos observar que o ambicioso programa de «engenharia social» do Partido consiste em destruir a independência do pensamento em toda e qualquer criatura viva. O’ Brien, o porta-voz do Partido, diz peremptoriamente a Winston Smith: «Dominamos a matéria porque dominamos o espírito. A realidade está no interior do crânio. Tens que pôr de parte essas ideias do século dezanove acerca das leis da natureza. Nós fazemos as leis da Natureza» (266). «Nós controlamos a vida, Winston, a todos os níveis. Tu imaginas que existe uma coisa chamada natureza humana que vai ficar indignada com o que fazemos, virando-se contra nós. Mas nós criamos a natureza. Os homens são infinitamente maleáveis» (270). É precisamente o pressuposto de uma tal infinita maleabilidade do homem que permite o discurso sádico de O’ Brien no final do romance, no qual podemos vislumbrar uma espécie de profético testamento para a posteridade: «– Sabes onde estás, Winston? – perguntou. – Não sei, mas calculo. No Ministério do Amor. – Sabes há quanto tempo aqui estás? – Não, não sei. Dias, semanas, meses… achou que já lá vão meses. – E por que será que, em tua opinião, nós trazemos as pessoas para aqui? – Para as obrigar a confessar. – Não, não é por isso. Tenta lá outra vez. – Para as castigar.

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– Não! – Exclamou O’ Brien. A voz alterara-se-lhe muitíssimo, de súbito o seu rosto ficara simultaneamente severo e animado. – Não! Não apenas para te extorquir uma confissão, nem para te castigar. Queres que te diga porque motivo te trouxemos para aqui? Para te curar! Para fazer de ti uma pessoa sã de espírito! Conseguirás, entender, Winston, que nenhuma das pessoas que trazemos para aqui sai das nossas mãos sem estar curada? Nós não estamos interessados nesses estúpidos crimes que cometeste. O Partido não se interessa pelos actos declarados: o que nos importa é o pensamento. Não nos limitamos a destruir os inimigos; nós modificamo-los. Entendes o que eu quero dizer com isto?» (264). Finalmente, George Orwell faz uma comparação entre a Igreja Católica Romana e a estrutura interna do Partido tanto a respeito da tortura e da lavagem ao cérebro como sobre a vigilância permanente. Por um lado, a Igreja prega o amor. Contudo, na Idade Média ela torturava e queimava as pessoas. Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro esta comparação é simbolizada pelo «Ministério do Amor», que funciona como uma espécie de Departamento de Tortura e Liquidação. «Ama o pecador, odeia o pecado», tal poderia ser a palavra de ordem. Por outro lado, a ideia de que o homem está sempre sob a constante vigilância de Deus, independentemente de quão só ele possa presumir poder estar, é central no Cristianismo. O cristão encontra-se permanentemente sob a vigilância e o escrutínio de Deus, que, como o «Grande Irmão» em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, é «infalível e todo-poderoso. Nunca ninguém viu o Grande Irmão. É um rosto nos cartazes, uma voz no telecrã. Podemos estar razoavelmente certos de que nunca morrerá, e já começa hoje a ser bastante incerta a data em que nasceu. O Grande Irmão é o disfarce sob o qual o Partido decidiu apresentar-se ao mundo. A sua função consiste num pólo aglutinador para o amor, o medo e a veneração, sentimentos mais fáceis de nutrir por um indivíduo do que por uma organização» (210). Mediante esta comparação, podemos eventualmente inferir que, no espírito de Orwell, a Inquisição seria apenas uma forma patológica do cuidado cristão com a heresia a que ele resolveu chamar pensarcrime (crimethink). Sob esta perspectiva, pode dizer-se que a personagem O’ Brien, uma espécie de inquisidor-mor da «Oceânia», descreve as actividades do «Ministério do Amor» à imagem das funções outrora atribuídas ao Tribunal do Santo Ofício: «Tens que compreender uma coisa, neste lugar não há mártires. Já deves ter lido algo sobre as perseguições religiosas do passado. Na Idade Média havia a Inquisição. Foi um fracasso. Propôs-se erradicar a heresia, e acabou por perpetuá-la. Por cada herege que queimava na fogueira, surgiam milhares de outros. E porquê? Porque a

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Inquisição matava os inimigos às claras, e matava-os antes de eles se terem arrependido. Os homens morriam devido a recusarem-se a abandonar as suas verdadeiras crenças. Naturalmente, toda a glória ia para a vítima e toda a vergonha para o inquisidor, que a queimava. Nós não cometemos erros desses. Em primeiro lugar porque as confissões extorquidas eram obviamente falsas. Aqui todas as confissões são verdadeiras. Nós tornamolas verdadeiras. E, acima de tudo, não permitimos que os mortos se ergam contra nós. Não te disse agora mesmo que somos diferentes dos perseguidores do passado? Não nos contentamos com a obediência passiva, nem mesmo com a mais abjecta das submissões. Quando finalmente te renderes a nós, vai ser por tua livre e espontânea vontade. Nós não aniquilamos o herege por ele nos resistir: enquanto nos resiste, nunca o aniquilamos. Convertemo-lo, conquistamos todos os recessos do seu espírito, damoslhe forma nova. Destruímos nele o mal e as ilusões; trazemo-lo para o nosso lado, não em aparência, mas realmente de alma e coração. Fazemos dele um dos nossos, antes de o matarmos. É-nos intolerável que sobreviva no mundo qualquer pensamento erróneo, por muito secreto e impotente que seja. Mesmo no momento da morte não permitimos o menor desvio. Antigamente o herege ia para a fogueira ainda no estado de heresia, mesmo proclamando-a, exultando nela. Mas nós tornamos o cérebro perfeito antes de o fazermos explodir. Nenhuma das pessoas que trazemos para cá se ergue contra nós. Toda a gente sai daqui purificada. Até esses três miseráveis traidores que em tempos julgaste inocentes (Jones, Aaronson e Rutherford), até eles acabaram por ceder. Quando saíram das nossas mãos não passavam de invólucros vazios. Nada tinham lá dentro, excepto tristeza pelas suas acções, e amor ao Grande Irmão. Impressionava ver como o amavam. Suplicavam que os fuzilássemos depressa, para poderem morrer enquanto neles o espírito ainda estivesse puro. Jamais voltarás a ser capaz de sentir as mais vulgares emoções humanas. Tudo morrerá dentro de ti. Nem serás capaz de «voltar a sentir amor, nem amizade, nem alegria de viver, nem vontade de rir, nem curiosidade, nem coragem, nem integridade. Ficarás oco. Havemos de te espremer até ao vazio, e depois encher-te-emos com a nossa própria substância» (255-258). 2. Privacidade e segredo Uma vez analisada a atmosfera distópica de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, e caracterizadas que estão as tecnologias de «controlo da mente» apresentadas no romance de George Orwell, torna-se difícil subestimar

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os efeitos das tecnologias de vigilância sobre a privacidade. Na verdade, todas as categorias anteriormente descritas – «Newspeak», «Crimestop», «Doublethink», «Reality Control», «Telescreen», «Emotional Control», «Time Manipulation», «The Malleability of Human Nature» – constituem pregnantes metáforas para a descrição da erosão, ou mais precisamente, para a descrição de uma completa e irreparável perda de privacidade sob as garras de um governo totalitário como o da «Oceânia». Muitos comentadores têm destacado o papel central, senão mesmo estratégico, do telecrã na economia política da vigilância tal como esta se dá a ver em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Contudo, pelo menos em alguns aspectos, talvez o telecrã não seja estritamente necessário ao desenvolvimento da ficção política do romance, a qual, de um modo ou de outro, assenta antes de mais na exequibilidade do controlo do pensamento através da propaganda, da educação, da psicologia (com técnicas de modificação dos comportamentos), da espionagem (de que as crianças são os mais zelosos executores), da censura, do terror e, sobretudo, da falsificação dos registos históricos através da manipulação das funções cognitivas da linguagem. Como quer que seja, sempre que reflectimos sobre a privacidade tomando como grelha de análise Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, devemos considerar os dois principais aspectos da privacidade na medida em que esta aí se distingue da autonomia, da qual, aliás, a “privacidade” se veio a tornar num sinónimo em direito constitucional. Com efeito, os direitos biopolíticos associados à liberdade sexual e reprodutiva são muitas vezes descritos como aspectos do «direito à privacidade». Nesta perspectiva, podemos eventualmente presumir que os dois aspectos não autónomos da privacidade são a solidão e o segredo8. A este respeito, recordo agora uma passagem de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro acerca dos perigos da solidão: «Esta era a terceira vez em três semanas que ele [Winston Smith] não aparecia ao fim da tarde no Centro Comunitário: um acto arriscado, pois sem dúvida que o número de presenças no Centro estava cuidadosamente controlado. Em princípio, um membro do Partido não dispunha de tempo livre, e nunca estava sozinho a não ser na cama. Partia-se do princípio de que quando não estivesse a trabalhar, a comer ou a dormir estaria a participar nalgum tipo

8

Sigo aqui as lúcidas intuições de Richard A. Posner em “Orwell versus Huxley: Economics, Technology, Privacy, and Satire”, in Nineteen Eighty Four. Orwell and Our Future, edited by Abbot Gleason, Jack Goldsmith, and Martha C. Nussbaum, Princeton University Press, 2005, pp. 183-211.

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de divertimento colectivo: era sempre um tanto ou quanto perigoso fazer algo que sugerisse gosto pela solidão, até mesmo passear sozinho. Havia para isso uma palavra em novilíngua: vidaprópria (ownlife), que significava individualismo e excentricidade» (88). Esta passagem revela uma forte suspeição, a saber: que quando os indivíduos são deixados sozinhos por muito tempo, sem qualquer espécie de contacto com outros indivíduos, eles estão muito mais aptos, para não dizer, fortemente inclinados, a desenvolver pensamentos ínvios, ou até heréticos, sobre as comunidades de que fazem parte, do que quando estão plenamente mergulhados nela. Em suma, este pressuposto significa que a comunidade, quando confrontada com a possibilidade de um desvio ou de um ataque interno ao seu princípio de imunidade, não vê com bons olhos o que os juristas vieram a chamar o «direito jurídico à privacidade», ou, nos termos utilizados na sua formulação norte-americana: «the right to be let alone», o «direito a ser deixado sozinho»9. Na verdade, a solidão (não um isolamento total, mas um espaço de privacidade suficientemente amplo e intocável de modo a habilitar o indivíduo a pensar por si mesmo) é muitas vezes a condição de possibilidade para o nascimento de atitudes individualistas. Em contrapartida, a presença constante de outras pessoas ou a percepção, por parte do indivíduo, de que se encontra sob uma permanente vigilância, reforça quase sempre a passividade e a conformidade, chegando por vezes a criar um abismo entre a obediência externa e a crença interna (de que a doença bipolar é um sinal). Quanto ao segredo (no sentido de uma ocultação do que se pensa, do que se escreve, ou do que se diz, seja aos amigos e a pessoas de confiança, seja a estranhos), a verdade é que sem ele, e sem o planeamento discreto e silencioso que só o segredo permite, dificilmente o pensamento poderia ser subversivo

9

«Nos Estados Unidos, o ímpeto para o desenvolvimento da lei da privacidade (law of privacy) chegou por via de um apaixonado e influente artigo publicado em 1890, no qual Samuel Warren e Louis Brandeis afirmam que tinha chegado o tempo de reconhecer um direito jurídico à privacidade separado: “The Right to Privacy,” Harvard Law Review 4 (1890): 193-200. Argumentavam que as previamente separadas ofensas de escutas e gravações secretas de conversas privadas, a publicação de assuntos privados, as quebras de confidencialidade, a cópia de cartas privadas, e a busca e captura ilegais são fundamentalmente similares: todas são violações do direito à privacidade – “The Right To Be Let Alone” – e não apenas ofensas discretas (leves) contra a confiança, a propriedade ou a integridade corporal. Foi deste modo que nos Estados Unidos se abriram as portas para as litigações invocando invasão da privacidade.» Cf. Sissela Bok, Sissela Bock, Secrets. On the Ethics of Concealment and Revelation, Oxford University Press, 1986, p. 289.

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e escapar ao controlo e à censura das autoridades. Aliás, qualquer plano subversivo acaba por implicar, de um modo ou de outro, comunicação com outros. E um pensamento verdadeiramente independente e sério dificilmente se pode conceber sem alguém com quem partilhar ideias. Por isso – como alguns filósofos tendem a acreditar10 – a comunicação de pensamentos “perigosos” é sempre difícil e perigosa se não existe alguma forma de privacidade na comunicação11. Dir-se-ia, então, que se a solidão cria as condições elementares para um pensamento independente, o segredo e a ocultação (hoje chama-se-lhe encriptação) criam as condições necessárias para o refinamento e a propagação desse pensamento. Chegou agora o momento de distinguir «privacidade» de «segredo». De uma certa maneira, todos nós somos especialistas ou peritos em segredos. Desde a nossa mais tenra infância que sentimos o seu mistério e a atracção que os rodeia. Conhecemos o poder que os segredos conferem e a responsabilidade que eles impõem. Sabemos também que qualquer coisa pode ser secreta desde que essa coisa seja intencionalmente ocultada aos outros e guardada apenas para nós. Um segredo pode ser partilhado com qualquer pessoa ou confiado a qualquer pessoa desde que essa pessoa o guarde e o não comunique a outras pessoas. Mas também existem situações em que um segredo pode ser conhecido por praticamente todas as pessoas, excepto por uma ou duas. Por conseguinte, guardar um segredo é bloquear intencionalmente o acesso a uma determinada informação e impedir que essa informação seja conhecida por uma determinada pessoa. Com isso impedimos que essa pessoa o conheça, o possua, faça uso dele ou o revele a terceiros. A palavra latina secretum traz consigo o sentido de algo escondido, posto de parte, por assim dizer. O verbo latino secernere significa originariamente separar (por uma peneira ou por um filtro). Mas secernere significa igualmente segregar. Seja como for, a palavra «segredo» significa o resultado de uma ocultação intencional e deliberada. Também denota os métodos para ocultar algo de alguém, como o uso de códigos, de disfarces ou de camuflagem. Finalmente, «segredo» pode ter o significado de dissimulação e de ocultação, como no segredo comercial ou na confidencialidade e sigilo profissionais.

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Cf. Leo Straus, Persecution and the Art of Writing, Chicago University Press, 1998. Cf. Julien Assange, Cipherpunks. Liberdade e Futuro da Internet (com Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn e Jérémie Zimmermann, tradução de Cristina Yamagami, Editorial Boitempo, São Paulo, 2013. 11

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Como definir «privacidade»? O secreto e o privado encontram-se muitas vezes intimamente ligados. A privacidade, todavia, não é uma ocultação intencional. A privacidade é aquela condição que garante protecção face a um acesso dos outros que não desejamos, quer se trate de acesso físico, de informações pessoais ou da mera atenção que lhes dispensamos. As reivindicações de privacidade são reivindicações de controlo do acesso àquilo que consideramos pertencer ao nosso domínio ou forum pessoal. Com essas reivindicações as pessoas procuram antes de mais reforçar ou aumentar esse controlo. Um ponto importante, na tentativa de definirmos estes dois termos, passa por reconhecer que a privacidade e o segredo se sobrepõem ou indistinguem sempre que os esforços desse controlo assentam na ocultação. Contudo, a privacidade não necessita necessariamente de se ocultar (ser oculta). Em todo o caso, o secreto oculta sempre mais do que o mero privado. Em princípio, um jardim privado não tem que ser forçosamente um jardim secreto. Do mesmo modo, uma vida privada só raramente é uma vida secreta, e o exemplo da vida privada das celebridades devassada pelos media confirma bem este ponto. A ser assim, por que razão a privacidade e o segredo são tantas vezes assimilados e mesmo identificados? Em parte, talvez isso se deva ao facto de a privacidade ser uma parte nuclear daquilo que o segredo protege, sendo que neste caso é fácil tomar a parte pelo todo. Naturalmente, as pessoas reclamam privacidade porque desejam sentir-se menos vulneráveis ou mais capazes de controlar o acesso indesejado dos outros. Contudo, de um modo ou de outro, os seres humanos acabam sempre por descobrir as maneiras mais engenhosas e inesperadas de proteger a sua privacidade (observem-se as crianças a brincar), eventualmente através do engano e do segredo, mas sempre de modo a garantir um módico de privacidade. São vários os modos que então se concebem de maneira a criar privacidade. Mas, quando é que o «segredo» e a «privacidade» coincidem da maneira mais evidente? Podemos responder que tal acontece imediatamente na vida privada dos indivíduos, na qual o segredo protege o acesso indesejado dos outros. Ele protege os indivíduos contra a excessiva aproximação dos outros, contra os outros saberem demasiado das suas vidas e contra o observarem perto de mais os seus comportamentos. Pode dizer-se que o segredo protege os aspectos centrais da identidade do indivíduo e, em primeiro lugar, os planos de acção e a propriedade. Sob este aspecto, ele funciona como uma espécie de escudo sobressalente que reforça as defesas do indivíduo sempre que a protecção da privacidade falha ou por algum motivo é quebrada. Tal como acontece com Winston Smith em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, pode suceder que não queiramos que ninguém tenha acesso ou leia o nosso

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diário. Mas, claro, podemos sempre escondê-lo, fechando-o num local seguro, ou escrevê-lo em código, como numerosos poetas, teólogos ou filósofos fizeram por vezes no passado. Códigos secretos, contas bancárias em offshores, objectos pessoais guardados em cofres, ao abrigo do olhar ou da curiosidade alheia, tudo isto confirma a necessidade que muitos indivíduos sentem de mais e mais protecção. Nos nossos dias e nas nossas sociedades dominadas por todo o tipo de tecnologias de vigilância, a reivindicação, cada vez mais obsessiva e mesmo neurótica, de privacidade aumenta, sem dúvida, as ocasiões para um uso cada vez mais alargado de metáforas da privacidade. Sob esta perspectiva, talvez possamos afirmar que a categoria da «privacidade» se tornou para muitos autores numa espécie de palavra-código frequentemente difícil de distinguir da categoria de «liberdade». Como Sissela Bock – que tenho vindo a seguir – observa: «Se bem que o segredo muitas vezes protege o que é privado, não necessita, contudo, de o fazer, já que ele conhece muitos usos fora da esfera privada. Ver todo o segredo como privacidade é tão limitador como assumir que ele é invariavelmente enganador ou que oculta em primeiro lugar aquilo que não é digno de crédito. Devemos reter a definição de segredo como ocultação intencional, e resistir à pressão que força o conceito a um modo de definição restrito, insistindo em dizer que a privacidade, o engano ou a vergonha o acompanham sempre. Se olhamos para o segredo como sendo inerentemente enganador ou como ocultando primariamente o que não é digno de crédito, estaremos a usar conceitos carregados antes sequer de olharmos para práticas que exigem que façamos uma escolha»12. Com este modo de apresentar a relação entre «privacidade» e «segredo» estamos já no terreno do que Sissela Bock chama «ética da ocultação e da revelação». Seja como for, talvez possamos afirmar que a vida, para a grande maioria de nós, seria porventura demasiado exposta, demasiado vulnerável, sem uma certa porção ou medida de segredo. Na verdade, as reivindicações em defesa de algum controlo sobre o segredo e o livre acesso invocam sempre quatro elementos distintos, sem bem que na prática inseparáveis, da autonomia humana: identidade, planos, acção e, claro, propriedade (na formulação de John Locke: «O trabalho do seu corpo e a obra das

12

Cf. Sissela Bock, Secrets. On the Ethics of Concealment and Revelation, Oxford University Press, 1986, p. 14.

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suas mãos, podemos dizer, são propriamente seus»13). Estas reivindicações dizem directamente respeito ao que somos, ao que tencionamos fazer, ao que efectivamente fazemos e ao que possuímos. A primeira delas diz-nos que algum controlo sobre o segredo e o livre acesso é necessário em ordem à protecção da identidade. Com efeito, este tipo de controlo é muitas vezes necessário se queremos preservar a solidão e proteger a privacidade, a intimidade e a própria amizade. Protege as nossas crenças e sentimentos mais vulneráveis, nomeadamente aqueles que pertencem aos domínios da memória e dos sonhos, de uma excessiva permeabilidade ou penetrabilidade de um escrutínio que não desejamos. Um tal controlo recusa uma observação permanente ou uma vigilância sem fim. Escusado será dizer que este tipo de controlo e protecção recusa o sonho, ou antes, o pesadelo, de uma completa e universal transparência. Na verdade, os seres humanos podem ser sujeitos a todo o tipo de escrutínio e, com isso, revelarem muito de si mesmos, em todo o caso mais do que os próprios acham tolerável. Contudo, jamais serão completamente compreendidos, completamente transparentes – quer para os outros, quer para si mesmos. Cada indivíduo é não apenas único e incomensurável, ele é também plural. Com efeito, uma das consequências da modernidade tecnológica foi o colocar como condição e moldura das relações sociais a transparência: contra as trevas, os preconceitos, a mentira, o segredo. Na sociedade moderna, a verdade requer a ausência total de obstáculos entre um indivíduo e outro, seja a relação entre ambos de subordinação ou de igualdade. Deste modo, a sociedade tornou-se sinónimo de uma visibilidade total: cada um quer ser visível a si mesmo e quer os outros visíveis na esfera pública, por maioria de razão os que tratam de assuntos públicos. Porém, como Freud explica, sem o resíduo de opacidade que lhe resiste a ele próprio, o indivíduo desestrutura-se, da mesma forma que a política paralisaria se fosse condenada a uma transparência sem limites. Eis uma não pequena lição sobre os limites da transparência forjada pelas tecnologias da informação e comunicação14. Em suma, o controlo sobre o segredo e o livre acesso não apenas preserva alguns aspectos centrais da identidade; ele protege também as suas inevitáveis mudanças. O segredo é igualmente imprescindível para a protecção dos planos e das acções dos indivíduos. Não apenas para proteger a

13

Cf. John Locke, Dois Tratados do Governo Civil, Edições 70, tradução e introdução de Miguel Morgado, 2006, p. 251. 14 Devo estas observações a uma conversa com Diogo Pires Aurélio.

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sua formulação, mas também para os desenvolver, para os mudar, por vezes para os executar, e até para desistir deles, se for o caso. O segredo sobre planos e acções garante a imprevisibilidade e a surpresa, sem as quais a existência não apenas não seria livre – seria também monótona e até monstruosa. Finalmente, a quarta reivindicação para controlar o segredo diz respeito à propriedade. Nas suas raízes, a propriedade está intimamente vinculada à identidade. Naturalmente, estas quatro reivindicações de controlo sobre o segredo e o livre acesso – protecção da identidade, dos planos, da acção e da propriedade – nem sempre são inteiramente persuasivas ou razoavelmente explicadas e justificadas. Contudo, podemos, sem dúvida, afirmar que são necessárias para a satisfação de certas necessidades humanas. Como Sissela Bock observa: «Alguma capacidade para guardar segredos e para escolher o momento de os revelar, e algum acesso à experiência do segredo e da profundidade, são indispensáveis para um sentimento duradouro da identidade, para a capacidade de planear e de agir, e para os pertences essenciais. Sem controlo sobre o segredo e o livre acesso os seres humanos não seriam nem sãos, nem livres»15. 3. A «mão invisível» ou a «privacidade» como «bem económico» Eis agora o nosso último ponto. À luz do conceito de «mão invisível» de Adam Smith, procuraremos estabelecer as bases de uma compreensão económico-política do conceito de «privacidade». Para o fazer, socorremonos da análise do neo-liberalismo americano e do seu modelo de homo economicus levada a cabo por Michel Foucault na sua obra Nascimento da Biopolítica. No empirismo inglês e na concepção de pacto político que o acompanha, o sujeito político é entendido como um sujeito de escolhas individuais irredutíveis e intransmissíveis. É a este princípio liberal de uma escolha individual, irredutível e intransmissível, uma escolha atomística incondicionalmente referida ao sujeito, que propriamente se chama «interesse». Este interesse aparece como uma forma de vontade imediata e absolutamente subjectiva. E é sob esta condição que o interesse é o princípio empírico do pacto político ou do contrato social. O que leva o indivíduo a fazer um contrato? O interesse. Mas, uma vez o contrato pactuado, o que

15

Cf. Sissela Bock, Secrets. On the Ethics of Concealment and Revelation, Oxford University Press, 1986, p. 24.

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leva o indivíduo a respeitá-lo e a cumpri-lo? Não é com certeza nenhuma instância transcendente ou exterior à qual o sujeito de interesse se sente vinculado, submetido ou obrigado. Se ele obedece ao pacto não é sequer por o pacto ser um pacto, não é por a obrigação do pacto o vincular, não é, em suma, por entretanto ele se ter tornado num sujeito de direito que deixa de ser um sujeito de interesse. Se ele se vê compelido a observar as suas promessas é apenas na medida em que o seu interesse particular o exige. Deste modo, o que no pacto soberano (séculos XVI e XVII) era da ordem da fides e da promessa passa no pacto liberal (do século XVIII em diante) a ser da ordem de um cálculo utilitário deduzido do interesse. Um filtro simultaneamente utilitário e securitário perpassa todo o espectro do liberalismo económico. E é no interior deste liberalismo económico que o conceito de «interesse privado» ou de «privacidade» mergulha as suas raízes. O que garante o cumprimento do contrato já não é o pacto em si mesmo, mas o interesse em que haja contrato, de modo que a emergência do contrato liberal não troca o sujeito de interesse pelo sujeito de direito. Levanta-se, sem dúvida, aqui o problema de saber se o cálculo utilitário pode adquirir uma forma adequada no interior de uma estrutura jurídica, e se o direito se pode constituir integralmente a partir de um cálculo de utilidade. Trata-se, em suma, de saber se aquela forma de vontade individual a que se chama interesse é do mesmo tipo da vontade jurídica – ou se, pelo menos, se articula com ela. Na verdade, o sujeito de direito que se constitui através do contrato e o tipo de vontade a que o sujeito de interesse dá forma não são redutíveis à vontade jurídica. O sujeito de direito não substitui o sujeito de interesse pela simples razão de que se para este o contrato deixar de ser interessante nada o pode obrigar a continuar a obedecer-lhe, pois a obrigação de obedecer deve necessariamente cessar quando cessa o interesse em geral, e o interesse privado em particular. Não apenas o interesse constitui uma espécie de irredutível e de inapropriável face à vontade jurídica, como o sujeito de interesse e o sujeito de direito se relacionam de maneira diferente com o poder político. Enquanto o sujeito de direito, para usufrui dos seus direitos naturais, o faz num sistema positivo, consentindo na renúncia ou na limitação do gozo desses direitos sempre que aceita o princípio da sua transferência, ao sujeito de interesse não se lhe pode pedir que renuncie ao seu interesse individual ou interesse privado. Na viragem do século XVII para o século XVIII, enunciados como «o interesse não enganará nem desiludirá» e «o interesse governa o mundo», na medida em que põem o acento tónico no interesse enquanto razão de ser das acções e dos comportamentos do indivíduo, configuram aquilo a que Michel Foucault chama o homo economicus, uma figura absolutamente

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heterogénea e não sobreponível ao que se poderia chamar o homo juridicus ou homo legalis: «O mercado e o contrato» – observa Foucault – «funcionam exactamente ao contrário um do outro e constituem duas estruturas heterogéneas uma à outra»16. É do mercado, mais do que do contrato, que o «interesse privado» ou a «privacidade» recebem o seu valor. Com efeito, de um lugar que nos séculos XVI e XVII era sumamente investido por uma regulamentação onde a justiça deveria aparecer na troca e formular-se no preço, o mercado, do século XVIII em diante, passa de um «regime de jurisdição» a um «regime de veridicção». O mercado é a instância de formação da verdade. Para Foucault, a economia política moderna estabelece uma relação inédita com a verdade económica, com o que o filósofo francês chama a substituição progressiva do «sistema de jurisdição» do direito e da soberania pelo «sistema de veridicção» da economia política e do mercado. É no mercado que se forma e articula a verdade dos preços. Do século XVIII até aos nossos dias, o «sistema de veridicção» por excelência é o mercado. A progressiva ênfase no interesse como chave das acções humanas é visível na proliferação e fortuna do termo em variadíssimas expressões (interesse privado, interesse de consciência, interesse de honra, interesse de saúde, etc.), vindo o espectro das suas acepções paulatinamente a estreitar-se e a associar-se ao sentido mais restrito de vantagem económica, desejo de ganho e amor do lucro, até, finalmente, o sentido monetário da palavra – não perder de vista o facto fundamental de na maioria das línguas ocidentais o termo interesse significar também juro cobrado por dinheiro emprestado – substituir o não monetário quase por completo e se impor como um autêntico paradigma do comportamento racional do indivíduo. Como observa Albert O. Hirschman, perante a ideia de qua a acção humana poderia ser exaustivamente descrita pela categoria do interesse, deste modo moderando o carácter destrutivo das paixões, por um lado, e corrigindo a ineficácia da razão, por outro, «não admira que a doutrina do interesse tenha sido recebida na época como uma verdadeira doutrina da salvação»17. Ora, é no âmbito desta doutrina do «interesse» que devemos situar a natureza e a estrutura do debate que a economia política suscitou em torno do «interesse privado» e da «privacidade» entendida como um bem

16

Cf. Michel Foucault, Nascimento da biopolítica (Curso do ano 1978-1979 no Collège de France), Edições 70, Lisboa, 2010, p. 279. 17 Cf. Albert O. Hirschman, As paixões e os interesses. Argumentos políticos a favor do capitalismo antes do seu triunfo, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1997, p. 69.

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económico. Até que o âmbito da acção ou o campo de imanência deste homo economicus seja providencialmente enquadrado por uma «mão invisível», como sucede na economia política de Adam Smith, é um pequeno, mas decisivo passo. O interesse comum exige que cada um saiba ouvir o seu interesse próprio, ou interesse privado, e possa obedecer-lhe sem obstáculos. Mas, o que é, afinal, a «mão invisível»? Por uma espécie de paradoxo constitutivo, este homo economicus deve o carácter positivo do seu cálculo a tudo aquilo que, precisamente, escapa ao seu cálculo: ele é orientado por uma providencial «mão invisível» de modo a cumprir uma finalidade – o lucro de todos os contratantes do pacto – que não fazia parte das suas intenções. Mas, à semelhança do que acontece com a economia da inovação tecnológica, também na economia política há antes de mais que distinguir «efeitos não intencionais mas realizados» de «efeitos intencionais mas não realizados». Seja como for, de ora em diante cabe a esta «mão invisível» a função de reunir e de agenciar os fios de todos os interesses dispersos segundo a lógica de uma transparência total característica de um processo económico fundado no mercado. De acordo com esta lógica, é quando o indivíduo se começa a preocupar com o bem geral, em vez de seguir de maneira cega o princípio do seu interesse privado, é nesse preciso momento que as coisas começam a funcionar mal. De acordo com o paradigma liberal do homo economicus, apenas os esforços de cada um por si servem o bem de todos, do mesmo modo que só a maximização do interesse privado de cada um torna possível o maior lucro de todos. A relação entre a procura do rendimento individual e o crescimento da riqueza colectiva exige, contudo, um princípio de opacidade essencial, uma vez que a actividade económica no seu conjunto nunca é totalizável. Assim, para que o lucro colectivo seja atingível torna-se necessário que cada um dos agentes económicos individuais seja cego a essa totalidade. Ora, é precisamente no âmbito desta cegueira que devemos situar o debate em torno do real significado do conceito de «interesse privado». Como observa Michel Foucault: «A obscuridade, a cegueira, são absolutamente necessários a todos os agentes económicos. O bem colectivo não deve ser visado. Não deve ser visado porque não pode ser calculado, pelo menos do interior de uma estratégia económica. Estamos aqui no âmago de um princípio de invisibilidade. A invisibilidade é absolutamente indispensável. É uma invisibilidade que faz com que nenhum agente económico não deva nem possa procurar o bem colectivo»18.

18

Cf. Michel Foucault, Nascimento da biopolítica (Curso do ano 1978-1979 no Collège de France), Edições 70, Lisboa, 2010, p. 283.

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A mesma «mão invisível» que espontânea e providencialmente solicita e combina os interesses individuais ou privados, interdita, ao mesmo tempo, qualquer forma de intervenção a partir do exterior, impedindo com isso qualquer forma de visão geral que pretenda totalizar o processo económico. Essa a razão por que o mundo opaco da economia política idealizado por Adam Smith mediante a metáfora teológica e providencial da «mão invisível» deve ser particularmente obscuro e inapreensível, antes de mais ao próprio Estado, desqualificando deste modo os direitos de uma razão política indexada ao Estado e à sua soberania. Em suma, creio que a metáfora teológica da «mão invisível» nos mostra que a «protecção da privacidade», na medida em que por «interesse privado» se entende um bem económico que resulta do funcionamento sem entraves do mercado, é absolutamente necessária ao nosso modo de vida capitalista. Na verdade, é o próprio mercado da «privacidade», como princípio de opacidade e de invisibilidade, que exige necessariamente uma cegueira económica e uma invisibilidade, sem os quais o próprio valor económico da «privacidade» desapareceria. Se «a obscuridade, a cegueira, são absolutamente necessários a todos os agentes económicos», como acabámos de verificar, é porque, um pouco à imagem do pensamento de Bernard de Mandeville, «vícios privados, públicas virtudes». Por outras palavras: «É a economia, estúpido!» Será? Antes de uma última caracterização política do «privado», algumas palavras sobre a relação entre a tecnologia e o monopólio. Não entrarei na questão, simultaneamente teorética e empírica, de saber se o progresso tecnológico favorece o monopólio ou a concorrência. Alguns acreditam que os custos da «invasão da privacidade» caíram abruptamente com a «revolução da informação» ou com a «revolução do ciberespaço». Talvez o monopólio económico-financeiro reduza os custos internos da tecnologia. Talvez a tecnologia convide ao monopólio, baixando ao mesmo tempo os seus custos, eventualmente pela redução geral dos custos associados ao controlo. Mas o monopólio da tecnologia pode também destruir a concorrência económica (o mercado) e a concorrência política (democracia). Lenine e Hayek viram bem o problema. Na verdade, a economia da inovação tecnológica sugere-nos que devemos ser prudentes quando projectamos no futuro as tendências benéficas do passado recente. Seja como for, o problema com que nos debatemos está em que as inovações tecnológicas produzem consequências imprevisíveis a longo prazo e, não sendo os seus efeitos externos antecipáveis, podem muito bem ficar “fora de controlo”. Tudo o que se pode dizer com alguma razoabilidade

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ou segurança é que quanto mais longo é o tempo que transcorre entre a invenção e a aplicação maciça das tecnologias, tanto mais fácil é a previsão da futura condição tecnológica das nossas sociedades. Eis a razão porque estou inclinado a pensar que em todos os discursos sobre a economia da inovação tecnológica devemos ser prudentes e tentar distinguir entre os «efeitos intencionais, mas não realizados» das tecnologias de vigilância e controlo da privacidade, e os «efeitos não intencionais, mas realizados» das tecnologias de vigilância e controlo da privacidade. A «privacidade», tal como esta é determinada ou regulada pelas actuais tecnologias de vigilância e controlo, é regida por um status paradoxal, digamos que por uma espécie de sistema combinatório. Com efeito, a luta, por um lado, pela invasão e, por outro, a luta pela protecção da privacidade é sintomática (no sentido que este termo tem no domino da psicanálise). Com efeito, dir-se-ia que aquilo a que chamamos «progresso tecnológico» forja tanto a protecção como a invasão da «privacidade». É por isso que a «privacidade» necessita ser infinitamente aberta como algo cuja estrutura e modo de ser é incluído apenas através de uma exclusão. A «privacidade», neste modo de conceber a sua actuação, expressa o vínculo de uma exclusão inclusiva a que um determinado pensamento/sentimento/comportamento se encontra sujeito, pelo simples facto de ele existir na linguagem, por ser nomeado, precisamente, «privado». Recordo uma última vez o aforismo de Bernard Mandeville: «Private vices, public benefits». Seja como for, e ainda que originariamente referido a outro tipos de problemas, nomeadamente jurídicos, adopto agora uma espécie de fórmula empregue, embora de maneira distinta, tanto por Carl Schmitt como por Giorgio Agamben. A «privacidade» (tomada como «vício») pode em última instância ser implicada na esfera do direito apenas através da sua exclusão inclusiva, apenas através da forma de uma excepção (excepção precisamente à «virtude», que por definição deve ser «pública»). Uma frágil, mas, ainda assim, uma permanente exceptio é o que constitui a estrutura da «privacidade». A «privacidade» existe apenas sob a forma extrema de uma relação pela qual algo (o «vício») é incluído apenas através da sua exclusão. Nos termos do direito, a «privacidade» existe numa relação de excepção. Contudo, e por um paradoxo previsível, a privacidade funciona externamente (no sentido económico do termo) numa posição simétrica relativamente à excepção. Deste ponto de vista, a «privacidade» pode assumir a forma de um exemplo e, deste modo, operar como uma inclusão exclusiva. A «privacidade» tanto inclui por exclusão como exclui por inclusão. Mas a «privacidade» inclui e exclui ou quê? O «interesse».

A ECONOMIA POLÍTICA DA PRIVACIDADE NO 1984

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CAPÍTULO 4

A (IM)PROBABILIDADE DE UMA ÉTICA PARA AS COMUNICAÇÕES MÓVEIS José A. Domingues

Considerações iniciais Que ética pode elaborar-se para os últimos desenvolvimentos tecnológicos especialmente relacionados com a comunicação móvel? Nos termos de Aguado (Aguado et al, 2013, 18), a comunicação móvel define-se pela ‘’indefinição líquida’’, por uma certa natureza não-estável, digamos assim: há uma certa correspondência entre alguns dos pontos dessa comunicação móvel e o recurso de Bauman à metáfora do líquido como expressão dos principais traços da modernidade nos dissolutivos Modernidade líquida (1999) e Vida líquida (2006). Para Bauman, é neste sentido que a modernidade é diferenciada (essas diferenças são a fluidez, a transitoriedade, a reticulação e a dissolução de fronteiras ou de limites rigidamente traçados) e que possui coerência com a lógica da sociedade de consumo. A aceleração e a desubicação que se criam na mobilidade são parâmetros que resultam de uma fluidez das comunicações – a textura do todo da comunicação – em torno de uma dimensão tecnológica que funciona como centro institucional e cultural. Como processo de transformação: ‘’da confluência entre meios, da inovação da mobilidade e da fusão da mediação’’ (Aguado et al, 2013, 18). Dois problemas se levantam: o da dissolução do dispositivo – a expansão de modelos de transmissão baseados em serviços de arquivo e de distribuição na nuvem é um exemplo –, e o da dissolução de um mundo ou de uma narrativa – as narrativas são, em si mesmas, o desenvolvimento de um projeto tecnológico próprio. A comunicação móvel é na atualidade o ecossistema dos meios em função de uma fusão (Quéau, 1989, 164). Não há aqui lugar à consideração da comunicação numa perspetiva de um meio que liga, i.e. da imprensa, da televisão, da

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internet, como estando isentos de contaminação, como sendo meios, como disse Mcluhan e Debray depois, de uma mediação definida. Neste plano de mediação técnica o dispositivo é ele próprio um fenómeno de indefinição: a comunicação móvel não é um dispositivo determinado. Põe-se em dúvida a existência de tais dispositivos. Por isso Aguado considera: ‘’O meio móvel é, fundamentalmente, um ecossistema móvel’’ (Aguado et al, 2013, 18). Vemos que não é de smartphones e de tablets que se trata, mas do facto de esse tipo de dispositivos encarnar a comunicação móvel: é o processo de re-intermediação da comunicação que constitui a verdade do ecossistema, pois na realidade a transformação não para e se o resultado é, aqui, a mescla e a multiplicação de meios opcionais, o que se produz é a perceção de uma comunicação que se executa em várias dinâmicas, donde o seu resultado é menos convencional. Nesta re-intermediação, cuja marca fundamental é a transversalidade, o fundamental são a diversificação e o entrelace (Quéau, 1989, 262-269) – a liquidez móvel. Temos, assim, neste ecossistema, uma indefinição própria que depende da dinâmica fluida que age em todos os dispositivos tecnológicos. A re-intermediação faz, tão só, que se redefina a organização da cadeia de valor dos meios para os utilizadores, portanto, apesar de haver meios, dispositivos móveis, a organização destes dependerá de uma interseção, de um ambiente móvel que os irá sustentar. Neste ambiente, interpretado como sintoma de liquidez, um aspeto problemático importante é fornecido pelos movimentos de contaminação mútua entre privacidade móvel e cenários públicos móveis (a convergência entre internet móvel e web social móvel). E daí que se venha a perguntar o que é que vai ser necessário para que se fixe, sob as condições da comunicação móvel, uma ética? Se a ética implica uma certa permanência (apesar de haver tempo na tecnologia móvel, essa permanência não parece ser suficientemente demorada para podermos pensar a ação ética), de facto a liquidez da tecnologia não é somente a condição necessária de uma decisão nos limites da ética? Nesta medida dir-se-ia que a presente condição logra interferir nas decisões éticas – não haverá propriamente falta de ética, mas ela só pode atualizar-se havendo um momento em que se refletiu, analisou, seja a situação de fascínio, dessa magia do dispositivo com a sua capacidade de operar efetivo, seja a situação de permeação, ou então de maleabilidade. (Moor, 2006, 112, 116). Na reflexão, diremos, não deixamos de viver entranhados (embedded) em paradigmas tecnológicos.

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1. Ética e técnica Referido ao controlo da robótica, engenharia genética e nanotecnologia sobre a vida humana, o artigo de Bill Joy, Why the future doesn’t need us, publicado na Wired (8/04, April 2000), reentra no tempo de protesto do Luddite, dos princípios do séc. XIX, contra o estádio do poder da máquina no trabalho. O estádio da ciência da computação postula, agora, para Bill Joy, um new luddite chalenge. O que se vê neste estádio é um humano em dissolução, humano não-necessário. O desenvolvimento contínuo de tecnologias inteligentes, por isso mesmo, permite uma abertura à perfeição, um presente novo que se liberta do controlo do homem, um poder, um permanente crescer: estamos permanentemente a entrar na indefinição – ‘’Não podemos fazer nenhuma conjetura quanto aos resultados, na medida em que é imponderável saber como é que estas máquinas se comportarão’’ (Joy, 2000, 1)19 –, retirando-nos todas as decisões, e quando estas irrompem – ‘’Prevê-se que a humanidade possa facilmente permitir um desvio tal em direção a uma dependência das máquinas que será impraticável escolher sem não aceitar as decisões delas’’ (Joy, 2000, 1)20 – são sempre insatisfatórias – ‘’as máquinas podem fazer tudo mais perfeitamente que os humanos’’ (Joy, 2000, 1)21. Revelação inquietante sobre a tecnologia inteligente – ‘’pode atingir-se um nível no qual as decisões necessárias para manter o sistema ativo serão tão complexas que o ser humano é impotente de as tomar de uma maneira inteligente’’ (Joy, 2000, 1)22. Inquietude que agita o texto de Bill Joy, prospectivo de um humano biónico do universo de Star Trek ou The Terminator (Joy, 2000, 2) – ‘’Aí as máquinas dominarão efetivamente, as pessoas não serão capazes de desligar a máquina porque elas estarão delas demasiado dependentes e desligá-las significaria o suicídio’’ (Joy, 2000, 1)23. Ambiguidade na perfeição, justamente porque a vida humana, fruto da

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“We can’t make any conjectures as to the results, because it is impossible to guess how such machines might behave”. 20 “What we do suggest is that the human race might easily permit itself to drift into a position of such dependence on the machines that it would have no pratical choice but to accept all of the machines’ decisions”. 21 “machines can do all things better than human beings can do them” . 22 “a stage may be reached at which the decisions necessary to keep the system running will be so complex that human beings will be incapable of them intelligently”. 23 “At that stage the machines will be in effective control. People won’t be able to just turn the machines off, because they will be so dependent on them that turning them off would amount to suicide”.

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relação com uma tecnologia maleável com a possibilidade de qualquer um que se mostre perturbado com as suas condições psicológicas e biológicas poder ser curado destes problemas, terá outra finalidade que aquela que lhe é atribuída no quadro da humanidade frágil, mas livre, a de provocar-se irrevogavelmente a sua alteração – ‘’Estes humanos fabricados poderão ser felizes, mas com toda a certeza não serão livres’’ (Joy, 2000, 1)24. Jonas considera esta alteração também inspiradora de uma ética em Técnica e Responsabilidade: reflexões sobre as novas tarefas da Ética (1994) (ensaio comunicado ao International Congress of Learned Societies in the Field of Religion, realizado em setembro de 1972, em Los Angeles, antes de tratar em O Princípio Responsabilidade [1979] quase exclusivamente da responsabilidade humana), mas uma ética totalmente improvável. Qualquer ética que nasce dos princípios e da obrigação que organiza a obediência aos princípios é de raiz intemporal, universal. Operação de ação na cidade: ‘’onde os homens tratam com homens, a inteligência tem de casar-se com a moralidade’’ (Jonas, 1994, 32). Nesta moldura intra-humana da ética todo o problema está em saber como assegurar a ‘’constância da humana condição’’ na cidade ‘’pelas leis que para ela criou e se comprometeu a respeitar’’ (Jonas, 1994, 31-32). O não-humano, como a técnica e a natureza, remetem para um campo autodeterminante. A ética é, como diz, Jonas, antropocêntrica, reenvia a uma essência indefinível por elementos mediais. Será uma ação imediata, confinada ao aqui e agora, ação de situação, de fazer face à contingência. Jonas faz derivar a ética da forma, de uma leitura arquetípica, (‘’Nunca trates o teu semelhante como um meio apenas mas sempre como um fim em si mesmo’’) inevitavelmente mínima, que se supõe percorrer tudo o que o agente e o outro podem partilhar de um presente comum, perdendo aquilo exatamente que a materialidade diferencia: o universo ético revela-se e produz-se a partir da perceção do próximo e no contexto de imediação (porque não é de facto exigente a inteligibilidade que o arquétipo é dado transmitir – Fundamentação Metafísica dos Costumes de Kant ou a Ética a Nicómaco de Aristóteles). O mundo da técnica é de um começo radical e de um eclipse absoluto do homem, do varrimento da própria proximidade e da contemporaneidade temporal e espacial entre o eu e outro, perda das sequências de causa-efeito dos atos, como se a situação para se agir estivesse sempre a diferir, pondo

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“These engineered human beings may be happy in such a society, but they will most certainly not be free”.

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a nu um mundo irreversível: ‘’A autopropagação cumulativa da mudança tecnológica do mundo investe constantemente as condições dos actos que para ela contribuem e evolui através de situações que são nada menos que inéditas, face às quais as lições da experiência nada podem.’’ (Jonas, 1994, 39) Da condição da limitação, da situação do presente, remete para a condição da dispersão, para o futuro, para toda a humanidade (o seu eminente desaparecimento), detendo um ímpeto imparável (‘’permanente e autotranscendente avanço para coisas cada vez mais grandiosas’’) (Jonas, 1994, 41). A medida finita e os fins próximos deixaram de estar relacionados com os dinamismos inerentes a esta autoprojeção da técnica. O utopismo automático nega a própria existência da prudência, o poder de avaliar e ajuizar. A posição de Jonas no texto dispõe-se, fundamentalmente, como uma narrativa de conflito de legitimidades entre a ética e a tecnologia, onde as mudanças de poder levam a uma redefinição da configuração da possibilidade do homem (o conhece-te a ti mesmo de Sócrates). Passar ao jogo dos processos tecnológicos, em face das potencialidades ilimitadas e da inexistência de um governo representacional dessas potencialidades, implica o risco de perder de vista as estruturas da ação. Se, como Kant diz, a forma de imperativo categórico (‘’Age de tal maneira que possas desejar que a máxima da tua ação se torne no princípio de uma lei universal’’) invoca a coerência da razão consigo própria que tem o curso aqui e agora na contingência do próprio agente e é representada como prática geral de uma comunidade de agentes humanos, percebe-se mal como possa inferir-se neste quadro de interpretação que possa haver compatibilidade lógica na ideia de responsabilidade ética do presente pelo futuro. A questão é onde escolher a regra da ideia de que a coerência do agente deve continuar indefinidamente. O poder/não poder, para o caso do imperativo categórico, não pode representar a totalidade da coerência do ato moral consigo mesmo. O sentido deste imperativo é compreendido a partir do momento em que se mostra que ele se dirige à conduta privada do indivíduo, fazendo-o aplicar, concluir, imediatamente, indeterminado. Daí a inclinação para uma escolha dos arquétipos de referência do tipo mínimo (‘’Ama o teu próximo como a ti mesmo’’). A aplicação significa, então, como o explicita Jonas: ‘’uma experimentação do pensamento pelo agente privado para pôr à prova a moralidade imanente à sua acção.’’ (Jonas, 1994, 47) Por consequência, se a legitimidade do imperativo é situada na qualidade da autodeterminação do sujeito, que é incapaz de perspicácia de muito longo alcance, uma responsabilidade objetiva e total é impossível. A menos que se disponha de um esquema de transferência, lógico, causal, do eu individual

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para o nós imaginário no campo da eficácia tecnológica. No processo tecnológico o desenvolvimento de uma universalização não pode deixar de desembocar numa totalização, todavia a compatibilidade abstrata apenas dá entrada, sentido, virtual, não de relações, de um horizonte temporal, mas de um cálculo moral com um percurso inconcluso, uma continuação indefinida de ação. Com efeito, uma nova versão do imperativo ético não utiliza senão o critério da reiteração da ação do agente: ‘’Age de tal maneira que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a preservação da vida humana’’ (Jonas, 1994, 46). Este imperativo peculiar prende-se à questão do próprio contexto da ação do agente. A qualidade ética do agente tem aí uma origem a mais longínqua (a menos arquetípica) possível – se a sua origem se pode situar, já que a sua difusão no tempo e no espaço torna praticamente impossível a sua delimitação. 2. Epistemologia ética da teoria da informação Talvez este aqui e agora do agente não possa existir acoplado na comunicação móvel, por exemplo, no caso do utilizador das redes. Sendo o meio transicional, a instabilidade, a passagem permanente vem tornar improvável que o agente possa escolher a sua ação, como a consequência dos seus atos não parece poder estar excluída da instabilidade do meio. Poster, no ensaio The good, the bad and the virtual (2003), cria uma perspetiva singular entre ética e novas tecnologias. Refere-se ao retrato do super-homem nietzschiano, disposto como um guerreiro espiritual, e, por isso, sempre dependente do futuro para continuar a ter novas possibilidades. O super-homem corresponde ao homem que está lançado para novas relações consigo mesmo, que não sejam as óbvias. O caos no interior da sua alma abre o fechamento de cada valor. É uma forma de o espírito expressar beleza – instalar o estranho no íntimo de si mesmo – na medida em que é na beleza e na atração que se encontra um meio de constituição para o poder e a submissão ou a aceitação entre o eu e o outro, a constelação, imaginário com que é encenado o crescimento da vida. A constelação é a figura que constrói o demos, reticulado, e, hoje, digitalizada, a constelação faz passar indivíduos que têm o mesmo interesse para as diversas vidas possíveis. É também um modo de multiplicar diferenças, de justapor, de mediar e remediar os diversos elementos de uma cultura. O que é inovador também é que se procure a reconstituição do sujeito na constelação do virtual. Por conseguinte hoje há essa procura de um modo de distribuir o caos. A constelação virtual efetivamente retrata-se como

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uma determinação coletiva do bem, isto é, coloca-se para além do modelo da escolha individual da ação. Porque a ética é efetivamente uma dimensão política, o seu espaço de significação. Este aspeto impõe-se na emergente zona do ciberespaço, da rede, do virtual, diferentemente, no processo de propiciar relações. O virtual é nestes termos um modo de composição da probabilidade ética e política. E diz Poster: ‘’é uma entrada nova para uma teoria política nova’’ (Poster, 2003, 195)25. Ética e política surgem ‘’imbricadas mutuamente na rede computacional’’ (Poster, 2003, 195)26. Na teoria ética da informação (EI) de Floridi desenha-se um modelo de macroética que será o traço do que a EI pode visar em termos de estabelecer a consideração do objeto primeiro do discurso ético – Information Ethics: On the Philosophical Foundation of Computer Ethics (1999). Na EI a ética surge’ descrita primariamente como informação: ‘’A ação moral inexiste fora da informação’’ (Floridi, 1999, 43)27. E nesta posição de prima facie da informação está implícita uma transformação epistemológica. É constitutivo da EI a transferência da responsabilidade ética do sujeito que Floridi enuncia assim: ‘’a informação é um processo de aumento de emancipação da realidade e num mundo em que a humanidade tem o poder de influenciar, controlar ou manipular praticamente a totalidade dos aspetos da realidade, a atenção filosófica desloca-se, finalmente, para a importância das questões morais que escapam à orientação da imediata ação-agente e antropocêntrica’’ (Floridi, 1999, 42)28. A ação é em si infocêntrica e objetual, não depende do biocentrismo e de uma passibilidade subjetiva de nenhuma das conceções – utilitarismo, deontologia, contratualismo, consequencialismo, ética das virtudes –, as conceções clássicas do bem e as vias da fundamentação do bem (éticas metaéticas). Apesar disso, a EI mantém que qualquer existência informacional como uma expressão de ser obriga a uma dignidade à qual nos devemos submeter. Isto é, a essência e a existência da informação são conferidas por aquilo em que consiste a sua razão de ser (para o que é – ‘’for what it is’’) (Floridi, 1999, 44) e por tal guia e orienta completamente o respeito e as considerações de uma decisão e comportamento éticos. Aparenta ser uma forma natural 25

“is a new call for a new theory of the political”. “mutually imbricated in networked computing”. 27 ’’Without information there is no moral action’’. 28 ’’knowledge is a process of increasing emancipation from reality and in a world in which mankind can influence, control or manipulate practically every aspect of reality, philosophical attention is finally drawn to the importance of moral concerns that are not immediately agent-oriented and anthropocentric’’. 26

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que espelha uma igualdade entre todas as entidades de informação sem o esforço do sentimento vital. A ética do ser da informação não tem outra expressão para além daquilo que existe e desenvolve, não vive de uma natureza mais forte que o desejo do agente – de uma epistémica virtude. O ser informação é um bem irrevogável, ainda mais elementarmente que a vida e a desintegração da infoesfera é um mal ainda mais elementarmente que o sofrimento. O modo como o bem e o mal são conceitos que podem ser formulados no ciberespaço é um problema que Floridi analisa em Artificial Evil and the Foundation of Computer Ethics (2001). O princípio genérico utilizado por Floridi transcreve o modo espinosista de tratar a essência e a existência como co-envolvidas, de tal modo que a existência é potência absolutamente infinita de existir – existir consiste em ‘’durar e tender a persistir’’ (Deleuze: s/d, 85). Esta premissa é transferida por Floridi para cada data e em seguida para a relação com outros data, enquanto relação que a determina a entrar noutras relações. De acordo com a abordagem explicitada no ensaio, as más ações são processos que transformam o estado dos objetos e que podem reverter em dano (damage) do seu estado de bem (welfare state). Trata-se de processos intrusivos (unfriendly) (Floridi, 2001, 9) e geradores de entropia, desenvolvendo estes processos uma construção que concerne a integralidade da infoesfera, assumindo para esta integralidade o direito de persistir no seu estado e de despontar, de crescer e enriquecer a existência e essência – ‘’melhorar (qualidade da informação) e enriquecer (variedade da informação) a infoesfera’’ (Floridi, 1999, 47)29. Como expressa: ‘’o melhor que pode acontecer à infoesfera é tornar-se objeto de um processo de enriquecimento, extensão e melhoramento sem prejuízo de nenhuma perda de informação’’ (Floridi, 1999, 50)30. A infoesfera constitui uma dimensão de relação. Ela é figurada como um lugar que permite construir a norma: cada data torna-se passadora para outra data. A infoesfera é assim um lugar para aprender que lugar ocupa a individualidade e a interdependência no próprio coração dos princípios da ética?

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‘’improving (information quality) and enriching (information variety) the infosphere’’. 30 ‘’the best thing that can happen to the infosphere is to be subject to a process of enrichment, extension and improvement without any loss of information’’.

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3. Privado/público no contexto do Second Life: distinções éticas Para o estudo do problema ético da distinção entre privado/público, num contexto determinado pela comunicação móvel, um contexto descrito por um ontocentrismo informacional, trabalhamos a hipótese de Rosenberg – abordada em Virtual world research ethics and the private/ public distinction (2010) – de que esta distinção é a tradução da distinção que domina os ambientes reais. Hipótese que é comprovada numa perspetiva especialmente empírica (experimentalista) utilizando o mundo virtual 3D do Second Life como caso e sob a forma de leitura das categorias de privado e público ligando-as com a possibilidade da construção de identidades, espaços e relações de natureza ética. Rosenberg identifica dois argumentos como constantes na investigação da problemática ética inserida na distinção entre privado/público: (1) assinala que o fenómeno on-line público tem de ser acessível pelo público. O meio de acesso é a Web. Ao mesmo tempo que se encontra em ambiente de livre acesso para análise e crítica, dando azo a que outro fenómeno se construa a partir dele. De forma que o dado público remete para o acesso sem restrições; (2) define para o fenómeno on-line público que este se constitui como público a partir de alguém. Neste caso, não se trata já da situação de acesso ao fenómeno, mas é o próprio participante a intuir que é desafiado no processo, como se pudesse não ser destinatário. A justificação desta intuição é a da perceção de uma expectativa de privacidade que está presente na comunidade e é, por excelência, base da decisão ética. A distinção permanece atribuível aos modos do Second Life, o caso que permite discernir condições que determinam compreensão das questões éticas da distinção. Simula-se um espaço, a existência de certos espaços (lojas, áreas residenciais, bares, salão de jogos, clubes de dança, feiras, campanhas de angariação de fundos, escolas, desfiles de moda, exposições de arte, concertos, fóruns, grupos de discussão…), em replicação do real, que constituem a plataforma de uma interação na qual o eu dá conta de um outro. Relativamente a essa interação virtual, o mais importante é a presença do agente humano para se desenvolver em relações correspondentes a derivas criativas. O avatar passa a representar o indivíduo para dar a ver uma aparência, uma aparência de credibilidade de uma identidade, identidade virtual, e ao mesmo tempo que exprime um perfil elementar e uma adaptação progressiva às solicitações virtuais, aquilo mesmo que vai permitir destacar um envolvimento e um acompanhamento das dinâmicas do ambiente virtual. Ou seja, ao avatar, na sua possibilidade especular

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invade-o e ultrapassa-o a possibilidade de delimitar uma figura – ‘’uma posse [de uma identidade] que o sujeito possa reclamar como sua’’ (Rosenberg, 2010, 31) – precisa. Na figuração do avatar está implícita a capacidade de entender um desenvolvimento que lhe confira uma aparência de pessoa, na verdade, e por conseguinte uma capacidade de enfrentar situações e de as transformar – capacidade de reflexão e ação. No interior do contexto do Second Life forma-se um espaço em que as situações da realidade da vida se dão a ver – ‘’Kid – Consideras que as casas são privadas? Stacey – Com certeza, as casas são privadas. (…)’’ (Rosenberg, 2010, 28)31 – excerto de discussão em sessão de Second Life entre os residentes (Rosenberg participa com a identidade de Kid) em torno dos sentimentos de intrusão). O lugar – privado/público – virtual forma-se em coalescência com a casa/forum reais, constitui-se um presente contínuo – a casa é uma criação de um lugar interior, privado – entre um lugar para a solidão e outros espaços porque há uma necessidade de interligação. A casa é o lugar do exercício do privado. É uma figura no Second Life, por conseguinte, da separação do privado/público (desenha-se um esquema desta separação privado/público permitindo o acesso exclusivo de espaços da casa a certos avatares). Neste contexto, reportando-nos ao esquema reticular da Web, define-se o que é privado/público através do critério da acessibilidade. Mas se nos reportarmos ao critério do participante define-se o que é privado/público apenas pelo que se passa na ação dos participantes. Esta ação não é uma virtualidade pura, está articulada com uma realidade – de que é correlativa. Ela é, por isso, virtual e real. Aí, no Second Life, o participante expressa o desejo de liberdade, em termos de desejo de ocupação de um espaço privado, do diálogo privado e da informação privada. Para Rosenberg este é o trabalho mais profundo do Second Life e a indiscernibilidade que os participantes encontram entre o real/virtual. A perceção do privado/público determina inclusive os movimentos invasores da tecnologia de interface: ‘’as pessoas (…) cuidam das suas casas como de espaços privados, sem atenderem à maneira como é fácil olhá-las por dentro’’ (Rosenberg, 2010, 29)32. Dir-se-ia: a liberdade individual é tão apropriada ao modelo real quanto ao modelo virtual. Tão transversal que continua a intrometer-se nas ações do Second Life, a atualizar-se nelas.

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(…)’’.

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‘’Kid – Do you think houses are private for example? Stacy: Yes houses are private

‘’people (…) treat their houses as private spaces, regardless of how easy it is to move your view inside’’.

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Para Rosenberg, o mundo virtual não é uma estrutura de desgaste da ética, o esquecimento, a sua não conservação, mas restitui-lhe o sentido original, como nota: ‘’O que os dilemas éticos fazem é disporem a uma acrescida reflexividade’’ (Rosenberg, 2010, 34)33. Esta reflexividade traduz um referencial ético, acesso a uma compreensão independente do que é correto e incorreto, a priori, dentro, no privado, que ganha alcance num quadro de interação com os outros, fora, apresentado publicamente, e no processo de decisão (de escolhas mais altruístas) nas situações emergentes da vida. Advirá daí uma sensibilidade do outro e o critério das considerações éticas nas mediações em que repousam os agentes dos programas móveis (onde o privado/público é entretecido). Considerações finais A tendência da análise que alinha as leituras propostas é para encontrar uma probabilidade da ética nos contextos das comunicações móveis. Nas palavras de Innearity: ‘’A internalização imaginativa do outro tornou-se a exigência ética fundamental.’’ (Innerarity, 2009: 129), condição da exclusão que se vive hoje nos deslimites do nós e dos outros. Modo de a contrariar. Uma internalização imaginativa que pode ser interpretada em termos daquilo que Scheler chama de ética da simpatia, a possibilidade de derivar os valores, os processos, de toda a conduta ética válida considerando-se o indivíduo a si mesmo inserido num campo de espetatorialidade relacionada com uma afeção/paixão à vivência e ação do outro – o que é simpatizar. Este é o que está requerido como um sentido primordial das obrigações éticas: ‘’uma forma de saber das vivências alheias’’, como de sentir a ‘’natureza e qualidade destas’’ (Scheler, 2005: 39) como suas. Quer dizer, um sentir em comum, uma apreensão afetiva – ‘’sem que [o sentir] transmigre para nós ou engendre em nós uma emoção real e idêntica’’ (Scheler, 2005: 40). O que quer dizer que só como processo recíproco de compreensão do mesmo e do próximo se poderá entender – esta a temática da secção intitulada ‘’A perceção do próximo’’, da obra Essência e formas da simpatia. O que torna importante de fazer a leitura da tese de Scheler atualmente e as suas possibilidades significativas no contexto selecionado. Mas, dar-se a perceção do outro por meio de uma simulação (indiferente, portanto, se se trata efetivamente de outro) utiliza a ética, as suas leis, o seu verosímil 33

‘’What ethical dilemmas do is open up for increased reflexivity’’.

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PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

reflexivo? O verosímil reflexivo faz-se ‘’por mediação da ação da vivência sobre o estado do corpo vivo’’ – Scheler (2005, 335) – alguma modificação do corpo vivo que sabemos situar no mundo. Para Scheler, a imagética da descrição artística das cores, das luzes e sombras dos objetos pictóricos, poéticos, decorre essencialmente de uma ligação de toda a perceção de um si mesmo à tradução em movimentos expressivos. A intuição de uma vivência é a verdadeira ‘’informação’’ ética das expressões, sua significação para o estado do corpo vivo e que o determinam, uma forma imaginativa de ir de dentro para fora de uma experiência própria que, projetada por uma linguagem, uma poética, visa dar-se a ver e viver. Uma experiência de comunicação/comunhão primordial. Essa comunicação/comunhão do universo do mundo próprio com uma possível apreensão de seres e objetos escondidos. Um projeto de Scheler que parece poder fazer uma ética das comunicações ‘’líquidas’’, enquanto preenchem uma função poética, enquanto nelas exista um sentimento de vivência do outro (do outro como mesmo, distinto da vivência de algo similar). ‘’Um sentimento que, por exemplo, hoje todos entendem teve de arrancar-se à opacidade de uma vivência interior para uma perceção distinta mediante a obra de ‘poetas’.’’ (Scheler, 2005, 337) E por aí a situação poética e expressiva das comunicações móveis não é mais nem menos exploradora da intuição que as outras artes e as outras linguagens. Não nos é difícil reconhecer, por isso, que a comunicação móvel transcreve, pela imagética, o que é possível – a convergência entre vivências apesar das distâncias irredutíveis (o que não deixámos aqui de tentar dizer). Referências bibliográficas Aguado, J. M, Feijóo, C. e Martinéz, I. J. (2013). Introducción: de la cuarta pantalla al medio líquido. In Aguado, J.M, Feijóo, C. e Martinéz, I. J. (coords.). La comunicación móvil. Hacia un nuevo ecosistema digital (11-26). Barcelona: Editorial Gedisa. Deleuze, G. (s/d). Espinoza e os signos. Porto: Rés. Editora. Floridi, L. (1999). Information Ethics: On the Philosophical Foundation of Computer Ethics. In Ethics and Information Technology 1999, 1.1, 37-56. Disponível em http://www.philosophyofinformation.net/articles Floridi, L. e Sanders, J. W. (2001). Artificial Evil and the Foundation of Computer Ethics. In Ethics and Information Technology 2001, 3.1, 55-66 Disponível em http://www.philosophyofinformation.net/articles Innerarity, D. (2009). A sociedade invisível. Lisboa: Teorema.

A (IM)PROBABILIDADE DE UMA ÉTICA PARA AS COMUNICAÇÕES

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Jonas, H. (1994). Ética, Medicina e Técnica. Lisboa: Vega. Joy, B (2000). Why the future doesn’t need us. In Wired, 8/04, April 2000. Disponível em http://archive.wired.com/wired/archive/8.04/joy.html Moor, J. H. (2005). Why we need better ethics for emerging technologies. In Ethics and Information Technology (2005), 7. 3, 111-119. Disponível em http://philpapers.org/rec/MOOWWN Poster, M. (2003). The good, the bad and the virtual. In Wyschogrod E. & McKenny, G.P.. The Ethical (181-196). Malden, Oxford: Blackwell Quéau, P. (1989). Metaxu. Théorie de l’art intermédiaire. Seyssel: Éditions Champ Vallon. Rosenberg, A. (2010). Virtual World Research Ethics and the Private /Public Distinction. In International Journal of Internet Research Ethics, 3.1, (12/2010), 23-37. Disponível em http://www.ijire.net/issue_3.1.html Scheler, M. (2005). Essencia y formas de la simpatia. Salamanca: Édiciones Sígueme.

SEGUNDA PARTE

Interações Empíricas

CAPÍTULO 5

PRIVATISMO E PRIVACIDADE José Ricardo Carvalheiro

A expansão dos meios digitais online, dos dispositivos móveis e dos sites de redes sociais tem proporcionado, nos últimos anos, um recrudescimento de discursos acerca do público e do privado que apontam tendências diversas e, por vezes, de sentidos contrários. Por um lado, vislumbra-se o privado a ganhar terreno sobre o público, com um recuo do envolvimento cívico e com os indivíduos a investirem principalmente nas relações pessoais, na carreira profissional e no lazer. Por outro lado, nota-se que o domínio privado parece vir a reduzir-se até uma eventual extinção, devido a uma crescente exposição de aspetos da vida pessoal e a uma dificuldade cada vez maior de manter dados pessoais fora do alcance de outros, sejam eles organizações estatais, conglomerados comerciais ou redes de sociabilidade. Neste capítulo abordamos dois conceitos envolvidos nestes processos – os conceitos de privatismo e de privacidade –, tentando explorar a sua articulação e refletir acerca dela no contexto dos usos de dispositivos móveis em Portugal. A tendência para o privatismo e as ameaças à privacidade são movimentos opostos ou duas faces da mesma moeda? Existe uma mudança geracional no sentido de uma perda da noção de privacidade e de uma tendência geral para a exposição pessoal? No uso de dispositivos móveis, está o privatismo a prevalecer sobre as preocupações com a privacidade? Na tentativa de responder a estas questões, usamos um conjunto de fontes primárias, quantitativas e qualitativas, recolhidas no âmbito do projeto de investigação “Público e Privado nas Comunicações Móveis”, desenvolvido no Labcom.

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PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

1. Privatismo e privacidade A mistura e a imprecisão entre sentidos diferentes da dicotomia público/privado, apesar da sua relação, é algo mais ou menos recorrente (Weintraub e Kumar, 1997). Também do lado privado deste par conceptual é conveniente usar de alguma cautela em discernir aspetos distintos, como aqueles que estão contidos nos conceitos de privacidade e de privatismo. Ao traçar o carácter polimórfico desta “grande dicotomia”, Weintraub identifica um conjunto de âmbitos e de sentidos diversos em que ela se aplica, nomeadamente: o âmbito das políticas públicas face ao das relações económicas e da sociedade civil; o âmbito da esfera pública, ou da vida cívica, face quer ao mercado quer às relações de tipo administrativo; o âmbito da sociabilidade pública face aos domínios da domesticidade e da intimidade. A divisão entre público e privado, por muito discutível e transformável que seja, atravessa todo o social e desdobra-se em declinações várias a que não é fácil apontar limites e características precisas. Quando se trata de prestar uma atenção mais específica ao campo comunicativo, pode ser útil, todavia, esquematizar a dicotomia de forma mais restrita, ainda que sob risco de simplificação. Neste âmbito, a dicotomia público/privado é concebível como uma matriz composta por dois eixos, o do conteúdo e o do acesso. Conteúdo COLETIVO Acesso

ABERTO RESTRITO

PESSOAL

Público Privado

É claro que um esquema estático não corresponde aos processos comunicativos e às suas dinâmicas culturais, onde, por exemplo, relações pessoais se podem tornar temas de debate público nos media, transformando o pessoal em político. Ou, inversamente, questões que envolvem representantes políticos podem ser abordadas através de lentes mediáticas que as transformam em narrativas pessoalizadas e apolíticas (Silveirinha, 2007). De qualquer modo, a simplicidade de um esquema destes faz-nos notar a existência de dois campos claramente opostos no interior da dicotomia: o que é coletivo e aberto não oferece dúvidas quanto à sua

PRIVATISMO E PRIVACIDADE

95

posição no domínio público, ao passo que aquilo que é pessoal e restrito se mantém inquestionavelmente em terreno privado. Num período de aparentes transformações e diluição de fronteiras, é nos dois outros sectores da matriz que se multiplicam questões. Para algumas dessas questões, a tónica coloca-se no eixo do acesso, ao passo que para outras ela se põe no eixo dos conteúdos comunicativos. Assim como existem outros aspetos da dicotomia que envolvem mais diretamente outras dimensões (como os pares cívico/mercantil ou espaço público/espaço doméstico), e não tão enfaticamente os processos comunicacionais. Se retomarmos os conceitos de privatismo e de privacidade, verificamos que este último é eminentemente comunicacional, na medida em que a privacidade é crucialmente uma questão da audiência (a sua presença ou ausência, a sua extensão e composição). Na sua abordagem histórica, Richard Sennett definiu as situações privadas como aquelas em que alguém controla a audiência ao saber para quem fala (Sennett, 1992: 92). No nosso caso, tomamos a privacidade como as práticas e as estratégias destinadas a manter conteúdos pessoais dentro de uma audiência restrita, não acessíveis a participantes que se desconhece. Este acesso restringido a um conjunto de membros especificamente identificados significa manter o controlo sobre a audiência, adequando conteúdos e formas comunicativas em função do conhecimento que se tem da sua composição específica. Nesta perspetiva, não nos é possível manter a privacidade quando comunicamos com uma audiência, por pequena que seja, que contenha uma parte inadvertida para nós, composta por membros que nos estão ocultos ou desconhecidos, simplesmente porque deixamos de dominar o contexto no qual falamos. O conceito de privatismo, por seu lado, é complexo na medida em que envolve uma série de declinações e tem sido usado num conjunto de disciplinas como a sociologia, a ciência política ou os estudos urbanos. Em meados do século XX foi usado, por exemplo, em ensaios sobre a sociedade brasileira e a sua herança portuguesa para se referir a uma ênfase no mundo privado e particular e a uma ausência das noções de público e de interesse geral (cujas raízes se atribuía a um padrão colonizadora baseado na ação fragmentada de poderosas famílias agrárias). Mais tarde, Jurgen Habermas cunhou o conceito de privatismo cívico como forma de designar “a abstinência política combinada com uma orientação para a carreira, o lazer e o consumo” (1973: 37). O fenómeno foi também identificado por Habermas como “privatismo familiar-vocacional”, uma “orientação familiar cujo interesse se desenvolve no sentido do consumo e do lazer, por um lado, e no de uma carreira adequada à competição de status, por outro” (Habermas, 1973: 75).

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PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

O conceito continuou depois a ser aplicado para nomear um declínio no envolvimento em organizações que ligam os indivíduos à esfera pública, o que por vezes se associa à expansão estatal (Wuthnow e Nass, 1988), ou a um enfraquecimento da participação no debate público e na deliberação (Ackerman e Fishkin, 2002). Uma abordagem mais focada na sociabilidade desenvolveu, por seu lado, um sentido relativamente diferente do conceito de privatismo. O sociólogo norte-americano Claude Fischer, por exemplo, distinguiu as formas de sociabilidade em públicas e privadas no âmbito da sua leitura crítica da obra de Robert Putnam e do conceito de capital social por este utilizado no livro Bowling Alone. Fischer sustenta que “aquilo que Putnam aponta como ‘erosão do capital social’ pode ser mais bem descrito como privarismo” (Fischer: 2001). Este autor especifica o seu conceito de “privatismo social”: «Mesmo que concordemos, para efeitos de discussão, que os norteamericanos se afastaram de atividades públicas como a política e os grupos cívicos, levanta-se a questão de saber se eles se retiraram para os seus eus isolados e solitários (em última análise, para o individualismo) ou se retrocederam para um mundo mais privado composto pela família, pelo trabalho e pelos amigos – uma história de maior privatismo, mas ainda assim de um privatismo social» (Fischer, 2001: 6)

Esta alegada retirada de uma sociabilidade pública para uma sociabilidade privada tem sido examinada em relação com as novas tecnologias (tal como Putnam a relacionou com a televisão) e já foi especificamente estudada em relação aos dispositivos de comunicação móvel. Neste contexto, o conceito de “privatismo em rede” é utilizado – e desafiado – por Scott Campbell como forma de testar empiricamente “a proposição de que o uso intensivo de comunicações móveis nas esferas íntimas da vida social pode ser prejudicial para o estabelecimento de ligações sociais mais amplas com outros atores sociais” (Campbell, 2015: 3). Ao prestar atenção a ramificação dos laços sociais em diferentes tipos (“diversos”, “fracos” e “novos” ), Campbell aponta para uma falta de evidência empírica que seja capaz de confirmar a ideia de que os dispositivos móveis têm o efeito de produzir “bolhas” privadas. De acordo com Campbell, “há um conjunto de estudos que identificam a capacidade dos media móveis serem benéficos para os contactos sociais baseados em laços fracos” e, em certas condições, “a comunicação móvel com laços fortes é capaz de contribuir para abrir

PRIVATISMO E PRIVACIDADE

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os fluxos de discussão política (…) aumentando os contactos com laços fracos” (Campbell, 2015.11). Dentro da polimórfica dicotomia público/privado, vemos, portanto, que enquanto o conceito de privacidade se opõe a público no sentido de abertura dos processos comunicativos, o conceito de privatismo é oposto a público sobretudo no sentido de questões coletivas e envolvimento político, mas também se pode focar nas redes de sociabilidade ou ainda em atitudes e valores culturais, como acontece na definição habermasiana de “orientação” para a família, a carreira, o lazer e o consumo. O privatismo pode, pois, ser tomado como um conceito de três faces, envolvendo valores e atitudes culturais (o privilegiar dos universos da família, dos amigos, do trabalho, do lazer e do consumo), círculos de sociabilidade (a redução aos laços pessoais) e conteúdos comunicativos (referentes a experiências de âmbito familiar, amoroso e de amizade). 2. O privatismo e o público A nossa preocupação neste capítulo não é avaliar se, no que toca ao uso de comunicações móveis, o privatismo existe a expensas da orientação pública. O objetivo é, antes, refletir acerca da relação entre privatismo e privacidade e tentar compreender se, num aparente paradoxo, a sobrevalorização do domínio privado se torna uma força contrária à manutenção da privacidade no atual contexto tecnológico. De qualquer forma, a relação com a esfera pública é inevitável quando se fala de privatismo, dado ser inerente a uma dicotomia que os termos de um dos seus polos adquiram sentido apenas por referência ao polo oposto. Comecemos, pois, por prestar atenção ao modo como as sociedades ocidentais tendem a encarar os domínios do público e do privado enquanto valores culturais. Dados recolhidos pelo European Social Survey têm demonstrado, que nos vários países da Europa, os indivíduos consideram que os aspetos mais importantes da vida são os que se situam na ‘esfera privada’ (Torres e Brites, 2006). Com algumas especificidades, os valores para Portugal seguem a tendência europeia: numa escala de 0 a 10, a família é o aspeto prioritário (acima dos 9 pontos), seguida por amigos (8 pontos), trabalho e lazer (7 pontos); a política é o domínio mais desvalorizado (próxima dos 3 pontos), ao passo que religião e trabalho voluntário se situam ligeiramente acima do meio da escala. O privatismo é, visto desta perspetiva, parte integrante da cultura moderna, mas em sociedades plurais isso não significa que os laços pessoais

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PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

e o prisma privado sejam tudo aquilo a que os indivíduos dão importância, alheando-se permanente e exclusivamente de tudo o resto. Têm sido, aliás, apontados sincretismos como a emergência de formas “pessoalizadas” de mobilização e intervenção políticas em larga escala (Bennett, 2012). Movimentos de protesto baseados na ativação de redes pessoais e na confluência de focos particulares de intervenção serão uma manifestação de novas misturas e dinâmicas entre o público e privado, onde se salientam precisamente os usos de media digitais e móveis. Neste âmbito, o envolvimento dos indivíduos em processos de co-produção e circulação de conteúdos multimédia faz parte de um “ativismo digital em rede” que, por sua vez, participa de novas tendências para uma “pessoalização da política” (Bennett, 2012). Fora dos momentos de maior mobilização política e protesto público, a pesquisa que efetuámos em Portugal junto de utilizadores de smartphone indica que não se trata de os indivíduos optarem entre práticas cívicas ou usos privatísticos das comunicações móveis no quotidiano. Segundo dados do inquérito nacional 34, 79% dos utilizadores dedicam o telemóvel a fins de lazer (jogos, música, vídeos), mas também há 77% que o empregam para consumir notícias. A correlação estatística entre os usos do smartphone para lazer e para notícias (através do teste do Qui-quadrado) mostra que estes dois tipos de prática estão altamente relacionados. As pessoas que usam o telemóvel para aceder a notícias, em geral também o usam para lazer; e os indivíduos cuja frequência é muito elevada num destes usos também tendem a recorrer ao telemóvel muito frequentemente para o outro. É baixa a percentagem de possuidores de smartphone que pratique um destes usos sem praticar o outro: os utilizadores frequentes do telemóvel para lazer que nunca consomem notícias são apenas 16%; entre os consumidores frequentes de notícias no telemóvel, só 13% nunca usam o aparelho para jogar, ouvir música ou ver vídeos como atividade de lazer. Inversamente, também existe uma relação forte entre uma não utilização de meios móveis para entretenimento e o não acesso a notícias: quase 60% daqueles que não consomem informação noticiosa no smartphone também não o usam para lazer. 34

De entre as várias técnicas de inquirição e observação empregadas no seio do projeto (de que se dá conta mais globalmente no capítulo 6), recorremos aqui aos dados recolhidos através de um inquérito aplicado telefonicamente a utilizadores de smartphones a nível nacional, com 507 respostas válidas ponderadas por escalões etários, região, sexo e níveis de escolaridade.

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PRIVATISMO E PRIVACIDADE

Ainda assim, deve sublinhar-se que o entretenimento é um uso muito saliente que os portugueses dão aos telemóveis. Uma utilização frequente (aqui definida como diária ou muitas vezes por semana) para atividades de lazer é declarada por 56% dos utilizadores nacionais, ao passo um consumo de notícias com essa frequência acontece em 45% dos indivíduos.

Dados do inquérito nacional

Uso frequente do smartphone para lazer

Uso frequente do smartphone para consumo de notícias

Diferença entre uso para lazer e acesso a notícias

Total

56%

45%

+ 11

Jovens (15-24)

88%

62%

+ 26

Jovens adultos (25-34)

67%

59%

+8

Adultos (35-44)

50%

33%

+ 17

Meia-idade (45-64)

23%

25%

–2

Dentro de uma utilização global que é mais generalizada nas faixas etárias jovens, os telemóveis também são mais largamente usados para um consumo frequente de notícias entre os jovens do que entre os mais velhos. No entanto, o uso para fins de entretenimento não deixa de ser predominante dentro dos vários escalões abaixo dos 45 anos. Tomando o consumo de notícias como indicador de orientação cívica, estes dados sugerem que uma maioria de utilizadores abaixo dos 35 anos se serve dos smartphones para estabelecer uma ligação a assuntos públicos, mas ao mesmo tempo também indicam que a amplitude desta ligação é ultrapassada pela implantação de outras práticas potencialmente mais orientadas para o privatismo. O potencial da comunicação móvel para o envolvimento cívico não deve, porém, ser abordado meramente através dos índices de consumo noticioso, uma vez que outras práticas de orientação pública mais ativas são articuláveis com os dispositivos digitais móveis. Será o caso dos usos de redes sociais online para disseminação e discussão de notícias ou da captura e circulação de imagens focadas em questões públicas. Na nossa pesquisa, este tipo de práticas é referenciado por alguns entrevistados, inclusive em idades jovens:

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PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

“Por exemplo, quando há notícias na televisão, usamos logo o telemóvel para discutir e para saber a opinião dos outros, porque a opinião dos outros também nos faz ter novas ideias em que não tínhamos pensado, outras perspetivas.”

Mas se os níveis de utilização de sites de redes sociais no smartphone são muito elevados – e notavelmente próximos dos usos de entretenimento –, a partilha de notícias é praticada apenas por uma pequena parte dos utilizadores.

Dados do inquérito nacional

Uso frequente de sites de redes sociais no smartphone

Partilha frequente de notícias através do smartphones

Diferença entre partilhar notícias e outros usos de sites de redes sociais

Total

53%

10%

– 43

Jovens (15-24)

82%

17%

– 65

Jovens adultos (25-34)

63%

13%

– 50

Adultos (35-44)

49%

6%

– 43

Meia-idade (45-64)

22%

6%

– 16

Os dispositivos digitais móveis, consideravelmente empregues pelos utilizadores portugueses para aceder a notícias, são usados apenas por uma pequena minoria para algo que a sua ubiquidade e instantaneidade poderiam ajudar a incrementar: a circulação e discussão oportuna de questões coletivas no seio do público. 3. Exposição de imagens pessoais A seguir às chamadas telefónicas e às mensagens, o uso mais generalizado que os utilizadores dão aos telemóveis é o que diz respeito à captação de imagens fotográficas e vídeos. Em Portugal, 94% dos possuidores de smartphone usam-no para captação de imagens, 49% declarando que o fazem diariamente.

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PRIVATISMO E PRIVACIDADE

Dados do inquérito nacional

Frequentemente

Nunca

Usam redes sociais online

56%

22%

Partilham notícias

10%

50%

Fazem fotos ou vídeos

49%

6%

A captação de imagens com smartphones, sejam fotográficas ou em vídeo, está positivamente correlacionada com a utilização de sites de redes sociais: o teste do Qui-quadrado mostra novamente que quanto mais intensamente os utilizadores usam redes sociais online, mais provável é que tenham o hábito de captar imagens, tanto em situações públicas (por exemplo, eventos culturais) como privadas (caso de ocasiões familiares e de encontros de amigos). Inversamente, a maioria dos que não usam redes sociais online também não captam imagens tão frequentemente com o telemóvel. No global, o objeto mais largamente tomado para captação de imagens é a família, alvo habitual de fotos ou vídeos para 87% dos utilizadores de smartphone. Na procura de mais dados sobre o uso de sites de redes sociais, a nossa pesquisa levou a cabo dois inquéritos online dirigidos às temáticas específicas dos dados pessoais e das imagens, assim como abordou questões relativas a esses tópicos no conjunto de grupos de foco e de entrevistas individuais. Um dos objetivos era entender melhor as atitudes e comportamentos, bem como as possíveis peculiaridades relacionadas com a idade e o género. Estes inquéritos (estatisticamente não representativos dos utilizadores nacionais e que foram preenchidos, em esmagadora maioria, por respondentes com elevada escolaridade) forneceram resultados que sugerem a existência de atitudes distintas segundo os grupos etários no que toca à exposição de dados pessoais. Os indivíduos com idades até 44 anos mostram-se consideravelmente mais predispostos a partilhar dados pessoais do que os inquiridos acima daquela idade. As respostas indicam também uma menor cautela dos respondentes masculinos em relação à exposição pessoal, comparadas com as atitudes do sexo feminino. No inquérito dedicado ao uso de imagens, uma ampla maioria de 79% dos respondentes declarou partilhar fotos ou vídeos nas redes sociais online e 89% declararam ter uma fotografia de si próprios no perfil que mantêm nos sites. Acerca das motivações para o hábito de partilhar imagens, as respostas sugerem que o impulso para a interação com amigos e família se

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tende a sobrepor às preocupações acerca dos riscos de ‘publicação’ online, mesmo quando os utilizadores se apercebem ou suspeitam da sua existência. Em entrevistas e grupos de foco encontramos indícios de uma forte envolvência cultural em torno da captação e circulação de imagens pessoais, tanto entre adolescentes como entre adultos jovens.35 Mesmo aqueles que declaram não ter o hábito de ‘postar’ imagens pessoais online, descrevem a existência de práticas rotineiras nos seus círculos sociais, de uma forma que acaba por incluí-los também. Há uma tendência para partilhar e mostrar tudo. É mais aquele entusiasmo do momento, tiras uma foto, estás no meio de amigos, vamos partilhá-la no Facebook para ver quantos likes temos. A mim não me diz grande coisa, pessoalmente, mas algumas pessoas gostam deste tipo de adrenalina. (sexo masculino, 27 anos) As pessoas vão a um restaurante e há um prato giro, então tiram uma fotografia e publicam no Facebook que estão a almoçar no restaurante tal e que estão a comer tal prato… Chegámos ao ponto de se dizer, hoje comi isto ao almoço, comi aquilo ao jantar, dormi tantas horas… Depois, estamos no café com amigos e não há grande conversa, ou então a conversa é ‘viste isto e aquilo no Facebook?’ (sexo feminino, 28)

Entre adolescentes, é abertamente assumido que o uso do telemóvel inclui fluxos de informação pessoal de forma saliente, e por vezes compulsiva, através de redes sociais online que os utilizadores consomem e alimentam de modo contínuo. É o que transparece nas seguintes citações de um grupo de foco com participantes do sexo feminino entre os 17 e os 19 anos: “Fora de casa, qualquer coisa vamos ao Facebook para ver o que se passa.” “Eu ando sempre com o telemóvel na mão, já nem o meto no bolso. E também o uso em sítios em que não devia, por exemplo nas aulas. Noto muita diferença, porque não acontecia antes [de ter smartphone com acesso à Internet], e agora às vezes não se consegue resistir.”

35

A recolha de dados qualitativos, através de entrevistas e grupos de foco, foi restringida à zona da Covilhã.

PRIVATISMO E PRIVACIDADE

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Eu costumava estar nas aulas e raramente usava o telemóvel, a não ser que fosse por causa de uma mensagem ou para responder a alguém, mas agora ligo à internet e passo a aula toda no Facebook (risos).” “As redes sociais, principalmente o Facebook tem montes de informação. Quando conhecemos alguém, ou alguém nos fala de uma pessoa e não sabemos quem é, vamos logo ao Facebook (risos) procurar o nome, para ver quem é.” “Quando vamos a lugares aonde não costumamos ir, tiramos fotografias. Ou pratos novos, por exemplo [para postar no Instagram]. Vamos a um restaurante e comemos uma coisa diferente do habitual, então tiramos fotos, a nós e a outras pessoas, aos nossos amigos.” “Por exemplo, eu tenho uma foto com a M. que é ‘nós, fofinhas, no shopping a comer gomas’, ou uma coisa assim.”

Ainda que por vezes seja admitido com relutância, muitas das imagens partilhadas online por jovens adultos parecem ser frequentemente de natureza idêntica: família, amigos, animais de estimação, férias, viagens e acontecimentos culturais ou situações do quotidiano são usadas para densificar os laços sociais dentro dos círculos próximos. Na discussão deste aspeto, os participantes num grupo de foco com adultos jovens (24-38 anos) começam por enfatizar a diferença entre si e os adolescentes, mas acabam por se referir a práticas de exposição pessoal como algo muito comum em adultos dos seus círculos sociais. – Crianças entre os 10 e os 15 anos que já têm acesso ao computador metem lá tudo o que fazem: o primeiro beijo, a primeira namorada, quantas amigas tem ou não tem. Mas a faixa dos 20 aos 30 já não é tanto isso. Porque já temos um bocado a mentalidade de que as pessoas estão a ver aquilo tudo e não estamos a exibir: eh, o meu telefone é melhor do que o teu. Comprei umas sapatilhas novas, custou isto, é desta marca e o outro «eh pá, não tenho», é um pouco pela inveja… (…) – Eu tenho dois primos, novinhos ainda, adicionados no Facebook. Um tem 15 e a rapariga tem 16/17 e o que eu noto é que eles têm tipo 3 mil amigos (risos) (…) E, pronto, se calhar nós, 200, 300… há quem tenha mais, mas muito mais restrito. Eles não, acho que eles adicionam por adicionar. Eu vejo pelo meu primo, ele vê uma miúda gira, adiciona. – Tudo vai de a pessoa querer mostrar ou não aquilo que é seu. Para mim era inconcebível mostrar um bebé a tomar banho ou alguma coisa assim no Facebook, nem que seja para a tia-avó que está do outro lado

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PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

do mundo ver. Para mim, é inconcebível tirar fotos a crianças e coloca-las diretamente no Facebook. E hoje em dia é o que mais vemos… – E pessoas com formação cultural bastante avançada, mas que acho que descuram um bocadinho… (…) – O que é que acham que leva uma pessoa a partilhar esse tipo de imagens? – Não têm consciência do que estão a fazer. – Primeiro é o orgulho. Acho que é um orgulho. – E partilhar a sua felicidade também. A motivação de partilhar a felicidade do momento. (…) Falo do caso de um colega meu que faz isso todos os dias. É vídeos da filha todos os dias, todos os dias.

Num contexto que valoriza o privatismo, o impulso para desvelar aspetos da vida pessoal online acaba por ser compreensível para os próprios utilizadores que afirmam não o fazer. Também estes partilham da perspetiva acerca da vida privada como lugar de felicidade e orgulho e acham natural, ainda que potencialmente perigoso, não se reprimir o desejo de publicitação. 4. Tecnologia e cultura Antes de regressarmos às questões da privacidade, façamos uma brevíssima digressão acerca dos dispositivos móveis enquanto tecnologia e cultura. James Katz e Mark Aakhus invocaram o conceito de Apparatgeist para se referirem ao ‘espírito’ que penetra os contextos tecnológicos habitados pelo telemóvel. Esse espírito, ou atmosfera, produzido na apropriação social do aparelho consiste, segundo os autores, numa cultura de conectividade, a lógica daquilo a que também chamam “contacto permanente” (Katz e Aakhus, 2002). A influente análise de Katz e Aakhus enfatiza naturalmente o carácter do telemóvel enquanto meio de comunicação. Mas, além da sua saliente natureza comunicativa, o smartphone também se tornou hoje um instrumento poderosíssimo e extremamente flexível para aquilo a que, inspirados na análise feita por Simmel há um século, podemos chamar uma objetivação da cultura da vida quotidiana. Nesta matéria objetivada passou a participar intensamente a produção e circulação de imagens, pensamentos ou interações por parte das pessoas comuns.

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Na sua marcante abordagem da cultura, Georg Simmel (1988) sustentou que existe sempre uma tensão dialética entre as manifestações subjetivas e objetivas da atividade humana, entre o fluxo da vida e as formas que dela emergem, ambas as dimensões sendo imprescindíveis para a expressividade cultural e o desenvolvimento da pessoa. O que é peculiar na modernidade, segundo Simmel, é uma perda de reciprocidade entre vida e forma: um excesso de cultura objetiva tende a retirar espaço à subjetividade, que procura intensificar a sua expressão como mecanismo de defesa sem, no entanto, lhe ser possível reincorporar nos objetos uma extensão positiva do self. Não pretendemos discutir aqui se a enorme proliferação de formas simbólicas criadas pelos prosumers nos seus fluxos móveis do quotidiano configuram uma oportunidade para o desenvolvimento da subjetividade ou uma nova etapa no desequilíbrio moderno a favor da cultura objetiva. Não queremos equacionar, por exemplo, se os pais que participam em aniversários, apresentações escolares ou quaisquer snapshots das suas crianças através das lentes de smartphones estão nessa ocasião a enriquecer a sua subjetividade na produção de objetos, se estão a abdicar de envolvimento subjetivo, ou se estarão paradoxalmente a tentar aprofundar vida subjetiva através das formas objetivas que a fazem definhar. O que queremos sublinhar é, simplesmente, como este movimento cultural transforma um vastíssimo leque tanto de práticas triviais como de ocasiões invulgares literalmente em objetos, e portanto em algo que se torna possível de ser visto, revisto, circulado, comentado e armazenado. Na verdade, os dispositivos móveis com múltiplas funções permitem aos utilizadores performatizar, articular e misturar uma variedade de objetos simbólicos e servem para “conectar permanentemente” as pessoas – também – através desses objetos. E desejamos sublinhar igualmente que quando as esferas da vida mais valorizadas são as da família, amigos, lazer ou consumo, um vasto leque de cultura objetiva emerge positivamente sob uma cadência de formas tecno-artesanais da esfera pessoal. Por estas razões, podemos encarar os dispositivos digitais móveis como recursos tecnológicos privilegiados para as manifestações objetivas de privatismo e como uma condição para a sua circulação coletiva em rede. Há um século, Simmel – tal como Max Weber e outros teóricos sociais – foi um dos representantes de uma corrente de pensamento que, sem ser tecnofóbica, refletiu em modo crítico acerca da natureza do desenvolvimento tecnológico. Hoje, as novas tecnologias da comunicação são-nos tendencialmente apresentadas como não-problemáticas e

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resultantes da evolução natural da ciência e da técnica, algo que ecoa constantemente no discurso social e que também emerge entre os nossos entrevistados: “a tecnologia evolui, por isso apareceram os smartphones e a possibilidade de aceder à Internet” (adulto, 38 anos – grupo de foco). Mas as tecnologias da comunicação são formas culturais, tal como Raymond Williams nos explicou, não apenas no sentido de serem apropriadas de acordo com o contexto cultural – e portanto de serem usadas distintamente por diferentes pessoas em diferentes lugares –, mas também no sentido de que os desenvolvimentos tecnológicos e os seus efeitos práticos sob a forma de dispositivos, são eles próprios culturais e políticos, e de modo nenhum mera consequência da progressão científica ou simples resultado de ‘invenções’ (Williams, 2003). Williams cunhou precisamente a noção de “privatização móvel” como maneira de chamar a atenção para um conjunto de vastas transformações da sociedade industrial num sentido que conjugava o aumento da mobilidade com uma crescente centralidade de espaços e experiências privadas. É evidente que, atualmente, será difícil compreender as reconfigurações do público e do privado se não se prestar atenção às dinâmicas da economia capitalista e aos valores que estão incrustados nas tecnologias emergentes e no seu desenvolvimento à escala global. Os meios eletrónicos de difusão, ditos broadcast ou de ‘massa’, disseminaram conteúdos através de uma grande profusão de espaços privados porque, como notou Williams, a tecnologia foi concebida e oferecida de maneira a orientar a receção para os núcleos domésticos e a constituir audiências em torno do consumo familiar, em detrimento de outros contextos possíveis para a receção. De qualquer modo, os meios broadcast continuaram dependentes de informação pública: a sua existência só era viável pela difusão de conteúdos que apelassem simultaneamente a um grande número de pessoas. Mesmo aquilo que mais recentemente tem sido muito apontado como a ‘privatização do espaço público’ – através da mediatização de estórias pessoais, da vida mundana das celebridades, etc. – só é possível nos mass media na medida em que essas estórias têm capacidade para se tornar públicas, não apenas no sentido em que elas se tornam acessíveis e consumidas por vastas audiências, mas também no sentido em que de alguma forma elas adquirem uma ressonância coletiva através de mecanismos de identificação, exemplo, discussão. Muitos conteúdos pessoais nos “self mass media” digitais – dando ao conceito de Castells um sentido um tanto diferente – são conteúdos ‘privados’ num sentido diferente do das estórias pessoais que podemos ver na televisão ou ler nas revistas, porque não têm potencial para se

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tornarem públicos na sua repetição de milhares de milhões de variações de autorretratos, de imagens em jantares de amigos, de animais de estimação, atos, pensamentos e ‘estados de espírito’ (aqueles que, deste universo, ecoam algo de coletivo acabam por tornar-se ‘virais’ e extravasam para os mass media). Estes conteúdos privados podem, porém, ser muito efetivos em termos de coesão e de laços sociais (Ling, 2008), assim como – e este é o aspeto principal aqui – também possuem um valor comercial decisivo enquanto fluxos de informação, justamente porque perfazem muitos milhares de milhões de objetos simbólicos que se propagam através de uma estrutura em rede. Contrariamente ao que acontece na estrutura de difusão, ser público ou privado não é um critério decisivo para a informação que flui nas estruturas reticulares de comunicação alimentadas pelos dispositivos digitais móveis. O valor de uma enorme quantidade de pequenos pedaços de cultura quotidiana objetivada torna-se ainda maior para os conglomerados comerciais do setor não só porque esses objetos não têm custos de produção empresarial, mas também porque os próprios indivíduos privados pagam para produzi-los eles próprios (em dinheiro despendido em equipamento e energia, e em tempo cedido para tal). Neste contexto, não é surpresa que o desenvolvimento tecnológico no campo das comunicações se tenha orientado para fornecer às pessoas os meios para estas serem “prosumidores” o mais permanentes possível, em quaisquer lugares e momentos, e obviamente de forma não gratuita (apesar de mascarada enquanto tal). Não prejudica os objetivos comerciais se os indivíduos usarem também os meios móveis digitais para fins públicos, para acesso às notícias, para discussão cívica, para se organizarem politicamente. Todos estes fluxos de informação são absorvidos no circuito comunicacional gerador de valor comercial acrescentado, contribuindo também eles para o aumento da procura de dispositivos de mediação e para conferir às novas tecnologias da comunicação uma crescente centralidade no contexto do capitalismo tardio. A distinção entre público e privado perde, portanto, uma parte da sua significação do ponto de vista dos conglomerados comerciais e das inovações tecnológicas que estão ligados a eles, mais ainda quando os stake holders estão ao mesmo tempo nos negócios da distribuição de conteúdos e da conceção tecnológica, como é o caso da Google e do sistema operativo Android. O valor comercial da objetivação da cultura privada não seria totalmente explorado se esses objetos fossem meramente produzidos e armazenados.

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A sua potenciação necessita de meios para a disseminação através de grupos, requerendo, pois, dispositivos simultaneamente de produção/ performance e de conexão. E uma vez que o potencial público da maior parte dos conteúdos privados é muito baixo, e que o seu valor comercial aumenta em função da quantidade de pessoas privadas que compuserem esses grupos, o interesse económico também requer mecanismos capazes de fomentar a expansão dos círculos em que essa informação circula e a cadência de interações que neles se dão. Alguns teóricos sociais têm chamado a atenção para os elementos básicos da tecnologia digital, que residem na cibernética enquanto ciência do controlo através de mecanismos de feed-back (Hassan, 2004). Que estas técnicas do controlo podiam ser notoriamente direcionadas para fins comerciais, parece já ter sido intuído pelo próprio fundador da cibernética quando em 1950 escreveu em tom crítico que “o destino da informação no mundo tipicamente americano é tornar-se algo que possa ser comprado ou vendido” (Wiener, 1989: 113). Atualmente, o feed-back e outros mecanismos de captação e gestão de informação são empregados de forma crucial nos dispositivos digitais móveis. Por um lado, desenvolveu-se todo um sistema estimulador de respostas, através de informação sobre a receção de mensagens, mecanismos de alerta, notificações, etc., de uma forma que engaja os participantes em trocas comunicativas sucessivas. Com base nos mecanismos de feed-back, cada participante que introduz objetos da cultura privatística num determinado círculo comunicacional também induz potencialmente estímulos para que outros membros respondam e contribuam com o seu próprio material. Por outro lado, os mecanismos de feed-back permitem aos conglomerados comerciais, às organizações estatais e aos próprios membros dos círculos sociais acesso a informação sobre os utilizadores que os habilita a monitorar as suas mensagens pessoais e atos individuais. Envolver-se na comunicação digital móvel hoje em dia equivale a fornecer constante feed-back acerca das suas ações, uma vez que cada mensagem é arquivada e processada, o que evidentemente convoca a questão da privacidade. 5. A privacidade em questão Que as pessoas, e especialmente os jovens de hoje, deixaram de se preocupar com a proteção da sua privacidade ou que perderam a consciência da diferença entre o que deve ser privado e público é uma

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ideia relativamente difundida, mas que é contrariada por um conjunto de dados recolhidos empiricamente pelo projeto junto de utilizadores de dispositivos móveis em Portugal. Vários aspetos apontam no sentido de que os indivíduos continuam a manejar a noção de privacidade, a atribuirlhe relevância significativa no seu quotidiano e a usar determinadas táticas para geri-la. No entanto, o atual cenário tecno-cultural fá-los enfrentar uma maior fluidez no interior da velha dicotomia público/privado e confronta-os com a construção cultural de certas disposições que tendem a ser mais ou menos incorporadas por um conjunto de utilizadores. Por exemplo, apenas 32% dos utilizadores portugueses declaram não instalar algum tipo de aplicação nos seus smartphones por quererem proteger os seus contactos, localização ou fotografias. Para a maioria, as aplicações não causam preocupações aparentes, e mais de dois terços instalam-nas sem sequer ler as permissões. Dados do inquérito nacional

Consideram os smartphones prejudiciais à privacidade

Leem sempre as permissões antes de instalarem aplicações

Total

20%

31%

Jovens (15-24)

23%

27%

Jovens adultos (25-34)

21%

36%

Adultos (35-44)

14%

34%

Meia idade (45-64)

20%

28%

Isto nem sempre significa, porém, que os utilizadores não estejam cientes de que a sua privacidade corre riscos. O que significa, por vezes, é que essa consciência, ou suspeição, é suplantada por outros fatores, como é patente na seguinte citação extraída de um grupo de foco. – Há algo no telemóvel que vocês gostariam que mudasse? (…) – A pouca privacidade. Eu não sei metade das coisas que aceito porque não quero ler aquilo tudo que me pedem, tanto no telemóvel, como quando estou na net, como no computador. Aceito coisas que não tenho tempo para estar a ler aquilo tudo e aceito inclusive coisas que não iria aceitar, ou não iria concordar, e chateia-me um bocado. Há coisas que deviam ser mais claras… e mais simples. (…) – Quando aceita tem noção das implicações?

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– Sim. Mais ou menos. Nem sempre. Tenho noção de que estou a fazer algo de mal, é como se estivesse a assinar um contrato sem o ler. Podem-me estar a dizer que os dados que lá estão vão estar disponíveis para toda a gente. Tenho mais ou menos consciência disse, mas estou a fazê-lo na mesma. Não sei bem ao que isso me vai levar, mas estou a aceitá-lo na mesma. (Sexo feminino, 24 anos, escolaridade superior)

Que as perceções acerca do risco são frequentemente incoerentes com as estratégias de proteção da privacidade é algo que os nossos inquéritos tendem a confirmar. No entanto, os dados não sugerem que essas perceções sejam consistentemente mais baixas nas faixas etárias mais novas, nem que os mais velhos se comportam sempre com maiores cautelas para proteger a sua privacidade. O inquérito que aplicámos online dirigido a questões de privacidade e dados pessoais sugere que entre os utilizadores de smartphone acima dos 45 anos há uma maioria mais alargada que perceciona o risco de perder o controlo sobre os seus dados pessoais, comparada com os respondentes abaixo de 45 anos. Mas a proporção daqueles que fazem uma gestão ativa das definições de privacidade, tanto em aplicações como em sites de redes sociais, é mais elevada entre os mais novos. Na perceção dos utilizadores, um campo muito sensível para a privacidade é justamente a utilização das redes sociais online. Neste âmbito, as causas de preocupação tendem a ser dissemelhantes segundo o grupo etário: para os mais velhos (acima de 45), os problemas resultam da sua falta de tempo ou da sua dificuldade em gerir as definições de privacidade; abaixo dos 45 anos, a razão mais apontada é a própria estrutura dos sites de redes sociais, frequentemente vista como desenhada de forma a fomentar a revelação e a partilha de dados, e portanto requerendo constantes, mas variáveis, cuidados da parte dos utilizadores que querem proteger-se. Pelo facto de se terem encrustado nos fluxos da vida quotidiana, e de serem usados em inúmeros momentos para registá-los e objetivá-los numa diversidade de conteúdos, os dispositivos móveis fazem aumentar o risco de se revelar aspetos privados, sobretudo quando estes constituem a esfera mais relevante e valorizada nas vidas dos utilizadores. – Já alguma vez te arrependeste de partilhar alguma coisa numa rede social? – Já. Por exemplo, pensamentos meus… E depois, certas pessoas que eu não queria que comentassem, ou que vissem, se eu me esqueço das

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definições… Acabo, às vezes, por pensar: não devia ter feito, ou devia ter tido o cuidado de ir ver. (Masculino, 16 anos, entrevista individual) – Achas que o telemóvel te permite manter a privacidade ou que é um meio de alguém se poder intrometer na tua vida privada? – Depende. Se for no caso da Internet, eu acho que nem sempre é… Pronto, nem sempre temos a nossa privacidade ao postarmos fotos, as pessoas sabem sempre onde é que estamos, podem localizar-nos, e nem sempre temos a nossa privacidade, mas depende do que postamos e do que lá escrevemos. (Feminino, 15 anos, entrevista individual)

Os graus de preocupação também variam de acordo com o tipo de conteúdo colocado nas redes sociais online. As perceções de risco para a privacidade estão mais ligadas ao uso de imagens do que a outros tipos de informação, mas este é precisamente um campo em que os utilizadores não põem em prática estratégias de proteção em conformidade com os riscos de que suspeitam. Para além daqueles que frequentemente captam e postam imagens do quotidiano pessoal, também há um conjunto de utilizadores mais relutantes quanto a estas práticas, mas que acabam por se conformar com as dinâmicas coletivas geradas pela conjugação de uma cultura privatística com uma estrutura de revelação e de feed-back incrustada nas plataformas tecnológicas. Quando partilham coisas, tipo fotografias minhas, que eu nem sabia que a fotografia tinha sido tirada, aí fico um bocado chateado. Informo as pessoas, mas elas nem sempre tiram, e depois deixo… (Masculino, 27 anos, escolaridade superior) Geralmente, não pergunto [se concordam que uma foto deve ser postada], porque já sei que uma ficou bem, a outra não… Por isso, uma ia dizer que sim, a outra ia dizer que não… Então, eu posto. As que não gostam, comentam que não gostam; as que gostam, comentam que gostam. E pronto. Se alguém não gosta… que não olhe. (Feminino, 17 anos)

A maioria dos respondentes ao inquérito nacional declara que a fotografia e o vídeo são utilizados para recolher imagens da família e de experiências pessoais, confirmando assim a predominância de um uso privatístico da imagem captada por smartphone e disseminada online. Mas essa maioria também afirma que geralmente faz a partilha apenas dentro de

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círculos de pessoas conhecidas, o que configura uma gestão destes objetos da cultura quotidiana em que a norma é os utilizadores portugueses procurarem compatibilizar privatismo e privacidade. Estamos, no entanto, perante um conjunto de utilizadores que não é homogéneo nas suas conceções acerca do que é pessoal e do que é privado, e onde é visível que a noção de privacidade se encontra em negociação nas próprias práticas quotidianas e na variedade de discursos com que os indivíduos abordam o assunto. Particularmente entre os jovens portugueses, os dados qualitativos que recolhemos sugerem a existência de, pelo menos, três discursos acerca da privacidade nas comunicações móveis. Por um lado, um discurso em que se considera que produzir conteúdos pessoais e partilhá-los nas redes sociais online equivale, de facto, a abdicar da privacidade, uma vez que esses conteúdos deixam de estar na posse da pessoa e que se perde o controlo sobre eles mesmo quando são partilhados em círculos mais ou menos restritos. Neste discurso, quaisquer dados pessoais captados e difundidos através dos media móveis no fluxo da vida quotidiana, especialmente quando se trata de imagens, está destinado a escapar ao reino da privacidade, em grande medida por causa da estrutura de comunicação em rede e da arquitetura dos próprios sites. Pode nomear-se este discurso como um discurso de suspeição, ilustrado pela citação seguinte: Tudo o que fazemos tem consequências e, principalmente se estivermos numa rede social, temos de prestar muita atenção ao que publicamos… (…) É um grande risco, porque às vezes podemos pensar que algumas pessoas são de confiança, mas afinal não são e há um risco de as fotografias se espalharem.

Por outro lado, existe um discurso que aborda a privacidade em termos mais matizados, considerando que cabe aos atores sociais avaliar em quais aspetos da vida pessoal ela se justifica, e em quais não se aplica. Neste discurso, o que é pessoal não coincide necessariamente com o que é privado. Manter a privacidade continua a ser valorizado, mas há um lado da vida pessoal que não se considera problemático publicar através de novas mediações tecnológicas, uma vez que isso já faz parte de muitas outras circunstâncias quotidianas em que as pessoas se apresentam em espaços públicos, sejam eles mediados ou não mediados. Visto que os atores sociais se concebem a si próprios como capazes de discernir e de gerir os conteúdos nos meios móveis, podemos designar este discurso como um discurso de controlo:

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Basicamente, não devemos partilhar a nossa vida privada. Sair com amigos faz parte da nossa vida privada, mas que fazemos em público. Mas um almoço de família ou uma reunião importante, isso é vida privada que não deve ser partilhado.

Um terceiro discurso aplica a ideia de privado e a necessidade de privacidade estritamente aos conteúdos que envolvam algum risco para a pessoa, ao tipo de informação que pode ser usada contra alguém no caso de ser revelada – e o conteúdo mais associado a este discurso são imagens, especificamente imagens do corpo. Todos os restantes conteúdos podem ser rotulados como ‘públicos’ no discurso destes jovens, o que significa que não os incomoda que se tornem do conhecimento de quem quer que seja, trate-se de matéria pessoal ou não. Neste caso, os limites do que é público expandem-se sobre uma ampla gama de assuntos pessoais, não necessariamente através de escolhas e de critérios empregues pelos próprios utilizadores na gestão quotidiana dos seus dados, mas antes devido uma conjugação entre o apelo cultural para a partilha de conteúdos pessoais e o ambiente tecno-comunicacional que favorece potencialmente a sua publicitação. Podemos chamar a este discurso um discurso de transparência: – As fotografias que publicas [de si própria], consideras que são privadas ou públicas? – Públicas. – Porquê? – Porque não é nada íntimo, é mais que toda a gente possa ver… – E normalmente, essas fotografias que partilhas, tu partilhas em algum círculo fechado ou partilhas para todos os amigos do Facebook, ou para o público em geral? Como é que é? – É só para os meus amigos, para fora não… – E dentro desses amigos, depois tens algum círculo mais fechado onde partilhes mais fotos e mais conteúdos? – Não, acho que não. – Então, tudo o que publicas pode ser visto por todos os teus amigos do Facebook? – Sim, sim. – E há assim alguma coisa mais íntima que já tenhas partilhado numa rede social? – Não, acho que não. – O que é que te leva a decidir o que deves publicar ou não e como é que tu defines aquilo que é um conteúdo público ou privado?

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– Por exemplo, fotos de biquíni eu não gosto muito de pôr, porque acho um bocado íntimo. Por acaso agora até tenho uma, mas não é nada que mostre muito o corpo, porque acho que isso é uma coisa nossa e é íntimo, não temos que mostrar aos outros.

Para além do íntimo, que neste discurso parece preencher a totalidade do que deve permanecer privado, todo o resto da vida pessoal é aceite que seja tornado transparente num ambiente de comunicação digital móvel. Esta última citação também é indicativa de um possível deslizamento da conceção de público, pelo menos, entre uma parte dos jovens. Neste caso, a noção de público surge esvaziada de qualquer conotação com assunto coletivo, para se focar inteiramente no sentido de público como acessível a qualquer pessoa. Finalmente, este excerto de entrevista também ilustra novamente a disparidade existente entre as preocupações com a privacidade – neste caso, com a intimidade na representação do corpo – e as ações que se pratica para protegê-la. Este exemplo mostra que definir algo como íntimo e considerar que isso deve manter-se privado, nem sempre equivale a refrear os impulsos para transformá-lo em objeto e para o introduzir nos fluxos de comunicação em rede. Conclusão Os usos privatísticos da comunicação móvel, noutros contextos notados no entretenimento e consumo individual em espaços públicos (Groening, 2010), parecem ser também salientes no caso português, em que o recurso a jogos, música e vídeos constitui uma das principais utilizações. Estabelecer uma conexão entre este tipo de uso e uma retração da esfera pública não é, no entanto, nada evidente, uma vez que elevados níveis de utilização dos smartphones para entretenimento coexistem com hábitos de acesso frequente a notícias, e mesmo o consumo de música ou vídeos necessitaria de uma pesquisa mais detalhada acerca deste tópico para se perceber em que medida há significados políticos presentes ou ausentes. Por outro lado, parece claro que no contexto português também é intenso o uso dos meios móveis para produzir e trocar objetos simbólicos baseados no quotidiano pessoal, e que a mesmo tipo de produção e partilha não acontece com imagens, comentários ou notícias que envolvam temas públicos, no sentido de assuntos com ressonância coletiva. Isto pode ser visto como uma faceta do privatismo, dado que a maioria dos utilizadores

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portugueses emprega os meios móveis digitais para exprimir a importância que atribuem à família, aos amigos e ao lazer como aspetos mais valorizados da vida. As caraterísticas dos dispositivos móveis, cujo desenvolvimento tecnológico se direciona para objetivos comerciais à escala global, exploram este predomínio do apreço pelos laços próximos e pelo universo pessoal. Oferecem aos indivíduos a possibilidade de transformarem uma série de detalhes da vida quotidiana em material simbólico utilizável na mediação com os seus círculos próximos de interação, articulando-os por outro lado com estruturas de comunicação em rede no que parece corresponder àquilo que David Riesman designou como a lógica do self alter-orientado (Riesman, 1989) e também ao que Rich Ling apontou como formas ritualizadas de alimentar e fortalecer determinados laços sociais (Ling, 2008). O aspeto relevante dos media móveis e da ‘prosumição’ de objetos simbólicos que eles geram a partir dos mundos pessoais é que, ao se tornarem profundamente integrados nos fluxos da vida quotidiana e assim articularem produção, performance e comunicação virtualmente em qualquer tempo e lugar, levanta-se a questão: assistimos a uma combinação entre a força cultural do privatismo e os desenvolvimentos na tecnologia móvel de onde resultam prejuízos para a privacidade? A perceção dos utilizadores portugueses acerca da privacidade nas comunicações móveis está relacionada com as redes sociais online e especialmente com o uso de imagens. Na medida em que ‘partilhar’ aspetos da vida pessoal nesses sites significa objetivamente perder a propriedade e o controlo sobre esses dados, podemos falar na emergência de uma espécie de ‘privatismo público’, a prática de uma transparência pessoal que muitos utilizadores tentam manter dentro de círculos conhecidos, mas que facilmente pode extravasar para audiências que não se controla. Os resultados da nossa pesquisa não sugerem que a generalidade das pessoas adira à performance da transparência como norma, nem sequer que todos os jovens usem os meios móveis digitais para a exposição das suas vidas pessoais. Todavia, muitos aceitam ou conformam-se, mais ou menos relutantemente, com um potencial acesso do exterior sobre o pessoal e com o risco de serem monitorizados. Esta ambivalência entre um impulso considerável para o privatismo público, por um lado, e as noções e práticas de privacidade, por outro, acaba por requerer duas atitudes possíveis: que o indivíduo seja um utilizador crédulo e inconsciente ou que ele faça um julgamento constante para definir se as suas ações e conteúdos são públicos ou privados.

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Parte de uma tecno-cultura onde os limites do privado são com frequência pouco claros e submetidos a um julgamento quotidiano, os dispositivos móveis transportam também consigo um incremento da mercadorização de momentos, pensamentos e instantâneos da vida pessoal. Isto significa que, na negociação social do que é público e do que é privado, os indivíduos não estão sós e que os conglomerados comerciais têm um poder considerável em influenciar, redesenhar ou apagar aspetos da velha dicotomia, com vista a expandirem o máximo possível a utilização de aparelhos, a cadência do seu uso, a quantidade de objetos produzidos e o âmbito da sua circulação, independentemente de os conteúdos serem pessoais ou não. O facto de a distinção entre público e privado ter perdido pertinência em termos comerciais, num contexto social dominado pelo mercado e pelo consumo, não será alheio à diluição de fronteiras. Referências bibliográficas Bennett, L. (2012). The Personalization of Politics: Political Identity, Social Media, and Changing Patterns of Participation. Annals, 644, 20-39. doi: 10.1177/0002716212451428 Campbell, S. W. (2015). Mobile communication and network privatism: A literature review of the implications of diverse, weak and new ties. Review of Communication Research, 3 (1), 1-21. doi: 10.12840/ issn.2255-4165.2015.03.01.006 David, G. (2010). Camera phone images, videos and live streaming: a contemporary visual trend. Visual Studies, 25 (1), 89-98. doi: 10.1080/14725861003607017 Fischer, C. S. (2005). Bowling alone: What’s the score? Social Networks, 27 (2). 155-167 Gergen, Kenneth J. (2008). Mobile Communication and the Transformation of the Democratic Process. In J. E. Katz (ed.), Handbook of Mobile Communication Studies (297-309). Cambridge/London: MIT Press. Groening, S. (2010). From ‘a box in theater of the world’ to ‘the worls as your living room’: cellular phones, television and mobile privatization. New Media & Society, 12 (8), 1331-1347 Habermas, J. (1976). Legitimation Crisis. London: Heinemann. Hassan, R. (2004). Media, Politics and the Network Society. Maidenhead: Open University Press. Katz, J. E. and Aakhus, M. A. (2002). Conclusion: making sense of mobiles – a theory of Apparatgeist. In J. E. Katz and M. Aakhus (eds.), Perpetual

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CAPÍTULO 6

NEGOCIAÇÕES DA PRIVACIDADE NOS DISPOSITIVOS MÓVEIS Ana Serrano Tellería Sara Portovedo Ana Isabel Albuquerque

O aparecimento dos dispositivos móveis e o seu constante aprimoramento em conjunto com as plataformas abertas de comunicação móvel e internet vieram dinamizar o processo comunicacional, permitindo aos indivíduos acrescentar o modo online de conversação e criar uma identidade pessoal virtual. Todavia, estas formas de comunicação e criação de identidades comportam também ameaças e vulnerabilidades, quer no acesso dos utilizadores às informações pessoais dos outros, quer na possibilidade de as próprias aplicações dos aparelhos poderem aceder às informações pessoais dos utilizadores. Isto pode colocar em causa as expetativas de privacidade e diminuir a confiança nos meios de comunicação móveis. 1. O ecossistema móvel As caraterísticas do ecossistema móvel têm vindo a ser descritas como líquidas, numa correlação com a metáfora da vida líquida de Bauman, onde as fronteiras entre as esferas públicas, privadas, íntimas, pessoais e comuns são difusas e confusas. O conteúdo difunde-se e partilha-se entre audiências visíveis e invisíveis e os valores, normas e regras encontram-se em constante mutação e mudança. E é tendo em conta este cenário que apresentamos, neste trabalho conjunto, os resultados extraídos da aplicação de diversas metodologias quantitativas e qualitativas que tiveram como foco o contexto das

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estratégicas gerais e específicas que os utilizadores desenvolvem no ambiente móvel, que também pode ser online. Teoricamente, partimos do conceito de domesticação, das caraterísticas dos media digitais, da metáfora da vida líquida e da sua correlação com o ambiente online assim como das especificidades que a ecologia móvel acrescenta. Posteriormente, analisámos os usos e comportamentos dos utilizadores e tentámos estabelecer uma série de categorias e/ou dimensões que nos permitem descrever as estratégias para a privacidade. As principais conclusões apontam para a perceção de alguns riscos, se bem que a maioria dos utilizadores não mostre um conhecimento dos mesmos em profundidade, carecendo de literacia digital adequada para tal. Desenvolvem-se estratégias fracas de defesa e proteção da privacidade e percebe-se uma falta de consciência sobre as potenciais audiências desconhecidas e sobre a influência e repercussão da sua pegada digital. A maioria mostra certa preocupação com a existência dos termos e condições, bem como de políticas de dados de aplicações, mas, ao mesmo tempo, admitem não as ler. Existe preocupação sobre quem tem acesso ao seu conteúdo e sobre a falta de controlo relacionados com esse acesso. Identifica-se uma variedade de perceções e compreensões sobre o conceito de “privacidade” e normas de negociação da mesma. Porém, nas entrevistas, os utilizadores de smartphones mostram-se cientes do risco de comprometimento da sua privacidade, salientando-se a preocupação com a partilha de conteúdos nas redes sociais. E, no trabalho etnográfico, verificamos uma significativa preocupação dos mais jovens com a sua exposição para audiências desconhecidas, nomeadamente na hora de atender uma chamada em público (em que privilegiam o uso de tom de voz mais baixo e linguagem lacónica), ou de marcar uma viagem de regresso a casa no grupo online das boleias (em que se privilegia a troca de mensagens privadas). Também na análise dos grupos de foco é interessante a perspetiva geracional obtida sobre privacidade e vigilância. Os seniores encontram na vigilância uma certa segurança, enquanto os adolescentes se munem de formas de proteção das suas ações com o smartphone, por exemplo relativamente à observação parental. Percebe-se uma consciência unânime sobre os riscos de que as publicações podem ser alvo quando na web e das práticas comportamentais que definem as três gerações, quer no tipo de informações pessoais “cedidas” às plataformas quer quanto ao teor textual e/ou visual, e às repercussões que acarretam do ponto de vista daquilo que consideram ser público. A opção pela via presencial é um ponto comum para questões pessoais, há uma geral preocupação com as fotografias que publicam, e resguardam-se conversas afastando-se. Mas,

NEGOCIAÇÕES DA PRIVACIDADE NOS DISPOSITIVOS MÓVEIS

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também, são de destacar os casos em que os indivíduos trazem a público a sua vida familiar/pessoal quando falam ao telemóvel. 1.1. Uso domesticado para além do lar?

O conceito de domesticação consagrou-se na década de 90 por Roger Silverstone através dos trabalhos de observação que realizou em lares ingleses e que deram conta da importância das tecnologias da comunicação no quotidiano familiar (Silverstone, 2006). E é também a partir de estudos como este, mais qualitativos, que pretendemos problematizar e alargar a utilização do conceito aos dispositivos móveis, mais concretamente ao papel dos smartphones no dia-a-dia dos seus utilizadores. Porém, aqui não nos focamos no uso destes aparelhos no espaço doméstico, mas na possibilidade de o uso permitir transportar o doméstico para o espaço público. Começando pela definição do conceito de domesticação, é importante salientar que surge associado à apropriação tecnológica dos indivíduos no quotidiano (Silverstone e Haddon, 1996). Em primeira análise, a domesticação passa por colocar em casa tecnologias, ideias ou informação, num processo de consumo ativo. Como nos diz, Silverstone, este conceito serve para pensar as tecnologias numa relação com a economia moral de uma família (Silverstone, 2006). Todavia, é preciso considerar a aplicabilidade desta terminologia para além da esfera doméstica/privada, na medida em que a domesticação também é exercida na esfera pública sobre objetos tecnológicos que podem moldar comportamentos sociais. A domesticidade está ligada à agregação de indivíduos no lar. Por exemplo, aquando da entrada da televisão e da rádio em casa, a família passou a estar reunida numa determinada divisão da casa. Mas esta ideia foi rapidamente perturbada pela ‘portabilidade’ desses aparelhos e, atualmente, pelo aparecimento de outros meios móveis, deixando de ser a família, no seu conjunto, a aceder ao mundo, e passando a aceder-lhe o indivíduo que o cria e que dele obtém informação através de diversos media. A partir da instalação da televisão no coração dos espaços e tempos familiares, uma linha de progresso cumulativo no sentido da multifuncionalidade desenvolve-se particularmente com o smartphone, uma vez que este suga para dentro de si a própria televisão, além da rádio e de outros meios. Este dispositivo móvel tornou-se assim num produto de cultura massificada doméstica/íntima/pessoal e ‘pública’, uma vez que

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a mobilidade lhe permite o transporte de qualquer tipo de conteúdos para qualquer lado. De uma tecnologia agregadora do doméstico com abertura para assuntos externos, como a rádio e a televisão se apresentavam, passa-se para o smartphone/telemóvel como aparelho de uma pluralidade de espaços. Este dispositivo móvel proporcioinou a portabilidade e a propriedade pessoal a cada indivíduo, com acesso imediato a uma gama abrangente de programas e aplicações, à recolha e ao armazenamento de informação numa dimensão espácio-temporal praticamente ilimitada e impôs-se também como elemento de organização social e discursiva entre os indivíduos. Neste sentido, o smartphone surge como tecnologia pluri-espacial, multiconteúdos e de fluidez temporal. Expandindo o conceito de “‘colonização da casa’”, apresentado por Jeffrey Sconce, em 2000, e recuperado por Morley (2006: 27), propõe-se, quanto a este aparelho, a sua expansão/ reconfiguração para colonização de outros espaços. Neste sentido, o surgimento de novos media – que podem ser utilizados dentro e fora de casa, como os smartphones – têm vindo a esmaecer as fronteiras entre o espaço público e o espaço privado. Autores como Leslie Haddon, que também trabalhou com Silverstone, afirma que a ideia de domesticação está implícita em muitas investigações acerca dos usos da tecnologia, reconhece até que os usos fora de casa são um desafio para pensar no conceito. Hoje em dia, os novos equipamentos tecnológicos permitem utilizar a internet num espaço público, por exemplo para ver televisão, colocando em causa a articulação entre espaço público e espaço privado (Haddon, 2006). A questão essencial é que existem novos contextos, novos media e novas utilizações, sendo interessante perceber a capacidade de mobilização oferecida pelos novos meios de comunicação. As tecnologias são cada vez mais dotadas de mobilidade, o que nos leva a pensar na possibilidade de alargamento da metáfora da domesticação, e na sua capacidade de apropriação de espaços. Deteta-se, assim, a importância de se perceber o seu sentido em contextos que não são exclusivamente domésticos. Leslie Haddon tem refletido sobre a importância do conceito de domesticação no contexto dos novos media. O autor foca-se na utilização do telemóvel para reforçar que embora se possa fazer uma análise da informação trocada entre utilizadores, mas na nossa pesquisa acrescentámos também as conversas telefónicas. Elas são essencialmente de caráter pessoal, ao contrário do que acontece com as mensagens transmitidas e recebidas da televisão. As mensagens enviadas e recebidas através de um telemóvel não têm por objetivo chegar a um conhecimento público, mesmo que

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a sua utilização ocorra com frequência em espaços públicos (2006). Desta forma, assuntos que, por norma, se resolviam a partir do espaço doméstico, como o combinar atividades com os filhos, ou estruturar as tarefas domésticas, podem agora ser resolvidos a partir de qualquer lugar com recurso ao telemóvel. Hoje em dia, não estar em casa não impede o contacto com o telemóvel/smartphone. A ideia de lar vai além do espaço físico da casa. Posto isto, encaramos o conceito de domesticação para além da esfera doméstica, reconhecendo que a esfera pública e a esfera privada interagem independentemente do espaço e do tempo. Defendemos ser possível adaptar o conceito ao estudo que desenvolvemos, na medida em que o achamos um bom ponto de partida para analisar a privatização do espaço público promovida pelos dispositivos móveis e vice-versa. 1.2. Self e relações sociais sem delimitações

Atualmente, o indivíduo está rodeado de vários tipos de “espelhos”, vive à procura do seu self, um self perfeito que seja socialmente aceite, que corresponda aos padrões de beleza e de popularidade, por exemplo através do consumo de determinados bens e serviços (redes sociais). O indivíduo tenta criar a sua auto-identidade, mas não consegue dissociar esse processo do reconhecimento dos outros (Giddens, 1994). Giddens definiu os “mecanismos de descontextualização”, dizendo que ocorrem quando as relações sociais são levadas para fora dos contextos locais de interação e reconfiguradas através de espaços indefinidos de tempo e espaço que “radicalizam e globalizam os traços institucionais préestabelecidos da modernidade” e atuam de modo a transformar o “conteúdo e a natureza da vida social quotidiana” (1994: 2). Por outras palavras, o que o autor defende é que esses “mecanismos de descontextualização” permitem que ações realizadas em determinado tempo e espaço tenham consequências sem antecipação em tempos e espaços indefinidos. O “local”, ou lugar, tem influências de outros lugares sem que haja uma ligação ao tempo (Giddens, 1994). As tecnologias móveis vêm, por isso, influenciar a relação entre o tempo e o espaço e suprimir as distâncias, deixando também de delimitar muitas vezes o que é público e o que é privado. Nas palavras de Giddens, “o nível de distanciação do espaço-tempo (…) é tão extensivo que, pela primeira vez na história humana, o self e a sociedade interrelacionam-se num meio global” (1994: 29).

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Neste sentido, Giddens (1994) vê o self como algo que deve ser construído reflexivamente. Diz-nos que a construção do self é marcada pela flexibilidade e por processos de identificação efémeros que se deixam influenciar por eventos diários de ocorrência local e por experiências globais, que comportam maiores riscos. A identidade dos indivíduos tem sido colocada à prova. Quotidianamente, as pessoas interrogam-se sobre o que fazer, como agir, como ser. Os papéis sociais não estão bem definidos, o que exige do sujeito um esforço maior para construir o seu próprio self. A identidade pessoal vai sendo construída num itinerário de dúvidas existenciais e de constante mudança e adaptação, podendo enfrentar ruturas. E a socialização passa a ser vista como processo permanente, que se dá ao longo da vida, que depende da adaptação constante do indivíduo, da sua identidade e dos seus papéis sociais em novos contextos e em novas etapas de pertença a grupos sociais diversificados. Nesse sentio, para o autor, o self é construído a partir de processos reflexivos que se situam na fronteira entre a mudança pessoal/íntima e a mudança social (idem). Goffman (1993) refletiu sobre os papéis na vida em sociedade, e se tentarmos aplicar a sua reflexão às redes sociais é possível analisar alguns aspetos dessa dimensão. Para o autor, a representação teatral é a base de construção do self, é o modo de apresentação do self na vida social. Defende que, em cada situação em que os indivíduos se reúnam (face a face), há uma apresentação, há atores e plateia, com papéis que não são puramente estáticos. Aplicar a reflexão goffmaniana à análise da interação na internet, nomeadamente das redes sociais, tem sido uma tendência fortemente acordada nos principais estudos e linhas de investigação desenvolvidas nesta área de estudos. Por isso, defendemos, tal como Goffman na interação presencial, que no mundo virtual existem elementos como o palco, plateia, fachada, bastidores. Também no online, o indivíduo pode agir para grupos específicos e manter diferentes posturas em situações também diferentes. Por exemplo, existem redes sociais que pedem um enfoque mais profissional (LinkedIn) em que se pode ter um papel específico e públicos específicos, em que há um controlo do cenário, sendo tudo pensado nos bastidores antes de ser apresentado. Mas, se pensarmos no Facebook, há uma particularidade, a possibilidade de misturar diferentes grupos. Embora existam filtros para gerir a informação que lá se coloca, pode-se apenas mostrar fotos e outros conteúdos a um grupo em específico. Mas esse controlo com o tempo e com o aumento do número de amigos pode tornar-se mais difícil.

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Nos seus estudos, Scott Campbell, faz uma análise global deste processo evolutivo: “Just as mobile texting and calling were layered onto traditional means of connecting with network ties, so too have the internet, apps, and location-based services been layered onto texting and calling for the growing population of smartphone users. Expanded functionality, interface, and user practices make smartphones a game-changer for the ways in which people stay connected while carrying out everyday life.” (2015: 18) Realça-se o conceito de “game-changer” na medida em que cada funcionalidade que o utilizador do smartphone/telemóvel vai ‘colecionando’ requer adaptação. E, neste caso, o envolvimento individual e social no e a partir do dispositivo sofre mutações, atualizações, e formas permanentes de confronto com o que é público e privado, arriscando ser uma definição cada vez mais pessoal do que coletiva. 1.3. A ecologia líquida dos media digitais

As caraterísticas gerais e em circulação do conteúdo online são hipertextualidade, interatividade, multimedialidade e usabilidade, onde o ecossistema móvel acrescenta a ubiquidade, bem como a fluidez, transitoriedade, reticularidade e dissolução de fronteiras ou limites definidos por Bauman (2005) na vida líquida moderna, relacionados da mesma forma por Aguado et al. (2013). As caraterísticas que descrevem os media digitais estão focadas na negociação constante de regras cujas normas e valores não são claros na formação de um modelo descentralizado com um formato multimédia e flexível em que o conteúdo é insensível à distância, é nãolinear, e tem por base diversas fontes de recursos e audiências fragmentadas que podem tecer comentários valiosos a ter conta. (Kawamoto, 2003: 33). A inserção de dinâmicas sociais – jogos de identidade real – tornam-se objetos de consumo que redefinem a perceção de valor que os utilizadores atribuem aos conteúdos, convertendo-os, assim, para o novo recurso da economia digital: as informações pessoais (Aguado et al. 2013). Portanto, as caraterísticas dos media digitais são líquidas, já que nenhumas das suas fronteiras são delimitadas e estão em constante negociação. Mas essa delimitação pode ainda ser considerada inútil quando se tem em mente a fluidez do conteúdo, quer em diversas fontes de recursos, quer em audiências fragmentadas – dispostas a expandir. (Serrano Tellería, 2015a). Neste sentido, Rheingold (2012) descreve cinco dimensões da literacia digital: atenção, capacidade de deteção de lixo, participação, colaboração e uso inteligente das redes. O autor destaca também as quatro propriedades

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de qualquer rede social: persistência, replicabilidade, escalabilidade e capacidade de ser pesquisado, sublinhando a importância de estar consciente do que nós partilhamos e com quem (na medida em que, por trás das redes, existem audiências invisíveis e entrecruzadas – caraterística apontada também como relevante por Boyd (2014) – insuspeitas entre o público e o privado). Como observado em investigações anteriores (Serrano Tellería e Branco, 2014; Serrano Tellería e Oliveira, 2015; Serrano Tellería, 2015a, 2015b) e reforçado neste trabalho de aprofundamento, deteta-se uma importante carência de literacia digital adequada ao desenvolvimento dos utilizadores no ambiente móvel e online. Percebe-se também uma lacuna entre as suas noções de riscos e as suas ações finais. 1.4. O ser humano como portal de comunicação

O ser humano como um portal de comunicação lida com a gestão do fluxo de dados que flui num espaço móvel e ubíquo, e com a alteração ou transposição do tempo para utilizadores. No espaço e tempo virtuais, a gestão de tarefas de acordo com a sua prioridade deve ser destacada tendo em conta o estado do contacto permanente (Katz, Aakhaus, 2002) e a variável diferença, nesta conceção, entre o ser humano como um portal e os restantes utilizadores como portais também. Assim, configuram constantemente uma dimensão virtual do espaço onde a direcionalidade e a distância estão confusos ou indefinidos (Fidalgo et al., 2013). Tendo em consideração as caraterísticas que definem os smartphones e os dispositivos móveis – como a instantaneidade e ubiquidade, a alfabetização, a atenção parcial contínua e sua relação com a memória, a falta de racionalidade em algumas atitudes e performances, as limitações na extensão entre conhecimento e ação, o forte comportamento padrão circunstancial, a volatilidade e ambiguidade dos “Termos e Condições”, acrescentando a liquidez e mobilidade da nossa sociedade e da própria tecnologia – os utilizadores lidam com esferas líquidas, quando o fluxo constante de dados escapa de uma consciência clara do mesmo e a uma noção dos riscos envolvidos em profundidade. Portanto, os utilizadores gerem uma negociação constante de circunstâncias com base na avaliação de cada cenário emoldurado pela ambiguidade e o imediatismo, que também determina a reflexividade (tempo necessário para analisar), bem como a perceção do risco envolvido em cada ação. Além disso, a possibilidade de receber estímulos de todos os

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tipos e o design de exposição (Serrano Tellería, 2014; 2015a) influenciam constantemente a forma de estabelecer o nível de prioridade corretamente, bem como a forma de proteger a sua privacidade em diferentes camadas e estágios de acordo com suas possibilidades (Serrano Tellería, Oliveira, 2015). 1.5. As imagens e as ‘ofensas’ à privacidade

Nestas constantes negociações, um dos elementos cruciais é a imagem, designadamente a imagem fotográfica. “A fotografia é poder” (Rettberg, 2014: 80), de tal forma que os seus efeitos são de intensa reflexão quanto ao comprometimento e proteção de privacidade. As imagens (em still ou em movimento) alimentam o limbo entre as esferas pública e privada. Por um lado, na medida da seleção dos elementos capturados pelo dispositivo e consequente decisão de partilha nas redes sociais; por outro, quanto às fotografias que terceiros partilham (Besmer & Lipford, 2010: 1564) e tudo o que isso implica: identificação das pessoas e dos espaços, o diâmetro de visualização que poderá alcançar de acordo com as definições quanto ao tipo de pessoas que terão acesso. No caso do Facebook, a questão da divisão por círculos de maior ou menor amizade, ou mesmo familiar. Várias são as plataformas que permitem a captura e a edição de imagem como o Instagram, o Snapseed, o VSCOcam, aos quais podem estar conetadas e/ou sincronizadas outras plataformas como o Facebook e o Twitter. As imagens, com o crescente emprego do vídeo, têm a sua reconhecida importância naquilo que podemos considerar as escolhas dos utilizadores: a portabilidade, o momento, a rapidez e a capacidade de transmitir conteúdo. Mas acopladas a estas questões, impõem-se outras: quem vê, qual o destino da imagem dentro da World Wide Web, e se serão alvo de usurpação e transfiguração das mesmas. Mais, a pressão do marketing, do algoritmo que analisa toda a informação inserida na rede e que poderá associá-las a outras redes/plataformas de áreas completamente diferentes e inclusivamente perigosas. O estudo da imagem é igualmente importante quanto à sua análise ao nível da representação e autenticidade, realidade e cenário, e nomeadamente a figura que se apresenta – uma construção que sofre alterações mediante os contextos (Goffman, 1993), onde as questões de veracidade e falsidade se mostram. Relembre-se o perfil e o self já mencionados. E particularmente o fenómeno das selfies e da sua consequente fragilidade no mundo virtual com as respetivas clouds e outras aplicações. Neste caso, toda a informação visual

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disponibilizada ou até mesmo arquivada no dispositivo é potencialmente utilizável pelos media ou hackers sob abordagens invasivas e desfiguradoras. 2. Metodologia da componente empírica: identificação de dados Após uma fase de estudos exploratórios (inquérito online e grupo de foco), o trabalho de recolha propriamente dita foi composta por um inquérito sobre dados pessoais36 e outro sobre imagens online 37 (de âmbito nacional, mas sem representar a população portuguesa utilizadora de smartphone); por um inquérito telefónico com representatividade nacional acerca dos principais usos e hábitos38; e um conjunto de técnicas de cariz qualitativo, restringidos à região da Covilhã, que englobaram a realização de grupos de foco39, de entrevistas individuais40, de um workshop com alunos de comunicação41, de um período de observação participante42 e de uma pesquisa de etnografia digital43. Isto permitiu delimitar três dimensões 36

Inquérito sobre Privacidade e Dados Pessoais aplicado online entre 10 de março e 11 de junho de 2014 com 208 inquéritos válidos (100 homens [48,1%] e 108 mulheres [51,9%]). Este inquérito dá indicações principalmente acerca do grupo mais escolarizado de utilizadores. A maioria (31,7%) era licenciada; 21,6% com mestrado; e 27,4% com doutoramento; sendo 49,5% a trabalhar para o setor público, 24,5% a estudar e 4,3% de desempregados. 37 657 Respostas. Idades: menos de 17: 15 respostas, 18-25: 236, 26-44: 249, mais de 44: 143, dos quais 60,88% são femininos e 37,44% masculinos. Outubro-dezembro de 2014. 38 507 respostas e 18 minutos de duração. Realizado por Consulmark. Janeiro de 2015. Idades: 15-24: 9,3%, 25-34: 14%, 35-44: 20,1%, 45-64: 38,7%, +64: 38,7%. Masculino: 54,9% e feminino: 45,1%. 39 Cinco Grupos de Foco com grupos de adolescentes (feminino, masculino, e misto), um misto com adultos licenciados e outro misto com seniores também licenciados. Todos os grupos de foco foram realizados na região centro de Portugal, concretamente na Escola Secundária Frei Heitor Pinto, Covilhã e na Universidade da Beira Interior. 40 Catorze entrevistas com indivíduos selecionados de acordo com as variáveis sexo, escalão etário (jovens, adultos e séniore) e grau de escolaridade (com e sem frequência de ensino superior). 41 Faculdade de Artes e Letras, Universidade da Beira Interior, Portugal. Dias 12 e 19 de dezembro, 2013. 42 Constituído por 29 sessões de observação do uso de dispositivos móveis em espaços públicos. 43 Envolvendo participação e análise de um grupo constituído na rede social Facebook e interação presencial com membros do mesmo grupo.

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que descrevem os níveis de apropriação tecnológica e performativa do utilizador na sua relação com os smartphones e outros dispositivos móveis (Serrano Tellería, 2015b). Neste sentido, apresentamos os resultados seguindo estas três dimensões para, posteriormente, aprofundar nas categorias e/ou temáticas observadas e surgidas da parte da análise quantitativa e da análise qualitativa. Fase composta por uma continuação do inquérito online sobre dados pessoais e pelos grupos de foco, as entrevistas, a observação não participante e a etnografia digital. O workshop foi constituído por 44 alunos do último ano da licenciatura em Comunicação da UBI. Foram realizadas dezoito perguntas abertas para desenvolverem e refletirem. Através destas, tentamos perceber a sua noção sobre os conceitos de perfil e identidade digital, bem como a forma como eles obtiveram privacidade, especialmente com o uso dos smartphones e outros dispositivos móveis. Abrangeu também a forma como criaram e processaram o conteúdo, bem como a forma como se apresentaram online. O objetivo principal dessa abordagem sintático-semântica, com vista à análise de resultados, foi a apreciação de como os utilizadores descreveram o seu próprio processo de gestão. Nos grupos de foco, foram tratados principalmente aspetos relacionados com as motivações, perceções, estratégias e valores. Duraram entre uma hora e quinze a trinta minutos e incidiram sobre os seguintes temas: o uso de telemóveis/smartphones na vida quotidiana; telemóvel/ smartphone como um tópico de discussão; uso de imagens; valor atribuído ao telemóvel/smartphone; comparação entre o telemóvel, o smartphone, o computador e o tablet; desenho de contas; implicações do uso de telemóveis/smartphones em comunicação e relacionamento; sensação de controlo e vigilância. Os grupos de foco foram tratados utilizando uma análise temática, que pressupõe a identificação de temas (padrões de resposta/conjunto identificável de significado de dados). Esta identificação pode acontecer via indutiva, surgindo a partir dos dados e da sua leitura, ou dedutiva, quando realizadas pelo investigador segundo interesses teóricos (Braun e Clarke, 2006). Na presente pesquisa, estes dois procedimentos foram combinados. No mesmo sentido, também se procurou explorar a tipologia de imagens (fotografias e vídeos) que os indivíduos têm por hábito capturar e as suas motivações, relacionando-as com os conteúdos e/ou temáticas específicas, bem como a importância que atribuem aos elementos que constam do enquadramento que escolhem.

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O trabalho de observação etnográfica foi realizado durante cinco semanas no Centro Comercial Serra Shopping da Covilhã44. A observação teve como principal objetivo a recolha de dados que ilustrassem situações reais que implicam o uso de smartphone no quotidiano do público que frequenta o shopping. Estivemos mais atentos à forma como é feita a negociação do público e privado/pessoal e, consequentemente, ao modo como condiciona ou não o comportamento e as atitudes dos indivíduos que interagem por meio de dispositivos móveis em situação de co-presença de conhecidos e desconhecidos. O diário de campo deste trabalho consistiu no preenchimento de uma grelha de observação a cada dia de incursão no terreno. Os campos de preenchimento da grelha estão divididos em duas partes. A primeira diz respeito à conversação telefónica: tempo de conversação; tom de voz; interação verbal; tema de conversa; espaço. A segunda à utilização de smartphones: tipo de grupo; situação; tempos de utilização; utilização isolada ou partilhada. Em ambas as partes existem campos de preenchimento comuns: indivíduo/grupo observado a que fazemos corresponder números; sexo e idade (por intervalos); contexto que inclui a dimensão do grupo e o tipo de relações estabelecidas; outros registos. Também recorremos à etnografia digital, que é um tipo de observação interativo, que na nossa investigação teve por objetivo entender o comportamento dos utilizadores no grupo do Facebook selecionado e as suas estratégias de utilização no mesmo (se são mais de salvaguarda da privacidade, ou mais de exposição). Esta observação foi ainda complementada com a recolha de informações do grupo em estudo, de modo a entender a sua relação com o ambiente digital. Neste sentido, tentou-se entender o funcionamento do grupo – Boleias Covilhã, no Facebook – e analisar como os seus aderentes interagem no espaço virtual, isto através de uma observação direta e participante da observadora. Esta observação consistiu, assim, no acompanhamento do grupo do Facebook, no desenho da sua dinâmica diária e na verificação das interações de alguns aderentes na vida real (momento de realização da viagem – onde também realizámos trabalho de observação). Nas entrevistas, tivemos o propósito de captar experiências únicas do uso de dispositivos móveis, quisemos ouvir alguns testemunhos na

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Foram realizadas 29 incursões em períodos diferentes do dia: de manhã, à tarde e à noite. Duas incursões foram nos dias 21 e 23 de julho de 2014, que incluímos numa fase mais exploratória do trabalho. As restantes 27 foram do dia 1 ao dia 21 de setembro.

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primeira pessoa, dando alguma liberdade de resposta. Cada entrevistado/a relatou, por meio de algumas questões orientadoras mas flexíveis, o tipo de uso que faz do equipamento e as preocupações que tem ou não tem com as questões de segurança e preservação da privacidade. O guião utilizado foi previamente estruturado, sendo cada entrevista semi-diretiva. Em média, as entrevistas demoraram cerca de 25 minutos. Todos os entrevistados foram selecionados tendo em conta o sexo, a idade e a escolaridade. 3. Estratégias de salvaguarda da privacidade: dados quantitativos 3.1. Hábitos globais e privacidade dos utilizadores

Segundo o inquérito telefónico (IT), todos os dias ou quase, o smartphone é utilizado para fazer chamadas de voz, enviar e receber mensagens de texto, para entreter (jogos, ouvir música, ver vídeos), pesquisar informação, usar redes sociais e tirar fotografias/fazer vídeos. Com menos frequência, utiliza-se o smartphone para enviar e receber mails, recorrer a serviços de localização, e fazer downloads. O telemóvel é já parte integrante na vida dos utilizadores: é raro ‘desligar-se o telemóvel’ – 72% nunca o faz –, ‘dorme-se com o telemóvel ao lado da cama’ – 46% fá-lo todos os dias –, e a “dependência” que se tem do telemóvel faz com que 42% dos entrevistados, todos os dias, verifiquem se têm mensagens, alertas ou chamadas perdidas no telemóvel mesmo quando este não toca nem vibra. É opinião generalizada que o telemóvel beneficia a vida dos utilizadores. Os três pontos mais fortemente avaliados são: permite ‘estar em contacto com as pessoas com quem se preocupa’, possibilita ‘gerir as tarefas diárias’ e ajuda a ‘participar e partilhar questões coletivas’ (IT). A conversa telefónica é a forma de contacto preferida (IT). No entanto, enquanto no ‘contacto público’ isso é quase unânime, no ‘contacto privado’ há quem prefira falar pessoalmente. A utilização do telemóvel foi considerada fortemente circunstancial, já que não existiam regras gerais estipuladas pelos atores – diferentes contextos suscitam comportamentos diferentes. Os participantes dos grupos de foco (GF) reconheceram sofrer de “ansiedade” quando tinham “que estar sempre disponíveis”. Os aposentados seniores criticam especificamente o uso “abusivo” de dispositivos móveis e comunicação online por parte dos jovens. Em geral, tende-se a considerar

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que os dados sempre foram privados, mas em alguns casos (imagens) não contradizem a possibilidade de partilhar/publicar. A análise do inquérito sobre privacidade e dados pessoais (ID) revelou algumas preocupações quanto à informação e respetivas medidas de salvaguarda. No armazenamento de informação, a preferência está no “suporte físico” como pen drives e discos externos, mas há um terço dos inquiridos que não pratica qualquer tipo de armazenamento/cópia de informação. A informação pela qual se mostra maior preocupação é a relativa a “documentos de trabalho” com 26,9%, seguida de fotografias ou vídeos familiares, com 19,2%. Em sentido inverso – mas com nota de contributo para a defesa da privacidade – as passwords são as informações menos guardadas, representadas pela percentagem de 3,8%. Mais de 60% dos inquiridos recorre a diferentes passwords para as suas várias contas e 81,7% opta por memorizá-las enquanto 16,8% arrisca memorizá-las no dispositivo. No âmbito das medidas de salvaguarda da privacidade, com maior percentagem está a “rejeição ou o evitar ‘emprestar o telemóvel’” (57,2%); imediatamente a seguir “não guardar qualquer informação pessoal no telemóvel” (46,6%); depois a “utilização de códigos de segurança no telemóvel” (42,8%); “fazer logout” em todas as contas criadas (40,9%); “evitar ter conversas ao telemóvel na presença de terceiros” (35,1%). No workshop com alunos de Comunicação (WAC), 34 dos 44 participantes consideraram que a vida privada estava em risco, apenas um afirmou que “não” e os restantes explicaram que dependeria da sua atitude, da sua responsabilidade e vontade para decidir se seria determinante. A preocupação sobre o que poderia ser publicado por outras pessoas sem o seu consentimento também foi destacada, bem como a relação entre a perda de privacidade e os social media, e a consciência de que tudo o que é publicado deixa de ser privado. A questão da privacidade apareceu ao nível de conteúdo/dados e ao nível de contextos de interação (GF). Além disso, os riscos não eram tão evidentes porque eles continuaram a agir como se tivessem privacidade. A relutância em falar em público perto de pessoas desconhecidas (GF), para restringir a sociabilidade ou interromper conversas de telemóvel, e a estratégia para minimizar o risco de perturbação (modo de silêncio/ vibração) são também apontadas. Os utilizadores de telemóveis parecem ter comportamentos diferentes quando, entre estranhos, recebem ou fazem chamadas: ‘sentem-se a vontade’ quando recebem chamadas, mas ‘procuram afastar-se’ quando são eles a ligar. Entre os diversos locais/ocasiões considerados para avaliar o grau

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de incomodidade que demonstram ao receber chamadas telefónicas ou ao fazer outras utilizações do telemóvel, é possível criar dois grupos: (a) um grupo de locais/ocasiões onde causa (algum) incómodo e que engloba os ‘espaços religiosos’, o ‘horário das refeições’, as ‘salas de espera de hospitais e instituições’ e o ‘local de trabalho’; (b) um grupo de locais/ocasiões onde não causa (particular) incómodo e que engloba ‘os restaurantes, bares ou cafés, etc.’, os ‘eventos sociais’, o estar em casa ‘de outras pessoas’ ou com ‘um grupo de amigos’. Assinale-se que, para todos os locais/ocasiões, receber uma chamada telefónica é mais incomodativo do que qualquer outra utilização que se dê ao telemóvel (IE). O tema principal (análise temática) dentro do grupo de foco com adolescentes (GFA) foi Privacidade no Espaço Digital (Serrano Tellería, Branco, 2014). Devido à sua complexidade, este incluiu vários subtemas: Estratégias de Controlo de Privacidade – débeis –; Capacidade de Escolha do Ator; Negociação de Atores, em relação ao que é público e privado; Invasão de privacidade; Violação da Privacidade; Alienação do Controlo e Vigilância. A partir dos pontos de vista expressos pelos participantes, parece haver uma falsa sensação de controlo da sua privacidade. Eles enfatizaram o perigo das redes sociais, incluindo algumas situações graves que resultam em violação da privacidade, que dependem, em grande parte, das escolhas dos indivíduos. Isso permitiu-nos classificá-los como “digitais naïve”. A este respeito, eles mostraram uma falta de consciência de audiências invisíveis ou imaginárias, bem como das caraterísticas dos social media. 3.2. Gestão de contas e privacidade

Houve uma grande variedade de definições para “perfil” (WAC): “Conta; página pessoal; plataforma; imagem; retrato; espaço; local; uma descrição de si mesmo; uma caraterização de nós; uma identificação; um método; uma forma de sistematizar rapidamente informações básicas; onde eu exponho momentos e acontecimentos da minha vida”. A maioria das configurações de “perfis” foram apresentadas como voluntárias e sem riscos, e apenas uma resposta mostrou consciência dos propósitos comerciais. Os participantes incluíram os resultados das suas ações com o “perfil” como uma parte dele e não mencionaram especificamente a pegada digital. Cada utilizador tem entre 1 e 15 “perfis”, com uma média de 4 perfis. Apresenta-se uma grande variedade de horários, bem como as perceções sobre o tempo gasto na sua construção e manutenção: “curto”; “o tempo necessário”; a partir de 15 minutos até 3/4 de hora por dia.

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A perceção foi de que as publicações diárias não foram tidas em conta. Todos os alunos utilizaram uma fotografia real de si nos seus “perfis”, salientando a importância de permanecer visível e reconhecível para os seus amigos, a fim de conseguir uma interação adequada com eles. Dos inquiridos a nível nacional (IE), 55% não permite às aplicações aceder a listas de contactos ou informações; 57,7% não sincroniza dados com apps; 41,3% já o fizeram. Dos 44 alunos de comunicação, 26 sincronizam as suas contas (WAC). Mais da metade (60%) dos respondentes ao inquérito dados pessoais (ID) utilizam senhas diferentes para contas diferentes, enquanto 23,1% afirmaram não ter um conjunto diversificado de senhas, usando o mesmo para aceder às diversas contas. 51,9% já as mudaram e 48,1% não. 51,9% já alteraram as configurações de privacidade; 31,3% tinham configurações diferentes para diferentes partes; 13,5% nunca haviam alterado as configurações padrão; e 1,9% não sabia sobre sua existência. Quando inquiridos sobre diferentes níveis de configurações de privacidade para os diversos perfis das contas que foram criadas – porque e em qualquer um deles essas configurações são variadas –, 28 dos 44 alunos de comunicação responderam afirmativamente. Deve-se ressaltar que 12 referiram que o Facebook era visível apenas para os “amigos”. A tendência é para definirem diferentes níveis de acordo com as “contas-perfis” e suas funcionalidades e para equipararem o “ter privacidade” com o conteúdo que só os “amigos” podem ver e com o facto de poderem definir os próprios níveis de privacidade. Neste grupo de estudantes, 42 alteraram as configurações de privacidade e os 26 que mudaram o conteúdo fizeram-no na seguinte ordem: fotografias, outros conteúdos, localização e comentários – alterando o estado de “público” para o estado de visível apenas para os “amigos”. A maioria também mudou as regras de privacidade, revelando um conhecimento mínimo do mesmo, a fim de controlar quem teve acesso aos seus dados. O uso de códigos de acesso em telefones móveis foi citado por alguns, motivado em parte por curiosidade e em parte para iludir o controlo das mães. Em relação ao uso de códigos de acesso, embora cientes da sua importância (os participantes fizeram isso no passado), muitos confessaram que os ignoraram por causa do trabalho envolvido. No inquérito sobre dados pessoais, cerca de 40% leem “as políticas de privacidade (ID), termos e condições”, enquanto 58,7% não o fazem. Em geral, os alunos de comunicação (WAC) estão “cientes” de que assim que algo é publicado, é difícil apagá-lo para sempre. Uma parte está “consciente” de que, apesar das políticas de privacidade, os dados podem

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ser utilizados por outros. Estes “outros” poderiam ser “amigos de amigos” e não necessariamente os nossos amigos diretos, mas também hackers, “pessoas mal-intencionadas”, “terceiros” (por exemplo, de negócios) e o Facebook. Acerca dos termos e condições, 12 argumentaram que essas declarações eram muito longas e exigem muito tempo, 5 reconheceram “falta de paciência” e “preguiça”, e a maior parte dos restantes simplesmente não os verifica. Algumas situações, particularmente detetadas nos grupos de foco com adolescentes podem ser plausivelmente descritas como Alienação do Controlo, sobretudo no que diz respeito à leitura de políticas de privacidade antes de instalar uma nova aplicação. Todos os entrevistados admitiram não lê-los, simplesmente clicando para aceitar. Simultaneamente, houve a consciência de que esse comportamento pode acarretar riscos e resultar em manipulação. Segundo o IT, menos de um terço dos inquiridos lê as ‘permissões de aplicação; igual número (31%) refere fazê-lo ‘por vezes’ e 38% afirma nunca as ler. Cerca de 70% dos entrevistados permite a instalação de aplicações no telemóvel. Os que não deixam (31%) alegam, sobretudo, o não querer que tenham acesso aos seus contactos e não quererem ser localizados. Apenas 10% mostra disponibilidade para informar da sua localização, de forma a poder receber anúncios personalizados. A maioria (61%) não permite tal tipo de ação. A nível do tipo de informação que se guarda no telemóvel é possível criar três grupos de inquiridos no inquérito telefónico nacional: quase todos os entrevistados (+70%) têm ‘informações de contactos’, ‘fotografias e vídeos’, ‘mensagens de texto’ e ‘aplicações’. Entre 70% e 40% estão as mensagens de email’, as ‘notas/lembretes de voz’ e os ‘documentos em PDF, Word, etc.’ Com menos de um terço está: os ‘websites visitados’, a ‘informação sobre localização’, as ‘passwords’ e as ‘mensagens de voz’. De um modo geral, os conteúdos guardados no telemóvel não são considerados ‘muito privados’, com a maioria das respostas a “caírem” no nível do ‘privado’. As exceções são as ‘passwords’, essas sim consideradas ‘muito privadas’ e as aplicações avaliadas como ‘nada privadas’. Nos grupos de foco com adolescentes detetou-se um conceito de amizade muito amplo, incluindo todos os conhecidos – conclusões que apontam para adolescentes que percebem os social media como uma extensão das suas relações sociais (Boyd, 2014). Em termos de negociação entre o que é “público e privado”, a ideia que prevalece é que a disponibilidade de conteúdo se baseia num acordo entre as pessoas envolvidas e que há o cuidado de não ofender sensibilidades.

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3.3. Gestão dos media e privacidade

A quase totalidade dos alunos de comunicação (WCA) usa o telemóvel para tirar fotos. Os momentos selecionados foram a companhia de familiares, amigos, “momentos para recordar”, “datas importantes”, cultura, viagens. A nível nacional, segundo o IT, a ‘família’ e as ‘viagens/ férias’ são os temas mais fotografados/filmados com smartphones; mais de 85% dos inquiridos dizem fazê-lo. Com valores a rondar os 60%/70% estão as práticas de fotografar/filmar ‘situações inesperadas do quotidiano’, ‘eventos’, e ‘reuniões com amigos’. Abaixo dos 50% estão os ‘autorretratos’, as fotografias/filmagens de ‘trabalho’ e as de ‘estado de espírito’. Relativamente à captação de acontecimentos públicos (inquérito imagens: II): 33% declara os eventos culturais como um dos principais objetos de captação em vídeo; 10% declara o mesmo em relação a acontecimentos insólitos (respetivamente 20% e 5% para captação em fotografia). 56% já partilharam imagens de eventos culturais nas redes sociais; 24% fizeram-no com imagens de acontecimentos insólitos. Só 9% alguma vez captou imagens para enviar para publicações periódicas. Nos resultados do Inquérito sobre Imagens, 81% não fotografa pessoas desconhecidas em espaços públicos (só 2% declara fazê-lo sem qualquer tipo de precaução ou autorização); 77% declara que não o faria se encontrasse uma figura pública (mas só uma minoria baseia essa atitude numa avaliação de riscos para a privacidade); 30% identifica pessoas nas fotografias, quando são pessoas ‘próximas’ (família, amigos, colegas). Entre os adolescentes dos grupos de foco, a preocupação com a divulgação de fotos de si próprios tem que ver com situações e estética das imagens constrangedoras. A sua publicação em círculos abertos ou fechados é baseada no senso comum, sendo que a estratégia de não postar fotos e imagens é sugerida e lembrada pelos pais. A julgar pelo inquérito sobre imagens, os riscos percebidos em relação a fotos de si colocadas na rede tem que ver sobretudo com a eventualidade de revelarem situações íntimas, comprometedoras ou de visibilidade do corpo (preocupa 61%) e com a possibilidade de manipulação e descontextualização de imagens (63%). Pelo contrário, o reconhecimento em si não é motivo maioritário de preocupação (apenas preocupa 24%), bem como a identificação de companhias (27%) ou de hábitos (38%). O que preocupa é a eventualidade de perda de controlo sobre a ‘imagem’ (representação) que os indivíduos desejam construir de si próprios, no limite com eventuais situações de chantagem/bullying. A perda dos

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direitos sobre as imagens preocupa 47%, mas a grande maioria abdica de facto desse direito ao colocar imagens online. Pelo inquérito telefónico, é possível perceber a relação que existe entre o que se fotografa e com quem se partilha, que dá azo a dois grupos: um grupo mais “privado”, que engloba as fotografias/filmes com a ‘família’, ‘grupos de amigos’, ‘autorretratos’ e ‘férias/ viagens’ que são partilhados com quem se tem uma relação mais próxima; e um grupo mais “público”, com fotografias/filmes de ‘eventos’, ‘situações do quotidiano’, ‘trabalho’ e ‘estado de espírito’ que são partilhados com quem não é tão próximo: conhecidos, colegas de trabalho, círculos fechados, utilizadores em geral. Entre os respondentes ao inquérito sobre imagens existe uma perceção acerca da imagem que a associa a maiores riscos para a privacidade (48%), comparativamente com as informações textuais (2%). Algumas respostas não indicam que haja práticas de proteção correspondentes com a perceção desse risco: só 11% não utiliza fotos de si nos perfis das redes sociais; os que as utilizam apenas em contexto profissional são 7%; os que se abstêm de partilhar fotos nas redes sociais são 22%. As motivações para a partilha sugerem que o ímpeto para a interação se sobrepõe às preocupações com o risco. Se tentarmos sistematizar o que se passa por parte dos utilizadores a nível das estratégias de controlo de privacidade, deparamo-nos com um conjunto de estratégias fracas. A opção de descarregar uma aplicação depende do conhecimento de outras pessoas que já tinham feito. A importância do comportamento dos pares nesta fase do ciclo de vida também se reflete no comportamento assumido ao entrar para o mundo digital (Boyd, 2014). Dos respondentes ao inquérito sobre dados pessoais (ID) – que, recorde-se, são maioritariamente indivíduos com elevada escolaridade –, 92,3% registaram-se numa rede social com as seguintes distribuições de partilha de dados: 73,6% informações básicas; 13,9% informações de contacto; 43,8% interesses pessoais; 58,7% educação e formação; 36,1% trabalho/emprego e 34,6% viagens. Dois terços deste universo configuram a visibilidade do conjunto de dados e a partilha nos social media para que sejam visíveis apenas para os amigos, enquanto 15,4% têm diferentes dados visíveis para pessoas diferentes, 8,7% não têm certeza de quem podia ver os seus dados, e 8,2% permitem que todos vejam os seus dados. A maior parte dos alunos de comunicação (WAC) já sentiu que a informação partilhada não é segura, mas há um grupo para quem essa sensação depende de vários fatores. Existe uma gradação de consciência, estando os utilizadores cientes

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de alguns riscos, mas não parecem aprofundar as razões, nem mesmo tentarem conhecê-las. No workshop com estudantes da UBI, os verbos e substantivos utilizados por estes, bem como a sintaxe, são indicativos de normalização e de uma rotina adquiridos no processo de expor informação pessoal. No inquérito sobre dados, 65,9% nunca se arrependeram de divulgar dados pessoais; mas 15,4% já se arrependeram nos social media e 17,8% nas compras online. Sobre ferramentas de proteção de dados, 85,1% não utilizam e 13,9% respondem que sim. No tocante a invasão da privacidade, a maioria dos inquiridos sobre dados pessoais (ID) refere-se a fotos publicadas pelos pais e a imagens em que foram etiquetados. Quanto ao nível de preocupação com a falta de controlo sobre os dados, 31,3% declaram-se bastante preocupadas, 30,3% preocupadas, 28,2% um pouco preocupadas e 9,19% não preocupadas. Razões da preocupação: 54,8% acreditam que a própria estrutura dos social media dificulta o controlo sobre dados pessoais, 16,3% teve dificuldade durante a instalação e configuração da privacidade dos seus dados pessoais e 16,3% não tem tempo para configurar a privacidade dos seus dados pessoais. Acerca do tempo que as empresas devem poder armazenar dados, 66,3% disse que não os devem guardar de todo, 24% indicou o prazo de um ano e 18% acha que pode ser por tempo indeterminado (ID). No que diz respeito ao acesso aos dados por parte das agências de segurança, 54,3% concorda apenas se respeitada uma base legal, 38% é contra e 7,2% considera depender de caso para caso. 4. Experiências e perceções no uso do telemóvel: aspetos qualitativos Numa perspetiva qualitativa e temática, foi possível explorar um pouco mais a experiência dos próprios intervenientes através de grupos de foco e de entrevistas individuais. A maioria dos elementos do grupo de foco com adolescentes masculinos diz ter frequentemente o telemóvel em modo vibratório, facto com implicações na dinâmica familiar e na gestão daquilo que é considerado público e privado, inclusivamente dentro do espaço lar, com a família. A justificação do participante Zé1 remete para as estratégias de salvaguarda da privacidade: “Por exemplo, eu ‘tou com os meus pais na sala, eles não têm nada a ver se eu ando a receber mensagens ou chamadas ou assim. (…) Ou, então, (…) o meu quarto tem uma parede de separação do

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quarto dos meus pais. Por exemplo, se eu ‘tiver no meu quarto e a receber mensagens, eles não estão constantemente a ouvir aquele barulhinho do telemóvel quando recebo a mensagem.” Se antes a televisão era o ponto centrípeto do lar aconchegado pela reunião familiar em momentos de lazer – parafraseando Morley (1990) na sua reflexão sobre a análise de Maud Lavin, sendo esta domesticadora dos “espaços, hábitos e até emoções” (p. 28) –, o smartphone veio permitir a exteriorização dos assuntos internos/familiares (combinar horas para ir buscar à escola ou tratar de algum assunto dentro do núcleo mais chegado), modelando o espaço, o tempo e a forma como acontecem. Distancia-se, sim, pela criação de ilhas individuais de ação paralelas, por oposição à reunião dos indivíduos no mesmo espaço, ao mesmo tempo, direcionados para o mesmo conteúdo, daí os termos pluri-espacial, multi-conteúdos e fluidez temporal. Para as seniores MCR e MCB há uma exposição da privacidade por parte de quem fala alto ao telemóvel (mesmo que o conteúdo não seja relevante). Consideram ser um incómodo duplo: primeiro, por si, o risco de terceiros ouvirem a conversa (mais ou menos privada); e, depois, por estarem a ser incomodados, nomeadamente em transportes públicos (o barulho obriga a elevar a voz, comenta a adolescente D) ou em locais silenciosos. E, como tal, esses falantes estão em violação do espaço/bemestar das restantes pessoas. Ideia reiterada por MC, elemento do grupo de adolescentes femininas. Quando não é possível fazer nem atender chamadas, a sénior MOL responde que deixa o telemóvel em silêncio e não responde. 4.1. Uma perspetiva geracional da privacidade/vigilância como segurança

Para o grupo sénior, o acesso à sua privacidade é tido como forma de segurança/vigilância/auxílio. De acordo com SS, “isto é um objeto de segurança. Eu gosto de andar com ele porque em qualquer situação, a gente tem ali um meio de comunicação, um socorro”. Ideia de objeto de segurança e de companhia plasmada na seguinte expressão: “Eu acho que ele é uma companhia, é um meio de segurança, e que nos traz mais ou menos vigiados”. Dois exemplos de gerações diferentes: O sénior JF relata um incidente que acontecera no elevador. Havia deixado cair um objeto no elevador e ao tentar apanhá-lo, caiu. A exaustão impediu-o de se levantar, mas conseguiu chamar a empregada para ir em seu auxílio porque tinha o telemóvel consigo. A e D, adultas licenciadas, evidenciam a emergência/problema que possa ocorrer e o facto de se viver

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sozinho. Como tal, ter um telemóvel é uma forma de comunicação portátil, prática e rápida, assumindo a mobilidade e o estar sempre à mão (segurança e conforto) ao contrário de um telefone fixo (e das suas limitações). É claro pelos discursos que o smartphone veio proporcionar uma melhor coordenação entre a vida profissional e a pessoal (organizer), porém há outro lado: uma “suposta ininterrupta disponibilidade”. Estar sempre contactável levou a que as esferas do trabalho e da vida pessoal se misturassem, tendo por consequência episódios de stresse e desconforto, e invasão de espaços, nomeadamente da pressão ou controlo sobre o privado. (Com mails ou telefonemas em horários de descanso, por exemplo.) Se, por outro lado, se confrontar as chamadas e o SMS, este último pode sobrevir como forma de não incomodar os pais. A adolescente AG, do grupo misto, revela que os pais a censuravam por ela “passar horas a falar”. O SMS resolve não só o incómodo, como silencia a conversa e torna-a (mais) privada. Já quando não são atendidos telefonemas, que costumam ser regulares, por parte dos pais, poderão motivar alguma preocupação e, na sequência, surgir algum tipo de cobrança. 4.2. Reações à perda do telemóvel

Em relação à perda do dispositivo, as adolescentes femininas direcionam maior preocupação para a reprimenda dos pais do que propriamente para a perda de informação guardada no smartphone. Confiam nos códigos, no PIN, no bloqueio dos cartões, e no teor pouco relevante daquilo que possuem no aparelho. A. diz ter a aplicação de localização instalada no seu smartphone (iPhone) e no tablet. Para os seniores, a perda teria um impacto negativo, com reações de desconforto mais reativas por parte de uns do que de outros, dependendo da utilização que lhe é dada. Em perda estariam contactos, ficheiros, NIB, códigos das casas dos filhos. Com ou sem perda do aparelho, o não backup periódico da informação nele armazenada pode gerar “dissabores”, tal como já aconteceu com AS (adulto licenciado). “Eu acho que sem telemóvel nós nunca conseguimos ficar”, assume C, do grupo de adolescentes femininas. Esta não é uma expressão que explicitamente nos encaminhe diretamente para as definições de público e privado, e sobre formas de atuação, mas revela o espaço que o aparelho ocupa nas dimensões pública e privada, senão uma omnipresença, pelo menos uma necessidade irremediável da sua multifuncionalidade. Os elementos do grupo assentem relativamente à conclusão da moderadora

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DT: “Ou seja, o que vos preocupava mais se perdessem o telemóvel era aquilo a que vocês iriam deixar de ter acesso e não o facto de outra pessoa estranha poder ter acesso”. Da mesma forma se poderá entender o alheamento? Este não nos dá pistas diretas relativamente às dimensões acima mencionadas. Mas o alheamento poderá pressupor uma intenção de isolamento, de conversa privada inserida num contexto que poderia, em princípio, não o motivar, caso a pessoa se encontre em grupo. Ainda que haja quem mantenha ou tente manter conversas simultâneas, isto é, em co-presença e mais ou menos privadas por meio do telemóvel, o contacto visual estará dividido na medida daquilo que o acompanhamento e a compreensão de ambas as conversas o permitir. Este ponto é sensível aos seniores, o não contacto visual quando estão a falar com alguém que está ‘entretido’ com o dispositivo deixa-os desconfortáveis, incomodados, preteridos, considerando como falta de respeito. 4.3. Imagens: captura e publicação – intimidade vs publicitação

Quanto à captura de imagens no exterior e com celebridades, há duas posições. PP não sentiria constrangimento em fotografar sem consentimento, já C (ambos do grupo adultos licenciados) diz não se sentir confortável para fotografar alguém sem aval, pois o indivíduo ao permiti-lo “acho que tem mesmo a consciência de que isso vai parar de qualquer maneira às redes sociais (...) E se está a autorizar essa foto, provavelmente também está a autorizar que essa foto seja vista. Se ela autoriza isso é porque ela não acha mal ser vista tanto por 10 pessoas como por 1 000 ou por 10 000, até porque faz parte da profissão das pessoas que supostamente são reconhecidas. Agora, se essa pessoa... se eu tirar uma foto a uma pessoa sem ela ver – se ela vê até, mas não estou ao lado dela – não me iria sentir tão bem.” Gera-se a este respeito uma discussão entre A e AS relativamente à salvaguarda da vida privada e ao direito à imagem dos indivíduos (neste caso de figuras públicas) em espaço público. Algumas das adolescentes femininas afirmaram não fazer identificações e pedem autorização às pessoas se for o caso, conscientes de que as redes sociais têm uma forte caraterística de vulnerabilidade e de insegurança e, como tal, MC diz que as fotografias que captura são para “consumo privado, mesmo que não tenham nada de extraordinário”. Há um naipe variado de informação publicada, mas que dizem não exceder o que consideram ser o básico como o nome (algumas com nome completo, outras só o primeiro, outras há que recorrem a alcunhas; data de nascimento; alguns

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a escola que frequentam). Em reflexão esteve também a opção de não incluir familiares, nomeadamente os pais, nas redes de amigos, bem como situações de possível tensão, como por exemplo um jantar com a presença de alguns amigos apenas, disponibilizando assim imagens dentro do grupo reunido, evitando atritos. Os sítios que as adolescentes femininas costumam fotografar não têm propriamente grande relevância dentro do ato em si, não pensam muito sobre o cenário. Tratam-se sobretudo de sítios noutras localidades. Quando acontece nos locais mais rotineiros não os identificam, à exceção de situações em sala de aula, que, mesmo não identificadas, são reconhecíveis, o que já lhes causou alguma repreensão e alteração de comportamentos com pedidos de professores escritos como comentário às fotografias a pedir que as retirassem por precaução. No espaço lar, várias negam capturar dentro dessa esfera, enquanto C tira, mas apenas às pessoas. Sobre as imagens capturadas por telemóvel e guardadas no dispositivo móvel exploradas pelos media, o destaque vai para a selfie de Scarlett Johansson em nudez explícita. Um hacker violou o smartphone da atriz, copiou as suas fotografias, e tornou-as públicas. Perante o exposto, na mesa dos adolescentes masculinos, os pretextos (ou conclusões) de discussão resumiram-se a “‘pôr-se a jeito’; ‘ter consciência da pertinência e da quantidade de informação’; a relação entre a exposição, figuras públicas, selfies, o ser-se alvo de ataques de hackers, a autorresponsabilização”. Está em causa a utilização dada ao smartphone e os riscos que a ele estão associados, dado que o controlo sobre a fuga (ou a invasão) é um perigo real, sobretudo quando o mediatismo alimenta e torna apetecível esse tipo de ações. O participante Zé2 responsabiliza a atriz pelo ‘descuido’, enquanto Zé1 a iliba justificando-se no facto de o smartphone ser propriedade dela e poder fazer o que entender com o aparelho. O elemento estranho e a ação incorreta estariam na intrusão do hacker. No contexto local, os adolescentes, alunos da mesma escola, relatam um caso com alguma familiaridade: uma rapariga, aluna na mesma escola, tirou selfies expondo o seu corpo e enviou-as a um rapaz. Este, por sua vez, mostrou-as a outras pessoas e, assim, começaram a circular pela comunidade escolar. Confrontadas com estas situações, as adolescentes confirmaram fotografarem-se, mesmo em casa, mas asseguraram que “‘minimamente’ vestidas”, “‘sempre em condições’”. E, no lar, quando em frente ao espelho da casa de banho, restringindo-se ao rosto, com menor exposição possível do corpo – é o testemunho de MD.

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4.4. Do risco, ameaça, prevenção e ação à definição do que é público e privado

Às demais medidas juntam-se a utilização do modo vibratório, retirar o som, ausentar-se do grupo educadamente para atender uma chamada, não disponibilizar tanta informação nas redes sociais, evitar a exposição de rostos de crianças e hábitos/rotinas que permitam traçar um perfil e um quotidiano da criança, não permitir a localização dos sítios pelos quais se passa limitando a ação do GPS. Entre os adultos licenciados, a rejeição da identificação poderá ter como motivação o aspeto prático e justificável de se estar exposto ao núcleo laboral, por exemplo, e ser-se alvo de comentários, caso se encontrem numa figura que considerem ser inapropriada. Um dos casos curiosos de experiência com a utilização das redes, nomeadamente o Facebook, foi relatado por Zé2. O número de amigos contabilizava, à altura, 130, contrastando com o dos colegas, cujo intervalo distava entre os 300 e os 1 000 sensivelmente. Trata-se da sua terceira conta, na qual quis fazer uma seleção mais aprimorada assente naquilo que mais lhe interessa ou está disposto a ver acontecer no seu mural e que tenha interesse em acompanhar. Pretendeu desfazer-se do que nomeou como “praga do mural”, isto é, descartar o que ‘entupia’ o seu mural com aquilo que não pretendia ver como “barriga[s] de fora” ou “dar show”, uma vez que “as pessoas de quem eu sou amigo têm alguma coisa em comum comigo e alguma coisa pela qual eu me interesso”. A seleção de pessoas com quem se pretende partilhar informação/ conteúdos, e, antes disso, a reflexão/decisão sobre aquilo que se quer/deve publicar, e permitir ou não identificação – aspeto adjacente à capacidade de assunção de responsabilidades. Quanto à seleção, há duas formas a observar: o controlo da aceitação de pedidos de amizade e a restrição do círculo de pessoas que tem permissão para visualizar, passando, por exemplo, de amigos de amigos para amigos, questionar se querem ser fotografados ou não; e, numa fase posterior, se veem algum inconveniente na publicação/partilha da imagem em plataformas como as redes sociais. Verifica-se igual preocupação com os aparelhos e os locais a partir de onde acedem aos conteúdos que pretendem, dando o exemplo da desconfiança relativamente aos computadores da escola, os quais não permitem apagar o histórico. No espaço privado do lar, a adolescente AG admite utilizar código para bloquear o telemóvel como medida de salvaguarda perante a possível intenção da sua mãe em ir ver o telemóvel. Em debate sobre exposição, identidade, intimidade, privacidade, Zé1 observa que o perfil criado no Facebook não se trata de uma “representação fiel do utilizador, mas uma parte, um segmento de escolhas que podem

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ser mais ou menos representativas e mais ou menos fieis àquilo que a pessoa realmente é”. Este aspeto torna-se de especial relevância quando, no âmbito do resguardo da privacidade, a informação que é mostrada não é a real ou a totalmente real e, desta forma, não fornece tudo aquilo que poderia identificar imediatamente o indivíduo. O adolescente considera igualmente excessiva a descrição do “estado” por meio de expressões prédefinidas pelo sistema da plataforma, como por exemplo “a sentir-se feliz”, e a exposição daquilo que as pessoas estão a fazer, o que comem, ou a que horas fazem determinada atividade. Demasiado expositivo e dramatizável pode deduzir-se. Com maior ou menor intervenção direta, o público tem efeito no utilizador ou, dito de outra forma, o utilizador deixa-se influenciar pelo público o que afetará o tipo de conteúdos a publicar e a sua intencionalidade: considerarão a crítica, importância, valorização, necessidade de aceitação e, no seguimento desta, a necessidade de se mostrar/exibir/de dizer ‘estou aqui, vejam-me’. Este aspeto pode bifurcar-se pelo caminho do constrangimento ou o da exposição declarada. J do grupo de adultos licenciados define-a como “pressão” da sociedade. Quanto à informação disponibilizada em redes sociais, são confrontados o Facebook e o LinkedIn, o Facebook e o Twitter. No Facebook uma linguagem mais informal e descontraída para ‘adulterar’ ou ficcionar algumas informações como se tratassem de alter egos; no oposto, o LinkedIn apresenta-se quase em formato CV, com informação rigorosa e atualizada – dicotomia abordada no grupo de adultos licenciados. As adolescentes concentram-se no duo Facebook e Twitter, observando que o Facebook pede mais informações do que o segundo. Satisfazendo o Twitter com o nome de utilizador e uma frase, enquanto no Facebook até a família está ‘presente’. 4.5. Intromissão e controlo

As entrevistas individuais45 permitiram aceder a aspetos qualitativos adicionais ou confirmar certas tendências, nomeadamente a propensão dos utilizadores de smartphone para considerarem que a privacidade 45

Para esta análise foram consultadas as 14 entrevistas realizadas no projeto “Público e privado nas comunicações móveis” a três homens adultos não licenciados; duas mulheres adultas não licenciadas; dois homens e duas mulheres licenciadas; três adolescentes do sexo feminino e dois do sexo masculino.

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depende da habilidade de controlar o uso que se faz do equipamento. Os utilizadores entrevistados falam das potencialidades dos smartphones como meio de intromissão na vida privada, nomeadamente pela existência de algumas funcionalidades que podem captar situações privadas, como a localização. Porém, parecem convictos de que se tiverem controlo sobre algumas aplicações do smarphone podem salvaguardar-se. Só não deixam de referir que há um comprometimento da privacidade. M. – Lá está, isso depende da utilização que cada um faz do telemóvel. Agora, é verdade, há um par de anos atrás em que não existia nada destas inovações... Eu fui criado sem haver telemóvel e não foi por isso que deixei de ser menos feliz do que... se calhar fui mais do que quem é hoje em dia criança. Agora, pode ser complicado, pode ser uma intromissão na vida privada, mas isso vai depender sempre da utilização que cada um faz do telemóvel. (M., sexo masculino, 33 anos, Supervisor Call Center) J.S. – Podes descrever alguma situação em que tenhas sentido essa perda de privacidade? S.M. – (…) Vou-te dar um exemplo a nível profissional, que é o quê, a própria empresa pode ter uma aplicação associada ao smartphone que te deu para trabalhar, onde através do GPS desse mesmo equipamento permite saber onde é que tu estás, apesar de tu, sim senhor, autorizares essa localização, não é, está roubar-te um bocadinho a tua privacidade, porque tu por alguma razão poderás ter que te deslocar a outro local e querer que ninguém saiba, não é, mas eles sabem que tu estás ali, porque o teu smartphone tem essa aplicação, e eles sabem que tu estás... S.M. – É assim, a privacidade não é garantida, porquê?! Porque apesar de nós termos n aplicações… isto é, como é que eu hei-de exprimir isto, nós pensamos que temos a nossa privacidade garantida, mas o facto de estar a utilizar aplicações, de estarmos a utilizar suportes de outras empresas e de muitas pessoas, muitas vezes aquelas letrinhas pequeninas, não é, que são as condições de adesão, não é, muitas vezes pomos o aceite ou sim sem ler aquilo e estamos a abrir mão da nossa privacidade, agora podemos estar limitados no acesso à informação se quisermos ter a nossa privacidade, agora se não quisermos limite no acesso a essa informação é claro que... (S.M., sexo masculino, 33 anos, solteiro. 12.º ano, técnico especialista em telecomunicações) S.P. – E, por exemplo, aquela questão... O telemóvel, o smartphone, tem aquela funcionalidade da localização, isso é algo que a incomoda?

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A. – (fica a pensar) Eu teria de a ativar e não a tenho ativa... S.P. – Então tem esse cuidado... A. – Pronto, é assim, não me incomoda porque é uma coisa que eu controlo, se fosse algo que sem eu querer as outras pessoas pudessem saber onde é que eu estou, aí talvez me incomodasse, agora se é uma função que eu ativo e desativo conforme... que eu tenho controlo sobre ela, não me incomoda. (A.S., sexo feminino, 37 anos, licenciada e Mestre em química) 4.6. Gestão da privacidade em co-presença

O telemóvel/smartphone pode ser utilizado em qualquer lugar. Este dispositivo tem sido um meio de comunicação associado ao espaço público como um prolongamento do telefone fixo, ou seja, vai para lá da esfera doméstica. E esta extensão não é apenas de natureza técnica, é também percetível nos comportamentos dos utilizadores, frequentemente semelhantes aos que têm em privado. O telemóvel/smartphone é referido como meio privilegiado para se resolver alguns assuntos de caráter doméstico e até controlar/vigiar os filhos/as. Hoje em dia, falar ao telemóvel em público é um ato banal. Porém, algumas pessoas recorrem a estratégias de defesa da sua privacidade, como sendo sair de um sítio e procurar outro, também público, mas mais recatado, falar num tom de voz mais baixo e utilizar a mão para proteger a boca enquanto falam. Os entrevistados vão um pouco contra a ideia de que se tornou generalizada a exposição da vida privada através da conversação telefónica em público, pois apontam-nos situações em que põem em prática mecanismos de bastidores. J.L. – Não. É assim, pode acontecer, a nível profissional pode acontecer, estar ali no grupo e receber uma chamada e ver que ninguém tem que estar ali a ouvir. Em ambiente familiar penso que não, não me recordo. Mas, eventualmente, a nível profissional isso pode acontecer, ou seja, há determinada coisa numa conversa que as pessoas ali não têm que saber qual é o assunto e aí, sim, afasto-me para poder estar mais à vontade. (J.L., sexo masculino, 39 anos, 12.º ano, comercial) S.P. – E houve alguma situação recente, num local público, em que tu te afastaste de um grupo de amigos para usar o telemóvel? #00:20:37-0#

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S.M. – Não. Se necessitarmos de usar o telemóvel... a não ser que seja uma chamada privada que ninguém tenha de ouvir e seja necessário falar.... Por exemplo quando é com os meus pais, quando perguntam onde estou e assim, eu afasto-me ou não, é conforme... (S.M., sexo feminino, 16 anos, estudante) 4.7. Estratégias de defesa e controlo da audiência nas plataformas digitais

As entrevistas revelam-nos experiências pessoais do uso de dispositivos móveis, mas quase todos os entrevistados tendem a generalizar, reportando-se à dependência que as pessoas têm das tecnologias de informação, nomeadamente das redes sociais e de dados. Os utilizadores têm a sensação de que o mundo está nas suas mãos, com o acesso fácil à internet. No entanto, há consciência dos riscos de perda da privacidade. Existem perigos e utilizações incorretas da internet, mas os entrevistados sabem que depende muito do uso de cada um, do que se guarda nos equipamentos móveis e do que se partilha na internet, nomeadamente nas redes sociais. Desta forma, as pessoas entrevistadas apresentam-nos as suas estratégias de salvaguarda da privacidade. Confidenciam-nos o que partilham e como tentam controlar quem tem acesso a essa informação. Podemos, assim, concluir que havendo conhecimento das ferramentas disponibilizadas nos próprios aparelhos e nas redes sociais, como as definições de privacidade, pode-se garantir alguma confiança aos utilizadores. Os entrevistados recorrem a uma variedade de estratégias: partilhar só para alguns círculos de amigos ou familiares; filtrar algumas publicações quando não querem que toda a gente veja, nomeadamente alguns menores; pedir notificações antes de aceitar uma identificação em foto; colocar apenas as fotos em que acham estar menos expostos – rejeição às fotos em roupa de banho; não partilhar na rede a morada e outros dados mais pessoais. Há também muito cuidado com a exposição dos outros, dos amigos e conhecidos, evitando partilhar fotos dos mesmos sem autorização. Também há cuidado na partilha de conteúdos quando se trata dos filhos ou situações familiares. O entrevistado J.L., vendedor de uma operadora comercial de telecomunicações, diz-nos que aconselha os filhos, com 11 e 16 anos, ambos com conta no Facebook. J.L. – É assim, tenho algum cuidado nas publicações com os meus filhos, não publico muito, mas publico. Se concordo ou não, talvez não, mas

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acabo por fazê-lo, mas não vejo... Depende, isto cada caso é um caso, cada situação é uma situação... A publicação depende... nós estamos a publicar com um sentido, as pessoas podem ver com outro sentido, isto é tudo muito relativo, mas tenho muito cuidado nesse tipo de publicações. (…) Eu costumo dizer que devem só partilhar o essencial. Mas primeiro de tudo é ter amizade só dos que são mesmo amigos, ou seja... As redes sociais têm esse “senão”, há muita gente que tem quatro mil amigos, oh pá, acho uma coisa muito estranha. Se calhar, desses, 3500 são amigos do Facebook e não os conhecem de lado nenhum, e eu acho que isso não faz sentido. Isso são coisas que eu vou dizendo aos meus filhos, que possam aceitar sim, mas amigos, publicações até um determinado patamar... eu vejo noutros perfis miúdas muito novas em poses, etc., determinadas coisas que eu não concordo...

No entanto, há coisas que não mostram pudor em publicar como as notícias ou as músicas que ouvem. Também a entrevistada A.S., investigadora de química, assume não ter problemas em partilhar fotos dos filhos em calções de banho num grupo só de familiares ou amigos chegados, embora clarifique que fotos suas, com pouca roupa, jamais partilharia. Um outro entrevistado refere-se à partilha de conteúdos nas redes sociais, dizendo que partilha algumas fotografias. Confessa-nos que não entende as pessoas que estão constantemente a partilhar tudo o que fazem nas redes sociais, e complementa dizendo que não faz isso. O entrevistador confronta-o com a questão: E porque é que não o fazes? A sua resposta é: M. – Não o faço porque acho que há uma esfera privada que tem de se manter independentemente de termos um smartphone, ou não. É importante, às vezes, partilhar e mostrar algumas coisas que fazemos mas também há aqui uma linha ténue que separa o que é privado e o que não é… J.S. – Já agora, o que é que define essa linha ténue? M. – Isso já depende do bom senso de cada um, mas é uma linha que é muito difícil de definir, o que é da esfera privada e o que é da esfera pública. Há certas e determinadas coisas que eu faço que não vou partilhar nas redes sociais, nem em qualquer outro meio que seja, e já vi pessoas a partilhar essas mesmas determinadas situações em redes sociais. (M., sexo masculino, 33 anos, solteiro, Supervisor Call Center)

No conjunto de entrevistados sucedem-se as variantes através das quais se modula a ações de partilha e exposição, tendo simultaneamente em conta o conteúdo do que se publica e o âmbito da audiência que é suposto ter-lhe acesso.

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S.M. – É assim, vou partilhando alguma informação... No facebook é mais em grupos restritos, lá está, porque pronto só quero partilhar a minha informação com determinados elementos, não é, e faço-o em grupos restritos, faço-o com alguma assiduidade, não é, e já o fiz também através do smartphone, não é, em que, lá está, como é com a conta sincronizada muitas vezes há determinados comentários... e o facto de termos o fácil acesso a esses comentários respondemos logo, não é, partilhamos logo alguma informação nessa rede social. (S.M., sexo masculino, 33 anos, 12.º ano, técnico de telecomunicações) F. C. – (…) Uso muito essa… fotografias ou mesmo conteúdos que eu vejo, links de sites por exemplo, são coisas que eu também costumo partilhar. Pode não ser de forma pública, mas posso partilhar através do chat por exemplo, mas normalmente sempre que partilho alguma coisa nunca é para a esfera pública. Ou seja, é uma esfera semi-pessoal, para alguns amigos, e mesmo o meu próprio Facebook eu tenho-o quase blindado a só pessoas que eu conheço. Não sou daquelas pessoas que têm 3000 e tal amigos, mas não conhecem metade delas. As pessoas que tenho adicionadas no Facebook conheço e partilho esse conteúdo com essas pessoas. (F. C., sexo masculino, 27 anos, mestrado) A. – (…) Músicas vão para o público, mas também é assim, público para mim é um grupo restrito, porque eu não adiciono... as pessoas que adiciono são um grupo restrito, e depois dentro desse grupo restrito ainda tenho um grupo mais restrito que é para as fotos, que eu acho que ninguém tem de andar a ver o que é que se passa, pronto... E, basicamente, o que eu publico é isso, música e fotos... Não sei se respondi à pergunta... (A.S., sexo feminino, 37 anos, mestrado) 4.8. Invasão/violação da privacidade

Nem sempre a gestão dos conteúdos guardados ou partilhados está nas mãos dos utilizadores dos dispositivos móveis e da internet. Os servidores também fornecem serviços de controlo de conteúdos, que vão armazenando nas suas bases de dados. Essas indicações costumam estar explicitadas nas políticas de privacidade, mas muitos dos entrevistados assumem não as ler. Esse armazenamento de dados ou, em última

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instância, o cruzamento de dados pessoais com outros, quando falamos da publicidade que nos é dirigida, pode comprometer a privacidade dos indivíduos, na medida em que não existe grande transparência no que diz respeito às políticas de armazenamento e divulgação a terceiros dos dados armazenados nas redes sociais ou contas de email. Alguns dos entrevistados têm essa consciência e acham que estes procedimentos são uma invasão/ violação da sua vida privada, outros acham que em alguns casos pode ter utilidade e até consideram que deva existir essa vigilância por parte das entidades, nomeadamente quando há suspeitas de algum crime, ou seja, conferem-lhes importância para resolver casos (i)legais, por exemplo. S.M. – (…) Eu tenho a minha conta sincronizada com o gmail, mas eu não faço a mínima ideia quem é que a esta hora pode estar a olhar para os contactos que eu tenho, possa estar a olhar para as mensagens que eu mandei, não faço a mínima ideia, não é, mas tenho a noção disso, mas também sei que essas pessoas não vão tirar partido dessa informação, porque há leis que nos ajudam a proteger, apesar de muitas vezes elas saírem por fora, mas pronto... (S.M., sexo masculino, 33 anos, 12.º ano, técnico especialista em telecomunicações) F.S. – Em certas pesquisas, ou mensagens, é um pouco invasão de privacidade, mas outro lado também sabemos que há certos acontecimentos em que é a partir daí que se resolvem casos de homicídios, ou... Então, nesses casos acho que também... acaba por ser uma invasão de privacidade, mas é a partir daí que também se consegue resolver certos casos, até de ameaças também, que às vezes há ameaças por telemóvel, que mando mensagens anónimas, já me aconteceu... (F.S., sexo masculino, 16 anos, estudante) A.P. – Sim, deve haver vigilância. Mas acho que é impossível, porque qualquer pessoa que tem acesso ao facebook e aos dados da pessoa muito facilmente… Acho que até mesmo o próprio facebook faz com que a gente... de vez em quando manda aquelas perguntas para a gente atualizar o perfil, e quem atualiza, quem faz, que acaba tudo por fazer, não sabe se é mesmo do facebook, se é alguém por fora… E uma pessoa não sabe com quem é que está a falar, é mesmo assim... Acho que não deviam guardar, acho que não... (A.P., sexo feminino, 42 anos, 9º ano, empregada de limpeza)

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5. Conversas e encontros: aproximações etnográficas 5.1. Conversação telefónica privada: sem filtro ou com filtro

Outra fonte de material empírico que contribui para iluminar as nuances da negociação entre público e privado no dia-a-dia foi a recolha etnográfica, tanto presencial como digital. Na observação realizada no centro comercial da Covilhã estivemos atentos às conversações telefónicas, e foi possível identificar, num espaço público como o salão de restauração, o desenrolar de assuntos que se centraram na esfera doméstica/privada. Algumas chamadas, sobretudo realizadas ou atendidas por mulheres, incidiam na organização e estruturação de questões práticas do quotidiano familiar, como combinar atividades com filhos e pais ou manifestar preocupações com algum membro da família, normalmente filhos – por exemplo, questionar ao telemóvel se alguém do outro lado já almoçou ou jantou, ou simplesmente dar conta do horário de regresso a casa. As conversas tenderam a ser de curta ou média duração, por regra não para além dos cinco minutos. Mas também assistimos a conversas telefónicas mais longas e sobre aspetos da vida privada/pessoal, normalmente no campo das relações familiares e amorosas. Estas conversas sem recurso ao que Goffman chamou “bastidores” tendem a ser realizadas por pessoas na casa dos 30-40 anos. Naquele contexto, são estas pessoas que parecem menos preocupadas com a salvaguarda da sua privacidade, na medida em que tendem a ter conversas em público como se estivem em sua casa. No entanto, apercebemo-nos de que a exposição da vida privada através da conversação telefónica em público não é um ato assim tão recorrente ou generalizado. Aparentemente, ninguém se inibe de falar ao telemóvel, mas muitas vezes recorre-se a estratégias de salvaguarda da privacidade. Registámos situações que, comparativamente com as de exposição, eram mais frequentes: em que os atores punham em prática mecanismos de defesa da sua privacidade, o recurso a vários tipos de bastidores, como a retirada para zonas mais recatadas, o uso de um volume de voz que torna as falas quase incompreensíveis para a audiência, as estratégias corporais (como colocar a mão à frente da boca para ninguém perceber o que é dito). Também constatámos que, naquele contexto, parecem ser os mais jovens quem tende a usar estas estratégias com mais frequência, por norma são eles que privilegiam um tom de voz mais baixo. Há uma adoção simultânea de várias estratégias em pessoas muito jovens, sobretudo do sexo feminino

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na casa dos 20 anos. São os mais novos que mais tentam proteger as suas conversas em público. 5.2. Manuseamento de smartphones em público

Quando nos centramos na observação do manuseamento, reparamos que os utilizadores de smartphones se abstraem do que é físico e material, concentrando-se no seu mundo virtual, muitas vezes privado/pessoal – navegam na internet, trocam SMS, provavelmente com alguém das suas relações mais próximas. No manuseamento, identificámos uma variedade de situações: há atores que estão sozinhos e recorrem ao smartphone para marcar o seu espaço privado; há os que estão em grupos pequenos (2 ou 3 elementos) e fazem um manuseamento ativo do seu aparelho, muitas vezes comunicando pouco com o grupo e sendo o contacto visual escasso; há os que estão em grupos de maior dimensão (normalmente são mais jovens) e encaram o aparelho como meio de interação, chegando a existir partilha de conteúdos ou conversas em torno do que estão a fazer ou a ver no aparelho – uso quase coletivo do dispositivo. Para reforçar esta ideia de que, em alguns casos, existe partilha de conteúdo e conversas durante o uso do smartphone, vamos narrar uma situação observada no shopping: Duas raparigas entre os 15-20 anos, estão na restauração do shopping a jantar em frente à Pans. Durante a refeição, cerca de 20 minutos, jantam e manuseiam os seus aparelhos. Uma delas parece estar no chat do facebook, porque revela estar a falar com uma tal Mónica no facebook. A outra, também no facebook, vai falando de comentários/estados de espírito que alguém postou. Nalguns momentos, não raros, viram o telemóvel uma para a outra e mostram o que estão a fazer ou a escrever, e riem alto. [Diário de campo]

Estritamente com o método de observação, é porém difícil saber se o uso do smartphone é efetuado para estabelecer contactos no campo das relações pessoais ou para falar e tratar de assuntos privados, mas parece haver uma maior despreocupação no que respeita a estratégias de salvaguarda da privacidade, comparando com o uso do aparelho para conversação telefónica.

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Um casal com um bebé está a jantar na restauração. Têm sacos de supermercado em cima da mesa. O pai passa a refeição toda a mexer no telemóvel. Não se consegue ver o que está a fazer, mas falam de uma conta bancária. O pai parece estar a aceder à sua conta do banco, e vai partilhando ideias com a esposa, chegando inclusive a virar para ela o ecrã do seu smartphone. [Diário de campo]

Estamos perante um uso estritamente privado do equipamento no espaço público, mas o smartphone, com as suas funcionalidades e aplicações proporciona isso mesmo, tratar de assuntos pessoais em qualquer espaço e tempo. Mas, acima de tudo, o manuseamento de smartphones em público parece apresentar-se como estratégia de delimitação de um espaço ou de um tempo mais privado. É um tipo de uso recorrente nos mais jovens, entre os 15-35 anos. 5.3. Estratégias de privacidade no grupo das boleias

Outra fonte de material empírico foi proveniente da etnografia digital com um grupo que observámos no Facebook (grupo para organização de boleias) e que também frequentámos offline, participando nas viagens combinadas digitalmente.46 O grupo é composto, essencialmente, por estudantes universitários na Beira Interior, tem 5 939 membros (o maior contingente é de estudantes de medicina) e é público, ou seja, qualquer pessoa pode publicar ofertas e pedidos de boleia com origem ou destino na Covilhã. A adesão ao grupo é feita mediante pedido que tem de ser aceite pelos administradores, embora a página seja pública, esta é uma forma de receber todas as notificações e poder publicar e comentar na página. Existem dois administradores, uma estudante e um estudante de medicina, tendo sido este a criar o grupo. A configuração dos grupos pode ser fechada ou pública e, por norma, tem a supervisão dos administradores, já que, em alguns casos, apenas os membros têm acesso às publicações feitas no grupo. Por si só, isto já pode ser considerado uma estratégia de salvaguarda da privacidade do grupo, pois permite controlar os seus elementos e as informações que são partilhadas.

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Observação realizada ao grupo das boleias. Consultadas as grelhas de observação da viagem e os outputs das publicações efetuadas no grupo pelos seus aderentes, na maioria estudantes universitários.

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Toda a gente pode ver o que é publicado, mesmo não fazendo parte do grupo, mas não pode intervir publicando ou comentando se não fizer parte dele. Quem faz parte do grupo recebe as notificações na sua página de perfil pessoal, mas pode alterar essa opção e bloquear as notificações. Através do trabalho de observação ao grupo das boleias (virtual) e às viagens realizadas, depois de agendadas a partir do grupo (real), constatámos que existem duas estratégias de salvaguarda da privacidade que são recorrentes: A primeira é privilegiar a combinação das viagens por mensagem privada. Há quem depois de publicitar a sua oferta ou pedido de boleia, peça para os interessados comunicarem por mensagem privada. A segunda é não divulgar os números de telemóvel no grupo. Há tendência para combinar tudo por mensagem privada ou revelar o número somente por essa via, de forma a facilitar o contacto no dia da viagem, embora algumas pessoas não se importem com isso e divulguem os seus contactos pessoais no grupo. No entanto, são mais os casos dos que não o fazem – nos outputs da página do grupo podemos confirmar a existência de um caso em que há partilha de número de telemóvel e outros (maioria) em que se partilha somente por mensagem privada. Por outro lado, também verificámos que alguns membros do grupo não têm qualquer pudor em falar através de comentários no grupo. Recolhemos alguns casos em que as pessoas falam entre si e até trocam alguns comentários em “tom” de brincadeira, sem se preocuparem com o facto de outros membros estarem a ler (podemos ver isso nos outputs recolhidos da página do Facebook). Porém, isso é feito entre aderentes que se conhecem pessoalmente. No relato das viagens, apercebemo-nos de que a publicação de ofertas e pedidos é feita em último recurso, primeiro abordam-se por telemóvel os contactos mais próximos. Verificamos que algumas pessoas, depois de contactarem com outras através do grupo, tornam-se amigas no Facebook, mas outras não. É nas viagens que as pessoas se conhecem e partilham algumas questões mais pessoais, como os seus objetivos para o futuro, o que fizeram no fim-de-semana, algumas histórias divertidas dos próprios ou de pessoas conhecidas. Quando são pessoas são do mesmo curso falam de temas escolares, acabando por conversar mais entre si e colocando à margem os restantes ocupantes da viatura. Também nos apercebemos de que só são estabelecidas relações mais próximas ou de contacto permanente entre pessoas com caraterísticas semelhantes: idade e curso. Os restantes apenas se cumprimentam em situações pontuais, quando se cruzam em espaços físicos da Covilhã.

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Conclusões Os utilizadores reconhecem alguns dos riscos existentes e potenciais de navegação na web, mas deteta-se um desfasamento entre as suas noções e as suas ações finais. Uma parte importante dos utilizadores permite que as suas informações pessoais sejam usadas para aceder a diferentes tipos de serviços gratuitamente, ainda que reconheçam as informações que partilharam como pessoais. Muitos utilizadores também declaram preocupação com os termos e condições de privacidade, bem como com as políticas de dados de aplicações, que são difíceis de entender corretamente; mas, ao mesmo tempo, admitem não as ler. Uma quantidade significativa de utilizadores aceita a instalação de uma aplicação, em primeiro lugar porque outros dos seus círculos sociais o fizeram antes e, em segundo lugar, porque confiam nas empresas ou simplesmente não leem os termos. Em geral, os utilizadores partilham igualmente de alguma preocupação sobre quem tem acesso aos conteúdos e sobre a falta de controlo relacionada com isso. Mas muitos mostram-se inconscientes sobre a possibilidade de se confrontarem com as audiências invisíveis e com a possibilidade da (má) interpretação da sua pegada digital por terceiros (conhecidos e desconhecidos) ou por eles mesmos. O inquérito sobre privacidade e dados pessoais sugere que os utilizadores portugueses mais escolarizados têm consciência da informação que disponibilizam e do alcance que ela pode assumir, assumindo três quartos deste universo apenas a partilha de “informação básica”. Existe também uma preocupação acentuada com o dispositivo físico no sentido do não empréstimo do telemóvel e em ter alguma precaução com a informação pessoal, não a guardando no telemóvel. Em contrapartida, há um descuido no que diz respeito à leitura atenta das políticas de privacidade. As redes sociais, muito acedidas através do smartphone (como comprovámos nas entrevistas e nas observações realizadas), vieram permitir o relacionamento e interação entre pessoas e grupos que, em alguns casos, nem se conheciam pessoalmente. Aqui, a tensão entre o público e privado manifesta-se, por exemplo, no caso do grupo das boleias, quando uma pessoa está a oferecer ou a pedir boleia e se baseia na atitude online dos indivíduos ou na aparência das fotos que se publica; ou quando um grupo do Facebook exige aos aderentes determinadas caraterísticas e comportamentos online, barrando outros que consideram mais evasivos ou desviantes do propósito do grupo. Há algum cuidado nos contactos que se estabelecem no grupo das boleias, privilegiando-se agendar viagem com grupos conhecidos, ou com quem se tenha amigos em comum.

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Uma questão recorrentemente abordada pelos entrevistados diz respeito aos perfis poderem ser vistos por diferentes pessoas e poderem existir múltiplas interpretações do que é mostrado no mundo virtual. Nesse sentido, o cuidado mais evidenciado nas entrevistas é a não partilha de conteúdos para o público em geral, mas apenas para o grupo de amigos. O grande desafio parece-nos ser a apresentação de um perfil que seja aceite pelos diferentes grupos e pessoas que o utilizador tem como amigos na rede social, não colocando nada que possa ferir suscetibilidades, como apontam alguns entrevistados. Nas entrevistas e nas observações realizadas também é possível concluir que o telemóvel é um meio cada vez mais utilizado para agilizar processos de cariz familiar ou profissional. O smartphone passou, aliás, a ser utilizado como meio de conciliação da vida pessoal e da vida profissional.   Mas, apesar de os participantes nas entrevistas e grupos de foco afirmarem que o telemóvel se tornou imprescindível, como ferramenta e como acessório do dia-a-dia, os utilizadores afirmam não dispensar a conversa «cara-a-cara”. Na captura de imagens, o telemóvel revelou ser um intermediário. É no computador que a imagem é sobretudo trabalhada. Quando tal acontece no próprio dispositivo móvel, parece haver uma ponderação prévia acerca da publicação ou não. Referências bibliográficas Aguado, J. M; Feijóo, C; Martínez, I. J. (cords.) (2013). La comunicación móvil. Hacia un Nuevo ecosistema digital. Barcelona: Gedisa. Bauman Z. (2005). Liquid Life. Cambridge: Polity. Besmer, A. e Lipford, H. R. (2010). Moving Beyond Untagging: Photo Privacy in a Tagged World. Atlanta, USA: University of North Carolina at Charlotte. Boyd, D. (2014). It’s Complicated. The Social Lifes of Networked Teens. Yale New Haven and London: University Press. Braun, V. e Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3, 77-101. Campbell, S. W. (2015). Mobile communication and network privatism: A literature review of the implications for diverse, weak, and new ties. Review of Communication Research, 3(1), 1-21. Fidalgo, A; Serrano Tellería, A; Carvalheiro, J. R; Canavilhas, J; Correia, J. C. (2013) O ser humano como portal de comunicação: A construção do perfil no telemóvel. Revista Latina de Comunicación Social, 68. URL [http:// www.revistalatinacs.org/068/paper/989_Covilha/23_Telleriapo.html].

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CAPÍTULO 7

UMA EXPLORAÇÃO À OPINIÃO NA TWITTOSFERA: ENTRE A DISCUSSÃO POLÍTICA E A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO Antónia do Carmo Barriga

Introdução A crescente utilização das redes sociais por aqueles que se interessam pelas questões públicas e pelo debate político, potenciado também pelo aumento da utilização dos dispositivos móveis, pode levantar diversas questões, mas é apenas em torno de duas delas que este texto se situa. Por um lado, a que questiona se estamos perante o reforço da participação dos mesmos atores, já omnipresentes nos media tradicionais ou, inversamente, se há aspetos verdadeiramente novos – questão iminentemente relacionada com as inquietações recorrentes da democraticidade do espaço público e do pluralismo e diversidade nos media. Por outro, perceber de que modo a utilização que este subcampo faz deste novo media se insere na tendência de privatização do público, aqui considerada não só como o “regresso da casa como espaço político”, (Papacharissi, 2010) mas sobretudo enquanto participação pública que evade o território do político e entra por aspetos do quotidiano, de natureza mundana, com maior ou menor exposição do privado. Inevitavelmente, ambas as questões enunciadas remetem para a dicotomia público/ privado, a qual é indestrinçável das várias formulações teóricas de esfera pública, arquitetadas a partir da formulação clássica por Arendt (1958) e Habermas (1961). Como sabemos, sendo as conceções desta dicotomia determinadas pelo contexto histórico, político e social, é clássica a dificuldade em traçar a fronteira e a indistinção entre as noções. Os comportamentos nas redes sociais parecem tornar ainda mais evidente esta dificuldade.

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Mas concomitantemente é também a reconfiguração do conceito de poder e do lugar onde ele está que se tornou imprescindível considerar. A atual sociedade em rede, há muito designada sociedade informática (Shaff,1995), numa perspetiva “apocalíptica” trata-se de uma sociedade de controlo, herdeira e substituta da sociedade disciplinar foucaultiana. Neste sentido, Deleuze teria sido premonitório ao alertar para as consequências do uso das novas tecnologias no controlo social e ao entendê-las como a mais nova expressão do exercício do poder na sociedade moderna. O símbolo do controlo deixa de ser o panóptico e é substituído pela Internet: de microfísico, o poder passa a envolver todo o corpo social, recorrendo a tecnologia que funciona a partir da sedução: a sedução do controlo opõe-se à coerção das sociedades disciplinares (Deleuze, 1992). Com efeito, os artefactos tecnológicos levaram o “controlo” e a “vigilância” para dentro de casa e os atuais dispositivos móveis trouxeram a possibilidade ou o risco de os levar para todo o lado. A “vigilância” para além de política e social (ao serviço de Estados, organizações que detêm grandes quantidades de dados, ou motores de busca, entre outros) passou também a ser “inter-relacional” – a que se pode exercer sobre nós mas também a que podemos exercer sobre outros (próximos ou distantes, familiares ou desconhecidos).47 Diríamos que este último aspeto, e no contexto da utilização das redes sociais, antes se aproxima de uma espécie de voyeurismo que a “arquitectura” de redes como o Facebook ou o Twitter tendem a promover. Contudo, a existência desta “reciprocidade” – ver e ser visto – só aparentemente escamoteia as desigualdades existentes, a vários níveis. Mesmo admitindo a massificação do acesso (o que ainda não acontece), a presença na rede e o valor simbólico dos discursos que aí se produzem serão sempre desiguais. Também a este propósito Bourdieu (1989) continua atual: quando alguém fala, fá-lo de algum lugar, com uma certa autoridade. Entre outras, esta é uma razão para considerarmos pertinentes as três dimensões constitutivas da esfera pública conceptualizadas por Dahlgreen (2005)48, enquanto ponto de partida analítico para examinar a esfera pública de qualquer sociedade ou analisar o contributo das tecnologias de comunicação (2005:150). 47

Contrariamente para alguns autores, de que é exemplo Papacharissi (2010), o uso das tecnologias convergentes ao permitirem maiores oportunidades de interação, autoexpressão, escolhas e controlo, podem mesmo ampliar a independência do indivíduo, fazendo do cidadão do século XXI um cidadão mais autónomo. 48 As três dimensões constitutivas são: estruturas, representação e interação (Dahlgreen, 2005).

UMA EXPLORAÇÃO À OPINIÃO NA TWITTOSFERA

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Como veremos, é vasta a literatura que discute o papel da Internet na esfera pública e proliferam as perspetivas situadas entre o “encantamento” e a “descrença” ou, como refere Correia (2014:80), marcadas pela divisão teórica entre “euforia cibernética” e “distopia digital”. Neste texto pretende-se fazer a apologia de uma perspetiva moderada, dado que nos parece tão errado entender as redes sociais como a nova esfera pública universal, o prometido admirável café novo quanto ignorar as suas potencialidades para a participação política; vê-las como uma irremediável ameaça às liberdades individuais quanto aceitá-las acriticamente. Ainda que correlacionadas com estes debates, as duas questões acima enunciadas são, contudo, mais delimitadas: pretendem analisar um tipo específico de conversação que ocorre num meio igualmente específico. Assim, enquanto objeto de análise empírica, e de um trabalho que é apenas exploratório, optou-se pela rede social e pelo “grupo socioprofissional” aparentemente mais improváveis: o Twitter (caracterizado pela brevidade das suas mensagens) e os atores do espaço público que protagonizam a opinião publicada49 (expectáveis agentes do uso público da razão, em termos habermasianos, mas também da racionalidade argumentativa, partindo do principio que a sua vontade também é persuadir). 1. A “publicitação da opinião”: um subcampo dos media em reconfiguração É possível definir “opinião” de vários modos, utilizando vários critérios, tal é a imprecisão dessa noção. Aceitemos a de Philippe Breton, para quem ela é o “conjunto das crenças, dos valores, das representações do mundo e da confiança noutros que um indivíduo forma para ser ele próprio” (1998: 24). Neste sentido, a “opinião” é entendida como fazendo parte de um processo de construção da identidade social, mas também enquanto realidade mutável, nunca definitiva, resultante da avaliação e do confronto com outras opiniões. Estruturada com maior ou menor coerência, argumentando o discutível, discutindo o incerto, ela pertence ao campo do verosímil e ao domínio da subjetividade. Opinar é sempre 49

Opta-se pela designação abrangente de “opinião publicada” para nos referirmos a toda a opinião tornada pública. Neste âmbito, Independentemente do media onde é veiculada e não obstante as diferenças entre os géneros, inclui-se nesta designação a opinião frequentemente apelidada de “comentário político, a “análise política”, coluna de opinião, etc. Mas também alguns “post” e “tweets”.

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mobilizar um argumento, entendido enquanto “molde ou forma de argumentação e não como o conjunto da mensagem”, é propor razões para o outro ser convencido a partilhar de uma opinião (Breton, 1998: 45). A formulação clássica de “opinião” de Gabriel Tarde (Tarde, 1986:82) revela-se ainda profícua, na medida em que nos remete para uma conceção da opinião que sublinha o seu carácter e a sua génese social (ao invés de a conceber como um produto eminentemente pessoal), distinta da tradição, da conversação, da razão. Não é possível abordar a “opinião” desconsiderando a “persuasão”50, entendendo-a também como móbil e fim da maioria dos discursos. Evidentemente, a linguagem e a razoabilidade dos argumentos de quem a utiliza, per si, não são as únicas ferramentas de persuasão. Em nosso entender as perspetivas analíticas e os domínios teóricos mais relevantes que se debruçam sobre a questão da persuasão (particularmente a nova retórica) não valorizaram suficientemente a importância das variáveis e contextos de natureza e ordem mais social que linguística, mais sociológica do que argumentativa, mais mediática que racional (Barriga, 2010). Pelo que será sempre de sublinhar a importância da pragmática sociológica que territorializa a linguagem, que indaga sobre o que funda a legitimidade ou a validade das ações comunicativas e intercompreensiva, sobre a legitimidade de quem fala. Esta pragmática sociológica assenta, pois, não numa racionalidade argumentativa mas numa racionalidade sociológica (que tenha no seu âmago as práticas sociais), que Bourdieu bem enuncia, em explicando o que falar quer dizer (1982). Assim, são as propriedades sociais (locutores e recetores legítimos, língua e contexto legítimos...) no interior de um dado campo social, que a legitimam, que determinam a legitimidade e a aceitabilidade de um discurso. Como Bourdieu nota, a eficácia da palavra deverá, pois, relacionar-se com a posição social do locutor (1989:107). E é a estas propriedades que é preciso atender quando, nos referimos à produção da opinião publicada enquanto produto de um subcampo dos media: lugar de intersecção entre o campo político e o jornalístico. Trata-se de uma atividade com especificidades, que tem adquirido uma crescente e aparente autonomia e legitimidade, conferida pelo próprio campo dos media, quase individualizando e diferenciando esse “bem próprio” –

50

Similarmente, abordar a persuasão implica incorrer pelos diferentes domínios teóricos que a sustentam, cujas fronteiras são de difícil delimitação, dada a sua proximidade conceptual, a saber: a retórica, a argumentação e a sedução. (Barriga, 2010)

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uma espécie de monopólio de competências por parte de alguns – que é a “opinião tornada pública” Quem a protagoniza são os autoproclamados “comentadores”, “analistas políticos”, “colunistas” com evidentes relações ao campo político e ao campo jornalístico (Barriga, 2010). Será sempre a partir de um lugar de poder simbólico que ela é emitida e que assim deve ser percebida. Ora, a geografia destes lugares está a mudar e a legitimidade das palavras passou a procurar-se em vários sítios. Há uma década ainda era possível encontrarem-se fisicamente: “ (...) os lugares de maior influência política estão nas colunas e editoriais dos jornais ou no alinhamento dos telejornais.” (A. Santos Silva, 2003). Hoje a twittosfera pode ser entendida também enquanto um lugar de poder. No ato de ler a “opinião assinada”, procura-se aqueles a quem se atribuí legitimidade e estabelece-se o que alguns autores apontam como uma “marca” distintiva – a existência de uma relação de intimidade e confiança que se estabelece entre quem escreve e quem lê (López Pan, 1995: 125). É de admitir que num contexto online, em que se é “amigo” ou “seguidor” de alguém que pertença a este subcampo (com quem se interage, por exemplo colocando “likes”, comentarios, “retweets”) esse sentimento de suposta intimidade se intensifique. Alteraram-se as condições em que se firmam os “contratos enunciativos” de que nos fala (Charaudeau 1983: 101): um “contrato de autenticidade”, segundo o qual os eventos relatados devem ser “fiéis” à realidade” (no caso das opiniões, “objetivas”) e um “contrato de seriedade”, uma espécie de “contrato moral” que liga o “sujeito informador” a uma obrigação de transmissão das informações51. Mas pensamos que o leitor que procura a “opinião política”, mesmo através da Internet e recorrendo às redes sociais, tenha ainda os media tradicionais e a credibilidade que aí se constrói como referencia, indo em busca do “contrato de leitura” conceptualizado por Veron52. Deste modo, os lugares físicos de poder podem ter-se deslocado, 51

Trata-se de um entendimento do “contrato” ainda vinculado ao “contrato mediático” expresso por Greimas (1983 [1979]), enquanto um tipo de contrato fiduciário estabelecido pelos media informativos com os seus leitores, afim de fazer aceitar, a priori, a verdade dos seus relatos, deixando, porém, a posteriori, a possibilidade de verificação, através do qual os media estabelecem com os seus leitores. 52 Este contrato, sendo relativo também à relação entre o suporte mediático e a sua leitura, vai além de “contrato enunciativo” e alarga-se ao tipo de relação que determinado media estabelece com o público, destinado a compreender os vínculo que estabelecem entre si estas duas “entidades do imaginário da comunicação” Veron (1983).

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a sua geometria complexificado, mas talvez os processos de construção e atribuição de legitimidade, no essencial, se mantenham. 1.1 Breve percurso da opinião publicada em Portugal: dos antecedentes ao uso das redes sociais O panorama da opinião publicada em Portugal nos media dito tradicionais tem, atualmente, características singulares. Entre as mais notórias, constata-te a forte presença de políticos nos “espaços” de opinião nas televisões53. Era já um lugar tradicionalmente ocupado por jornalistas (muitos destes diretores de órgãos de comunicação social) e por políticos, mas a participação destes últimos aumentou visivelmente nos últimos tempos. O lugar de enorme destaque que assume a opinião publicada é herança da crescente relevância (ao nível político, social, mediático) que os textos de opinião começaram a adquirir na década de oitenta, consolidando-se na década seguinte. Para esta tendência e esta consolidação, concorreram as importantes alterações então registadas no campo mediático. E no entanto, não foi um fenómeno inteiramente novo, na medida em se recupera e intensifica uma dinâmica anterior. Os primeiros antecedentes da opinião publicada em Portugal podem datar-se do início do século XIX, quando se observou um grande desenvolvimento da imprensa de opinião, em muito impulsionado pelos liberais portugueses regressados do exílio, os quais transpuseram para cá as técnicas e os processos jornalísticos mais recentes. Nos primeiros anos da Regeneração, a imprensa de opinião cresceu e surgiram jornais especializados. As discussões públicas publicitavam-se nos jornais, discutiam-se nos salões e cafés de Lisboa, Porto e Coimbra – era o nascimento da esfera pública portuguesa e conhecidos “fazedores de opinião” oitocentistas adquiriam notoriedade.54 Refira-se ainda, em passos largos, que no primeiro quarto do século XX que antecedeu a ditadura, a opinião sobre assuntos políticos conheceu um considerável fulgor. Durante a “Primavera Marcelista” a malha censória apenas se atenua mas a criação do Expresso, em 1973, conotado com a Ala 53

Veja-se o “comentário político” assinado por ex-líderes ou dirigentes de partidos políticos e por ex-ministros, nas televisões de canal aberto, em “prime-time”).Em maio 2013 nos 7 canais televisivos (4 generalistas e 3 de informação no cabo) o Jornal Público contabilizou 69h de comentário político por semana. Foram identificados 97 comentadores com presença semanal na TV, destes 60 são ou foram políticos. (Público,12/5/2013) 54

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Liberal, veio abrir um importante espaço para a publicação da opinião. Como seria expectável, a Revolução de Abril proporcionou que a opinião publicada conhecesse um novo fulgor. Não obstante a pujança de algumas crónicas e cronistas bem como a intensa proliferação de títulos jornalísticos no período pós-revolucionário com forte conotação político-partidária, é entre a década de 80 e 90, fruto das profundas alterações no sistema dos media, que surgem projetos jornalísticos que em muito impulsionaram e valorizaram a opinião publicada55 . O canal temático por cabo SIC Notícias (surgido em m 2001) revelou-se um contributo decisivo, na medida em que não só exibe frequentemente modelos de análise política e comentário – a sós, em duo, ou com grupos restritos de figuras – como sugestionou outros canais56 e a imprensa a fazê-lo. No início do milénio, a emergência da blogosfera pública não deixou também de contribuir, em certa medida, para a mediatização da opinião política. Entre nós, os blogues ganharam expressão sobretudo a partir da segunda metade de 2002, constituindo-se alguns deles como um (novo) espaço de debate político e de participação cívica que alargou o espetro ideológico representado na (e pela) opinião publicada. Estes blogues, não o sendo exclusivamente, assemelharam-se a “pequenos jornais” de opinião política, funcionando mais como complemento das colunas de opinião do que como uma alternativa aos media tradicionais. De resto, nalguns casos o mesmo texto originava uma coluna de opinião publicada na imprensa e um post no blogue, sendo o jornal o prolongamento do blogue, ou vice-versa. Ora, atualmente as redes sociais constituem-se como mais um veiculo para a publicitação da opinião, seja através dos conteúdos aí publicados, seja através da publicitação da opinião anteriormente publicada nos media tradicionais (através da partilha de links de acesso aos textos dos jornais ou aos programas televisivos ou radiofónicos, da promoção dos horários e indicação dos media onde estes decorrem). No entanto, a novidade é a possibilidade – muito devedora da lógica da hipertextualidade e da interatividade – que as redes trouxeram de contextualizar, acrescentar ou atualizar “opinião” através de posts, tweets, bem como a discussão e troca de 55

Na imprensa escrita, destaca-se o papel do semanário Independente (1988) e do diário Público (1990); na rádio, foi fundamental o aparecimento, em 1988, da TSF – rádio jornal; e no campo televisivo, foi relevante o aparecimento das televisões privadas – SIC (1992) e TVI (1993). 56 A estratégia de ter “comentadores permanentes” nos jornais televisivos, tendo sido impulsionada com o surgimento da SIC Notícias, viria a popularizar-se com a TVI através da presença de Marcelo Rebelo de Sousa

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ideias possibilitadas pelas interações que a presença na rede, por definição, facilita e promove. 2. Twittosfera: a possibilidade de uma “contra-esfera pública” Para muitos, os media sociais trouxeram a promessa de alargar democraticamente o espaço público, a possibilidade de garantir a pluralidade ideológica, a perda do monopólio da palavra pelos media tradicionais e de curto-circuitar a auto-referencialidade das formas culturais e mediáticas dominantes, corporizando a hipótese de acrescentarem racionalidade ao espaço público e de contribuírem para a sua revitalização. Para outros, terão trazido também o risco de se definirem pelas (e nas) contradições já intrínsecas à formação/evolução (e formulação habermasiana) da esfera pública burguesa, de promoverem uma democratização mais limitada do que a que aparentam e novas formas de “feudalização” da esfera pública. É de há muito que o espaço público se tornou plural e heterogéneo, o próprio Habermas (1992, 1996) reconheceu-o e que as estruturas espaciais de comunicação estão em convulsão, assistindo-se à erosão da antiga hegemonia da vida pública (limitada territorialmente, estruturada pelo Estado, mediada apenas pelos media convencionais) (Keane,1995). Tornaram-se, pois, obsoletos os ideais convencionais de uma esfera pública unificada em que os cidadãos lutam por “um bem público”, passando a sobrepor-se e a interconectarem-se várias esferas públicas, ou “esferículas públicas” separadas, como diz Gitlin (1998), existindo uma “pluralidade de esferas públicas alternativas dinâmicas” (Dahlgren, 1991:14.) É, pois, neste novo contexto que se insere o papel da Internet na esfera pública. Como refere Dahlgren, o tema da Internet e da esfera pública já tem um lugar permanente nas “agendas de investigação” e está a entrar no mainstream dos estudos de comunicação política (2005: 147). Dahlgren agrupa, aliás, em duas as perspetivas sobre o papel da Internet na esfera pública: as dos autores que reconhecendo mudanças interessantes na democracia, no computo geral atribuem uma mais valia modesta à Internet (de que são exemplo Margolis e Resnick (2000), para quem a vida política na Internet é entendida enquanto extensão da vida política fora da Internet; e, alternativamente, a perspetiva daqueles que tomando como ponto de partida que estamos numa nova era, em que as certezas do passado no que diz respeito ao funciona a democracia se tornaram problemáticas,  argumentam que a Internet se torne particularmente importante no domínio da politica informal e extra-parlamentar (cresceu

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massivamente a expressão de poderosos grupos de interesses ou movimentos sociais, sendo muitos, segundo o autor, versões da “life politics” (Giddens), “sub-politics” ( Beck) e “lifestyle” politics (Bennett) (Dalgren, 2005: 154). Noutra formulação dicotómica, Correia (2014) divide o debate académico sobre o impacto das tecnologias digitais entre “euforia cibernética” e “distopia digital”, enquanto nesta última abordagem são referidas desvantagens e obstáculos que negam o papel político da Internet, na primeira, a otimista, negligenciaram-se os componentes sociais e políticas de poder sobre o sistema de media (2014:80). A título ilustrativo, acrescente-se que os otimistas argumentam, por exemplo, com a possibilidade de todos cidadãos serem ouvidos em igualdade de circunstâncias e de se tornarem mais informados Dahlberg (1998). Para alguns, trata-se mesmo de uma esfera pública virtual de pleno direito (Lévy, 2002; Castells, 2001). Para outros, contudo, deve ser entendida como espaço virtual facilitador da renovação da esfera pública (Kellner, 1999; Moore, 1999; Noveck, 1999; Slevin,2000; Papacharissi, 2002) ou de uma ciberdemocracia que promova e alargue o debate democrático e fomente a participação política (Dahberg, 2001; Warnick, 2007; Carlin et al.,2005; Pickard, 2006; Albrecht, 2006). Mas entre outros argumentos que se possam contrapor a este entusiasmo, e tal como adverte Dalhgren, sabe-se que o uso da Internet para fins políticos é claramente menor se comparado com outros fins a que se destina; a deliberação democrática está completamente ofuscada pelo consumismo, entretenimento, etc. (2005: 151) Para além de que o caráter comunicativo da discussão política nem sempre promove o ideal cívico (note-se ainda o uso perverso das organizações terroristas, nomeadamente através do Twitter). O estudo de caso sobre a participação política dos cidadãos portugueses, realizado por Paulo Serra (2012) vai justamente no sentido que as possibilidades de participação política dos cidadãos (e de relação entre estes e os decisores políticos) por enquanto são aproveitadas de forma pouco significativa (quer pelos cidadãos quer pelos decisores políticos) (2012: 128). Como tal, parece-nos de toda a pertinência o questionamento de Papacharissi: se a Internet e as demais tecnologias vão efetivamente revolucionar a esfera política ou se serão adaptados pelo status quo atual, especialmente numa altura em que o público demonstra um atividade política dormente e desenvolve um crescente cinismo face à política (Papacharissi, 2002: 10). Por exemplo, num texto que subintitula “La venganza de Habermas” Ugarte (2014), interroga-nos se não estaremos a passar de um “cidadão participante” a um “cidadão aderente”, reportando-se

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à “cultura dos likes”. Neste sentido, e ainda que concordemos que a internet tenha “efeitos transformativos na esfera pública que potencialmente – ou já mesmo – têm um grande significado político e democrático (Baker, 2007: 98), podemos perguntar se as redes sociais atualmente se constituem de facto em verdadeiras “contra-esferas públicas” e “esferas alternativas”, na plena acepção. Por outro lado, sendo a participação politica na Internet diferenciada, como se hierarquiza e distingue esses vários tipos de participação? A reflexão sobre as ferramentas online utilizadas nos diferentes tipos e níveis de participação política sugere que, apesar do seu carácter multifuncional, poderão colocar-se numa hierarquia de acordo com os tipos e níveis de participação política. Assim, segundo Simões et al (2011: 57) no topo da escala encontraríamos, por exemplo, e-ONGs que impliquem mobilização dos seus membros e o acionar dos respetivos recursos; mais abaixo, situarse-ia a atividade que requere argumentação e discussão (como a dos blogues); descendo na escala encontraríamos outras ferramentas úteis na mobilização, como as redes sociais; e finalmente os contextos online, nos quais apenas é requerido um “clique” no rato do computador. À diversidade dos contextos sociais (muitas vezes ignorados) juntam-se estes “novos” contextos, produzindo novas práticas. Recorrentemente questiona-se a democraticidade do espaço público (mediatizado), a natureza do debate político que aí ocorre bem como as características dos atores que nele intervêm, perguntando-se se existe pluralismo e diversidade nos media. Trata-se de conceitos diferentes, como bem demonstra Silva (2012). Neste âmbito, várias pesquisas têm demonstrado que o conjunto de pessoas que expressa a opinião nos media tradicionais (colunistas, comentadores) não é, sob nenhum ponto de vista (ideologia, género, profissão, etc.) representativo (Barriga, 2007, 2010; Figueiras, 2008; Lopes e Costa Santos, 2011). Similarmente, existem indícios que tal também ocorre com os intervenientes na blogosfera política, atentando em resultados de trabalhos que lhes traçam o perfil (Canavilhas,2004; Carvalho e Casanova, 2010; Silva, 2012). Ora, o que se tem observado é uma forte transitoriedade e omnipresença dos mesmos atores (predominantemente políticos ou jornalistas que ocupam o topo da hierarquia, maioritariamente do sexo masculino), resultante de uma simbiose de energias entre a imprensa, a televisão, a rádio e os novos media, à qual não são alheias as estratégias mediáticas. São “os media repetindo os media, imitando os media”, como diz Ramonet (1999: 39). Naturalmente, decorre também daqui o “afunilamento ideológico” no discurso destes atores, observado e analisado anteriormente (Barriga, 2007).

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É neste sentido que importa agora questionar em que medida as redes sociais, numa década, alteraram este panorama. Estão de facto a cumprir a promessa de alargar democraticamente o espaço público e a garantir a pluralidade ideológica? Possibilitando a discussão, acrescem racionalidade ao espaço público, contribuindo para a sua revitalização? Terá o ceticismo de José Gil perdido acuidade? O espaço público “falta cruelmente em Portugal”, denunciava (2004:33.) Ou ao invés, existem condicionalismos que limitam a “democratização” da utilização das redes sociais, e nesse sentido são novas formas de “feudalização” da esfera pública, sendo que no essencial o panorama mediático mantém-se inalterado e elas são apenas mais um veículo para à exposição de ideias dos media representantes e reprodutores do discurso mainstream? Uma vez que aqui se aborda especificamente o Twitter, também conhecido como rede de microblogging, interessa referir as suas principais especificidades. Algumas destas (como o números de carateres: limite de 140 por tweet), aparentemente, não são propícias ao debate político, no sentido argumentativo. Porém, todos os indícios apontam para que a discussão política esteja acontecer. Para que tal se entenda, será preciso não deixar de considerar que Web 2.0 não só trouxe novas ferramentas que potenciam a interatividade e a partilha, como também trouxe novas formas de utilizar a palavra e atribuir sentido. O Pew Research Center, que acompanha a utilização do Twitter nos EUA desde 2010, apesar de referir que em termos absolutos o número de utilizadores está muito aquém de outras redes sociais, como Facebook, demontra que a rede ocupa um importante segmento do mundo das redes sociais e sublinha o seu crescimento, mais rápido que a maioria das outras atividades online57 (Breynner, 2014). Em Portugal, ainda que os dados sobre a utilização do Twitter não sejam públicos, observa-se uma crescente popularidade entre adolescentes e jovens adultos, por um lado, e entre aqueles que influenciam e decidem, por outro. A diretora de vendas do Twitter para a Europa, Médio Oriente e África, revelou que mais de metade dos utilizadores portugueses daquela rede acede à sua conta pelo menos uma vez por dia, e que o mobile representa 80% dos acessos 58. Por sua vez, os dados do Obercom (Cardoso, et al, 2014) sobre a utilização da Internet em Portugal demonstram que as redes sociais têm sido uma

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A utilização do Twitter passou de 8% dos adultos que utilizam a internet a plataforma em 2010 para 19% em 2014 (Breynner, 2014). 58 Fonte: http://sol.pt/noticia/126984

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realidade online fortemente explorada pelos portugueses, no entanto a percentagem de internautas portugueses que utiliza o Twitter é apenas de 9%. De acordo com a caraterização do Pew Research Center, a twittosfera é composta, em grande parte, por ativistas políticos e “comentadores culturais”, que veem na rede um meio eficaz de influência. Esta rede é referida como uma plataforma de notícias, sendo que a informação de última hora é uma das suas funções essenciais; os utilizadores são um grupo especialmente em sintonia com notícias, media, cultura e vida cívica; donde, quem fala nesta rede é gente que dá especial atenção a questões políticas; contudo, as suas conversas não são representativas dos pontos de vista da opinião pública, pois muitas vezes são contra-corrente (Breynner, 2014) e frequentemente reagem com mais “negatividade” (Mitchel e Hitlin, 2013). É neste sentido que também vão as observações que recolhemos na análise exploratória sobre a utilização do Twitter em Portugal, as quais detalharemos um pouco mais no ponto seguinte. 3. Uma exploração da twittosfera: no domínio do político e do quotidiano Tendo em conta o fluxo e a velocidade de circulação da informação no Twitter, a sua origem e destino multíplices – resultando em complexas interações – a utilização das técnicas tradicionais ou a utilização tradicional de algumas técnicas (como a análise de conteúdo) revela-se inapropriada59. Explorar uma rede social com as características desta, como de resto qualquer rede, e tentar apreender as suas novas “linguagens” (o sentido dos discursos e das interações que aí ocorrem) exige, pois, também a criação de uma “linguagem” metodológica nova. “Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta”, como anotou Boaventura Sousa Santos (1987:48). Fazer algumas perguntas suscetíveis de o quebrar silêncio que o ruído da rede produz, foi a pretensão que se impôs. No fundo, pretendemos encontrar algum sentido para o discurso produzido. Porém, o número de

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Existem ferramentas gratuitas disponíveis, como o  Nó XL, que permitem aceder, recolher e analisar a informação em velocidades e escala sem precedentes mas que se revelam limitadas e inapropriadas para esta análise.

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participantes é elevado e as conversas (tweets, retweets) são inúmeras, e “entram” a uma grande velocidade na timeline. Para além destes conteúdos, é preciso também considerar os outros significados (suportados pelos links que cada tweet pode acrescentar). Ainda que os procedimentos metodológicos utilizados tenham sido os mais rudimentares da análise de conteúdo, os problemas levantados não deixaram de ser os clássicos. Desde logo, tornou-se imprescindível questionar e refletir sobre a (não) neutralidade do papel do investigador, com vista a contorná-la. Começámos, pois, por considerar que “ (…) o material sujeito à análise de conteúdo é concebido como o resultado de uma rede complexa de condições de produção (…) Trata-se da desmontagem de um discurso e da produção de um novo discurso através de um processo de localização-atribuição de traços de significação, resultado de uma relação dinâmica entre as condições de produção do discurso a analisar e as condições de produção da análise (Vala, 1986:104). Sendo que sempre pretendemos “capturar o sentido, a ênfase e os temas das mensagens e perceber a organização e o processo em como se apresentam” (Altheide,1996:33). A observação iniciou-se em Maio de 2014 e foi efetuada a dois níveis: um primeiro de natureza mais extensiva e exploratória; um segundo, mais intensivo. No primeiro, tratou-se de uma “leitura flutuante” pela rede tentando explorar o máximo de “perfis“ para se perceber quem de este subcampo dos media ou com ele relacionado tem conta no Twitter, quem “segue” quem, por quem é “seguido” e com quem interage mais frequentemente. Posteriormente, a um nível de maior profundidade, e dado que se pretendia observar o tipo de discurso e de interações que de facto ocorrem na rede, foi preciso olhar mais de perto para uma “rede dentro da rede”. Na impossibilidade, óbvia por razões várias, de aceder a uma timeline de um twiteer, optou-se pela criação de uma conta e a (re)construção de uma timeline, a qual integrámos como observador não participante. Aqui, “seguiram-se” 55 perfis, sendo que não se procurou a exaustividade ou a representatividade da twittosfera, mas privilegiou-se antes a “consistência” e a verosimilhança. Isto é, simulou-se uma rede na qual fosse expectável encontrar pessoas com relações de proximidade de algum tipo entre si, pois só assim a interação se tornaria mais provável. Por outras palavras, pretendeu-se constituir uma “rede emergente”, na classificação de Raquel Recuero (in Recuero e Zago 2009). Tal como a autora nota, no Twiter pode haver grandes redes de seguidores e seguidos (redes de filiação) com pouca ou nenhuma interação entre os atores e redes muito menores que

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abarquem as conversações (redes emergentes), mas que contenham muito mais interações entre os atores. Da análise efetuada e dos vários registos recolhidos diariamente, neste momento é possível tecer algumas observações. Constatou-se uma forte presença de atores ligados ao campo dos media, particularmente de jornalistas. Estes profissionais “assinam opinião” nos media tradicionais e alguns ocupam aí cargos de direção (a sua credibilidade/notoriedade foi, pois, aí firmada). Também por esta razão, é frequente observar-se a referência à opinião publicada noutros media e a sua divulgação através da partilha de links – dos próprios ou de outros colegas com quem se interage – para as colunas de opinião dos jornais, para os vídeos das intervenções televisivas, para as publicações no Facebook. Por outro lado, para além da divulgação da “opinião”, há o “encaminhamento” (por hiperligação ou por retweet) para uma infinidade de outros conteúdos noticiosos (divulgados pelos media de todo o mundo ou outras organizações de caracter informativo ou cientifico) que contextualizam os pequenos comentários, ou vice-versa. Esta lógica hipertextual é uma ferramenta poderosa, dado que permite acrescentar (aos 140 caracteres) bastante mais informação e expressar pontos de vista e posicionamentos de carácter ideológico, cívico ou moral. Refira-se também a existência do item “trending topics”, que mostra na plataforma os assuntos mais comentados e que dá, naturalmente, a possibilidade de se poder acompanhar aquilo que é discutido. A rapidez com que a informação chega aos outros utilizadores e a grande frequência com que é acedida, permite “promover” os programas televisivos ou eventos políticos, através da indicação de horários, às vezes alertando quase no momento, e do canal de televisão em que se vai estar a “comentar; a mobilidade dos novos dispositivos permite enviar twets do estúdio e obter feedback. E neste âmbito, surgem dinâmicas de comunicacionais novas. Por exemplo, é possível assistir-se a uma prestação televisiva e interagir, em simultâneo, com a mesma pessoa via Twitter, que está em estúdio no ar. É frequente estar-se a tuitar sobre os programas televisivos a que no momento se está a assistir. É possível, ainda, que o jornalista lance apelos na rede para encontrar entrevistados para a reportagem que está a fazer para o jornal onde trabalha. Em interação com estes atores, a utilização da rede pelos de atores com ligação campo político, por sua vez, não é negligenciável, já que se verifica uma crescente presença de políticos (na sua maioria jovens), nomeadamente governantes, detentores de cargos partidários, deputados. Também estes são presença habitual nos “espaços de opinião” das televisões e dos jornais. Por esta razão e pelo cargo que desempenham tem, naturalmente, uma

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visibilidade acrescida na twittosfera e a sua presença na rede, não raramente, ecoa nos media tradicionais, sobretudo se geradora de polémica. Em síntese, no que se refere à opinião publicada, o Twitter constitui-se indubitavelmente como mais um veículo para a sua publicitação nos media tradicionais. Neste sentido, consolida-se a ideia atrás referida da “transitoriedade” e “omnipresença” dos mesmos atores, sendo que é de admitir que estejamos perante o que diríamos ser um reforço da “identidade” deste subcampo dos media, dado que o aprofundamento das relações interpessoais, indiciado pelas dinâmicas comunicacionais observadas (por exemplo de crescente cumplicidade). No espaço online as conexões das redes sociais são ampliadas, o que conduz à complexificação da interconexão entre os indivíduos. De acordo com a designação de Raquel Recuero (in Recuero e Zago, 2009), é nas “redes emergentes” que ocorre, pois, o processo de aprofundamento dos laços sociais. Recuero e Zago (2009), sublinham um aspeto importante: a circulação de informações é também uma circulação de valor social que gera impactos na rede; as informações partilhadas estão, pois, relacionadas com o capital social que, deste modo, é construído e mais facilmente mobilizado pelos atores. No Twitter qualquer um pode seguir qualquer outra pessoa sem que haja um acordo de reciprocidade entre o “seguidor” e o “seguido”, esta facilidade de “seguir” alguém (com notoriedade), perguntar e obter resposta, manter ou aprofundar laços do mundo offline e pertencendo a uma “rede dentro da rede” (a timeline), faz também emergir novos nomes (ausentes dos media tradicionais) e novas ideias, alargando e estimulando a discussão em torno dos assuntos políticos. Deste modo, tudo indicia que para exista lugar e visibilidade no Twitter para os discursos mais contracorrente, para os mais críticos das correntes do pensamento dominantes, para a defesa de opções politicas, morais e comportamentais mais marginais. Neste sentido, é uma “esfera alternativa”, que permite uma maior contraposição de opiniões e de diálogo ideológico e que não pode deixar de ter implicações no funcionamento democrático. Contudo, esta “esfera” não soluciona as desigualdades, as limitações, as “contradições” do espaço público, já há muito assinaladas por Wolton (1995), entre outros, nem inclui o tanto que ainda está (ou passa a ficar) de fora. Assim, e não obstante as limitações e o já referido “prolongamento” dos media tradicionais, a discussão e troca de ideias possibilitadas pelas interações que a presença na rede, por definição, facilita e promove introduz alguns aspetos significativamente novos que potenciam o pluralismo e diversidade nos media e, consequentemente, a democraticidade do espaço

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público, indo ao encontro da ideia já referida que a internet tem “efeitos transformativos na esfera pública que potencialmente – ou já mesmo – têm um grande significado político e democrático (Baker, 2007: 98). Simultaneamente estabelecem-se na rede cumplicidades de natureza pessoal e surgem familiaridades (ou a sua ilusão). A observação mais prolongada da presença dos (mesmos) atores que discutem as questões políticas e a vida pública regista outras características: por vezes os comentários expressos nos tweets evadem o território do político e do ideológico e desviam-se para assuntos e factos do quotidiano, de natureza aparentemente mais privada do que pública. Evidentemente nem todos o fazem com a mesma frequência e no mesmo o “tom”, as formas de publicitação sendo variáveis estão longe da exposição da intimidade a que se assiste noutros contextos online. A este propósito, e ressalvando a polissemia associada à palavra “privacidade” e o seu caracter fortemente normativo, interessa sublinhar a historicidade deste conceito, o quanto tem variado no tempo e como as conceções prevalecentes são construções eminentemente sociais, indestrinçáveis do contexto social. Como referiu Arendt (2001), na esfera pública moderna já se encontravam alguns dos aspectos mais privados da existência humana; na contemporaneidade, tudo parece indicar que mudanças societais (como as que advêm da relação com as tecnologias da informação) concorram para a uma maior permeabilidade do espaço público a esses aspetos (autores como Baumann (2002) ou Innerarity (2009) tem aludido à intimidade tornada visível). Brighenti (2010), a propósito da visibilidade, sugere dois modelos principais: num deles, a esfera pública é uma forma de visibilidade em que se está em público; o segundo é o reino público da visibilidade social, da interação, no qual o reconhecimento do outro se torna central para a construção do eu. Em síntese, e como referem Carvalheiro et al. (2013), de facto “a identidade pessoal penetrou nos cenários públicos e o espaço privado, outrora sacralizado, deixou de estar arredado da discussão pública (…) esta correlativa privatização do espaço público deu lugar a uma situação de indiferenciação entre as duas esferas, sobretudo porque o âmbito público é constantemente invadido por particularidades individuais, por idiossincrasias” (2013: 108). Com efeito, quem “assiste” ao que se passa na timeline, por vezes tem a sensação de estar a “ouvir” uma conversa de um grupo de amigos, sentados numa mesa de café ao lado. Efetivamente, há amigos presentes na “conversa” mas também há a presença de desconhecidos (os milhares de “seguidores”), alguns participando, outros simples observadores. O “quotidiano” entra no discurso e a “informação” disponibilizada pode

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passar pelos “estados de espirito” do momento, a doença que nesse dia aflige, os espetáculos a que se assiste, as preferências musicais, gastronómicas e, repetidamente, as preferências e as considerações futebolísticas. Não raramente, pode perceber-se se o tweet é escrito a partir de casa, frente à televisão (até porque muitas vezes é um comentário acerca um programa ou personagem televisivo) ou se do táxi em que se viaja ou do aeroporto onde se espera. Deste modo, ao permitir esta “desterritorialização” e a sua “publicidade”, também os dispositivos móveis”, parecem estar a ser mais um contributo para o acentuar da tendência de privatização do público. Considerações Finais A twittosfera insere-se num novo e amplo lugar de potencialidades e de condicionantes. Como refere Papacharissi (2010), nas democracias contemporâneas existe uma cidadania liquida, o cidadão torna-se um indivíduo autónomo e a sua independência pode ser ampliada pelo uso das tecnologias convergentes. Contudo, avisa, estas não geram necessariamente capital social e político. (2010:111). O Twitter revela-se um lugar de (in) características próprias, em que os limites entre o público e o privado são permeáveis, híbridos, onde fluem discursos que cruzam questões políticas com trivialidades do quotidiano, num registo ora analítico ora humorístico, ora formal ora descontraído. Um lugar que pode servir interesses vários (também estes de limites indeterminados): a polis (ainda no sentido habermassiano de esfera pública, isto é, enquanto lugar dos debates públicos em busca da verdade, em que cidadãos deliberem sobre temas de interesse público (Habermas,1984: 43); as motivações políticopartidários; pode estar ao serviço de interesses profissionais ou estratégias pessoais (como o desejo de notoriedade), entre outros. Um lugar de partilha e intercâmbio de opiniões, informações, mas também de cumplicidades. Neste sentido, podemos subscrever Pissarra Esteves: o padrão dominante (racional-argumentativo) passa a coexistir com outras formas de linguagem – como por exemplo, aquelas que se encontram mais ligadas às emoções e sentimentos (2003: 204). E porque assim é, o Twitter é também um lugar de sociabilidade, entendida enquanto “a forma lúdica ou autónoma da sociação”, na aceção de Simmel (1983). Para este, o simples prazer da interação, consistia num importante elemento da vida social. A conversa é o propósito em si mesmo, é a realização de uma relação lúdica. Pela distância da realidade imediata, “pode revelar a natureza mais profunda desta realidade, de maneira mais

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completa, consistente e realista que qualquer tentativa de apreendê-la mais diretamente” (Simmel, 1983: 180). Deste modo, e em contexto online, o desempenho de papéis, noutras situações desempenhados de modo mais formal, torna-se mais descontraído, sendo de supor que os momentos de sociabilidade se tornem mais espontâneos. É um lugar onde se cruzam os (velhos) media tradicionais com os novos media, seja através de pessoas, seja de conteúdos. Muitos dos agentes do subcampo dos media que tornam a sua opinião publica noutros media, passaram a fazê-lo também aqui. São catalisadores e líderes da discussão, mas também uma espécie de gatekeeper, agendando o que importa informar e discutir. Contudo, a estes juntam-se outros atores e outras ideias, que passam a adquirir também visibilidade. Ora, o acesso à diversidade de informação e a pluralidade de participantes, por si só, já será um contributo para o incremento do debate, para o alargamento do espaço público mediatizado, mas não é (ainda) suficiente para resolver as “velhas” e as “novas” contradições. Como vimos, também os dispositivos móveis ao permitir a “desterritorialização” e a sua “publicidade”, parecem estar a contribuir para o acentuar da tendência de privatização do público e para fazer de todos cúmplices de uma sociedade cada vez mais vigilante. Ao mesmo tempo, a tecnologia que permite vigiar torna-se ela própria cada vez mais vigilante. O Twitter em Janeiro deste ano disponibilizou para novos utilizadores (com Android) a “timeline instantânea”: aquando da criação da conta “inspeciona” a lista de contatos do smartphone e identifica se nestes existem outros utilizadores. A partir daqui, e da análise do comportamento do utilizador na rede, preenche automaticamente o feed com tweets de outras pessoas que pressupõe que lhe interessem.60. De resto, desde 2010 que o Twitter utiliza um algoritmo que sugere “perfis” a “seguir” aos seus utilizadores, mas estas sugestões não aparecem nas suas cronologias. Em nome da melhoria de qualidade do serviço, desenvolvem-se formas de vigilância mais sofisticadas que o panopticon de Bentham. Ora o Twitter e outras empresas da Internet, nesta tentativa de ir de encontro aos nossos gostos, não só atentam contra a privacidade mas também comportam o risco de nos fornecer “filtros-bolha”, delimitando os nossos mundos. A mais tirana das vigilâncias é porventura a que nos encerra em nós. E esta de modo algum pode servir a democracia. Todavia, talvez um dia saibamos

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Fonte: The New York Times. Disponível em: http://bits.blogs.nytimes.com/ 2015/02/02/twitter-displays-its-value-with-instant-timeline-for-new-users/?_r=1.

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encontrar no café novo o seu potencial emancipatório. E talvez aí resida o que é admirável. Referências bibliográficas Albrecht, S. (2006) Whose voice is heard in online deliberation? A study of participation and representation in political debates on the Internet. Information, Communication & Society, 9(1): 62-82. Arendt, H. (2001). A Condição Humana, Lisboa: Relógio D’Água Editores. Baker C. E. (2007). Media concentration and Democracy – why ownership matters. Cambridge: University Press. Barriga, A.C. (2010). Opinião, argumentação e persuasão no quadro de uma racionalidade sociológica – o “poder do discurso”. Comunicação e Sociedade, 16, 27-42. Barriga A. C (2009). A emergência de um subcampo: tentativa de conceptualização da actividade do colunista, Trajectos – Revista de Comunicação, Cultura e Educação, 16: 37-52. Barriga A.C. (2007). Media, Política e Opinião: uma tríade Complexa- Uma abordagem à opinião publicada em Portugal. (Tese de Doutoramento).Lisboa: ISCTE-IUL. Disponível em http://hdl.handle.net/10071/1381. Bauman, Zygmunt (2002). Modernidad Liquida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina. Bourdieu, P. (1989). O Poder Simbólico. Lisboa: Difel Bourdieu, P. (1998). O Que Falar Quer Dizer. Lisboa: Difel. Breynner, J.(2014), Can Twitter survive in a Facebook world? The key is being different, Disponível em: http://www.pewresearch.org/fact-tank/ 2014/06/11/can-twitter-survive-in-a-facebook-world-the-key-is-beingdifferent/ Breton, P. (1998). A argumentação na comunicação. Lisboa: Publicações D. Quixote Brighenti, A.M. (2010).Visibility in Social Theory and Social Research. Basingstoke: Palgrave Macmillam. Canavilhas J. (2004). Blogues políticos em Portugal: o dispositivo criou novos actores?, Disponível em: www.bocc.ubi.pt Cardoso G., Mendonça S., Lima T., Paisana, M., Neves M. (2014) A Internet em Portugal – Sociedade em Rede 2014, Publicações OberCom Carlin, D., Schill, D. Levasseus, D. e King, A. (2005).The post-9/11 public sphere: citizen talk about the 2004 presidential debates. Rhetoric and Public Affairs, 8(4): 617-638.

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CAPÍTULO 8

INTERAÇÕES PORTÁTEIS: PENSAR AS COMUNICAÇÕES MÓVEIS À LUZ DE ERVING GOFFMAN Maria João Silveirinha

Introdução No texto que se segue propomo-nos pensar a questão da interação como uma parte essencial da sociologia, aplicando-a ao caso concreto da comunicação móvel. Fá-lo-emos pela lente de Erving Goffman, cujo trabalho consideramos ser relevante para o interesse sociológico contemporâneo nesta forma de comunicação (Goffman, 1963, 1967, 1971, 1993 [1959]). A lente goffmaniana para pensar a comunicação mediada não é nova. Espen Ytreberg (2002: 481-482), por exemplo, aponta que Goffman contribuiu significativamente para os estudos dos media, oferecendo mais do que de um “dicionário de conceitos úteis a serem importados para um contexto mediático sem a sua ajuda”. Neste aspeto, a sua força reside no fato de ele ter considerado a forma como os discursos são condicionados especificamente pelo contexto, o que abre uma abordagem aos media a partir do modo como o poder funciona concretamente nas instituições mediáticas, dada não apenas a relação desigual entre público e produtores, mas também porque essas instituições dão forma à comunicação e interação social mediada. Vários outros autores, no entanto, têm reconhecido o contributo de Goffman para a comunicação móvel e é na sua esteira que prosseguimos. Ao analisar o seu trabalho, bem como o de outros contemporâneos que seguem as suas pistas, este capítulo pretende, pois, ser uma sistematização e uma reflexão do que pode ser o contributo de Erving Goffman para o estudo do telefone móvel. O seu vasto trabalho sobre o comportamento normativo em espaços públicos é útil para compreender como e porquê as

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pessoas usam telefones móveis em público. Se o seu estudo da “encenação” da interação nos forneceu ferramentas para examinar os efeitos sociais da comunicação, juntarmos-lhe a comunicação móvel é juntar um novo nível de complexidade a estes efeitos, mas muitas das suas ideias parecem agora fazer mais sentido, quando interligamos interação mediada e interação copresente. Goffman, no entanto, não partiu do zero. Podemos, na verdade, situar a importância da interação para as formas de comunicação de que nos vamos ocupar recuando ainda mais no tempo, até Georg Simmel, para quem a sociologia se concentrava nas formas de interação entre os indivíduos, sendo subjacente a todo o comportamento humano. Nesse sentido, ele antecipou uma boa parte do interacionismo posterior. Como parte das suas análises das interações sociais quotidianas e modos de experiência cultural, estudou vários aspetos da experiência metropolitana, abordando, nomeadamente, a ambivalência e a dinâmica entre a proximidade física e a distância social (ver, por exemplo,Featherstone, Frisby, & Simmel, 2006). Fez, assim, notar, que na modernidade a vida íntima é possível através de grandes distâncias físicas, enquanto que, na proximidade física do espaço público urbano, é necessário manter a distância social para lidar com a proximidade de todos os estranhos com que nos cruzamos. Nas suas palavras, As relações recíprocas entre os homens das grandes cidades … distinguem-se por um acentuado prevalecimento da atividade da visão sobre a da audição. A causa principal disto são os veículos públicos. Antes da aparição dos ônibus, dos trens e dos bondes no século dezanove, as pessoas não se haviam encontrado nunca na situação de ter que permanecer, durante minutos e até horas inteiras, olhando-se cara a cara, sem dirigir-se a palavra (Simmel, citado por Benjamin, 1975: 68).

Ao ler estas palavras, logo nos podemos lembrar como a interação pública por ele referida viria a mudar com o uso privado do telemóvel em público, já que é frequente vermos as pessoas usarem o telefone quando estão sozinhas num espaço público, evitando assim olhar-se “face a face”. Embora os copresentes possam não falar, alguém, nessas circunstâncias, fala com outrem que não está presente. Toda a interação se complexifica, portanto. Simultaneamente, o pano de fundo dessa interação muda também: o uso do telemóvel em público significa que se traz para esse domínio aquilo que seria, em princípio, do espaço privado. Por outro lado ainda, verificamos, de facto, que um século depois das observações de

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Simmel, a vida urbana não é apenas pautada por uma espécie de reunião forçada pelos diversos tipos de comunicação a que ele alude, mas que o desenvolvimento das formas de comunicação levaria mesmo a um possível ‘contacto perpétuo’ (Katz & Aakhus, 2002) sem as restrições impostas pela copresença. O foco de Simmel nos discretos mecanismos através dos quais a sociedade é engendrada foi também desenvolvido por um grupo de estudiosos (Park, Burgess, Hughes) cujos estudos formaram a chamada Escola de Chicago e outros micro-sociólogos do início do século XX, como Cooley e Mead, analisaram igualmente esses processos. Mas seria Erving Goffman, em particular, que iria desenvolver a ideia Simmeliana fundamental de que a interação é um dos processos mais básicos da organização social humana. Desse modo, desenvolveria ideias que permanecem hoje centrais não só na microssociologia, mas na compreensão da criação de ordens sociais, como um todo, ordens sociais essas que têm por base a comunicação. E é a radicalização dessa comunicação em formas inter-pessoais móveis que podemos analisar, no caso que aqui nos ocupa, através precisamente de uma releitura de Goffman. Assim, no que se segue, é pela sua lente que olhamos para um conjunto de entrevistas individuais e focais de adultos residentes na Covilhã e que fazem parte de um corpo mais vasto de elementos empíricos do projeto “Público e Privado nas comunicações Móveis”, desenvolvido no LabCom sob a liderança de Ricardo Carvalheiro, procurando, nessas entrevistas, evidências da pertinência desta abordagem teórica ao contexto empírico em causa. 1. A função cerimonial da comunicação telefónica Rich Ling (2008, 2010, 2012; Ling, Bjelland, Sundsøy, & Campbell, 2014) faz notar que a interação telefónica praticamente não é discutida por Goffman. Embora ele trabalhasse numa época e em locais com acesso à comunicação telefónica, ele estava sobretudo interessado nos envolvimentos face-a-face (ou encontros), copresentes. Por outro lado, naturalmente, os telefones do seu tempo não eram digitais e a comunicação móvel só começaria a ser verdadeiramente difundida uma década após a sua morte. Goffman reconhecia, certamente, que pode haver interação mediada. Mas estas, como as que podiam ocorrer através da televisão ou do telefone, no entanto, seriam sobretudo resultantes da interação comunicativa face-aface: elas seriam, mas suas palavras, “(…) formas mediadas de comunicação

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“ponto-a-ponto” que podem ser caracterizadas pelo grau ao que elas restringem ou atenuam as possibilidades de comunicação (…)” (Goffman, 1963:16, nota 5). Nesta perspetiva, há diversos aspetos que tocam, de modos diferentes, a comunicação móvel. Por exemplo, dadas as múltiplas formas como o telemóvel (inteligente ou não) permite esse contacto, podemos dizer que ele é um dispositivo através do qual podemos desenvolver e manter relações existentes com os amigos e familiares, comunicando não só informações, desenvolvendo, desse modo, a organização social, mas realizar outros tipos de interações rituais (brincar, discutir, conversar) nutrindo, desse modo, os laços sociais que nos unem. Isso resulta, de acordo com Ling (2012), no desenvolvimento de uma Gemeinschaft digital de grupos intimamente ligados de familiares ou amigos que mantêm um contato à distância, bem como face-a-face. Nas suas palavras, As tecnologias de mediação social são artefatos e sistemas legítimos regidos por expectativas recíprocas de base grupal que permitem, mas também definem as condições para a manutenção da nossa esfera social. O uso das tecnologias de mediação social não é simplesmente uma questão de escolha pessoal; é, em geral, uma parte assumida da interação social. Nós usamos essas tecnologias para nos orientar e organizar para fins instrumentais, tanto quanto expressivos. Usamo-los nos nossos papéis como membros da família, amigos e colegas. Eles são uma parte da bagagem associada à interação do grupo, e, como tal, podem formar, moldar, constranger, facilitar e estabelecer as condições para a socialização (Ling, 2012: 7-8, itálicos no original). É nesta perspetiva que podemos começar por explorar um aspeto particular do contacto interpessoal – a função ‘cerimonial’ de que Goffman fala, como parte da manutenção dos encontros sociais. Assim, por exemplo, se os “encontros” tendem a ser uma “expressão do estado de uma relação social” (idem: 102), é preciso facilitar o contacto, de modo a não deteriorar a relação. Daí existirem regras de conduta que vão desde aquelas que têm uma natureza substantiva (por exemplo, as leis ou as regras que derivam da moral e da ética) até àquelas que se podem designar por “regras cerimoniais”. Estas regras e os rituais que lhes estão associados têm uma importância fundamental como meios de comunicação pelos quais o indivíduo expressa o seu carácter ou como formas de transmissão da sua apreciação pelos outros participantes na situação comunicativa (Goffman, 1967: 54).

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É nesse sentido que as várias formas comunicativas que unem pessoas que não estão copresentes contêm, tal como nos encontros presenciais, uma “função cerimonial”: Os encontros presenciais, é claro, não são os únicos a ter funções cerimoniais. As saudações, os cartões-de-visita, os telegramas de saudações e as chamadas telefónicas também servem estes propósitos. Cada círculo social parece desenvolver normas sobre a medida e frequência do seu uso de modo a formar as relações entre pessoas separadas geograficamente, conforme os custos para cada grupo que tem o uso destes diferentes dispositivos. Tal como os amigos do mesmo grupo social são obrigados a passar pelo menos alguns momentos a conversar uns com os outros, do mesmo modo um marido ausente em trabalho pode ser considerado ‘ao alcance’ e ser obrigado a telefonar para casa à noite (Goffman, 1963: 102, nota 38).

Os telemóveis desempenham, neste aspeto, uma função evidente. A partilha de textos, imagens, notícias, ou outras formas de expressão nas redes sociais com aplicações nos telemóveis são disso o exemplo mais óbvio. O envio destas mensagens pode ser um elemento ritual associado à vida cerimonial. Em certos dias comemorativos, por exemplo, podem mesmo constituir-se como dádivas cerimoniais (“ceremonial tokens”) trocadas entre atores sociais que se sentem na obrigação de realizar um gesto comunicativo, possivelmente em parte por causa da expectativa do Outro de que o dia ou evento “especial” seja, de alguma forma, reconhecido. Mas aí podemos incluir também as simples mensagens (escritas, de imagem ou de qualquer outro tipo) pela via “telefónica” propriamente dita. Na verdade, estas têm muitas vezes muito mais do que um aspeto simples funcional (partilha de uma informação de ordem utilitária): têm uma função de manutenção do contacto e da relação social. Nas nossas entrevistas, no entanto, por vezes vimos que a total substituição da comunicação móvel pela comunicação em copresença para cumprir estas funções não é consensual: – Mandar os sentimentos a uma pessoa a quem lhe morreu o pai ou a mãe ou assim. Também não acho bem por telemóvel. – Olha, eu mando, eu mando. – Só se for uma mensagem. Uma mensagem ainda escapa. – Eu mando uma mensagem. E também telefono. (Grupo focal – Adultos licenciados Séniores)

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Em todo o caso, as funções cerimoniais de contacto são muito visíveis em todas as entrevistas realizadas. Na abaixo transcrita, por exemplo, verificamos a típica situação da manutenção da interação e do contacto social pela via móvel quando, por alguma razão, não é possível mantê-lo pela via da copresença: Não sei, se calhar às vezes uma pessoa sente-se bem se desabafar o que é com… e o que é bom e o que é mau, porque às vezes não temos tempo para estar com os amigos ao vivo, cara a cara, e então ao partilhar essa informação… Seja uma situação engraçada, ou por vezes triste, nós sabemos à partida que vamos ter alguma resposta, algum feedback por parte dos amigos e essa resposta poderá ajudar a criar aquele ambiente que estaria à espera quando coloquei aquela informação, tipo se eu meti uma coisa engraçada estou à espera que terceiros, que têm disponibilidade de ver aquela informação, me deem algum feedback, tipo que achem engraçado, ou não achem… Por vezes, ao mandarem essa informação eu posso dar algum feedback da minha parte e a partir daí ter aquela conversa que já não tínhamos com aquela pessoa há algum tempo atrás e... digamos que é mais ou menos por aí, digamos que é só para criar um bate-papo (risos), como dizem os brasileiros (risos)... (H.G., sexo masculino, 38 anos, solteiro).

No caso seguinte, é a relação entre mãe e filha que está em causa: [Disse-me, então, que costuma receber fotografias da sua filha. São que tipo de fotografias?] Das praxes, só… e do quarto onde está, tira fotografias como é que arrumou, como é que não deixa de arrumar, pronto. [E também costuma noutras situações fotografar e enviar fotografias à sua filha?] Sim. Se há alguma coisa de importante, eu agarro e tiro para ela ver, e matamos as saudades assim durante a semana (risos)... (A.S., sexo feminino, 42 anos, casada)

Neste outro exemplo, vemos ainda um modo de utilização da partilha e do contato social que distingue positivamente o uso telefónico (mensagem, chamada telefónica) das redes sociais a que se pode aceder através do telefone: Porque eu acho que o meu estado de espírito (…), e eventualmente alguma alegria ou tristeza que eu possa ter (…) é partilhado pelas pessoas

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que me são próximas e não o faço publicamente através do facebook (..) se calhar faço via smartphone mas via sms, (…), via telefonema, mas não o partilho no facebook, porque ninguém precisa de saber a minha vida, lá está, é a tal privacidade que a gente pode (…) ainda manter... e os nossos amigos estão à nossa volta, portanto não estão numa rede social. (S.M., sexo masculino, 33 anos, solteiro).

Este último excerto aponta para uma das principais questões que o projeto “público e privado nas comunicações móveis” trata: a questão, como o seu título indica, da divisão público/privado que o telemóvel complexifica, diluindo fortemente as fronteiras entres este dois domínios e criando híbridos de difícil separação. Foi nesse sentido que, para melhor capturar a “complexa e fluida hibridização da vida pública e privada” Mimmi Sheller e John Urry (2003) propuseram que uma sociologia das mobilidades poderia ser o domínio conceptual que melhor explicaria a dinâmica e aparente erosão das fronteiras da vida pública e privada. Um dos principais pressupostos desta sociologia, no seu entender, é a desterritorialização, multiplicidade e hibridez destes domínios e que podemos facilmente reconhecer que os media móveis, pela sua ubiquidade e extensividade, são hoje parte dos fluxos e redes que produzem esta complexa mobilidade entre os domínios públicos e privado, induzindo mudanças nas formas de apropriação e distribuição da informação. Por essa razão, os telemóveis, juntamente com computadores portáteis e ligações sem fios são também para Anthony Elliott e John Urry (2010), parte do que eles chamaram de mobilidades miniaturizadas referentes à forma como as tecnologias digitais entrelaçam de modo intricado diversos aspetos das vidas móveis. Esta hibridez produzida pelas tecnologias móveis não toca, na verdade, apenas o domínio do público e do privado, mas parece também dissolver, para reconstruir de modo diferente, as fronteiras entre a distância e a proximidade, ou entre o trabalho e o lazer, por exemplo. Não que essas categorias fossem aproblemáticas ou dadas antes do móvel, mas este oferece novas formas de os ligarmos e novos caminhos para os repensarmos. Tãopouco poderemos dizer que as distinções são simplesmente apagadas, mas podem precisar de ser construídas de diferentes formas. Importa neste texto, no entanto, pensar alguns aspetos da diluição de fronteiras entre o público e o privado. Na verdade, é notório, nas entrevistas realizadas pelo projeto, uma tendência para separar o que é “privado” (no sentido de íntimo) do que é “partilhável” enquanto informações que

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transcendem esse círculo mais restrito mas que permitem a manutenção da ligação social. Eu às vezes vejo pessoas que partilham quando estão doentes, quando têm algum problema, ou quando estão chateadas com o marido, ou... Eu não partilho, para mim o facebook... Mesmo as questões que eu partilho é brincadeira, é mesmo só para a palhaçada, músicas, às vezes partilho uma música que oiço e que gosto, mas coisas pessoais eu não partilho. (A.S., sexo feminino, 37 anos, casada.) Normalmente é simples, tem que ver com a minha vida não se partilha e ponto final, pronto... Agora, se foi porque a ADF conseguiu ganhar a final da Taça de Portugal, ou se chegou à final, isso não tenho problemas em partilhar, isso até gosto. Ou notícias, ou... “A FCT cortou não sei quantos milhões de euros em bolsas de doutoramento”, pronto partilha-se para chatear. (D.S., sexo Feminino, 28 anos, solteira). Na minha opinião, eu consigo separar as coisas e... se eu não quiser que isso seja interferência má para a minha vida pessoal, eu consigo desligar o smartphone e, pronto, distanciar a tal opção... Quando o trabalho já deixa de ser só trabalho e interferir aí, na tua vida pessoal. Aí os níveis de stresse começam a aumentar e depois tu não consegues ter um espaço para diferenciar o trabalho da tua vida pessoal. Não quer dizer que tenha de haver sempre a distância, e essa distância tem de ser grande, depende do trabalho que tu tens, como é óbvio, mas se o smartphone começa a interferir nas tuas decisões em relação à tua vida pessoal para estares sempre a trabalhar, acho que isso depois é prejudicial à saúde em primeiro lugar, e depois a tudo o que tens à tua volta. (F. C., sexo masculino, 27 anos, solteiro).

Por outro lado, a questão do público e do privado está ainda relacionada com outros aspetos do trabalho importantes de Goffman: aquilo a que poderemos chamar a manutenção dos estatutos de sociabilidade e individualidade nos espaços públicos, as disrupções que o telemóvel causa nos diversos elementos de sociabilidade ou a gestão das plataformas de construção da interação. Desses aspetos tratamos em seguida.

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2. Individualidade e sociabilidade nos espaços públicos e o uso do telemóvel O telefone móvel também pode ser um recurso para personalizar a nossa existência em espaços públicos, um recurso para conseguir privacidade. A sociologia goffmaniana dos encontros sociais é, no entanto, situada no espaço público, já que, embora, naturalmente, presente na sua análise da interação social, a vida privada mantém-se bastante recôndita. Ora, a gestão entre o público e o privado estende-se precisamente ao modo como gerimos a nossa sociabilidade e individualidade nos espaços públicos. Ao nível desta última, podemos estar sozinhos ou fazer parte de um grupo maior. Nesse espaço, “Singles” e “Withs”, como Goffman chama a estes dois estatutos com que nos apresentamos em público, são tratados de forma diferente pelas outras pessoas. Por exemplo, os Singles são muito mais vulneráveis ao contato com os outros e podem ser julgados mais duramente do que os Withs, podendo potencialmente ser vistos como não tendo amigos ou não sendo sociáveis. Ora, as pessoas procuram compensar o facto de estarem sós e sentir-se vulneráveis nestas situações, utilizando mecanismos de autodefesa para justificar sua presença singular nos espaços públicos- “Os Singles, mais do que aqueles que estão acompanhados, fazem um esforço para exteriorizar um propósito e caráter legítimo, isto é, tornam os fatos sobre si facilmente legíveis através do conhecimento que se pode adquirir olhando para eles” (Goffman, 1971: 21). Um destes mecanismos de autodefesa pode ser o uso do telemóvel. Na verdade, a sua utilização não utilitária quando se está só num espaço público é frequente, como testemunhamos inúmeras vezes. Mas a subjetividade dos interlocutores de uma interação vai mais longe do que o seu estatuto de “Singles” ou de “Withs”. Ela estende-se ao modo como gerimos, individual e coletivamente, a definição da própria situação. Ora, se o encontro comunicacional é já por si muito circunstancial e obrigando a constantes adaptações das expetativas do outro e das “promessas” que fazemos na apresentação de nós mesmos (Goffman, 1993 [1959]), a mediação do telemóvel nessa situação introduz novos elementos na situação diádica de que Goffman se ocupou. Na verdade, poderemos pensar que o toque de um telefone quando duas pessoas se encontram a conversar é análogo à intromissão de uma terceira pessoa numa interação face-a-face. É nesse sentido que a noção Goffmaniana de crosstalk se torna útil para explorar o uso dos telemóveis em espaços públicos e seus efeitos sobre as relações interpessoais. A “conversa-cruzada” é “uma atividade

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de conversação ou um tipo de conversa tido por pessoas que partilham diferencialmente outras capacidades de interação” (Goffman, 1971: 25). Se essa situação já poderia ser desencadeada com os telefones tradicionais, mais presente ficou com a utilização em público dos telemóveis. É esse “modelo de conversação cruzada” que Lee Humphreys (2005) usou para estudar como os utilizadores compreendem as relações sociais em torno do uso do telemóvel e como negociam essas relações no espaço público. Para esta autora, embora os telemóveis permitam a comunicação em várias frentes ao mesmo tempo, isso não acontece sempre. A outro nível, porém, podemos considerar o estatuto de parceiros da interação através do modo como as pessoas assinalam as suas relações com outros por vários tipos de ‘tie-signs’. Este é um conceito goffmaniano que permite analisar como os indivíduos estão implicados nas relações sociais, como tal se expressa de forma ritual para os outros fora do relacionamento e como o estatuto ritual dos participantes é assim transformado. Estes signos são profundamente ambíguos e passíveis de dissimulação e esta é uma das raras ocasiões em que Goffman utiliza o telefone como exemplo. O desrespeito pela interação e pelo envolvimento de ambas as partes que ela exige pode manifestar-se por alienação da conversa ou pela utilização de trocas comunicativas furtivas que excluem a pessoa da situação. O telefone serve estas duas formas: “A conversa telefónica tem a característica especial de um locutor poder envolver-se facilmente em demonstrações de alienação, tanto em relação à conversa como um todo, como para com o desenvolvimento dentro dela, porque a outra parte não os conseguirá ver” (Goffman, 1971: 221). A questão do uso do telemóvel em público foi explicitamente abordada pelo projeto e recolhe, genericamente, reconhecimento, por parte das pessoas entrevistadas. Nesse reconhecimento está também implícita a ideia de alheamento: Aí há duas situações: uma é o telemóvel ter dado a informação que houve uma nova entrada de informação, tipo receber uma mensagem, ou uma outra informação qualquer e depois pego no telemóvel para ver essa mensagem e essa mensagem leva a que eu responda e continuadamente o outro responde e eu respondo e assim isso faz com que, por vezes, esteja off para as pessoas que estão à minha volta; depois para fugir um bocado às conversas onde me encontro. Às vezes, a conversa não é assim muito do meu agrado e então tento ver se existe alguma informação no telemóvel só para fugir um bocado àquela rotina que eu não quero seguir e, então, às vezes sou eu que crio a conversa com um terceiro (o entrevistador diz: um terceiro

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que está do outro lado...) só para fugir um bocado à rotina, ou seja, crio o início de uma conversa com um terceiro que não está presente naquele local de forma a fugir um bocado àquele meio, ou àquela circunstância em que estou nesse momento... (H.G., sexo masculino, 38 anos, solteiro) Sim, aconteceu isso há pouco tempo, aconteceu isso há pouco tempo, estávamos na conversa sobre situações que se tinham passado durante o fimde-semana e pura e simplesmente depois houve uma amiga que me mostrou umas fotos e eu depois comecei a ver as fotos que ela lá tinha e afastei-me um bocadinho dos outros, tanto que depois reclamaram (S. S. sexo feminino, 32 anos).

No entanto, este alheamento é avaliado negativamente: Uma das desvantagens do smartphone também é essa. Quando a conversa num grupo deixa de ter algum interesse, se tu tens acesso a um smartphone, agarras num smartphone e começas a... basicamente às vezes não estás a fazer nada, mas só o simples facto de estares a fazer alguma coisa no smartphone e depois também chegas à conclusão que é: tu pegas no smartphone porque já tens esse hábito de ver ou então o ato de fazer e já cheguei a ver em espaços públicos, em cafés e bares, basicamente ninguém estava a conversar entre eles e toda a gente estava a olhar para o telemóvel – pronto, não sei o que é que estavam a fazer. Ou seja, num espaço onde 5 minutos antes estavam a falar entre todos, passados 5 minutos estavam todos a olhar para o telemóvel e a conversa..., não sei se estavam a comunicar entre eles através do smartphone, mas se estavam a verbalizar 5 minutos antes, pronto... Mas é normal isso agora acontecer, as pessoas quando perdem um bocado de interesse na conversa. Já não vão embora, ficam ali, mas estão agarradas ao smartphone (F. C., sexo masculino, 27 anos, solteiro). [O que é que pensa quando vê um grupo de adolescentes, quase sem contacto visual uns com os outros, agarrados ao telemóvel?] O que é que eu penso, sinceramente?! Que são uns idiotas (risos), porque não reparam em mais nada, só vivem aquele mundo, que é o que eu digo aos meus, que não veem mais nada, que só veem aquilo, que vivem naquele mundo e se acontece alguma coisa no telemóvel ou no computador parece que o mundo vai acabar, e não acaba por aí... Além de não conviverem, não aprendem a falar, a comunicar, e no escrever também não escrevem corretamente. Acho que não traz grandes vantagens, vivem só naquele mundo e não é bom, fecham-se (A.S., sexo feminino, 42 anos, casada).

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3. Disrupções e correções O toque ou uso do telemóvel em público é a face mais visível da disrupção entre público e privado que ele introduz nas situações de interação. Os sinais e mensagens que, com frequência encontramos em espaços partilhados que indicam a proibição do uso do telemóvel ou os avisos que nos pedem que desliguemos os telemóveis, por exemplo no cinema, são prova dessa disrupção, e por isso ela fica muito clara nas nossas entrevistas, neste caso, focais: (…) Uma vez o meu marido foi-me pôr a Salamanca para eu ir para Madrid porque vive lá uma filha e eu comprei revistas e jornais para ler no comboio, ao meu lado ia uma senhora que telefonou para a família toda. Falou, falou, e eu não conseguia ler. (…) São duas horas de Salamanca a Madrid, ela falou à família toda! E a mim não me interessava a conversa dela e ia ali mesmo ao meu lado, e uma estava doente, e uma não-sei-quê, não-sei-quê… Eu acho que isso é uma falta de civismo, não é? Por acaso, ia pouca gente na carruagem, mas fosse quem fosse, ouvia as conversas dela e estava a impedir que as pessoas… (Grupo focal – Adultos licenciados Séniores) (…) Mas a gente quando está a falar, está a falar (…) A olhar para a pessoa. E isso incomoda um bocadinho e acho que também é um bocadinho falta de educação porque se a pessoa ou não está com atenção ao que está a ver, mas isso já não é connosco, ou não nos está a dar a atenção que a gente quer, que a gente requer. Vale mais dizer: “Espera aí que agora não te estou a ouvir! Tenho aqui de responder a isto.” (Grupo focal – Adultos licenciados Séniores).

Esta disrupção significa, por outro lado, que o telemóvel introduz um novo tipo de interação que pede novas formas da sua gestão. Na verdade, ao falar ao telefone, na presença de um outro conhecido, o orador é colocado no meio de duas relações sociais que têm de ser habilmente geridas. Essa necessidade de gestão cuidada acontece porque a ordem pública não é apenas um fim prático – é também uma ordem moral. Nos encontros públicos é a própria individualidade que está em jogo e os participantes devem garantir que ela seja mantida. Por isso, se as regras do encontro copresencial forem quebradas, o ator deve adotar medidas corretivas.

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[E já alguém te chamou à atenção, daquelas pessoas que estavam contigo, a esse respeito?] – Sim, sim, sim (…) Às vezes rio-me, é conforme... É conforme, digamos, a chamada de atenção desses terceiros. Às vezes, as chamadas são a brincar e eu rio-me, outras vezes gritam “ah, não sei quê e tal” e também me rio, mas pronto eu aí peço dois ou três minutos para finalizar a conversa e volto outra vez a estar presente naquele meio, mas normalmente rio-me para a situação, ou então oiço e entra por um ouvido e sai pelo outro... (H.G., sexo masculino, 38 anos, solteiro).

Este último excerto exemplifica bem a situação comunicativa em que a pessoa gere, de modo interativo, a sua relação triádica constituída por si própria, as pessoas copresentes e a pessoa que está do lado de lá do telefone, com quem ele fala. Mas Goffman observa também características normativas do comportamento em público, que podem conotar uma espécie de respeito pelo outro, sobretudo em situações de disrupção. Uma das formas corretivas da disrupção da interação pode ser também o que ele chama de “civil inattention”. Ele observa que um membro de uma conversa copresente pode aceitar uma chamada telefónica de um terceiro e, nesse caso, ele assume a pose de ‘desatenção educada’. A “civil inattention” aplica-se a um “indivíduo que fica momentaneamente entregue aos seus próprios recursos, enquanto uma pessoa com quem ele tem estado a falar atende uma chamada telefónica; fisicamente perto do outro envolvido e patentemente desocupado, deve, apesar disso, mostrar alguma forma desatenção educada” (Goffman, 1963: 158). Trata-se de respeitar o anonimato do outro, um comportamento que de alguma forma, também se refere à perceção que Simmel tinha das interações públicas, como vimos acima. Por exemplo, em determinadas situações não só é habitual não falar com os outros, mas evitar olhar diretamente para os outros. No caso dos telemóveis, podemos fingir não ouvir uma conversa telefónica privada, ainda que ela esteja presente no nosso espaço público. Essa gestão pode, assim, ser considerada uma das formas pelas quais as fronteiras entre público e privado são negociadas. 4. O uso do telemóvel e a gestão das fachadas Recordemos que a preocupação de Goffman com a encenação da vida quotidiana inclui também uma análise de como nos esforçamos para manter

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uma fachada, tanto através das apresentações numa fachada construída ou por situações de “bastidores”, em que a fachada é descartada, em maior ou menor grau (Goffman, 1993 [1959]). Este aspeto é particularmente interessante para pensar a comunicação. Já no estudo da comunicação de massas, na verdade, houve autores que procuraram aplicar o conceito de regiões de fachada e de bastidores à interação mediada. Joshua Meyrowitz (1985), por exemplo, argumentou que a mediação (televisiva, no seu caso) pode expor um comportamento de bastidores às audiências, criando uma “região intermédia”. Do mesmo modo, John B. Thompson adaptou os conceitos de regiões à interação mediada, ou mais amplamente os conceitos de “territórios do sujeito” (Goffman, 1971; Thompson, 2011). Mas esta é também uma outra ferramenta muito útil na análise da comunicação móvel e talvez não seja surpreendente que esse ponto de vista tenha sido um dos mais adotados pelos investigadores deste tema, uma vez que o toque do telefone coloca as fachadas em causa. Um último aspeto de que aqui nos ocupamos, portanto – e um dos que a literatura sobre este assunto mais tem tratado – é a questão da gestão das fachadas que o uso do telemóvel introduz. Ver como o telemóvel introduz novos elementos na gestão das fachadas é também ver como ele introduz modificações do espaço público e privado. Na rara presença que os telefones têm em Goffman, eles surgem sobretudo associados à região privada, uma das regiões de que constituem o território das nossas interações. Mas se Goffman situa os telefones sobretudo em regiões de bastidores, privadas, Rich Ling mostra bem os problemas que surgem quando, através do uso do telemóvel, nos apresentamos em duas frentes simultaneamente e temos de jogar com as sensibilidades de dois interlocutores. Nas suas palavras, “A encenação de uma chamada telefónica complica esta questão, uma vez que há potencialmente mais de um público. Isto tem sido referido como uma dupla região de fachada (...) O telefone próprio define os interlocutores. Em certas encenações, no entanto, alguém pode interpor-se na conversa (...), ou podemos tornar-nos observadores involuntários de uma interação telefónica (...), ou podemos erradamente pensar que somos parte de um círculo conversacional” (Ling, 2008: 65). Por estas razões, é no domínio específico dos telemóveis que a lente goffmaniana das regiões parece atrair mais investigadores. De entre os vários autores que o fazem, podemos recordar Leopoldina Fortunati que sugere que, com a intervenção do telemóvel no espaço público está a ocorrer uma mudança na tendência para subestimar a frente do palco, em favor dos bastidores e que a exposição destes bastidores nas conversações por telefone

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móvel pode afetar a ordem social: “O uso oral do telemóvel num contexto social de informações deliberadamente limitado acaba por produzir um curto-circuito incrível. Isto é, produz a revelação pública de informações que podem ser íntimas e significativas no que diz respeito a um papel ou pessoa, expressa num determinado momento por um indivíduo. Esta erupção não planeada é muitas vezes involuntária e imposta aos transeuntes. Pode gerar grande tensão que pode transbordar para a negociação social da auto-apresentação” (Fortunati, 2005: 206). Na verdade, o telemóvel parece ter trazido aquele que era, para Goffman, um dispositivo privado, de bastidores, para o centro da frente do palco e, ao mesmo tempo, ele pode colocar rapidamente a comunicação para os bastidores. E a permutabilidade de regiões passa sobretudo pelo facto de construirmos as nossas situações comunicativas pelo telemóvel num mundo onde a chamada já não começa e termina nos extremos de um fio fixo, o que significa que essa chamada pode ocorrer a qualquer momento e em qualquer lugar. Ora, isso muda necessariamente a forma como tratamos os espaços públicos e privados. Além disso, como vimos, a interação copresente pode ser paralela a outra interação remota, o que significa que agora pode ter dois públicos diferentes, mas em simultâneo, com as quais temos de interagir (Ling, 2008). Por isso, parece ficar claro que o telemóvel afeta o nosso sentido do espaço comum partilhado e, desse modo, as diferentes regiões com que o construímos. É em função dessa transformação que desenvolvemos estratégias com as quais construímos a encenação do telefonema quando na copresença de outros, isto é, formas de manter a fachada da situação. Aqui entrosamos, uma vez mais, a questão já abordada acima, relativamente à disrupção do espaço partilhado e das frentes que o constituem. As estratégias que desenvolvemos para manter a fachada, aquando do uso do telemóvel em público são também estratégias corretivas da disrupção. A utilização de mensagens de texto é uma delas. Um bom exemplo dessa utilização é dado, uma vez mais, por Rich Ling (2008) que nota que os alunos muitas vezes apresentam-nos a fachada do anotador interessado quando, na verdade, estão ocupados a negociar a sua vida social por um telemóvel escondido sob a mesa, durante as aulas. É também de assinalar que a importância de manter a região de fachada como o espaço partilhado comum que não deve ser confundido com os bastidores parece ter sido incorporada na própria tecnologia móvel, que agora nos permite mandar uma resposta escrita automática em resposta a um telefonema com um conteúdo algo semelhante a “estou em reunião”. Desse modo, o utilizador que recorre a este automatismo

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decide antecipadamente a gestão das fachadas sem perder o contacto com os múltiplos públicos (copresente e ausente). Podemos ainda recusar parcialmente a total separação dessas duas frentes, criando artificialmente um espaço híbrido entre as duas fachadas. Assim, por exemplo, quando sabemos que a pessoa copresente e aquela que telefona se conhece, podemos tentar incluir a pessoa copresente na chamada, referindo-lhe explicitamente o nome da pessoa que telefona que lhe pode mandar, por exemplo, as suas saudações. Uma outra estratégia – porventura mais frequente aquando da receção de uma chamada numa situação de fachada – é, no entanto, sair do espaço partilhado da copresença e encontrar uma área de bastidores, a que os copresentes não tenham acesso. E, por fim, um outro recurso de manutenção das duas fachadas que parece, nas nossas entrevistas, ser menos intrusivo do espaço comunicacional copresente é o envio de mensagens. Encontramos estas duas últimas situações neste excerto de uma das discussões focais: – (…) Por exemplo, se estivermos numa formação, numa conferência, num sítio em silêncio, calha melhor do que telefonar, ou sair para telefonar. – Se for num autocarro, não quero que as pessoas ouçam a minha conversa, como também não quero estar a falar baixinho com quem estou a falar, que me está a ouvir muito mal, e ela a dizer-me não sei quantas vezes: “O quê? Não estou a ouvir, fala mais alto...” Definitivamente vou ter de falar mais alto. (Grupo focal – adultos com formação superior).

Manter a fachada, por outro lado, pode também implicar não perturbar deliberadamente o espaço de equilíbrio entre os participantes da interação o que pode passar, por exemplo, pelo tipo de informações e partilhas que se traz para esse espaço. Diz-nos um entrevistado: (…) normalmente só [partilho] coisas que não ferem suscetibilidades. Muitas vezes se fosse a partilhar o meu estado de alma relativamente a algumas situações era bem possível que ferisse as suscetibilidades de algumas pessoas que são minhas amigas nas redes sociais. E muitas opto por não partilhar determinadas situações, ou determinados pensamentos, ou determinados estados de alma que tenho relativamente a esse tipo de situações, quer seja situações relacionadas com política, com religião, com cores clubísticas, são situação que não costumo partilhar, ou imitir opinião. (M., sexo masculino, 33 anos, solteiro).

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Esse equilíbrio é portanto, também, um equilíbrio dos “territórios do sujeito”: Há uma esfera privada que tem de se manter independentemente de termos um smartphone, ou não. É importante, às vezes, partilhar e mostrar algumas coisas que fazemos mas também há aqui uma linha ténue que separa o que é privado e o que não é. [Já agora, o que é que define essa linha ténue?] Isso já depende do bom senso de cada um, mas é uma linha que é muito difícil de definir, o que é da esfera privada e o que é da esfera pública. Há certas e determinadas coisas que eu faço que não vou partilhar nas redes sociais, nem em qualquer outro meio que seja, e já vi pessoas a partilhar essas mesmas determinadas situações em redes sociais. (M., sexo masculino, 33 anos, solteiro.)

Breves notas conclusivas Mais do que olhar para os indivíduos, Erving Goffman focou as situações como a sua unidade básica de análise. É através da análise do modo como as pessoas se comportam umas com as outras, em público, que vemos como elas definem e constroem a sua interação social. Esta lente sobre a nossa construção comum dos horizontes de sociabilidade que partilhamos e, simultaneamente, dos territórios com que definimos a nossa individualidade e a ordem social e moral que sustentamos através dessas definições é muito útil quando pensamos não apenas a comunicação facea-face, mas a comunicação mediada. No entanto, também consideramos que os conceitos e propostas de Goffman necessitam de algumas modificações para ser aplicados aos encontros e interações que passam pelo uso dos telemóveis. Como vimos, há, na verdade, importantes desvios das conversações diádicas face-to-face, quando, por exemplo, o telefone toca e o seu proprietário tem de decidir como lidar com esse toque. A presença virtual de uma terceira pessoa no espaço da copresença já poderia acontecer com os telefones fixos do tempo de Goffman, mas a sua amplitude hoje é, naturalmente muito maior, marcando uma enorme parte dos territórios da nossa vida social. Tal como Simmel bem notou, os espaços modernos das nossas metrópoles implicam novos problemas práticos de coordenação da ação e de coparticipação nos espaços comuns. Mas implicam também, como Goffman mostrou,

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problemas de construção da ordem social e moral mais ampla, ordem essa que é conseguida pelo recurso a regras e rituais sociais específicos. O telemóvel criou perturbações na definição dos espaços de interação tal como os conhecíamos até há poucos anos e por isso, apesar das eventuais limitações e modificações necessárias, revisitar Erving Goffman é dotarmonos de uma lente que nos permite olhar de uma forma radicalmente social e ética a atual multiplicação dos híbridos do público e do privado que parecem caracterizar crescentemente as nossas sociedades móveis, como é visível nos seguintes extratos: (…) acho que quase todo o meu mundo está acessível através do meu smartphone, obviamente não através de uma forma física, não está lá presente, mas sinto que está ali uma ligação, uma espécie de um link com o resto do meu mundo, isto entre aspas... Tipo, se quiser falar com... o que é que é o mundo para nós?! É a família, são os amigos, são coisas relacionadas com a minha profissão, com situação de banco, digamos que esse mundo eu consigo aceder facilmente através do smartphone e também ao contrário, ou seja, eu sem estar à espera também tenho esse feedback, tipo a minha família, os meus clientes, o meu patrão, os meus colegas, os meus amigos, o meu banco, os meus fornecedores, os meus clientes conseguem aceder-me via telemóvel, pronto, digamos que neste momento o nosso mundo cabe na palma da nossa mão (...) (H.G., sexo masculino, 38 anos, solteiro). O telemóvel passou a ser uma ferramenta de trabalho e um acessório de comunicação, o que não dispensa para mim uma conversa cara-a-cara. Porque eu via telefone, se calhar, até posso estar a mandar a pessoa para um determinado sítio, não é? Ter um sentimento para com aquela pessoa que eu não consigo mostrar por telemóvel. Ou, então, precisamente o contrário, a pessoa pensar que eu estou a ter um tipo de reação com essa pessoa e não estar. Ou seja, a comunicação tem ali uma falha que, até a linguagem gestual que nós fazemos ao comunicar falha no telemóvel (…). É muito importante, mas eu não dispenso uma conversa cara-a-cara face ao telemóvel. (Grupo focal – adultos com formação superior)

E o que é visível nas entrevistas que analisámos, além disso, é que, em última análise, estas modificações e transformações são de ordem normativa e comunicacional, como Goffman sempre insistiu.

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CAPÍTULO 8

O QUOTIDIANO TECNOLOGIZADO: GERINDO SITUAÇÕES ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO José Ricardo Carvalheiro Sara Portovedo João Sousa A partir do pensamento de autores como Hannah Arendt, Richard Sennett e Jurgen Habermas, apresentamos uma distinção entre público e privado no que ela pode ter de mais pertinente para a análise das interações quotidianas em espaços comuns, aspeto que depois abordamos com o apoio fundamental de Erving Goffman e de algumas atualizações teóricas da sua abordagem que têm em conta a introdução de tecnologias de mediação comunicativa, designadamente Joshua Meyrowitz (1986) no que respeita aos media eletrónicos, e Ling (2008), Humphreys (2005) e Lasen (2005) no que concerne aos dispositivos móveis e meios digitais. Teremos em atenção que as sociedades contemporâneas são palco de reconfigurações das esferas de vida públicas e privadas. É conscientemente que convocamos autores para quem a noção de público e a sua dicotomia com o privado não têm o mesmo significado. Como é sublinhado por Weintraub e Kumar (1997) na sua recensão às abordagens desta dicotomia, há pelo menos quatro grandes perspetivas em causa. Aqui, cabe apenas notar que Arendt e Habermas se situam dentro da “perspetiva cívica” (que concebe o público como uma comunidade política e um espaço discursivo de cidadãos), ao passo que Sennett se coloca dentro de uma conceção de público enquanto campo de sociabilidades (cujo tipo é distinto do que se passa nos espaços privados). A razão por que recorremos a esta dupla base teórica é simplesmente por nenhuma delas, por si só, ser suficiente para dar conta do fenómeno multifacetado que constitui o uso de dispositivos móveis do ponto de vista da dicotomia público-privado. Esse uso tem implicações tanto nas sociabilidades quanto nas esferas discursivas, e os dois níveis cruzam-se entre si. De qualquer modo, o nosso

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enfoque principal pende para uma abordagem das sociabilidades em espaço público, mais próximo, portanto, de Richard Sennett e explorável pela via das observações de inspiração interacionista fundadas por Goffman. Tomamos, assim, em consideração sobretudo o espaço público enquanto local de visibilidade e de encontro entre indivíduos, ou seja, ao mesmo tempo um espaço de sociabilidade e de co-presença. E é nesta linha que tentamos compreender o modo como a materialidade do espaço público e o uso de dispositivos móveis (telemóveis, smartphones, tablets). Pretendemos, assim, estabelecer uma relação espaço público/indivíduo a fim de perceber a apropriação desse espaço pelos atores que fazem uso de dispostitos móveis. Haverá um comprometimento da privacidade nestas circunstâncias? Ou há um desgaste do espaço de sociabilidade pública e de algumas dimensões da própria esfera pública? As dilemáticas questões das fronteiras entre as duas esferas, as suas aceções, os seus limites e reconfigurações, têm sido de tal forma notadas que pode impelir uma observação associada aos usos dos dispositivos móveis em espaços comuns a contornar o habitual contencioso entre o que é público e o que é privado, visto como uma dicotomia do tipo ‘ou/ou’, para em seu lugar adotar noções de hibridez do tipo ‘não só/mas também’ (Chadwick, 2013). Mas, se for o caso, significa isso que algumas dessas situações são simultaneamente públicas e privadas? Ou supõe a identificação de novas categorias, elas próprias híbridas ao serem constituídas por elementos de cada um dos polos? Com vista à operacionalização desta problemática, realizámos um trabalho de observação etnográfica durante cinco semanas em dois espaços públicos da Covilhã: um centro comercial de grande dimensão e um bar universitário. Foram realizadas 29 incursões no terreno em períodos do dia diferentes, de manhã, à tarde e à noite, em Julho e em Setembro de 2014. Com a adoção desta abordagem metodológica de caráter qualitativo, pretendemos apreender as dinâmicas que estes espaços imprimem na temporalidade quotidiana. Desta forma procuramos acesso às estratégias dos agentes sociais num contexto de negociação do que estes percecionam como público e privado. Neste texto abordaremos apenas o caso empírico do centro comercial. 1. Uma abordagem teórica da sociabilidade pública e privada Os conceitos de público e de privado têm vindo a sofrer alterações em paralelo com as mudanças sociais. Como ponto de partida, recorremos

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a três autores ‘clássicos’: Arendt, Sennett e Habermas. Os três analisam o conceito de público, mencionando a diferença para o privado. À sua maneira, apresentam a sua conceção de público de acordo com diferentes momentos da história e enfatizam o seu enfraquecimento nas sociedades contemporâneas. 1.1. A esfera do público

Começando por Hannah Arendt (2007), a autora baseia-se na Antiguidade clássica para afirmar que o público está diretamente relacionado com o político. O público pode ver e ouvir, ser visto e ouvido. Desse modo, a autora diz-nos que a primeira distinção a fazer entre público e o privado está relacionada com a visibilidade. Segundo Arendt, a realidade só se constrói na esfera pública, porque é ela que permite que nos apresentemos sob perspetivas variadas e que, assim, possamos construir a realidade. É-nos oferecida, assim, uma conceção de público em relação com a visibilidade, a pluralidade e a sociabilidade. Tanto a esfera pública como a esfera privada precisam de lugares para se realizar. O público encontra o seu lugar no espaço público, que não é a esfera pública, mas que nela está contido e que é o terreno organizado de forma a abrigar a vida pública; é o local que possibilita o encontro, o debate, a convivência; onde se pode ver e ser visto e, portanto, onde a política e a vida social se podem realizar libertas das necessidades comezinhas da sobrevivência e da reprodução, asseguradas pela esfera privada nos espaços domésticos. Neste texto tomamos precisamente como objeto empírico locais de encontro, espaços comuns e abertos, em alguns aspetos semelhantes, portanto, aos que classicamente proporcionavam a existência do público, plural, sociável, que vê e é visto. Mas Arendt (2007) ofereceu também uma visão acerca do declínio do público e da emergência do que ela chama “o social”, realçando aquilo que é a nova condição humana. No social os indivíduos ocupam-se quase exclusivamente de si mesmos, as suas relações encerram-se no âmbito privado, sendo os laços constituídos na ausência do “mundo” – o mundo é o espaço intermédio que está entre as pessoas e é preenchido pela palavra no espaço público. A autora faz o seu diagnóstico: a esfera social está a deteriorar a individualidade, gerando um conformismo não discursivo. Na sua perspectiva “os homens tornaram-se seres inteiramente privados, isto é, privados de ver e ouvir os outros e privados de ser vistos e ouvidos por eles.

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São todos prisioneiros da subjectividade da sua própria existência singular, que continua a ser singular ainda que a mesma experiência seja multiplicada inúmeras vezes. O mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva” (idem: 67 e 68). Jurgen Habermas, que traça a genealogia histórica da esfera pública burguesa, tem uma conceção metatópica desta esfera, enquanto espaço comunicativo em que indivíduos privados se congregam para discutir os assuntos públicos, numa relação crítica com o poder político. Como esfera comunicativa onde figuram os media, a esfera pública não deixa, porém, de incluir determinados espaços físicos, entre os quais se destacaram historicamente lugares como os cafés das metrópoles europeias. Aí o caráter de público, tal como ideal-tipicamente retratado por Habermas, implica a suspensão temporária do estatuto social de cada um e não trazer à discussão circunstâncias pessoais, em prol da argumentação numa base de igualdade de condições. A conhecida tese de Habermas acerca da transformação posterior desta esfera pública, no sentido da sua “refeudalização” por interesses privados, tem sobretudo a ver com mudanças no espaço mediático no sentido da sua mercadorização e com um esbatimento da discussão crítica que o autor aí identifica contemporaneamente. Dos três autores clássicos que aqui convocamos, pensamos ser Richard Sennett aquele que mais pode contribuir para uma análise atual dos espaços físicos em que o público e o privado se apresentam, tendo também a virtude de entrar em ‘diálogo’ crítico com Erving Goffman, o mais detalhado dos teóricos sociais que se dedicaram à observação das interações em público e cujas obras têm servido de base a posteriores análises dos cenários em que entram as comunicações móveis. 1.2. Sennett e o declínio do ator público

Sennett aborda a questão da visibilidade, mas de um modo distinto, não a considerando, por si só, um apanágio do público e apontando mesmo como morte do espaço público as circunstâncias em que a visibilidade e o isolamento se fundem. As fachadas dos prédios envidraçados que tornam os atores sociais visíveis mas hermeticamente fechados, são, para Sennett, expressões arquitetónicas dessa fusão paradoxal entre o visível e o isolado, assim como o são também os simulacros de praça pública construídos no interior dos grandes edifícios de serviços das cidades contemporâneas, que não desempenham, segundo o sociólogo norte-americano, a função

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de “espaço público vivo”, que é de pôr em interação pessoas e atividades diversas (Sennett, 1992: 12-14). Mas a grande razão pela qual Richard Sennett identifica um declínio secular do “homem público” está relacionada com um predomínio de novas formas de os indivíduos desempenharem os papéis sociais e com as crenças que passaram a estar na base dos seus comportamentos ‘em público’. O desempenho de papéis enquanto performance perante uma audiência composta por estranhos, levada a cabo através de convenções, costumes e rituais comunicativos que eram modos de atuar codificados e de tipo dramatúrgico, entrou em progressivo descrédito ao longo dos últimos dois séculos e foram-se instalando as crenças de que a ‘teatralidade’ social é contrária à autenticidade e de que o autêntico reside no mais íntimo e interior de cada indivíduo, sendo que, portanto, só a autorrevelação do self é vista como medida da verdade (Sennett, 1992: 29-30). Aquilo a que se assiste na contemporaneidade ocidental é, pois, à erosão dos papéis públicos, no sentido de que o desempenho em locais públicos se foi tornando “cada vez menos uma questão de expressividade e cada vez mais uma questão de neutralização e apaziguamento dos outros” (1992: 36). É a personalidade que passa a estar em jogo nas presenças em público e todos os atos e aparências exteriores dos indivíduos passam a ser tomados como signos do caráter pessoal. O corolário disto é, para Sennett, uma vida pessoal excessiva e uma vida pública vazia, que resultam da mudança que começou após o Antigo Regime, com a formação de uma nova cultura urbana, secular e capitalista onde ele vê uma sobrevalorização da intimidade, da privacidade e até do silêncio. Nos espetáculos e nas ruas, a sociabilidade é substituída pela observação silenciosa, que se torna um princípio da ordem pública (1992: 126), assim como os grandes espaços comerciais se tornam os paradigmas da forma como o domínio público enquanto lugar de trocas comunicacionais ativas deu lugar a uma experiência de estar em público como algo simultaneamente mais intenso e menos sociável (1992: 141). Essa intensidade passa a ser vivida, em grande medida, através do consumo, dado o investimento de sentidos pessoais que passa a ser feito nos objetos. A visibilidade em público dá pistas acerca do self íntimo e verdadeiro (daí a ansiedade com a aparência e a preocupação em não dar a ver que se apodera da ideia de privacidade), mas a sua conjugação com o silêncio gera um espaço pessoal subtraído à sociabilidade. A análise de Sennett é particularmente estimulante neste ponto: a partir do momento em que o silêncio criou isolamento nos espaços públicos,

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a distinção entre público e privado rui como par de noções opostas. Daí que faça emergir o conceito de “public privacy”, em que o indivíduo pode, paradoxalmente, escapar à sala de reuniões familiares para se refugiar em espaços públicos onde encontra o seu direito a estar só, a sua condição de privacidade em público, paralisado do ponto de vista da sociabilidade e a flutuar nas suas divagações (Sennett, 1992: 217). Num tal contexto assume importância também uma conceção comunicacional de público e privado que Richard Sennett utiliza, e que se distingue sensivelmente do sentido habermasiano de ação pública como acessível a todos. Uma situação comunicativa pode ser considerada privada, segundo Sennett, quando o indivíduo sabe quem faz parte da audiência (o conjunto daqueles que o veem e/ou escutam) e assim mantém uma certa capacidade de produzir um fluxo comunicacional em função dos ‘receptores’. Quando o indivíduo se encontra numa situação de cuja audiência desconhece os limites e que não pode controlar depara-se, por sua vez, num contexto de comunicação pública. Se bem que Sennett aponte à teoria dos papéis sociais de Erving Goffman a crítica de consistir numa análise social estática e desatenta às forças transformadoras como as que ele próprio vislumbra nos domínios do público e do privado, e portanto nada tendo a dizer acerca das tendências históricas (mas apenas acerca da acomodação dos comportamentos à ordem social vigente), isso não significa que a obra do sociólogo canadiano deixe de ser relevante. Ela abre-nos a porta para a observação em minúcia das interações entre pessoas presentes num mesmo espaço. Foi particularmente através do conceito de “territórios do eu” que Goffman (no livro “Relações em Público”) mais explorou aquilo que Sennett identifica como uma cultura do espaço público que se deslocou para os antípodas da sociabilidade (mas sem o sentido crítico que este lhe atribui). Através de vários mecanismos de comunicação e performance – o “espaço pessoal”, o “recinto”, as “reservas de informação e de conversação”, os “sinais” e os vários tipos de “infração” – Goffman dedica-se a mapear as formas com que os indivíduos gerem a coexistência em espaços públicos de modo a “reivindicarem” uma “territorialidade situacional egocêntrica” (1979: 47). 1.3. Goffman e as definições da situação comunicativa

Goffman influenciou o pensamento sociológico sobretudo por explorar a ideia de que os mesmos indivíduos desempenham diferentes

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papéis consoante as ocasiões sociais, uma vez que estas impõem as suas normas e estruturas sobre o comportamento dos participantes. Não obstante, a conhecida conceção goffmaniana de dramaturgia social também inclui a ideia de que os indivíduos procuram sempre gerir as impressões de si próprios nos outros, visando uma impressão favorável, e que vão gerindo essas impressões alternando comportamentos de “fachada” e de “bastidores”, uma dicotomia que por vezes se faz corresponder a contextos públicos e privados. O caráter circunstancial é marcante no que diz respeito à performance dos atores. Entre as circunstâncias temos as de caráter físico, que o interacionismo simbólico de Erving Goffman designa com o conceito de “palco”. E temos também as de caráter simbólico que emergem como resultado do processo histórico, nomeadamente as regras que definem o “certo” e o “errado” numa dada comunidade ou situação em concreto. A interação social é, assim, presidida por uma teia normativa que decorre de um longo percurso histórico e cultural e que resulta da negociação que os atores realizam entre si e as estruturas sociais. Mas, se cabe aos atores gerirem reflexivamente os seus desempenhos, a verdade é que a vida quotidiana é uma permanente deambulação entre espaços que nos transmitem maior ou menor à-vontade, familiaridade ou formalidade, ou que se pautam pelo anonimato, onde os gestos e os olhares são objeto de ponderação e reflexão. A “velha” dicotomia público e privado corporiza precisamente esse lado circunstancial e contingente da interação social. É este circunstancialismo, condicionante dos atores na adoção de uma determinada “fachada”, que em última instância leva à definição daquilo que Goffman nomeou “situação”, e que consiste na projeção com que o indivíduo tende “a assegurar um plano para a atividade cooperativa subsequente” (1993:24). Os atores precisam de atribuir sentido ao contexto vivido e é essa definição da situação que orienta a ação, levando o individuo a agir de uma maneira adequada. Segundo Goffman, uma definição equivocada da situação pode levar a uma comunicação imprópria. Se o conceito de “situação” parece interessante para estudar o uso de tecnologias em espaços públicos, não deixam de existir algumas dificuldades pelo facto de Goffman o empregar com sentidos variáveis na sua obra. No livro que temos estado a citar, A Apresentação do Eu na Vida Quotidiana, vimos que Goffman fala de situação como algo que os participantes de uma interação tentam definir de forma adaptativa, mas também utilizando as performances comunicativas para o fazer a seu favor (uma conceptualização próxima da noção de frame, ou “quadro”, mais tarde desenvolvida por Goffman).

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Na obra posterior Behavior in Public Places, o conceito de situação é utilizado para referir “o espaço ambiente” (spatial environment) onde alguém que entre se transforma em participante num “encontro”, ou seja, se vê na presença imediata de outros de uma forma suficientemente próxima para o indivíduo experimentar as suas presenças e ter também a noção de que é apercebido (1966: 17-18). A definição da situação parece, pois, advir tanto das interações pessoais (os encontros), como dos espaços onde as copresenças ocorrem e dos “quadros” que estes favorecem (associados a normas mais ou menos partilhadas pelos atores). Fica patente, em todo o caso, o lado relacional da definição de situação, que leva à adoção de um guião de interação entre atores e audiência e tem como pano de fundo um juízo por parte de cada ator interveniente. Portanto, os atores ao definirem a “situação” levam em linha de conta o tipo de espaço, quer em termos físicos, quer em termos de grau de familiaridade, formalidade ou anonimato. Por outro lado, também não deixa de ser tido em consideração o aspeto referente à composição social, etária, sexual, religiosa, daquilo que Goffman designou por audiência. Em cada caso concreto, como na área de restauração de um centro comercial, em que medida a situação é definida pelo contexto de espaço público e pelos desempenhos que ele pressupõe? Até que ponto ela é negociada pelos atores através das suas interações e das performances comunicativas com que tentam definir o quadro? Dado que o espaço é, simultaneamente, um espaço físico e um espaço social, em que medida ele está sujeito a apropriações variadas consoante os atores e os grupos que nele interajam? É neste sentido que pretendemos analisar os usos de dispositivos móveis enquanto comportamentos levados a cabo em determinados tipos de espaço. As comunicações móveis afiguram-se potenciais criadoras de situações no seio de outras situações, ou em articulação com elas. 1.4. Situações duplas e situações indefinidas

Por isso também nos interessa conceptualizar a existência de situações duplas ou de situações indefinidas, começando pelas próprias referências goffmanianas. Numa simples nota de rodapé do livro “Relações em Público”, Goffman declara que os “encontros” e os “contextos” formam dois sistemas distintos e que a gestão simultânea dos dois é “uma questão

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maravilhosamente complexa” (1979: 24). Interessado, nessa obra, em observar as interações entre “desconhecidos e meros conhecidos” nos espaços em que “passam a ser fisicamente acessíveis uns aos outros” (1979: 19), Goffman nota que, em algumas situações, a performance de um ator se dirige especificamente a um interlocutor mas, ao mesmo tempo, tem em conta a restante audiência copresente. Ou seja, apresenta a sua performance comunicativa perante duas audiências distintas. Nos textos escritos entre as décadas de 1950 e 1970, Goffman prestou atenção às interações que se desenrolam “quando as pessoas relacionadas se encontram na presença imediata umas das outras” (1979: 16). Isto significa que a definição de uma situação pressupõe um, e um só, contexto de interação: a copresença com outros (mesmo quando há dois círculos de outros, o do “encontro” e o do “contexto”) é simultânea e dá-se num mesmo espaço; as coordenadas de espaço e de tempo são coerentes e sobrepostas. Já nos anos 80, numa obra que se tornou um clássico sobre a era da televisão, Joshua Meyrowitz notou que as mediações tecnológicas, em particular os meios de comunicação eletrónica, provocam alterações na “estrutura das «situações» sociais»” (1986: 4), proporcionando significativas descoincidências entre espaços físicos e situações sociais. Proliferam “combinações entre diferentes audiências”, algo que é raro em interações face-a-face, e portanto há também “uma fusão de situações sociais” (1986: 5-6). Meyrowitz, a pensar na televisão, considera dois pontos no que aos ambientes sociais diz respeito: o modo como a alteração nos media também altera os ambientes sociais e os efeitos que uma mudança nesses ambientes pode causar no comportamento dos indivíduos. Para o autor, as tecnologias criam novas conexões entre as pessoas e os lugares que podem afetar diretamente a sociedade, particularmente os papéis sociais. O maior efeito dos media eletrónicos é, assim, segundo Meyrowitz, a mudança na “geografia situacional” (1986: 6) que eles provocam na vida social, ao trazerem diferentes tipos de pessoas para um mesmo ‘lugar’, em vez de se manter diferentes tipos de pessoas separados em diferentes situações: esse derrubar de paredes imaginárias (na metáfora arquitetónica de Meyrowitz) dificulta a assunção de papéis claramente diferentes em diferentes situações, dada a inexistência de segregação espacial. Para o autor, esta dificuldade de definir a situação leva à perda de habilidade para agir de forma adequada um contexto específico.

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2. Os dispositivos móveis e as situações em público A ideia de desfasamento entre o local e o comunicacional voltou a ser colocada, já no contexto dos dispositivos de comunicação móvel, por vários autores. As investigações sobre a temática dos dispositivos móveis têm dado conta de um aumento da conectividade social, fruto da utilização generalizada e frequente do telemóvel (Plant, 2001; Lasen, 2005). Várias análises dos cientistas sociais têm entendido o telemóvel como um dispositivo que fortalece os laços sociais entre a família e amigos. A sua portabilidade e garantia de contacto imediato e em qualquer local foram apontadas como as maiores vantagens, comparativamente ao telefone fixo, tanto para funções de coordenação como de coesão e de ritualização dos laços sociais (Ling, 2008). O telemóvel, mesmo sendo utilizado em qualquer lugar, é um meio de comunicação associado ao espaço público, como um prolongamento do telefone fixo, ou seja, vai para lá da esfera doméstica. E esta extensão não é apenas de natureza técnica, é também perceptível nos comportamentos dos utilizadores, frequentemente semelhantes aos que têm em privado. Por isso, para Rich Ling, “os telemóveis alteram a forma como as situações sociais se desenvolvem e são geridas”, precisamente porque todas as ocasiões e locais se tornam potencialmente “contextos de conversação telefónica” (Ling, 2008: 3). Dos restaurantes aos funerais e das casas de banho às galerias de arte, as situações comunicativas terão deixado de estar dependentes do espaço e também do tempo. O telemóvel aumenta o capital social, criando e reforçando laços já existentes, mas a par desse reforço de coesão, também existe o risco de a coesão se tornar socialmente fragmentária, dividindo a sociedade em grupos fechados e homogéneos que se relacionam em rede independentemente do espaço e do tempo, apenas em função dos interesses que têm em comum. Por outro lado – e este é o ponto principal para o nosso objeto –, o uso do telemóvel diminui esse mesmo tipo de capital quando os utilizadores deixam de estar totalmente disponíveis para a interação face a face. Há uma perturbação que o uso dos telemóveis causa nas situações sociais e, segundo Ling, ela tem em parte a ver o facto de frequentemente se instalar uma duplicidade comunicativa: “quando usamos o telemóvel [na presença de outros] temos, na realidade, dois públicos: a pessoa com quem estamos a falar ou a trocar mensagens e as pessoas com quem estamos copresentes” (Ling, 2008: 95).

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Dentro da sua já referida preocupação com a coesão social, o autor chama a atenção, repetidamente, para aquilo que se passa nos círculos de interação face-a-face, notando que o uso do telemóvel se faz, “por vezes, à custa da interação com os copresentes” (Ling, 2008: 3) ou que ele “tem a consequência secundária de criar um hiato na interação em copresença” (2008: 102). A insuficiência destas observações de Richard Ling para a nossa abordagem dos espaços públicos reside no facto de a sua análise se concentrar exclusivamente nos círculos interpessoais, nas reuniões em grupo (“social gatherings”). Quando afirma que as chamadas de telemóvel “têm o potencial de penetrar nas situações sociais, irrompendo sobre elas” (2008: 101), o autor presta atenção ao que se passa no interior de um círculo interpessoal, entre os seus componentes, independentemente dos “social gatherings” se poderem dar em espaços públicos, e sem conferir relevo àquilo que acontece no que poderíamos designar ‘fronteira’ entre a situação interpessoal e a situação pública. Acerca da conversação telefónica em espaços públicos, também Lee Humphreys (2005) levou a cabo uma pesquisa em que notou que o uso dos telemóveis está rodeado de dilemas e de normas sociais que vão sendo confrontadas, respeitadas ou modificadas. O estudo apoiou-se em Goffman para analisar, por exemplo, a “vulnerabilidade” dos singles (os indivíduos sós em espaços públicos) e as dinâmicas que o telemóvel introduz no seio dos withs (criando uma variedade de estratégias dentro dos círculos de interação, algumas das quais são protetoras de privacidade, como a postura corporal de quem o usa ou a “desatenção civil” de quem assiste). Para os nossos propósitos, um dos pontos mais relevantes da observação de Humphreys são as “conversas cruzadas”, em que uma chamada telefónica marginaliza nomeadamente os outros membros das díades, e a forma como isso lhes pode provocar ansiedade e desconforto. Neste sentido, estar ao telefone em público é considerado um ritual que apresenta vários níveis de desconexão possível em relação ao contexto, seja num grupo de conhecidos ou numa audiência pública desconhecida. Segundo Plant (2001) temos três tipos de receção às chamadas de telemóvel em público: flight, em que os utilizadores se movem imediatamente para fora da situação social em que se encontravam, de modo a manter a privacidade da chamada; suspension, quando os utilizadores permanecem no mesmo ambiente, mas param o que estão a fazer durante a chamada; persistence, se os utilizadores permanecem no ambiente e, simultaneamente, procuram continuar envolvidos no contexto. No terreno, verificamos as três situações, mas a tendência mais frequente é a pessoa que se envolve

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numa conversação telefónica parar o que estava a fazer, sem que geralmente se movimente do local, usando ou as não estratégias que já apontámos de defesa da privacidade, como falar baixo ou colocar a mão à frente da boca. Ainda sobre o desconforto associado às chamadas em público, Lee Humphreys diz-nos que ele não tem que ver exclusivamente com o sentimento de marginalização provocado pela conversação do parceiro (algo que se pode dar também nos espaços privados), mas que advém sobretudo do confronto com o outro círculo da audiência. É a duplicidade da situação, constituída em simultâneo pela marginalização no círculo de interação e pela assistência a esse ato por parte de co-presentes (ainda que desconhecidos) no mesmo espaço público, que produz ansiedade. O ator não se vê vulnerável à intrusão de terceiros no sentido da penetração física do seu território, nem é essa vertente da privacidade que está em jogo. O que está em causa é a sua impressão, a sua imagem aos olhos do público, que sai fora de controlo. Paralelamente, podemos notar que os withs que participam em conversações telefónicas em público se encontram não numa situação dupla, mas sim numa tripla situação comunicativa: o nível da interação verbal pelo telemóvel, o nível da situação comunicativa com os membros do seu círculo, e o nível do contexto de apresentação perante a audiência pública. Por outro lado, é necessário ter em conta que um enfoque comunicacional da dicotomia público/privado não pode encarar a noção de espaço como imutável e permanentemente definida, na medida em que é a relação com a(s) audiência(s) e a sua gestão que vão conferindo o caráter a cada situação. Por exemplo, com os dispositivos móveis em espaços públicos é muitas vezes criado um espaço privado que acompanha o utilizador do telemóvel, um espaço privado virtual (Lasen, 2005). A diluição dos limites entre o espaço físico e o espaço virtual tem vindo a sugerir outras formas de interacção social e uma reconfiguração do espaço urbano. Actualmente, o espaço físico é tido como híbrido, na medida em que as interacções entre utilizadores de tecnologias de fácil portabilidade se materializam nas conexões estabelecidas entre os espaços físicos e os virtuais. O individuo está simultaneamente numa realidade física e virtual, sendo o ciberespaço o mediador neste processo de sociabilização. A esse propósito, o protagonismo das comunicações móveis levou Ito e Okabe a proporem o conceito de “situações tecno-sociais”, uma noção estimulante através da qual estes autores se referem a “lugares que fundem infraestruturas da geografia e da tecnologia” (citados por Ling, 2008: 4).

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Também Manovich (2002) nos diz que o espaço físico está contaminado pelas tecnologias em rede que promovem o que chama de cellspace – um espaço físico redimensionado pelo fluxo de dados que podem ser transmitidos directamente de redes locais ou globais, ou de objectos localizados no espaço físico a que os indivíduos podem aceder através dos seus dispositivos. Com os dispositivos móveis e o acesso à internet, o que fazemos, com quem comunicamos, deixa de ter um lugar próprio, podendo até envolver a mesma posição de base, os mesmos movimentos de corpo, cabeça e mãos, e uma simultaneidade de atividades. É esta tecnologização móvel de espaços públicos, e a articulação de situações de comunicação telefónica e digital com as da geografia local, que conduz a nossa observação etnográfica e a procura de indicadores acerca da dicotomia público-privado nos usos de telemóvel. 3. Método etnográfico A essência da etnografia passa pela observação dos modos como as pessoas conduzem as suas vidas, sendo o seu objetivo dar significado ao quotidiano no qual as pessoas agem e reagem. O interacionismo simbólico é a abordagem teórica mais utilizada nos estudos etnográficos (Schutz, 1979), pressupondo uma negociação constante que não se limita ao vínculo social e que assenta na reflexividade quando se analisa a ação. Na interação social vamos percebendo os atores e as situações sociais, e é com base nisso que elaboramos ideias sobre o que é esperado, os valores, as crenças e atitudes que se aplicam àquela interação. Este é o ponto de partida para o investigador que recorre à observação etnográfica. Schutz vê o mundo da vida como o conjunto de experiências quotidianas e ações dos indivíduos para lidar com os seus interesses e com os outros. Um mundo intersubjetivo que já existia antes de nascermos, que já era vivenciado e interpretado por outros, um mundo organizado que se transforma quando aparece uma nova situação que exige problematização. Por isso, é necessário descrever os processos de estabelecimento e geração de significados tal como realizados pelos atores na atividade social e depois interpretá-los à luz das nossas perceções enquanto investigadores. Seguindo uma linha goffmaniana propomo-nos observar pessoas reunidas em determinado local, sob uma ordem social vigente para aquele grupo em particular. Neste sentido, pretendemos interpretar os dados recolhidos na observação, em vez de os mensurar, visando compreender a

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realidade tal como ela é experienciada pelos indivíduos e a partir do que estes pensam e da forma como agem. Schutz (1979) questiona-se: se a pessoa não sabe que a estamos a observar, ou não presta atenção, como é que se sabe o que pensam ou o que os motiva a agir? E diz-nos que é o corpo, a linguagem corporal, que dá essa resposta, pois expressa a vida interior da pessoa, na medida em que lhe possamos ver movimentos e palavras. Todavia, o investigador não pode ter a certeza de as suas experiências corresponderem às do(s) outro(s) que está a observar, o que pode é apelar a um objeto do mundo exterior que seja comum aos dois. O investigador envolvido na observação direta não participante não conhece, nem consegue captar os motivos da ação do observado. Mas pode fazer-se valer do seu conhecimento dos padrões tipicamente similares de interação em cenários também similares, e a partir daí pode construir as motivações dos atores. Desta forma, a observação que realizámos baseou-se na recolha de dados qualitativos (e também alguma quantificação de casos) centrados em situações reais onde o uso de dispositivos móveis estava implicado no quotidiano dos presentes num determinado espaço. A observação é uma forma de análise dos padrões de comportamento no uso desse espaço. A nossa atenção recaiu, sobretudo, na forma como a negoceia o que é público e privado quando se interage por meio de dispositivos móveis. Optámos pelo preenchimento de uma grelha de análise, que funcionou como diário de campo. Em cada incursão no terreno foram preenchidos campos divididos em duas partes. A primeira diz respeito à conversação telefónica: tempo de conversação; tom de voz; interação verbal; tema de conversa; espaço. A segunda ao manuseamento de smartphones: tipo de grupo; situação; tempos de utilização; utilização isolada ou partilhada. Em ambas as partes existem campos comuns: indivíduo/grupo observado; sexo e idade; contexto, dimensão do grupo e tipo de relações estabelecidas. 4. Dispositivos de comunicação em espaços públicos: um estudo de caso Desde o início da modernidade que o quotidiano tem vindo a ser cada vez mais marcado pelo uso de suportes e tecnologias de comunicação. As coffeehouses estudadas por Habermas (2012) tornaram-se estruturantes da esfera pública também por serem lugares de penetração e utilização social da imprensa, que é o mais antigo dos meios portáteis. Progressivamente, o contexto do capitalismo avançado foi tornando a vivência quotidiana

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em espaços públicos e semi-públicos cada vez mais impregnada de mass media eletrónicos, da sonoridade radiofónica aos ecrãs televisivos, e, mais recentemente, estes locais tornaram-se palco de novas práticas de comunicação interpessoal tecnologicamente mediadas, através da telefonia móvel, bem como da acessibilidade sem fios ao multifacetado ciberespaço. É, pois, um quotidiano crescentemente tecnologizado. Para a nossa pesquisa definiu-se como principal “unidade de análise” a área da restauração de um centro comercial, localmente designado como “o shopping” (com a conotação de modernidade global que isso implica), e que é simultaneamente um reconhecido espaço de sociabilidade na cidade da Covilhã. Este tipo de espaços, reciclando o pensamento de Goffman, deverá ser entendido como o “quadro”: “(…) incluindo o mobiliário, a decoração, a disposição física e outros aspectos do pano de fundo, [são os quadros] que constituirão o cenário e os alicerces do palco para o desenrolar da acção humana que será representada diante, dentro ou acima dele” (1993: 34). Uma breve observação da área de restauração do centro comercial permite perceber que a distribuição e disposição do espaço se fazem em torno do eixo composto por mesas e cadeiras, todas elas alinhadas num eixo que segue a orientação e disposição do próprio espaço, um salão oval com cerca de 100 metros de comprimento e 20/30 de largura. Descrevendo uma elipse, os estabelecimentos comerciais vendem os mais diversificados produtos, de café e bolos até refeições rápidas. Considere-se ainda a esplanada, espaço exterior em varanda, cujas características o distinguem do restante, em face da forte transitoriedade que lhe está associada. A tecnologização do salão de restauração apresenta duas caraterísticas permanentes. Em primeiro lugar, contém um conjunto de quatro televisores dispostos no eixo central do espaço, a um nível elevado (cerca de dois metros de altura) e com os ecrãs virados para direções opostas, de modo a possibilitar a sua a visualização de praticamente todos os pontos do salão. A presença da televisão corresponde a uma estratégia de design do próprio espaço comercial, decidida e ativada a um nível institucional segundo premissas que, em última análise, serão de rentabilidade económica. Os televisores estão permanentemente ligados durante as 14 horas que medeiam entre a abertura e o fecho do espaço comercial (9h-23h), cada um deles fixo num canal diferente (entre canais generalistas e um desportivo), e sem qualquer emissão de som. Trata-se, portanto, de um quadro de mediatização visual (e não audiovisual) que é estabelecido independentemente da apropriação que os indivíduos façam do espaço em causa.

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A segunda caraterística de tecnologização desta área de restauração é a introdução de dispositivos de comunicação móvel pelos próprios atores sociais, quer pelos funcionários do próprio centro comercial que não deixam de usar intermitentemente aquele espaço, quer pelos que são alheios ao estabelecimento comercial e o frequentam na condição de clientes ou visitantes. Pelas suas caraterísticas de self-service, este salão possibilita aos visitantes condições de permanência, sociabilidade e trânsito consideravelmente distintas das de outros locais de restauração mais tradicionais, na medida em que a estada não está sujeita à intrusão de funcionários. Sobretudo em certos momentos do dia em que a clientela é menor, torna-se possível que alguns visitantes se apropriem daquele espaço com uma minimização do consumo, podendo permanecer nele duradouramente. Refira-se que, nos pilares onde estão expostos os televisores, existem tomadas disponíveis para o público carregar os seus dispositivos móveis, o que pode contribuir para uma maior permanência no local, numa articulação entre as práticas dos utilizadores e as estratégias comerciais de atração de consumidores àquele espaço.61 Também é disponibilizado a todos os utilizadores deste espaço um acesso gratuito e sem fios à internet. Uma área de restauração como esta num centro comercial constitui, portanto, um lugar de entrelaçamento de fluxos mass mediáticos expostos coletivamente, com usos de media digitais individualizados, com interações mediadas à distância (telefónica ou digitalmente) e com dinâmicas de sociabilidade face-a-face. A natureza pública do espaço constitui, em termos goffmanianos, um “quadro” que emoldura a multiplicidade de situações comunicativas que ali se vão desenrolar. Mas convém notar que este espaço apresenta, à partida, uma pluralidade de usos por parte dos atores sociais: é local de encontro para uns, de alimentação para outros, de ambas as atividades para muitos, de repouso para mais alguns. Neste âmbito, duas notas merecem realce. Por um lado, o facto de se tratar em simultâneo de um espaço de sociabilidade e de consumo configura-o como um lugar promissor para a observação dessa dupla faceta que também está presente no uso dos dispositivos móveis, 61

Esta disponibilização de tomadas parece não ser prática noutros centros comerciais, nomeadamente em grandes cidades. Por exemplo, o espaço de restauração do centro comercial Vasco da Gama, em Lisboa, para além de não ter tomadas visíveis é raro acolher alguém a trabalhar com um portátil. É um lugar com ritmos mais velozes de entrada e saída, onde as pessoas tendem a permanecer apenas o tempo necessário para consumir.

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através dos quais os indivíduos hoje performatizam tanto interações como consumos. Por outro lado, sendo local de permanência ou trânsito a sós, em pares ou em grupos, exibe uma variedade de situações de interação que pretendemos apreender como se articulam com a utilização dos dispositivos móveis. Fizemos incursões em diferentes períodos do dia, deparando com as rotinas e os diferentes ritmos do quotidiano. O período matinal no centro comercial apresenta-se como um momento de utilização em que reina a tranquilidade e onde os pequenos grupos (na sua maioria idosos) ocupam espaçadamente a restauração, entre um café ou a leitura do jornal. Esta calma é interrompida por um afluxo de utilizadores que se deslocam a este espaço para almoçar. Aparentam ser na sua maioria trabalhadores de serviços distribuídos na periferia do centro comercial e da “zona nova” da cidade. Após esta intensificação, observa-se o processo contrário e aí voltam a dominar os pequenos grupos de idosos, agora também com adolescentes em grupo ou sozinhos. Os grupos têm habitualmente entre 2 e 6 elementos. Com o final da tarde, estes grupos perdem peso relativo relativamente aos jovens adultos (entre os 25 a 45 anos) que regressam do trabalho e passam por este espaço para lanchar ou jantar, quase sempre em grupo. Os dispositivos móveis são, evidentemente, objetos presentes nestas circunstâncias. O espaço da esplanada, no exterior, tem quase sempre menor número de utilizadores, mesmo quando as condições atmosféricas não são adversas. É um espaço essencialmente frequentado por indivíduos relativamente mais jovens. As permanências são mais reduzidas. Encontram-se mais ‘células individuais’, ou aquilo que Goffman (2010) designou por singles, em contraste com espaço interior em que proliferam os withs, os indivíduos acompanhados. Para Goffman, um ator que esteja no palco sozinho encontra-se vulnerável à intromissão da audiência e/ou de outros atores. Por sua vez, o conceito de withs sublinha o papel protetor do grupo relativamente a possíveis intromissões de elementos contextuais e/ou da audiência. Considerando a orgânica das diferentes células que ocupam os dois espaços é possível afirmar que há uma clara primazia no uso do telemóvel em situações em que os atores estão sozinhos, manuseando com maior durabilidade o telemóvel. A este respeito, não será de todo coincidência o facto de encontrarmos maior prevalência de chamadas telefónicas com duração superior a cinco minutos na esplanada, uma vez que aí os atores conseguem ter maior controlo sobre a audiência, ou pelo menos uma audiência pouco densa e numerosa. A esplanada é o local privilegiado

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para funcionários do próprio espaço usufruírem de pausas no trabalho e estabelecerem contactos por telemóvel, através de chamadas ou mensagens. Usando a lente goffmaniana para olhar o espaço de restauração do centro comercial tendemos, por outro lado, a vê-lo como um conjunto de “recintos” (mais ou menos correspondentes às várias mesas), sendo estes considerados por Goffman uma forma básica de organização social, ou seja, uma série de áreas que os indivíduos podem reivindicar temporariamente como território do eu, ou zona privada em público. O facto de Goffman abordar os espaços públicos sob este prisma revela a sua conceção individualista e a premissa de que nas relações em público está em causa, acima de tudo, uma gestão da coexistência entre indivíduos que tendem a reivindicar vários tipos de “reserva” em torno de si, o que se baseia na observação do quadro cultural norte-americano. Isto torna-o um apoio teórico fundamental para observar as práticas em público do ponto de vista da preservação ou intrusão na privacidade dos indivíduos, mas não deixa de conferir uma primazia epistemológica ao privado, que deve ser cautelosamente abordada noutros contextos. Estes aspetos têm muita relevância no caso em estudo, dado que o centro comercial em causa é hoje provavelmente o principal espaço de sociabilidade da cidade da Covilhã. Cabe, por isso, atentar às suas caraterísticas não apenas na ótica da reserva de privacidade, mas também como lugar de possibilidades para a interação social de tipo mais fluído, diversificado e impessoal que se enquadram no campo da sociabilidade pública, e que simultaneamente contribuem para o funcionamento do espaço discursivo que é a esfera pública. É nítida, no contexto da Covilhã, a perda de protagonismo do velho centro urbano, a Praça do Município (popularmente designada ‘Pelourinho’), enquanto espaço de encontros, permanências e trocas. Devido à matriz histórica da cidade industrial e operária, esta praça, ainda que palco de intensas sociabilidades públicas, também foi no passado um espaço de fortes segmentações em termos de classe e de género, e é hoje um lugar frequentado com pouca densidade e por uma população que pende para idades avançadas e classes populares. Pelo contrário, o grande centro comercial, construído em 2005 numa zona residencial não consolidada, atrai desde então uma população muito mais heterogénea, durante mais horas por dia e dias por semana, tendo na área de restauração um local de encontro e sociabilidade que apresenta momentos de alta densidade. Também devido ao processo de diferenciação socioeconómica que envolveu a Covilhã nas últimas duas décadas, este espaço é hoje um lugar de constante confluência de diversos tipos sociais que é inédito na

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história da cidade e, portanto, um novo contexto de possibilidades para a sociabilidade em público.62 Num outro sentido, porém, a natureza dos dois espaços contribui para lhes conferir um cariz distinto no que respeita a um continuum da dicotomia público-privado. Na velha praça da cidade, a contiguidade com o centro político, o confronto com o espaço público (no sentido jurídico, de pertença da comunidade municipal) da rua e dos seus equipamentos (públicos, no mesmo sentido), o tempo de espera pelos transportes públicos, são elementos que potenciam a atenção dos indivíduos ao coletivo e uma sociabilidade que inclui discursos sobre ele. No interior do grande centro comercial, pelo contrário, o espaço físico e os equipamentos são propriedade privada, e aos indivíduos, rodeados por todos os lados (literalmente) de oferta comercial, é oferecido antes de mais o papel de consumidores. Esta mudança, com contornos particulares no caso da Covilhã, inscreve-se evidentemente em transformações estruturais de larga escala que têm vindo a atravessar as cidades europeias numa certa fase do capitalismo avançado em que coexistem várias lógicas de privatização em paralelo. Aquela que importa realçar aqui, como contexto da nossa observação, é o deslocamento gradual de cidadãos em massa para espaços que compaginam a frequência pública com contextos onde predominam uma cultura comercial e interesses privados. Por estas razões, a nossa análise tem em conta duas vertentes: a articulação dos “territórios do eu” com os usos do telemóvel em espaços públicos, que remete para as questões da privacidade em público, com as suas situações de defesa, de intrusão ou de extroversão das relações pessoais; e a vertente da sociabilidade pública, com as suas modalidades de comunicação ou de alheamento face aos outros e aos temas coletivos, que se articula com as questões da esfera pública.

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Esta diversidade, própria dos contextos urbanos, não deixa porém de ser mitigada quanto ao caráter impessoal que é a norma de sociabilidade pública nas grandes cidades. Num meio urbano de pequena dimensão (aproximadamente 40 mil habitantes), a circulação em lugares públicos como o shopping faz-se acompanhar de uma alta probabilidade de encontros pessoais. Também num espaço como o da restauração, a audiência não é simplesmente composta por estranhos e pode incluir conhecidos. Acerca do contexto de pequena urbe e do grande centro comercial, ver Carvalheiro (2008).

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5. Observação e análise A primeira vertente das nossas observações centrou-se na passagem de comportamentos e práticas mais privadas e íntimas para os espaços públicos e coletivos. Com a portabilidade dos aparelhos de comunicação e a ubiquidade das suas ligações instalou-se o hábito de muitos utilizadores acederem à internet e fazerem ou atenderem chamadas telefónicas num espaço ocupado por uma audiência de estranhos. No caso das ligações telefónicas, constata-se facilmente que a área de restauração do shopping é um “palco” onde os utilizadores de telemóvel mantêm conversações sobre assuntos pessoais e que, mesmo quando recorrem a estratégias de preservação da privacidade (procurando “reservas”), por norma não deixam de atender chamadas. Num lugar como aquele, tornou-se um hábito falar ao telemóvel em público, ao lado de pessoas desconhecidas. O trabalho de campo, dividido em 29 sessões de observação, permitiunos registar dados sobre 117 conversações telefónicas. Em todas aquelas em que nos foi possível identificar conteúdos com razoável clareza, os assuntos situavam-se, sem nenhuma exceção, no campo das relações pessoais. Uma boa parte dessas chamadas incidiram na coordenação de questões práticas, com prevalência do nível familiar e da comunicação entre gerações (vários casos de mulheres de meia-idade combinando atividades com filhos e com pais), e tenderam a ser de curta ou média duração (não mais de 5 minutos). Mas um outro tipo de chamadas tem um cariz não utilitário e pode ser caraterizado como de relato ou de comentário, assumindo frequentemente contornos de conversação alongada sobre aspetos da vida pessoal, como nos seguintes registos do trabalho de campo: Na mesa ao lado, uma senhora na casa dos 30 anos está a jantar na companhia do marido. Atende uma chamada a meio do jantar e fala muito alto ao telemóvel durante cerca de 6-8 minutos. Apesar de estar imenso ruído na área de restauração consegue-se ouvir perfeitamente a conversa. Fala com alguém sobre um casamento a que se prepara para ir no domingo seguinte. Descreve ao pormenor a roupa que vai levar: um vestido verde cintado, uns sapatos de cor bege a combinar com a mala. Fala também da roupa que uma criança vai vestir. [Diário de campo, 12 de setembro, 21h] Uma utilizadora entre os 45 e os 50 anos, sozinha a uma mesa, fala ao telemóvel em tom alto durante cerca de 10-12 minutos. Excerto da conversa: “Mas a Dora também vai? Ele tem de se mentalizar. Não há lá pessoas da sua idade, não há. (…) Mas é assim, eu hoje não saio às 10, saio

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às 11 da noite. (…) Tá bem, eu depois espero por ti. Eu tenho botas brancas, mas não é a roupa mais adequada.” [Diário de campo, 19 de setembro, 19h] O predomínio de conversas pessoais num local público não significa, porém, que todos os atores sociais exponham o seu self da mesma forma irrestrita. Nas incursões etnográficas constatámos que fazer ou atender chamadas naquele espaço comercial não são ações, geralmente, acompanhadas por grandes preocupações de discrição. Todavia, há quem utilize estratégias de criação de “reservas” ou refúgio em “bastidores” (Goffman, 1979; 1993). Concretamente, identificámos cinco procedimentos para restringir o acesso da audiência: volume e tom de voz baixos; colocar mão à frente do rosto; postura corporal defensiva; sair do local para se isolar ou distanciar; uso de linguagem lacónica. Procurámos fazer uma análise mais aturada de alguns destes indicadores de defesa de privacidade, cruzando-os com variáveis como a faixa etária, o sexo e a condição de singles ou withs (sabendo que o pequeno universo de casos observados apenas autoriza a ler tendências quantitativas como meras indicações). Verificámos, por exemplo, que a adoção de um tom de voz baixo é mais frequente nos utilizadores que estão sozinhos do que entre aqueles que estão em grupo. Esta tendência pode efetivamente ser interpretada como estratégia de privacidade em público: não há dúvidas de que a reserva assim constituída se prende com a audiência de estranhos que rodeia o utilizador; no seio de um grupo, este procedimento terá mais a ver com a reserva de informação face aos outros membros do círculo, mas será potencialmente menos eficaz nesse propósito, dada a proximidade. Daí que, na nossa observação, a retirada ‘geográfica’ para uma região de bastidores seja, por sua vez, mais frequente entre os withs que atendem o telemóvel. Se o utilizador está sozinho, tende a atender a chamada sem sair do mesmo local. Uma senhora entre os 45 e os 50 anos, sozinha na esplanada, fala ao telemóvel em tom alto durante cerca de 10 minutos. Antes a utilizadora já tinha estado com a família na esplanada, mas saíram todos para a restauração, regressando pouco tempo depois apenas ela e já ao telemóvel. A senhora fugiu do palco para os bastidores numa tentativa de fugir da situação em que estava para atender/fazer a chamada. A senhora falava de forma desenvolvida das suas férias em Portugal, falava em Francês. Ali, a sua audiência era composta de estranhos, que parecia ser o pretendido pela senhora: na esplanada havia menos ruído; e aparentemente não queria ter a conversa à frente das pessoas com quem estava no palco. [Diário de campo]

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Outra forma de analisar a relação com a audiência pública é comparar as situações nos dois polos do continuum entre reserva e abdicação da privacidade. Contra a ideia de que se tornou generalizada a exposição da vida privada através da conversação telefónica em público, a nossa observação registou situações bastante mais numerosas em que os atores põem em prática mecanismos de bastidores, a começar por um volume de voz que torna as falas impercetíveis para a audiência. Neste âmbito, um outro dado interessante é que a média etária de quem usa estas estratégias tende a ser mais baixa do que a dos utilizadores que desenvolvem conversas telefónicas em voz alta, o que também contradiz – no caso específico do espaço estudado – a hipótese de que as novas gerações tendem a perder a noção das fronteiras entre o público e o privado. Quando atentamos nos casos em que há uma adoção simultânea de vários tipos de “reserva”, vemos que a média de idades é ainda mais nova, havendo uma representação assinalável de indivíduos do sexo feminino na casa dos 20 anos. Utilizadora entre os 20 e os 30 anos. Sozinha. Fala ao telemóvel durante 3-4 minutos num registo informal. O tema da conversação é impercetível. Fala em voz baixa e cria um espaço de bastidores, virada para baixo e colocando a mão perto da boca. [Diário de campo, 21 de Julho, 14h] Sexo feminino, 20-25 anos. Sozinha numa mesa oval com bancos de madeira, que é das maiores da restauração. Não está a consumir. Atende uma chamada, que dura cerca de 5 minutos. Está a ouvir durante a maior parte do tempo. Quando fala é em voz baixa e com a mão frente. Às vezes vira-se para o lado (que tem uma mesa vazia). [Diário de campo, 10 de setembro, 13h]

Seguindo a concetualização goffmaniana trata-se, aqui, de manter “reservas de informação”, um dos mecanismos de defesa do “território egocêntrico” em público, através do qual cada indivíduo procura controlar o que os outros podem saber de si (1979: 56). Goffman sublinhou, principalmente, o aspeto visual deste tipo de reserva em público: o direito a não ser devassado por olhares alheios – que tem na “desatenção cívica” entre desconhecidos a norma com se gere essa potencial “intrusão”. A ênfase analítica no contacto visual revela, por si só, que se trata de contextos públicos caraterizados pelo isolamento verbal, mas a proliferação das conversas telefónicas vem, por sua vez, expandir as ocasiões de intrusão sonora. Ou seja, a questão da privacidade coloca-se, nestes casos, em dois sentidos: quem disserta indiscretamente sobre a vida pessoal abdica de uma

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certa reserva de informação perante a audiência de desconhecidos; quem está no raio de audição sofre, no seu território de privacidade em público, a intromissão de temas pessoais que lhe são alheios. Mas podemos perguntar-nos se não estamos a lidar com um preconceito tecnofóbico. No contexto de uma pequena cidade, a restauração de um centro comercial – tal como um transporte público ou uma sala de espera –, não é um lugar onde vulgarmente deparamos com conversas face a face sobre vidas pessoais suficientemente perto de nós para que nos seja inevitável ouvi-las? O cerne da questão será o uso do telemóvel ou o facto de haver uma ocupação dos espaços públicos por conteúdos comunicativos de índole pessoal? Não sabemos quais os temas dos diálogos em grupos presenciais num espaço como aquele. Durante a nossa estada no shopping é possível que em algumas mesas se falasse do serviço no hospital da Covilhã, do preço do petróleo ou dos atentados terroristas na Europa. Mas é um facto que as nossas observações não registaram uma única conversa telefónica que abordasse um assunto coletivo. Em contrapartida, anotámos, por exemplo, o caso de um casal a programar um jantar de grupo e a telefonar a um amigo para combinar a compra de ingredientes. Este é um ponto onde a questão da reserva/intrusão da privacidade se articula com a da (falta de) sociabilidade em público, apontada por Sennett como efeito da personalização generalizada dos atores sociais. Um tema coletivo torna mais permeável o isolamento verbal entre desconhecidos num espaço público? Se duas pessoas ao nosso lado dialogarem sobre o funcionamento do hospital local, sentimo-nos interpelados como cidadãos e somos capazes de quebrar o isolamento dirigindo-lhes também comentários sobre o assunto? Em alguns casos, talvez. É possível esbater-se aí a fronteira entre o “encontro” dos dois indivíduos e o “contexto” da audiência próxima, criando-se uma nova situação comum, legitimada pelo facto de todos assumirem o papel de pessoas públicas. Mas se alguém o fizer ao telemóvel, a duplicidade da situação comunicativa entre encontro e contexto é tão clara que não é possível entrar na interação, e uma interpelação após a chamada seria recebida como intrusão de alguém exterior que era suposto manter-se civicamente desatento. É curioso notar, aliás, como o termo “cívico”, na abordagem goffmaniana, toma o sentido exatamente oposto àquele que assume nas teorias da esfera pública, e isso não deixa de ser, em si mesmo, um indicador de quanto a norma da sociabilidade em espaços públicos se fixou como o contrário de sociabilidade pública, como isolamento e silêncio. Na nossa leitura, o uso conversacional do telemóvel em espaços como o

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que observámos tende a contribuir para algumas alterações nas práticas de privacidade em público, mas não a favor de um incremento da sociabilidade pública e sim inserindo-se num movimento que expande a exposição do privado e que reforça o isolamento entre “territórios egocêntricos”. O lugar público como espaço aberto a eventuais trocas comunicativas entre desconhecidos de forma não pessoalizada parece ter na utilização de dispositivos de comunicação pessoal mais um mecanismo de dissuasão da quebra de isolamento entre desconhecidos e portanto de travagem à sociabilidade entre atores públicos. No que respeita ao manuseamento de smartphones, constata-se igualmente que a área da restauração e a esplanada do shopping são o “palco” onde os seus utilizadores se abstraem do que é físico e material e se concentram no virtual, quer seja a navegar na internet, quer seja a trocar sms´s com alguém das suas relações próximas (isto nem sempre é fácil de constatar, mas em alguns casos foi possível). Assim, o manuseamento parece surgir em circunstâncias que se podem tipificar em três grandes grupos: os atores que em situação de single recorrem ao dispositivo móvel seja para erigir um espaço de privacidade, seja para estabelecer contacto com alguém; grupos de 2 a 3 elementos em que todos ou quase fazem um manuseamento intenso de dispositivos móveis (nestas situações a comunicação verbal e corporal é escassa e faz-se recorrendo a uma linguagem predominantemente monossilábica e lacónica, sendo nestas circunstâncias os conteúdos consultados, essencialmente, de caráter recreativo como jogos ou redes sociais); utilizadores em grupo de maior dimensão, onde o dispositivo móvel assume um papel relevante na interação através da partilha de algum conteúdo acessível no aparelho. Na observação do manuseamento apercebemo-nos que é difícil saber se estão em causa assuntos pessoais, mas há uma despreocupação maior quanto à preservação da privacidade. Quando se entra na restauração pode ver-se muita gente a manusear os seus smartphones, seja em contexto de grupo ou sozinho, seja durante as refeições ou quando estão a interagir em co-presença. Existem períodos mais curtos e mais longos de utilização, mas são mais os casos que observámos de manuseamento por longos períodos, por exemplo toda a refeição (cerca de 20 minutos). Estes equipamentos invadiram claramente este espaço público, pois quem não os está a usar, também não tem necessidade de os esconder e têm-nos em cima da mesa. Utilizador do sexo masculino na casa dos 25-30 anos, está sozinho na restauração a almoçar. Durante a refeição olha e escreve no seu smartphone, vai sorrindo como se estivesse a falar com alguém. Às vezes pára de comer

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e recosta-se na cadeira a escrever no telemóvel. É muito expressivo, vai fazendo caretas engraçadas. Raras vezes olha à sua volta. Esteve a usar o aparelho praticamente durante toda a refeição, cerca de 20 minutos. [Diário de campo, 2 de Setembro, 12h19]

Um uso do dispositivo móvel que passe fundamentalmente pelo manuseamento em contexto de espaço público constitui, muitas vezes, uma importante estratégia de demarcar um espaço e um tempo pessoais, talvez um estado privado de comunicação, observando-se uma forte tendência deste tipo de uso nos grupos etários entre os 15 -35 anos. O uso mais convencional, envolvendo chamadas telefónicas, parece concentrar-se nos grupos mais “velhos”. O facto é que o manuseamento acontece maioritariamente em contexto single ou em grupos bastante restritos, de 2 ou 3 elementos. Há também casos de grupos mais vastos, ainda que raros, com manuseamento no seu seio. Mas existe partilha de conteúdos entre os copresentes? Por norma, o que se observa é uma atividade iminentemente solitária, mas que apresenta nuances. Em grupos de dois ou três elementos raramente observámos partilha. Em grupos mais vastos, o manuseamento assume, pontualmente, a centralidade, no sentido em que torna a interação mais fluida. É relevante, pois, notar a tendência para grupos pequenos, bem como os singles, estarem associados ao uso de dispositivos móveis para comunicação via mensagens de texto ou chats, ao passo que grupos maiores se associam ao acesso as redes sociais. O uso dos dispositivos móveis surge, assim, integrado nas atividades que os withs, no interior do seu círculo, desempenham neste espaço público, podendo fazer parte das performances e das interações do grupo. O uso do smartphone em particular – também ao nível do manuseamento –, não parece, usualmente, atrapalhar os momentos de lazer, dado haver um consentimento generalizado e ser uma prática comum à maioria. Lembramos o exemplo de uma família observada: pai, mãe e dois filhos que jantavam no shopping; um dos filhos ia falando com o irmão e manejando o seu smartphone; a mãe atendeu uma chamada e passou-a ao pai. O uso de dispositivos por aquela família fazia-se com grande naturalidade, como parte da dinâmica familiar. Usarem os aparelhos não os impedia de falarem entre si, nem criava um ambiente hostil. Isso não significa que não haja casos com situações constrangedoras. Assistimos a várias situações desconfortáveis em casais, em que um dos cônjuges usava o telemóvel por largos períodos, deixando o outro carente de atenção e a deixar transparecer o seu incómodo. Noutros casos, os dois

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membros do casal utilizavam ininterruptamente o smartphone sem nunca se olharem ou conversarem. Aqui a estranheza pode até emergir mais facilmente em quem assiste – a audiência pública –, que pode ser levado a reparar em relacionamentos pessoais cujos membros são capazes de estar longos períodos frente a frente sem proferirem uma única palavra. Mas as pessoas observadas pareciam estar bem com a situação. Neste sentido, somos levados a alinhar com estudos como o de Lee Humphreys (2005) acerca do papel disruptor do telemóvel, no que concerne à normatividade vigente nos contextos de interação em espaços públicos. Todavia, o telemóvel também pode funcionar como um sinal com o qual se reivindica os limites da ação alheia (Goffman, 1979), constituindo assim mais um elemento defensivo face às possibilidades de interação em espaços públicos. Ou seja, pode constituir-se como um “porto de abrigo” para os singles, dando-lhes alguma proteção ao longo do seu desempenho, perante as possíveis intromissões da audiência, funcionando como garantia da privacidade em público, na sua versão de isolamento dos demais e de fechamento à sociabilidade eventual. Portanto, há diferentes formas de vivenciar o espaço público com a participação dos dispositivos móveis, o que evidencia uma certa liberdade quanto ao espaço em si, uma liberdade que permite que cada um o experiencie à sua maneira. Segundo Certeau (1990), o que realmente conta é a experiência e vivência do espaço, na medida em que é dela que emerge uma permanente invenção do quotidiano. Ir ao centro comercial na Covilhã é, para alguns residentes na cidade, uma prática quotidiana, sendo que cada um faz a sua apropriação do espaço. A nossa observação sugere, porém, uma tendência: o uso de dispositivos móveis naquele contexto interfere nas práticas de privacidade, mas não o faz a favor de um incremento da sociabilidade pública do lugar; num aparente paradoxo, parece, sim, reforçar em simultâneo a exposição do privado e o isolamento entre indivíduos e ‘células’ sociais. Referências bibliográficas Arendt, Hannah (2001) [1958]. A Condição Humana. Lisboa: Relógio D’Água. Carvalheiro, J. R. (2008). Que margens tem o urbano? Modos de olhar e de interagir entre a cidade e as serras. In D. Vaz (Org.). Cidade e Território. Identidades, Urbanismos e Dinâmicas Transfronteiriças. Oeiras: Celta Editora (pp.47-64).

O QUOTIDIANO TECNOLOGIZADO: GERINDO SITUAÇÕES

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Certeau, Michel (1990). L’invention du quotidien: 1. arts de faire. Paris: Gallimard. Chadwick, A. (2013). The Hybrid Media Systems: politics and power. Nova Iorque: Oxford University Press. Goffman, E. (1993) [1959]. A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias. Lisboa: Relógio d’Água. Goffman, E. (1966). Behavior in Public Places. Nova Iorque: Free Press. Goffman, E. (1979) [1971]. Relaciones en Público. Madrid: Alianza Editorial. Habermas, J. (2012) [1962]. A transformação estrutural da esfera pública. Investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Humphreys, L. (2005). Cellphones in public: social interactions in a wireless era. New Media & Society, Vol. 7 (6), pp. 810-833. Lasen, A. (2005). Mobiles in public spaces. Disponível em: http://eprints.ucm. es/6477/1/WFS4_UnderstandingMobilePhoneUsersAndUsage.pdf Ling, R. (2008). New Tech, New Ties: how mobile communication is reshaping social cohesion. Cambridge: MIT. Manovitch, L. (2002). “The Poetics of Augmented Space”, (consultado em janeiro de 2015: http://manovich.net/content/04-projects/033-the-poeti cs-of-augmented-space/31_article_2002.pdf ).  Meyrowitz, J. (1986). No Sense of Place: the impact of electronic media in social behavior. Nova Iorque: Oxford University Press. Plant, (2001). On the mobile: The effects of mobile telephones on social and individual life. http://www.momentarium.org/experiments/7a10me/sadie_ plant.pdf Sennett, R. (1992). The Fall of Public Man. New York: W. W. Norton. Schutz, Alfred. (1979). Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar. Weintraub, J. e Kumar, K. (1997). Public and Private in Thought and Practice. Chicago: University of Chicago Press.

TERCEIRA PARTE

Ecrãs e imagens

CAPÍTULO 10

A UBIQUIDADE DO ECRÃ Catarina Rodrigues

“Talking Statues”63 é o nome de um projeto que foi notícia no Verão de 2014. Trata-se de uma iniciativa que procura incentivar as pessoas a tirar os olhos do ecrã do telemóvel e a observar o mundo à sua volta. As estátuas da Rainha Vitória, de Sherlock Holmes e de Peter Pan, estão entre as 35 que em Londres e Manchester ganharam voz através de atores e comediantes, dando informação aos transeuntes, curiosamente, através da utilização do próprio dispositivo. Esta iniciativa ilustra, ainda assim, uma chamada de atenção em relação ao alheamento em que muitas vezes nos encontramos face ao que nos rodeia, vivendo mergulhados no mundo que nos é apresentado no ecrã dos dispositivos móveis. Essa alienação característica dos nossos dias pode ter contornos mais inquietantes. Num estudo desenvolvido pela Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, juntamente com uma fundação pela segurança no trânsito64, foram avaliados 1691 acidentes em veículos com uma câmara instalada que permitia analisar o comportamento de jovens condutores (com idades até 19 anos). Vários vídeos mostram que os jovens olham para o ecrã do telemóvel ou smartphone e teclam enquanto conduzem. Alguns chegam a estar seis segundos sem olhar para a estrada. O uso do telemóvel ao volante constitui, neste estudo, a segunda maior causa de acidentes (12%) somente antecedida pela distração provocada pela conversa com outros passageiros (15%). Estes dois exemplos, observados em diferentes contextos, indiciam alterações sociais e culturais que merecem ser analisadas. No livro com o sugestivo título Ecrã Global, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy abordam a proliferação de ecrãs caraterística da contemporaneidade, 63 64

http://www.talkingstatues.co.uk/ http://goo.gl/Utp9Wo

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sem esquecer toda uma evolução. Partem da tela do cinema, passando pela televisão e chegam a um tempo em que os ecrãs se multiplicam, pensando no computador e na sua portabilidade, nas consolas de jogos de vídeo, nas câmaras fotográficas digitais, nos telemóveis, nos smartphones, nos tablets, entre tantos outros. A sua presença é ubíqua. “Durante muito tempo, o ecrã-cinema foi único e incomparável; hoje perde-se numa galáxia cujas dimensões são infinitas: eis a época do ecrã global” anunciam os autores (Lipovetsky e Serroy, 2010: 10). Partindo desta constatação, aqui enquadrada no âmbito do projeto “Público e Privado nas Comunicações Móveis”, o presente trabalho procura analisar a utilização que os cidadãos, de diferentes idades e em contextos diversos, fazem dos dispositivos móveis. Quais as funcionalidades mais usadas nos smartphones? Quais as preferências dos utilizadores destes aparelhos, considerando os diferentes tipos de ecrã que utilizam? Quais as mudanças comportamentais que identificam? Até que ponto estamos dependentes deste tipo de dispositivos? A análise desta utilização é interessante, sobretudo se comparada com outros meios, como por exemplo o computador, considerando também diferentes perspetivas geracionais. Para isso será utilizada uma metodologia assente, por um lado, na realização de focus groups e, por outro lado, nos dados obtidos através de um inquérito telefónico representativo da população nacional utilizadora de smartphones. Entre as funções mais usadas e as preferências dos utilizadores relativamente a este tipo de dispositivos, os resultados indicam tendências relativas ao estatuto que os smartphones atingiram enquanto objetos imprescindíveis. 1. Mobilidade e portabilidade No livro Comunicación Móvil y Sociedad. Una perspectiva global (Castells et al., 2007) são colocadas questões relacionadas com as transformações na vida pessoal e familiar, nas várias relações que se estabelecem em sociedade e nas múltiplas tarefas que um simples telemóvel nos permite desempenhar a partir de qualquer lugar. Este parece ser o expoente máximo da eliminação das barreiras temporais e geográficas preconizado por McLuhan ao dizer que “o globo não é mais do que uma vila” (1990:19). Castells (2002) traçou as principais características do novo paradigma da tecnologia da informação, que representam a base da sociedade: informação como matéria-prima; capacidade de penetração dos efeitos nas novas tecnologias; lógica das redes; flexibilidade e capacidade de

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reconfiguração; e convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado. Quando nos referimos às comunicações móveis, pensamos em dispositivos como telemóveis, smartphones e tablets entre outros, que aliados à Internet permitem a interação e a partilha, ao mesmo tempo que definem, em certa medida, a identidade do utilizador. Para explicar o que é um smartphone, Ahonen (2010) aponta uma descrição simples: um telemóvel que tem um sistema operativo no qual os utilizadores podem instalar aplicações e dá exemplos como o Android (Google) ou o iOS (Apple iPhone). O autor adianta contudo, que a definição pode complexificar-se, se considerarmos a variedade e as múltiplas possibilidades existentes no mercado. “Inicialmente concebidos como dispositivos de comunicação profissional destinados a um mercado de elite, os dispositivos móveis tornaram-se produtos de consumo de massas, instalando-se nas práticas de comunicação de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo” (Castells et al, 2007). António Fidalgo (2009) considera o telemóvel o grande meio de comunicação de massas do nosso tempo. Neste ponto devemos referir a ideia de mass self communication de Castells (2009), uma comunicação que é pessoal, centrada no indivíduo e por ele experenciada, mas que também é de massas pela possibilidade de chegar a uma vasta audiência. Como diria Mark Deuze (2012) as nossas vidas estão entrelaçadas com os media. Deuze considera, no entanto, que esse facto não pode ser reduzido à utilização de smartphones ou à participação em redes sociais como o Facebook. Trata-se de um fenómeno mais abrangente, que deve ser pensado no contexto da importância da evolução dos meios, a “arma suave” como bem designou Levinson (1998). Mas as especificidades de meios de comunicação mais recentes, com ênfase nos dispositivos móveis, contribuem para estes estejam provavelmente mais impregnados que nunca nas nossas vidas. Deuze não defende que estas sejam completamente determinadas pelos media, mas “gostemos ou não, todos os aspetos da nossa vida estão relacionados com eles” (2004:6) e dá os exemplos da vida profissional, das relações pessoais e do lazer. Um grande impulso para esta realidade foi dado por formas de comunicação mais recentes que Deuze enquadra na ideia de Castells já referida, a mass self communication. “A lógica em rede do processo comunicativo converte-o num canal de comunicação de grande volume, mas com um nível considerável de personalização e interactividade” (Castells et al., 2007). Na caracterização que faz do telemóvel relativamente aos outros meios de comunicação

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existentes, Ahonen (2009: 62) diz precisamente que se trata do primeiro meio de massas verdadeiramente pessoal. O autor refere-se ao facto da sua génese assentar num simples telefone, um meio de comunicação interpessoal, e desempenhar hoje muitas funções que não são de massas, como ser um utensílio de moda ou ter capacidade para captar e armazenar fotografias (Ahonen, 2010). O telemóvel tem uma natureza relacional, contudo “incorpora rasgos e práticas de consumo específicas que o diferenciam” (Aguado e Martínez, 2008: 197). Quando falamos em comunicação móvel, pensamos em “dispositivos que têm em comum o facto de ser pessoais, portáteis e digitais, podem proporcionar informação personalizada e entretenimento, e têm como fonte de dita informação ou conteúdos, outro indivíduo, grupo ou organização” (Katz, 2008: 21). “Tal como a Internet, o telemóvel é, simultaneamente, um meio de comunicação interpessoal, com elevados níveis de interatividade, e um meio de comunicação de massas, oferecendo serviços como a televisão móvel” (Ganito, 2009: 70). Associada ao sucesso do telemóvel está a forma como se desenvolveu a tecnologia, a existência de produtos para todos os gostos e aos mais variados preços, o design diferenciado, a dispensa de conhecimentos informáticos e o lado prático da sua utilização, isto é, a conveniência e utilidade de ter telemóvel, como se de uma extensão de nós mesmos se tratasse (o que diria McLuhan sobre este fenómeno?). “O telemóvel deixou de ser um acessório de luxo, para se tornar um elemento identitário indispensável ao indivíduo contemporâneo” (Fidalgo e Canavilhas, 2009: 2). A apropriação que atualmente fazemos desse objeto nos múltiplos contextos e relações que estabelecemos é de tal ordem, que o esquecimento do telemóvel é sinónimo de uma espécie de vazio e de uma necessidade urgente de colmatar a falta que este dispositivo exerce ao nível pessoal, profissional e social. Se localizados numa área sem rede parecemos perdidos na “aldeia global”, como se ficar incontactável, nem que seja por umas horas, nos deixasse desfasados da realidade. Não é por acaso que os utilizadores referem mesmo um sentimento de dependência face a este dispositivo, conforme iremos observar na parte empírica deste trabalho. Considerando ideias defendidas por Bauman, Juan Miguel Aguado fala da passagem para um ecossistema mediático líquido, impulsionado pelo aparecimento dos meios móveis. A volatilidade, a fluidez e a velocidade caracterizam a sociedade líquida, segundo Bauman (2000). A personalização, a fragmentação, a diluição entre o espaço público e privado, a estreita vinculação consumo/ identidade são alguns dos pontos

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que, segundo Aguado, caracterizam o meio líquido65. A comunicação móvel permite, de facto, a existência desse espaço híbrido entre o público e o privado, como defende Feldmann (2005). Muitas contas no Twitter, que nasce precisamente como “uma resposta ao desafio da mobilidade desenvolvendo funcionalidades aptas a promover eficientemente a interatividade móvel” (Santaella e Lemos, 2010:61), refletem isso mesmo, misturam informação e opinião, assuntos de índole pessoal e assuntos de interesse público. Mas são também o espelho de uma realidade construída sob a égide do imediatismo e da mudança, fatores que modificam sobremaneira as relações pessoais. A utilização do telemóvel desenvolveu-se a um ritmo vertiginoso e tem, antes de mais, um lado prático e inegável que assenta numa característica básica das relações sociais, contactar e ser contactado, seja por voz, ou através da escrita. Mas as características estendem-se à organização pessoal e ao entretenimento, através da agenda, do calendário, do GPS, dos jogos e de outros elementos multimédia, do acesso à Internet, e consequentemente, à informação e difusão de conteúdos. Levinson classifica o telemóvel como um “pequeno aparelho com um enorme impacto” (2004: 52) e, através de diferentes perspetivas, faz uma análise às transformações que este tem provocado nas nossas vidas e na forma como comunicamos, desde logo pelo facto de permitir não só a receção, mas também a produção, de forma imediata, interativa e a longa distância. Para além da interatividade, os meios móveis “misturam modalidades antes formalmente separadas: mensagens, conversação, dados e informação audiovisual como música, fotos e vídeo são aplicações típicas cada vez mais utilizadas na interação social” (Katz, 2008:21). Gerard Goggin analisa a evolução do telemóvel através de várias vertentes: história, produção, design, consumo, representação. Também analisa as suas implicações na convergência dos média – fotografia, blogging, internet móvel e televisão móvel. “As câmaras digitais, especialmente as que são incorporadas no telemóvel, falam-nos também de como a vida é experimentada e partilhada em tempo real – o “poder do agora”. Uma fotografia pode assim ser contemplada imediatamente, no mesmo dispositivo que a realizou, e ser mostrada a outros, de tal modo que faz

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Estas ideias foram proferidas na conferência intitulada “De la cuarta pantalla al medio líquido: concepciones divergentes sobre la integración del medio móvil en el ecosistema mediático” proferida no 1º Encontro da Montanha subordinado ao tema “Jornalismo e Redes Móveis”, Covilhã.

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parte do mesmo evento que retrata” (Goggin, 2008: 224). A existência de telemóveis com câmara fotográfica incorporada, com cada vez melhor resolução, favorece a partilha, as práticas participativas e até o aparecimento de repórteres ocasionais. “As imagens dos primeiros modelos tinham fraca resolução e faltava-lhes qualidade profissional, mas até uma má fotografia pode ser digna de crédito, além de que a qualidade fotográfica está a aumentar a cada dia que passa” (Gillmor, 2005: 50). Cenários de catástrofes têm sido, por norma, momentos em que estas práticas se tornaram evidentes. Para Goggin, “as câmaras móveis também tiveram um papel relevante na vida pública, e a sua capacidade ubíqua de captar imagens incidiu no âmbito dos media e das notícias” (2008:224). Ahonen fala mesmo na “Golden Decade of Photography” (2010:121). A abertura, o trabalho em rede, o contexto (através dos serviços de localização, por exemplo) e a participação dos utilizadores são aspetos que segundo Aguado e Martínez (2008:213) caracterizam este tipo de comunicação. Se considerarmos a captação e difusão de determinados episódios não podemos ignorar o papel dos meios de comunicação móveis hoje ao dispor do comum cidadão que facilmente podem ser publicados num blog ou difundidos nas redes sociais. “No âmbito da informação, a instantaneidade que proporciona o telemóvel para registar a realidade é, sem dúvida, a sua maior vantagem. O elevado nível de implantação e o facto de que a maioria das pessoas sempre o leva consigo, convertem o utilizador em repórter ocasional que pode captar imagens da realidade, em qualquer momento e lugar. Permitindo que em determinados contextos (situações de emergência e risco social), as fotos do utilizador móvel sejam mais úteis desde o ponto de vista comunicativo” (Adelantado, 2008: 305). Para André Lemos, o que está em causa é “uma nova relação entre as tecnologias informacionais e as dimensões do local, do território, da comunidade e da mobilidade” (2008: 1). Estas características permitem recuperar a ideia defendida por António Fidalgo e João Canavilhas que se referem ao telemóvel como “o meio permanente e ubíquo da informação e da comunicação” (2009: 15). Howard Rheingold estuda temas relacionados com os usos da tecnologia e o seu impacto na sociedade. No livro Smart Mobs analisa as consequências sociais, políticas e económicas da utilização crescente de aparelhos que combinam telemóvel, computador pessoal e internet. “Quando olhamos para todo este conjunto de mudanças e para a forma como esta tecnologia é usada, vemos um tipo de mudança sistémica, mas

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talvez ainda mais excitante do que a mudança que se produziu com a explosão da alfabetização a propósito da invenção da imprensa”66. 2. Ecranosfera Para Aguado e Martínez (2008) o “quarto ecrã”, conceito também usado por Miller (2014), é herdeiro e ao mesmo tempo transformador dos outros ecrãs já existentes: cinema, televisão e computador. A informação no telemóvel será necessariamente curta, pelo tamanho do ecrã, “mas também pela forma como essa informação é recebida, nomeadamente na fragmentação quotidiana dos indivíduos” (Fidalgo e Canavilhas, 2009:15-16). No seguimento destas ideias, os autores consideram que o “quarto ecrã” poderá ser uma montra dos demais, estabelecendo ligações e remetendo para outros formatos. Estas práticas favorecem a fragmentação em diversos níveis: conteúdos, temas, publicações e utilizadores, que dependendo do contexto ou das necessidades/interesses procuram/partilham os seus interesses no caos informativo. “O ecrã tornou-se um instrumento de comunicação e de informação, um intermediário quase inevitável na nossa relação com o mundo e com os outros. Foi penetrando no nosso espaço vital de modo diverso, ganhando em presença simbólica o que tem vindo a perder em espessura material” (Pinto-Coelho, 2010: 19). Lipovetsky e Serroy (2010) analisam a proliferação de ecrãs, partindo dos desafios que se apresentam ao cinema em particular, mas considerando as alterações verificadas ao longo da sua evolução, até porque o ecrã cinematográfico é hoje apenas mais um entre tantos outros. “Ecrã vídeo, ecrã miniatura, ecrã gráfico, ecrã portátil, ecrã táctil: o século que se anuncia é o do ecrã omnipresente e multiforme, planetário e multimediático” (Lipovetsky e Serroy, 2010: 10). Para os autores a expressão que dá título ao livro “ecrã global” deve ser entendida em vários sentidos. Esta conceção “remete para a nova potência planetária da ecranosfera, para o estado ecrãnico generalizado que é possibilitado pelas novas tecnologias de informação e da comunicação” (Lipovetsky e Serroy, 2010: 21). Esta ideia é associada à comunicação em rede e conduz os autores a referências à informação, ao entretenimento, à arte, à cultura, enfim, à ideia de que “nada escapa, de maneira nenhuma às redes digitais da nova ecranocracia. Toda a vida, todas as nossas relações com o mundo e com os outros estão 66

http://goo.gl/4fLhHJ

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cada vez mais mediatizadas por um sem número de interfaces pelos quais os ecrãs não param de convergir, de comunicar, de se interconectar” (Lipovetsky e Serroy, 2010: 21). Gustavo Cardoso (2013) enquadra a “sociedade dos ecrãs” no contexto de um modelo de comunicação em rede, no seguimento da mass self communication anunciada por Castells (2009). Neste sentido, “o evoluir da apropriação social das tecnologias de comunicação e informação apresenta-nos um mundo social cada vez mais povoado de múltiplos ecrãs nos quais a mediação ocorre sustentada num processo de interação em rede” (Cardoso & Quintanilha, 2013: 15). Assinala-se assim, uma mudança de paradigma em relação ao modelo de comunicação, num contexto no qual o utilizador pode desempenhar diferentes papéis e onde “as tecnologias para massas interagem com tecnologias interpessoais” (Cardoso, 20013: 30). Estas transformações são contextualizadas por Lipovetsky e Serroy no âmbito da “sociedade hipermoderna” dizendo que “da era do vazio passámos à era da saturação, do excessivo, do superlativo em todas as coisas” (2010: 69). A era hipermoderna é para os autores “contemporânea de uma verdadeira inflação de ecrãs” (Lipovetsky e Serroy, 2010: 249). A imersão dos utilizadores nesta “ecranosfera” atesta a importância deste fenómeno nas formas de comunicação e interação, aos mais diversos níveis e em contextos distintos. “O ecrã assume a fronteira que separa a relação entre o artefacto verdadeiramente dito e o seu recetor. Cinema, Televisão ou Média Interativos dependem da representação visual para existir, contudo a relação que procuram com os seus recetores, sejam eles passivos ou ativos, é de envolvência total” (Zagalo, 2010:35). A ecranização aliada à portabilidade constante e à miniaturização promete expandir-se ainda mais. Veja-se o aparecimento dos smartwatches de diferentes marcas e design que têm aparecido no mercado. “Tudo isto se miniaturiza cada vez mais para fazer do telefone celular – o processo está em curso – ou até mesmo o mostrador do relógio de pulso, o ecrã recetor de todas as possibilidades: internet, fotos, televisão, cinema” (Lipovetsky e Serroy, 2010: 250). Com o seu mais recente relógio inteligente (que é também uma extensão do smartphone), a Apple, por exemplo, promete “inaugurar um novo capítulo no relacionamento entre as pessoas e a tecnologia”67. Para além de mostrar as horas, o dispositivo apresenta outras funções. A troca de mensagens pode ir além de palavras e imagens, os utilizadores têm mesmo a possibilidade de enviar o registo da sua 67

https://www.apple.com/watch/

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frequência cardíaca e toques silenciosos sentidos no pulso. Para além disso, não deixa de ser curioso serem-nos apresentados relógios que permitem atender chamadas, num momento em que estávamos já habituados a ver as horas no telemóvel. Se por um lado observamos esta multiplicação dos ecrãs individuais, que funcionam como extensão de nós mesmos (considerando o exemplo anterior, de um modo até mais sensorial) e nos ligam em rede, assistimos também à “enormidade, à imensidão de ecrãs gigantes que são colocados nos estádios, nas manifestações políticas, nos concertos e até mesmo nas igrejas para permitir ao público de massas acompanhar o que se passa no campo, na tribuna, no palco e no altar” (Lipovetsky e Serroy, 2010: 250). Um estudo de Melro e Silva (2013) analisa a forma como a sociedade se encontra hoje organizada em torno de ecrãs, e como essa organização pressupõe um processo de apropriação dos novos media diferenciada do passado. As autoras consideram mesmo que “a forma como se investigam os novos média não pode ser desligada do estudo da utilização de ecrãs” (Melro e Silva, 2013:171). O ecrã como fronteira entre o dispositivo e o indivíduo que recebe ou acede aos conteúdos, como descreveu Zagalo (2010), já citado neste trabalho, é apontado como “o lado visível de um processo de convergência em curso, que a curto ou médio prazo se fará sentir de forma mais sistemática nas lógicas de consumo e de sociabilidade dos utilizadores” (Melro e Silva, 2013:173). É ainda sublinhada a “relação de quase intimidade entre os ecrãs e os seus utilizadores, verificada com a propagação de cada vez mais ecrãs táteis em todo o lado e em todos os artefactos tecnológicos” (Melro e Silva, 2013:174). Esta lógica foi significativamente influenciada pela ligação dos telemóveis à Internet. Para além disso, a relação do telespetador com o ecrã de cinema ou com o ecrã televisivo é diferente da relação do utilizador com o ecrã do computador e difere mais ainda da relação com o ecrã do tablet ou do smartphone, em grande medida pela tatilidade, em que assentam estes últimos. Juan Miguel Aguado refere-se à era post-PC, uma expressão que recupera de Steve Jobs aquando do lançamento o iPad e que procura simbolizar uma mudança para a utilização “dispositivos mais pequenos, velozes e polivalentes cujo uso gira em torno da disponibilidade ubíqua de conteúdo e comunicações” (2013:14). Lipovetsky considera que “os telemóveis de hoje já rivalizam com os computadores portáteis, pois os telemóveis são verdadeiramente portáteis” (Lipovetsky, 2010:156) e dá o exemplo da possibilidade de aceder ao email enquanto se caminha na rua. É a “portabilidade permanente” de que falava Fidalgo e Canavilhas (2009). Por constituir um elemento fundamental da vida quotidiana, do

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trabalho, das relações que estabelecemos e da forma como comunicamos, procurámos com este trabalho observar a relação que os utilizadores de diferentes idades têm com os dispositivos móveis, nomeadamente nesta relação específica com o ecrã do computador e com o ecrã do smartphone/ tablet. “A rede ecrãnica transformou os nossos modos de vida, a nossa relação com a informação, o espaço-tempo, as viagens e o consumo: tornou-se um instrumento de comunicação e de informação, um intermediário quase inevitável na nossa relação com o mundo e com os outros. O ser é, cada vez mais, ser ligado ao ecrã e interconectado nas redes” (Lipovetsky e Serroy, 2010: 251). Estes autores sublinham ainda a forma como os dispositivos móveis promoveram a alteração de dinâmicas comunicacionais, acentuando por um lado a individualização, por outro a redução de distâncias que nos liga aos outros e ao mundo. “Através deste ecrã global, podemos aceder às informações de imediato. Temos, portanto, um universo do ecrã que contribui para a individualização e para a conquista de uma consciência planetária” (Lipovetsky, 2010: 157). Provavelmente estas alterações contribuem para que a nossa atenção se centre em diferentes dispositivos tecnológicos, sobretudos os móveis, que nos acompanham de forma constante. Parece estar aqui subentendida a ideia partilhada por Sherry Turkle no seu livro Alone Together, quanto mais ligados nos encontramos através da tecnologia, mais sós ficamos. Basta pensar numa imagem, cada vez mais habitual, e que será confirmada adiante, de um grupo de amigos reunidos num mesmo local, sendo que cada um olha para o ecrã do seu próprio telemóvel, interagindo provavelmente com quem não está a partilhar o mesmo espaço, mas faz parte da sua rede. Turkle fala ainda da ansiedade criada pela realidade de estarmos constantemente contactáveis: responder a emails, mensagens, chamadas. Para a autora, esta voracidade contribui para a perda de espaço para a reflexão e do direito a simplesmente desligarmos, matando a possibilidade de se viver o aqui e agora real68. No contexto de um concerto ou de um espetáculo, atualmente o cenário mais comum é um conjunto de braços levantados que captam o momento através dos dispositivos móveis, desperdiçando a oportunidade de assistir simplesmente ao evento preferindo captar, guardar e talvez partilhar, para mais tarde recordar. “Daí a necessidade de nos interrogarmos sobre o ecrã, sobre a sua evolução enquanto objeto, enquanto sítio de exposição ou suporte de informação e de imagem, enquanto mediador das nossas

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http://www.publico.pt/temas/jornal/cada-vez-mais-ligados-cada-vez-mais-sos24956552

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relações com as tecnologias, e sobre as suas possíveis implicações para o modo como pensamos, comunicamos e interagimos” (Pinto-Coelho, 2010: 19). 3. Metodologia de investigação A metodologia utilizada no presente trabalho baseia-se na realização de focus groups e também nos dados obtidos através de um inquérito telefónico representativo da população nacional utilizadora de smartphones. De referir que os focus groups consistem numa metodologia qualitativa que visa evidenciar ideias, motivações e identificar tendências dos participantes de um determinado grupo (ou vários) em relação a um tema. O focus group tem vantagens relacionadas com a reunião presencial. Nesse sentido, importa sublinhar, por exemplo, a interação gerada entre os participantes (Strelow, 2010: 29), mas considerar também os inconvenientes que daí podem resultar como “a possibilidade de circunstancialmente as opiniões serem influenciadas pelo comportamento de um integrante mais exuberante do grupo, por exemplo” (Costa, 2006: 183). Neste caso concreto, esta componente qualitativa indica tendências e é complementada com a pesquisa quantitativa que caracteriza os inquéritos. No âmbito do projeto Público e Privado nas Comunicações Móveis foram realizados cinco focus groups69: adultos com formação superior, seniores com formação superior, adolescentes entre os 15 e os 19 anos a frequentar o ensino secundário (estes dividiram-se entre uma sessão mista, uma exclusivamente feminina, e uma terceira, exclusivamente masculina). A troca de ideias desenvolvida nos diferentes grupos teve por base um guião com temas previamente definidos (perguntas e palavras-chave) de forma a promover uma discussão livre e aberta, minimamente direcionada, com a exposição das respostas e reflexões dos intervenientes. O alinhamento para as várias discussões foi estruturado em áreas como a utilização dos dispositivos no quotidiano dos indivíduos, a introdução deste “novo” elemento na vida das pessoas e as mudanças comportamentais registadas. Foram também abordadas as consequências de uma eventual perda do objeto e o valor/significado atribuído ao smartphone/telemóvel; 69

O trabalho relacionado com os focus groups foi desenvolvido pela equipa de investigação do projecto projeto “Público e Privado nas Comunicações Móveis”, coordenado por José Ricardo Carvalheiro (projeto europeu FEDER CENTRO-07-ST24-FEDER-002017).

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a dualidade telemóvel/computador e as funções privilegiadas em cada um70. São observadas as mudanças na forma de comunicação propiciadas pelo smartphone e tablet (diferenças, vantagens e desvantagens); as circunstâncias e o tipo de funcionalidades (SMS, chamadas telefónicas, chats de conversação, etc.); o uso do smartphone/telemóvel em presença de outros atores; a utilização do aparelho a ser observada e, inclusivamente, sujeita a uma participação coletiva (isto é, todos os elementos do grupo a olhar para o ecrã); e a possibilidade do smartphone e do tablet serem substitutos de outros aparelhos (câmara de fotografar e filmar, discos de armazenamento, etc.). O método para a análise dos focus group realizados assentou na definição de categorias e subcategorias que se perceberam ser transversais. Preparou-se uma grelha com oito categorias, algumas das quais subdivididas, que permitisse analisar a informação extraída das diferentes discussões. As categorias estabelecidas foram as seguintes: utilização do telemóvel; valores ligados ao seu uso; diferentes dispositivos, diferentes objetivos; perceção do impacto do telemóvel/smartphone sobre a vida; privacidade no espaço digital; perceções geracionais sobre o uso do telemóvel; extensão do self; e vigilância. Apenas nos focaremos em alguns destes aspetos, procurando responder às questões centrais que norteiam o presente trabalho, nomeadamente: Quais as funcionalidades mais usadas nos smartphones? Quais as preferências dos utilizadores destes aparelhos, considerando os diferentes tipos de ecrã que utilizam? Quais as mudanças comportamentais que identificam? Até que ponto estamos dependentes deste tipo de dispositivos? 4. Resultados e discussão De um modo geral, não se registou disparidade no que diz respeito à utilização que é feita do smartphone, considerando as suas funcionalidades, ainda que alguns grupos tenham enfatizado mais alguns aspetos do que outros. Foram referidas caraterísticas como o envio de mensagens, a realização de chamadas, o envio de emails, o acesso às redes sociais 70

Nos diferentes grupos focais foram abordados outros temas como a captação e partilha de imagens, com especial ênfase na dicotomia público/privado, bem como tópicos relacionados com o controlo e a vigilância, a permissão ou restrição que os indivíduos aplicam ao armazenamento de dados no dispositivo móvel, entre outros, que não serão desenvolvidos no presente trabalho.

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(especialmente o Facebook, sendo que foram apontadas também outras plataformas como Twitter, Instagram, LinkedIn, Youtube e Google+), a leitura de notícias (nomeadamente por parte dos seniores e dos adultos licenciados), os jogos como forma de entretenimento (predominante entre os elementos dos grupos de adolescentes), fotografia, música, agenda e organizer. A necessidade de comunicar e de estar sempre contactável é um dos pontos mais enfatizados nos diferentes grupos a propósito da utilização do smartphone. Esta ideia é reforçada no grupo dos seniores, com a referência à questão da segurança, no sentido do smartphone funcionar como instrumento de ajuda. Este grupo enaltece funcionalidades básicas como fazer e receber chamadas, mensagens e emails. A.,71 do grupo de adultos licenciados, sintetiza da seguinte forma o uso que faz do smartphone: “Uso o telemóvel para tudo e mais alguma coisa” e aponta tarefas quotidianas como aceder à conta bancária, ao email ou a leitura de documentos em diferentes formatos. “O telemóvel passou a ser uma ferramenta de trabalho e um acessório de comunicação, que não dispensa para mim uma conversa cara-a-cara” (A.). É interessante observar a ideia sublinhada a propósito da importância da comunicação presencial, ainda que seja também pertinente questionar: será mesmo assim? No grupo de adultos licenciados foi mesmo referida a expressão “utilização intensiva” (AS), também reforçada por outro elemento do mesmo grupo (PP). As adolescentes femininas também denunciam uma certa dependência relativamente ao telemóvel. (MD e A). “Uso para quase tudo” é uma expressão firmada entre algumas das entrevistadas, remetendo diretamente para a dualidade smartphone versus computador. “Neste momento os telemóveis já estão tão bem equipados que quase que substituem um computador. Já me aconteceu muita vez estar a fazer trabalhos de casa, precisar de fazer uma pesquisa e em vez de usar o computador, usar o telemóvel” (A., grupo de adolescentes femininos). De um modo geral, a maior utilização do telemóvel por parte dos adolescentes verifica-se sobretudo após as aulas, como forma de prolongamento do convívio entre as pessoas. No grupo dos adultos é referida a prática de desenvolver diariamente determinadas tarefas com o smartphone, que antes eram realizadas no computador. Ler notícias, fazer pesquisas e consultar outro tipo de informações são exemplos apontados. Mas o tamanho do

71

Os nomes dos intervenientes são substituídos pelas iniciais dos nomes, tal como consta no relatório relativo aos focus group, elaborado pela equipa de investigação do projeto.

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ecrã levou os intervenientes a clarificar a opção por diferentes dispositivos consoante o contexto. Há tarefas que preferencialmente são desenvolvidas no computador, por exemplo, a gestão de perfis – ideia consensual entre os adultos licenciados – pelo conforto e sensação de segurança, por ser prático (ecrã mais amplo). Por outro lado, há ações que não são acessíveis ao computador, como fotografar através do Instagram (mas curiosamente há quem prefira publicar imagens através do computador). No que diz respeito à utilização do smartphone para fotografar, descrevem-se sobretudo situações com amigos e relacionadas com atividades como viajar ou que não sigam a rotina do quotidiano, ou momentos importantes, entre outros. Estas considerações são confirmadas pelos dados obtidos através do inquérito telefónico. No caso de J., este prefere refletir durante algum tempo sobre publicar ou não a fotografia e prefere o computador para fazer o upload, retocá-la ou não, e publicá-la. Apenas A. se demarca dos restantes colegas, dizendo já quase evita ligar o computador, enquanto os outros estão em consonância quanto às vantagens do computador sobre os restantes dispositivos como o telemóvel e o tablet para a edição e publicação, sobretudo de imagens. No grupo de adolescentes masculino, o acesso a redes sociais é feito preferencialmente por computador e a justificação apontada volta a ser o tamanho do ecrã. Para as adolescentes femininas, a vantagem do computador está também em poder ter várias páginas abertas (D.), já que nem todos os smartphones permitem isso. O tablet é também utilizado por algumas delas, pelas vantagens de um ecrã ligeiramente maior do que o de um smartphone, algo que associam a uma maior facilidade e praticabilidade (A., e D.) MCB do grupo dos seniores diz fazer tudo o que precisa no iPad, como ler notícias, fóruns, fazer pesquisas, etc. Quanto às imagens capturadas, armazena no smartphone até serem transferidas para o computador, onde é possível “ter uma visão mais ampla” (JF e SS). No caso das adolescentes femininas, C., diz ter preferência pelo computador devido ao tamanho do ecrã. “No entanto, posso ter sempre o telemóvel ligado, por causa do Instagram ser uma aplicação que utilizo no telemóvel”, explica. Entre um computador e o telemóvel, dentro do grupo de adolescentes misto, discute-se a portabilidade e a facilidade de estar em contacto com os colegas (AG). J. sente maior facilidade em ser observado (pelos que o rodeiam) quando está ao computador. Estar a falar no Facebook, numa divisão da casa, permite maior privacidade. AG diz ser mais “discreto”. O computador é preferível para jogar, ouvir música (considerando as plataformas que armazenam e disponibilizam música online) ver vídeos, séries, etc.

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A maioria diz que o acesso às redes sociais é feito por computador, no entanto, alguns intervenientes preferem o tablet, pelos seguintes motivos: rapidez, ecrã maior do que o do telemóvel, conforto no visionamento de imagens, por exemplo, e dimensões que permitem uma fácil portabilidade. A questão da usabilidade é relacionada com determinados comportamentos considerados corretos ou incorretos. MD exemplifica por experiência própria: “Ainda no outro dia, estávamos no teatro eu e a Ana e estávamos um grupo de seis pessoas, tipo em roda e tudo calado, toda a gente com os telemóveis”. Ao mesmo tempo que têm consciência desta prática a que chamam “dependência”, também sentem a reprovação de outras gerações: “Os nossos avós acham um bocado estranho nós estarmos sempre agarradas ao telemóvel” (M.). Também as chamadas de atenção constantes feitas pelos pais são referidas: “Tu não largas o telemóvel...” (risos) (exemplo da mãe de D.). Efetivamente, os seniores queixam-se do comportamento dos jovens, concretamente no que se refere à utilização de auriculares e ao tempo dedicado aos jogos, evidenciam-se aspetos como dependência e alheamento. Pelas jovens são reconhecidas interferências e implicações prejudiciais do smartphone durante o trabalho, nomeadamente no que se refere à sua utilização intensiva. “Eu estava nas aulas e raramente utilizava o telemóvel ou se usava era para mandar uma mensagem ou para responder a alguém e agora ligo a internet, vou ao Facebook e passo a aula no Facebook (risos). E isso não acontecia antes, quando não tinha internet no telemóvel” (C). Os participantes concordam que em determinadas situações, o telemóvel pode tornar-se “desagradável” (considerando sobretudo o seu uso em conversas telefónicas). São dados vários exemplos: no local de trabalho, numa conferência, durante as aulas, no cinema, na missa, num casamento, num jantar, em reuniões familiares ou de outra ordem particular, num consultório, no teatro, na condução, etc. A ideia de perda ou ausência de telemóvel por um dia não causou grande impacto nos adolescentes masculinos. Para uns seria “tranquilo”, por se tratar de “curto espaço de tempo” (Z2). Se a privação fosse mais extensa “já custaria” (Z1). No grupo de adolescentes femininos são utilizadas expressões como “entrar em paranoia”. “Acho que o pior castigo que me poderiam dar, era mesmo ficar sem o telemóvel” (A). No caso dos adultos licenciados, a perda do telemóvel traduzir-se-ia na inconveniência de perder contatos, bem como na impossibilidade de comunicar em caso de emergência ou de alguma alteração na rotina. “Como uma pessoa já está tão habituada a estar em contacto com quem nos é próximo, se ficasse sem o telemóvel nem que fosse por um dia ou dois, para mim seria complicado” (D).

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Ainda assim, em relação ao uso dos telemóveis, no grupo de adolescentes exclusivamente masculinos um elemento diz fazer pouca utilização do dispositivo. Também no grupo de adolescentes misto surgiu um caso de pouca utilização do aparelho. Um elemento do grupo de adultos licenciados confessa não fazer muito uso do telemóvel nem mesmo para comunicações. É interessante cruzar estes dados com os resultados obtidos no inquérito telefónico nacional realizado no âmbito do projeto “Público e privado nas comunicações móveis”72. A amostra é composta por um total de 507 entrevistas finais a utilizadores de smartphone validadas, sendo que foi necessário efetuar mais 617 contatos, que corresponderam a utilizadores de telemóveis convencionais (ou seja, um total de 1124 pessoas). Neste ponto merece ser assinalado o facto de cerca de metade dos contactados ser possuidor de um smartphone. Em termos socio-demográficos, a maioria caracteriza-se por ter até 45 anos, do sexo masculino, com o 9º ano, ou mais, de escolaridade. Em termos globais, são os mais jovens e os que têm maior grau de escolaridade que fazem um maior aproveitamento das possibilidades oferecidas pelo dispositivo. Por outro lado, os mais velhos e os que têm menos escolaridade acabam por não aproveitar todas essas potencialidades, sendo que o desempenho não é muito diferente daquele que teriam com um simples telemóvel. Diariamente, o smartphone tem diferentes utilizações para além de fazer e receber chamadas (66%) ou enviar e receber mensagens de texto (52%), tem a função de entreter (jogar, ouvir música, ver vídeos, navegar na internet), enviar e receber emails (25%), usar redes sociais como o Facebook e o Twitter (38%), tirar fotografias, fazer vídeos e pesquisar informação. Entre os resultados obtidos é interessante observar que mais de metade dos entrevistados (55%) afirmou ter aumentado o consumo de informação (apenas 1% disse ter diminuído esse consumo). Cerca de 45% dos entrevistados consome notícias todos os dias ou quase, a partir do seu smartphone, sendo que apenas 10% dos entrevistados as partilha. As práticas de fotografar/filmar situações do quotidiano, eventos e encontros com amigos são comuns entre a maioria dos inquiridos. Família e viagens/férias são os temas mais captados pelas câmaras fotográficas dos

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O inquérito foi conduzido pela Consulmark durante o mês de Janeiro de 2015 com o acompanhamento dos responsáveis do projeto.

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smartphones, segundo 85% dos entrevistados. Estes dados coincidem com as opiniões expostas nos diferentes focus groups. De um modo geral, os utilizadores veem benefícios na utilização de smartphones com destaque para os seguintes pontos: estar em contacto com pessoas com as quais se preocupam (mais de 90%), gerir tarefas diárias e poder participar e partilhar questões coletivas (a rondar os 70%). O telemóvel é parte integrante da vida dos utilizadores, de tal modo que 72% assegura nunca o desligar e 46% diz dormir com ele ao lado da cama. A “dependência” em relação ao telemóvel regista-se também quando 42% dos entrevistados assume olhar para o ecrã e verificar frequentemente se tem mensagens ou chamadas perdidas, mesmo quando este não toque nem vibra. Conclusão Os dispositivos móveis, com ênfase no smartphone, parecem ter adquirido o estatuto de objetos imprescindíveis, omnipresentes e multifunções, influenciando a vida dos utilizadores e reconfigurando a forma como interagem em diferentes contextos. De um modo geral, os utilizadores veem benefícios na sua utilização. Em crescendo, e em alguns casos a sobreporem-se às funcionalidades básicas de telemóvel, destacam-se efetivamente as aplicações que caraterizam o smartphone (tem sido interessante observar o desenvolvimento verificado neste domínio, nomeadamente ao nível de oportunidades de negócio e de toda uma indústria que tem progredido nesta área). É nos seniores que se nota um menor aproveitamento das possibilidades que o smartphone apresenta, nomeadamente a fotografia, o acesso à internet e às redes sociais. A maioria dos elementos que participaram nos focus groups, à exceção dos seniores, serve-se de outras opções permitidas pelo smartphone para comunicar, nomeadamente as redes sociais e os seus espaços de conversação. Nos grupos de adolescentes está vincada a predileção por aplicações de jogos. Uma maior diversidade de utilizações e interesses verifica-se nos adultos licenciados, abarcando várias áreas da vida pessoal e profissional (agenda, horários, calendários, informações diversas). Identificam-se mudanças comportamentais que derivam da utilização dos aparelhos e sobretudo da sua portabilidade constante com influência nos estudos, no trabalho, nas relações pessoais, no acesso à informação e no entretenimento.

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A expressão “hoje em dia quase não se consegue viver sem o telemóvel” foi a mais vezes pronunciada, tal como “estar sempre em contacto”. Verifica-se uma dependência admitida pelos próprios adolescentes, que os seniores criticaram. Parece verificar-se uma necessidade constante e um desejo persistente de estar ligado em rede e sempre contactável que resulta da relação entre o utilizador e o objeto em causa. Ao smartphone é apontada, em geral, a insuficiência do tamanho do ecrã, enquanto o tablet e o computador permitem outras possibilidades a este nível. Esta tendência parece estar a inverter-se se considerarmos que também os ecrãs dos telemóveis têm aumentado, não só em tamanho, mas também em qualidade ao nível da resolução. Em contrapartida, as dimensões do smartphone possibilitam uma privacidade e portabilidade diferente daquela que aparelhos de maiores dimensões apresentam, conforme se verificou. Fica também patente a importância da adaptação de conteúdos a diferentes tipos de ecrãs. A este propósito veja-se o anúncio recente do jornal The New York Times relativo à intenção de criar estórias de uma frase, pensando no novo Apple Watch73. Como conclusões gerais, algumas ideias são constantes, nomeadamente a de “utilização intensiva”. Os adolescentes do grupo misto sentem mesmo que existe muita “dependência”. Ainda assim, e apesar dos momentos de alheamento que se possam verificar, não consideram que as relações interpessoais estejam comprometidas, pois há também a facilidade de dar continuação a conversas, marcar encontros, etc. (neste ponto a perspetiva sénior é menos condizente com a dos restantes). Será certamente interessante continuar a observar a importância crescente dos ecrãs e a sua influência na transformação de formas de interação e de comunicação. O telemóvel assume-se cada vez mais, não como uma extensão, mas como uma incorporação, sem a qual os utilizadores têm dificuldade em imaginar as suas vidas. A habituação ao smartphone entranhou-se, faz parte do dia-adia, e tornou-se imprescindível. O uso do aparelho contribui para o “estado ecrânico generalizado” em que vivemos e reconfigura inegavelmente os processos comunicacionais exponenciando a ubiquidade do ecrã.

73

http://goo.gl/ZGgTiO.

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CAPÍTULO 11

INSTANTFACES: IDENTIDADE E ESTÉTICA NAS SELFIES DE CELEBRIDADES – UM PRETEXTO PARA O (NÃO) DESVELAMENTO NOS AUTORRETRATOS DIGITAIS Ana Isabel Albuquerque

Introdução A Celebridade é um Plebeísmo Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade. A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas acções – ridiculamente humanas às vezes – que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da celebridade para espectaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade. Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.  E é por isso que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo-instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.  Fernando Pessoa, in Notas Autobiográficas e de Autognose

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Sociedade da tecnologia, sociedade da mobilidade, sociedade dos dispositivos móveis, sociedade de cada vez maior condensação de sistemas, programas e aplicações num só aparelho. Na sociedade do smartphone-multiskills, mais do que multitasking, não é despropositado questionar-se como é que os indivíduos comunicam uns com os outros, a que métodos recorrem, a que tipo de signos. Neste caso específico, questiona-se como é que as celebridades comunicam por meio da fotografia, nomeadamente a capturada por meio da aplicação Instagram. Há um interesse sobre o tipo de mensagens que se pretende comunicar, sendo que de antemão é sabido que a estética, a criação de laços, a criação e manutenção de memória, e até a transmissão de uma imagem comercial são respostas consideradas. As formas discursivas visuais, a quem se dirigem e o propósito são alíneas que a existência das selfies propicia. Identidade, autoapresentação e autorrepresentação, exibição/exposição ou simples narrativa quotidiana, objetivação do ser humano na imagem – a estética – são também conceitos centrais. Neste nível, os social media associados aos dispositivos de comunicação móvel como o smartphone têm promovido alterações na forma como as celebridades expõem as suas vidas e interagem com o indivíduo comum (público). A introdução do assunto privacidade é irrebatível nesta situação. Algumas pessoas têm estratégias para “exibir” a imagem que pretendem transmitir e aquela que pretendem preservar. Por intermédio da análise empírica, é notório que os social media se transformaram em canais/ meios de mudança nas relações sociais, também com relevância quanto à proximidade que se estabelece entre as celebridades e os indivíduos comuns. Selfie é um nome recente, mas a sua prática é bastante remota, iniciando-se em Quinhentos, com especial acuidade gráfica. Séculos depois, os grupos de foco e o inquérito sobre imagens online não afirmam o endeusamento da prática de fotografar, mas revelam um interesse constante mais em alguns do que noutros. A verdade é que, no que diz respeito às celebridades, tem sido prática comum, crescente, e apetecível à análise científica. 1. Metodologia O capítulo divide-se em três partes. A primeira destina-se a uma passagem pelo que podem ser considerados os clássicos, com abordagens a tocar os pontos da interação, do eu, e da sua relação com os outros, os bastidores e o real (Erving Goffman); a entrada perspetivada como acentuada da tecnologia na cultura e a objetificação desse eu na matéria, neste caso na fotografia (Georg Simmel); e, por fim, esse encaminhamento

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do indivíduo para o outro, no sentido de obter reciprocidade, entrosamento, familiaridade, reconhecimento (David Riesman). Numa segunda fase, é a tecnologia que domina, nomeadamente os dispositivos móveis, e, dentro deles, o smartphone. Os pontos a trabalhar teriam de começar pela sua inevitável importância e posicionamento na sociedade como escultor do comportamento individual e coletivo do homem, aludindo a conceitos como “presente ausente” (Gergen) e “perpetual contact” (Katz e Aakhus). A partir daqui o interesse afunila-se na utilização específica de uma aplicação, o Instagram, e a ele associado sobrevém o conceito de “filtro”, explorado por Driessens. Daí se apresentam as selfies e a sua utilização pelas celebridades, confrontando a autorrepresentação com a construção da figura célebre e o seu encaixe nas transformações socioculturais. Depois de duas partes de exposição teórica, na última recorreu-se ao trabalho de campo efetuado durante o projeto Público e Privado nas Comunicações Móveis, com a aplicação dos resultados obtidos da análise dos grupos de foco74 e do inquérito sobre imagens online75 realizados. A componente mais estruturante desta última secção assenta na seleção de nove celebridades e de algumas selfies capturadas pelos próprios a partir dos seus smartphones. Imagens de número variável para cada uma das celebridades, seguindo sobretudo o critério da relevância para a temática. 2. Os clássicos contemporâneos Goffman, Simmel e Riesman: o self 2.1. Identidade: realidade e encapsulamento

Como nota introdutória, Erving Goffman (1993) cita George Santayana, em Soliloquies, da qual se extraíram as seguintes asserções: “‘As 74

Grupos de foco constituídos da seguinte forma: seis licenciados (3 homens e 3 mulheres, com idades: 24, 2 com 27, 28, 33, 38), realizado em 12 de dezembro de 2013; adolescentes (6 do sexo feminino, com idades entre 17 [3 pessoas], 18 [2], e 19 [1]; 6 do sexo masculino, com idades: 16 [1 pessoa], 5 com 17; e misto: 3 homens e 3 mulheres, com idades entre os 15 [5 pessoas] e os 16 [1 pessoa]), realizados nos dias 20, 03 e 25 de fevereiro de 2014 respetivamente; e com idosos (aposentados, 2 homens e 4 mulheres, com idades entre 65-90), realizado no dia 23 de janeiro de 2014. Todos os grupos de foco decorreram na região Centro de Portugal, concretamente numa escola pública (Escola Secundária Frei Heitor Pinto, Covilhã) e na Universidade da Beira Interior. 75 Obtiveram-se 657 respostas. Idades: menos de 17: 15 respostas, 18-25: 236 respostas, 26-44: 249 respostas, mais de 44: 143 respostas, dos quais 60,88% são femininos e 37,44% masculinos. Outubro-dezembro de 2014.

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máscaras são expressões e ecos admiráveis do sentimento, ao mesmo tempo fiéis, discretas e supremas. (...) Não diria que a substância existe por causa da aparência, ou o rosto por causa da máscara, ou as paixões por causa da poesia e da virtude. Coisa alguma surge na natureza devido a qualquer outra coisa; todas essas faces e produtos estão igualmente envolvidas no ciclo da existência...’” A forma de apresentação e de relacionamento tem vindo a sofrer alterações. Para Erving Goffman a “vida social” implicava considerar a representação dramatúrgica na apresentação de si próprio, da sua ação (a “simulação” em “palco”) e da impressão sobre terceiros (“plateia”). Quem aparece? O próprio ou uma simulação? Goffman avança com simulações produzidas pelos homens. “Na vida real, os três elementos ficam reduzidos a dois: o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes e, ainda, esses outros também constituem a plateia” (Goffman, 1993: 9). Na relação com os outros, estes “outros” têm influência na forma como o indivíduo se apresenta. Uma “personagem” perante outras “personagens”. Uma “máscara” perante outras “máscaras”, utilizando os termos goffmanianos. Um indivíduo quando se encontra com os outros, se desconhecidos, forma uma opinião baseada na “conduta e aparência” com que é confrontado no momento; se já conhecidos, leva consigo preconceitos ou “estereótipos”, como lhe chama Goffman, que lhe permite elaborar a sua personagem. Manifestações “‘verdadeiras’”, “‘reais’”, “crenças” e “emoções” são tão mais efetivas quanto mais espontâneas e inesperadas forem. Expressão e impressão. A expressão causada pelo indivíduo provocará intencionalmente ou não uma impressão nos outros. Neste patamar, poderse-á explorar o bífido trajeto comportamental e sobretudo reativo (do outro): primeiro, uma comunicação convencional: fala e escrita (“símbolos verbais” ou “substitutos”) para uma comunicação clara e direta, a informação transmitida está em consonância com os símbolos e é reconhecida como tal; depois, a manipulação da informação, que é transmitida em favor/ como camuflagem de um outro tipo de intencionalidade afeta à ação que supostamente motivaria a informação. Das duas formas é possível falsear informação: por meio de fraude, associada ao primeiro caso; e por meio de dissimulação, associada ao segundo. Comportamo-nos da maneira que desejamos que os outros nos vejam, desta forma poder-se-á ter um controlo sobre a forma como os outros se comportam perante o indivíduo – é uma das ideias sugeridas por Goffman. Portanto, há a informação que damos e a que transparecemos, mais ou menos subliminar ou intencionalmente. Dividir-se-á entre ações

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calculadas conscientemente e outras o inverso. Essa consciencialização de atuação poderá resultar de uma certa pressão social da “tradição de seu grupo ou posição social”, e não tanto por iniciativa pessoal. (Idem: 15) Por outro lado, também o seu perfil poderá suscitar “uma impressão deliberada” sem intenção de tal. Goffman considera que o indivíduo tem mais facilidade ou controlo no que diz respeito àquilo que emite verbalmente, ao contrário do que acontece com as suas expressões. Esta última poderá ser “prova de validade” daquilo que é transmitido de forma calculada/controlada. Entre o que é real e o que é ensaiado: “Esta forma de controle sobre o papel do indivíduo restabelece a simetria do processo de comunicação e monta o palco para um tipo de jogo de informação, um ciclo potencialmente infinito de encobrimento, descobrimento, revelações falsas e redescobertas.” (Idem: 17) “Os outros descobrem, então, que o indivíduo os informou a respeito do que é e do que eles devem entender por ‘é’.” (Idem: 21) Interação, na perpetiva de Goffman, implica um encontro presencial “imediato”, e a representação acontece quer em ambientes criados por terceiros como aqueles que são criados pelo próprio. Comportam-se de acordo com as situações. Desempenho é outro dos conceitos de Goffman, que se refere à atividade/atuação do participante (na interação, no “encontro”) que pode ter como efeito “influenciar” os outros participantes, levá-los a (re)agir/a interagir, sendo ignição para que a interação aconteça. Goffman conduz-nos, ainda, para dois aspetos ligados à atuação do homem na medida em que este apresenta um “padrão de ação”, caraterísticas padronizadas que perfilam o homem e as suas ações. Esta, por sua vez, não se ausenta daquilo que é definido como “papel social”, isto é, condição em que devem ser observados (os) direitos (garantias de auxílio/proteção/ usufruto) e deveres (obrigações normativas) que uma situação social exige. Concede ao participante a sua existência na sociedade e para a qual tem o seu contributo. O indivíduo “desempenha”/representa um papel, e se o faz espera obter dos seus semelhantes a receção dessa personagem. A realidade é a aparência que o indivíduo demonstra com a sua representação/ao desempenhar o seu papel. Goffman propõe uma tríade de reflexão do self: o nosso verdadeiro eu – conceção que temos de nós próprios – e o que gostaríamos de ser. Primitivamente, Goffman recorda que “pessoa” era sinónimo de “máscara”. A representação de um papel não encontra, assim, tempo estipulado nem espaço definido, dentro da variabilidade de maior ou menor consciência da ação. “É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos.’” (Goffman, 1993: 27 – citando Robert Ezra Park em Race and Culture, 1950: 249) E acrescenta:

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“Em certo sentido, e na medida em que esta máscara representa a concepção que formamos de nós mesmos – o papel que nos esforçamos por chegar a viver – esta máscara é o nosso mais verdadeiro eu, aquilo que gostaríamos de ser.” (R. E. Park, Race and Culture 1950: 250 in Idem)

Fachada” é aquilo que os outros indivíduos observam como “regular”, “geral” e “fixo”. Mecanismo de atuação/expressão que revela as caraterísticas padrão. Para a fachada contribui o “cenário”, isto é, todos os objetos e utensílios e sua disposição que sustentam e credibilizam a representação, ou seja, “mobília”, “decoração”, “disposição física” – em suma, o “pano de fundo”. Elementos que Goffman minuciosamente insere no ‘programa’ da encenação. Mais se pode dizer de “fachada” como o que diz respeito à “função” ou “categoria”, “vestuário, sexo, idade e características raciais, altura e aparência, atitude, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos corporais e coisas semelhantes”, desta feita classificada como “fachada pessoal”. (Goffman, 1993: 31) A “aparência” permite-nos identificar o “status social do ator” pelas atividades que está a desenvolver, seja social (formal), profissional ou lazer; se se encontra numa determinada etapa da sua vida (“nova fase”); enquanto “maneira” afigura-se como se afigurou um conjunto de comportamentos que se prevê que o ator adotará perante determinada situação indicando o seu posicionamento na interação – se de comando/liderança/controlo ou de submissão (não necessariamente pejorativa). 2.2. A Sociedade Tecnológica e a Sociedade Cultura: aglutinação

Na abordagem às origens da tecnologia e o seu intrincamento com a cultura, José Luís Garcia debruça-se sobre o prelúdio que Georg Simmel terá feito no que diz respeito a esta área, que se traduziria na seguinte tese: o “fenómeno tecnológico como sistema cultural”. Associam-se substantivos de peso como modernidade (“mundo moderno”), sociedade e tecnologia (“sociedade tecnológica”) à sua sebenta reflexiva e torna-se figura central da tese de “autonomização da tecnologia”. (Garcia, 2007: 288) Interessa, também, atender a outros conceitos como “monetarização, tecnicização, megaurbanização”, e entre estes termos – sobretudo no decorrer destes fenómenos – geram-se as relações entre os indivíduos bem como a sua forma de vida, parafraseando Garcia. A destacar está também o processo de “alienação (Entfremdung)”, que, como se verificará, fará parte do léxico arreigado respeitante aos dispositivos móveis, e viria também a

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caraterizar a evolução/“expansão” tecnológica. (Idem: 289-290) Segundo Simmel, a cultura humana bifurcar-se-ia em “cultura objetiva” e “cultura subjetiva”. Conceitos que viriam a ser enquadráveis no que diz respeito a sucessivas análises sobre a “sociedade de massas tecnológica”, englobando a “mediação instrumental”, “alienação cultural”, “aceleração do mundo contemporâneo” e o “estado ausente de essência ou especificidade perante o mundo”. O que é a cultura moderna? Na perspetiva de Simmel, uma união de pontos como ciência e tecnologia que se achegam de áreas como a religião, a arte, a economia e a vida urbana. O que dizer do que é intrínseco, natural, aquilo que se apoia no que a vida é realmente, no que o indivíduo é realmente? É a interioridade, a subjetividade per se, logo cultura subjetiva. Em espelho, a cultura objetiva – objetividade. Esta que objetifica, ou, como se diz comummente, coisifica o homem, materializa os aspetos subjetivos, a identidade do indivíduo. “O processo cultural ocorre, portanto, no quadro de um dualismo básico que habita o ser humano. Por um lado, o espírito objetivo derivado das objetivações em que cristaliza a vida originada pela subjetividade; por outro, e em sentido contrário, o espírito subjetivo, vindo da configuração que ascende da natureza para a cultura e que procura a nobreza da vida individual.” (Simmel, in Garcia, 2007: 297)

A técnica tornara, assim, os indivíduos menos indivíduos, isto é, (utilizando o termo pessoa), as pessoas mais im-pessoa-is/irreais. São pessoas em objetos, os momentos vivenciados em objetos, sentimentos/emoções/ estados de espírito em objetos. Assiste-se a uma vitrificação (“exterioridade”, nas palavras de Garcia). Poder-se-á falar no duo representativo significanteassignificante? E à sua densidade representativa contrapor uma opacidade imaterial com cariz de impessoalidade? O subjetivo/interior e o objetivo/ exterior desencontrar-se-ão repetidamente na medida em que as particularidades e vivências – a vida em si – são desviadas da sua natureza ou essência para serem tecnificadas. Simmel invocaria a “tecnicidade” como “inespecificidade”, “cálculo”, “quantificação” e “impessoalidade”. (Idem: 297) Pergunta: quando vemos uma fotografia estamos perante a nossa natureza ou a materialização, seleção, escolha, enquadramento, cenário, composição da nossa subjetividade?

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2.3. Inner/Tradition-directed vs Other/Outer-directed: o caminho para o fac-símile

A tese de David Riesman sobre o comportamento da sociedade contemporânea, à data da sua obra, baseia-se na ação subordinada a um mainstream imposto. A população segue como rebanho um comportamento que obedece a circunstâncias externas ou ao que se poderá apelidar de tendências (other-directed), contraposto com o sistema regulado por padrões sociais incutidos na infância (inner-directed). Riesman conclui que existe uma linha de “conformidade” que “molda o caráter social” (Riesman et al., 1989: 8) O que, para Lee Siegel, em “Go the Same Way, or Go the Wrong Way” – crónica escrita para o jornal The New York Times –, consistiria em abdicar da autonomia analítica e intuitiva do indivíduo para se prender a “tastemakers” e “trendsetters”. Aqueles que fazem parte da sociedade other-directed são adjetivados, por Riesman, como “incipientes”, isto é, principiantes – quase como que propensos a influenciáveis ou hipnotizáveis, manipuláveis até certo ponto. Como tal, “são sensibilizados para as expetativas e preferências dos outros”. Ou seja, há também a perda de individualidade – se é que o seguidismo padronizado assim o permite nomear – tornando-se dependentes uns dos outros, cujo conjunto se formaliza em expressões como “industrialização”, “sociedade folk”, “capitalismo monopolista”, “urbanização”, “racionalização”, entre outros. (Idem: 20) Riesman considera que nos other-directed estão incluídos os jovens das grandes cidades e os grupos de classe mais elevada, e que é nestes que residirá a “hegemonia” desta segunda versão de direcionamento. Pessoas com rendimentos que suportem aquisições tecnológicas. Neste caso, transpondo para o objeto de estudo: smartphones e tablets. No sistema other-directed, Riesman concetualizou o que denominou de “conformidade comportamental próxima” na medida em que há um esforço das pessoas orientadas para os outros apresentarem um comportamento homogeneizado para o mesmo propósito tendo como base sólida aquilo que “permanece inalterado ao longo da vida (…) não por meio da perfuração do comportamento em si mesmo, como no caráter tradition-directed, mas sim por intermédio de uma sensibilidade excecional para com as ações e os desejos dos outros”. (Idem: 21-22) Inner-directed ou tradition-directed preocupa-se não só com “o que alguém pode fazer”, mas também com “‘o que as pessoas gostariam que fizéssemos’”, afirma Gideon Lewis-Kraus. Assim sendo, é suposto fazermos aquilo que é suposto ser feito, conclui Lewis-Kraus, na crónica “Yelp and the Wisdom of ‘The Lonely Crowd’”, publicada na revista The New Yorker.

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“Giroscópio” é uma metáfora implantada por Riesman no sentido de que todos “seguem a mesma direção”. Para o teórico, a aprendizagem da  privacidade é feita em casa obedecendo a alguns princípios que promoveriam a estabilidade. (Riesman et al., 1989: 24) Isto é, a hierarquia que o lar impõe, a chamada verticalidade (a “linhagem”/inner-directed), derrete-se em “horizontalidade” pelo conceito de pares (other-directed). É esta a visão de Lewis-Kraus sobre o entendimento de Riesman a propósito da sociedade contemporânea. O cronista define a medula de The Lonely Crowd como “a discussão sobre a vida emocional da informação”, enquanto as ramificações tocam a estereotipagem. Isto é, a composição de modelos ideais que se acordariam nos comportamentos tradicionais, convencionados, onde a “autoridade” impõe aquilo que Riesman chamaria de “a imagem do poder”, “o conformismo do poder da multidão”, citado por Lewis-Kraus. “Insípidos” são aqueles que não provam o mesmo gosto da multidão, remataria Riesman. 3. Geração 2.0 O capítulo anterior revela-se uma breve epígrafe perante a quantidade de autores que se têm dedicado à análise comportamental do homem enquanto ser individual e ser social em crescente cumplicidade com as áreas da tecnologia e social media. James Katz e Manuel Castells surgem como referências na área, seguem-se autores como Scott Campbell, Richard Ling, Mark A. Aakhus, Andrew Keen, Sherry Turkle, entre outros. O smartphone é frequentemente identificado como objeto de culto, criam-se expetativas sobre a inovação, sobre as mudanças geradas, e, mais especificamente, sobre as consequências sociais dessas mudanças em jeito de hera trepadeira ou de transformação. (Nafus & Tracey in Katz & Aakhus, 2004: 13) 3.1. “O smartphone contribui para que as pessoas criem e negociem significados” 76

O smartphone – versão neo(n) daquilo que é o medium pelo qual circula a mensagem – permite a criação de um quase-paradoxo, a “construção social da individualidade”, ou seja, a selfhood ou personhood (Nafus & 76

Nafus & Tracey in Katz & Aakhus, 2004

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Tracey, 2004: 206). Portanto, o smartphone passou assim a ser um meio de construção – de reconstrução acrescentar-se-á – das relações sociais do indivíduo e dos seus interesses pessoais. Dentro das particularidades do indivíduo, e concentrando-se na individualidade, é possível que este dispositivo permita criar blocos/compartimentos de individualidade pública do Homem? Nafus & Tracey, segundo o estudo que empreenderam com um casal, concluem que sim. Svetlana é o elemento mais público, expansivo, exposto no sentido da sua atividade universitária e familiar no acompanhamento escolar, no entanto é ela quem faz as tarefas domésticas, e Steve é quem a ajuda. Verifica-se que a dimensão doméstica de Svetelana existe, mas está ausente da exposição. É o seu “papel ideológico ‘interior’”, distinto do seu “papel prático” “‘exterior’”, sem que se sinta descompensada de um lado ou do outro, assumindo os dois papéis: o exposto e o doméstico/ íntimo. (Idem: 214) 3.2. “Let your home know where your heart is” 77

A tecnologia em geral e os smartphones em particular agrilhoaram-se à condição de distância geográfica e simultaneamente a uma mundividência de significados, cujas semântica e pragmática servem a imediaticidade e a prática de fluidez torrente das formas atuais de viver. Kenneth J. Gergen (2004) apresentou o conceito de “‘presente ausente’” e identificou três baixas com o avanço no campo da tecnologia e da rede global: a incapacidade de as comunidades estabelecerem contacto visual, o chamado “‘cara a cara’”, a repercutir-se na poluição de “valores, coerência e solidariedade”, bem como “a capacidade do indivíduo para manter um sentido de identidade centrada ou um código convincente de valores” (p. 223). Já no que diz respeito ao telemóvel, à data, considerava-se que este dispositivo seria “talvez o suporte tecnológico mais significante da comunidade cara a cara” enquanto “ponte” de significação. A questão que se lançava era a de como tecnologia e sociabilidade se compatibilizavam. (Idem) Pois, com o crescendo do “‘presente ausente’”, o prato da balança tenderá a pesar para o decréscimo do contacto pessoal. De acordo com Gergen (2004), “movemo-nos, em seguida, para uma condição cultural na qual as nossas identidades estão cada vez mais localizadas, condicionais e opcionais” (p. 234) Em súmula, um desvanecimento do self, parafraseando Gergen. 77

Letreiro de anúncio para telemóveis, in Nafus & Tracey, 2004: 227.

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3.3. A transcendentalidade do aparelho: Apparatgeist e Perpetual Contact

As comunicações móveis têm produzido transformações nas rotinas, rituais, no tipo de contacto/socialização, comportamento em espaços públicos que se faz no quotidiano decorrente da presença e da utilização que é dada aos dispositivos móveis. (Rule, 2004: 302) Seria, portanto, o espírito do aparelho/máquina a infiltrar-se no dia a dia individual e coletivo, presente no conceito de Apparatgeist (origens latina, germânica e eslava, segundo Katz e Aakhus), e a contaminar utilizadores, não-utilizadores e não defensores da sua utilização. James B. Rule, ao analisar a etimologia da palavra “‘apparatus’”, concluiu que as várias definições afunilam para o que ele considera ser “‘equipamento’”. Já Geist, do alemão, o significado atem-se a “espírito” ou “mente” (Rule, 2004: 306). A dimensão espiritual do zeitgeist recai sobre a cultura popular e a sociedade, dando-lhes uma transcendentalidade (desde as crenças religiosas às estruturas políticas) demasiado abstrata e vaporosa para se aplicar ao contexto de Apparatgeist. A este conceito se coadunará melhor o de Perpetual Contact: a ligação constante, o estar aceso (online) permanentemente, e a disponibilização a que o próprio aparelho sujeita o homem e a que este se deixa sujeitar. O contacto perpétuo é um ato recíproco – ele não existe sem a existência e a ação de cada um dos envolvidos. Rule entendia o contacto perpétuo como a legitimação da “comunicação pura”, isto é, a “idealização da comunicação comprometida com a perspetiva de partilhar a mente de uma pessoa com a de outra, como a conversa de anjos que ocorre sem as restrições do corpo. A comunicação pura está assim na base do contacto perpétuo.” (Rule, 2004: 307) 3.4. Autorrepresentação na imagem

Nafus & Tracey falaram de selfhood/personhood, Gergen explorou a paradoxalidade da ‘presença ausente’ e Rule defronta o contacto ininterrupto não presencial. Alíneas que não se desadequam da reflexão sobre a autorrepresentação. Jill Walker Rettberg considera que existem três formas de autorrepresentação nos media digitais: “escrito, visual e quantitativo”. Será aqui apenas equacionado o visual. Rettberg, a este respeito, recua até Parmigianino, tendo como referência a obra Self-Portrait in a Convex Mirror (1524). A referência ao autorretrato dos artistas na pintura surge do facto de esta ser a progenitora das selfies de hoje. Como não é este o portento do artigo, faz-se uma breve e relevante descrição do

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modo como Parmigianino se autorretratou: utilizou um espelho convexo para ver o seu reflexo e a partir daí construir a sua imagem. Dado o formato angular do espelho, Parmigianino socorreu-se de uma bola de madeira oca e tudo aquilo que se vê no quadro é precisamente aquilo que o artista vê (Rettberg, 2014: 2), desde a sua mão que pinta até ao restante cenário, inclusivamente a distorção, própria do tipo de espelho. Hoje, temos a possibilidade de obter uma fotografia plana sem distorção, mas sucede que aquilo que se faz é, muitas vezes, recorrer a ferramentas para propositadamente editar (com filtros que recuperam inclusivamente o ‘ambiente’ retro; e ‘botões’ para regular a saturação, a luminosidade, o contraste, as sombras, etc.) e distorcer a imagem. Hoje, os espelhos são as câmaras fotográficas dos smartphones, em crescendo mais do que uma câmara fotográfica analógica ou digital convencional, com incursão nas aplicações que fotografam, como o Instagram por exemplo, com o propósito de se partilhar a imagem onde se pretender: seja no Facebook, Twitter, Tumblr ou Flickr. No Inquérito sobre Imagens Online, 315 dos inquiridos responderam que costumam utilizar o smartphone para fotografar, ao invés dos 260 que ainda recorrem a câmara fotográfica/vídeo. “Nós tiramos selfies com os nossos telefones e publicamo-las no Instagram. Escrevemos sobre as nossas vidas em blogues e em atualizações de estado no Facebook. Nós usamos localizadores de atividade nos nossos pulsos, fazemos login da nossa produtividade e permitimos que o Facebook e outras aplicações monitorizem a nossa localização continuadamente. Os dados que rastreamos são exibidos de volta para nós como gráficos, mapas, gráficos de progresso e cronogramas.” (Rettberg, 2014: 2) Deparamo-nos, pois, com um monitor ao qual nos ligamos sem fios, mas onde todos os nossos dados ‘vitais’ passam a estar visíveis no ecrã. Não só na nossa ‘tela’, mas na de todos aqueles que estabelecemos como próximos, o que não significa que não chegue ao próximo do próximo e assim sucessivamente. Qualquer tipo de tecnologia utilizada, mais ou menos complexificada, “é um meio de ver parte de nós próprios” (Rettberg, 2014: 2) e de a mostrarmos, mas de uma forma distorcida, transfigurada de acordo com as caraterísticas de cada intervenção. O ato de criar/trabalhar a imagem não é assim tão diferente do de Parmigianino com o espelho convexo. “Com câmaras digitais, smartphones e os social media é mais fácil criar e partilhar as nossas autorrepresentações.” (Idem) Ação ancestral na nossa cultura. Ver, compreender e melhorar fariam parte de um axioma que consideraria instável. Estes verbos que Rettberg utiliza poderão contribuir, por um lado, para a possibilidade de a tecnologia nos auxiliar, mas, por outro, para

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a possibilidade de representarem exatamente a falácia em que acreditamos ser e não somos. Ou, numa versão soft and smooth, o self com quem comunicamos é protagonista da forma digital do diário secreto, onde muitas vezes se encontram já afirmações privadas, piadas ou descargas emocionais. (Rettberg, 2014: 2) Tal como quem escreve para um público (biografias por exemplo), há quem se apresente intencionalmente para o/um público. Rettberg vê nas fotografias, e nas selfies particularmente, a possibilidade de análise ao nível do “autoaperfeiçoamento e do autoconhecimento e das relações de poder que mudam e são contestadas quando novos grupos de pessoas partilham as suas autorrepresentações na esfera pública” (Idem). 3.5. Imagem, fotografia, Instagram e filtros

Rettberg recorre ao termo “‘filtro’” não apenas no seu sentido técnico como ‘película’ que transforma a imagem como acontece no Instagram (o primeiro a popularizar os filtros) ou na filtragem daquilo que é exibido no mural do Facebook, mas também a montante. Isto é, o que intencionamos anular, retirar, acrescentar, transformar, realçar ou disfarçar e, por isso, filtramo-nos, remetendo-nos para o nosso próprio entendimento das nossas “autoexpressões”, resultado do que percecionamos e compreendemos de nós próprios. “Utilizamos diferentes tecnologias, géneros e modos para nos representar” (Rettberg, 2014: 3), o que poderá ter implicações na definição da nossa autoexpressão e suas alterações ou variantes. Os filtros encaminham-nos para a leitura de gostos e estilos. Em que se traduzem é a questão de Rettberg. O que é, então, aquilo que vemos cá fora? Na base, o termo filtro tem tido aplicação em vários contextos com a mesma denotação de “remoção”, de afastamento de conteúdo indesejado. Rettberg (2014) encontrou-o dicionarizado78 como papel para filtrar pó, ou a parte do cigarro destinada a travar/impedir as impurezas de chegarem aos pulmões; também a água se filtra; no cinema, temos os filtros de cor; e, na eletrónica, a amenização de ruído que permite tornar o som mais límpido. Na radiologia, os filtros tentam minimizar a extensão das ondas magnéticas. Na área da computação define-se filtro como forma de escudo

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Oxford English Dictionary (OED).

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perante conteúdos indesejáveis. Mas nenhuma referência a Instagram, constatou.79 Ora, o Instagram dá uma nova possibilidade de redefinição do significado de filtro. Se, por um lado, tem muitas razões para ou aplicações de remoção de algo ou de informação – Rettberg lembra-nos do preto e branco como ausência de cor na imagem –, por outro poderá surgir o oposto. Uma espécie de ação de despejo daquilo que é original, ou de uma parte da originalidade do objeto/assunto. Seguindo a linha de pensamento de Rettberg (2004), o inverso – o acrescento – está na “intensificação de cores, a adição de bordas [molduras], a criação de um efeito vignette ou o obscurecer partes da imagem” (p. 21). Os filtros podem ser alterados, retocados, desgastados, permanecerem ou serem eliminados, “mas na maioria das vezes nós simplesmente tomamo-los como concedidos, mesmo que não notemos que eles estejam lá”. (Idem: 22) Rettberg (2014), ao citar Alice Marwick (2013), estudiosa da etnografia dos fomentadores de social media, em Silicon Valley, remetenos para o seguinte ponto: os social media em geral filtrariam “pessoas que não são sujeitos neoliberais eficazes” (p. 23). Isto transporta-nos para um plano mais economicista, promotor, vendedor da imagem. Relativamente a moda(s) associa-se o “‘autoaperfeiçoamento’” e à aquisição de bens e serviços a “‘autorrealização’”. A ideia implantada é a de “lógica de mercado” nas várias dimensões de vida do homem. Citada por Rettberg, Alice Marwick (2013: 13 in Rettberg, 2014: 24) conclui que “o cidadão neoliberal ideal é um empreendedor. Estas são as pessoas com maior probabilidade de sucesso nos social media, com maior probabilidade de ganhar seguidores no Twitter e com maior probabilidade de ter os seus posts de Facebook filtrados no seu feed de notícias.” Os efeitos emocionais que a filtragem que o Facebook faz dos conteúdos que aparecem no mural de cada utilizador poderão acontecer ou não e em diferentes graus. “Se isto afetou o estado emocional real dos utilizadores ou não, é claro que a forma como o Facebook filtra os nossos feeds afeta a forma como nós nos expressamos no Facebook. O Facebook filtra o nosso feed de notícias, e isso também filtra o nosso comportamento.” (Rettberg, 2004: 25) Os filtros tecnológicos não estão, portanto, isolados dos filtros culturais, ambos interagem e condicionam-se. Muitas vezes, agimos quase

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Em março de 2014, a OED rascunhou uma definição que se assemelhava à aplicável em informática: “‘Para processar ou reformatar (informação/dados), utilizando um filtro específico de modo a remover conteúdo indesejado’”. Rettberg, 2014: 21.

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com desconhecimento do remetente chamado consciência e atuamos de acordo com convenções/filtros culturais que filtrarão determinadas formas de expressão. Frequentemente se fotografa os bebés a rir e bem-dispostos, e não o inverso, no auge da birra. Porquê? Só queremos recordar os momentos felizes, mas também por ação reprodutiva de atos similares (já alguém o havia feito assim). Podemos não seguir a ordem, o filtro cultural, mas, de uma forma ou de outra, somos atraídos ou levados por esses filtros tais como os tecnológicos. “Não podemos representar as nossas vidas ou os nossos corpos sem utilizar ou adaptar, resistir e empurrar contra filtros que já estão incorporados na nossa cultura, sejam esses filtros culturais ou tecnológicos.” (Idem: 24-25) 3.6. A selfie pergunta ao Instagram: Instagram meu, Instagram meu, há alguma selfie mais bela do que eu em todo o reino das selfies?

Os filtros em fotografia tornaram-se de tal forma fenomen(ai)os como a ascensão de fotografar por meio de telemóveis, potenciada pelos social media. Os filtros permitem aprimorar a estética (inclusivamente os fotojornalistas recorrem a essas ferramentas: smartphone e aplicações de edição de imagem nele instalados, permitindo-lhes o instante da captura e imediata edição). “Um dos motivos pelos quais o filtro nos fascina é que dá a imagem que estranha, que desfamiliariza80 as nossas vidas. O filtro deixa isso claro, que a imagem [identidade] não é inteiramente nossa. A imagem filtrada mostra-nos, ou os nossos meios, com a visão de uma máquina.” (Rettberg, 2014: 26) A utilização de filtros cria uma sensação de novidade, algo que fuja ao comum, o que o autor chama de “não familiar”, mas os filtros são os mesmos, e repetem-se – apesar de tornar algo particular do dia a dia em algo particularmente diferente – e torna-se “cliché”. “Para a maior parte, contudo, as nossas fotografias do quotidiano não são concebidas como arte. Elas são uma forma de elevação das nossas próprias experiências diárias e torna-las especiais para nós próprios.” Ainda que do clichê ao ímpeto individual pelo filtro (ou o inverso), o indivíduo olha-se, “permite vermo-nos novamente”. (Idem) Na relação entre selfies e filtros, a reflexão pode atingir o estado de se optar por determinados filtros e rejeitar outros

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Rettberg foi buscar o conceito “defamiliarise” a Victor Shklovsky, teórico literário que escreveu Art as Technique. Interessante seria juntar à discussão a questão da habituação que “‘devora’” tudo.

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por motivos de gostos ou de não se sentir representado por eles. (Rettberg a explorar Syreeta McFadden, 2004: 30) 3.7. A identidade visual nos social media: fotografias de perfil

Além das selfies, há também aquilo que em muitas plataformas sociais se denomina de fotografias de perfil, as quais podem conter uma selfie ou não. Rettberg apura que a maior parte são imagens nossas tiradas por terceiros. Imagem esta que fará parte do saco de informações base/básicas a apresentar. Elemento visual identitário escolhido pelo utilizador, que significa ser “uma forma de autorrepresentação visual”. O tempo em que cada imagem é a expressão do utilizador na plataforma Facebook varia. Por experiência de contacto e utilização dos social media e também na voz de Rettberg, as fotografias de perfil não são necessariamente fotografias de rosto, “às vezes, a imagem de perfil marca não a identidade individual mas uma ligação a um grupo social ou a uma causa política” (Rettberg, 2014: 40), eu acrescentaria o gosto por temáticas específicas como BD, ilustração, belas artes, desporto, paisagens, etc. Poderão apresentar um cariz mais sério ou mais informal. As motivações para a alteração da imagem podem derivar pelo simples facto de haver novas fotografias (e dentro delas selfies ou não) de que gostem ou com alguma intenção de intervenção/manifestação cívica, social, política, etc. (pode ter repercussões ao nível da pressão em alinhar no mesmo segmento/grupo). Outras hipóteses há a considerar como simplesmente o moral, que o impele a nova imagem, ou, como acrescenta Rettberg, “como elas [as pessoas] acham que estão a mudar, querem novas representações de si próprias”. (Idem: 41) A fotografia, para a maioria das pessoas, era um ritual. Havia alturas adequadas para que tal acontecesse, nomeadamente momentos ou acontecimentos importantes, porém nada comparável com o ritmo atual. O marketing levou a que a paleta de temáticas se estendesse ao incomum naquilo, quando e da forma como é fotografado. 3.8. “O que entra na internet, não sai”

É a expressão verbal de uma consciência geral de todos os participantes de todos os grupos de foco, aqui nas palavras do participante FD do grupo de foco misto com adolescentes. Tudo aquilo que é inserido na rede jamais

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sairá, deixando um rasto digital. O sentimento relativamente a qualquer conteúdo disponibilizado na Web, independentemente do dispositivo de onde o conteúdo provenha, é sempre conflituoso ou, pelo menos, dúbio. Por um lado, cada utilizador sente que tem a sua conta feita à sua medida e que de alguma forma está protegida, ou, pelo menos, não se pensam nas hipóteses de violação. Não está aqui propriamente em causa a preocupação com agências governamentais, companhias comerciais ou vendedores de dados. Tratarse-á sobretudo de atos criminosos, hackers que corrompem os sistemas de códigos e conseguem aceder à informação que está guardada nos dispositivos e nas contas pessoais com possibilidade de furto/cópia de imagens, e consequente divulgação pública ou reconfiguração/reenquadramento noutras temáticas incompatíveis com o intento do utilizador. A participante D. do grupo de foco com adultos licenciados contou que se apropriaram de uma imagem dela da sua conta de Facebook, e que estava a ser utilizada como fotografia de perfil da conta de uma pessoa que não conhecia. O mesmo sucedeu recentemente a Dalila Carmo, atriz portuguesa, em que a própria denuncia o caso no seu mural, como se pode ver pela imagem abaixo:

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Vigilância e privacidade é um par inquebrantável. Alguns não se importam de expor a sua intimidade ou privacidade abertamente, outros tomam algumas medidas mais restritivas e outros há que tentam estar o mais direcionados possível para os círculos de pessoas que lhes interessam ou são mais próximos. A fotografia é uma arma, mas, ao mesmo tempo, a lebre do caçador. Rettberg recupera alguns apontamentos de Foucault (1988) sobre o conceito e a estrutura do panóptico (séc. XVIII), prisão com formato circular em cujo núcleo central reside o posto do observador, o vigilante. A ideia, hoje, na dita sociedade moderna, tal como a que Jeremy Bentham concebera no séc. XVIII, é a de que os indivíduos deverão ter consciência de que poderão estar a ser observados em qualquer momento, mas sempre sem a certeza de quando isso está a acontecer. (Rettberg, 2014: 201) Assim acontece com as imagens. Sobre a autorrepresentação, Foucault escreve que “‘permite aos indivíduos realizar pelos próprios meios ou com a ajuda de outros um certo número de operações nos seus próprios corpos e almas, pensamentos, conduta, e maneira de ser, de modo a transformarem-se eles próprios a fim de atingir um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição, ou imortalidade’”. (Idem: 84) Sentir-se mais sensual, de bem com o seu corpo, como se veste e como se adorna com acessórios, a aplicação de maquilhagem, as transformações dos cortes de cabelo são alguns dos aspetos apascentados pela(o) (culto da) imagem. No reverso da situação, há comportamentos que poderão ser interpretados como narcisismo, vaidade, exibicionismo e ambição (Rettberg, 2014: 30; Nandy, 2015a), e, ainda que esta perspetiva seja pejorativa, poderá ser a real. 3.9. “The celebrity is a person who is known for his wellknownness… He is the human pseudo-event” 81

Imagens, Instagram, filtros, fotos de perfil, Facebook, redes sociais, selfies – nomes que passaram a fazer parte de um vocabulário corrente e quotidianamente normal. Normal para qualquer indivíduo, porém nem todos ostentam tal etiqueta, mas outra que os eleva a um grão de assalto de atenções invulgar, ou seja, as celebridades. O primeiro facto é que as celebridades têm tido cada vez mais destaque na sociedade e na cultura. O segundo facto é que têm revelado 81

Boorstin [1961] 1992: 57 (ênfase original in Taylor & Harris, 2008)

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um papel cada vez mais determinante na vida individual, no self a que a estereotipagem chama de indivíduo comum. Olivier Driessens (2014) fala, por isso, na entrada de terminologia específica na investigação científica como “‘celebrification’ e ‘celebritization’”. Quanto à utilização destas nomenclaturas, Driessens considera frágil a sua diferenciação, aproximação e distanciamento, pela confusão da aplicação destes contextos em vários estudos. Assim sendo, as definições adotadas pelo autor entendem-se da seguinte forma: “celebritização para as mudanças sociais e culturais contidas na celebridade. Ao contrário, a celebrificação envolve as mudanças no nível individual, ou, mais precisamente, o processo pelo qual pessoas comuns ou figuras públicas se transformam em celebridades — por exemplo, estrelas de cinema, academostars (‘professores-estrela’), políticos celebridade ou aqueles conhecidos como socialites, como Paris Hilton.” (p. 10) Driessens identifica três fatores que contribuem para as transformações socioculturais que a celebridade experiencia: “mediatização”, “personalização” e “mercantilização”. (Idem: 8) A celebridade é o que se poderá chamar de segmento glamoroso da sociedade de Oeste a Leste. E no planisfério da mediatização, Driessens aponta quer programas informativos quer de entretenimento, publicidade, ativismo social, política, gastronomia, religião, desporto, cultura (música, cinema, artistas plásticos, etc.). A celebridade acaba por ter um papel crucial em contextos de poder: dá-lhes palanque, alcance do discurso e, sobretudo, público. Foi sendo erguida uma “cultura da celebridade” que se embrenhou em várias áreas de estudo que implicam a “coesão social” e a “formação de identidade”. A sua atuação pratica o modelo de espelho que as pessoas incorporam mais ou menos conscientemente nas suas práticas sociais. Nas palavras de Ellis Cashmore: “Querendo ou não, a cultura da celebridade está connosco: envolve-nos e até nos invade. Dá forma ao nosso pensamento e conduta, estilo e modos. Afeta e é afetada não apenas por fãs comprometidos, mas pela população toda.” (Driessens, 2014: 8) A construção da celebridade remete para a formação de uma “individualidade”, cuja “subjetividade” se torna corpórea numa “personificação”, “que reúne ‘o espetacular e o corriqueiro, o especial e o medíocre’” é o conclave que faz Driessens (2014: 10) citar Richard Dyer. E é entre as coordenadas do ordinário e as do extraordinário que a celebridade vai vivendo, numa deambulação entre que parte da sua vida é completamente ordinária ou corriqueira, e qual é a parte espetacular ou completamente extraordinária, sem que haja contaminação de cada uma das partes. Driessens considera que por mais que se tente enquadrá-las nestas duas dimensões ou que compreenda que estas duas dimensões existam (em separado) nas

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suas vidas, estas figuras “ainda estão distantes do comum”. Por outro lado, Samita Nandy despe o conceito de celebridade e configura-a como uma efetiva construção: “A celebrity is rather a media text that is constructed by technologies (Nandy, 2015). Without this media construction, a celebrity does not exist” (Nandy, 2015a). Da passagem da pessoa comum a celebridade poderia pragmaticamente estabelecer a divisória entre os dois ‘mundos’? Driessens fala em “ritual mediático”, o que poderia justificar o descarnamento do comum e o encarnar na nova figura que se foi construindo. Processo no qual os media têm uma presença constante e sugadora capaz de criar na sociedade um espaço central para estes elementos. Faça-se uma breve referência ao que, hoje, o indivíduo comum é capaz de fazer por ele próprio com recurso à internet. Os sites criados e os social media a que recorrem (sejam eles plataformas como o Facebook ou YouTube) têm permitido um fenómeno paralelo e no âmbito da “celebrification”, mas ao nível do que Driessens chama de “faz-tu-próprio” («do-it-yourself», DIY) (2014: 13). Construção ou construir. Substantivo e verbo que fazem associar “celebrification” ao par fabricação e fabrico, e, consequentemente, ao termo que Driessens introduziu: “mercantilização”. Já não é escandalosamente incomum pensar-se na figura pública, que vive do estrelato, ser “‘tanto o trabalho como a coisa que o trabalho produz’”, refere Dyer (replicado por Driessens). Lembre-se a frequência com que se fala em “indústria do cinema”. Daí a reflexão de Driessens suscitar conclusões como a “indústria da celebridade”, a “manufactura” de estrelas, a venda da “mercadoria”. (Taylor & Harris, 2008) Dito desta forma parece ser a pura desumanização do homem, mas no caso não se trata do cativo esclavagista individual. Verifica-se, sim, um circuito que acontece no âmbito social e que muito se prende ao comercial, ao marketing, e à chegada da dura palavra da venda da imagem. Situação que tem vindo a acontecer nas mais variadas áreas, pelas mais variadas indústrias, onde falar em produção em massa se tornara a velha enxada de cada jorna. Independentemente do maior ou menor maquilhamento, a celebridade é levada a mostrar o corpo no sentido de aparecer, de ser relembrada. “The performance engages in two cultural processes: the performance of memories and the memory of performances.” (Nandy, 2015b: 118) Têm de estar (permanentemente) na memória do público. O que pode chocar uma sensação bífida de posse da sua individualidade, mas, ao mesmo tempo, de venda de parte de si. Mas o “ser-se conhecido em si é mercantilizado neles” (Taylor & Harris, 2008: 135).

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Para Driessens (2014), a construção e surgimento da celebridade, integrados na dimensão espácio-temporal, não devem ser asfixiados por uma contagem superficialmente numérica, mas no sentido de um “metaprocesso”. Quer isto dizer que há uma metamorfose “que aponta para algumas mudanças na natureza da celebridade e sua inserção social e cultural (ou sua dimensão qualitativa)”. Aqui entra a “celebritization” que, no cômputo geral, se define como a “democratização da celebridade”, a inclusão e aceitação social e cultural da existência da fama, e da própria fama que é criada e cultivada pelos media. (P. 11) Este encaminhamento social e cultural para incluir a celebridade no funcionamento da sociedade, e também para a destacar, arrebata com algumas especificidades. Emoção e dramatização são, segundo o autor, “estratégias comuns para chamar a atenção das pessoas e, consequentemente, seduzi-las a consumir e estabelecer conexão com os produtos e marcas (incluindo partidos políticos e personas)”. (Idem: 12) Aparecer, divulgar, exibir, ser ouvida, ser vista entram no circuito comercial quando estão a responder a apetites de mercado. “Celebritization” é, assim, a realidade do mercado em que a celebridade se vê envolvida, isto é, quando o indivíduo célebre “é explorado como modo de produção no serviço de fins de marketing’”, afirma Driessens citando Paul Hewer e Douglas Brownlie em Culinary culture, gastrobrands and identity myths: ‘Nigella’, an iconic brand in the baking (2009). Em suma, Driessens (2014) faz três notas: “celebrification” e “celebritization” são processos distintos; em comum existe o mercado, com os seus desejos e necessidades, tal como as indústrias corporativas e todo o mecanismo de promoção que as relações públicas acionam; e alerta para que não se faça da mercantilização o único e exclusivo sentido de “celebritization”. (p. 12) 3.10. Da pessoa comum à “cultura da celebridade” 82

Na chapa da figura, as ideias que rapidamente surgem são a de geração de receitas por meio da imagem, mas também pode funcionar o fator poder em campos já referidos anteriormente. Se quisermos entrar numa esfera ainda mais estreita, torna-se num beco anestesiante para o indivíduo comum que vê nela um modelo a seguir. Depois, há que saber gerar nos recetores determinados sentimentos. Por exemplo, um político 82

Taylor & Harris, 2008: 141.

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tem de saber conquistar o “afeto das pessoas, do Estado e do partido”, a celebridade necessita do “afeto do público”. Assim se vão formando as personalidades públicas. É o que Driessens destaca da análise que faz de autores como P. David Marshall sobre o assunto. E esse estatuto, que é uma imagem, tem de ser alimentado, cuidado, mantido continuadamente. Driessens (2014) aplica uma divisão para explicar as particularidades da personalização, que, no seu entender, assentam em sete, mas cabem em três blocos: “individualização, privatização e emoção”. O autor aplica-os aos políticos, mas não parece haver propriamente um distanciamento significativo relativamente às restantes celebridades. Se se entender na “individualização” o desafio de avaliar as “qualidades profissionais”, para os políticos será “integridade e confiança”, para um cantor será a “capacidade vocal e performance” por exemplo. A “privatização” será um aspeto comum a todas as classes (de exposição pública) uma vez que se trata da situação de transição entre as esferas ou “vidas” pública e privada. E, por fim, a “emoção” que implicará uma incursão profunda na intimidade dos indivíduos, transitando entre persona pública e persona privada. Estará na gestão deste binómio o ser celebridade. Atrás falara-se numa espécie de selfmade celebrities, o “‘eu popular’ que denota a (re)presentação de uma persona comum, maleável e agradável sem necessariamente revelar detalhes pessoais”. (P. 19) O nome, o posicionamento do corpo, a expressão facial, o cabelo, as roupas, as cores, o cenário que acompanha a selfie, as pessoas que aparecem na selfie, a estética (composição fotográfica, edição da imagem, etc.). Da exibição/destaque/apologia do corpo à originalidade da imagem fotográfica, mais estilizada ou em contexto laboral formam o conjunto de elementos que atraem seguidores. Os seguidores da marca que aquela celebridade é. Questão que se interpõe: qualquer imagem, neste caso particular selfie, de uma celebridade é venda da sua imagem? Mesmo que numa situação informal? Será já a exibição da nossa imagem (ou a exibição de alguma coisa) a entrada para o mundo do consumo, que o capitalismo acabara por instalar? Isto pensando nas celebridades enquanto persona. (Taylor & Harris, 2008) Mais haverá a acrescentar quando associados a produtos e marcas – aí numa clara exposição e intenção comercial. Esta visão mais economicista da ascensão da celeridade leva Driessens ao encontro de Richard Dyer, P. David Marshall e Chris Rojek. Fará sentido a afirmação de Taylor & Harris (2008) ao dizer que “substituindo a aura [tão sobejamente escrutinada por Walter Benjamin] e o carisma tradicionais, a fama circula agora numa moda autojustificada” (p. 133).

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De uma forma ou de outra, aperceber-se-á ao longo do discorrer sobre a presença das celebridades o impacto e importância que transportam consigo. Driessens (2014) resume da seguinte forma: “a celebridade molda as culturas nas quais vivemos, ou os campos nos quais as pessoas são ativas e suas consequências, por exemplo, em termos de relações de poder, expetativas, formação de identidade e autoapresentação (inclusivamente online)”. (P. 21) O público relaciona-se com a personalidade com base numa conexão irreal, superficial, um “desejo abstrato”. Só assim é possível fazer o mercado funcionar: criar desejos/afeições/afetos intangíveis, mas constantemente apelativos que resultam numa admiração também manipulável pela indústria. A imagem com que as celebridades se apresentam, seja mais informal ou mais formal, tornar-se-á a sua marca, daí a imagem de marca. Estar sempre na memória é permissivo a uma certa intrusão da manipulação por parte da indústria da cultura. As celebridades têm as suas próprias caraterísticas, o que faz delas individualidades perante as suas particulares personalidades, até ao momento em que celebridade é também designada como personalidade. (Taylor & Harris, 2008: 135-136) Aqui, a confusão terminológica pode suscitar conflitos entre em que dimensões essas pessoas se encaixam e em que momentos sobretudo. No âmbito dos estudos sobre celebridades, dos quais se destaca o clássico Stars (1979), de Richard Dyer, o autor revela uma componente fortemente sensorial que não pode estar afastada da análise: [F]inally, I feel I should mention beauty, pleasure and delight … (…) … When I see Marilyn Monroe I catch my breath; when I see Montgomery Clift I sigh over how beautiful he is; when I see Barbara Stanwyck, I know that women are strong. I don’t want to privilege these responses over analysis, but equally I don’t want, in the rush to analysis, to forget what it is that I am analysing … [W]hile I accept utterly that beauty and pleasure are culturally and historically specific, and in no way escape ideology, none the less they are beauty and pleasure and I want to hang on to them in some form or another. (1998: 162 in Holmes et al., 2015: 101)

Por que é que as celebridades têm significado para nós? Crescer a ver aquele rosto frequentemente, a voz, a expressão corporal, a indumentária e a evolução dessa figura que acaba por se tornar mais um elemento rotineiro do agregado familiar, companhia geracional por vezes. “O que eu chamo de sentir a estética da celebridade não é apenas depois sobre a poética da figura célebre; um chamamento para analisar luz, cor,

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roupa, cenário, e significantes não-representacionais. É uma abordagem também centralmente preocupada com o reconhecimento da política de incorporação sensual em que se pode ver naquele momento de celebridade íntima uma emergência libertadora do corpo carnal.” (Sobchack, 2004 in Holmes et al., 2015: 111) O impacto pessoal das celebridades e a memória afetiva são reais. A distância que se torna idealmente perto. A pessoa ‘fantástica’ real que ilusoriamente nos retira do que nos é familiar e que, ao mesmo tempo, se torna ela própria uma peça chave do ambiente que consideramos ser o nosso ambiente familiar, cognoscível e íntimo por vezes. Essa componente mais emocional faz parte, segundo Redmond, da biografia, da história do eu. A identidade de qualquer homem é pano fabricado, em parte, resultando da forma como é vivido o quotidiano. “Elas ajudam-nos a contar histórias, a viver histórias, e a incorporar as histórias que contamos uns aos outros. Estas são histórias sobre esperança, medo e dor, e aspiração, amor, amizade e crescimento, elenco poderoso na forma de narrativa estrelada. Isto é aquilo em que eu acho que deveríamos estar interessados: as ‘micro’ histórias que emergem do consumo da cultura de celebridade; feita no momento da vivência, e que são originadas a partir do que a pessoa está a sentir, a passar por, e a memorizar naquele momento da sua vida. (Redmond, 2014 in Holmes et al., 2015: 111-112). Redmond considera que o self pode adquirir experiência, crescer e viver tomando como parte da sua história as histórias partilhadas. “I story my life in part through celebrity figures I identify with. For example, my own Facebook feed is testament to the way I story my feelings, memories and emotional state through my celebrity postings. You can see the schedule and programming of my moods, interests and obsessions through my Facebook celebrity stories. When I am blue and hurt and missing a lover temporarily absent or perhaps long gone, I post songs and movie clips that speak that truth or which (secretly) connected us in some way. These are songs and memories that create in me a sea of synaesthetic affects – they wash my body in the memories they evoke. Celebrity threads – taut, loose, and barely visible to the naked eye – emerge across the life of my page. When a particular affecting content hits my feed or I find it elsewhere, I make sense of it in terms of my own biography. I story the stories I encounter, inserting myself into them, and them into my life.” (Redmond in Holmes et al., 2015: 112)

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Estas histórias, micro ou macro, que se pontilham por proximidade, distância, autoestima, emoções e o eu, fazem lidar com a pertença, particularidades de interesse turístico, localidades, cheiros, objetos, espaços e lugares que o indivíduo comum possa ter ou achar ter em comum com a celebridade. Entre estes dois indivíduos, que o estatuto os diferencia, há um certo tipo de envolvimento que a imagem estabelece, que se poderia estender a uma análise de padrões psicológicos e emocionais e que a imagem (ou outro tipo de conteúdo) poderá contar. “A verdade é que a verdade desigual da minha individualidade começou a ser armazenada nas minhas publicações de celebridades no Facebook.” (Redmond in Holmes et al., 2015: 112) 4. As selfies na (des)construção da identidade: análise empírica 4.1. Privacidade na captura e armazenamento de imagens

A construção da figura célebre, na maioria dos casos, é enformada ao jeito de um pedestal ou um altar. As pessoas necessitam de referências. Se não acreditam num Deus ou deus ou num ideal superior abstrato ou mais material, projetam-se em figuras com as quais empatizam/simpatizam/se identificam. No entanto, isto não significa que não aconteça o inverso, um prefixo anti-, a antipatia, o desinteresse por ícones, o desapego por aquilo que poderiam chamar de a realidade-da-ilusão. E as razões são as mais variadas, desde o estereótipo da vida glamorosa a uma efetiva repulsa pela exibição, o protagonismo, mas, por outro lado, também pela recusa de uma vida que se perspetiva melindrada quanto ao controlo, nomeadamente no que diz respeito a intromissões na privacidade das pessoas. Quando vemos imagens capturadas por smartphone, nas quais temos a perfeita noção de que são os seus proprietários quem as capturam, há uma série de questões que podem ser colocadas. A primeira: Ele ou ela é mesmo assim? Podemos efetivamente ver algo da sua própria personalidade naquela imagem? Ou é a personalidade adjacente à celebridade? Qual a intenção? Quanto à captura de imagens no exterior e com celebridades, duas posições foram debatidas no grupo de foco dos adultos licenciados. O participante PP não sentiria constrangimento em fotografar sem consentimento, já a participante C. disse não se sentir confortável para fotografar alguém sem aval, pois a pessoa ao permiti-lo considera que ela terá “‘consciência de que isso vai parar de qualquer maneira às redes sociais (...) E se está a autorizar essa foto, provavelmente também está a autorizar

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que essa foto seja vista. Se ela autoriza isso é porque ela não acha mal ser vista tanto por 10 pessoas como por mil ou por 10 mil, até porque faz parte da profissão das pessoas que supostamente são reconhecidas. Agora, se essa pessoa... se eu tirar uma foto a uma pessoa sem ela ver – se ela vê até, mas não estou ao lado dela – não me iria sentir tão bem.’” Gera-se a este respeito uma discussão entre A e AS relativamente à salvaguarda da vida privada e ao direito à imagem dos indivíduos (neste caso de figuras públicas) em espaço público. Estes estavam a conduzi-la sobretudo no sentido legal, chegando à questão da captura de imagem de pessoas que, por ocasionalidade, passam pelos locais e às quais não se pede autorização de imagem. “Ela é que se pôs à frente”, afirma A. No que diz respeito especificamente às selfies, ocorreu maior participação por parte dos adolescentes. Confrontados com a situação particular da celebridade Scarlett Johansson em nudez explícita e a da colega de escola, cujas fotografias mais comprometedoras circularam em todo o ambiente que lhe era habitual, alguns dos elementos – nomeadamente os femininos – confirmaram fotografarem-se, mesmo em casa, mas asseguraram que “‘minimamente’ vestidas”, “‘sempre em condições’”. E, em casa, espaço por excelência de privacidade e intimidade, quando em frente ao espelho da casa de banho, disseram cingir-se ao rosto, com reduzida exposição do corpo – é o testemunho de MD. No contexto local, todos os adolescentes inquiridos na Escola Frei Heitor Pinto estabeleceram alguma familiaridade com o caso mediático: uma rapariga, aluna na mesma escola, tirou selfies expondo o seu corpo e enviou-as a um rapaz. Este, por sua vez, mostrou-as a outras pessoas e, assim, começaram a circular pela comunidade escolar. É também no grupo de adolescentes masculinos que as fotografias de Johansson geram mais discussão. As imagens não foram divulgadas na rede pela atriz. Um hacker violou o seu smartphone e conseguiu copiar as suas fotografias, tornando-as públicas. Perante o exposto, os pretextos e/ou conclusões lançadas resumem-se à violência da expressão “‘pôr-se a jeito’”, por Zé2; acrescentando o dever de “‘ter consciência da pertinência e da quantidade de informação’ publicada; a relação entre a exposição, figuras públicas, selfies, o ser-se alvo de ataques de hackers, e a autorresponsabilização”. Está em causa a utilização dada ao smartphone e aos riscos que a ele estão associados, dado que o controlo sobre a fuga (ou a invasão) é um perigo real, sobretudo quando o mediatismo alimenta e torna apetecível esse tipo de ações. Zé2 responsabiliza-a pelo ‘descuido’, enquanto Zé1 a iliba justificando-se no facto de o smartphone ser propriedade da atriz e de ela fazer o que entender com o aparelho. A ação incorreta seria exclusivamente a do intruso.

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4.2. O interesse pela fotografia na população portuguesa

Quanto ao indivíduo comum, foram feitas algumas questões sobre as imagens online. Dentro dos resultados obtidos com o inquérito, há alguns com especial interesse na medida em que podem ser confrontados com aquilo que é a atividade das celebridades nas plataformas online, vulgo, social media. Acerca da frequência com que fotografias e/ou vídeos são capturados, o maior número de respostas vai para “Várias vezes por mês” (38%), depois “Raramente” (28%) e “Várias vezes por semana” (21%). As respostas “Várias vezes por dia” e “Uma vez por dia” obtiveram 4,5% e 2,1%, respetivamente. Quanto ao tipo de situações que as pessoas mais costumam fotografar destacam-se: atividades com amigos (53%), atividades de tempos livres e férias (53%); e atividades familiares, que estão em primeiro lugar (57%), deixando as selfies a meio da tabela de preferências, com um número significativamente inferior (8,2%). Na captura de imagens, os inquiridos preferem, com uma diferença larga, a câmara que o sistema operativo do dispositivo traz (61,%) relativamente aos restantes programas sugeridos. Dos que responderam, o Instagram é o que se segue (5%), depois com percentagens muito inferiores o Camera+, VSCO Cam, Paper Camera, ProCamera e o Snapseed. Quanto à mesma questão, mas aplicada à edição, os resultados indicam a mesma predisposição que a da captura, mas com valores ligeiramente mais diluídos. Em primeiro, o programa indexado ao sistema operativo com 33% das respostas e imediatamente a seguir o Instagram com 8,9%, seguidos da Camera+, Snapseed, VSCO Cam, ProCamera, Paper Camera. Quando questionados sobre o ato de fotografar ou filmar propositadamente outros indivíduos (sem laços entre ambos) em espaço público, a esmagadora maioria diz “não” o fazer (81%). As restantes opções de resposta apresentam valores baixos e aproximados: “sim, sem pedir autorização” (2,2%); “pedindo autorização” (1,9%); “evitando capturar o rosto” (3,3%). No caso de se tratar de uma figura pública em espaço público, a maioria respondeu “Não [fotografaria], porque são pessoas como outras” (53%). As percentagens mais próximas são “Sim, porque gostaria de ter um registo daquele momento com aquela pessoa” (14%); “Não, porque apresenta riscos para a privacidade” (13%); “Não, por compreensão da visibilidade do seu estatuto” (10%); “Sim, porque se tratava de uma situação caricata” (11%); “Sim, porque é um ídolo” (1,8%).

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A utilização de fotografias dos próprios indivíduos também é utilizada nos seus perfis nas redes sociais, com algumas modulações: “Na maioria dos casos” (31%); “Sempre” (26%); “Nunca” (11%); “Gosto de alternar com outro tipo de imagens” (9%), “Apenas em contextos profissionais” (7%). No que respeita à privacidade, procurou-se detetar a perceção do impacto das imagens, comparativamente com outros conteúdos, como comentários, SMS, email ou chat. O maior contingente de inquiridos sente que as imagens “têm mais riscos para a privacidade” (48,40%) do que outros conteúdos. Uma percentagem de 42% consideram que “Têm os mesmos riscos”, ao passo que apenas 2% acham que as imagens “têm [comparativamente] menos riscos para a privacidade” e outros 2% pensam que elas “não têm [quaisquer] riscos para a privacidade”. Quanto às plataformas mais utilizadas na partilha de imagens, o Facebook é a mais utilizada (58%), seguido do Instagram (18%), WhatsApp (7%), Snapchat (5%), Google+ (4%) e Twitter (4,%). As respostas “Não partilho” limitam-se a 0,3% dos inquiridos. Na perceção dos indivíduos sobre a privacidade, a exposição e as medidas de salvaguarda em relação às imagens sobre eles disponíveis, o grau de preocupação com a possível identificação de hábitos quotidianos mostra os inquiridos dividos entre o tipo de utilizador que, por um lado, se “preocupa pouco” (26%) ou “não se preocupa (15%) e, por outro lado, aqueles a quem esse risco “preocupa muito” (22%) ou “preocupa imenso” (16%). 4.3. As Selfies pelo clique das celebridades

A proximidade entre “preocupa pouco” e “preocupa muito” entre as respostas dos inquiridos que se poderão inserir no saco estereotipado do indivíduo comum é conclusiva de que o receio e a descontração para com as consequências da exposição estão renhidos. De certa forma este equilíbrio de pratos entre o muito e o pouco continua par a par mesmo com as celebridades. De experiências artísticas de autorretratos como se se tratassem de polaróides arrojadas a simples fotogramas do dia a dia, vejam-se as seguintes selfies de algumas celebridades portuguesas:

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David Fonseca é um cantor muito performativo nas suas selfies. Há uma grande compreensão de composição criativa e estética. Quando as fotografias são em cores, denota-se o realce, em algumas até o controlo da luminosidade e saturação as permite sobressair. Se em preto e branco, há jogo entre luz e sombra, e o retro e o desfoque demarcam-se também. Além da análise estética que se poderia desenvolver sobre a criatividade fotográfica do artista, identificam-se alguns pontos-chave que melhor se enquadram no artigo: o aparecimento do smartphone por duas vezes nos espelhos – objeto também ele estilizado à moda vintage com uma capa de cassete –, o recurso aos espelhos (retrovisores do carro e da mota, e a dois espelhos de dois espaços). As situações variam, bem como os cenários. Ora, está prestes a fazer uma atuação ou em situação de trabalho quotidiano (composição), ou em momento de descontração/lazer permitindo-lhe brincar com a sua própria figura com sobreposição de imagens, criando motivos fictícios sobrepostos na fotografia e algum trabalho com filtros. Em nenhuma se encontra algo a remeter para uma esfera mais íntima, embora haja uma contribuição pessoal no tratamento imagético das imagens, o que, no fundo, se tornara imagem de marca das suas fotografias e do próprio artista.

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As legendas acompanham o pensamento das imagens. Por exemplo, na primeira da primeira sequência de três diz: “Quem é quem.” Ou, por exemplo, “Serenata à chuva.”, “(K)night rider.”, “‘Dezembro, sussurrou o vento.”, “Manhã transparente.”, sentindo-se algumas alusões ao cinema e à literatura (gostos, portanto).

Inês Castel-Branco, atriz, revela-nos três dimensões: a familiar, a profissional, e a de associação à divulgação de marcas. Com fotografias menos trabalhadas esteticamente ou com algum propósito mais artístico, Inês aparece com a sua mãe no dia de aniversário desta última, tal como com duas crianças, que se supõe serem suas familiares. Aqui, sim, uma componente mais privada e intimista, se se poderá dizer, da parte da atriz. Depois, em situação de trabalho, durante as gravações, mostrando um pouco do ambiente, do décor e de pessoas com quem trabalha. Por último, duas situações em que há claras referências e recomendações de marcas que utiliza, não propriamente em estúdio ou campanha promocional, mas em situações relativamente descontraídas, indiciando um ambiente de rotina, patente sobretudo quando se refere à marca de verniz que está a colocar. Nota-se a aplicação de filtros sobretudo para obter algum realce das cores e ambientes airosos, mas nada mais além disso. De uma declaração de afetuosidade como “Esta miúda parecida comigo faz hoje anos. Parabéns mommy. Love you.”, referindo-se à sua mãe, passa-se para outra como “Agora já existe a Uber em Portugal. Motoristas privados à distância de uma aplicação. Check it out” com hashtags para #uber e #uberportugal, ou como “Pronta para abraçar a Primavera.” com hashtags para #avon e #coreslindas, entre outras a remeterem para

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a sua personagem, mostrando boa disposição, e carinho por uma nova personagem que integrara o elenco.

Ricardo Pereira, ator, mostra-nos um cenário completamente fora do seu ambiente profissional. Tratam-se de fotografias sobretudo com a família (a esposa, o pai e o filho) e amigos (com a legenda “Conversas de bar.” e a hashtag #entreamigos). Em duas delas há o recurso ao espelho e a uma superfície espelhada para criar alguma disformidade física. De realçar a intencionalidade de mostrar os momentos agradáveis e a boa disposição que tem no seu dia a dia. Uma das fotografias é associada à comemoração do Dia Mundial do Teatro (naquela em que é utilizado o espelho) a desejar “Feliz dia mundial do Teatro” com tags para as pessoas que o acompanham e para o #chapito; noutra revela um dos seus gostos/interesses pessoais, como o clube de futebol pelo qual torce pela legenda: “E grande Benfas, no primeiro jogo do Tenti no estádio! 3 gerações do SLB”; enquanto numa terceira, fazendo uma leitura além da literal da sua legenda “Quem me guia nos caminhos do dia a dia”, é bastante visível a marca do carro onde

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se encontra (SEAT). Nota-se o recurso a filtros mas sem grande interesse em trabalhar aprofundadamente a fotografia, servem sobretudo para criar ambientes para as ocasiões.

Daniela Ruah, atriz, apresenta-se em três linhas diferentes. Na profissional, onde cabem sobretudo fotografias ou em preparação para as filmagens ou entre filmagens com o resto do elenco principal em que diz mesmo #set life. Em lazer, numa saída com uma das suas colegas de série para irem ver um espectáculo, afirmando ser um #sundayfunday. E noutra fazendo publicidade ao colar que está a utilizar, a quem a penteou, e dizendo que vai estar presente na cerimónia do colega Chris O’donnell com interessantes hashtags: “#theimpretendingidontknowthecameraisthereselfie, #walkoffame, #star. Há também a captura de momentos em família, de cumplicidade com o filho e com a cunhada e sobrinho, dos quais os rostos estão sensivelmente resguardados De entre todas, uma não se trata de selfie, mas captura o momento de uma selfie, tirando-a com uma fã, consequência do seu estatuto profissional de pessoa reconhecida que exerce

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no indivíduo comum essa vontade de ter uma fotografia com a pessoa que admira. Neste caso, não é uma fotografia tradicionalmente capturada por outro, mas utilizando o smartphone da fã para o efeito num evento que o trabalho exige. Quanto a trabalho estético da imagem é muito pouco, percebe-se a utilização de alguns filtros, o preto e branco incluído, mas não a ser decisivo nas imagens em geral.

A personalidade (não personalidade como sinónimo de celebridade neste caso) de João Manzarra, apresentador de televisão na SIC, proporciona fotografias com humor e boa-disposição, seja em contexto profissional, nomeadamente nos bastidores das gravações dos programas que apresenta, quer numa situação de propósito cívico como o ter integrado a Marcha da Animal e registar esse acontecimento com o mesmo estilo com que fotografa habitualmente, ou em situações corriqueiras. Destas últimas, destacam-se uma fotografia em close up ao seu rosto com os olhos esbugalhados como que a falar com o seu público, dizendo “Estou-vos a ver” (em tom de brincadeira), mas transmitindo e como que possibilitando uma certa proximidade entre ele e os fãs; e outra em que está a comer uma nata, produto tradicional português, acrescentando informação sobre a sua vida profissional, dizendo que iria estar algum tempo entre Amesterdão

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em formação e Lisboa em trabalho, mas a ligá-los um produto do seu país. Uma forma de promoção não intencional, mas que existe efetivamente. Lembra o público de que aquele produto existe e de que aquela pessoa que tem centenas de seguidores aprecia esse produto. Para finalizar, uma selfie de grupo tirada durante o intervalo de uma das galas do Factor X ao jeito da selfie que Ellen Degeneres tirou aquando da apresentação dos Óscares de 2014. Não parece ser preocupação de João a edição das fotografias capturadas.

Iva Domingues, apresentadora de televisão na TVI, mostra um pouco da convivência com colegas de outras estações, que também são amigas e têm projetos em comum, bem como o companheirismo com o colega com quem co-apresenta o programa de domingo à tarde, não só dizendo que já tinha “saudades”, ou desejando um “Bom domingo”, mas também publicitando o programa “Somos Portugal”. Há este cumprimento habitual de enviar beijinhos aos fãs, o que também cria familiaridade e ligação com o público. Iva não se coíbe também de mostrar um momento pessoal, dizendo ser o “Último mergulho do ano!”, onde está também presente o seu companheiro, também ele figura pública, em trajes de banho, na praia, no Brasil; da mesma forma que se fotografa no ginásio, fazendo referência ao local #clubevii, mostrando parte do seu corpo e aludindo a uma prática que parece fazer parte da sua rotina pessoal pela legenda “Nada melhor que terminar o dia com um treininho”. Por fim, não se tratando de uma selfie, a escolha desta imagem teve o propósito de, além de ser mais uma manifestação daquilo que a apresentadora faz nos seus tempos livres, ser também mais um exemplo da importância que as selfies atingiram, sendo exploradas em diversas áreas como foi o caso de uma peça

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de teatro. Também pouca preocupação com a edição das imagens, talvez na que fora capturada no Rio de Janeiro tenha efetivamente sido adicionado um filtro mais acentuado.

Carolina Patrocínio, também apresentadora de televisão na SIC. Esta, por sua vez, de um programa chamado Fama Show, com rubricas que teriam a sua pertinência de análise, uma delas é precisamente sobre o que os “famosos andam a postar no Instagram”. Portanto, além da sua autorrepresentação em contexto laboral, na preparação do programa, vêmo-la numa situação que se apresenta como fazendo parte da sua rotina pessoal: o trabalho do corpo em ginásio, com descrição do planeamento de exercícios que segue (numa delas revelando o que comeu durante a semana e que a levou a querer manter-se em forma). Em relação às selfies em ginásio, para as quais recorre a um espelho para o efeito, há alguns aspetos a comentar: a exposição de parte do corpo, como modelo de fisionomia trabalhada em ginásio, a permanente identificação do estabelecimento – Infante de Sagres Health Club – e o facto de estar a fazer publicidade ao próprio estabelecimento, ainda que de uma forma, diga-se, camuflada. Descreve o treino, mostra-se a si e, consequentemente, um pouco do espaço, e o pormenor da geolocalização ativada. A finalizar, novamente a fotografar-se ao espelho, desta vez aproveitando o do elevador, para mostrar uma imagem mais glamorosa, sugerindo uma noite de diversão e descontracção com um look mais aprumado, legendada como “In the mood” e com a hashtag #hotfriday. Não parece ter havido edição das fotografias.

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Da pesquisa e observação realizadas de vários perfis de celebridades no Instagram, e dentro dos aqui selecionados, Rita Pereira, atriz, é aquela que mais se fotografa recorrendo ao espelho do elevador. Esta legenda as imagens com algo sugestivo do moral do dia, de alguma atividade que tenha feito (ida ao ginásio) ou vai fazer (saída à noite ou passeio) ou até mesmo algum comentário sobre o seu visual. Vejam-se os seguintes comentários: “Last walk for today” #walkinthepark, #liftyyourlook, #sheboots; #specialday, #smile, #goodvibes, #passararoupaaferrotambemteriasidobom, #jessyjamesday, #yourgonnakillit; “Sabes que deste tudo na aula de Spartans quando: A) estás prestes a vomitar B) estás prestes a vomitar C) estás prestes a vomitar”, #holmesplacecascais, #crossfit, #amanhanaomemexo. De notar que num dos hashtags faz publicidade ao ginásio identificando o nome: Holmes Place Cascais. A fotografia na cama ao acordar ou a estudar os textos para as filmagens, acrescido do desabafo sobre estar engripada; ou a fotografia com a equipa de filmagens utilizando o espelho do camarim; e, ainda, uma outra fotografia, na qual, embora não apareça e por isso lhe retira o estatuto de selfie, serve apenas para demonstrar que também fotografa coisas, objetos, e até comidas (como é o caso) que revelam os seus gostos.

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Da amostra, considero Rita Redshoes a figura pública (cantora) com uma maior diversidade, criatividade, imaginação, sensibilidade estética e de proximidade, a par do cantor David Fonseca. Seja em gravações, ensaios para espetáculos, em viagem para as localidades onde vai atuar ou numa ida a uma estação televisiva, portanto, em contexto profissional, aproveitando para divulgar/informar/relembrar os seus seguidores para onde a Ritacantora se desloca. Seja numa série quase cadenciada de imagens da cantora ao deitar, na cama, normalmente com o seu gato, desabafando ter sono, ou falta dele, e de não conseguir adormecer ou simplesmente para desejar boa noite (frequentemente, ao que parece já com o pijama vestido). Noutras imagens joga com partes do seu corpo: os pés, as mãos, os olhos, fazendo enquadramentos encenados e trabalhando a imagem com filtros, testando cores, o posicionamento dos membros, também em relação à luz natural, associando-as a legendas como “saturday.dance.feet”, “walking barefoot”, ou “eye for an eye”. Outras sugerem interpretações abstratas, “brincando” com alguns objetos como cortinas ou o próprio gorro que utiliza criando um cenário sugestivo, conotativo e inventivo com legendas como “into the night”

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ou “noiva de noite”. Por norma, a jogar com a sua imagem com menor ou maior produção visual (isto é, produção em relação a vestuário e maquilhagem) como acontece com aquela que é legendada de “punk. páscoa”, na qual mostra um maior arrojo visual ainda que utilizando o filtro em preto e branco em contraste. Também Rita fez parte de uma campanha de sensibilização, neste caso no âmbito da gravação do hino “Cansada” para a APAV. Não sendo efetivamente uma selfie, foi inserida com o intuito de mostrar também esta ligação com os movimentos cívicos e a consciência de que a sua imagem de alguma forma poderá contribuir (tal como as restantes cantoras com quem partilhou a realização desta ação). As restantes fotografias nitidamente a apostar no aproveitamento de espelhos/objetos espelhados, em que uma das imagens tem como legenda exatamente “mirror mirror”, onde se vê o seu rosto em duplicado como espelho um do outro mas em posição invertida; e as restantes em casas de banho, numa janela e numa porta de prédio. Cria efeitos de perpetiva e angulares que as próprias superfícies espelhadas proporcionam, incentivando os seguidores a irem ao concerto ou agradecendo quem compareceu. Cria jogos concetuais, utiliza o próprio corpo para a produção de semântica e criação de narrativa como a selfie em que se vê duplicada acompanhada da legenda “long hair.mad girl”. Ou, simplesmente, o registo da sua imagem aproveitando uma porta espelhada onde se vê de bicicleta, dizendo “Ir para o almoço de Natal em família de bicicleta com este sol é uma bênção”. Uma breve entrevista de Rita Redshoes ao Jornal de Notícias revela, na primeira pessoa, a importância do ‘contacto’ com os seguidores por meio da imagem digital, baseada na popularidade que as suas fotografias alcançaram no Instagram e, consequentemente, no Facebook: “A ideia de comunicar com as pessoas, não tanto por palavras, mas por fotografias, e eu também comecei depois a tentar explorar mais a fotografia digital e a utilizar outras aplicações, por exemplo a do O-matic para fazer sobreposição de fotografias e, portanto, encontrar ali uma linguagem que é a minha, do meu universo, que partilho com as pessoas, mas sem palavras. E isso é uma coisa que me atrai imenso porque gosto muito de cinema e de fotografia, e faz-me sentir comunicar dessa forma. Acaba por ser libertador para mim poder explorar outra vertente criativa que eu sinto que preciso de explorar e que gosto de o fazer e partilhá-la rapidamente com as pessoas, não tanto um ‘estou aqui, agora, a fazer isto’, porque não é muito essa a minha ligação com as redes sociais de todo, mas mostrar um bocadinho mais do meu universo. Mas de facto há imensa gente que, pelos vistos, vai gostando

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das imagens que eu vou criando, que vou ficcionando também. Acho que é também outra coisa interessante que as pessoas gostam de ver: o facto de ser músico e andar por aí, essa partilha de outros sítios, de outras culturas, de outros ambientes. Acho que isso interessa às pessoas, e a mim interessa-me também, portanto, acredito que do lado de lá seja interessante ir ver outros sítios, outros países e outras pessoas. Gosto de ver também muitos músicos, e não só, essa tal outra veia criativa, outros pontos de inspiração nessas pessoas de quem eu gosto do trabalho musical. Como é que se exprimem numa imagem? Porque nem sempre… nem toda a gente… pode ser um excelente músico e não ter exatamente uma perspetiva de olhar para um sítio e ter um olhar sobre esse sítio.”

Quando pensamos em celebridade surge algo como distintivo, individual, de destaque. Teríamos assim a glorificação do indivíduo em si, porém Taylor & Harris (2008) analisam um ser que não deixa de pertencer à massa, engavetado numa das secções que distingue, mas não o liberta da homogeneidade em que a sociedade se foi embrenhando. A dualidade entre a estrela/destaque (mais do que o reconhecimento) e o anonimato continuará. “A celebridade está construída como um paliativo para o anonimato da massa em vez de representar quaisquer qualidades intrínsecas que valham a pena de si própria.” (Taylor & Harris, 2008: 142). No filme Bling Ring: O Gangue de Hollywood, realizado por Sofia Coppola – que conta a história de um grupo de jovens que pilham as casas de famosos –, a deixa da personagem Marc é esclarecedora de uma certa linha de pensamento: “I think we just wanted to be part of the lifestyle. The lifestyle that everybody kinda wants”. E que estilo de vida é este afinal? Será autêntico, verdadeiro, um padrão de bem-estar constante? Ou uma ilusão, manipulação, distração? As selfies, de certa forma, revelam-nos uma identidade. Identidade conhecida por meio de imagens, que, neste caso, podem ser controladas pelas próprias celebridades, mas o dilema persiste entre a maior ou menor autenticidade e a fatia de fabricação da figura. “A celebridade é, portanto, a perfeita personificação da tautologia: o mais conhecido é o mais familiar. (Boorstin [1961] 1992: 60-1; Baudrillard 1990a: 95 in Taylor & Harris, 2008: 151) Conclusões Erving Goffman empreendeu um estudo centrado na interação social no quotidiano. O seu palco é o da ação, o espaço público, propício à

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reunião dos indivíduos e à comunicação entre eles ou, por outras palavras, à representação dos seus papéis. O espaço mundo é o espaço teatro, na grande metáfora construída por Goffman. Nele, cada indivíduo é um ator que representa individual ou coletivamente um determinado papel, cujo guião é construído de acordo com os contextos e as particularidades dos meios onde os indivíduos atuam. Estes contextos apresentam caraterísticas, perspetivas e «rituais» vários e diversos com os quais os indivíduos e/ou grupos contribuem. As celebridades vivem esses papéis de bastidores e de palco, e o distanciamento entre estes é, por vezes, o risco da (incontrolável) interseção. Georg Simmel introduz a tecnologia como sistema cultural. Apresenta a sociedade a construir-se para a tecnologia, para a técnica. Evolução que (me) suscita a expressão tecnologificação da cultura. Processo cultural que se dividirá entre subjetividade e objetividade, interioridade e exterioridade. E é nesses dilemas binários que a cultura vive, ponderando cada vez mais a objetivação da cultura, e especificamente a fotografia como objetivação do eu, matéria escolhida pelo próprio com o intuito de o plasmar numa imagem com um determinado cenário, comportamento, expressão corporal e facial numa moldura técnica, artificial. David Riesman foi pescado pelo conceito de outer-directed/otherdirected, aplicado ao encaminhamento que é feito dos indivíduos que se tornam celebridades para os outros, que têm de conquistar o seu público, criar empatia e familiaridade. Mostrar algo de quem são não só profissionalmente, mas também do seu quotidiano, que permita obter um retorno emocional e, consequentemente, a repercutir-se no âmbito comercial do qual a figura por detrás da celebridade sobrevive. Juntando estas dimensões que se desenham pelas reflexões dos clássicos citados, enfrenta-se uma evolução tecnológica que faz o homem centralizar-se/colar-se/ficar estacionário em objetos que se tornaram móveis, tendo como fiel representante o smartphone. Para a sua abordagem, vários autores se têm dedicado. Surgem os conceitos de selfhood ou personhood de Nafus & Tracy, a individualidade que é construída ou se vai construindo no meio social e de como o smartphone definem as dinâmicas de vivência das pessoas, da gestão da individualidade, do ambiente privado e íntimo, do espaço público e de quem são em cada uma destas dimensões. Permitindo uma constante presença (“presente ausente” de Gergen), ainda que ausente, como se não houvesse botão ou interruptor para desligar esse perpectual contact (Katz e Aakhus), que parece ter sempre na rua ou dentro de casa esses indivíduos, célebres, e que comunicam com os seus seguidores pelos social media.

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Igualmente pertinente e importante foi refletir sobre o facto de as selfies não serem uma aparição da sociedade contemporânea, capitalista e fadada para a tecnologia. O século XVI mostra o início com Parmigianino a pintar o seu autorretrato com a obra Self-Portrait in a Convex Mirror (1524). A autorrepresentação tem séculos de existência acompanhada de diferentes instrumentos e formas de ação. Hoje, o espelho convexo utilizado por Parmigianino é o smartphone e as aplicações disponibilizadas para a captura de imagem e sua edição. Aquilo que o espelho convexo distorcia, na altura sem opção, hoje os utilizadores transformam a sua imagem, interpretam-na de uma forma, e fazem a sua própria autorrepresentação. Socorre-se de filtros (encenam, como Goffman diria), ferramentas de regulação de todos os elementos como um programa de Photoshop faz num computador. Rettberg explora o conceito de filtro e conclui que quando, no geral, filtro indica remoção/retirar, insere a questão de o Instagram, por exemplo, disponibilizar uma série de filtros que têm como finalidade acrescentar algo. No entanto, também se retira, retira-se o original do original, total ou parcialmente. Isto permite que as imagens, sejam selfies ou outras, sejam abastecidas de camadas de distorção, que a imagem representada já não é propriamente a imagem capturada, mas uma criação. Toda esta construção que o homem faz de si próprio derivará de um propósito, que pode ter como origem o gosto pessoal até à venda da imagem (de marca). Continua-se a questionar quem é o verdadeiro eu, se efetivamente as selfies em família ou lazer são o da personalidade-pessoa ou da personalidade-celebridade. Chegados às selfies digitais, ou seja, à autorrepresentação do indivíduo no século XXI, para as quais o smartphone se tornara o dispositivo privilegiado, estas ganham mais destaque nas redes sociais, sejam elas utilizadas como fotografias de perfil ou simplesmente para serem partilhadas com os seus contactos no mural. A este nível, a maior preocupação em relação à salvaguarda de privacidade prende-se sobretudo com a cópia e roubo das mesmas, estejam elas disponíveis no mural ou no aparelho, no sistema cloud, por parte de hackers, que terão o poder de as divulgar ou encerrá-las noutros contextos. Riscos que qualquer conteúdo disponibilizado na Web corre, tal como participantes dos grupos de foco fizeram notar. Deste e dos inquéritos realizados infere-se que, de forma geral, o indivíduo comum pensa e, pelo menos, tenta ter alguns cuidados com o resguardo ou exposição da privacidade, tendo consciência de algumas falhas, como a não leitura de termos de privacidade. E quanto à exposição das celebridades, confrontaram-se duas perspetivas em dois aspetos: a da reserva em fotografar porque na verdade são pessoas como outras quaisquer e o fotografar sem qualquer constrangimento uma vez

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que a profissão delas assim as expõe; e o facto de, na hipótese de divulgação de imagens íntimas que possam estar arquivadas nos dispositivos móveis como foi o caso demonstrado por Scarlett Johansson, estarem sujeitas a ataques de hackers, significando para uns “‘pôr-se a jeito’”, mas para outros considerar o dispositivo como propriedade de alguém, e, como tal, ter o direito de fazer o que entender com ele e consigo própria. Tal como Driessens afirmara, a celebridade sofre um processo de construção, quase de fabrico, e é envolvida em transformações socioculturais divididas por “mediatização”, “personalização” e “mercantilização”. Da formação da identidade à venda da imagem. Há referência ao próprio do-it-yourself (Driessens), ou seja, uma espécie de selfmade celebrity por parte do indivíduo comum que começa a afirmar-se nos social media e a angariar seguidores e simpatias. Das várias análises teóricas e empíricas destacou-se a dualidade entre a individualidade original e a construção de uma outra individualidade, como que acertando uma personalidade com uma despersonalização. E por que é que elas chegam a ter tanto impacto em muitas pessoas? O fenómeno da familiaridade não é despropositado nem o de uma memória que é construída com base nessas figuras a quem se afeiçoam e de alguma forma entram no quotidiano e na história individual. Isto é percetível nas imagens que foram recolhidas para análise empírica. E o Facebook, Instagram ou Twitter revelam-se patchworks de estados de espírito ou de como se veem naquele momento, em determinado sítio mesmo que sozinhos, ambientes, reuniões familiares, amostras do quotidiano profissional, das pessoas com quem lidam. O Instagram particularmente tornou-se numa narrativa ilustrada. Ter-se-á uma imagem por inteiro ou fragmentada? Ou depara-se com perspetivas fragmentadas sobre essas pessoas que ganham ou se transformam em personalidades? Será como Fernando Pessoa – uma (des) multiplicação do eu em diferentes eu? Referências bibliográficas Ahern, S.; Eckles, D.; Good, N.; King, S.; Naaman, M.; Nair, R. (2007). Over-Exposed? Privacy Patterns and Considerations in Online and Mobile Photo Sharing. Proceedings of the SIGCHI Conference on Human Factors in Computing Systems Califórnia, USA: 357-366. Disponível em http://infolab. stanford.edu/~mor/research/chi241-ahern-mediaprivacy.pdf

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CAPÍTULO 12

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS DOS UTILIZADORES Ana Serrano Tellería Pedro Pereira

Introdução Um perfil é informação estruturada sobre os utilizadores de serviços digitais. A sua estrutura concreta depende da forma como a informação foi recolhida, a tecnologia envolvida, os tipos de dados ou o que a lei permite. Num ambiente móvel este perfil geralmente é mais rico do que no caso genérico da Internet e está também ligado de forma mais clara a um indivíduo em particular, através de um dispositivo móvel associado a um endereço IP. Além disso, no caso da inteligência ambiente (a consciência do contexto), o perfil do utilizador pode até mesmo incluir parâmetros biofísicos, nível de carga da bateria e um rico conjunto de variáveis sobre o meio ambiente, que podem incluir, além da localização e orientação, informações como a temperatura, humidade, ruídos, etc. – os desafios relacionados com o uso e abuso de informações pessoais – (Aguado et al, 2013). O conceito de Identidade Digital (ID) surge a partir da combinação de três fatores principais (Cerra, James; 2012): A manifestação concreta da auto-imagem da pessoa no serviço digital em questão (por exemplo, uma rede social profissional); os elementos decorrentes da proteção, limitação, modificação e/ou ocultação de determinadas informações que os utilizadores podem definir de acordo com as suas preferências (por exemplo, para destacar um determinado emprego); e da implementação de políticas em relação aos dados do provedor (a criação de um ID de utilizador único e registrar todas as atividades que ocorrem ao aceder a rede

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social em questão). Portanto, um determinado indivíduo pode ter várias identidades digitais. Como referido no capítulo sobre Twitter (Serrano Tellería, Pereira; 2015), as reflexões académicas em torno de como as redes sociais e as aplicações, os media e plataformas moldam a configuração dos nossos perfis e identidades digitais, para além também das suas potencialidades para influenciar as nossas identidades online – e offline – (Van Dick, 2013); referem-se, principalmente, às “Mediated Memories” – “Normative Discursive Strategies” – (Van Dijck, 2007: 22) e às “Terministic Screens” (Markham, 2013). Estas chamam a atenção para como os filtros nos permitem expressar em certos aspetos, mas não em outros. Os filtros podem ser tecnológicos, culturais ou cognitivos, ou podem ser uma combinação destes (“Filtered Reality, Filtered World”; Walker Rettberg, 2014). Os perfis dos media sociais não são um reflexo da própria identidade, ou estádios neutros de auto desempenho, nem são um meio de autoexpressão (Horning, 2014) – são as próprias ferramentas para formar as identidades (Van Dijck, 2013). “A fusão de autoexpressão, a autocomunicação e autopromoção numa ferramenta, que é posteriormente utilizada para avaliação da personalidade e do comportamento da manipulação, deve sensibilizar os utilizadores nos seus diferentes papéis como cidadãos, amigos, empregados, empregadores, etc.” (Van Dijck, 2013). Para além disso, a tecnologia descrita como a “Architecture of Intimacy” (Turkle, 2011), “Architecture of Disclosure” (Facebook: Marichal; 2012), onde a quantificação métrica prescreve a interação social (“Desire for more” – Facebook: Grosser de 2014), e a possibilidade de receber estímulos de todos os tipos constantemente e o ‘Design de Exposição’ (Serrano Tellería, 2014; 2015a) influencia constantemente a forma de estabelecer o nível de prioridade corretamente, bem como a forma de proteger a sua privacidade em diferentes camadas e estágios de acordo com suas possibilidades (Serrano Tellería, Oliveira; 2015; Serrano Tellería, 2015b). 1. Metodologia O objetivo do estudo do Instagram foi efetuar recolha de imagens partilhadas na rede, para o estudo da “imagem e exposição do Self”. O Instagram é uma rede social que permite aos utilizadores tirar fotos e gravar vídeos, aplicar filtros digitais, e partilhá-los em várias redes sociais, como o Facebook, Twitter, Tumblr e Flick. Uma caraterística do Instagram é o facto de limitar a forma das fotos a um quadrado, imitando o formato

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

299

Kodak Intamic e Polaroid, contrastando com o típico formato 16:9 utilizado pelas câmaras de dispositivos móveis. Inicialmente, o objetivo era proceder à recolha de imagens da rede Instagram com o auxílio de hashtags, uma vez que estas permitiam delimitar o conjunto de imagens em estudo, ao mesmo tempo que funcionam como uma ferramenta de identificação que está em crescente uso, funcionando ainda como identificadores de tendências na rede. Como tal, procurou definir-se quais as hashtags a ser estudadas. Por forma a obter as hashtags mais relevantes para os utilizadores, efetuou-se uma pesquisa pelas 100 mais populares no ano de 2014. Esta listagem foi obtida através do website top hashtags83. Desta listagem de 100, foram selecionadas as 10 mais populares, tendo-se obtido o seguinte conjunto: Posição de Popularidade

Hashtag

1

#love

2

#instagood

3

#me

4

#tbt

5

#follow

6

#cute

7

#followme

8

#photooftheday

9

#tagsforlikes

10

#happy

Utilizando estas hashtags, procedeu-se à procura de imagens pelas mesmas, utilizando o website de exploração do Instagram IconoSquare84, tendo-se analisado perto de 100 imagens diferentes. Dos resultados, chegou-se à conclusão de que não havia nenhuma temática em específico para as hashtags, resultando sempre em imagens aleatórias. De forma a

83 84

http://top-hashtags.com/instagram/ http://iconosquare.com/

300

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

entender esta tendência, efetuaram-se algumas pesquisas por websites85 e fóruns dedicados ao Instagram. Esta pesquisa revelou que existem locais na internet, como por exemplo o website tags for likes86, em que são dadas listagens de hashtags aos utilizadores consoante o nível de visibilidade que pretendem ter na rede, pelo que os utilizadores apenas têm de copiar as hashtags e colá-las na descrição da imagem. Ou seja, muitos dos utilizadores usam estas hashtags, não por as suas imagens estarem dentro da temática, mas por serem populares, conseguindo assim uma maior visibilidade na rede, “viciando” o sistema de hashtags mediante esta dinâmica. Uma vez que grande parte do sistema de popularidade de hahstags no Instagram está de certa forma “viciado”, optou-se por abandonar esta abordagem e efetuar a análise da rede utilizando a ferramenta Netlytic87, que foi também utilizada para as redes Twitter e Reddit. O propósito da análise efetuada anteriormente a estas duas redes foi detetar conversas entre os utilizadores sobre, por exemplo, a problemática da privacidade e da internet. O Netlytic é um analisador de texto e redes sociais instalado numa cloud. Este software permite sumariar grandes volumes de texto, pelo que permite efetuar a avaliação das conversas e classificá-las segundo uma tabela de categorias previamente definida. O objetivo foi reutilizar as categorias definidas previamente para a análise das redes Twitter e Reddit, e aplicá-las aos termos utilizados nas pesquisas efetuadas para essas mesmas redes, por forma a criar uma correspondência entre as abordagens. A pesquisa realizada no Netlytic partiu da hashtag #privacidade. Foi escolhida esta hashtag em particular de forma a fazer um paralelismo com as pesquisas efetuadas nos estudos anteriores88. A escolha da língua portuguesa na hashtag foi uma forma de tentar aproximar os resultados a utilizadores portugueses, estando no entanto conscientes de que iriam surgir nos resultados vários utilizadores brasileiros. 85

Websites consultados: http://www.tagsforlikes.com/; http://top-hashtags.com/ instagram/; http://www.postplanner.com/popular-instagram-hashtags-for-getting-newfollowers/; http://www.twelveskip.com/hashtags/instagram-tags/1094/top-trending-insta gram-hashtags-2014; 86 http://www.tagsforlikes.com/ 87 https://netlytic.org/ 88 Para o Twitter e Reddit, foram efetuadas pesquisas para os termos Privacy, Profile, Digital Identity, Username e Anonymity. Ter em conta que os termos em inglês não foram aplicados à pesquisa no Instagram.

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

301

Apesar de ser uma ferramenta de análise essencialmente focada em texto, o uso do Netlytic teve como objetivo tentar identificar fotos de interesse para a investigação através das mensagens associadas às mesmas e às hashtags. Ao fim de 3 dias de recolha de informação, o Netlytic recolheu um total de 338 mensagens marcadas com #privacidade. Porém, ao analisar-se os resultados, chegou-se à conclusão de que o termo era muito raramente empregado em contextos onde se debatiam questões relativas às delimitações e problemáticas de toda a gradação de termos que surgem relacionados (como autenticidade, anonimato, intimidade, identidade), mas sim utilizado nas mais variadas situações, desde imagens de casas de agências imobiliárias até publicidade a produtos comerciais. De notar também que se obteve um número muito elevado de utilizadores brasileiros no conjunto de dados recolhidos, ao passo que o de utilizadores portugueses era muito reduzido. Uma vez que o estudo pretende focar a população portuguesa, estes resultados concluíram-se como insatisfatórios. Tendo em conta que não foi possível definir um grupo de interesse (população portuguesa) aplicando as metodologias anteriores, partiu-se para uma terceira opção. Uma vez que o objetivo principal é focar a investigação nos utilizadores portugueses, procurou-se delimitar os mesmos através do uso da localização das imagens. Esta escolha também teve como base o facto de a sincronização de contas e localização serem aspetos proeminentes que preocupam a população em geral (portuguesa incluída), tal como demonstram os estudos exploratórios no âmbito do projeto89 e outros de alcance internacional. Por fim, e em ligação ao mencionado anteriormente, também o uso da localização revela um ato livre e consciente de exposição do self. Para proceder à localização dos utilizadores, recorreu-se ao website collect90, que permite localizar num mapa os locais onde as imagens foram partilhadas no Instagram. De notar que as contas de Instagram podem ser privadas ou públicas, pelo que este tipo de ferramentas apenas permite o acesso a contas públicas. Utilizando esta ferramenta, focou-se a pesquisa na área da cidade da Covilhã91, local onde se fizeram os grupos de foco e a

89

Serrano Tellería, Oliveira; 2015 http://collec.to/ 91 Cidade portuguesa na encosta da Serra da Estrela, com 34 682 habitantes. É sede de um município com 555,60 km² de área e 51 797 habitantes. 90

302

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

maioria das entrevistas no âmbito do projeto ”Public and Private in Mobile Communications”92. Uma vez selecionada esta cidade, deu-se enfase às áreas da mesma com maior publicação de fotos. Foram usados como referência os seguintes locais: Universidade da Beira Interior (polos 2, 4, 6 e Faculdade de Ciências da Saúde); • Centro comercial Serra Shopping; • Jardim do lago; •

Esta abordagem permitiu-nos identificar um total de 89 utilizadores da zona e ter acesso às suas contas públicas de Instagram. Desta forma, foi possível verificar quais os utilizadores mais ativos nos meses de Dezembro e Janeiro, e obter o número total de fotos que cada utilizador deste grupo publicou na rede. Assim, criou-se uma tabela ordenada por atividade na rede Instagram, de forma a identificar os utilizadores mais ativos. Uma vez que partimos de um objeto de estudo caraterizado por utilizadores que, voluntariamente colocam sua conta visível publicamente e que facilitam a sua localização, seria incongruente selecionar aqueles com menor atividade na rede. Como tal, escolhemos aqueles que nos permitiram obter a maior amostra possível de imagens. Reconhecemos a possibilidade de optar por escolher também aqueles com menor atividade, para posteriormente realizar uma comparação entre os mais e menos ativos com o objetivo de diferenciar práticas. Contudo, depois de uma primeira abordagem, apercebemo-nos de que tal não seria possível uma vez que, tanto as imagens como o baixo nível de interação observado através da ferramenta não iriam possibilitar uma comparação correta. Por baixo nível de interação referimonos ao intercâmbio de comentários. Com base na tabela ordenada, foram identificados os cinco utilizadores masculinos e os cinco utilizadores femininos mais ativos, formando-se assim o grupo de utilizadores que serviu de base para o estudo. Foram escolhidos os cinco mais ativos uma vez que abaixo da quinta posição, o número máximo de fotos publicadas num dia era inferior a quatro. O grupo é composto pelos seguintes utilizadores:

92

Abril 2013-Março 2015. Projecto europeu FEDER-MAIS CENTRO. Referencia: CENTRO-07-ST24-FEDER-002017; Labcom, Universidade da Beira Interior, Portugal.

303

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

Masculinos Utilizador

Max de fotos diárias

Total de fotos da conta

@aazevedo1011

8

1417

@ryckslopes

6

777

@pedroafonso__

4

601

@alberto_marques

4

592

@luteniojunior

4

233

Femininos Utilizador

Max de fotos diárias

Total de fotos da conta

@anaximandra

11

881

@projectovidanova

10

950

@sueli9moreira

8

353

@mari.miranda.96

6

326

@lidiandiasld

6

228

Do grupo de utilizadores masculino, apesar de ser o terceiro utilizador mais ativo, @rodrodrigo foi excluído por ser estrangeiro em programa Erasmus na Universidade da Beira Interior. Também o utilizador @fabiogiacomelli foi excluído porque, apesar de já se encontrar em Portugal há algum tempo, é de nacionalidade brasileira. Estas exclusões tiveram como base o facto de existirem importantes diferenças de perspetiva intercultural no que toca à exposição, identidade, e privacidade. Do grupo de utilizadores feminino, apesar de estarem no top dos cinco mais ativos, foram excluídas duas utilizadoras: @leticiahauagge por ser estrangeira em programa Erasmus na Universidade da Beira Interior, e @sweet_joycekelly que tornou a sua conta privada quando estava a decorrer a recolha de dados. Após a recolha dos dados relativos ao mês de Dezembro obtiveram-se os seguintes valores relativos aos utilizadores:

304

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

Masculinos Utilizador

Total de fotos em Dezembro

@aazevedo1011

29

@ryckslopes

61

@pedroafonso__

33

@alberto_marques

47

@luteniojunior

19

Total

189

Femininos Utilizador

Total de fotos em Dezembro

@anaximandra

42

@projectovidanova

84

@sueli9moreira

55

@mari.miranda.96

20

@lidiandiasld

28

Total

229

Algo notório na recolha efetuada, e que teve a influência nos resultados analisados anteriormente pelo Netlytic, foi o facto de que quando se recolheram as imagens dos utilizadores portugueses, se verificou que a grande maioria utilizava as hashtags em inglês ao invés de usar uma hashtag correspondente em português. Uma vez recolhidos e analisados dos dados relativos ao mês de Dezembro de 2014, prologou-se esta observação para o mês de Janeiro de 2015, com o objetivo de nos apercebermos de possíveis diferenças nas práticas de publicação, uma vez que se trata de um mês que não é caracterizado por férias (Natal). Para este mês obtiveram-se os seguintes resultados:

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

305

Masculinos Utilizador

Total de fotos em Janeiro

@aazevedo1011

23

@ryckslopes

37

@pedroafonso__

61

@alberto_marques

79

@luteniojunior

11

Total

211

Femininos Utilizador

Total de fotos em Janeiro

@anaximandra

50

@projectovidanova

103

@sueli9moreira

58

@mari.miranda.96

28

@lidiandiasld

16

Total

255

2. Análise Com o objetivo de fazer uma categorização geral prévia das imagens recolhidas, focamo-nos em três aspetos: localização, âmbito onde a imagem foi tirada e mensagem que a acompanha, tendo em conta os possíveis hashtags. Das imagens recolhidas, durante o mês de Dezembro de 2014, obtiveram-se os seguintes dados:

306

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

Localização Masculino

Feminino

Localização definida

104

42

Localização não definida

85

187

Contexto público

145

83

Contexto privado

36

130

Contexto não definido

8

16

Referência à localização na mensagem

68

10

Observando os resultados obtidos, podemos desde já notar que, no grupo de utilizadores analisados, os utilizadores masculinos apresentam uma maior tendência para utilizar a localização nas imagens partilhadas, ao passo que os femininos, por norma, utilizam bastante menos esta opção. A nível do contexto em que as fotografias partilhadas são tiradas, podemos desde já verificar uma maior tendência dos utilizadores masculinos para espaços públicos, em contraste com o que acontece com os utilizadores femininos, cuja maioria das imagens partilhadas é no contexto privado. Relativamente à partilha de detalhes da localização nas mensagens, podemos verificar que é bastante mais comum entre os utilizadores masculinos. Uma vez efetuada esta análise mais geral das imagens, para um segundo nível de estudo partiu-se para a avaliação do conteúdo das mesmas. Para tal dividiram-se as imagens em quatro grandes grupos: Pessoas (fotografias em que o foco são indivíduos), Objetos e Outros (imagens de objetos, por exemplo um carro, ou então comida), Locais (imagens de paisagens ou de locais específicos como monumentos), e Animais (imagens em que o foco é um animal). Quanto às mensagens associadas às imagens, na grande maioria dos casos o conteúdo é irrelevante, uma vez que a observação exclusiva da imagem permite classificar o seu conteúdo e não acrescenta informação extra. Porém, em alguns casos específicos, permite-nos depreender algumas informações específicas da vida dos utilizadores. Por exemplo, a fotografia de uma criança que é identificada na mensagem como sendo o filho do utilizador. Os resultados obtidos para este segundo nível de análise para a as imagens do mês de Dezembro de 2014 foram os seguintes:

307

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

Conteúdo Masculino Feminino

Pessoas93

Objetos e outros94

Selfie

11

16

Próprio

7

18

Terceiros

12

8

Acompanhado

31

15

Próprio

27

10195

Terceiros

7

10

Acompanhantes

0

0

8897

31

Sozinho

0

13

Donos

0

3

Terceiros

0

0

Locais96 Animais98

939495969798

A nível do conteúdo das fotografias partilhadas podemos verificar algumas tendências. No que diz respeito a imagens de pessoas, os utilizadores masculinos apresentam um maior número de imagens onde estão acompanhados por terceiros. Já entre os utilizadores femininos, o tipo de imagens dominantes com pessoas são as Selfies, ou fotografias do próprio utilizador tiradas por terceiros. A nível de imagens de objetos, a grande maioria dos objetos são do próprio utilizador. Na categoria de objetos foram contabilizadas as imagens de refeições partilhadas. De notar que a grande diferença entre masculinos 93

Imagens onde o foco são pessoas, sejam elas o próprio utilizador da conta ou terceiros. 94 Imagens onde o foco são objetos, por exemplo um relógio ou um carro, ou imagens de refeições. 95 Grande parte das imagens publicadas por @projectovidanova eram de refeições, o que levou a um número extremamente alto neste campo. 96 Imagens onde o foco são paisagens, edifícios, ruas ou monumentos. 97 De notar que todas as fotografias publicadas pelo utilizador @alberto_marques são paisagens, o que contribuiu para o valor apresentado. 98 Imagens onde o foco são animais, por exemplo a foto do cão do utilizador.

308

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

e femininos se deve essencialmente à utilizadora @projectovidanova, que como o próprio nome indica, partilha as fotografias com o objetivo de registar as suas refeições para assim alcançar uma alimentação saudável. A nível de fotos que se focam em locais e paisagens, aparenta haver um domínio dos utilizadores masculinos. Porém, é preciso ter em conta que, tal como na análise anterior houve uma grade influência de um utilizador, também aqui grande parte das imagens recolhidas resultaram do utilizador @alberto_marques. Este utilizador é fotografo e utiliza o Instagram para dar a conhecer o seu trabalho aos utilizadores e se autopromover, focando-se essencialmente em fotografias de paisagens. Por fim, na secção dedicada a imagens de animais, podemos verificar que apenas os utilizadores femininos partilharam imagens dos animais de estimação. De notar que é possível que nenhum dos utilizadores masculinos estudados tenha animais de estimação. De entre das fotos de animais recolhidas, predominam as fotos em que os animais estão sozinhos. Fazendo uma análise individual de cada um dos utilizadores, grande parte das partilhas do @aazevedo1011 são de imagens em contexto público, a maior parte relacionadas com futebol e com o Benfica, clube de que é adepto. As fotos mais pessoais são muitas vezes de, ou com, uma criança, que se supõe que seja o respetivo filho. Através do Instagram, ficamos a saber que utilizador @ryckslopes é aluno da Universidade da Beira Interior. Este utilizador apresenta várias fotos, a grande maioria em contexto público, onde deixa passar detalhes da sua vida como estudante, abordando trabalhos e projetos para o curso. Também deixa transparecer alguma informação sobre a sua vida privada, como locais que visitou, saídas com os amigos, ou o Natal em família. Avançando, seguimos para o utilizador @pedroafonso__. Também aqui, pelas fotos publicadas, conseguimos perceber que é aluno da Universidade da Beira Interior, mas do curso de Medicina. Também este utilizador partilha várias fotos que permitem ter uma ideia da sua vida pessoal através das imagens e respetivas mensagens. De entre as fotos, podemos destacar algumas tiradas na faculdade de Ciências da Saúde, ou durante as férias do utilizador no Brasil. Algumas das fotos também revelam certos detalhes da sua vida familiar, nomeadamente com a mãe, com o irmão e com os primos. O utilizador @alberto_marques apresenta uma dinâmica de publicação de imagens bem diferente das dos restantes utilizadores. Ao passo que os outros utilizadores masculinos utilizam o Instagram para partilhar conteúdo da sua vida pessoal, @alberto_marques utiliza-o como uma ferramenta para dar a conhecer o seu trabalho de fotografia, pelo que

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

309

as imagens publicadas pelo mesmo consistem essencialmente em paisagens da cidade da Covilhã, ou de outros locais que visitou, como por exemplo o Brasil. Por fim, o último utilizador masculino, @luteniojunior, revela através das imagens publicadas que é aluno de Medicina na Universidade da Beira Interior. Apresenta uma série fotos que nos permite ter alguns detalhes da sua vida pessoal, nomeadamente saídas com amigos e família, através de fotografias que tirou e partilhou. As imagens publicadas têm na grande maioria um teor pessoal. Passando à análise dos utilizadores femininos, a utilizadora @anaxi mandra apresenta essencialmente fotos que tirou aos seus animais de estimação ou locais que visitou. Nas imagens partilhadas é notória a importância dos animais para esta utilizadora. As poucas fotos partilhadas em que se encontram pessoas permitem ter uma ideia do ambiente familiar em que vive e da relação que tem com a irmã. A utilizadora @projectovidanova é um caso muito particular. Ao contrário dos restantes utilizadores, que usam as suas contas de Instagram para partilhar imagens da sua vida pessoal ou promover o seu trabalho (como a utilizadora @sueli9moreira), a @projectovidanova utiliza a sua conta, em associação com um blogue, como forma de manter um registo do que come diariamente. O objetivo desta utilizadora é manter uma vida saudável, pelo que o Instagram lhe serve de ferramenta, ao mesmo que ajuda a inspirar os seguidores que possuam o mesmo objetivo. Tendo isto em conta, a grande maioria das imagens partilhadas são de refeições, havendo poucas imagens relativas a outros aspetos da vida pessoal. Porém, em algumas fotos, é possível observar situações relacionadas com a sua vida de estudante e pessoal. Mais uma vez, através das fotos publicadas e respetivas mensagens, foi possível perceber que a utilizadora @projectovidanova é aluna de Medicina na Universidade da Beira Interior. A utilizadora @sueli9moreira dá-nos a perceber pelas fotos publicadas que é aluna do curso de Design de Moda da Universidade da Beira Interior e modelo. Esta utilizadora usa o Instagram com duas finalidades. Se por um lado publica fotos de teor mais pessoal, deixando escapar detalhes da sua vida, como por exemplo saídas com o namorado ou a sua relação pessoal com a família, partilhando fotos desses momentos e permitindo a identificação de alguns familiares, como o pai e a irmã, por outro lado recorre também ao Instagram para divulgar o seu trabalho, seja como modelo ou como aluna de Design de Moda. Através de uma foto, a utilizadora também dá a conhecer a sua gata.

310

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

Avançando para a utilizadora @mari.miranda.96, podemos constatar que ela usa o Instragram essencialmente para partilhar momentos da sua vida pessoal. Nas fotos podemos ver desde selfies a fotografias com os amigos em saídas a bares na Covilhã. Através das fotos também nos é dado a saber que a utilizadora tem uma irmã mais nova, identificada através das mensagens das imagens. Por fim, a utilizadora @lidiandiasld, antiga aluna do curso de Medicina da Universidade da Beira Interior, usa o Instagram para divulgar fotos pessoais. Porém, ao contrário do que acontecia por exemplo com a utilizadora @mari.miranda.96, que aparecia em praticamente todas as suas fotos, a @lidiandiasld surge apenas numa. A grande maioria das fotos são de terceiros, locais ou objectos da vida da utilizadora. Através das fotos ficamos a saber alguns detalhes da sua vida pessoal, como ter o hobby da pintura (partilha várias imagens de material de pintura e de trabalhos seus) e ser da zona de cascais (referências nas mensagens). Também ficamos a saber alguns aspetos profissionais, como o ter concorrido para especialidade de Neurocirurgia no Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental (partilha de foto do documento de candidatura). Após efetuada a análise das imagens recolhidas em Dezembro de 2014, procedeu-se a uma segunda fase de análise, desta vez às imagens de Janeiro de 2015, com intuito de aprofundar nas tendências observadas e comparar estes dois meses com características diferentes, sendo o mês de Dezembro um mês de férias e festividades, ao contrário de Janeiro, que representa um regresso ao típico dia-a-dia. Das imagens recolhidas durante o mês de Janeiro de 2015, obtiveram-se os seguintes dados:

Localização Masculino

Feminino

Localização Definida

136

53

Localização Não Definida

74

202

Contexto Público

159

115

Contexto Privado

34

121

Contexto Não Definido

17

19

Referência à Localização na Mensagem

109

4

311

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

Mantendo a tendência de Dezembro, os utilizadores masculinos apresentam uma maior preferência para a utilização de localização nas imagens partilhadas, embora tenha havido um aumento em ambos os sexos. Porém, no que toca a imagens sem localização definida, houve um decréscimo de imagens nos utilizadores masculinos e um aumento nos femininos. Também a nível do contexto em que as fotografias partilhadas são tiradas, podemos verificar que se mantêm a tendência dos utilizadores masculinos para espaços públicos, em contraste com o que acontece com os utilizadores femininos, cuja maioria das imagens partilhadas é no contexto privado. De notar porém, que de Dezembro para Janeiro houve um aumento das fotos em contexto público e uma redução do número de fotos em contexto privado. É de destacar que o maior aumento se verificou nos utilizadores femininos, com mais 32 fotos públicas em Janeiro, sendo mais que o dobro do aumento masculino. Quanto à partilha de detalhes da localização nas mensagens, podemos verificar que continua a ser mais comum entre os utilizadores masculinos, notando-se mais essa discrepância em Janeiro, onde houve 109 imagens de utilizadores masculinos e 4 de femininos. De notar que houve um decréscimo de 6 imagens para os utilizadores femininos e um aumento de 41 imagens para os utilizadores masculinos. Conteúdo

Pessoas99

Objetos e Outros100

Masculino

Feminino

Selfie

12

16

Próprio

12

39

Terceiros

6

4

Acompanhado

25

24

Próprio

23

96101

Terceiros

4

11

Acompanhantes

0

0

Locais102 Animais104

114103

37

Sozinho

0

8

Donos

0

3

Terceiros

0

0

312

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

99100101102103104

A nível do conteúdo, podemos verificar que se mantem a linha de publicação dos utilizadores. Em imagens de pessoas, os utilizadores masculinos continuam a apresentar um maior número de imagens onde estão acompanhados por terceiros. Já entre os utilizadores femininos, o tipo de imagens dominantes com pessoas são as fotografias do próprio utilizador e Selfies. Comparando Dezembro e Janeiro, os utilizadores masculinos apresentaram apenas mais uma Selfie, ao passo que os femininos apresentaram exatamente o mesmo número nos dois meses. Relativamente a imagens do próprio, houve um aumento de 5 imagens nos utilizadores masculinos e um aumento de 21 imagens entre os utilizadores femininos. Já em fotos de terceiros, houve um decréscimo de imagens, com menos 6 fotos nos utilizadores masculinos e 4 fotos nos femininos. Quanto às fotos em que os utilizadores estão acompanhados, houve um decréscimo de 6 fotos nos utilizadores masculinos, mas um aumento de 9 fotos nos utilizadores femininos. A nível de imagens objetos partilhadas, a grande maioria dos objetos são do próprio utilizador. Na categoria de objetos foram contabilizadas as imagens de refeições partilhadas. Mais uma vez, a grande diferença entre masculinos e femininos deve-se essencialmente à utilizadora @ projectovidanova. Comparando Dezembro e Janeiro, há um decréscimo de imagens de objetos próprios, com menos 4 imagens nos utilizadores masculinos e menos 5 imagens nos femininos. Já a nível de objetos de terceiros, houve uma redução de 3 imagens nos utilizadores masculinos e um aumento de uma imagem nos femininos. A nível de fotos que se focam em locais e paisagens, continua a haver um domínio dos utilizadores masculinos. Também aqui grande parte das imagens recolhidas resultaram do utilizador @alberto_marques. Comparando os dois meses estudados, houve um claro aumento de fotos

99

Imagens onde o foco são pessoas, sejam elas o próprio utilizador da conta ou terceiros. 100 Imagens onde o foco são objetos, por exemplo um relógio ou um carro, ou imagens de refeições. 101 Grande parte das imagens publicadas por @projectovidanova eram de refeições, o que levou a um número extremamente alto neste campo. 102 Imagens onde o foco são paisagens, edifícios, ruas ou monumentos. 103 De notar que todas as fotografias publicadas pelo utilizador @alberto_marques são paisagens, o que contribuiu para o valor apresentado. 104 Imagens onde o foco são animais, por exemplo a foto do cão do utilizador.

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

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no mês de Janeiro, havendo mais 26 fotos nesta categoria nos utilizadores masculinos e mais 6 nos utilizadores femininos. Por fim, na secção dedicada a imagens de animais, podemos verificar que apenas os utilizadores femininos partilharam imagens dos animais de estimação. Mais uma vez, isto pode dever-se a que nenhum dos utilizadores masculinos estudados tenha animais de estimação. De entre das fotos de animais recolhidas, predominam as fotos em que os animais estão sozinhos. Comparando os resultados obtidos nos meses de Dezembro e Janeiro, verificamos que houve um decréscimo de 5 imagens de animais sozinhos em utilizadores femininos. Todos os outros campos mantêm os mesmos valores nos dois meses. Efetuando uma análise individual de cada um dos utilizadores para o mês de Janeiro de 2015, verificamos que, mais uma vez, a maioria das imagens de @aazevedo1011 são de imagens em contexto público, a maior parte relacionadas com futebol e com o Benfica, clube de que é adepto. A nível de fotos mais pessoais, podemos encontrar algumas imagens com o filho e a filha, ou ainda com a mãe. Em Janeiro de 2015 o utilizador @ryckslopes apresenta várias fotos, tanto públicas como privadas. A grande novidade a nível de conteúdos prende-se com o facto de ser possível identificar a sua namorada através de algumas imagens partilhadas. Ao longo de Janeiro, o utilizador @pedroafonso__ partilhou várias imagens que mantiveram a linha das publicadas no mês de Dezembro de 2014. Das fotos recolhidas podemos destacar algumas que revelam que efetuou uma viagem à Bélgica durante Janeiro de 2015. O utilizador @alberto_marques mantém a mesma dinâmica de publicação de imagens, utilizando o Instagram como uma ferramenta para dar a conhecer o seu trabalho de fotografia. Neste mês, as imagens publicadas consistem essencialmente de paisagens da cidade da Covilhã e de Salamanca. Por fim, o último utilizador masculino, @luteniojunior, teve um decréscimo de imagens em Janeiro de 2015. Durante este mês partilhou essencialmente imagens de frases, sendo poucas as que mostram detalhes da sua vida. Passando à análise dos utilizadores femininos em Janeiro de 2015, a utilizadora @anaximandra mantém a mesma linha de publicação, apresentando essencialmente fotos que tirou aos seus animais de estimação ou de locais que visitou. Nas imagens partilhadas é notória a importância dos animais para esta utilizadora. Nas poucas fotos partilhadas em que se encontram pessoas, podemos identificar a irmã e a mãe.

314

PÚBLICO E PRIVADO NAS COMUNICAÇÕES MÓVEIS

A utilizadora @projectovidanova continua a publicar essencialmente imagens de refeições e de frases, pelo que apenas é possível identificar a mesma em apenas duas fotos publicadas durante Janeiro de 2015. De notar mais uma vez que esta é a utilizadora que mais contribui para o número de fotos na categoria de objetos do próprio. Durante o mês de Janeiro de 2015, a utilizadora @sueli9moreira partilhou essencialmente imagens do seu trabalho como modelo fotográfico. As únicas imagens de teor mais pessoal foram tiradas durante a passagem de ano, na companhia do namorado e de amigos, ou no final do mês, em que tirou uma fotografia com a sua gata. Avançando para a utilizadora @mari.miranda.96, podemos constatar que manteve a linha de publicação, utilizando Instragram essencialmente para partilhar momentos da sua vida pessoal. Nas fotos podemos ver desde selfies a fotografias com os amigos em saídas a bares na Covilhã, ou ainda fotos com a família durante a passagem de ano. Por fim, durante o mês de Janeiro de 2015, a utilizadora @lidiandiasld, apresentou essencialmente fotos com amigos ou de locais que visitou, fugindo apenas a esta linha uma imagem de uma refeição e de uma tela que pintou. Portanto, podemos concluir que existe uma tendência geral dos utilizadores masculinos para a publicação em espaços públicos e com localização, ao passo que os femininos mostram uma preferência por os espaços privados e sem a respetiva localização; se bem que ambos publicam nos dois ambientes. As utilizadoras femininas são as que mais utilizam as ‘Selfies’ para se expor, já os masculinos apresentam um maior número de imagens onde estão acompanhados por terceiros. Os tópicos mais recorrentes são a partilha de momentos com os amigos e a família assim como eventos importantes da vida profissional. Cabe ressaltar o uso desta plataforma para ‘controlar’ a dieta de uma utilizadora e partilhar os seus enganos e conhecimentos alimentares. As mensagens, cujo conteúdo na maioria dos casos é irrelevante, servem em alguns casos para ampliar ou especificar informação adicional, seja localização (maioritariamente os masculinos) ou identificação de pessoas. Os objetos retratados são na maioria do próprio utilizador. Através do conteúdo e formato das imagens como das dinâmicas de publicação dos utilizadores analisados, percebe-se o ‘Instagram’ como uma plataforma que serve de diário pessoal ou registo da vida no formato de memória digital, onde se misturam aspetos da vida profissional e pública com outros da vida íntima e privada a diferentes níveis (amigos e família), sem que haja uma clara definição de fronteiras ou limites.

INSTAGRAM E A VISIBILIDADE DAS IMAGENS

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