Sobre a noção de páthos na obra do jovem Nietzsche: reflexões a partir do trágico e do dionisíaco

Share Embed


Descrição do Produto

O trágico, o sublime e a melancolia Volume 4





O trágico, o sublime e a melancolia Volume 4

Verlaine Freitas (UFMG) Rachel Costa (UFOP) Debora Pazetto Ferreira (CEFET-MG)

[Orgs.]

ABRE Belo Horizonte 2016



© ABRE — Associação Brasileira de Estética © Os autores

cip —Brasil Catalogação-na-Fonte | Sindicato Nacional dos Editores de Livro, RJ

T765 v.4 O trágico, o sublime e a melancolia / Organização Verlaine Freitas, Rachel Costa, Debora Pazetto. — Livro 4. — Belo Horizonte, MG : ABRE Associação Brasileira de Estética, 2016. 111 p / 4. v. Inclui referências ISBN: 978-15-40587-94-7 1. O Sublime. 2. Estética. 3. Arte – Filosofia. I. Freitas, Verlaine. II. Costa, Rachel. III. Pazetto, Debora. IV. Título. CDD 100

CONSELHO EDITORIAL Alice Mara Serra (UFMG) Cíntia Vieira da Silva (UFOP) Eduardo Soares Neves Silva (UFMG) Giorgia Cecchinato (UFMG) Pedro Süssekind (UFF) Rodrigo Duarte (UFMG) Verlaine Freitas (UFMG) Virginia de Araujo Figueiredo (UFMG) COORDENAÇÃO EDITORIAL Verlaine Freitas PROJETO GRÁFICO Ana C. Bahia / Verlaine Freitas DIAGRAMAÇÃO Verlaine Freitas REVISÃO Lucas de Mendonça Morais ABRE – Associação Brasileira de Estética www.abrestetica.org.br [email protected]



Sumário

Apresentação 6 A configuração estética do trágico a partir de Unamuno e Hegel 10 Bárbara Del Rio



Sobre a noção de páthos na obra do jovem Nietzsche: reflexões a partir do trágico e do dionisíaco 23 Carlos Estellita-Lins



Discurso filosófico e discurso trágico: o elemento trágico na filosofia dramática de Platão 48 Deivid Junio Moraes



Mono no Aware e sua relevância filosófica: a melancolia na poética japonesa 61 Diogo César Porto da Silva



Ensaio sobre “Vaso Traduzido”, de Yeesookyung 80 Francisco Augusto C. Freitas



Imagens da melancolia na obra de Goya 89 Francisco Fianco



Educação como arte ou arte como educação 102 Ricardo Teixeira Veiga





Apresentação

O 12º. Congresso Internacional de Estética — Brasil teve como mote principal a discussão de três conceitos: o trágico, o sublime e a melancolia, todos muito significativos no panorama da reflexão filosófica sobre a arte e sobre a natureza, visto que apontam para movimentos de contradição, ultrapassagem e superação da negatividade no vínculo entre sujeito e objeto, dando origem a uma grande fortuna crítica na tradição dos escritos filosóficos sobre o fenômeno estético, desde os gregos até a contemporaneidade. Esta coletânea de palestras e artigos selecionados do evento expressa essa fortuna crítica, trazendo à tona tanto o cenário oitocentista que orienta a discussão estética contemporânea, quanto suas reverberações e releituras atuais. O primeiro volume dedicou-se diretamente aos três conceitos que deram nome ao evento; o segundo, o terceiro e este volume dedicam-se aos conceitos-chave do Congresso e outros temas da filosofia da arte que fizeram parte das valiosas discussões que delinearam o congresso. Em “A configuração estética do trágico a partir de Unamuno e Hegel”, Bárbara Del Rio Araújo discute a configuração estética do trágico a partir de ambos os autores. Contrapondo as perspectivas, a autora argumenta que Hegel, embora parta de uma base espiritualista e religiosa, acaba por historicizar o fenômeno, enquanto Unamuno associa a tragicidade a um sentimento da vida, não superando a esfera mística. Nesse caminho, Hegel aparece como estando mais próximo da representação objetiva do trágico, sua incorporação ao romance e ao mundo moderno. A teoria do romance de Lukács é abordada nesse contexto, associada à filosofia hegeliana, de modo a mostrar que a virilidade madura do gênero envolve uma pesquisa de valores autênticos no mundo e na realidade degradada. O trágico também é abordado por Carlos Estellita-Lins no texto “Sobre a noção de páthos na obra do jovem Nietzsche: reflexões a partir do trágico e do dionisíaco”, no qual o autor parte da interpretação nietzschiana da tragédia grega para discutir a noção 6



encriptada de páthos em suas primeiras obras, que aparece em relação aos conceitos de trágico e dionisíaco. Além do termo, o campo conceitual que o envolve é igualmente investigado, com ênfase na catarse, na função do côro trágico, dionisíaco, excesso, embriaguez, possessão e loucura. Uma hipótese resultante da pesquisa consiste em destacar a importância da releitura não somente da terceira, mas também da primeira crítica de Kant pelo jovem Nietzsche, que ocorre sob diversas influências, como o romantismo alemão, Schopenhauer e wagnerianismo da tetralogia. Deivid Junio Moraes investiga a relação que a filosofia platônica entretém com a poesia de um modo geral, e com a tragédia de maneira particular, em “Discurso filosófico e discurso trágico: o elemento trágico na filosofia dramática de Platão”. O autor aborda a prosa platônica em seu processo de constituição, tanto mediante o esforço de delimitação do âmbito da filosofia em relação às demais instituições de seu tempo, quanto mediante a assimilação e transformação de diversos aspectos dos discursos instituídos. Platão polemiza com várias formas discursivas e empreende uma crítica direta aos efeitos sugeridos pelos discursos poético e retórico na mentalidade grega. No entanto, a obra platônica é ressaltada como uma construção dramática, que mantém um convívio explícito com elementos trágicos. Diogo César Porto da Silva escreve sobre a poética e estética clássica do pensamento japonês, mais especificamente, sobre o termo “mono no aware”, usado para descrever a beleza das flores de cerejeira em plena floração. Em “‘Mono no Aware’ e sua relevância filosófica: a melancolia na poética japonesa”, o autor investiga esse conceito, que já foi traduzido como “o páthos das coisas”, “a tristeza das coisas” e “a afetividade das coisas”, e que fala de um sentimento que nos toma diante de uma estonteante beleza efêmera. Através de pensadores japoneses clássicos e contemporâneos, como Motoori Norinaga, Onishi Yoshinori e Watusji Testuro, o texto circunscreve a estética da beleza melancólica presente no “mono no aware”, demonstrando, ademais, a relevância filosófica da estética e do pensamento japonês. O artista coreano contemporâneo Yeesookyung, por sua vez, é tratado por Francisco Augusto Canal Freitas em “Ensaio sobre

7

‘Vaso Traduzido’, de Yeesookyung”. Ao apropriar-se da tradicional arte coreana, o artista constrói vasos disformes, peças únicas e despojadas de utilidade, a partir de fragmentos de rejeitos da indústria cerâmica, colados com ouro, destacando as fissuras entre as peças. Em sua análise crítica da obra, o autor argumenta que a crítica de arte deve partir da própria obra e, como exige Adorno, ser estética sem se confundir com seu objeto. Neste sentido, o próprio título da obra indica uma chave de leitura: a teoria da tradução de Walter Benjamin, em que as línguas são comparadas a fragmentos de um vaso rompido, cuja junção constitui a tarefa do tradutor. Reconstruir uma tradição com seus rejeitos e transportá-la para outra cultura é uma tarefa frágil como cerâmica. A crítica funda-se nessa fragilidade da tradição e da obra, da tradução e da própria crítica O texto de Francisco Fianco, “Imagens da melancolia na obra de Goya,” tematiza a desilusão causada pelos efeitos negativos do processo sócio-histórico do Esclarecimento, personificada como Melancolia nas obras de Francisco de Goya. O autor argumenta que Goya teria se decepcionado com o Iluminismo, chegado até ele através da violência de um exército de ocupação, o que pode ter provocado uma desilusão em relação a suas promessas libertárias de transformações sociais e políticas. A fundamentação teórica do conceito de melancolia é baseada no texto de Benjamin, Origem do drama barroco alemão, e a crítica ao projeto iluminista é baseada na Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Finalizando o livro, Ricardo Teixeira Veiga, em “Educação como arte ou arte como educação”, mostra como Rancière, baseando-se nas ideias anticonvencionais do pedagogo francês Joseph Jacotot sobre educação, sugere uma emancipação dos espectadores, nivelando-os à posição dos artistas, da mesma forma que se pensou a emancipação dos alunos, cuja inteligência, em princípio, era proclamada equivalente à dos educadores. Em ambos os contextos, pensa-se no exercício pleno da liberdade de criar e de ser, escapando-se à reprodução da hierarquia social, ao se desfazer, como propôs Freire para a educação, o dualismo de opressores e oprimidos. Em Rancière, a emancipação do espectador poderia embaralhar a fronteira — perpetuadora de preconceitos — entre os que agem e os que olham. Espectadores emancipados elaboram sua 8



própria tradução e constroem sua própria história. Como este livro se origina da realização do Congresso Internacional de Estética: Trágico, Sublime e Melancolia, agradecemos os apoios financeiros prestados pelo Programa de PósGraduação em Filosofia da FAFICH-UFMG, pelo CNPq, pela CAPES e pela FAPEMIG, sem os quais a realização do evento e a publicação dos quatro volumes do livro não seria possível. Verlaine Freitas Rachel Costa Debora Pazetto Ferreira Belo Horizonte, novembro de 2016



9

A configuração estética do trágico a partir de Unamuno e Hegel

Bárbara Del Rio1

Introdução

O trágico se caracteriza como uma temática de difícil concisão seja no âmbito literário, seja no âmbito filosófico. Não se estabeleceu uma sistematização de pensamento que conseguisse compreender a sua complexidade e relacionar a arte trágica à discussão teórica. Nesse sentido, Peter Szondi (2004, p. 75) comparou a tentativa de criar um conceito sobre o assunto ao mitológico voo de Ícaro, em que quanto mais o pensamento tendesse à generalidade, mais ele tenderia a desabar, sendo raro o exame de sua estrutura. A conclusão a que se chegou sobre o trágico é que nele não existe unidade, isto é, ele não se apresenta de modo único e, em decorrência de um movimento dialético, contém diversas faces, o que tornaria mais adequada a sua denominação como “trágicos”: Não existe o trágico, pelo menos não como essência. O trágico é um modus, um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, a dizer, o modo dialético. É trágico apenas o declínio que ocorre a partir da unidade dos opostos, a partir da peripécia de algo em seu contrário, a partir da autocisão. Mas também só é trágico o declínio de algo que não pode declinar. (Szondi, 2004, p. 84-85)

O estudioso, em Ensaios sobre o trágico, afirma ainda que o fenômeno tem como origem a tragédia, mas contempla uma dimensão mais ampla e diversificada, enquanto aquela se restringe à representação da poética e da teoria normativa dos gêneros artísticos: 1

Doutoranda em Literatura Brasileira pelo programa de pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (POSLIT/UFMG). Professora efetiva do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). E-mail: [email protected] 10



Desde Aristóteles, há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico. Sendo um ensinamento acerca da criação poética, o escrito de Aristóteles pretende determinar os elementos da arte trágica, seu objeto é a tragédia e não a ideia de tragédia. [...] Dessa poderosa zona de influência de Aristóteles, que não possui fronteiras nacionais ou temporais, sobressai como uma ilha a filosofia do trágico. Fundada por Schelling de maneira inteiramente não programática, ela atravessa o pensamento do período idealista e pós-idealista, assumindo sempre uma nova forma. (Szondi, 2004, p. 23-24)

Ainda que valorize a arte grega, identificando nela o nascimento do elemento, Szondi demonstra que o exame do trágico só ocorre mesmo após o desenvolvimento filosófico. Nessa seara, pode-se dizer que existe uma cisão para a interpretação desse objeto. Inicialmente, os escritos de Hegel são indispensáveis, sobretudo para entender a dialética trágica a dizer da dinâmica das formas finitas e infinitas, contemplando o homem e a realidade que o circunscreve. Após Hegel, retornando quase uma interpretação metafisica do fenômeno, estão nomes como Schopenhauer, Nietzsche e Unamuno, estudiosos que atribuíram o trágico às propriedades naturais do ser humano, à natureza inconsciente que nos assombra. Esse trabalho pretende verificar, em perspectiva comparativa, como se elabora a visão trágica nessas vertentes, e, assim, enfatizar a materialidade hegeliana, que, embora idealista e fundamentada em categorias subjetivas como “espírito”, consegue aprender a dinâmica histórica se afastando prontamente do irracionalismo e sendo apta a captar a dinâmica estética, a qual está intimamente ligada ao processo social. Desenvolvimento

Hegel, em Estética, tenta contemplar o trágico por meio de uma análise minuciosa das tragédias gregas. Retomando os antigos, o mundo fechado, no qual predominava o convencionalismo e a homogeneidade, ele investiga Antígona, de Sófocles, para mostrar que há uma dialética instaurada ali entre o indivíduo e a totalidade. Nesse aspecto, o trágico não é visto somente como algo da ordem da fortuna ou do acaso, mas da irrupção de um mundo que está em dissolução, encaminhando para a Tebas democrática.

11

De maneira geral, Hegel esclarecera que o trágico se desenvolve em um período específico, quando a linguagem do mito estava em declínio, dado a realidade política na cidade. Assim, o trágico é a representação de um tempo já decorrido, mas que ainda está presente na vida, situando-se entre dois mundos. A ambivalência desse lugar reflete na questão humana, especificamente no herói, que pertence a uma tradição mítica, traduzindo valores coletivos, ao mesmo tempo em que se encaminha para um cenário imposto pela democracia. Nesse aspecto, o trágico é revelador da condição individual e também coletiva ao instaurar uma dinâmica reveladora do homem e da circunstância histórica e política. Assim, o trágico, tal qual se elabora, é uma manifestação do espírito finito e também do espírito do tempo. Essa relação fica mais expressiva em Fenomenologia do espírito, quando Hegel discute a relação entre as formas, esboçando a dialética da criação estética, que, por sua vez, surge por meio da mediação entre consciência-ação-vontade e o aspecto social, do qual o pensamento retira seu conteúdo, assinalando momentos de inflexões entre a parte e o todo: [Das rein einzelne] O agir e o atarefar-se puramente singulares do indivíduo referem-se às necessidades que possui como ser-natural, quer dizer, como singularidade essente. Graças ao meio universal que sustem o indivíduo, graças à força de todo o povo, sucede que suas funções inferiores não sejam anuladas, mas tenham efetividade. Na substância universal, porém, o indivíduo não só tem essa forma da subsistência de seu agir em geral, mas também seu conteúdo. O que ele faz, é o gênio universal, o etos de todos. Esse conteúdo, enquanto se singulariza completamente, está em sua efetividade encerrada nos limites do agir de todos. O trabalho do indivíduo para [prover a] suas necessidades, é tanto satisfação das necessidades alheias quanto das próprias; e o indivíduo só obtém a satisfação de suas necessidades mediante o trabalho dos outros. Assim como o singular, em seu trabalho singular, já realiza inconscientemente um trabalho universal, assim também realiza agora o [trabalho] universal como seu objeto consciente: torna-se sua obra o todo como todo, pelo qual se sacrifica, e por isso mesmo dele se recebe de volta. Nada há aqui que não seja recíproco, nada em que a independência do indivíduo não se atribua sua significação positiva — a de ser para si — na dissolução de seu ser-para-si e na negação de si mesmo. Essa unidade do ser para outro — ou do fazer-se coisa — com o ser-para-si, essa substância universal fala sua linguagem universal nos costumes e nas leis de seu povo. No entanto, essa imutável 12



essência não é outra coisa que a expressão da individualidade singular que aparenta ser-lhe oposta. As leis exprimem o que cada indivíduo é e faz; o indivíduo não as conhece somente como sua coisidade objetiva universal, mas também nela se reconhece, ou: [conhece-a] como singularizada em sua própria individualidade, e na de cada um de seus concidadãos. Assim, no espírito universal, tem cada um a certeza de si mesmo — a certeza de não encontrar, na efetividade essente, outra coisa que a si mesmo. Cada um está tão certo dos outros quanto de si mesmo. Vejo em todos eles que, para si mesmos, são apenas esta essência independente, como Eu sou. Neles vejo a livre unidade com os outros, de modo que essa unidade é através dos Outros como é através de mim. Vejo-os como me vejo, e me vejo como os vejo. (Hegel, 1992, p. 223)

Tomando como referência a tragédia, o mundo antigo é denominado de “Bela eticidade”, onde não há reconhecimento da cisão entre o espírito e o mundo, e predominam-se as formas já fixadas e o convencionalismo. Contudo, no seu interior, são gerados conflitos, e, a partir do momento em que esses são individualizados, o espírito se divide e o herói não se vê apenas como fruto de contingências arbitrárias. O ganho de subjetividade aqui vale não apenas para o descolamento parcial do indivíduo em relação ao grupo como também para o artista, que alcança na sua arte um tipo de consciência trágica. O início de uma consciência de si é essencial, posto que é no contraste entre a particularidade e a generalidade que surge a discussão trágica. Quando a arte é apenas simbólica, o espírito é dela apartado; quando esta passa a reconhecer e refletir sobre a técnica é que começa o movimento para a individualidade. É por surgir essa oposição que se dá a relação entre formas, relacionando indivíduo e sociedade. Por meio das formas finitas, que indicam o começo da individualidade, é que se torna possível o espírito absoluto e a humanidade da arte se manifestar. Perceba que é na mediação da linguagem do herói, do artista e das formas finitas que se encaminha uma autoconsciência social, de um espírito maior que abarcaria a totalidade. Hegel muito criticou a filosofia kantiana por se centrar em questões subjetivas, e aqui, no seu raciocínio, pode-se perceber que ele retoma essas ideias e concepções, conjecturando-as em relação ao movimento histórico. Isso não quer dizer racionalismo excessivo e

13

linearidade, mas uma relação que pensa a individualidade equiparada a um movimento social maior. A aproximação do espírito infinito e finito gera uma dinamicidade dialética em que a linguagem política alcança um nível mais alto de espiritualização, que se manifesta pelo conteúdo e pela forma artística: Pois é o estado em cuja plenitude e potência da eticidade, o monstro da cisão apenas ainda dormitava, uma vez que para a nossa consideração apenas se manifestava o aspecto de sua unidade substancial e, por conseguinte, a individualidade também apenas estava presente em seu modo universal, no qual, em vez de fazer valer sua determinidade, ela novamente transcorre sem deixar rastros e sem algum incomodo essencial. À individualidade pertence, porém, essencialmente a determinidade e, se o ideal deve surgir diante de nós como forma determinada, é necessário que não permaneça apenas em sua universalidade, mas manifeste o universal no modo particular e lhe dê existência e fenômeno apenas através disso. Sob esta relação, a arte não deve apenas descrever um estado universal do mundo, e sim partindo desta representação indeterminada, deve progredir para imagens dos caracteres e das ações determinados. (Hegel, 2001, p. 205)

Perceba que aquilo que predomina no raciocínio do filósofo é a relação entre a particularidade e a totalidade social. Nesse sentido, há uma sobredeteminação do espírito, da tragicidade subjetiva, ao espírito do povo, que remeteria à temporalidade histórica. O trágico e as manifestações estéticas são aqui encarados de modo a compor a universalidade. Trata-se de formas que se manifestam na sua finitude em diálogo com o espirito infinito. Interessante, nesse aspecto, é entender que existe aqui um apreço pela materialidade, pois é nela que se manifesta o espírito absoluto. Nesse aspecto, há uma dinâmica perpétua entre o abstrato do pensamento com a historicidade, pois este só pode se manifestar por meio dos signos e da sua materialidade histórica. Assim, valoriza-se o meio externo e a linguagem que, de certa maneira, molda e adequa o pensamento, sendo mutável e histórica. Ainda que a totalidade no pensamento hegeliano manifeste uma preocupação com o arcabouço sociocultural, ele ainda mantém o idealismo, já que Arte e Religião aparecem amalgamadas como último momento que precede o surgimento do Saber Absoluto, o que significa que, neste último estágio, em que o espírito ainda se 14



apresenta com algum tipo de representatividade, é a linguagem que encarna de forma sensível o fazer aparecer do Absoluto. Para Hegel, a arte é inicialmente trágica, pois rompe com o todo, mas, através dessa cisão, o trabalho do artista não deixa de refletir o exterior em seu trabalho de estetização, ele acaba por tentar na sua técnica manifestar o espírito do Divino; recuperando o espírito da Bela Eticidade, acaba por alcançar cada vez mais a consciência da infinitude que habita seu interior. A valorização do conteúdo espiritual e da ideia é inegável, mas não se pode esquecer que ele se manifesta pela busca material: A intuição que é, antes de mais, imediatamente algo de dado e de espacial recebe, enquanto é usada como sinal, a determinação essencial de ser só enquanto ab-rogada. A inteligência é a sua negatividade: por isso, a figura mais verdadeira da intuição, a qual é um sinal, é uma existência no tempo — um esvanecer da existência enquanto é — e, segundo a sua ulterior determinidade externa e psíquica, um ser-posto pela inteligência procedente da sua própria naturalidade (antropológica) — o som, a exteriorização plena da interioridade que se manifesta. (Hegel, 1992, p. 459)

O trágico em Hegel nos permite discutir os pressupostos do fenômeno da criação estética, o qual reúne os aspectos subjetivos e a forma objetiva. Além disso, o trágico nos permite entender a dinâmica indivíduo e mundo empírico em uma dialética das partes e do todo. O rompimento do mundo grego e a afirmação da modernidade reverberam na ascensão do sujeito, mas esse, ainda que fragmentário e sem compartilhar de valores comuns e coletivos, está imerso na história, sendo formado por ela. A partir da dialética hegeliana, a filosofia do trágico se desenvolve, e o que vemos, muitas vezes, é o fim da relação conflitosa para a livre afirmação do indivíduo e de sua natureza. Interessante citar O nascimento da tragédia, de Nietzsche, para entender que, embora o ponto de partida seja uma dialética entre o apolíneo e o dionisíaco, há uma afirmação absoluta do desejo, da vontade, do impulsivo, sobre a chance racionalista e, nesse aspecto, deflagra-se o homem quase como essência, desconsiderando o aspecto social. Nessa seara, o estudo do trágico se enverada por pensar o humano sem ligação histórica, predefinido por sua natureza irracional, moldando, enfim, um conceito unívoco e atemporal de

15

homem. Existe aqui um pessimismo absoluto, em que as ações subjazem à inconsciência, quando o terror se apodera do ser humano, fazendo com que a razão se exceda e se ausente. Desse modo, essa perspectiva se integra àquela concebida por Unamuno, que tem uma visão unitária do mundo e da vida e pensa que esta determina o percurso, circunscrevendo o fenômeno às raízes irracionalistas: Hegel hizo célebre su aforisma de que todo lo racional es real y todo lo real racional; pero somos mucho los que, no convencidos por Hegel, seguimos creyendo que lo real, lo realmente real, es irracional; que la razón construye sobre las irracionalidades. Hegel, gran definidor pretendió reconstruir el universo con definiciones, como aquel sargento de artillería decía que se construyeran los cañones: tomando un agujero y recubriéndolo de hierro. (Unamuno, 1985, p. 29)

A crítica a Hegel é gerada pelo modo diferente de compreensão em relação ao trágico e ao funcionamento da consciência. Unamuno acredita que a filosofia e o mundo se definem pelas atitudes humanas. Nisso, ele se aproxima da visão materialista, contudo, dela se afasta por entender que as ações trágicas são exclusivamente geridas pela vontade e que a contradição está na oposição entre a lógica racional e a irracional: “solo vivimos de contradicciones y por ellas; como que la vida es tragedia, y la tragedia es perpetua lucha, sin victoria ni esperanza de ella; es contradicción. Se trata, como veis, de un valor afectivo, y contra los valores afectivos no valen razones” (Unamuno, 1985, p. 15). Por meio da oposição entre racionalidade e irracionalidade, essa tendência afirma a necessidade de se ouvir o destino, que dirige os semelhantes e a natureza humana, configurando um sentimento trágico da vida. Perceba que assim se configura uma metafísica direcionando o indivíduo e seu povo, excluindo a sua autonomia. Tanto o homem quanto sua coletividade está às voltas de um sentimento impreciso, parcialmente inconsciente e fatalista a determinar-lhes: Hay algo que, a falta de otro nombre, llamaremos el sentimiento trágico de la vida, que lleva tras sí toda una concepción de la vida misma y del universo, toda una filosofía más o menos formulada, más o menos consciente. Y ese sentimiento pueden tenerlo, y lo tienen, no sólo hombres 16



individuales, sino pueblos enteros. Y ese sentimiento, más que brotar de ideas, las determina, aun cuando luego, claro está, estas ideas reaccionan sobre él, corroborándolo. (Unamuno, 1985, p. 38-39)

Ao compreender a racionalidade como materialista e objetiva, essa vertente combate esses elementos a ponto de pensar em sua dissolução por meio do acaso. Assim, torna-se idealista na medida em que percebe as ações à revelia, ao invés de constituídas por um lastro histórico. Unamuno pensa a cultura de modo a esvaziar seu percurso social e, ao sondar o fenômeno trágico, subjuga o progresso à vontade do indivíduo e à casualidade: El sentimiento del mundo, de la realidad objetiva, es necesariamente subjetivo, humano, antropomórfico. Y siempre se levantará frente al racionalismo el vitalismo, siempre la voluntad se erguirá frente a la razón. De donde el ritmo de la historia e de la filosofía [...] se impone produciendo formas materializadas, aunque a una y otra clase de formas de creer se las disfrace con otros nombres. Ni la razón ni la vida se dan por vencidas nunca. (Unamuno, 1985, p. 114)

Assim, ainda que tente equilibrar razão e sentimentalidade, o debate tende à discussão sobre o poder da alma humana. Nesse sentido, afirma-se que o inconsciente é a base para uma estética, uma filosofia e uma ética poderosa, mas não desenvolve como isso ocorreria e, tentando sair de um dogmatismo, acaba caindo em outro, subjugando forças externas constitutivas a um movimento íntimo e particular, em que a natureza dionisíaca e instintiva do homem ascende na embriaguez. Benjamin e Lefebvre criticaram muitíssimo essa tendência, uma vez que, para eles, isso indica um retorno à metafisica, desconsiderando o mundo moderno e, sobretudo, a cultura, imbuindo o trágico à cisão do sujeito como fruto de algo para além dele, preso à sua natureza demoníaca. Não é a natureza do homem que o faz assim, mas sim o bojo material que ele se insere: deve-se perceber que o homem não deve estar destituído da cultura apolínea para se pensar na representação artística, nem puramente imerso no subjetivismo, do qual saltam o querer e a vontade letárgicos. Abandonado pelos deuses, a visão do homem não é a condenação de sua existência, mas a relação entre o erro, a moral e a crise histórica. O fenômeno trágico, sob esse viés, se recusa à normalidade do

17

sofrimento, o deleite metafísico da criação, e dá a ela lastro ontológico, mostrando a relevância do percurso político e histórico na estetização do sofrimento. O caráter objetivo da história se impõe, e as ações trágicas estão nos momentos de conflito do desenvolvimento social e humano. Nesse sentido, o processo espiritual que leva em conta o sujeito é retomado e transformado na descrição de um processo social que lhe sobredetermina. Walter Benjamin, ao analisar o drama barroco alemão, discutindo a categoria do trágico, assente que a concepção nietzscheana transforma o fenômeno em um esteticismo vazio, no qual a intuição se dissolve em nada. Assim, constata que Nietzsche, por renunciar à filosofia da história e à discussão religiosa e moral como parte do conceito, padece de um duplo problema construindo uma metafísica depreciativa que compromete o estudo do trágico antigo e moderno: O mito trágico é para Nietzsche uma construção puramente estética, e o jogo de forças apolíneas e dionisíacas, enquanto aparência e dissolução dessa aparência é igualmente remetido para a esfera estética. Renunciando a um conhecimento histórico-filosófico do mito trágico, Nietzsche pagou um alto preço pela emancipação da tragédia em relação ao lugar-comum de uma moralidade geralmente aplicada a eventos trágicos [...] Abre-se aqui o abismo do esteticismo, no qual a intuição perde todos os conceitos, e em que deuses e heróis, pertinácia e sofrimento, os pilares da construção trágica, se dissolvem em nada. Quando a arte ocupa o centro da existência, fazendo do homem uma manifestação sua, em vez de o reconhecer como o seu fundamento — não seu criador, mas eterno pretexto de suas criações — toda a reflexão sóbria cai pela base. [...] Uma vez removido o homem do centro da arte, é indiferente que seja o nirvana, a letárgica vontade da vida, a ocupar o seu lugar (como acontece em Schopenhauer), ou que seja ‘o devir humano da dissonância’, como em Nietzsche, a produzir as manifestações do mundo e do próprio homem. Pois que importa se é inspirada pela vontade da vida ou da sua destruição, se ela, sendo produto monstruoso de uma vontade absoluta, se desvaloriza a si mesma ao desvalorizar o mundo? (Benjamin, 2011, p. 104)

Lefebvre reconhece a importância do pensamento nietzscheano para o desvelamento do mundo moderno, mas critica as explicações calcadas no “biológico”, no “hambre del ser”. Nesse aspecto, valoriza a perspectiva hegeliana, que, embora ainda calcada no idealismo, sobressai o misticismo e o sentido hermético para se 18



debruçar na materialidade. A visão do sujeito, para Hegel, assim como o trágico, é a representação concreta da incorporação entre formas primitivas e o espírito social, Volksgeist. O sentimento de tragicidade diz sobre a afirmação do indivíduo e sua ambivalência arraigada na coletividade, o que faz dele “um indivíduo histórico universal”, que incorpora na sua vontade o espírito do mundo e da história. Conclusão: o entendimento da estética e do mundo moderno pela concepção trágica hegeliana

Este trabalho comparou a formulação do pensamento trágico em Hegel e Unamuno, tentando mostrar como o primeiro acaba por dialogar com a perspectiva histórica e material, enquanto o filosofo espanhol, quase cem anos depois da publicação da obra hegeliana, retorna à metafisica compreendendo o sujeito como fruto de seus impulsos sendo atemporal e etéreo. Diante do esclarecimento da dialética hegeliana, que pensa a dinâmica entre formas finitas e o espírito absoluto, deflagrou-se como a tragicidade do sujeito está associada a uma totalidade cultural. Assim, pode-se dizer que a arte e a representação estética se referem à subjetividade, que é livre, mas não arbitrária a ponto de fugir ou escapar da materialidade de seu tempo. Esse tipo de raciocínio é pertinente e revelador da modernidade e também do gênero romance, uma vez que tendem absorver as características do presente e estabelecer a relação entre o passado e o futuro. Deste modo, a historicidade está no plano-base do seu entendimento. O romance, na medida em que a cultura se modifica e o percurso histórico-social ganha novos contornos, se relaciona mais ao indivíduo, isto é, a tensão entre a experiência coletiva e a individual se rarefaz e o conflito se torna internalizado: o homem começa a ter a experiência de si mesmo enquanto agente autônomo em relação às forças religiosas, mas deve-se lembrar que é suscetível às demandas socioeconômicas, podendo mais ou menos dirigir seu destino pessoal. Nesse registro, a relação dialética entre indivíduo e sociedade se impõe e configuram-se diferentes visões do trágico na modernidade. Aliás, essas visões se cristalizam como formas estéticas

19

a representar a realidade: “o mundo e a vida aqui permanecem e são acolhidos e configurados. E as formas jamais poderão por si mesmas num passe de mágica dar vida a algo que nelas não se encontre” (Lukács, 2000, p. 45). Examinando as culturas fechadas em comparação com a moderna, evidencia-se que, embora as coisas no mundo se distingam, não são jamais alheias umas as outras. A cisão que marca a modernidade, ainda na fragmentação, mostra unidade. A cultura grega revela um mundo homogêneo, em que a fronteira criada pelas coisas não difere em essência dos seus contornos, sistematizando uma ordem plena entre homem, pátria e estado. Quando a arte e a realidade visionária deixam de ser meras cópias, pois todos os modelos desaparecem, atinge-se o trágico em sua acepção moderna. Ele não vislumbra uma totalidade espontânea do ser, e, até mesmo, a arte é uma esfera entre muitas numa consciência de esfacelamento do mundo, que capta por força das próprias condições o objeto e o mundo circundante. No mundo antigo, as contingências e necessidades históricas davam sentido à essência, situada para além da vida. No mundo moderno, a forma dramática é rompida, e a vida pode ser banida de cena. Contudo, não há desaparecimento orgânico, há o reconhecimento da existência, mas também daquilo que foi banido: A outra tragédia consome a vida. Ela põe em cena seus heróis como homens vivos, em meio a uma massa circundante simplesmente presa a vida, de modo a fazer com que, do tumulto de uma ação onerada pelo peso da vida, resplandeça pouco a pouco o claro destino, de modo a fazer com que por meio de sua flâmula tudo que é meramente humano reduza-se a cinzas, para que então a vida nula dos simples homens dissipe-se na nulidade, mas as afeições dos heroicos sejam calcinadas em paixões trágicas e estas os retemperem em heróis sem escorias. (Lukács, 2000, p. 41)

Uma lacuna marca a distância que separa a concepção antiga e moderna de homem agente, sublinhando aspectos diferenciados da consciência moral. No mundo grego, a vontade não se coloca, a significação psicológica é indecisa, a força da coletividade se faz presente e paira uma consciência social numa condição histórica determinada. O herói é formado e fixado em hábitos coletivos se constituindo conforme as disposições, sendo improvável comportar20



se de outro modo, pois assimila o que é externo como espontâneo. No mundo moderno, as personagens são dramatis pernonae, que devem buscar por si próprias o seu destino, isto é, nasce na solidão, em meio a outros solitários, não encontrando ressonância adequada. Aliás, o problema da solidão é essencialmente moderno, “quando não há a simples embriaguez de uma alma aprisionada pelo destino e convertida em canto, mas também a configuração do tormento de uma criatura condenada ao isolamento que anseia pela comunidade” (Lukács, 2000, p. 43). Nessa perspectiva, é necessário entender que o trágico moderno é capaz de reunir a dimensão estética e filosófica a ponto de pensar o indivíduo e o mundo que o cerca e a representação. A vida e os vínculos nela existentes são colocados em primeiro plano sobre o aspecto de transcendência e imanência, isto é, imbuída de materialidade histórica. Assim, há uma totalidade vislumbrada, ainda que essa não seja plena, já que na vida existe a independência relativa a cada ser vivo autônomo em relação aos vínculos que apontam para mais além e a imprescindibilidade de tais vínculos. Assim, o pensamento hegeliano faz jus e se torna mais interessante, pois, ainda que o trágico contemple o homem e seu destino, essa subjetividade arranca um pedaço da imensa infinitude dos sucessos do mundo, emprestalhe uma vida autônoma e permite que o todo do qual ele foi retirado fulgure no universo da obra apenas como sensação e pensamento dos personagens apenas como o desfiar involuntário de séries causais interrompidas apenas como espelhamento da realidade que existe por si mesma. (Lukács, 2000 p. 48) Referências

AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Trad. Jaime Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2007. BENJAMIN, W. Origem do drama trágico-alemão. Trad. João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2011. BORNHEIM, G. A. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1975

21

EAGLETON, Terry. Doce Violência: a ideia do trágico. Trad. Alzira Alegro. São Paulo: Ed. Unesp, 2013. HAUSER, A. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1994. HEGEL, G.W.F. Estética. Trad. Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 2001. ______. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. 2ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1992. LEFEBVRE, H. Hegel, Marx e Nietzsche. México/Espanha: Siglo XXI, 2001. LUKÁCS, G. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2000. ______. História e consciência de classe — estudos de dialética marxista. Trad. Telma Costa. Lisboa: Publicações Escorpião, 1974. ______. Introdução à estética marxista. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. MACHADO, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SZONDI, P. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. UNAMUNO, M. Del sentimiento trágico de la vida: en los hombres y en los pueblos. Madrid: Espasa-Calpe, 1985 VEDDA, M. La sugestión de lo concreto — estudios sobre teoría literaria marxista. Buenos Aires: Gorla, 2006 WILLIAMS, R. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

22



Sobre a noção de páthos na obra do jovem Nietzsche: reflexões a partir do trágico e do dionisíaco

Carlos Estellita-Lins2

Polissemia do trágico

A expressão páthos aparece de modo infrequente, enigmático e cifrado na obra do jovem Nietzsche. O termo páthos, nos escritos do jovem Nietzsche, mostra-se absolutamente polissêmico e admite misturas. Pode-se supor que está ligado à música. Não se organiza nem sobressai como reflexão maior, contudo, estabelece relações com os conceitos propriamente nietzschianos de trágico e dionisíaco. Na tradição filológica ou em estudos de literatura clássica, o termo páthos remete diretamente à Poética de Aristóteles e à sua teoria da tragédia (assim como ao tratado De Anima, livros II e III). Cabe, portanto, discutir o uso nietzscheano de uma noção de páthos, admitindo que esteja criptografada, pois pertenceria à discussão estética sobre a tragédia grega em seus desenvolvimentos modernos. Isso significa que é preciso acompanhar o patético em sua relação com a interpretação nietzschiana da tragédia assim como seus desenvolvimentos ulteriores na direção de um Dioniso “dionisíaco” — portanto, no contexto tardio de busca de superação da metafísica. Examino aqui a significação do termo no contexto de sua teoria das metáforas do conhecimento, destacando uma passagem frequentemente comentada de UWL (Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral). Para a Alemanha “hiper-histórica” do século XIX, não há propriamente uma teoria da tragédia, mas inúmeras (Schmidt, 2001). Não há nenhuma unidade do “povo grego” mas, com a decifração do linear B micênico, confirma-se a prodigiosa dispersão 2

Fundação Oswaldo Cruz



23

helênica arcaica revelada pelas ciências “hiper-arqueológicas” do século XX. Essa profunda revisão dos conhecimentos adquiridos não deveria desestimular a compreensão das inúmeras invenções nietzscheanas em sua carreira de filólogo. O dionisíaco é o trunfo de uma hipótese nietzschiana que contrariava evidências disponíveis, buscando uma estranha experiência grega arcaica. O deus barbudo, vestido de menina, que chega à praia em ereção; ou ainda, um deus estrangeiro que chega do mar com seu estranho carro e séquito ruidoso (Brômios). A iniciação em seus mistérios era dotada de caráter epidêmico propiciando menadismo, bestialidade, possessão. Sabemos hoje o quanto este “mito moderno” confundiu-se com o orfismo, o quanto teve fontes em Heródoto e mesmo Homero. Trata-se de uma suposta força oriental que aparecia, misturava-se, mas ainda permanecia estranha.3 Trata-se também de uma força ou pulsão na origem de uma arte efêmera, preciosa e desaparecida, que era arte popular (ou ingênua e sentimental) tanto no sentido de Schiller como de Bopp ou Grimm, mas, sobretudo, naquele que Gustav Gerber ainda buscaria nas raízes primitivas das línguas. Há indícios de que o jovem Nietzsche leu o recém-publicado Der Sprache als kunst e se deixou influenciar, como se depreende da leitura de UWL (Hödl, 1997; Estellita-Lins, 2014). Trata-se ainda de um Dionisus que já anuncia o escândalo das etnografias vindouras. A expedição do Estreito de Torres, o interesse pelos esquimós-Innuit e as compilações de mitos e ritos do noroeste norte-americano (Kwakiutl, por exemplo) são surpreendentes: emerge o excesso como rito — bebedeiras, festas sexuais, possessões coletivas, potlatch, desperdício, transe erótico. São rituais e sacrifícios que parecem enigmáticos para o homem da cidade moderna, em construção no início do século XX. Não deve ter sido à toa que o jovem Malinowski se interessou pelo dionisíaco (redigiu em polonês uma memória sobre O nascimento da tragédia), que Simmel 3

O caráter estrangeiro e o orientalismo se articulavam com as expectativas de investigação de um idioma indo-germânico-europeu mais originário que aquele da escritura hebraica – já igualmente tido por arcaico, pois é “desprovido de vogais”. Os vários contextos de busca do “ariano” podem ser entendidos como forma de “orientalismo” da própria tradição helênica ou enxertados a partir do iluminismo, ou mesmo de Nietzsche. 24



comprendeu Nietzsche junto com essa experiência (bem longe, portanto, de alemães mais sisudos, como Heidegger ou Cassirer), ou tampouco irrelevante que Ruth Benedict incorporasse o dionisíaco aos seus padrões da cultura (cultural patterns). Se formos ainda mais longe (ou chegarmos mais perto) devemos admitir que os volumes do mito-lógicas de Lévi-Strauss — obra contemporânea que problematiza exaustivamente a relação entre som, música, sentido e mito — ainda fazem eco ao problema. Não ignoramos, evidentemente, as diatribes do grande antropólogo estruturalista, que recuperaram Richard Wagner (referência absoluta para o jovem Nietzsche) junto com Plutarco, enquanto grandes mitólogos do “pensamento domesticado” do Ocidente. Caberia examinar com maior atenção a sutil influência do jovem Nietzsche sobre a antropologia social, sem esquecer de sua obra integral lida por Georges Bataille, Michel Leiris, Roger Callois ou ainda através do cinema etnográfico de Jean Rouch. Giorgio Colli e Mazzino Montinari, editores das Obras Completas de Friedrich Nietzsche, lembram que a publicação dos póstumos trouxe nova luz para algumas dicotomias entrelaçadas no seu pensamento — Apolo e Dioniso Sófocles e Eurípedes-Sócrates (Colli & Montinari, 1983). Poderíamos acrescentar igualmente: páthos e drân. O arquivo Nietzsche e a fortuna crítica consolidaramse junto com o estudo especializado, que ganhou refinamento. Desse modo, concede-se progressiva importância à leitura da obra imatura, a um período antes considerado metafísico e schopenhaueriano. Os equívocos que servem para pensar sua démarche do ponto de vista da história da filosofia servem igualmente para pensar a interlocução filosófica da época, e permitem ainda reconstruir caminhos de seu próprio pensamento que ficaram inexplorados (releituras e conexões ao longo da obra). O caráter fragmentário e aforístico de seus escritos costuma exacerbar essa regra hermenêutica — com vantagens e desvantagens.4 Igualmente, deve ser reconhecido o 4

Lembremos as leituras de aspectos obscuros esboçadas por Foucault e por Derrida, tais como: genealogia, história da verdade, verdade e mentira; força; hermenêutica; estilo/esporas; mulher e superfície, etc. (Foucault, 2011; Derrida, 2012; Giacóia Jr, 2013).



25

privilégio do dionisíaco enquanto conceito maior e francamente operatório, que não poderia ser imediatamente assimilado à extensa discussão germânica acerca do trágico (Därmann, 2005). A compreensão de um dionisíaco maior tem sido reiteradamente proposta por intérpretes contemporâneos, em franco contraste com Heidegger, Löwith ou Jaspers (Heidegger, 1971; 1980; 1988a; 1988b; Assad-Mikahil, 1966). Os estados alterados da consciência e a embriaguez tendem a ganhar um estatuto transcendental no lugar do tradicional acesso à transcendência. A recepção francesa de Nietzsche possivelmente pavimentou essa avenida, como no caso de Georges Bataille, Pierre Klossowski e Maurice Blanchot, para não mencionar o engenhoso livro de Gilles Deleuze (1973).5 A hipótese sobre uma dupla mitológica Apolo-Dionisus e acerca do papel especial do dionisismo tem certa novidade e algum escândalo (Nietzsche, 1992). A mitologia solar, subordinada ao deus Apolo no caso grego, emergia, mesclava-se e era talvez temperada por divindades “neolíticas” da vegetação, menores e dispersas — o que se constata na versão acabada do Ramo de Ouro, publicada por Frazer em 1913 (que naturalmente Nietzsche jamais pôde ler). No caso de O nascimento da tragédia no espírito da música (1872), a argumentação em favor da neutralização de uma potência mitológica exuberante e onipresente como Apolo por Dionisus consiste exclusivamente em um procedimento dedutivo a partir de algumas evidências textuais, ficando excluída qualquer investigação empírica. A historiografia de Leopold von Ranke e o surgimento da arqueologia como disciplina científica (análise estratigráfica) trouxeram grande renovação para os estudos da Grécia antiga. No interior do debate filológico helenístico, era esperado distanciar-se de interpretações estéticas, em especial daquelas com aspecto de especulação metafísica ou filosofia da história, como testemunha a indignação de Wilamowitz-Moellendorff na recepção do livro de Nietzsche em 1872 (Machado, 2003). Num reconhecido trabalho desse arquirrival de Nietzsche (Wilamowitz-Moellendorff, 1907), 5

Não seria irrelevante lembrar da importância da escola sociológica francesa para maior compreensão do privilégio de mito, rito e sacrifício nestas interpretações da obra de Nietzsche. 26



não há traço nem sinal de nenhuma experiência dionisíaca. O culto ao bode é mencionado apenas rapidamente. Excetuando Erwin Rohde, pode-se afirmar que, de Jacob Burckhardt até Carl Nilsson, não encontramos interesse particular por uma experiência dionisíaca, seus mistérios e suas liturgias, seu teatro ou sua repercussão. Henri Jeanmaire, Károly Kerényi, Louis Gernet e seus discípulos — incluindo Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne e Pierre VidalNaquet — reabrirão essa “caixa-preta” das práticas dionisíacas estendendo-as aos inúmeros e multifacetados “gregos antigos” (Trabulsi, 2004). Pressupõe-se, com razão, que trágico e dionisíaco não serão sempre equivalentes ou equidistantes nos escritos posteriores de Nietzsche, ainda que se superponham consideravelmente nos textos de juventude. O “trágico” de Nietzsche se refere a uma exegese da tragédia grega absolutamente inserida numa tradição erudita, constituída até a década de 1870 por pelo menos algumas camadas teóricas (Szondi, 202; Colli e Montinari, 1983; Machado, 2003; Trabulsi, 2004; Heidermann e Weininger, 2006; Machado, 2006). Pode-se mencionar com segurança seus variados estratos: a) pensadores iluministas construindo uma história da arte (Winckelman, August Schlegel); b) estertores do debate sobre a origem das línguas (Rousseau, Herder, Fichte); c) discussão estética interna à produção romântica de peças trágico-dramáticas (Goethe e Schiller); d) idealismo alemão desenvolvendo uma teoria da arte póskantiana, historicista e integradora da Kultur (Schelling, Hegel, Schopenhauer); e) constituição de um campo de mitologia comparada a partir da história das religiões (Müller, Tylor, Fraser). Embora o estudo de letras clássicas costume ignorar as relações entre filologia comparada e história das religiões comparadas, parece-me justo com ambos os domínios sublinhar as intersecções e supor que Nietzsche, assim como Burckhardt e Bachofen, poderia estar melhor situado nesse território. Padecer é sofrer

Os textos póstumos, aforismos e anotações de cursos que tratam da tragédia, são objeto do oficio de um filólogo. Porém, este

27

trata igualmente de arte e estética, oficio de um filosofo romântico, de um iluminista ou de um idealista alemão. Nesse território, o privilégio de Schopenhauer não impede nem obscurece a leitura de Schlegel ou Schiller (1901), nem tampouco uma reinterpretação de Aristóteles sem, ou mesmo contra, Aristóteles. A linguagem emerge como elemento de articulação e comunicação dos dois domínios — descoberta de um trágico dionisíaco, com o elemento dionisíaco tido por mais fundamental e mais pesado, gerando desequilíbrio. Como foi mencionado, parte dessa leitura nietzschiana dos trágicos se apoiaria perigosamente numa pudenda origo, reabilitação do tema já proscrito de uma origem da linguagem. O texto de Nietzsche sobre verdade e mentira não representa, contudo, nenhum anacronismo. Caberia também aos intérpretes de Nietzsche algum pudor nesse tópico. O papagaio de Nassau foi enviado de Recife para a Holanda, motivando um debate sobre os animais falantes na academia de ciências alemã (Mello, 2006). Para Rousseau, pouco depois, já não havia animais falantes, mas selvagens e línguas exóticas. Herder duvidava que os jesuítas tivessem encontrado uma sinagoga arcaica na China, pois, já pressupunha que a língua de Adão não era a primeira das línguas (Olender, 2012). Buscava-se, então, uma gênese formal, porém, ainda eminentemente histórica da linguagem (ou gesto ou música ou poesia). Para a Escola de Cambridge, as forças mitopoéticas se confundem com a origem de uma outra linguagem mais arcaica e fundamental, cujo estudo está no coração das investigações sobre mitologias. A antropologia social nascente muito deve à história das religiões, contudo, abandona rapidamente alguns pressupostos da filologia (Sapir, 1907). Uma linguagem por detrás da linguagem tendia a ser gestual, emotiva e necessariamente poética (temas recorrentemente refutados, porém recalcitrantes). Entretanto, a música arcaica não seria aceita enquanto modelo satisfatório: “É preciso se libertar da ideia (...) de que a música grega era uma língua universalmente inteligível. (...) aquilo que restou dos compositores antigos, com sua estrutura rítmica muito clara, lembra [simplesmente] nossas canções populares” (Nietzsche, 1975b, p. 27). Era a tragédia que oferecia para a reflexão do jovem Nietzsche uma interessante reunião dos problemas que compunham a polêmica: origem da arte e da 28



filosofia, mito e efeito poético, experiência civilizatória e cultural, chave etnomusicológica e teoria da magia. Sabe-se que a tragédia deve provocar piedade e medo, segundo Aristóteles. Esses sentimentos propiciam emoções estéticas de grande valor e constroem uma Paideia grega que terá ressonâncias na educação estética proposta pelo romantismo alemão. A catharsis, inclusive, não foi efetivamente examinada em detalhe no texto da poética, aparecendo especialmente no livro 8 da Política, assim como na Física, Metafísica e na Ética a Nicômaco. A polêmica sobre sua significação médica “homeopática” levantada por Bernays no final do século XIX prossegue, embora essa hipótese tenha sido mitigada ou refutada (Munteanu, 2012, p. 239-242). É sabido que a explicação de Aristóteles sobre o páthos oferece um texto fundante para a longa discussão acerca da tragédia. Como encontramos em Aristóteles (1944; 2011), Poética, 11.9-10: “Com respeito a isto são duas partes que constituem o mito: peripécia e reconhecimento, a terceira é o páthos (catástrofe). Peripatéia e anagnórisis acabam de ser abordados (lembra Aristóteles); O páthos é devido a uma ação (práxis) que traz morte ou sofrimento, tal como cadáveres (tanatói) na cena, dores agudas, feridas e outros fatos análogos”. Não cabe discutir aqui a catarse, a dor e a piedade, nem tampouco acompanhar Schopenhauer, Wagner ou Nietzsche nesse labirinto. Possivelmente, o principal para os textos de Nietzsche que iremos discutir vem a ser o trecho 12.9 da Poética, em que o páthos se liga ao commos, canto fúnebre, assim como ao rito fúnebre grego que consiste em golpear o peito durante um funeral (Aristotele, 1944). Deve-se notar a dimensão ritual explicitamente assinalada. Sejamos mais diretos: Aristóteles lido pelos modernos teria feito uma teoria da arte, mas, o Aristóteles de seu próprio século descrevia uma tragédia que já havia desaparecido na ocasião e testemunhava uma experiência de alcance etnográfico. Nietzsche (1975b, p. 23) buscava traços que pudessem ligar os ritos sacrificiais ligados a Dionisus com a música: “A música sempre foi empregada, portanto, o como meio para um fim: sua tarefa era transformar, nos ouvintes, o sofrimento do deus e do herói em poderosa piedade”. Reteremos deliberadamente, portanto, a conexão do páthos com morte, rito fúnebre e luto.

29

Não devemos esquecer que padecimento e sofrimento (Leidenschaft) são traduções possíveis para o termo páthos entendido como emoções encenadas pela tragédia a partir do múthos, ou seja, da história trágica. O livro 2 da Retórica irá examinar aspectos fundamentais dessas emoções, que não são desvinculadas do entimema, espécie de silogismo retórico que explica efeitos persuasivos do discurso sobre o ouvinte. Lembremos, portanto, que essa “emoção” fica diretamente ligada a uma racionalidade e constitui-se uma prova lógica dos efeitos da oratória. Nada disso deve espantar, posto que a Física aristotélica trata da alma (pneuma). O termo páthos ganha seu pleno sentido de padecer — na série: paixão, padecimento, patologia a partir da filosofia latina e da patrologia cristã: “Este substantivo feminino, derivado do verbo pati = suportar, sofrer aparece no século II com Apuleio, designando a passibilidade da alma e, no plural, suas paixões, mas também as perturbações acidentais sofridas pela natureza. Daí em diante, passio designará o pátein a afecção acidental suportada pelo corpo ou pela alma, e, sobretudo, as “paixões” da “alma” (Fontanier, 2007). As paixões participam da transformação do problema aristotélico do movimento — da atividade ou da inércia — indo, em seguida, reconfigurar o momento renascentista-barroco da filosofia. Devemos reconhecer que o par ação & paixão possui equivalente moderno — o “casal ação-reação”, seu dublê —; que Jean Starobinki (2002) nos reapresenta em sua complexidade e tortuosa etimologia. A oposição entre agir e padecer encontra múltiplas acepções bem antes do século de Nietzsche, na maioria dos casos ao migrar do discurso filosófico para os problemas da ciência moderna, sofrendo uma captura conceitual. As leis de Newton ou o Princípio de Cournot se oferecem como exemplo vulgar. Duplicidade ou ambiguidade do páthos trágico?

Além de O nascimento da tragédia, dispomos de alguns textos do aparelho crítico da obra de Nietzsche, além de notas dos cursos ministrados na Universidade de Basel, que iluminam sua singular

30



interpretação da tragédia grega.6 Tratamos de uma noção de páthos que deriva da teoria nietzschiana do trágico e converge para sua incipiente concepção da linguagem. Admitimos que a noção mais trivial de uma afecção ou do patético mostra-se estilisticamente atraída por este núcleo argumentativo. Cabe agora examinar mais de perto esta trajetória. Junto com o páthos discutido através da teoria da tragédia (inferido) há evidentemente um páthos atuante na tragédia (conferido), próprio da experiência estética e apropriado pelo extenso debate filosófico ao longo do século XIX. Esse páthos parece bifurcar-se nos textos do jovem Nietzsche, cabendo, portanto, uma distinção. Quando passamos de Ésquilo a Eurípedes, há efetivamente uma progressiva atenuação do páthos na tragédia, segundo Nietzsche. No ditirambo e nas grandes cenas patéticas o trabalho do coro era intenso e absoluto, com Ésquilo e Sófocles o grande coro dionisíaco sofre uma atenuação ligada aos atores e às canções, seu antagonismo aumenta, surge “o espectador ideal”. Isso ocorre porque busca-se “incrementar ainda mais o pathos”. Com Eurípedes a tragédia fica bastante diluída e reduzida ao drama, palavra fixada nas falas que valoriza a ação. Surge um “pathos inferior”, pois Eurípedes se dirigia para regiões sentimentais mais brandas. Ocorre a perda de uma legítima unidade quando se prefere ver o drama em lugar de ouvir o páthos (Nietzsche, 2014). A compreensão da estória que se desenrola (múthos) torna-se mais importante que o lamento desesperado cantado pelo coro. Em 1939, um especialista do calibre de F.W. Kitto (2002, p. 273), concordará razoavelmente com esta hipótese desenvolvida nos cursos de Basel, embora a obra de Karl Reinhard desconsidere este arrazoado junto com muitos outros. Encontramos, doravante, o páthos capturado pelo drân, pela hipertrofia do drama-cena-imagem, porém, irredutível a este, lhe antecedendo e sendo mais genuíno. É o páthos que se liga profundamente ao coro e à música, pois provém diretamente do mito. Trata-se de uma experiência de padecimento/pathos que se 6

Introdução à tragédia de Sófocles, O drama musical grego, Sócrates e a tragédia, Sobre verdade e mentira em sentido extramoral, O Nascimento do pensamento trágico, Visão de mundo dionisíaca, etc.



31

assemelha ao rito fúnebre, ao luto, e não simplesmente a uma imitação de lamento ou exibição de motivos. No curso sobre Sófocles, Nietzsche defende uma unidade cíclica superior muito diferente da unidade de ação dramática usual. Tratava-se de uma proporção ou boa mistura que teria sido abandonada e se perdeu: “porque se queria ouvir o (páthos), e não ver o (drân), havia uma imposição limitativa da menor medida de (drân), visto que havia de ver-se o (drân) para ouvir-se o páthos” (Nietzsche, 2014). Contudo, a dicotomia espacial ou a bifurcação temporal não correspondem à exigência do círculo nem tampouco perfazem a verdadeira unidade, prescrita por Aristóteles, ambicionada e disputada depois dele. Nesse curso, aparece claramente uma tentativa de compreender a unidade da tragédia grega antiga em outros termos. A unidade da tragédia não está nas quintas partes reunidas por Aristóteles, nem tampouco nas transformações modernas que hipertrofiam drama e quinto ato. Nietzsche observa que “os [textos] épicos” tinham semelhança com panteões, frontispícios, selos circulares. Essas séries acabavam produzindo uma unidade recorrente, circular, do Um sempre reencontrado. A unidade épica, que é necessariamente cíclica para o jovem Nietzsche, guardaria relação com o surgimento do canto ditirâmbico dionisíaco. O espetáculo antigo faz rodar imagens — panteão ou vaso — ícones da cultura material — sem que isso explique totalmente a unidade da tragédia reivindicada por Nietzsche. A fusão privilegiada provém do mito. O páthos, em conjunto com a música, explica a verdadeira unidade: “A verdadeira música grega é puramente vocal: o laço natural entre a língua das palavras e aquela dos sons ainda não havia sido rompido, e isto a tal ponto que o poeta era necessariamente o compositor de sua canção” (Nietzsche, 1975b, p. 24). O mito encontra-se ligado e confundido com a música sendo condição de possibilidade para sua existência na tragédia — a alternância de páthos e drama, coro e performance, cria uma ilusão de causa e efeito. Somente nesse sentido a música é o meio, médium, segredo xamanístico para acesso a uma experiência dionisíaca autêntica. Essa mistura, que, aliás, foi perdida e somente poderia ser reencontrada nessa arqueologia do jovem Nietzsche, justifica sua preocupação em discutir as teorias sobre a função do coro trágico. 32



Admitindo-se que é o coro que padece e faz padecer, esse processo não se resume à catástrofe, nem a catharsis, nem ao papel do coro como espectador ideal, pois o coro desloca o patético e arrasta o paciente-padecente dissolvendo ou derretendo sua individualidade, seu ente e suas razões de ser. O coro é uma muralha, mas também um espelho. Como a máscara trágica usada pelos atores, seria simultaneamente anteparo diferenciante e caixa de ressonância. Nesse sentido, um páthos apropriado pelo drama que se hipertrofiou revela-se uma degradação da experiência original. Nosso filósofo nômade tenta ver nisso uma sintomatologia. A busca de páthos é uma contradição nos termos, tem um destino paradoxal. Talvez desse modo Nietzsche (2013a, p. 7 [151]) possa falar de “drama mimético”: “Em Eurípedes o mimético reage contra o pathos”; o desenvolvimento da tragédia com Sófocles teria ocorrido na direção do páthos (Nietzsche, 2013a, p. 9 [100]), mas algumas invenções tardias descaracterizaram-no (Nietzsche, 2013b). Nietzsche fala, por exemplo, em “Der Kothurn des páthos.” A ênfase na cena dramática cria um novo sentido para o páthos — um páthos do coturno, do arabesco, da saliência, da explicação do mito. Essa perigosa ênfase irá transformá-lo em algo excessivamente temperado. Há algo mais: o páthos mimético se entrelaça com o páthos musical. O páthos bruto do sacrifício dionisíaco permanece pujante, ainda que transformado, e, nesse sentido, sempre poderá renascer. Não se trata aqui somente do espectador (da tragédia? Mas, qual? Da obra de arte total?), mas do cidadão-espírito livre, que vive algo verdadeiro no sonho e nos estados alterados da consciência — poderia ser um índio no ritual ou um enfermo ou um possuído. Talvez coubesse incluir a transgressão, o erotismo, a ação política. Talvez caiba admitir uma experiência trágica que impõe seu horizonte de perspectivas e transfigura o mundo — dionisíaca no sentido de um Nietzsche tardio. Experiência que não apenas quer buscar o sonho dentro do sonho, a máscara por detrás da máscara, a caverna atrás da caverna, mas também instaura a comunicação desses mundos estético-trágicos entre si. Abre secretas passagens e os confunde deliberadamente. páthos, termo relevante até aqui, poderia ser simplesmente entendido como dionisíaco — embriaguez, loucura, transe, orgia, desmesura — a quintessência do excesso

33

significando estruturalmente que se opõe ao limite — peras e khora acossados pelo apeiron, o indeterminado (Nietzsche, 1975). Trata-se, evidentemente, de uma série ligada ao sacrifício, nos termos da antropologia social. Esse tema do páthos nos escritos de juventude suscita ainda uma tipologia — há um páthos “pindárico-esquiliniano” que se opõe a outro dito schilleriano, entre muitos ou alguns. Esse dualismo reitera a tensão entre a boa mistura e o desequilíbrio vista acima. Além do páthos e do sofrimento, deve-se observar uma certa economia da expressão pathetisch, que não é rara e se mostra estratégica. O patético tematizado por Nietzsche ainda se conecta com uma estranha e naturalíssima propensão ao prazer, que aparece nas obras críticas de Kant sob a noção de um “sujeito patológico”, em que a razão prática em seu exercício puro desvia-se em função do interesse. Evidentemente, isso não é válido para os juízos reflexivos. Verifica-se um interesse repleto do páthos, poluidor da razão prática, atravessando o processo criativo orquestrado no Belo (para alguns, o sublime e o efeito trágico se encontrariam, estariam em aproximação infinitesimal). O jovem Nietzsche está atento, por exemplo, para o destaque que a noção de um sujeito bruto ou patológico recebe na correspondência entre Schiller e Goethe, quando se referem a Kant. Ambos percebem “um intruso” em seus respectivos processos de fruição e criação da arte trágica. Não se trata, neste momento, de protestar contra o belo desinteressado da 3ª Kritik, atitude que Nietzsche assume com veemência mais tarde, pois, aqui, parece estudar cuidadosamente e com ouvido de aprendiz todos os sentimentos secretos daqueles que, geniais criadores confrontados com a experiência do trágico, teriam compreendido algo sobre a tragédia antiga (Nietzsche, 1992, p. 22) Há, portanto, um páthos do patético que ronda Goethe e o perturba, além daquele que permite a Schiller reinventar o coro na Noiva de Messina (Carruth, 1901; Schmidt, 2001). Naturalmente, não examinarei aqui o problema do “prazer com a tragédia” (oikeia hedone) que deriva enigmaticamente do desprazer — medo e piedade. Essa questão coloca-se claramente na correspondência Goethe-Schiller e fornece a chave para a compreensão de algumas passagens enigmáticas ao final de OT. 34



Cumpre apenas destacar a dispersão do páthos na compreensão nietzschiana do trágico. Esse páthos multifacetado parece estar situado, portanto, entre dois mundos claramente distintos. Há um páthos da afecção sensível pelo mundo, que será metáfora do conhecimento, isto é, linguagem. Trata-se de um Ersatz teórico daquelas forças criadoras do mito, que, é preciso dizer, nada tem de metafísica de artista para quem leva o mito/mitologia a sério. Como sabemos, um certo Nietzsche nos apresenta uma protolinguagem, nos moldes da linguagem gestual de Rousseau, prestes a ser corrompida pelos truques do intelecto do perigoso animal humano (Rousseau, 2003; Lopes, 2006). Destaca-se sua articulação com uma teoria da ação-paixão herdada da tradição filosófica, da discussão sobre a origem da linguagem, a partir de Rousseau e Herder chegando até Max Müller e Gerber (Marton; Machado, 2011). Não menos importante ou complexa em sua inter-articulação com aquela anterior, emerge um outro sentido para o páthos, derivado igualmente da problemática do padecer, seja como sofrimento ou mesmo adoecimento (Goethe e Schopenhauer) que serão lidos a contrapelo da poética. Entretanto, é a noção de páthos, derivada da poética, que forra esse solo. Ocorria na tragédia antiga, segundo Boileau e outros intérpretes, uma exibição cruenta de sofrimento, de mortos e de sangue. Contudo, podemos supor em Nietzsche uma sintonia, sobretudo, com a dimensão antropológica do rito fúnebre, do enterro com exéquias complexas, de onde provém o commos. Culpa e destino, na discussão sobre a tragédia, transformam-se em luto, pois tendem ao horror da existência, mas estão firmemente ligados à comemoração de seu ciclo, renascimento, metempsicose. No lugar da redenção, aparece a embriaguez. Essa celebração sacrificial oferece vestígio de um tráfego do sofrimento de fora para dentro e da coletividade ao indivíduo — o que inaugura a possibilidade de sua circulação em mão-dupla nessa direção. A dissolução do princípio de individuação traduz, em termos schopenhauerianos, aquilo que o próprio Schopenhauer havia recebido do zenda-avesta e do zoroastrismo por via de estudos indo-



35

europeus. Lembremos que a relação do budismo indiano/tibetano com o niilismo era um tema caro a esses estudiosos.7 Palavra patética: padecer não é sofrer

Embora o páthos constitua uma preocupação do jovem Nietzsche, mencionado em várias passagens sobre o trágico, o termo e sua significação é infrequente em Sobre verdade e mentira em sentido extra-moral (UWL) ou em seu rascunho,8 igualmente póstumo — aparecendo somente em 2 ou 3 trechos. Quando essa expressão é estudada em obras que abordam a tragédia grega, encontramos problemas de interpretação (assinalados acima). O texto pode ser lido como uma matriz precoce de alguns conceitos mais tardios — valorizando, sobretudo, a teoria da linguagem do jovem Nietzsche (de Man, 1979; Clark, 1990; Hödl, 1997). O disfarce-máscara como estatuto ontológico da linguagem seria um exemplo desse tipo de continuidade atravessando as preocupações de Nietzsche. A exigência de uma discussão crítica sobre a moral ou ética como advento histórico constitui outro elemento típico que está no horizonte da noção de “extra-moral” a motivar esse pequeno opúsculo (Fink, 1979; Clark, 1990). Tomando a teoria da linguagem expressa em “sobre a verdade e mentira” como critério analítico e fio condutor, verificamos duas referências relevantes. Na primeira, temos o páthos “der Mucke”, que é, evidentemente, o orgulho antropomórfico do homem de ciência. Na seguinte, o “pathos” emerge particularmente como um primeiro e originário regime metafórico, dentro de uma teorização sobre linguagem. Por essa via, a questão da origem da linguagem analisada a partir de “uma dimensão extramoral”, Nietzsche desenvolve 7

O difícil tema da compaixão (Mitleid) em Nietzsche parece distanciar-se progressivamente de sua fonte schopenhaueriana, revelando, ao longo de sua obra, conexões com a polissemia do páthos. 8 Um pequeno prefácio não publicado representa versão prévia de UWL: NIETZSCHE, F. “Cinq préfaces a cinq livres qui n’ont pas été écris. La passion de la vérité.” In: COLLI, G.; MONTINARI, M. (org.). Oeuvres Philosophiques complètes de Nietzsche. Écrits posthumes 1970-1873. Paris: NRF Gallimard, v. I.1, p. 167-172, 1975. 36



argumentos diretamente ligados ao campo semântico de páthos, embora sua relação não seja clara. Tentarei explicitá-los de acordo com o nexo proposto acima. Indubitavelmente, podemos assumir que a noção de páthos em UWL é sutil, flutuante, talvez pouco relevante, porém, trabalha em várias direções com alcance suficiente para nos intrigar — menos oculta do que cifrada, pois, talvez, anuncie uma transformação das paixões em ações (talvez de uma receptividade passiva oposta a uma espontaneidade ativa). A questão das forças reativas será tematizada, posteriormente, por Nietzsche sob a rubrica do nihilismo e da difícil tarefa de sua superação. Linguagem e fenômeno são convocados para integrar uma teoria provisória, de caráter estratégico. No caso da influência de Gerber é importante notar que a retomada da retórica, quase onipresente, seria acompanhada de algo peculiar — uma dívida para com a crítica kantiana e a tarefa de traduzir tropos em faculdades (Gerber, 1870; 1884). Não pode ser gratuito que fenômeno e símbolo/signo se aproximem assintoticamente no texto, nem tampouco que Nietzsche afirmasse, de modo peremptório, que: “Tempo, espaço e causalidade são apenas metáforas do conhecimento (“sind nur Erkentnissmetaphern”) com as quais nós significamos as coisas (...)” (Estellita-Lins, 1993; Nietzsche, 2013a, p. 19 [210]). Pensemos em uma receptividade que não seria estranha nem incompatível com a espontaneidade, em acepção kantiana, pois aponta para um esquematismo arcaico mais fundamental, precedendo sensibilidade e entendimento. No caso do páthos explicitamente nomeado em UWL, entende-se que Nietzsche se refere a uma determinada Stimmung, um tom, uma atitude orgulhosa e enfatuada — penso que devemos hesitar em chamar de estado de espírito com base no que já foi sugerido acima: trata-se de uma circunscrição da tragédia grega, assim como de um ritual fúnebre (seu lamento cantado). Ele constitui o glamour dos homens do conhecimento, encarnado precisamente no filósofo, porém, representando a humanidade inteira. Esse homem do conhecimento não se reconhece no animal ardiloso em que simplesmente consiste. Nietzsche afirma que o conhecimento deveria ser reconhecido como tão efêmero quanto o animal-homem e seu pequeno planeta — o tom adotado contra o

37

pathos-hybris do antropomorfismo é de um fatalismo evolucionista que nada deve ao clima do antropoceno contemporâneo. Imediatamente após lembrar, em seu mito-fábula, que o universo congelou e todos os animais tiveram que perecer, fuzila: “Pois, para aquele intelecto, não há nenhuma missão ulterior que conduzisse para além da vida humana. Ele é, ao contrário, humano, sendo que apenas seu possuidor e gerador o toma de maneira tão patética como se os eixos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos pôr-nos de acordo com o mosquito, aprenderíamos então que ele também flutua pelo ar com esse páthos e sente em si o centro esvoaçante deste mundo. Na natureza, não há nada tão ignóbil e insignificante que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não inflasse, de súbito, como um saco; (...)” (Nietzsche, 2008). A continuidade do conhecimento com as unhas e os dentes revela dois aspectos do mesmo artifício. O animal do conhecimento é um animal sem nenhum privilégio sobre os outros animais. Seu páthos anuncia sua própria tragédia. A força do conhecimento também exerce efeitos sobre seu autor — transforma-o no centro absoluto das coisas, tem poder patético, esse é seu páthos — antropomórfico, autocentrado, egoísta, etnocêntrico — por que não dizer ainda falogocentrico? (Derrida, 1978). Há um páthos do homem do conhecimento, páthos do arrogante animal antropomorfizante que confunde o mundo com seu pombal ou sua colmeia conceitual (Nietzsche, 2008). Coloca-se, doravante, o problema de relacionar essa expressão, ou o que parece uma expressão, com o campo conceitual do páthos proveniente da interpretação nietzschiana da tragédia (Estellita-Lins, 2014). Seria apenas e exatamente assim se esse páthos não estivesse profundamente conectado com o duplo esquecimento do homem. Nosso animal patético esquece que é impressionado pelo múltiplo da intuição sensível, e que, então, os fenômenos serão, doravante, metáforas originárias. Em um esquecimento de segunda ordem, ao fixar conceitos na linguagem, esquece-se de sua faculdade dissimuladora. Essa primeira transcrição metafórica pode ser considerada patética — no sentido de padecer ou ser afetado. Assim como também é páthos no sentido de ser experiência daquilo que acontece, seja nocivo ou benfazejo. Para esse Nietzsche, o 38



entendimento não é absolutamente uma faculdade exterior à natureza (que prescreveria a ela suas leis), ao contrário: pode ser tomado por uma malandragem, ardil, mimetismo característico destes animais e de sua natureza. Os homens o utilizam para sobreviver e dominar os outros viventes (sua compreensão do evolucionismo darwinista ou lamarckista emerge nesse ponto de modo fragmentário). O páthos, aqui, é menos um mero efeito do que o cerne de algo originário, pois, paradoxalmente, constitui uma atitude e também uma certa práxis, postura em face ao desconhecido (estranho, hostil, irredutível) — da qual emerge por meio de um ato de criação inconsciente. Dissimulação, metáfora e linguagem, em suma, algo próximo da “arte ingênua” e originária da tragédia, verifica-se no coração dessa encruzilhada. Esse páthos merece atenção redobrada, pois poderia ser tomado apenas como expressão circunstancial, como excesso literário ou expressão vulgar para designar uma pretensão descabida que se quer caricaturar. Na pior dessas hipóteses, o termo teria um valor retórico fraco e nenhum alcance conceitual, o que pretendemos refutar. páthos poderia, inclusive, vir do senso comum e indicar simplesmente a superestima infundada, uma fé na extraordinária capacidade dos humanos, tida como superior às capacidades dos animais e superior ao próprio planeta. Entretanto, essa fábula-mítica remete a uma teoria da linguagem apresentada na sequência do texto. Um indício do engano antropomórfico não é mera idiossincrasia da longa argumentação metafórica sobre as metáforas do conhecimento. Observe-se que essa noção poderia ser tomada aqui como articuladora de uma visada interpretativa da tragédia grega que se coloca contra uma longa tradição. O páthos seria um sentimento provocado, que a gigantesca força do conhecimento é capaz de insuflar. Um efeito teatral dito trágico transforma-se no efeito mais fundamental do conhecimento. A limitação crítica do conhecimento pode ser compreendida enquanto uma forma de educação trágica do entendimento. Esse é também o sentido da relação entre arte e conhecimento no jovem Nietzsche. Precisamos da arte para não morrermos sufocados pelo conhecimento, fulgura o trecho emblemático. Entretanto, esse antídoto é, talvez, apenas uma dosis,

39

uma questão de posologia. Seria importante discutir se isso ocorre de modo necessário; se esse seria seu principal efeito reflexivo ou retroativo; e se a relação do conhecimento com o páthos seria regular, orientada, etc. Em suma, ao nos tomarmos por deuses, precisaríamos purgar esta hybris no páthos na tragédia (como se ainda tivéssemos alguma tragédia capaz disso). Por meio dessa conexão, esclarece-se como música e páthos guardam uma equivalência. Apontamos, aqui, para uma correlação distinta daquela do canto fúnebre ou da série sacrificial. No intermezzo entre duas frentes argumentativas, Nietzsche denuncia a copiosa explicação socrático-euripideana que reconfigura o mundo da tragédia antiga, realiza sua transformação final e anuncia a decadência da tragédia. No outro extremo, adivinhamos que a relação do páthos com uma teoria das “metáforas do conhecimento” ou com a função “mitopoética” da linguagem será representativa da articulação nietzschiana, desenvolvida mais tarde, entre estética e ontologia por meio da criação estética. O conhecimentoentendimento-reconhecimento cristaliza-se sobrepujando a atitude estética dionisíaca implicada na primeira metaforização — os termos são aqui deliberadamente de extrato kantiano. Situa-se, nesse ponto, um páthos orgulhoso, pois se trata de uma segunda marca e de um esquecimento ulterior superimposto. Por outro lado, desse modo perfaz-se o truque da animalidade reencontrada, artifício do animal mimético por excelência — essa origem do logos ambiciona rigor e controle, mas não pode deixar de permanecer afim com criação e excesso. O artista é criador porque se situa num plano trágicosacrificial e torna-se o supremo macumbeiro de bodes que cantam. Seria interessante lembrar que a filologia não se dedicava exclusivamente aos gregos e latinos quando Nietzsche se dirige para a cátedra em Basel. A filologia comparada e a história das religiões debruçavam-se sobre o indo-europeu, dito ariano (sânscrito, avesta, persa), em suas relações com o grego, o latim e as tradições semitas. Suponho que uma investigação acerca do páthos e do patológico deva dar menos ouvidos ao romantismo alemão, que discutiu arte a partir de Winckelman ou August Schlegel (ainda que de modo essencial para compreensão dos pressupostos nietzschianos) e buscar textos em que se discute novamente a origem das línguas a partir da 40



descoberta do indo-europeu e, sobretudo, com o início da análise dos mitos na história da religião. Nesse sentido, Humboldt, Max Müller e Gerber, dotados de importância desigual em suas disciplinas respectivas, podem nos guiar de modo mais preciso. Em sua oitava lição sobre a origem das línguas, especialmente dedicada à metáfora, Max Müller (1862) escreve: Todas as vezes que uma palavra qualquer, depois de ter sido empregada metaforicamente, é empregada sem que se tenha um conceito claro dos níveis pelos quais ela passou entre seu significado original e seu sentido metafórico, há perigo de mitologia; todas as vezes que esses níveis são esquecidos e substituídos por níveis artificiais, deparamo-nos com mitologia, ou, se posso expressar-me assim, deparamo-nos com uma enfermidade da linguagem [...].

Essa é apenas uma das várias descrições que o grande Max Müller faz de uma degradação arqueológica das línguas antigas. Os “níveis” e as metaforizações não são estranhos ao texto de Nietzsche, que tinha consciência da importância de seu trabalho. No final do século XIX, esse enunciado é representativo de um esforço para compreender as etimologias do indo-europeu e repensar a origem da linguagem, já prescindindo de uma origem arcaica primeira, mas dentro de um princípio formador que busca descrever um processo protolinguístico. A mitologia seria uma enfermidade da linguagem, um estado patológico de afecção, ou seja, seu páthos, e, desse modo adquiria valor metodológico no estudo das línguas e das religiões. O sentido figurado, trópico ou metafórico constitui um princípio hermenêutico para o estudo das transformações retóricas da linguagem. A função mitopoética da linguagem no sentido de Max Müller é tributária de um debate anterior sobre o caráter poético da Tora e do Mahabharata (Olender, 2012), renovando os estudos de epopeias. Não cabe discutir aqui se, ou mesmo como, o gênio de Max Müller teria influenciado a filologia do século XIX, e indiretamente o jovem Nietzsche, mas apenas assinalar que o sentido positivo de mitologia, assumido pela antropologia social com Tylor e Frazer, já estava presente nas fontes filológicas de Nietzsche. Essa relação entre mitologia e linguagem encontrava-se, portanto, já bastante modificada em relação a Herder, Fichte e o romantismo alemão

41

(Cassirer, 1972). A metáfora é um tropo privilegiado. Se nessa passagem a metáfora esquecida engendra mito e mentira (palavra desgastada), certamente configura-se um solo onde a metáfora passa a ser intercambiável com uma palavra degradada que serve de vestígio arqueológico. Cabe admitir que isso ofereceu, ao jovem Nietzsche, elementos para reunir a palavra com a música e a verdade(-mentira) sob os vestígios de um mito(-antimito) que vem a ser Dionisus. Entre mortos e feridos

A importância da releitura não somente da terceira, mas também da primeira crítica de Kant, pelo jovem Nietzsche, deve ser revista, revisitada e repensada (Estellita-Lins, 2001). Nietzsche reinterpreta o método histórico-crítico da filologia enxertando uma démarche crítico-filosófica com destaque para Kant (Nasser, 2015). A sensibilidade transcendental é tematizada por meio das metáforas do conhecimento: tempo espaço e causalidade. Essa ponte comunica o páthos trágico com as metáforas e seu páthos próprio. Ela explica o estranho páthos de um conhecimento orgulhoso de si. Isso ocorre de múltiplas maneiras, ou sob diversas influências, seja filtrado por meio do romantismo alemão seja mediado por Schopenhauer, ou pelo wagnerianismo da tetralogia ou mais especialmente denunciado no socratismo científico. O Dioniso fabricado por Nietzsche não precisa ser visto apenas como a vontade schopenhaueriana carnavalizada, pois, igualmente e com ênfase semelhante, antecipava certo modelo de análise antropológica que buscava a mitologia solar e apolínea, paradoxalmente tensionada por uma entidade ctônica, enterrada na coxa de Zeus. Sabemos que o dionisíaco atravessa a obra e se reconfigura, desaparece enquanto entidade mitológica e ganha espectro de conceito, adquirindo significação perspectivista nos anos do desmoronamento. A interpretação do páthos dionisíaco como tarefa exegética se justifica pela complexidade da “primeira metáfora”, verdadeira palavra patética. Mais tarde, os desenvolvimentos do amor fati, da alegria da afirmação da totalidade

42



da existência, do vivido e das possibilidades do ente — articulam novas conexões. Novas liras para outros cantos. Não interessava a Nietzsche construir uma teoria exclusivamente estética, desvinculada da discussão ética e metafísica. Nesse sentido, a suposta metafísica de artista derivada da vontade, mas marcada pela limitação crítica do conhecimento, pode ser entendida como um passo na direção da sabedoria trágica (Gaya Scienza). As incursões no trágico poderiam ser tomadas por uma estratégia retórica plena, em que noções como páthos funcionam de modo complexo, mobilizando inúmeras referências a partir de Aristóteles. Depreende-se disso algumas consequências para as regras de leitura do jovem Nietzsche. O páthos pode ser compreendido como efeito trágico da gênese da linguagem — permanecendo necessariamente ambíguo. O páthos nomeia uma atitude arrogante, pretenciosa e ingênua face ao conhecimento — trata-se do páthos do homem do conhecimento. O páthos não deveria ser entendido simplesmente como efeito ou repercussão, padecer literal, mas como ritual positivo e origem, verdadeira espontaneidade do pensamento, contemporâneo de um sentido extramoral, irredutível à moral mesmo se capturado por ela. Esboçamos, desse modo, argumentos provisórios e parciais para que, além do termo, o campo conceitual envolvido com a noção de páthos (expressamente ligado à discussão estética) possa ser tematizado e explicitado com igual cuidado. O páthos é um problema necessariamente ligado a sociedades históricas, com escrita, épicas, localizadas em cidades, mas remete necessariamente a uma antropologia da Grécia arcaica, marcada pelo mito, magia, feitiçaria e xamanismo. Fala-se de páthos talvez com demasiada ênfase na catarse ou na função do coro trágico, porém, isso permanece cabível se acrescentarmos todos os atributos do trágico “redescobertos” pelo jovem Nietzsche, a saber: o dionisíaco, a desmesura e o excessivo, a embriaguez, a possessão e as várias formas de mania (do menadismo até a loucura).



43

Referências

ARISTOTELE. Art Rhétorique et Art Poétique. Paris: Librairie Garner Frères, 1944. 572 p. ______. Poetica. Milano: Fabbri, 2001. 250 p. (I Grandi Classici Latini e Greci) ASSAD-MIKHAIL, F. Jaspers interprète de Nietzsche. Revue de Métaphysique et de Morale, n. 3, p. 307-338, 1966. CARRUTH, W. H. (org.) Schiller’s Die Braut von Messina. Boston&Chicago: Silver, Burdett & Co, p. 214, 1st ed. 1901. CASSIRER, E. La philosophie des formes symboliques. 1. Le langage. Paris: Les Éditions du Minuit, v. 1. 1972. 352 p. CLARK, M. Nietzsche on Truth and Philosophy. New YorkCambridge: Cambridge University Press, 1990. COLLI, G.; MONTINARI, M. Nietzsche Lesen. Berlin; New York: Walter de Gruyter. 1983. 214 p. DÄRMANN, I. Rausch als “ästhetischer Zustand”: Nietzsches Deutung der aristotelischen Katharsis und ihre platonischkantische Umdeutung durch Heidegger. Nietzsche-Studien. Internationales Jahrbuch für die Nietzsche-Forschung, v. 34, p. 124-162, 2005. DELEUZE, G. Nietzsche et la Philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1973. DE MAN, P. Allegories of Reading. New Haven-London: Yale, 1979. DERRIDA, J. Éperons. Les Styles de Nietzsche. Paris: Flammarion, 1978. ______. Historie du mensonge: prolégomènes. Paris: Galilée, 2012. 103 p. ESTELLITA-LINS, C. Sensibilidade transcendental e moral: um estudo da apropriação nietzscheana dos conceitos kantianos de tempo e espaço. 159 p. Dissertação (mestrado em Filosofia) — Centro de Filosofia e Ciências Humanas/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1993. ______. O sujeito entre causalidade e perspectivismo: estudo sobre a crítica nietzscheana ao sujeito, a gênese subjetiva e o arcaico. 325 p. Tese (doutorado em Filosofia) — Centro de Filosofia e 44



Ciências Humanas/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. ______. “Homens do conhecimento em seu antropoceno: o mosquito”. In: COSTA, A. C. D.; KARASEK, F. S. (org.). Nietzsche 170. Porto Alegre: Editora Bestiário, 2014. p. 37-53. FINK, E. La Philosophie de Nietzsche. Paris: Minuit, 1979. 243 p. FONTANIER, J.-M. Vocabulário latino da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007 FOUCAULT, M. Leçons sur las volonté de savoir: cours au collège de France 1970-1971. France: Gallimard, 2011. 316 p. GERBER, G. Die Sprache als Kunst. Bromberg: Mittler’sche Buchhandlung/H.Heyfelder. 1870 ______. Die Sprache und das Erkennen. Bromberg: R. Gaertners Verlagbuchhandlung/Hermann Heyfelder. 1884 GIACOIA JR, O. G. O humano como memória e como promessa. Petropolis: Vozes, 2013. 343 p. HEIDEGGER, M. Nietzsche. v. 2. Paris: Gallimard, 1971. 404 p. HEIDEGGER, M. “Le mot de Nietzsche ‘Dieu est mort’”. In: Chemins qui ne mènent nulle part. Paris: Gallimard, 1980. p.173-219. ______. Le Dépassement de la Métaphysique. In: Essais et Conférences. Paris: Gallimard, 1988a. p. 80-245. ______. Qui est le Zarathoustra de Nietzsche? In: Essais et Conférences. Paris: Gallimard, 1988b. HEIDERMANN, W.; WEININGER, M. J. (orgs.) Humboldt. Linguagem, Literatura, Bildung. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina\CCE-PGET, 2006. p. 268. HÖDL, H. G. Nietzsches frühe Sprachkritik. Lektürer zu “Ueber Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne” (1873). Wien: WUV Universität Verlag. 1997. 148 p. KITTO, H. D. F. Greek Tragedy. A Literary Study. London/New York: Taylor & Francis Group, 2002. 420 p. LOPES, R. A. Elementos da Retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola. 2006 MACHADO, I. L. Para além das palavras e das coisas: Friedrich W. Nietzsche e as Ciências da Linguagem. Dissertação (Mestre em Linguística) — Instituto de Estudos da Linguagem, da

45

Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, 2011. MACHADO, R. (org.) Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia. Textos de Rohde, Wagner e Wilamowitz-Mollendorff. Coleção Estéticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p.166, Coleção Estéticas, 1a ed. 2003. ______. O nascimento do trágico. De Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006. 279 p. (Coleção Estéticas) MARTON, S. Novas liras para novas canções. Reflexões sobre a linguagem em Nietzsche. Ide. (São Paulo), n. 30 (44), p. 32-39, 2007. MELLO, E. C. Nassau. Governador do Brasil holandês. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 320 p. (Perfis Brasileiros) MÜLLER, M. Lectures on the Science of Language. London: Longman, Green, Longman&Roberts, 1862. 420 p. MUNTEANU, D. L. Tragic Pathos: Pity and Fear in GREEK Philosophy and Tragedy. Cambridge: Cambridge University Press. 2011 294 p. NASSER, E. Nietzsche e a reforma metodológica da filologia: o problema da cientificidade no contexto dos estudos clássicos. Hypnos, v. 34, p. 79-104, 1. sem. 2015. NIETZSCHE, F. La philosophie a l’époque tragique des grecs. In: COLLI, G.; MONTINARI, M. (orgs.). Oeuvres Philosophiques complètes de Nietzsche. Écrits posthumes 1970-1873. v. I. Paris: NRF Gallimard, 1975a. ______. Le drame musical grec. In: COLLI, G.; MONTINARI, M. (Orgs.). Oeuvres Philosophiques complètes de Nietzsche. Écrits posthumes 1970-1873. v. I. Paris: Gallimard, 1975b. p. 15-30. ______. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 177 p. ______. Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Hedra, 2008. ______. Digitale Kritische Gesamtausgabe (eKGWB). (19 = P I 20b. Sommer 1872 — Anfang 1873). COLLI, G.; MONTINARI, M. Berlin: Walter de Gruyter, 2013a.

46



______. Digitale Kritische Gesamtausgabe (eKGWB). (9 = U I 4a. 1871). COLLI, G.;MONTINARI, M. Berlin: Walter de Gruyter, 2013b. ______. Introdução à Tragédia de Sófocles. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. 106 p. OLENDER, M. As línguas do paraíso. Arianos e Semitas: um casamento improvável. São Paulo: Phoebus, 2012. ROUSSEAU, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas: Unicamp, 2003. 185 p. SAPIR, E. Herder’s “Ursprung der Sprache”. Modern Philology, v. 5, n. 1, p. 109-142, 1907. SCHILLER, F. Über den Gebrauch des Chors in der Tragödie. In: CARRUTH, W. H. (Org.). Schiller’s Die Braut von Messina. NY\Boston\Chicago: Silver, Burdett & Co, 1901. p. 121-134. SCHMIDT, D. J. On Germans and other Greeks. Tragedy and Ethical Life. Bloomington&Indianapolis: Indiana University Press, 2001. 337 p. STAROBINSKI, J. Ação e Reação: vida e aventuras de um casal. Civilização Brasileira, 2002. SZONDI, P. An Essay on the Tragic. Palo Alto: Stanford University Press. 2002. 128 p. TRABULSI, J. A. D. Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da época clássica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. 294 p. WILAMOWITZ-MOELLENDORFF, U. V. Einleitung in die Griechische Tragödie. Berlin: Weidmannsche Buchhandlung, 1907. 258 p.



47

Discurso filosófico e discurso trágico: o elemento trágico na filosofia dramática de Platão

Deivid Junio Moraes9

Não raramente, Platão é tomado entre os antigos como o mais pertinaz crítico da poesia, especificamente, da poesia de Homero e, a partir deste, dos tragediógrafos em geral. Homero não é só apontado como o educador de toda Hélade, como também a principal referência e inspiração para todos os poetas trágicos (Platão, 2000, 606e-607a). Os antigos críticos de Homero o consideravam como o pai da tragédia devido aos elementos miméticos da epopeia, sobretudo o diálogo, incluídos na poesia trágica. A epopeia homérica é, muitas vezes, vista como um “prelúdio à objetivação do trágico”, um prelúdio de grande importância (Lesky, 1990, p. 20). A influência da poesia homérica, aliás, se faz sentir de modo abrangente sobre a cultura grega, conforme constata Xenófanes (fragmento B10): “todos aprenderam seguindo Homero”. A tradição remonta ainda a este filósofo pré-socrático a querela entre poesia e filosofia por sua crítica imoderada feita a Homero e Hesíodo, acusados de imputar aos deuses um caráter digno de censura (atestada, sobretudo, pelo fragmento B11), e essas objeções se farão sentir também depois nos posicionamentos críticos de Sócrates na República em relação à poesia. Não obstante a poesia tenha exercido um papel preponderante na constituição da cultura grega, parece vir de longa data a problematização quanto ao seu valor e suas contribuições para aquela sociedade, quase sempre era julgada sob os pontos de vista pedagógico, religioso e ético-político juntos. A tragédia, de um modo mais particular, foi, na Antiguidade, um 9

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto. Bolsista Capes. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Imaculada Kangussu. 48



gênero, como nenhum outro, tão cedo teorizado e tão abundantemente, que se tornou alvo de discussões metapoéticas, seja por tragediógrafos (Sófocles) ou espectadores (Górgias), merecendo atenção especial nas investigações da República de Platão e da Poética de Aristóteles (Most in Rosenfield, 2001, p. 20). Se toda a formação dos gregos passava necessariamente pela comunicação da poesia, a filosofia nascente teria de se ver com essa forma dominante de discurso a fim de se estabelecer também como um discurso — um discurso outro. Platão é considerado, quase unanimemente, como o realizador mais profícuo desse processo; toda sua obra, ao menos, é testemunha desse esforço de “invenção” da filosofia, sempre em relação àquilo que ela não é — poesia, sofística e tirania. De acordo com Casertano, podemos compreender o projeto filosófico platônico, que, por quase quatro décadas, foi sendo articulado em diálogos, como o esforço de estabelecer, por um lado, um limite “contra uma tradição antiga que se apresentava com os caracteres do sagrado, da sapiência, da revelação e, por outro, sobretudo contra os resultados teoréticos e políticos do relativismo da cultura sofística” (Casertano, 2010, p. 17-18). A figura do filósofo se constitui, em vista disso, em contraponto ao poeta, ao sofista e ao tirano. Os Diálogos de Platão se nos apresentam como uma tentativa de definir o “amante do saber” frente às demais categorias ou instituições já bem estabelecidas em seu tempo; e, note-se, a postura do filósofo deve ser tanto desiderativa em relação à sapiência quanto não pode estar no mesmo nível de acomodação da ignorância, como será mais detalhado adiante. Frontalmente à tradição poética, à qual este estudo se aterá especialmente, o discurso filosófico elaborado por Platão terá de garantir uma força de verdade tal que possa ser acolhido pela tradição vigente. A prosa platônica se vê como que cerceada por um discurso preponderante, mas indemonstrável, da ordem do mythos, de um lado, e, por uma fresta, busca vislumbrar a verdade de modo demonstrável, isto é, um discurso capaz de dar razões de si mesmo — lógos. Sua prosa, portanto, surge entre um discurso mentiroso que se apresenta como doutrina, com uma aparência de verdade, e um discurso verdadeiro que tenta estabelecer sua veracidade. Talvez isso explique por que a filosofia platônica seja dramática, pois vai

49

precisamente contra a tradição posta, ou, no sentido contrário, de enfrentamento a ela. Na perspectiva de Goldschmidt (1970, p. 106): A cidade platônica expulsa de seu território os poetas trágicos porque ela representa, por si própria, na paz e na guerra, o mais belo dos dramas [Leis, VII, 817b]; do mesmo modo, o homem livre não se fará autor nem ator [Rep., III, 394 e seg.], porque ele deverá, pela sua própria vida, compor o único poema dramático que é digno dele; o que imita, não imagens, mas os Valores. Mas esse drama vivido parece isento de todo elemento dramático: nada irreparável pode acontecer à alma; ele não comporta peripécias trágicas, nem mesmo desenlace, pois a morte não lhe põe termo.

Vamos por partes: a poesia trágica, vista como produção de imagens na perspectiva platônica, não tem por objetivo as formas ideais, perfeitas e imutáveis, pois sua imitação restringe-se a produzir aparências da realidade e, por conseguinte, ilude os homens da cidade. Mas a cidade regida pelas leis do bem, do belo e do verdadeiro procura reproduzir a autêntica realidade, prescindindo de qualquer “poesia séria” que não tenha como razão a imitação da melhor e mais bela vida. Em As leis, um Estado constituído pelos valores essenciais já produziria, por si próprio, “a melhor das tragédias”, pois voltado estaria para a mais alta realidade, a qual ele imita e reproduz (Platão, 1999, 817b). A noção de tragédia é então fundamental para que o filósofo estabeleça sua distinção entre a imitação da verdade, própria do comprometimento filosófico, e a imitação das aparências, própria do fazer poético. E essa mesma distinção parece acusar também certa aproximação: o discurso filosófico está para a verdade do mesmo modo que a poesia está para o sensível, ambos partilham, em sentidos diversos, do mesmo caráter mimético. Um outro aspecto que pode indicar a proximidade do discurso trágico com o discurso filosófico de Platão diz respeito à busca do conhecimento ou do autoconhecimento. Embora o drama filosófico exposto em Platão não possa ser confundido com a poesia trágica, listada entre as artes do engano, é defensável que a filosofia de Platão tenha incorporado algo do ambiente da tragédia em seu discurso, pois se não culmina no desespero, também não oferece respostas seguras e conclusivas, preservando suspenso o desafio da questão. Pode-se pensar, aqui, sobretudo, nos diálogos aporéticos, geralmente 50



caracterizados pelo inacabamento da investigação. Parece próprio ao caráter socrático propagar sempre o elogio da investigação e da reflexão. Tal postura investigativa é, ao mesmo tempo, autoinvestigativa para Sócrates, pois, se considerarmos que a cada exame de uma sentença postulante à sabedoria, e a sequente descoberta de que o saber que ela veicula não se sustenta, tem-se, no mínimo, a constatação mais vantajosa da consciência da própria ignorância (autoconhecimento); e mais vantajosa porque revela um passo adiante em relação à acomodação na ignorância. Pode-se argumentar, em vista disso, que as aporias em Platão consistem numa verdadeira exortação à filosofia, e, no entanto, se nenhum fracasso nessa filosofia é absoluto, teríamos de admitir, de igual modo, que nenhuma descoberta é, de certo, uma aquisição. Nesse sentido, Nussbaum (2009, p. 112) observa que o diálogo socráticoplatônico: [...] estabelece, no fato de seu final aberto, uma relação [...] dialética com o leitor, que é convidado a participar crítica e ativamente do intercâmbio, assim como o espectador de tragédia é convidado a refletir (com frequência ao lado do coro) sobre o significado dos acontecimentos para o seu próprio sistema de valores. [...] Podemos, pois, afirmar com justiça que os diálogos [...] despertam e avivam a alma, incitando-a à atividade racional, em lugar de a embalarem em entorpecida passividade. Devem isso ao seu parentesco com o teatro.

O efeito ou o estímulo à reflexão geralmente atribuído à forma dialógica platônica, que confere à sua filosofia mais de uma voz e, no confronto de perspectivas, esboça problemas éticos, por exemplo, é tributário, em alguma medida, da poesia trágica, uma vez que tanto nessa poesia quanto no texto platônico encontra-se preservada certa interlocução da obra com seu público/leitor, bem como é garantido um espaço de ajuizamento acerca do conflito dramatizado. A tragédia clássica, considerada em suas diversas feições, e não tomada como um fenômeno unitário, pode ser pensada como ocasião de grande reflexão cultural e pública sobre a ética e a política para aquela sociedade. A tragédia no mundo antigo revela um desajuste, um incômodo enraizado na alma individual, colocando em xeque a autonomia moral do indivíduo. Cornelli (2013, p. 125) observa que é do complexo mundo das tradições pitagóricas, de onde

51

provavelmente vêm a resistência de Platão à tragédia, que surge certa concepção “trágica” da alma individual. A ideia de um conflito entre a alma individual e a pólis é problema assumido pela filosofia de Platão na medida em que o filósofo busca pensar um caminho de formação capaz de reafirmar a correspondência necessária entre alma individual e cidade (universo das relações públicas). Nesse sentido, pode-se afirmar que a filosofia platônica reflete essa questão e oferece a ela um duplo encaminhamento: uma proposta teorética, que responde ao problema encaminhando-o para o centro das discussões filosóficas, e uma certa continuidade formal, relativa ao tecido dramático de sua escrita filosófica, inspirada no teatro (trágico e cômico). A estreita relação de Platão com a tragédia e, por conseguinte, com os gêneros anteriores à ela e também por ela incorporados já aparece nos instigantes apontamentos de Nietzsche em O nascimento da Tragédia. Assim como outros, Nietzsche demonstrou, ainda que polêmicas, importantes intuições acerca da tragédia, e acerca de um ponto que nos interessa aqui: a absorção pela tragédia e pelo diálogo platônico dos gêneros e formas precedentes, pairando ambos entre a narrativa, a lírica e o drama, ou entre prosa e poesia. Os objetivos de fundo do projeto filosófico de Nietzsche são manifestamente antiplatônicos ou antissocráticos, sobretudo em face das críticas que direciona à racionalidade socrática e aos efeitos antiartísticos dela sobre a tragédia; e embora soe sarcástica a proposição de que “Platão chegou por um desvio até lá onde, como poeta, sempre se sentira em casa” (Nietzsche, 1992, p. 88), essa importante percepção da intimidade que a obra platônica demonstra para com a tragédia enriquece nosso estudo. Tal intimidade não é apenas formal, pois revela-se também quanto aos motivos e aos temas instanciados e incitados na poesia trágica, que são retomados e redefinidos na obra de Platão. Nightingale (1995, p. 172-192), em estudo acerca das aproximações e influências de outros gêneros que a obra platônica manifesta em sua letra e em seu espírito, aponta, na forma multigenérica da comédia, certo substrato importante para a forma dialógica de Platão. A comédia antiga teria fornecido um modelo crítico e irônico de encenação frente à disputa de vozes públicas, o 52



ambiente agonístico ateniense, para o qual o filósofo vislumbrava a inserção de uma nova e privilegiada voz: a do discurso filosófico. Assim como a comédia soube incorporar diversos gêneros discursivos, criando uma polifonia não encontrada com a mesma força noutros gêneros contemporâneos a ela, de modo a dramatizar o debate político próprio da democracia ateniense, Platão empreendeu seus dramas a partir de procedimento semelhante: a mescla de gêneros, dentre os quais, este que estamos tratando aqui, a tragédia, cujo tópos é frequentemente incorporado com o intuito de estabelecer interlocuções num debate político ou ético, provavelmente pela máscara séria que esse gênero teria representado para os gregos. Em vista disso, o tratamento de temas morais mediante o uso de vozes que se orientam a contestar outras vozes, conferindo uma profundidade filosófica ao debate, ao mesmo tempo que procede como um drama trágico, tende a se distanciar dele. É notável que Platão não apenas tenha percebido que uma obra dramática é capaz de contribuir significativamente para a nossa compreensão de um tema como os valores morais, e a formação de caráter subsequente a essa compreensão, como, também, soube usar tal recurso para recolocar esses problemas sob a perspectiva que chamou filosófica. Na concepção de Platão, exposta, sobretudo, nos livros II, III e X da República, e nas Leis, nenhum poema trágico poderia ser tomado como um paradigma de sabedoria ética. Se seus diálogos são uma espécie de teatro, pois devem algo aos modelos trágicos, são teatros constituídos, entretanto, como modelos antitrágicos, pois propõem a destituição da tragédia como paradigma de ensino ético. Nussbaum (2009, p. 119) chama atenção que o teatro antitrágico de Platão é representativo de um estilo filosófico peculiar: [...] um estilo que se opõe ao meramente literário e expressa o compromisso de um filósofo com o intelecto como uma fonte de verdade. Ao escrever a filosofia como drama, Platão clama a todos os leitores que se empenhem ativamente na busca pela verdade. Ao escrevê-la como drama antitrágico, adverte o leitor de que apenas alguns elementos dele são apropriados para essa busca.

Esses “elementos apropriados” ao drama, e empreendidos na busca filosófica pela verdade, ficarão mais claros, espera-se, logo mais

53

na discussão acerca da Apologia de Sócrates. Tanto a poesia trágica quanto os diálogos dramáticos de Platão implicam, cada qual a seu modo, numa escolha ou numa avaliação, diríamos, moral. No entanto, a poesia trágica obtém de nós uma resposta emocional, pois apela aos elementos não intelectuais da alma; sua abertura para a escolha e para a avaliação moral é, portanto, uma ilusão, e seu ensinamento, qualquer que seja ele, é facilmente assimilado, uma vez alimentada e fortalecida nossa sensibilidade pelo contato, por exemplo, com a representação de uma catástrofe, em detrimento da racionalidade, tornando-se difícil à alma conter-se em limites razoáveis. O ensinamento moral veiculado pela tragédia tem sucesso, pois: [...] atua a imitação poética no domínio do amor, da cólera, e de todas as paixões da alma, agradáveis ou penosas, que consideramos inseparáveis de nossas ações: alimenta e irriga o que devia ficar seco; fá-las dominar sobre nós, quando elas é que deviam ser mandadas, para que nos tornemos melhores e mais felizes, em vez de maus e miseráveis. (Platão, 2000, 606d)

A filosofia dramática atua de outro modo, a saber, quando se esforça para que a nossa escolha seja feita pelo elemento mais elevado em nós — o intelecto. E o personagem socrático pode ser tomado como exemplo de um caráter orientado por valores racionais, como se verá. Sendo assim, “o estilo de Platão não é neutro em conteúdo [...]; é estreitamente ligado a uma concepção definida de racionalidade humana” (Nussbaum, 2009, p. 119); sua direção é, portanto, diversa à da tragédia. Seu sentido é a verdade, e esta parece apenas possível de ser alcançada pelo lado racional da alma. Argumenta-se, todavia, que a posse da verdade também aparece diversas vezes, em Platão, como aplicável apenas a um deus; somente a divindade pode ser definitiva e seguramente sábia — “Deus algum filosofa ou deseja tornar-se sábio, pois já é”, indica, por exemplo, Diotima a Sócrates em O banquete (Platão, 2012, 204a). E aos homens é facultado tornar-se “filósofos”. Casertano observa que o amor à sapiência e à verdade consiste precisamente em jamais desistir; se a verdade é relativa, o será pela dificuldade de alcançá-la e porque, se alcançada, poderá ser vislumbrada apenas em parte, por não ser totalmente visível (Casertano, 2010, p. 241). Não se trata, 54



portanto, de uma verdade que seja válida para uns e não para outros, mas de uma verdade que, se não se mostra totalmente, [...] deve constituir sempre a paixão dominante dos homens filósofos. Dizer que a verdade é somente dos deuses e não dos homens não significa renunciar à verdade. Pelo contrário, compromete o homem que a escolhe como horizonte da própria vida a persegui-la sempre, a conquistá-la. (Casertano, 2010, p. 14)

Aqui, encontra-se um aspecto do trágico: desejar algo impossível e não conseguir deixar de desejar. Com essa observação, passamos ao seguinte: o sentido trágico (ou o trágico como tópos) parece gravitar sempre em torno da afirmativa do poder e do saber divinos. É típico à tradição épica, e na tragédia, que nela tem inspiração, o fato de o humano sempre estar “às voltas com o divino”, sendo capaz apenas de “compreender sua condição efêmera à luz desse mesmo divino e de sua superioridade” (Bolzani, 2008, p. 154). No desenvolvimento da tragédia, via de regra, tem-se como base temática uma afronta humana à determinação divina, um erro (hamartía) que frequentemente leva à condenação do agente e à sua irremediável punição. A expectativa é de que, “ao fim e ao cabo”, “o divino reafirme seu poder e saber” (Bolzani, 2008, p. 154). Deparando-se com o famoso episódio da consulta ao Oráculo de Delfos, na Apologia de Sócrates, tem-se que, após a tomada de consciência da revelação a Querofonte, qual seja, a afirmação do deus de que ninguém era mais sábio do que Sócrates, o filósofo conta ter ficado por muito tempo em aporia, e, com muito custo, decidiu-se por refutar a sentença oracular pelo fato de não se reconhecer sábio (Platão, 2008, 21a-c). O desafio ao oráculo constitui ação típica ao protagonista trágico por ser, a princípio, desmedida e arrogante. De acordo com Bolzani (2008, p. 154), essa narrativa comporta, inicialmente, uma espécie de “anticlímax ímpio” bastante comum à já tradicional produção discursiva da época de Platão, e que muito provavelmente seria identificável por um conhecedor das tragédias, formado na poesia homérica e no contato com suas divindades quase sempre implacáveis. Se o trágico lida com uma visão de mundo caracteristicamente homérica, na qual a prevalência do divino é esperada e percebida pelo homem em toda parte, mesmo incompreensivelmente, seu

55

resultado não é outro senão a sua reafirmação mediante o culto piedoso — e, aqui, pode-se apontar o mecanismo básico da tragédia e o seu efeito religioso. Uma das acusações que pesa sobre Sócrates é a impiedade. O filósofo é julgado precisamente por sua descrença nos deuses da cidade, enquanto crê “em coisas numinosas diferentes, novas” (Platão, 2008, 24b). Mas Sócrates só resolve discordar da revelação oracular depois de muito custo, profundamente convencido está, por “saber consigo mesmo”, de que nada sabe. Sua “arrogância” caracteriza, na verdade, aquilo que a posteridade identificará como “socratismo”: o valor do autoconhecimento. Nesse sentido, Sócrates age conforme o caráter que lhe é próprio: ele se posiciona perante a sentença oracular do mesmo modo como efetivamente guarda posição, nos vários diálogos chamados “socráticos”, frente a qualquer um que lhe afirme algo ou se julgue sábio acerca de determinado assunto. O divino, portanto, não escapa ao modo socrático de ser; a palavra divina, tanto quanto a opinião proferida por qualquer mortal, é objeto de questão e investigação do filósofo. A atitude socrática, aquilo que caracteriza sua práxis, resulta do seu pensamento (diánoia) e caráter (êthos). Sócrates “pensou consigo mesmo”, refletiu acerca da sentença oracular, discordando dela, mas ressaltou que ela não poderia ser falsa, contudo, pois não é facultado ao deus mentir. O texto platônico expõe a reflexão de Sócrates e, em seguida, mostra sua ação. O que fará Sócrates só se sabe depois de o leitor ter conhecimento das razões que moverão a ação. Se, na Poética, Aristóteles define a tragédia como a imitação de uma ação que se executa mediante personagens “que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento”, e que as ações, portanto, são consequências reveladoras do pensamento e do caráter (Aristóteles, 1973, 1449b351450a7), na Apologia, o protagonista, embora aja determinado pelo caráter e motivações pensadas, tem caráter e pensamento revelados antes da ação. Ou seja, não ficamos conhecendo as intenções de Sócrates pela execução de sua ação, como ocorreria com o personagem trágico de Aristóteles, mas, neste ponto, parece fundamental para Platão ressaltar previamente o caráter investigativo e examinador de Sócrates ao descrever a reflexão crítica que precede 56



sua ação. A partir disso, Bolzani (2008, p. 157) chama atenção para a personalidade singular do personagem de Sócrates na Apologia: ele é revelado ao leitor tanto pelo seu modo de pensar quanto pela ação que disso decorre; e esse “jeito” socrático prefigurado no episódio corresponde àquilo que Aristóteles considera cumprir a função de êthos do personagem na tragédia. Nesse sentido, o caráter socrático, por assim dizer, acena para o valor da reflexão e da investigação, implicando até mesmo na recusa ao cego assentimento à autoridade divina. A decisão de Sócrates em contradizer o oráculo revela seu caráter, expresso pelas indagações de seu pensamento. O desenrolar da narrativa o levará à descoberta da ignorância dos homens acerca do que realmente importa. Submetendo à dúvida sábios notórios e, indiretamente, deus mesmo, a interrogação socrática é o que garantirá a verdade da fala do deus e sua compreensão pelo filósofo, que manteve sua verdade interna — o conhecimento de nada saber. Indo mais adiante, Sócrates compreende que sua suspeita primeira não apenas contradizia a revelação do deus, como expunha e confirmava a verdade dessa revelação. Sócrates constitui, assim, pela pena platônica, o paradigma de homem e de filósofo que, amparado por uma sentença divina, tem sua postura interrogativa ressignificada: não se trata mais de uma afronta impiedosa, e sim de uma aceitação dos proferimentos divinos, ou, em última instância, um serviço ao deus. E essa notável solução pode ser pensada sob o ponto de vista do tópos trágico. Na tragédia, a axiomática primazia da palavra e da vontade dos deuses é sempre confirmada pelos homens, imperando o desfecho punitivo. No caso da Apologia, é reservada certa distância entre humano e divino, como também se conserva a circunstância na qual a busca humana por contornar a divindade malogra e retroage pelo reconhecimento da força desta. Agora, a submissão do filósofo, antes acusado por rejeitar os deuses da cidade, ao deus, permite a sua defesa. E tal gesto não exige dele qualquer sacrifício, e, sim, deve tornar-se precisamente o que se é. A noção de que o pensamento propriamente filosófico deve estar fundado no exame e na investigação incessantes, pois a vida sem exame perderia o sentido (Platão, 2008, 38a), e que é o que ocasiona a revelação para Sócrates (compreensão humana) acerca da

57

revelação oracular (desígnio divino), encontra raízes no discurso trágico. Temos um caso exemplar que pode confirmar isso em Édipo-Rei, de Sófocles, em que a obstinada procura do herói pela verdade direciona toda a trama. A investigação edipiana enreda o inevitável final trágico, não sem tentativas de evasão. Já no drama filosófico, a desmedida do herói é a responsável, afinal, pelo entendimento com o deus, mediante a demonstração ou comprovação da verdade. O episódio do Oráculo apresenta, dessa forma, uma alteração no significado da narrativa comum. E o reconhecimento, por parte de Sócrates, da verdade da sentença oracular também ocorre de maneira bela, por assim dizer, se pensarmos nos moldes que ficaram mais tarde definitivamente configurados pela Poética aristotélica, isto é, o efeito, digno de elogio, quando da ocorrência do reconhecimento junto com a peripécia (Aristóteles, 2009, 1452a23-34).10 O episódio de Delfos trataria tanto da “transformação de Sócrates, de um refutador convicto, mas ainda tateante, num filósofo autêntico e pleno” como, também, termina reconfigurando a “ideia mesma do divino” (Bolzani, 2008, p. 160). Tais reformulações, mesmo que tributárias ao discurso trágico, servem bem ao projeto filosófico antitrágico de Platão na medida em que a natureza divina é essencialmente dotada de benevolência, o suficiente para ver, no desafio socrático, a ocasião oportuna de possibilitar aos homens conhecerem-se a si próprios (dando-se conta de sua ignorância), e, fazendo de Sócrates uma referência a ser imitada, e não um soberbo merecedor de repreensão. A um só tempo, Platão fornece um protótipo filosófico para a posteridade e uma concepção do divino inteiramente distinta em relação àquela da tradição homérica e, por conseguinte, trágica. A prosa platônica, como pretendeu-se apresentar aqui, constitui um esforço de delimitar o terreno filosófico das demais instituições de seu tempo. Para tanto, Platão polemiza com as variadas formas discursivas, como ocorre com relação à poesia, e empreende uma crítica direta aos efeitos sugeridos pelos discursos na 10

Além desta, outras comparações nesse sentido são sugeridas por Bolzani no artigo referenciado aqui. 58



mentalidade grega. É provável que o caráter dramático com o qual o filósofo reveste sua filosofia tenha como intento o alcance do leitor formado nessas circunstâncias conhecidas (na poesia, na sofística, na retórica), propondo-lhe discussões críticas acerca da tradição, mas mediante a ela. A Apologia é exemplar quanto aos usos que o filósofo faz de ingredientes da tragédia com vistas a conferir ao seu discurso, contudo, uma compreensão diversa das significações vigentes. Uma abordagem da obra platônica nesses termos não parece de todo descabida se pensarmos que o trágico é frequentemente incorporado como um tópos por outros discursos e formas literárias que não somente a poesia trágica. Nightingale, mencionado brevemente aqui, procurou demonstrar, inclusive, a forma multigenérica do diálogo platônico, que, assim como a comédia, opera, por exemplo, se apropriando da máscara trágica em determinados contextos dramáticos. Outro ponto que nos permite problematizar a ideia de um tópos trágico e sua apropriação por outras formas relaciona-se ao fato de os limites entre os gêneros discursivos não serem definitivos por si mesmos, sobretudo para aquele que cria — o poeta, em sentido amplo. Nesse sentido, é notável aquela constatação de Aristóteles de que toda arte que se vale do simples verbo, sob metros ou não, ou que, metrificada, mistura metros diversos ou serve-se de uma só espécie métrica, consiste numa arte que permaneceu inominada (Aristóteles, 2009, 1447b7-13). Todavia não haja denominador comum que permita ao Estagirita classificar os mimos de Sófron e de Xenarco e os diálogos socráticos, estão eles, em última análise, entre os exemplos de arte mimética. Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril, 1973. BOLZANI Filho, Roberto. Platão trágico e antitrágico. Letras clássicas [online], São Paulo, n. 12, p. 151-168, 2008. CASERTANO, Giovanni. Paradigmas da verdade em Platão. Tradução de Maria da Graça Gomes de Pina. São Paulo: Loyola, 2010.

59

CORNELLI, Gabriele. “Platão aprendiz de teatro: a construção dramática da filosofia política de Platão”. In: CORNELLI, G; COSTA Gilmário Guerreiro da. (orgs.) Estudos clássicos I: origem do pensamento ocidental. Brasília: UNESCO, Cátedra UNESCO Archai; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. p. 123-136. GOLDSCHMIDT, Victor. A religião de Platão. 2. ed. Tradução de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. LESKY, Albin. A tragédia grega. 2. ed. Tradução de J Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 1990. MOST, Glenn W. “Da tragédia ao trágico”. Tradução de Constança Ritter. In: ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr (org.). Filosofia e literatura: o trágico. Rio de Janieor: Jorge Zahar, 2001. p. 2035. NIGHTINGALE, Andrea Wilson. Genres in dialogue: Plato and the construct of philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. NUSSBAUM, Martha C. A fragilidade da bondade: fortuna e ética na tragédia e na filosofia grega. Tradução de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. PLATÃO. Apologia de Sócrates, Eutífron, Críton. Tradução de André Malta. Porto Alegre: L&PM, 2008. ________. As leis, ou da legislação e epinomis. Tradução de Edson Bini. 1. ed. Bauru: EDIPRO, 1999. ________. A república. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000. ________. O banquete. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2012. XENÓFANES. “Xenófanes de Colofão” (Fragmentos). Tradução de Anna L. A. de A. Prado. In: Os pré-socráticos. 1 ed. São Paulo: Abril, 1973. p. 65-78. (Col. Os pensadores) 60



Mono no Aware e sua relevância filosófica: a melancolia na poética japonesa

Diogo César Porto da Silva11

1. Uma introdução

Tratando-se de uma tradição poética que pertence a uma tradição tão distante da qual fazemos parte e com a qual lidamos filosoficamente, torna-se pertinente começarmos nosso trabalho reunindo citações de autores que pensaram o mono no aware. Movendo-se entre a temática da estética japonesa e o mundo acadêmico, ao qual pertencem, e profundamente marcado pela história da intelectualidade ocidental, suas reflexões acerca do mono no aware nos proporcionarão uma primeira abertura para nossa exploração desse pensamento poético presente na tradição japonesa. Elencamos, primeiramente, o pesquisador da literatura clássica japonesa Yoshiyuki Yamazaki que, em seu livro de 1986, intitulado Uma Pesquisa sobre “Aware” e “Mono no Aware” (Aware to Mono no Aware no Kenkyū), nos fala acerca da aparição dos termos no romance da era Heian (794-1185), Contos de Genji (Genji Monogatari). Nesse momento, Yamazaki, após revisar as tentativas de definição do termo “aware” tanto nos dicionários de japonês clássico como nos desenvolvimentos posteriores da língua japonesa, ensaia uma primeira definição sucinta do termo: Podemos resumir a opinião geral acerca do significado de ‘aware’, até agora descrito nos dicionários, sobretudo seu significado na língua antiga, das seguintes formas: 1) ‘Aware’ é uma interjeição nascida da conjunção de ‘aa’ e ‘hare’.

11

Doutorando do departamento de Filosofia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Pesquisa realizada com o auxílio financeiro da Capes e sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Giorgia Cecchinato. Contato: [email protected]



61

2) Primeiramente, era a vocalização para expressar os sentimentos de prazer ou admiração em relação a um fenômeno. Além, tornou-se a exclamação de amor (aijō), saudade (aiseki) ou tristeza (kanashimi). 3) Da interjeição descrita anteriormente nasceu o substantivo. Este expressa: 1) uma emoção profunda (fukai kandō), 2) amor (aijō), 3) uma beleza profunda (shimijimito shita jōshu), 4) simpatia (dōjō), 5) melancolia (hiai), 6) tristeza (sabishisa). (Yamazaki, 1986, p. 11)12

Nossa segunda citação vem do famoso esteta japonês Ōnishi Yoshinori (1888-1959) que, em sua obra Yūgen e Aware (Yūgen to Aware, 1939) — posteriormente adicionada à sua monumental Estética (Bigaku, 1959) em 2 volumes —, aborda o mono no aware valendo-se da metodologia da filosofia estética ocidental em uma tentativa de esclarecer o sentido estético do mono no aware. A percepção ou emoção através da qual nós percebemos o ‘mono no aware’ é uma vivência aprofundada por uma melancolia (aikan) especial parecida a uma ‘dor de mundo’ (Weltschmerz). Isso porque, no interior do ‘mono no aware’ há algo assim como uma vaga, obscura profundidade que repousa igual, comum e fundamentalmente, sendo desperta ocasionalmente em nossos corações pelos fenômenos do mundo. Podemos pensar que, não importa qual seja o conteúdo concreto do ‘mono no aware’ — algo feliz, engraçado, auspicioso ou extraordinário — no interior de cada uma dessas emoções vitais positivas ou, ainda, como seu pano de fundo, já há este tipo de experiência melancólica e profunda. (Ōnishi, 1939, p. 151-152)

Finalmente, chegamos a Watsuji Tetsurō (1889-1960), filósofo japonês conhecido, principalmente, por seus trabalhos em que procurava uma ética alternativa ao individualismo presente na filosofia de sua época apoiando-se no pensamento neoconfucionista. Contudo, deixou também vasta obra na qual trata de aspectos da história e da arte japonesa e do extremo oriente, sendo que em um de seus livros, Pesquisa da História Espiritual Japonesa (Nihon Seishinshi Kenkyū, 1926), encontramos um ensaio intitulado “Acerca do Mono no Aware” (Mono no Aware ni tsuite), onde ele se debruça sobre a significação filosófica do mono, presente no termo, cuja tradução poderíamos dizer ser “coisa”:

12

Todas as traduções das citações dos originais em japonês e inglês são minhas, exceto quando mencionado. 62



‘Mono no aware’ é um sentimento infinito que tem a tendência de, sem se deter, purificar-se e polir-se. Assim, é uma das ações da própria origem que, estando em nós, tenta nos fazer voltar à ela. A literatura, concretamente, expressa isso de forma elevada. Através disso, nas e pelas coisas (mono) passageiras, nós tocamos na luz da coisa (mono) eterna que não passa. (Watsuji, 2012, p. 230; grifo no original)

Partindo das três citações escolhidas para nos introduzirmos na atmosfera da poética do mono no aware, podemos, em uma primeira tentativa, sintetizá-lo da seguinte forma: mono no aware é uma interjeição que advém da profunda melancolia que sentimos diante da natureza passageira das coisas do mundo. Contudo, precisamos nos aprofundar mais nos escritos sobre esse fenômeno cujo papel tornou-se central na poesia e na poética japonesa. Sobretudo, a conexão criada entre esse sentimento — por ora, deixemos assim aquilo que mono no aware é — e o nascimento da poesia. 2. Waka e a teoria do mono no aware de Motoori Norinaga

Todos aqueles a quem citamos acima têm um ponto em comum: em suas pesquisas sobre o mono no aware, todos eles se dedicaram à leitura do pensador, filólogo e poeta do Japão da era Edo (1603-1868), Motoori Norinaga (1730-1801). Em suas pesquisas sobre a poesia e a narrativa, Norinaga utilizou como centro de sua poética o conceito de mono no aware, sendo ele também o primeiro a pensá-lo com maior profundidade. Aqui, nos dedicaremos especialmente a uma de suas obras na qual lida com o tema: Impressões pessoais acerca da poesia (Isonokami no Sasamegoto) de 1763.13 O motivo de nossa escolha é simples: vamos nos focar na poesia japonesa e sua relação com a poética do mono no aware. 13

A obra de Norinaga é extensa, contando com 20 volumes e mais 3 volumes suplementares. Sua obra mais conhecida e comentada é o Kojiki-den (Comentários sobre Kojiki, completo em 1798, mas publicado entre 1790 até 1822), na qual trata do livro Kojiki (Relatos dos Assuntos Ancestrais, 711-712), que conta a história japonesa desde seu nascimento mítico até as primeiras gerações de imperadores. Além de Impressões, Norinaga também trata do mono no aware em outras obras como Ashiwase Obune (Um Pequeno Bote dentre Caniços, 1757), Shibun Yōryō (Os Princípios Básicos de Contos de Genji, 1763) e Genji Monogatari no Tama no



63

Assim, comecemos por uma breve explicação da principal forma poética discutida por Norinaga em Impressões: o waka. Por waka entende-se “poesia japonesa” — que, por sua vez, é uma tradução literal do termo em japonês —, uma palavra cunhada já na antiguidade para distingui-la da poesia chinesa, chamada kanshi. Tal distinção fora fomentada pelas características próprias presentes no waka, diferenciando-a do kanshi, que também era composto em igual número pela nobreza japonesa. Dentre essas diferenças, o marcante é a forma de escrita utilizada; não a da língua chinesa, mas os caracteres silábicos japoneses, fator que contribuiu em tornar o waka uma forma poética concisa. O waka é um poema curto (do qual advém sua outra denominação; tanka) composto por 31 sílabas divididas em 5 ku (linhas ou versos), cuja configuração assume a seguinte contagem silábica: 5-7-5-7-7. Essa antiga forma de poesia daria luz durante o período medieval japonês ao, hoje famoso, haikai, cuja estrutura poética é ainda mais concisa, contando com o total de 17 sílabas divididas no padrão de 5-7-5 sílabas por ku. Não é preciso enfatizar o quão essa forma poética tão curta se difere da tradição poética ocidental e, até mesmo, de outras no Oriente. O que conhecemos como forma em contraposição ao conteúdo é de todo difícil de se sustentar aqui em uma poesia sem rima e versificação como nós as conhecemos.14 “Waka” permite ainda ser traduzido por “canto japonês”, uma vez que o segundo ideograma a formar a palavra, “ka”, significa exatamente “canto”, tendo sua leitura modificada para “uta” em sua forma substantiva e para “utau” em sua forma verbal. A indissociabilidade entre canto e poesia presente na palavra waka é já associada ao mono no aware por Norinaga. Quando não se consegue conter mais mono no aware, estes pensamentos e sentimentos emergem por si mesmos como palavras. Estas palavras que brotam espontaneamente quando mono no aware não pode ser mais Ogushi (O Pente Adornado do Contos de Genji, 1799). Nestes dois últimos, o objeto principal de estudo de Norinaga é a narrativa, em especial Contos de Genji. 14 Mark Morris (1986) argumenta que o waka seria uma das formas poéticas mais prosaicas, sugerindo, inclusive, que ele seria constituído de apenas uma linha, sem as usuais quebras entre ku que encontramos nas versões latinizadas dos poemas ou nas traduções para línguas ocidentais. 64



contido, inevitavelmente prolongam-se adquirindo padrões retóricos (aya aru mono nari). Elas já são aí poesia/canto (uta). É também quando alguém ‘suspira’ (nageku) e ‘canta’ (nagamuru). [...] Ao se fazer versos (kotoba ni aya wo nashi) sustentando-se a voz longamente, aqueles lamentos e pensamentos melancólicos (aware aware to omoi) oprimindo o coração se aliviam. Mesmo que alguém não queira dizê-las, as palavras brotam espontaneamente. No momento em que somos tomados pelo aware, estes pensamentos (omomuki) dizem-se por si mesmos, mesmo se tentemos contê-los. (Isonokami no Sasamegoto: IS 305)

Há alguns pontos importantes para nos focarmos nessa passagem, enumeremo-nos antes de continuarmos: 1) a conexão entre suspiro e canto e sua origem comum no mono no aware; 2) a espontaneidade com que os sentimentos trazidos pelo mono no aware se expressam; 3) os versos ou padrões retóricos e a poesia. Pensamos que a partir da articulação desses três momentos, podemos compreender melhor a poética do mono no aware. 3. Fazer poesia é cantar

Continuando na mesma linha que havíamos traçado logo acima, detenhamo-nos no canto. A compreensão de “uta” como prolongamento da voz vem, como Marra coloca, de uma “coragem filológica” da parte de Norinaga. Pois, uma das formas de se dizer “compor poesia” em japonês é “uta wo eizuru”, sendo que o caractere chinês “ei” — raiz do verbo compor, “eizuru” — também pode ser lido como “nagamuru”. “Nagamuru”, como mais uma vez Marra (2007, p. 139) explicita, também significa “fazer algo durar mais” ou “uma longa reverberação da voz”. Assim, Norinaga chega à conclusão de que “utau” e “nagamuru” dizem o mesmo: cantar. Por “nagamuru” também significar “suspirar lamentando-se sobre algo”, encontraríamos aí uma conexão com “nageku” (suspirar), cuja derivação, segundo Norinaga e outros nativistas, viria de “nagaiki”, tanto “um longo suspiro” quanto “vida longa”. Este, por sua vez, encontraria sua forma abreviada em “nageki”, um lamento (forma substantiva do verbo “nageku”; suspirar).15 15

Essa linha de argumentação é destrinchada por Marra (2007, p. 10) na introdução do seu livro dedicado à poética de Norinaga, o qual seguimos em nossa própria interpretação.



65

A ligação com “aware” é direta. Originalmente, “aware” é uma expressão de suspiro, uma interjeição — como já apontava Yamazaki — nascida da conjunção de “aa” e “hare”. Contudo, exclamamos essa interjeição quando somos profundamente comovidos (fukaku kanzuru). Quando movidos profundamente por aquilo que experienciamos, vemos ou ouvimos, não podemos evitar vocalizar essa profunda emoção na forma de uma interjeição a se prolongar e, logo, distinguindo-se da língua cotidiana, pois, por meio desta última, tal intensa emoção não pode ser apaziguada. A voz se prolonga e dá lugar a um canto. 4. Conhecer mono no aware

Chegamos, então, no segundo momento: os sentimentos e mono no aware. Comecemos pela própria expressão “mono no aware”, que é de difícil tradução. Mark Meli (2001, p. 2-3) empreendeu, em suas investigações acerca do mono no aware, uma listagem de traduções para a língua inglesa da expressão em diversas fontes. Nessa lista — cujas traduções do japonês para o inglês (re)traduzimos ao português — encontramos as traduções: “a tristeza da existência humana”, “uma sensibilidade para as coisas”, “sensibilidade emotiva às coisas”, “a afetividade das coisas” e a “significatividade do mono”. A estas podemos ainda incluir “a ahsidade das coisas” e as propostas por Marra (1995, p. 379); “o poder de comoção das coisas” que, posteriormente, em seu livro sobre Norinaga, ele viria a traduzir como “o páthos das coisas”. Dentre tantas cuidadosamente consideradas possibilidades de tradução, ficamos indecisos e perdidos. Por ora, podemos considerar dois fatores que nos ajudarão a atravessar o termo mono no aware. Como Watsuji apontou na citação com a qual iniciamos nossa investigação, o “mono” presente na expressão é compreendido por Norinaga como “coisa”, mas em um sentido amplo como coisas que ouvimos, vemos e experienciamos. Contudo, encontramos as maiores divergências na tradução de “aware”, não somente por ela ter se originado de uma interjeição, mas principalmente por ela intencionar dizer uma profunda emoção ou, mais precisamente, a comoção ela própria ou, ainda, o ato de ser (co)movido profundamente. Desse modo, 66



podemos resumir, novamente, mono no aware como: a profunda comoção desperta pelo encontro com algo comovente. A circularidade aqui é proposital. Não se trata de um “algo” presente na coisa e que põe nossa capacidade de sentir em movimento, muito menos um trabalho do sujeito sobre o objeto diante dele. Como Harootunian (1988, p. 96) coloca: “O básico a esta teoria do conhecimento estava no pressuposto de uma identidade de sujeito e objeto, conhecedor e conhecido. A equivalência de ‘intensão’ e ‘coisa’ vem do sentimento desprendido na resposta a um objeto”. Entretanto, para ter tal resposta ao mundo, Norinaga adiciona ainda mais um fator: é preciso “conhecer mono no aware”. Esses são exemplos do ser movido por conhecer ‘mono no aware’. Ao se encontrar com um evento pelo qual deve-se alegrar-se, alguém sente-se alegre, tal pessoa se alegra por entender a essência (kokoro) do evento pelo qual deve-se alegrar-se. Do mesmo modo, ao se encontrar com um evento pelo qual deve-se entristecer-se, alguém sente-se triste, tal pessoa se entristece por entender a essência (kokoro) do evento pelo qual se deve entristecer. Assim, o que chamamos de ‘conhecer mono no aware’ é compreender a natureza do evento (koto no kokoro) alegre ou triste ao ser tocado por ele. Quando não se sabe a natureza do evento, nada pensamos ou sentimos (kokoro ni omou koto nashi) porque não nos entristecemos ou nos alegramos. Sem pensamentos e sentimentos, cantos (uta) não vem à tona. (IS 282)

Norinaga segue uma longa tradição poética que se inicia com o prefácio do Kokin Wakashū (Antologia de Poemas Antigos e Contemporâneos, c.905) escrito pelo aclamado poeta Ki no Tsurayuki (872-945), em que kokoro16 se torna o ponto central da emergência

16

Comumente traduzido como “coração” ou “coração/mente”, kokoro é outra palavra central para pensarmos não somente a poética japonesa, mas também o pensamento japonês como um todo. Kokoro pode ser compreendido como o centro de nossos pensamentos e sentimentos, indistintamente. O comentador da compilação de textos de Norinaga, Tatsuo Hino, ao traduzir o termo do japonês medieval para o japonês contemporâneo, equivale kokoro a honshitsu, sendo que a tradução consagrada deste último é “essência” ou “natureza”. Optamos por manter a sugestão do comentador em nossa tradução, com a ressalva de que, aqui, “essência” e “natureza” não se contrapõem a acidente, como é compreendido em nossa epistemologia ocidental, muito menos ao núcleo imutável e permanente dos objetos.



67

da poesia.17 Não somente da poesia, mas do canto (uta). Isso se torna relevante quando Norinaga nos diz, em preparação para explicitar o que entende por “conhecer mono no aware”, que todos os seres vivos cantam porque possuem um coração que sente e pensa (omou kokoro) (IS 281). O próprio sentir é o sentimento, e o sentimento é o próprio coração que sente diante das coisas do mundo que nos comovem. Contudo, há uma distinção entre os seres humanos e os outros seres vivos que é uma de nível. Assim, não se trata aqui de afirmar uma capacidade ou sensibilidade superior supostamente possuída pelos seres humanos — antes, fala-se de um só coração —, ao contrário, há o que nós entendemos como uma construção passivoafetiva do mundo: somos tocados por eventos e coisas distintas no mundo espontaneamente no momento em que somos movidos por elas, de forma que não se trata de um trabalho ativo sobre o mundo, mas, sim, de uma receptividade afetiva ao mundo; mundo este constituído por aquilo a requerer de nós uma resposta também afetiva. Os outros seres vivos constroem seu mundo de forma mais “simples”, pois discernem afetivamente menor número de eventos e coisas que os seres humanos, porém, igualmente a nós, ao se encontrarem com algo comovente, põem-se a cantar. Exemplos tornarão mais clara nossa interpretação. Um cachorro se alegra quando seu dono retorna para casa, latindo em resposta; de maneira similar, alegramo-nos ao encontrarmos um amigo querido, exclamando. Ambos, o latido e a exclamação, são cantos. Contudo, diferentemente de nós, esse mesmo cachorro não se entristeceria e, consequentemente, mudaria seu latido, caso seu dono, ao retornar à casa, tivesse um semblante triste ou até mesmo lágrimas, enquanto, ao encontrarmos um amigo querido nessa mesma situação nos comoveríamos, ainda exclamando algo, mas um canto completamente diferente. Também, um cachorro não 17

Citemos as palavras inicias do prefácio do Kokin Wakashū: “A poesia japonesa tem um coração (hitotsu kokoro) como semente e miríades de palavras como folhas. Pelos vários feitos com que se deparam, as pessoas vivendo neste mundo expressam aquilo que pensam e sentem em seus corações (omou kokoro) confiando seus sentimentos àquilo que veem e ouvem”. 68



demonstraria sua alegria, não cantaria diante de uma árvore belamente florida como nós o faríamos, nem responderia com seu latido ao canto do cuco como o faria um outro cuco ou nós mesmos em nossos poemas. Assim, os outros seres vivos têm um discernimento mais raso do mundo comparado aos seres humanos, pois seu mundo afetivo, que eles, como nós, constroem afetivamente — isto é, constroem-no a medida em que respondem afetivamente a ele — é menos diverso, contém menor número de eventos afetivamente relevantes: eles cantam para menos coisas com as quais se encontram. Importante ressaltar que isso não diz nada sobre uma “psicologia animal”, isto é, não afirmamos (nem mesmo Norinaga) que cachorros se sentem alegres ao encontrarem seu dono ou que o canto dos cucos seja uma espécie de comunicação. A interpretação que propomos é, antes, mais direta e simples: para Norinaga, nosso primeiro e mais espontâneo contato com o mundo é afetivo, e responder adequadamente a essa comoção é uma forma profunda de conhecer o mundo, conhecimento esse que se expressa por meio de cantos e poemas. Norinaga, entretanto, não afirma que os animais conhecem mono no aware; este diz-se dos seres humanos sobre os quais, novamente, Norinaga falará que há uma distinção de nível. Isto é, dentre as pessoas, há aqueles pensadores rasos e aqueles pensadores profundos, sendo que o primeiro desconhece mono no aware, enquanto o segundo o conhece. Desse modo, seguindo a nossa argumentação, aqueles que desconhecem mono no aware têm um mundo mais raso e, por consequência, o canto que deles nasce em resposta às coisas do mundo também o é. Sigamos exemplos retirados da poesia clássica japonesa que ilustram bem aqueles pertencentes aos dois grupos. Primeiro, o de um desconhecedor do mono no aware. No Tosa Nikki (Diário de Tosa, 935), diário de viagens escrito por Ki no Tsurayuki, nos deparamos com a seguinte passagem:18 18

Este exemplo é recuperado e discutido por Meli (2001, p. 9; 2002, p. 74), que se indaga por que Norinaga não haveria usado um exemplo tão afinado à sua própria teoria do mono no aware.



69

Enquanto tudo isso ocorria, o barqueiro que estava a beber sake e comer a vontade, ignorante dos sentimentos (mono no aware shira de), dizia que deveriam logo embarcar, pois a maré estava alta e os ventos deveriam de soprar e eles teriam dificuldades para navegar. (Ki No Tsurayuki, 1981, p. 22-23)

O cenário é uma festa de despedida onde nobres, diante da tristeza da separação eminente, como era comum na era Heian, trocam poemas compostos em japonês e chinês desejando bons ventos e falando da saudade que se seguiria após a partida. O barqueiro é incapaz de discernir o evento comovente a se desenrolar diante dele, tal mundo lhe é inexistente ou pelo menos ignorado. Não podemos falar aqui de uma falha cognitiva ou falta de sensibilidade estética, trata-se mais de uma superficialidade do mundo que é construído afetivamente pelo barqueiro. Da mesma forma, dizemos de alguém diante uma cerejeira em flor, que, ignorando a beleza das pétalas de cores suaves caindo ao vento, vê-la somente como lenha. Ou ainda, em um exemplo ainda mais impactante de Norinaga (IS 304), uma pessoa surda não ouviria um trovão amedrontador, e, por não ouvir o trovão, ela também não se sente amedrontada. Em seu mundo, o medo suscitado pelo trovão não existe. Passemos ao exemplo daquele que conhece mono no aware, em que Norinaga, citando um poema presente no Gosen Wakashū (Antologia de Poemas Tardios, 951), comenta-o: Enquanto ele ouvia, de frente a um biombo, alguém falando disso e daquilo, ele ouviu a voz de uma mulher vinda do outro lado que dizia: ‘parece que este velho estranhamente conhece mono no aware’. Ao ouvir isto, ele [Tsurayuki] compôs o seguinte poema: Aware cho koto ni shirushi wa nakeredomo Iwa de wa e koso Aranu mono nare [Mesmo sem qualquer sinal da palavra aware. Não havia como ela não ter vindo de mim.] 70



Então, o comentário de Norinaga: Uma vez que poemas/cantos vem do mono no aware, é de todo interessante que alguém se refira a um grande poeta como alguém que conhece mono no aware. [...] A frase na introdução ao poema que diz ‘parece que ele estranhamente conhece mono no aware’, é um rodeio para dizer ‘ele parece um poeta’, sabendo já que se tratava de Tsurayuki. Na resposta, compreendendo a verdadeira intenção da mulher, o que Tsurayuki quis dizer foi que, mesmo que ser um poeta de nada sirva, quando não se consegue mais conter mono no aware, não se pode passar sem se ser um poeta. (IS 302-303)

Segundo Norinaga, ao reconhecer, na visada de Tsurayuki, alguém que conhece mono no aware, a mulher o identifica como um poeta, alguém capaz de cantar poesias. Logo, não somente o conhecedor de mono no aware discerne de forma mais abrangente as coisas no mundo, mas, também, ao fazê-lo, sendo por elas comovido, não pode se conter em se tornar um poeta, isto é, compor poemas e cantá-los. Por tal razão, Norinaga afirma que a poesia nasce do conhecimento do mono no aware. Entretanto, mais uma vez temos que nos conter na tentação de fazer o raciocínio inverso, tomando o conhecimento do mono no aware como algum tipo de sensibilidade, conhecimento ou expertise própria do poeta. Mono no aware não é uma exclusividade de poetas. Ao contrário, diz-se que quando alguém é tomado pelo mono no aware, ele naturalmente, espontaneamente torna-se um poeta, independente de sua volição. Isso é ainda mais evidente quando Norinaga explicita o processo a dar nascimento à poesia. A emergência da poesia não ocorre pela linguagem cotidiana (tada no kotoba), sendo que o prolongamento da voz e também os padrões retóricos das palavras não são frutos de um artifício planejado. Aquilo que não se consegue mais conter, por si mesmo, vem em palavras com padrões retóricos (kotoba ni aya ari) e que se prolongam. Estas palavras são ditas em linguagem cotidiana quando o sentimento (aware) é raso. Quando o sentimento é profundo, naturalmente as palavras tornam-se versos (aya ari) e são cantadas (nagaku iwaruru). [...] Isto é a técnica natural (jinen no myō) de todos os cantos. Também nisto reside o poder poético de comover (aware) os espíritos malignos. (IS 306-307)

Compor poemas é tão natural para nós quanto o cantar o é para os outros seres vivos. E antes de brotar de um intelectualismo

71

ou técnica — o que Norinaga atribuirá ao artificialismo (takumi) —, a poesia é a resposta às coisas do mundo que nos comovem e nos tocam e que, assim, passamos a conhecer.19 5. A poesia espontânea

A espontaneidade e naturalidade do mono no aware parecem, de todo, um convite a uma teoria expressionista da poesia. Então, é necessário, primeiramente, apontar o motivo que faz com que a teoria do mono no aware não seja um expressionismo — configurando um momento negativo — e, em seguida, a ênfase colocada pelo texto de Norinaga na espontaneidade/naturalidade da poesia — o momento positivo. Comecemos pela negação da expressão. Como discutimos anteriormente, quando alguém é movido profundamente pelo mono no aware, isto é, quando conhece-se mono no aware, tal pessoa não consegue se conter e um poema é cantado naturalmente. Nos falta, porém, a adição de mais um elemento do qual fala Norinaga: esse profundo sentimento não é aplacado caso ele não seja ouvido por outro. Estamos, então, diante um cenário bastante diverso daquele em que se coloca no papel um sentimento ou pensamento que nos toma; trata-se antes de cantar o sentimento de forma que outro alguém, ouvindo-nos, seja também movido pelo aware, seja também comovido. Por tal razão, pensamos que Tomiko Yoda destaca o caráter performativo da poesia/canto. 19

Shimizu Fumio, em seu artigo “Sobre ‘Mono no Aware’” (“Mono no Aware” to iu koto), propõe uma leitura do mono no aware como uma atividade híbrida do espírito humano entre conhecer (ninshikisuru) e sentir (kanzuru) cujo aspecto passivo é destacado. Em suas palavras: “Assim, a atividade espiritual humana de ‘conhecer’ (shiru) não se restringe à atividade epistemológica de discernir (ninshikisuru) claramente o fenômeno, podemos vê-la como sendo acompanhada das atividades emotivas de compreender (ryōkaishi) o sentido do fenômeno que se conheceu e de lembrá-lo (kiokusuru). Em resumo, a junção destas atividades espirituais se apresenta na palavra intelecto-emoção-volição (chijōi)” (Shimizu, 1968, p. 6, ênfase no original). A isso ele chama de “um tipo de epistemologia”. O que concorda com Harootunian (p. 98; p. 101), que aponta, na teoria do mono no aware, a possibilidade de uma nova articulação da teoria do conhecimento que ampliaria o escopo de nosso conhecimento. 72



Que mono no aware é compreendido como um processo de significação ao invés de um significado estático é o que distingue a poética de Norinaga de um simples expressionismo. O discurso poético percebido como o ato performativo mostra a simultaneidade da experiência (conteúdo) e representação (forma) ao invés da subordinação de um ao outro. Monogatari (narrativa) e poesia são indistinguíveis, não porque compartilham um certo conteúdo ou forma, mas porque, essencialmente, ambos são parte deste processo performativo. (Yoda, 1999, p. 527, ênfase no original)

Isso acarreta consequências importantes para a concepção de poesia com a qual estamos lindando, pois poesia já não se trata da letra escrita, nem mesmo somente do canto, antes, temos diante de nós uma configuração peculiar de uma performance a acontecer no ato em que mono no aware nos toma. O estímulo inicial para a performance poética nos ocorre a todo momento em que o encontro com algo no mundo retira de nossos lábios uma exclamação; um “oh!”, um “ah!”, um “nossa!”. Projetamos nossas exclamações mesmo quando nos encontramos a sós, como se, sem pensarmos, procurássemos ouvidos para escutá-las. E quando exclamamos tendo alguém do nosso lado e somos perguntados pelo motivo ou razão de termos nos comovido a tal ponto, por mais que tentemos explicar, temos a impressão de que aquelas palavras não bastam. Isso não passou despercebido por Norinaga: se, por um lado, ao exclamarmos procuramos por ouvidos que nos escutem (uma vez que projetamos nossa voz), por outro, palavras cotidianas não conseguem apresentar a raiz da exclamação. Aí recorremos às palavras poéticas. Não há nada melhor para aplacar o coração do que saber que a pessoa a ouvir sua poesia se comoveu (aware to omou). Caso a pessoa ouvindo sua poesia não se comova, seu coração será apenas um pouco aliviado. Isto se dá naturalmente. [...] Encontramos consolo em nossos corações precisamente porque alguém outro nos ouve e simpatiza conosco. Assim, um ponto fundamental à poesia é o de alguém ouvi-la e sentir aware. (IS 313-314)

Logo, não é a explicação ou expressão dos sentimentos o que aplaca o coração de alguém, mas ter alguém a ouvir e a se comover. O foco muda daquele que canta a poesia para aquele a ouvi-la; ambos são movidos, mas aquilo a mover o receptor não é nenhum sentimento específico a passar do poeta, por meio das palavras, ao

73

seu receptor, mas a própria comoção, o mono no aware, que, por sua vez, não é idêntico a nenhum conteúdo em particular.20 Sem um conteúdo a ser expresso, nascido de uma exclamação e permanecendo nela, o ato poético se funda em uma profunda comoção que pede para ser ouvida e seguida. Daqui podemos partir para o momento positivo caracterizado pela ênfase na espontaneidade/naturalidade. Como defendemos anteriormente, Norinaga parece tomar a posição de que todo aquele que conhece mono no aware se torna um poeta. Figura-nos razoável dizer, então, que o ideal de Norinaga não é somente que todos se tornem poetas, mas sim que, em alguma medida, todos já o sejam. Percebemos de pronto tal posição em sua descrição do que seria poesia/canto. Também as atuais cantigas das camponesas humildes e sem instrução são, de fato, verdadeiros cantos/poesias (uta). Os tipos de cantos/poesias de 31 sílabas eram os cantos das pessoas da antiguidade. As baladas (kouta) e as canções populares (hayari uta) são os cantos/poesias das pessoas de hoje. O que faz delas ambas poesia, mesmo que pareçam tão distintas entre si, é que esta é uma diferença entre épocas. As poesias da antiguidade se destacavam por suas palavras, significados e elegância, enquanto as atuais baladas e canções populares são pobres em palavras e significado, sendo a diferença entre ambas uma de refinamento. Desse modo, pelo refinamento da antiguidade e aquele da atualidade parecerem ser extremamente distintos, não podemos dizer que são a mesma coisa, contudo não podemos dizer que ambas não sejam poesia/canto. (IS, p. 251-252)

A poesia dos cantos populares compartilha com as grandes poesias do passado uma certa “técnica natural” (jinen no myō), correspondente à sua origem no mono no aware. Porém, como

20

Norinaga descreve da seguinte forma o fato do mono no aware não se identificar a qualquer sentimento particular: “Ora, a palavra ‘aware’ significa ‘ser profundamente tocado’. Em tempos recentes, ‘aware’ se refere somente à tristeza, vindo a ser escrito com o ideograma para ‘sofrimento’. Porém, ‘sofrimento’ é apenas um dentre vários sentimentos contidos em ‘aware’, sendo que o significado de ‘aware’ não se restringe apenas à tristeza ou sofrimento. [...] Originalmente, ‘aware’ era uma interjeição, referindo-se ao suspiro de alguém ao ser profundamente comovido (kokoro ni fukaki omou) independente da classe social” (IS 284-285) 74



Harootunian aponta, a esses cantos populares falta a técnica da composição, a elegância. Um inventário de poesias contemporâneas mostrou apenas canções relacionadas a ‘mulheres de classe baixa e crianças’. Apesar de sua qualidade técnica pobre, fossem elas inspiradas por um ‘coração sincero’, elas não falhariam em mover humanos e divindades a profundos sentimentos (aware). (Harootunian, 1988, p. 103)

O que traduzimos como “coração sincero” se refere ao makoto kokoro, que outra tradução possível seria “coração verdadeiro”, isto é, a espontaneidade à qual Norinaga nos fala. Para compreender melhor essa intrincada relação entre espontaneidade e elegância, lançamos mão da distinção entre “aya da voz” e “aya da letra”21 explicitada por Kim Jong-li. “Aya” trata-se do recurso retórico empregado pela poesia para distinguir sua linguagem daquela corriqueira. No “aya da voz”, encontramos aquele longo suspiro que, ao se prolongar, transforma-se em canto; a recitação do poema. Os cantos populares ainda conteriam tal ritmo e entonação musical, uma vez que, como antes explicitamos, espontaneamente exclamamos quando somos movidos pelo mono no aware, prolongando a voz até que ela adquira uma musicalidade. Porém, tais cantos carecem de trato com as palavras, do “aya da letra”. Encontramos aquilo que Norinaga entende por padrões retóricos das palavras em outra categoria poética contemporânea a ele e por ele igualmente denunciada. Falamos aqui daqueles a imitar a poesia dos antigos empregando os recursos poéticos de outrora como mera artificialidade, ignorando por completo o fato de que toda poesia nasce do mono no aware, da espontaneidade da resposta que cantamos diante das coisas do mundo que nos tocam. O exemplo mais extremo, para Norinaga, apesar de comum em seu tempo, é o uso das poesias da antiguidade e de seus recursos poéticos para enfatizar conteúdos morais e religiosos, o que ficou conhecido 21

O termo “aya” é de difícil tradução, pois se trata de um conceito muito discutido na poética japonesa do período Edo. O editor dos textos de Norinaga, Hino, entende a expressão “kotoba ni aya wo nasu” como “embelezar as palavras”, o que em nossa tradução optamos por traduzir como “fazer versos” ou “adquirir padrões retóricos”. Nossa escolha de tradução, esperamos, ficará mais clara no desenvolvimento do artigo.



75

pelo mote “encorajar o bem e punir o mal” (kanzen chōaku).22 Se, por um lado, os cantos atuais carecem do refinamento, por outro, eles são motivados pelo mono no aware a ressoar no “aya da voz” que nesses cantos ainda permanece. Em contrapartida, aqueles poemas repletos do refinamento, usam-no como mera artificialidade copiando os antigos para seus próprios fins e, assim, esquecendo da fonte comum aos poemas e aos sentimentos: o mono no aware. Podemos nos perguntar: como os padrões retóricos ocorrem no canto vindo do mono no aware? Esses, ao serem empregados no nível da letra, possuem a mesma função da modulação vocal: aprofundar a experiência do mono no aware. Vejamos o seguinte poema e o comentário de Norinaga. Yoso ni nomi Mite ya yaminamu Kazuraki ya Takama no yama no Mine no shirakumo [Olhar à distância: Será isso tudo? Brancas nuvens sobre Kazuraki E o pico da Montanha Takama.] Neste exemplo, o sentimento é expresso apenas nos dois primeiros versos, todos os outros três restantes são padrões retóricos (kotoba no aya). Há aqueles que devem pensar que eles são inúteis. Contudo, é através dos padrões retóricos inúteis que o aware presente nos dois primeiros versos é ainda mais aprofundado. (IS 314-315) 22

Norinaga pertencia à escola de Estudos Nativistas (Kokugaku), cujo objetivo era recuperar o “espírito Yamato” (o pensamento japonês clássico), sendo que, para tal, os estudiosos da escola dedicavam-se tanto aos textos da antiguidade japonesa quanto ao combate de pensamentos estrangeiras como o confucionismo e o budismo, que dominavam o cenário intelectual e político do Japão de Edo. A contribuição de Norinaga nessa busca passa pela refutação de que o waka e o monogatari estariam a serviço de ensinamentos morais alinhados às doutrinas confucionistas e budistas, defendendo um pensamento japonês que já estaria presente na própria língua japonesa da antiguidade que, por sua vez, ainda não teria sido colonizada por preceitos estrangeiros. Não se pode negar o perigo ideológico de uma afirmação tão potente de uma etnia, em especial a feita por Norinaga, cuja ressonância continuaria a vigorar no Japão do início do século XX. 76



O recurso retórico do makura kotoba23 não tem qualquer relação com o conteúdo objetivo ou subjetivo do poema, assim podemos dizer que eles não expressam nada, seu compromisso é com o canto e sua ordenação. Como Kim Jong-li (2011, p. 289) comenta: Nesta teoria em que a retórica é utilizada para poder expressar efetivamente mono no aware, a consciência da voz é basilar. Obviamente, o waka não é algo cuja única função é ser recitado em voz alta, pois, além de ser escrito, ainda é compilado em antologias poéticas. Contudo, o importante é que, ao waka escrito, deve acompanhar a sensação de que é recitado em voz alta. Isto é suportado nada mais nada menos do que pelos recursos retóricos do makura kotoba, da nota introdutória e do kake kotoba. Como descrito anteriormente, os recursos extras do makura kotoba, da nota introdutória e do kake kotoba não se conectam diretamente ao conteúdo do poema, antes, não só apelam à sensibilidade, mas também tornam consciente a ornamentação musical do poema. Dito de outro modo, a imaginação expandida pela retórica é suportada pela voz.

Norinaga corrobora a interpretação de Kim ao definir “padrões retóricos” (aya aru) como “a colocação ordenada das palavras para que não se baguncem” (IS 255), o que, para ele, se mostra na constância da configuração poética de ku de 5 e 7 sílabas tanto nas poesias da antiguidade quanto nas contemporâneas. As técnicas poéticas mencionadas por Kim também se enquadram nessa configuração, encaixando-se perfeitamente nos dois últimos ku de 7 sílabas do waka, chamados shimo no ku, aos quais Norinaga reconhece a inutilidade para expressar o conteúdo do poema, mas essenciais para a experiência do mono no aware exatamente por trazerem à voz e à palavra a comoção própria que comove.

23

O makura kotoba (palavra travesseiro) é uma antiga técnica empregada pela literatura japonesa. Trata-se de uma expressão ou verso que se utiliza de uma imagem (normalmente cenários naturais ou lugares famosos no Japão) para se referir a um sentimento ou situação sem conexão direta com a imagem de referência. No poema citado por Norinaga, mine no shirakumo (nuvens brancas sobre o pico) é o makura kotoba que se refere a uma pessoa amada que se encontra distante, longe do alcance.



77

6. Uma possível conclusão filosoficamente relevante

O instigante na poética do mono no aware se encontra na afirmação de que todos nós somos espontaneamente poetas. E que uma comunicação independente dos conteúdos objetivos da linguagem pode ser alcançada pela linguagem poética, pois, aqui, o que está em jogo é a comoção de ambas as partes — do poeta e do receptor —, comoção que se faz mais presente na interjeição, cuja função está em apenas nos auxiliar a aliviar a pressão de um pensamento/sentimento a nos convocar a pô-lo para fora, esperando sermos ouvidos por outro que nos compreenda. A poesia seria, dessa forma, um prolongamento e um embelezamento das exclamações que nos ocorrem todos os dias. Talvez aí se encontre o prosaísmo da poesia japonesa em contraste à sofisticação estética da poesia com a qual nos habituamos. Poesia, sim, vem à tona em uma outra linguagem, mas isso não quer dizer que ela não advenha dos nossos “ah!”, “oh!”, “nossa!” de todo dia, que não esteja presente nos cantos dos pássaros na primavera ou das cigarras no verão. O importante, para Norinaga, é demonstrar como nossa primeira aproximação do mundo é afetiva e como nosso mundo é construído na medida em que sofremos, diante das diversas coisas do mundo, a experiência de sermos por elas comovidos. A poesia como a resposta a essas profundamente comoventes coisas do mundo é o método de conhecer mono no aware, isto é, alegrarmo-nos diante eventos alegres, sentirmos tristeza diante eventos tristes, mas, sobretudo, cantá-los para compreendermos seus corações. Referências:

HAROOTUNIAN, H. D. Things Seen and Unseen: Discourse and Ideology in Tokugawa Nativism. Chicago: University of Chicago Press, 1988. KI NO TSURAYUKI. The Tosa Diary (Bilingual Edition). Trad.: William N. Porter. Boston, Rutland (Vermont), Tokyo: Tuttle Publishing, 1981.

78



KIM, J-L. Norinaga no Waka-ron ni okeru Kotoba to Shinjō: “Aya” to “Mono no Aware” wo chūshin ni. Nihon Kenkyū — Kankoku Gaikokugo Daigakkō. [online]. 2011, v.50, p. 281-300. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2015. MARRA, M. Japanese Aesthetics: The Construction of Meaning. Philosophy East and West, v. 45, n. 3, p. 367-386, 1995. ________. The Poetics of Motoori Norinaga: A Hermeneutical Journey. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2007. MATSUMOTO, S. Motoori Norinaga, 1730-1801. Cambridge, Massachusetts: Havard University Press, 1970. MELI, M. “Mono no Aware” toha naninoka. Tokyo: Kokusai Nihon Bunka Kenkyū Sentā, 2001. _______. “Motoori Norinaga’s Hermeneutic of Mono no Aware: The Link between Ideal and Tradition”. In: MARRA, M. (org.). Japanese Hermeneutics: Current Debates on Aesthetics and Interpretation. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2002, p.60-75. MORRIS, M. Waka and Form, Waka and History. Havard Journal of Asiatic Studies, v. 46, n. 2, p. 551-610, 1986. NORINAGA, M. “Isonokami no Sasamegoto”. In: HINO, T. (org). Motoori Norinaga Shū. Tokyo: Shinchōsha, 1983, p. 249433. SHIMIZU, F. “Mono no Aware” wo Shiru to iu Koto. Kokugo Kyōiku Kenkyū, v. 14, p. 1-13, 1968. WATSUJI, T. Nihon Seishinshi Kenkyū. Tokyo: Iwanami Bunko, 1992. YAMAZAKI, Y. “Aware” to “Mono no Aware” no Kenkyū. Tokyo: Kazama Shobō, 1986. YODA, T. Fractured Dialogues: Mono no aware and Poetic Communication in The Tale of Genji. Havard Journal of Asiatic Studies, v. 59, n. 2, p. 523-557, 1999. ŌNISHI, Y. Yūgen to Aware. Tokyo: Iwanami Shoten, 1939.



79

Ensaio sobre “Vaso Traduzido”, de Yeesookyung

Francisco Augusto C. Freitas24

1. Introdução: uma crítica da crítica de arte

De dois modos a crítica de arte pode perder seu objeto, tornando-se nula. Primeiro, ao pretender explicar e justificar a existência do objeto enquanto obra de arte, a teoria procura conferir “valor artístico” ao objeto, dignidade que o destaca dentre os demais artefatos cotidianos. Segundo, ao buscar na obra um mero “exemplar”, a teoria mutila o objeto para que caiba no esquema teórico, rejeitando as partes que não cabem no conceito e, com isso, ignorando sua própria limitação. O primeiro serve como “justificação do objeto”, o segundo como “justificação da teoria”. Dos dois modos, ao ajustar uma coisa à outra, teoria e arte se justificam e se anulam reciprocamente. Desde o Iluminismo, a arte é considerada em relação à teoria do conhecimento, enquanto aquém (Baumgarten, 2012) ou além do conceito (Kant, 1993). No Romantismo alemão, as obras são abordadas em relação à totalidade da arte, enquanto objeto único e, simultaneamente, pertencente ao absoluto artístico (Benjamin, 2002). Segundo Schlegel (1997), a crítica da poesia deve ser, ela própria, poética. Assim, a adequação (adequatio) entre a coisa e o conceito faz com que a crítica seja sempre post-mortem. Mesmo a “mortificação das obras” (Benjamin, 2011, p. 193) e sua continuidade na crítica, ou seja, a necessária criticabilidade da arte, mais uma vez, torna o objeto refém do conceito. De todo modo, a obra de arte adquire relevância filosófica na medida em que coloca em questão a própria atividade de conceituação. 24

Mestre em Filosofia pela UFMG. Doutorando em Filosofia pela PUC-SP. Professor do Cefet-MG. Contato: [email protected] 80



Segundo o modelo da Teoria Crítica, a crítica de arte deve partir do próprio objeto, realizar-se in media res, pela imersão (Versenkung) na obra, para dela extrair sua própria teoria. Como exige Adorno (2003), a crítica deve ser estética sem se confundir com seu objeto. Por isso, lança mão do ensaio como forma de aproximação e apresentação da obra. Não obstante, na esteira da Teoria Crítica, continua-se a fazer crítica de arte segundo a teoria estética dos autores que, insistentemente, construíram sua crítica com base nas obras. Ou seja, uma crítica que utilize conceitos tomados de uma tradição, mesmo que seja da Teoria Crítica, faz o contrário do que esta pretende. Portanto, se a Teoria Crítica for levada a sério, não pode ser seguida em sua letra, senão em seu gesto. Este ensaio é uma tentativa de crítica da série de obras Vaso traduzido (Translated vase, 2006-2014), da artista contemporânea Yeesookyung.25 As obras são construídas com fragmentos de rejeitos da indústria cerâmica, montados e colados como um quebra-cabeça, formando vasos únicos, disformes e herméticos. As fissuras entre as peças são destacadas com ouro, utilizando a técnica japonesa kintsugi. Yeesookyung traduz a tradição cerâmica: parte dos rejeitos, da sobra, dos cacos para refazer a tradição, valorizando suas fissuras, sua incompletude e sua imperfeição. A própria tradição não é uma unidade homogênea original, mas um processo histórico de fragmentação e de transformação dos elementos culturais, mesmo daqueles rejeitados pela história e pela cultura oficiais. Reconstruir uma tradição com seus rejeitos e transportá-la para outras culturas é uma tarefa frágil como a própria cerâmica. A crítica funda-se nessa fragilidade, da tradição e da obra, da tradução e da própria crítica. Uma primeira tentativa de crítica poderia ser aventada seguindo o próprio título da obra e aproximando-a da teoria da tradução de Walter Benjamin. Em A tarefa do tradutor (Benjamin, 2008), as línguas são comparadas a fragmentos de um vaso rompido, fragmentos de uma unidade originária das línguas pré-Babel, cuja junção constitui a tarefa do tradutor. Diante da impossibilidade da completude de sua tarefa, o tradutor tem de renunciar a si mesmo, e essa renúncia é o motor de sua ação. Seu páthos é a melancolia, pois 25

Site oficial: .



81

o fracasso do melancólico é a medida de seu triunfo (Cioran, 2011, p. 140). No entanto, propor um ensaio sobre a série Vaso traduzido à luz da teoria da tradução de Walter Benjamin, seria uma contradição performativa. Ao invés, procura-se realizar uma imersão na obra, partindo da história da arte cerâmica e da tradição coreana, a fim de que a obra constitua sua própria teoria. 2. Origens difusas: etnoarqueologia da técnica cerâmica

A origem da arte cerâmica remonta à pré-história humana, ao período Neolítico, com a domesticação dos animais, a invenção da agricultura, a sedentarização dos povos nômades e o surgimento dos primeiros assentamentos. Antes da Idade dos Metais e da invenção da escrita, que marcam o início da história, os desenhos rupestres, as pedras polidas e os vasos de argila são os vestígios de uma protocivilização. Entretanto, novos estudos arqueológicos mostram que a divisão histórico-cronológica, cujo modelo é a Eurásia, não funciona em toda a Ásia. A invenção da arte cerâmica, ao contrário do que se pensava, é anterior à agricultura (Dikshit; Hazarika, 2012). Os vasos encontrados servem para a mensuração dos períodos por meio da técnica do radiocarbono, de modo que a pré-história pode ser remontada a partir da arte cerâmica. (Stark, 2006, p. 44-45) O arqueólogo russo Yaroslav V. Kuzmin (2013, p. 1.309) propõe uma nova terminologia para a divisão da pré-história a partir da cerâmica inventada pelos povos nômades: “Provavelmente, o termo mais claro para o complexo ‘Neolítico’ pré-agricultura na Ásia Oriental seria ‘caçadores-coletores portadores de cerâmica’.”26 Os caçadores-coletores nômades utilizavam vasos para armazenar, transportar e cozinhar alimentos. As peças mais antigas de cerâmica vermelha foram encontradas na Ásia e em diversas ilhas do Oceano Pacífico (Stark, 2006, p. 110), com características representativas dos alimentos presentes nas regiões (vasos de frutas, de peixes, etc.). Enquanto a agricultura, sobretudo o cultivo de arroz, tem uma origem regional comum e se espalha pelo restante da Eurásia, a 26

Todas as traduções foram feitas exclusivamente para este artigo e são de minha responsabilidade. 82



cerâmica surge relativamente no mesmo período em diferentes lugares, com diferentes tipos, em um processo lento e assincrônico (Dikshit; Hazarika, 2012, p. 236). Segundo pesquisas arqueológicas, “a tecnologia mais antiga de fabricar recipientes de comida com barro cozido apareceu na Ásia Oriental concomitantemente em três regiões separadas: no sul da China, nas ilhas japonesas e no Extremo Oriente russo, durante o período Glacial Tardio” (Kuzmin, 2006, p.369). O uso de vasos em rituais e em funerais pode ser encontrado em diferentes culturas, inclusive nas ameríndias. Desse modo, a história da cerâmica fornece vestígios para a hipótese da origem siberiana da ocupação das Américas. Tal como a agricultura tem uma origem regional comum, a suposta unidade de origem dos povos asiáticos é imemorial. As migrações, invasões, colonizações e impérios que se sucederam na região envolvem China, Rússia, Japão, Sibéria e outros países da Ásia. A hipótese genético-geográfica da origem das línguas sustenta que a proximidade das línguas se dá pela proximidade territorial. Em uma teoria cética, “esses padrões são totalmente sem relação e coincidentes” (Stark, 2006, p. 112). 3. História material: a cultura coreana narrada pela cerâmica

Assim como a pré-história asiática pode ser remontada por meio da cerâmica, a história da Coreia do Sul está intimamente ligada a essa arte. Inicialmente, objeto da realeza, desde a dinastia Goryeo (918-1391 d.C.), que dá origem ao nome Coreia, até a dinastia Joseon (1392-1910 d.C.), popularizou-se apenas no século XVIII. Cada período dinástico possui materiais, formas, técnicas e temas diferentes, de modo que a história da Coreia pode ser contada pela passagem do uso da porcelana azul para a branca. A porcelana azul incrustada (Sanggam Cheong Ja), conhecida como céladon Koryo, cujo tom jade-esverdeado é obtido pela argila ferrosa cozida duas vezes, pertence ao período da dinastia Goryeo, denominado como “Iluminismo Coreano” (Kim, 2003), quando se consolidou a unificação da Coreia. Esse tipo de cerâmica, sóbrio e elegante, usado somente pela elite aristocrática e intelectual, é considerado o mais fino da história coreana. A cerâmica pigmentada

83

de preto e branco, combinada à escrita e à pintura aparece nos primeiros desenhos, enquanto a incrustação de motivos e padrões aparece no século XII. Esse tipo de cerâmica voltou a ser utilizado por artistas contemporâneos devido ao seu valor, mas a perfeição técnica não foi totalmente reconstituída (Lee, 2013). A porcelana de pó azul-acinzentado (Buncheong Sa Ki, literalmente “porcelana azul-acinzentada com maquiagem branca”), pertencente à dinastia Joseon, foi fortemente influenciada pelo confucionismo. Os intelectuais da dinastia Joseon criaram uma “pintura dos letrados”, com desenho de letras, paisagens, imagens de plantas e animais, como as “quatro plantas graciosas” (damasco, orquídea, crisântemo e bambu) e o dragão, animal sagrado que representa o poder absoluto do rei. A unificação da língua coreana ocorre neste período, em 1443, com o desenvolvimento do sistema de escrita Hangul, padrão até hoje (Savada; Shaw, 1992). A porcelana branca (Baek Ja), de influência chinesa, caracteriza-se pela dureza, perfeição, pureza da matéria e uso de técnica avançada. O curador da exposição O espectro diverso: 600 anos de cerâmica coreana, Heagyeong Lee (2012), explica: A característica filosófica do neo-confucionismo refletiu-se na arte resultando em um estilo moderado, clássico e prático. Em busca da beleza da alma, descartando a vaidade e valorizando a moderação, essa filosofia se refletiu na criação de uma porcelana branca sem adornos.

A purificação espiritual dos monges se materializa na porcelana branca. Portanto, a passagem da cerâmica azul para a branca não revela apenas mudanças de estilos, mas um longo processo de aperfeiçoamento técnico-artístico. A cerâmica, assim como outras artes, não pode ser vista como “reflexo de ideias”, como “espiritualidade encarnada”, mas como “história material”, no sentido próprio do termo. Além dos períodos dinásticos, que estabelecem cortes estilísticos na tradição, a transmissão da arte cerâmica coreana sofre uma interrupção drástica com a invasão japonesa em 1592, que levou embora vilas inteiras de ceramistas coreanos, de modo que os artesãos que permaneceram na Coreia tiveram de reaprender as técnicas quando seus mestres foram levados. Recentemente, a arte 84



cerâmica vem sendo recuperada e reinventada pelos artistas contemporâneos, que buscam sua matéria-prima na tradição. A tradição não representa uma unidade originária perdida, mas um processo histórico de fragmentação e recomposição, em que as frestas são acentuadas e valorizadas ao invés de ocultadas e esquecidas. 3. Tradição e tradução: a invenção de uma unidade perdida

A cerâmica coreana contemporânea apresenta uma clara ruptura com as formas tradicionais. Ao reinventar essa arte milenar, explorando novos materiais e métodos, os artistas contemporâneos traduzem a tradição em uma nova linguagem. O artista Yoon Kwang-Cho, na obra Chaos (2007),27 cria esculturas disformes a partir da técnica tradicional, dando aparência à dinâmica do processo de cozimento da cerâmica, ao momento de “caos energético” da peça no forno. Analogamente, a tradição é o cadinho no qual se fundem caoticamente os materiais culturais. Kwang-Ho Cheong28 produz esculturas de arame de cobre trançado, como na série The Pot (2004-2011): vasos vazados, que mostram o esvaziamento da tradição pela ausência do material tradicional. Na série de vasos Tradução (2006-), Meekyoung Shin29 substitui a cerâmica e o vidro por sabão e verniz, criando esculturas idênticas a vasos tradicionais, mas frágeis em sua composição. Uma “tradução material” em que resta apenas a imagem (diluível) da tradição. Já a artista Yeesookyung, na série Vaso traduzido (2006-2014), realiza outro tipo de tradução da tradição. Toma como material os restos, refugos, cacos do processo tradicional de produção da cerâmica, rejunta-os peça a peça e cobre as arestas com ouro fino, criando esculturas disformes. A artista coreana descreve sua obra: Eu pego o refugo cerâmico de um mestre de cerâmica que reproduz cerâmica coreana antiga, como Joseon Baekja ou Celadón. Após o cozimento em um forno usando o método antigo, os mestres ceramistas 27

Disponível em: . 28 Disponível em: . 29 Disponível em: .



85

quebram quase 70% da porcelana que não chegam até os seus padrões de obras-primas. Eu ponho os pedaços quebrados e peças de refugos de cerâmica juntos, um por um, como se estivesse montando um quebracabeça. E eu cubro as fissuras com folha de ouro de 24 quilates. O resultado foi objetos estranhos e irregulares. Cada peça quebrada funciona como uma formação própria dentro de uma proliferação infinita para uma fabricação inesperada — loquacidade fictícia e descarte balbuciante do padrão convencional de obras-primas. (Yeesookyung, 2001)30

O uso do ouro para o reparo de peças rompidas remonta à tradição japonesa kintsugi. Essa técnica, ao invés de esconder o defeito, destaca e valoriza as fissuras com ouro. Segundo a artista, a escolha pelo ouro é baseada na homofonia das palavras coreanas para “ouro” e “fresta” (geum). “Eu queria adicionar um senso de humor ao meu trabalho pelo preenchimento das frestas (geums), que são consideradas como defeitos, com um material valioso, assim como o ouro.”31 Se a cerâmica é uma arte que tradicionalmente alia utilidade e beleza, os Vasos traduzidos são inúteis e desarmônicos. Vasos sem abertura, que não armazenam nada. A valorização dos rejeitos, dos restos da tradição, além de quebrar com a suposta unidade e continuidade da história, seja da arte cerâmica, seja, enfim, das línguas, materializa o processo histórico de fragmentação e transformação que constituem a própria tradição. Assim, a tradição da cerâmica serve de metáfora para ela própria: a tradição como um vaso, frágil e rígido, forjado pela fusão de materiais culturais distintos, que se rompe, se fragmenta, é rejuntado, reconstruído, destacando-se e valorizando-se as rupturas. A própria tradição é a tradução de diferentes linguagens. Não há unidade original, mas unificação posterior, das línguas e da cultura. Por fim, mais radical que os artistas coreanos, o chinês Wai Weiwei, considerado um vândalo,32 na performance Dropping a Han Dynasty Urn (1995), ao contrário de rejuntar os cacos, destrói a tradição.

30

Disponível em: . Disponível em: . 32 Disponível em: . 31

86



Referências:

ADORNO, T. W. O ensaio como forma. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Ed. 34, 2003. BAUMGARTEN, A. G. “Estética”. In: DUARTE, R. A. P. (org.). O belo autônomo: Textos clássicos de estética. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2008. BENJAMIN, W. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. 3ª ed. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002. BENJAMIN, W. Origem do drama trágico alemão. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. CIORAN, E. M. Sobre a melancolia. Breviário de decomposição. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. DIKSHIT, K. N.; HAZARIKA, M. The Earliest Pottery in East Asia: A Review. Puratattva. [online], v. 42, p. 235-6, 2012. KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e Antônio Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. KIM, Kumja Paik. Goryeo Dynasty: Korea’s Age of Enlightment, 9181392. San Francisco: Asian Art Museum — Chong-Moon Lee Center for Asian Art and Culture, 2003. KUZMIN, Y. V. Chronology of the earliest pottery in East Asia: progress and pitfalls. Antiquity, v. 80, p. 362-371, jun. 2006. KUZMIN, Y. V. Two trajectories in the Neolithization of Eurasia: Pottery versus agriculture (Spatiotemporal patterns). Radiocarbon. [online]. 2013, v. 55 n. 2-3. LEE, Heagyeong (curador). O espectro diverso: 600 anos de cerâmica coreana. Catálogo da exposição. MASP — Museu de Arte de São Paulo. De 17/08 a 25/11/2012. LEE, Soyoung. Goryeo Celadon: A Subtle Elegance. Koreana: Korean culture & arts, v. 27, p. 36-41, 2013. SAVADA, A. M.; SHAW, W. South Korea: A Country Study. Washington, DC: GPO for the Library of Congress, 1992. SCHLEGEL. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997.

87

STARK, M. T. (ed.). Archaeology of Asia. Malden: Blackwell Publishing, 2006.

88



Imagens da melancolia na obra de Goya

Francisco Fianco33

Segundo Jacques Le Goff, a Idade Média não durou os mil anos que lhe atribuímos, senão bem mais, tendo sido suplantada apenas pelo pensamento iluminista nos albores do século XIX, período em que as luzes da razão prometiam iluminar e libertar os povos da Europa de uma escravidão baseada em superstições religiosas e extrema desigualdade social. Durante sua vida, o pintor, gravador e desenhista espanhol Francisco de Goya pôde observar, na invasão da Espanha pelo exército libertador de Napoleão, condensado em alguns meses, os conflitos dos últimos duzentos anos. O fato de esse intelectual, alinhado com as ideias revolucionárias e anticlericais, como podemos ver na presença constante de clérigos na sequência dos Disparates, ter se decepcionado pelo fato de o iluminismo ter chegado até ele por meio de toda a violência de um exército de ocupação, como também está ilustrado na série Los Desastres de la Guerra, pode ter provocado uma desilusão com as promessas libertárias das transformações sociais e políticas do iluminismo. E é justamente essa desilusão que queremos analisar, personificada no conceito contemporâneo a Goya de Melancolia, e que pretendemos identificar, ainda que subliminarmente, em algumas de suas obras, mais destacadamente em La Cita, Saturno Devorando a su Hijo e El sueño de la Razón produce Monstruos. 1. Goya

A Melancolia pode, como sentimento, ser percebida, mas aparece também por meio dos gestos, da postura e de diversos sinais 33

Doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG, professor no curso de Filosofia e do PPG-Letras da Universidade de Passo Fundo, RS. E-mail: [email protected]



89

e símbolos que podem, para um olhar familiarizado, ser facilmente percebidos. A melancolia transparece muito claramente por meio das composições artísticas erigidas por meio da inspiração que tal estado disponibiliza, e pode, claro, ser fingida, mas, geralmente, os sinais externos, aparentes, dão testemunho fidedigno das correntes caudalosas e dos redemoinhos que jazem por sob a superfície plácida do lago de águas negras que é o sujeito melancólico. Assim, tal afecção se faz notável tanto nas artes quanto no comportamento das pessoas que nos cercam, bem como no artista por trás da obra. Nossa intenção, porém, não é comprovar ou demonstrar se Goya era ou não um melancólico, e sim perceber e explicar, desmembrar, o conceito de melancolia tomando por bases suas obras, mais especificamente as três que listamos anteriormente. Quanto a essas obras, o que as torna importantes, de acordo com o interesse de nossa argumentação, é a intensidade de sentimentos que elas expressam. 1.1 La Cita

Um dos primeiro trabalhos de Goya, e o primeiro a representar a melancolia, é La Cita, no qual é retratada uma mulher sentada, solitária, apoiando a cabeça em uma das mãos, perdida em pesada meditação, com o corpo curvado, fechado em si mesmo, como que a esperar por alguém que não chegará. A locação dessa obra seria sobre uma janela da antessala do dormitório dos Príncipes de Astúrias, no Palácio de El Pardo, ao lado de El Medico. A técnica empregada por Goya é similar à aplicada nas demais obras do mesmo período, a aplicação das cores ligeiramente e com o foco de uma luz imaginária no acontecimento principal. A riqueza de detalhes desaparece frente a essa maneira frenética de pintar, cedendo lugar ao efeito atmosférico criado a partir da composição como um todo. A perspectiva baixa utilizada deve-se à colocação da imagem na parede, que, como foi dito, é sobre uma janela, ou seja, no alto, efeito de equilíbrio largamente utilizado por Goya. Percebe-se ao fundo demais pessoas, que não travam com esta figura do primeiro plano nenhum contato, como que para demonstrar o contraste entre sua atividade e a inércia desta última. 90



Aparece, também, uma árvore desfolhada, o que reforça a ideia de que o que Goya retrata aqui, em um de seus primeiros trabalhos não é uma composição original ou uma criação completamente nova, e sim um tema tradicional, herdeiro de toda uma tradição iconográfica. Como já visto, a melancolia, enquanto humor, relaciona-se com o outono, tempo no qual as folhas caem das árvores, deixando-as nuas, assim como retratado na obra em questão. De acordo também com o manual de Iconologia, de autoria de Cesare Ripa, o fato de ser uma mulher representada é também referência à teoria humoral, por meio da qual se acreditava que a melancolia, como afecção, corresponderia mormente ao sexo feminino, assim como o efeito, na composição, de luz ao entardecer, o que aparece também em Melencolia § I, de Dürer, relacionando o comportamento melancólico com a noite, com as sombras e com a escuridão que não tardam a chegar. Como que para comprovar o pleno conhecimento que Goya tinha da Teoria Humoral, se faz necessário citar os interessantíssimos desenhos que realiza caracterizando, agora sim de forma relativamente inovadora, as pessoas governadas por cada um dos quatro humores. São os seus Dibujos de los cuatro Temperamentos: El hombre oso: (mono?) (Un hombre sanguíneo); La mujer serpiente mortífera (Una mujer melancólica); Un hombre rana (Un hombre flemático); El hombre gato (Un hombre colérico), provavelmente de 1797 ou 1798, desenhos estes que se encontram atualmente no Museo del Prado, em Madrid. O comportamento sanguíneo é representado por um homem macaco, arrumado à maneira de um dândi, com algo de feminino, evidenciando sua subordinação aos ditames da moda. O fleumático é visto como um homem rã, e representa um estudante libertino, sem qualidades específicas, preservando a relação desse comportamento com a água, e simbolizando a repugnância pelo que é fisiológico, tanto estética, o nojo dos excrementos e das vísceras dos quais somos compostos, quanto moralmente, a tendência, que talvez fosse a do próprio autor, a negar os apetites sexuais e a possibilidade de obtenção de prazer por meio da concupiscência e da satisfação dos desejos da carne. O colérico é visto como um homem-gato, é um guerreiro portando espada. Por fim, a caracterização que mais nos interessa aqui, a do

91

comportamento melancólico, foi representada como uma mulher maldosa a se ver no espelho como uma serpente enrolada em um gadanho e com uma ampulheta alada aos pés, ambos símbolos do tempo e de sua passagem, sabidamente associados a Saturno. Todos os quatro comportamentos são transfigurados em animais porque o autor desejava fazer uma descrição da sua sociedade e das pessoas que a compunham como totalmente rendidos ao jugo de seus instintos animais incontroláveis. 1.2 Saturno devorando a un hijo

A mulher serpente que se vê como enrolada a um gadanho nos direciona imediatamente à imagem de Saturno, o deus do tempo e da finitude. Saturno devorando seu filho é uma das Pinturas Negras de Goya das mais trágicas e aterrorizantes. Estava situada na sala de jantar da Quinta del Sordo. Escolheu, assim como Rubens, o momento em que o deus devora seus filhos para que nenhum possa destroná-lo. Ao redor da sua imagem, tudo permanece escuro, destacando sua face contorcida e a monstruosidade de seu ato. Representa o tempo que devora tudo, uma das obsessões de Goya. A maioria dos críticos de arte concorda que a idade avançada de Goya e o estado de sua doença lhe motivavam a pintar coisas com tons sombrios e melancólicos, muitas vezes monstruosos. A situação melancólica, de acordo com a tradição medieval, não era vista como decorrência exclusiva da afetação dos humores corporais, variações do quente e do frio, proporcionadas pela bile negra, como queriam os antigos, mas, também, como influência, muitas vezes maléfica e demoníaca, de Saturno, até então o mais distante dos planetas. A teoria dos humores associa-se à astrologia por meio da influência das ciências árabes. Nesse contexto, Saturno é o planeta que rege o melancólico, e, como sendo, na época, o planeta mais afastado, tende a elevar-lhe o pensamento e o espírito até as alturas, sendo responsável pela contemplação profunda, impulsionando a alma à reflexão interna, afastando-a das exterioridades, inspirando-lhe, muitas vezes, uma tendência à sabedoria e à erudição. É, no imaginário medieval, a representação das antíteses, recuperando o que ele traz de seu correspondente na 92



mitologia grega, Kronos, o pai dos deuses, mais tarde identificado com chronos, o tempo. Seu caráter ambíguo e contraditório vem do fato de ser o mesmo deus que ora é o progenitor de todos, devorador de sua prole, e, em outro momento, é o deus castrado por seus filhos, definitivamente impotente; ora senhor supremo da idade áurea, posteriormente um deus vencido e humilhado; ora criador de tudo, na figura do deus, ora a força que faz com que tudo se corrompa e pereça, na figura do tempo. Como a melancolia, também Saturno, este demônio das antíteses, investe a alma, por um lado, com preguiça e apatia, por outro com a força de inteligência e da contemplação; como a melancolia ele ameaça sempre os que lhe estão sujeitos, por mais ilustres que sejam, com os perigos da depressão ou do êxtase delirante... (Giehlow apud Benjamin, 1984, p. 172)

Apresentado pela astrologia como um planeta maléfico, muitas vezes representado simbolicamente com os traços de um velho descarnado, semelhante a um esqueleto, o que denunciava a sua condição de deus decadente e antigo, portando um gadanho, com o qual, a exemplo do tempo, sua identificação, ceifava a vida dos seres, ao invés dos cereais, como fazia na mitologia romana, era a antecipação do ícone da morte, tão largamente difundido em época posterior. Com sua lâmina, é responsável não apenas pela morte física, mas também pela morte em vida, pela falta de estímulo, pelos desligamentos traumáticos da vida humana, e, como consequência desses desligamentos, um desprendimento do mundo e do corpo que o habita, frieza, insensibilidade, desistência do ego, autoanulação, renúncia, amargura de viver, pessimismo e melancolia. Saturno dá origem a palavras como soturno, sinônimo de melancólico, obscuro, sombrio, mas, na mitologia romana, a origem desse deus apresenta características positivas, pois é o deus da agricultura, o que explica a sua foice, e do comércio, da fundição de moedas. Torna-se o deus das antíteses ao fundir-se com o deus Cronos, e tem a sua positividade rasgada ao identificar-se com o deus grego da tristeza, do isolamento e do exílio. Mas a representação de planetas sendo benéficos ou maléficos, em relação às suas influências, é anterior às especulações astrológicas gregas e às suas identificações com as divindades. Tal divisão remonta à astrologia caldeia, registrada por Beroso, no séc. IV a. C., e atribuía a

93

Saturno, bem como a Marte, um caráter de desfavorecimento, enquanto Mercúrio seria neutro e Vênus e Júpiter benéficos. Indubitavelmente, a identificação de Saturno como dotado de uma natureza sombria e perniciosa teve grande influência na posterior assimilação de sua imagem ao estado melancólico, enquanto este é visto com maus olhos. Saturno é, desde então, representado como um sombrio senhor celeste, expulso do panteão divino, comportando-se perante o mundo com uma declarada hostilidade, ou, como diria Alcabitius, por volta do séc. IX: Es malo, masculino, por el día frío, seco, melancólico, [...]. [...] cuando es maligno rige el odio, la obstinación, el cuidado, la aflicción, la lamentación, [...], la mala opinión, la sospecha entre los hombres; y es apocado, proclive a la confusión, impenitente, temeroso, dado a la ira, no desea bien a nadie; rige además las ganancias avarientas, las cosas viejas e imposibles, [...], la larga ausencia, la gran pobreza, [...], el uso de engaño, la necesidad, el asombro, la preferencia por la soledad, los deseos que matan por crueldad, la prisión, las dificultades, el dolo, [...], las causas de muerte. (Alcabitius apud Klibansky et alii, 1991, p. 142 et seq.)

Saturno representa o tempo porque este devora os pequenos sucessos temporais, que residem na vaidade, vanitas, assim como aquele devorava os seus filhos, em que ambos extinguem aquilo que criam. A relação entre ele e a tristeza provém de seu exílio no Tártaro, assim como se relaciona aos preocupados, exilados, condenados e presos. A maldade oculta e a violência provêm das suas relações familiares conflituosas, pelo fato de comer seus filhos e de ter sido vencido, castrado e exilado por um deles, Júpiter, assim como ele próprio havia feito com seu pai, Urano. A visão do homem melancólico, regido por Saturno, como ser de exceção, como governante, líder, como homem de excelência, vem da fase em que foi o Senhor da Idade de Ouro, o deus criador de tudo, pai de todos os deuses. Os chamados filhos de Saturno, os que nasciam sob a sua influência, eram tidos como os mais infelizes dos mortais, influência que regia mais fortemente a idade mais avançada, a velhice, com sua decadência física, solidão e desesperança. Conforme sua influência funesta, os sentimentos do saturnino são duradouros. Se amar, o que raro acontece, ama verdadeiramente, e por ser descrente na linguagem e nos sentidos que ela transmite nas 94



afirmações e nas palavras, expressa o que sente em atos, sendo extremamente afetuoso e carinhoso. No ódio, o que acontece amiúde, odeia com furor e nunca desiste desses sentimentos. Olha sempre para o chão, pois sua ligação com Saturno, enquanto deus romano da fertilidade da terra, deus agrícola, patrono das colheitas de grãos, se reconhece como um filho da terra, ele é puro elemento, passível de morte, deterioração e de sofrer as inconstâncias e contingências da vida. Tudo o que é saturnino remete às profundezas da terra, quando ele olha para baixo, é sua mãe que ele contempla. Sua influência benéfica era a do isolamento, o que propiciava o estudo, a erudição e a reflexão filosófica profunda, ecoando também na iconografia de São Jerônimo, por exemplo. Mas, mesmo quando a vida daquele nascido sob o véu de Saturno mostrava-se propícia, não abandonava nunca a sua base de constituição sinistra. E foi justamente sobre essas infinitas possibilidades, que oscilam entre o bem e o mal, que se assentou a relação da ambiguidade melancólica com a contrariedade saturnina, que fazia de seus filhos, ainda que ilustres, vítimas de depressão e até mesmo de loucura. O homem de gênio compartilha da melancolia e do ermo com o deus das lágrimas e da vida solitária e deprimida, raramente forjando, por meio de sua influência, caracteres comuns ou ordinários, e sim pessoas notáveis, seres de exceção. As representações pictóricas de Saturno na arte clássica, e sua influência nas representações medievais e pré-renascentistas, o colocam em duas visões diferentes. Em uma, ele é representado de forma enérgica, imponente, com a foice na mão, em uma representação do tempo, como que ameaçando a todos os que lhe estão em torno e o contemplam. Em outras figuras, esse deus aparece cabisbaixo, de olhar vago, apoiado sobre uma das mãos, segurando seus instrumentos displicentemente. Apenas no fim da Idade Média é que os artistas começam a se desprender das representações clássicas e orientais e passam a compor a imagem de Saturno, assim como de outros planetas, de forma mais livre. Ele passa a ser assimilado à imagem de um velho camponês, provavelmente por herança da tradição romana que o tinha como um velho deus agrícola, e fica, em virtude disso, relegado à camada mais baixa da

95

sociedade feudal decadente. Isso não impede, claro, que ele seja mostrado, em outras obras, como monarca soberano e senhor do tempo, pairando por sobre a terra e exercendo a sua influência maléfica sobre seus filhos enquanto devora criancinhas, sem a maioria das características que a astrologia por tradição lhe atribuía. Sua foice, antes transformada em gadanho, como que para aproximá-lo dos camponeses, pode aparecer como cetro ou até mesmo como bengala, para demonstrar, respectivamente, sua soberania e seu caráter de ancião doentio e sinistro. Durante a Idade Média, o combate católico às ciências astrológicas fez com que Saturno se transmutasse de deus do panteão pagão em homem normal e remotamente localizado na cronologia histórica ou mitológica. Os intérpretes medievais diziam que ele havia sido descrito por todos os autores antigos, tanto gregos como romanos, como um homem que fugiu de Creta temendo a ira de seu filho e fixou-se na Itália, onde, como era um grego culto, ensinou aos habitantes de lá, em sua maioria homens toscos e selvagens, muitas coisas, como a agricultura, o cunho monetário, a fabricação de instrumentos e a escrita. As interpretações cristãs, que visavam relacionar os sete planetas até então conhecidos com os dons do sétuplo espírito, reforçaram a tendência de descrever Saturno como ligado à sabedoria, e explicavam tal afirmação por meio de sua órbita, que, por ser a maior, deixava mais tempo para a reflexão, ou, por outro lado, pela idade provecta, que era constantemente associada à capacidade de emitir juízos equilibrados e tomar decisões acertadas. Pelo mesmo motivo, Saturno era responsabilizado por outorgar o dom da existência mesma e sua continuidade. Simultaneamente ao fato de representar o tempo, que, com seu gadanho afiado, corta a linha da vida de tudo o que existe, tornando vãs as flores e as frutificações do mundo, é digno de veneração enquanto é filho da eternidade e pai do tempo. É na Idade Média tardia que os aspectos negativos de Saturno começam a predominar, fazendo com que ele ganhe uma aura demoníaca, em que são exortadas as suas características de perversidade, como a responsabilidade pelo pavor, pelo temor, pela guerra, capciosidade, cárcere, lamentação, tristeza, pensamento 96



excessivo, preguiça e inimizade. É visto como a estrela danosa, furiosa, malévola, odiosa, soberba, ímpia, cruel, conservadora da pobreza e dos males, senil e sem misericórdia, e, mesmo quando bons astros se lhe opõem, acha meios de fazer cumprir a sua vontade perversa. Assim, o tratamento dado ao planeta Saturno na astrologia se estende e se coaduna à visão que é tida de seus filhos, os melancólicos, segundo a medicina e a teoria humoral, chegando a figurarem, por transposição, as características de um às dos outros, de modo a inverter a visão do melancólico como homem de gênio que havia na antiguidade, e defendida na Problemata XXX, I, para uma melancolia estritamente pejorativa, o que só seria mudado no Renascimento com a retomada dos ideais clássicos e o reaparecimento dos homens de exceção. 1.3 El Sueño de la Razón produce Monstruos

A última gravura a ser analisada por meio do véu da melancolia aqui é o Capricho número 43, chamado El Sueño de La Razón Produce Monstruos, e que se encontra atualmente no Museo del Grabado de Goya, em Madrid. Goya é considerado por alguns o melhor gravador da história da arte espanhola. Por meio de suas gravuras, especialmente com os Caprichos, ele fará uma severa crítica à sociedade espanhola na época da Ilustração. Essa série foi realizada com água-forte e tinta, entre os anos de 1793 e 1796, e posta à venda em fevereiro de 1799. Sua importância maior não procede da técnica empregada, e sim do forte conteúdo que as obras encerram, consideradas perigosas por sua criticidade. Toda a sociedade foi alvejada pelo artista: a educação, a nobreza, a prostituição, até mesmo o clero, motivo pelo qual interveio a Inquisição. E justamente para evitar problemas como esse é que Goya não as vendeu, e sim deu para Carlos IV em troca de uma pensão para seu filho Javier. Pode ser considerado um precursor do surrealismo ao pintar os fantasmas de seu subconsciente, mas os monstros também podem corresponder aos desejos do artista de desmascarar e expor todas as anomalias de sua sociedade por meio de suas gravuras, afirmando a soberania da razão sobre as trevas da ignorância ou os abismos dos devaneios da razão. A ideia de uma imaginação

97

desregrada e errante, muito em voga no séc. XVIII, corresponde à incapacidade da razão de manter-se em seus limites, de conter-se e suportar-se, vindo a cair na loucura, no devaneio racional. Conforme nos esclarece Márcia Tiburi (2001, p. 55 et seq.), isso corresponderia à visão kantiana, no que a fantasia e o impossível, e, com eles, o que for assustador e feio, residiriam fora dos limites da razão, de maneira a demonstrar a monstruosidade potencial de uma racionalidade desmedida. Nessa obra, são retratados os perigos potenciais da melancolia quando esta descamba para o seu lado mais negro, de angústia, medo, abismo de terror, quando o melancólico escolhe definitivamente, em detrimento de sua característica inconstância e eterno oscilar entre dois extremos, pela autoanulação total, desconsiderando a opção de salvar-se por meio do envolvimento com alguma obra, o que seria a saída maníaca do estado de apatia e de inatividade. A cena mostra um homem deitado sobre os braços cruzados, que se apoiam sobre uma mesa de trabalho, sobre a qual também jazem livros fechados e objetos de escrita displicentemente abandonados. Essa disposição de elementos é já sedimentada pela tradição pictórica e também parte de uma representação típica da atitude melancólica, no abandono de suas tarefas e obrigações, e entrega completa a uma meditação tristonha, um pesado refletir que culmina em sono culpado, povoado de pesadelos e visões assustadoras. Por isso esse quadro se chama El sueño de la razón produce monstruos, o que pode-se notar escrito na lateral da mesa sobre a qual se debruça o personagem da figura, que, especula-se, seja o próprio autor, e que teria comentado a respeito desta gravura que: “La fantasía abandonada de la razón produce monstruos imposibles; unida con ella es madre de las artes y origen de sus maravillas” (Goya apud Nordström, 1989, p. 141). Tal sonho da razão é povoado por diversos animais noturnos e sombrios: morcegos, corujas, gatos e até um lince. A razão para que estes sejam retratados especificamente é que animais como morcegos são diretamente relacionados à melancolia, devido aos seus hábitos noturnos, a habitar lugares isolados e sombrios, insalubres e sinistros, a exemplo dos hábitos dos melancólicos, com seus estudos noturnos, isolamento e misantropia, semblante obscuro e descaso com a 98



aparência e com as coisas mundanas. Note-se que na célebre obra de Albrecht Dürer, o título Melencolia I aparece escrito nas asas de um morcego. As corujas e mochos, além de também serem animais noturnos e compartilharem hábitos com os morcegos, também são a representação da erudição e da sabedoria que geralmente acompanham a melancolia como sintoma quando esta cria seus homens de exceção. A analogia se torna mais clara se recordarmos a coruja de Minerva, que é a deusa das artes e ofícios, das ciências e do conhecimento, e notarmos que uma das corujas, bem à esquerda, transporta uma pena e parece oferecê-la ao artista, como que a insinuar que o trabalho seria uma alternativa para sair de seu sofrimento e de sua agonia. As opções entre as quais se debate o sonhador, entre as feras da imaginação desenfreada e a razão, transpostas na gravura como a sobra na qual estão os morcegos maiores do fundo em contraste com a claridade e a definição de traços das corujas e do lince, em um plano mais próximo, representam, em verdade, a diferença entre a melancolia paralisante e a criação artística. O gato negro, juntamente com os morcegos, personifica a obscuridade, enquanto o lince é, tradicionalmente, a representação da fantasia, da imaginação, e está ali para apoiar o sonhador, posto que é reconhecida a sua fama de ter visão penetrante, sendo capaz de enxergar perfeitamente ainda que na mais completa obscuridade. Considerações finais

As obras aqui representadas podem ser consideradas mais do que uma simples alegoria, e talvez fosse mais acertado entende-las quase como um autorretrato, pois muito provavelmente a advertência que ele expressa fazia parte da vida de Goya de forma marcante, e o artista se debatia em sua melancolia artificialis, ou melancolia de artífice, melancolia de artista, uma melancolia criativa, que aparece nos homens de exceção e que, ao contrário da melancolia apática e desinteressada, vista como doença, faz da angústia o motor propulsor da criação e da genialidade, doando sentido ao absurdo da existência em momentos alternados de incapacidade generalizada e de furor criativo. A tênue linha que

99

separa o desinteresse pela vida do furor criativo foi, mais uma vez, rompida no momento dessas composições no momento em que Saturno, demônio das antíteses, deus da melancolia, derramou novamente suas graças sobre seus filhos, tornando a ocupação uma saída viável ao desespero. Referências

ARISTÓTELES. O homem de Gênio e a Melancolia, Problemata XXX, I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. DUBOIS, Claude-Gilbert. O imaginário da Renascença. Brasília: UnB, 1995. ECO, Humberto. Arte e beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Globo, 1989. FRANÇA, Maria Inês. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997. FREUD, Sigmund. “Luto e Melancolia”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1969a, vol. XIV. GOYA, Francisco de. Capricho numero 43: El Sueño de la Razón Produce Monstruos. Madrid: 1793-96. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. GOYA, Francisco de. La Cita. Madrid: 1779-80. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. GOYA, Francisco de. “Retratos de los Cuatro Temperamentos. Madrid: 1797-98”. In: NORDSTRÖM, Folke. Goya, Saturno y Melancolía: Consideraciones sobre el arte de Goya. Madrid: Visor, 1989. GOYA, Francisco de. Saturno. Madrid: 1820-23. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015. HOCKE, Gustav R. Maneirismo: O mundo como labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974. 100



KLIBANSKY, Raymond; PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz. Saturno y la Melancolía. Madrid: Alianza Editorial, 1991. KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressão e melancolia. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999. LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. NORDSTRÖM, Folke. Goya, Saturno y Melancolía: Consideraciones sobre el arte de Goya. Madrid: Visor, 1989. PERES, Urânia Tourinho (org.). Melancolia. São Paulo: Escuta, 1996. TÍBURI, Márcia. O Feio e o Mal: aquém dos juízos éticos e estéticos. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v. II, n. 2, p. 55-74, jan./jun. 2001.



101

Educação como arte ou arte como educação

Ricardo Teixeira Veiga34

Rancière (2014) baseia-se nas ideias anticonvencionais do pedagogo francês Joseph Jacotot sobre educação, para sugerir a emancipação dos espectadores, especialmente do teatro, dança e performance, nivelando-os à posição dos artistas, da mesma forma que se idealizou a emancipação dos alunos, cuja inteligência, em princípio, era proclamada equivalente a dos educadores. Na escola e na arte, pensase no exercício pleno da liberdade de criar e de ser, escapando-se à reprodução da hierarquia social, ao se desfazer o dualismo de opressores e oprimidos, como propôs Freire (1987, 2002) para a educação. Assim, não é que os alunos devam usurpar o lugar de seus mestres, embora sejam supostos iguais a estes em seu potencial de aprender, porque teríamos, então, mera inversão de papéis entre opressores e oprimidos. O princípio proposto é revolucionário. Incorporando-se as perspectivas e saberes prévios de alunos e professores, deve-se compor uma aliança entre ambos, para a investigação e construção do conhecimento, ao contrário da mera reprodução do saber cristalizado. Em relação à finalidade, há forte semelhança entre as concepções de Rancière (2014) e as de Freire (2002). O educador brasileiro destaca o caráter dialógico e dialético do ensinoaprendizagem, ressaltando que educar não é transmitir conhecimentos para os menos instruídos, mas sim, segundo o autor, “pensar certo”, no sentido de promover o pleno uso da capacidade 34

Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Doutor em Administração, bolsista do CNPq, coordenador do NECC (Núcleo de Estatística e de Ciências Comportamentais). 102



cognitiva numa atmosfera de busca de rigor, consciência e emancipação. Por isso, não se pode tratar o educando como cliente ou tábula rasa, pois seus saberes devem ser respeitados e tomados como referência, e suas necessidades atendidas em seus aspectos únicos. No início do processo, é usual que os professores se coloquem ativamente como guias e instrutores. Mas essa situação pode ser superada, à medida que os alunos são capazes de pensar e agir de modo crítico e criativo, tornando-se cada vez mais seguros para aprender por conta própria, com base na experimentação e na descoberta. Se, teoricamente, no ensino, pelo menos da pós-graduação, tal revolução não seja hoje nem escandalosa nem despropositada, na prática, muitas vezes o que temos é simplesmente a troca provisória de papéis. Numa fórmula comum, alunos substituem ocasionalmente professores em sala de aula, fazendo exposições e coordenando debates, sujeitando-se, porém, às correções e interferências dos mestres. Tal comportamento reflete desconfiança no trabalho de preparação e na capacidade de aprendizagem dos alunos. Não que isso seja injustificado, pois raramente todos os alunos realizam leituras prévias agendadas e estudo antecipado às aulas. Ademais, frequentemente, os alunos-professores apoiam suas apresentações em material de terceiros, obtido na internet, reproduzindo então o “conhecimento” existente, sem real domínio do que deveriam aprender. Por outro lado, muitos professores restringem seu papel à explicação de ideias e conteúdos alheios, repetindo inconscientemente a educação que tiveram. Logo, quase nenhuma habilidade superior é cultivada. A revolução na educação é adiada, preservando-se a hierarquia e desigualdade entre mestres e alunos, pouco ou nada se acrescentando à base de conhecimentos preexistente. Segundo Rancière (2002), porém, um ignorante pode ensinar a outro ignorante aquilo que ele próprio não sabe. De fato, a máxima do autor em O mestre ignorante causa, à primeira vista, espanto, resistência e suspeita de insanidade. Mas, na atividade de orientação acadêmica, especialmente na pós-graduação, a fórmula faz sentido e geralmente funciona.

103

É comum orientarem-se alunos em temas e projetos cujas bases ou limites teóricos seus orientadores desconhecem. Por isso, o saber resultante ultrapassa o conhecimento de orientadores e orientados. O trabalho final reflete o aconselhamento e o critério dos professores, mas é fruto principalmente do potencial criador dos alunos e de sua dedicação. Não se trata de cegos guiando cegos, mas de mestres que são, também, aprendizes, pois ninguém sabe tudo, guiando aprendizes que se tornam mestres, num consórcio solidário de produção de conhecimento novo e mútuo estímulo à libertação de rígidos papéis sociais. Cabe ressalvar, entretanto, que a ignorância do orientador não é total, pois sua formação e experiência de pesquisa normalmente capacitam-no a avaliar e orientar projetos que não sejam de sua restrita especialidade. Logo, a proposta de emancipação feita por Rancière pode, então, ser avaliada na perspectiva do que pode dar certo, apesar de sua contradição. Baseia-se na subversão da instituição pedagógica, “lugar — material e simbólico — onde o exercício da autoridade e a submissão dos sujeitos não têm outro objetivo além da sua progressão, até o limite de suas capacidades” (Rancière, 2002, p. 10). Não obstante, seja por conformismo, seja por controle político das minorias sociais que controlam a economia, a educação brasileira segue no modelo tradicional, sem melhoria essencial em sua qualidade e nem impacto contundente na redução das diferenças sociais. A ideia de emancipação do espectador teria então um propósito pedagógico anterior ou paralelo à mudança do sistema educacional? Para levá-la a sério, sem preconceitos, não seria necessário retomar a questão do significado da arte? Também não deveríamos rediscutir a relação entre arte e política? Independentemente da abordagem estética de Rancière, podemos supor que seu interesse na emancipação do espectador atenda a objetivos mais amplos de libertação daqueles em posição de inferioridade e de transformação da estrutura social. Trata-se, quem sabe, de instituir a revolução no âmbito da arte, para estendê-la às demais dimensões da vida. Se a destruição da desigualdade no 104



sistema educacional tem fracassado, pode ser que tenha melhor resultado na arte. O problema é que a indústria cultural e as ações de marketing de relacionamento das empresas já instituíram uma relação de proximidade e intimidade com o público, vendendo a ilusão da supressão de barreiras, de abertura à participação e coautoria. Mensagens e perguntas de espectadores são recebidas e lidas em tempo real nos programas de debate. Comentários, elogios e críticas são exibidos nos rodapés das telas, com hashtags e nomes dos autores. As “pegadinhas” na televisão transformam pessoas em participantes involuntários de situações engraçadas ou humilhantes. Candidamente, atribuímos autenticidade a essas informações e acontecimentos, projetando-nos como fisicamente presentes na programação televisa, nas cartas publicadas em jornais, revistas, resenhas de produtos em websites e falas gravadas no rádio. Tentouse, inclusive, há algum tempo, ao que parece sem muito sucesso, a venda de espaço de participação em programas de TV, via serviços de telefones celulares. Nos shows, competições esportivas, movimentos sociais e catástrofes, os espectadores/atores estão sempre lá, retratados em êxtase ou angústia, participando ao vivo de acontecimentos, levando a experiência de espetáculo ao paroxismo. Na internet, o diálogo tende a ser mais democrático. A Web 2.0 é, por excelência, espaço de interatividade: usuários são, também, potencialmente provedores de conteúdo, tais como vídeos no YouTube®, artigos na Wikipedia® e mensagens em blogs. O mantra geral parece ser “todos podem falar de tudo e compartilhar suas opiniões e criações com todos”. Porém, do outro lado, no canal de televisão ou no blog, sempre há o proprietário do veículo, que decide o que deve ou não ser publicado e exige algum tipo de identificação prévia de quem quer transmitir algum conteúdo. Ademais, o princípio de neutralidade da rede (ou da internet), de que todas as informações que trafegam pela web devem ser tratadas da mesma forma, garantindo livre acesso a qualquer tipo de informação, é frequentemente criticado, havendo implícito risco de seu abandono. Que tipo de relação autêntica pode então existir entre artista e público naqueles espetáculos “de corpos em ação diante de um

105

público reunido” (Rancière, 2014, p. 8) — ou seja, teatro, dança, performance, mímica, entre outros? Em sua conferência “O espectador emancipado”, Rancière (2014) é bastante esclarecedor sobre sua proposta. Sua argumentação inicia-se com o que denomina de “paradoxo do espectador”: não há teatro sem espectador, mesmo que único e oculto. Não se representa para uma plateia vazia, a não ser como exercício ou ensaio. Da mesma forma, não existe obra literária sem leitor. Logo, a questão do espectador e do público é fundamental para a arte, quando pensada em termos sociais e como manifestação cultural. Obviamente, a relação entre artista e público depende da época e lugar. Por exemplo, segundo Nietzsche (2007), na tragédia grega ática, antes das inovações “perversas” introduzidas por Sófocles e levadas ao extremo por Eurípedes, sujeito à influência intelectual de Sócrates, não havia espectadores passivos, observadores distanciados do drama representado no palco, pois o coro integravaos ao drama, conciliando elementos apolíneos e dionisíacos. Não havia também eliminação ou inversão dos lugares, físico e simbólico, ocupados por atores e plateia. A tragédia devia ser contemplada, apreciada e sofrida. Esse envolvimento e mobilização de atores e público na representação da tragédia eram condenados por Platão, pois, segundo ele, o teatro oferecia o espetáculo de um páthos, a doença do desejo e do sofrimento, proveniente da cisão individual, fruto da ignorância (Rancière, 2014). Daí a condenação do teatro e a expulsão, da república idealizada por Platão, dos artistas, que davam vida às tragédias com seu talento para mimetizar as personagens (Platão, 2012). Porém, na Poética, Aristóteles (1966) discordava de Platão tanto em relação à condenação dos artistas, cujo talento admirava, quanto em relação ao desvalor atribuído à tragédia. Para Aristóteles, a empatia com o sofrimento das personagens interpretadas, por meio da catarse, preparava o público para o sofrimento real, tornando-o mais resistente e capaz de lidar com infortúnios. A condenação do artista por Platão e sua não condenação por Aristóteles levam-nos a concluir que, na Antiguidade Grega Clássica, se reconhecia o 106



potencial do teatro, e por extensão da arte, de afetar profundamente a vida do espectador. Para Rancière (2014), a reação à crítica platônica do teatro que predominou foi o investimento na mobilização do espectador, visando torná-lo ativo, respondendo à dinâmica do drama encenado. Consequentemente, passou-se a buscar um teatro “sem espectadores”, ou seja, teatro em que os assistentes aprendiam em vez de ser manipulados e condicionados pelas imagens. O autor explica que essa inversão envolveu duas fórmulas básicas. A primeira, para arrancar o espectador do embrutecimento, provocado pela empatia com os atores, apresentar-lhe-ia um espetáculo inabitual e enigmático, cujo sentido deveria buscar, ou então um dilema capital, que o obrigasse a criticar e se posicionar. A segunda fórmula era a retirada do espectador de sua posição distanciada de observador calmo, arrastando-o para o círculo mágico da ação teatral. Como exemplo da primeira alternativa, havia o teatro épico de Brecht, e como exemplo da segunda, o teatro da crueldade de Artaud (Rancière, 2014). O propósito era a descoberta do verdadeiro teatro, que transformasse o público numa comunidade vibrante e politicamente engajada. No entanto, observa Rancière (2014), nenhuma dessas fórmulas promoveu verdadeiramente a emancipação do espectador, pois o objetivo era moldá-lo, controlando suas vivências e seu aprendizado conforme a agenda cultural e política de diretores e dramaturgos, ou segundo a expectativa romântica de revolução estética. Dialeticamente, inspirando-se em Jacotot, Rancière sugere que, possivelmente, a tentativa de eliminar a distância entre mestre e alunos, entre atores e plateia, é que a reforçava, perpetuando seu caráter perverso. Em síntese, o argumento de Rancière é que a reafirmação do status de mestre e de artista implica na constante recriação da distância, seja na constante redescoberta da hierarquia de conhecimento, que divide mestre e discípulos, seja no controle da performance, no caso do artista. Segundo Rancière, a emancipação do espectador se inicia com o questionamento da oposição entre olhar e agir, entendendo-se que

107

olhar é também ação assertiva ou transformadora da assimetria de poder e distribuição de posições. Assistentes são, na realidade, “ao mesmo tempo espectadores distantes e intérpretes ativos do espetáculo que lhes é proposto” (Rancière, 2014, p. 17). A performance não é a transmissão do saber ou sopro do artista ao espectador, é um terceiro elemento, entre artista e público, cuja natureza deve ser descoberta ao mesmo tempo que é criada e recriada. Por isso, nossa condição de espectador/ator é natural, sem ponto de partida ou posição privilegiada. Segundo Rancière, todo espectador é já ator de sua própria história, bem como todo homem de ação é espectador de seu próprio tempo. A perspicaz e criativa análise de Rancière faz-nos pensar sobre a obra de arte e seu significado. A obra é objeto autônomo, entre coisa e utensílio, cuja essência revela a verdade do ser (Heidegger, 2010), um bloco de sensações, isto é, composto de perceptos e afectos (Deleuze; Guattari, 1992). Portanto, instrumentalizar a obra, tornando-a motivo didático ou manifesto político é contrário à sua natureza e deprecia a importância da arte. Por exemplo, ações escandalosas e irreverentes que buscaram dessacralizar a arte tradicional, como a invenção do ready-made por Marcel Duchamp, perderam sua vitalidade, à medida que o gesto foi reproduzido e imitado, esgotando sua potência inicial. A arte engajada, como o cinema exuberante de Leni Riefenstahl, tornou-se ícone do totalitarismo. Por isso, Rancière não propõe empobrecer a arte nem transformá-la em artefato de engenharia cultural. A inversão de papéis entre ator e espectador não supera a lógica do embrutecimento. O empoderamento do espectador não o transforma em artista. A emancipação do espectador visa embaralhar a fronteira entre os que agem e os que olham, porque essa dicotomia entre agir e apreciar é ilusória, perpetuadora de preconceitos. Espectadores emancipados devem elaborar sua própria tradução, construindo sua própria história. “Uma comunidade emancipada é uma comunidade de narradores e tradutores”, embora palavras sejam apenas palavras e espetáculos, apenas espetáculos (Rancière, 2014, p. 25-26). 108



Tal como alunos que deixam a escola após colação de grau, ou a abandonam, espectadores emancipados estão entregues à sua própria sorte. Sua presença no espetáculo é contingente e transitória. Sua vinda deve ser celebrada e sua partida, aceita naturalmente. Novos espetáculos, novas lições: público renovado. É claro que o espetáculo pode influenciar os espectadores e contribuir para mudar suas vidas. Mas isso é raro. Tão raro quanto ter a qualidade de vida radicalmente mudada por único evento da vida escolar. Essa limitação de alcance, entretanto, não deve ser justificativa para não se procurar relevância e significado. É responsabilidade de autores e professores a proposição de espetáculos e atividades que engajem e promovam experiências subjetivamente ricas, embora haja, também, demanda por diletantismo e ludicidade. Respeite-se, então, a autonomia de sentir, pensar e agir dos espectadores. Regozijemo-nos com a independência do público, admitamos a legitimidade de suas escolhas, questionáveis ou não. Não devemos presumir que espectadores sejam matérias-primas ou se confundam com as obras artísticas. Não é demagogia, tampouco, reconhecer que o espectador é protagonista/autor de sua própria história. Nem é demagogia reconhecer a autonomia dos educandos e o valor referencial de sua experiência e saberes. O feedback do público enriquece o artista ou frustra suas expectativas estéticas. A realização social dos alunos é indicador da eficácia da educação. Escola e espetáculo delimitam contornos de ecossistemas em que artistas, público, mestres e alunos realizam trocas funcionais, simbólicas e afetivas. Pensar a emancipação nesses contextos é reconhecer que o valor da arte, tal qual o valor da educação, é singular e intrinsecamente produzido no encontro, compartilhamento e comunhão — com a obra artística e na jornada educacional. Artistas e mestres apresentam possibilidades e realizam experiências, persuadem, orientam e comovem, mas não têm o controle e a palavra final sobre o resultado de suas ações e intenções. Bons professores e bons artistas não resolvem os problemas do mundo. Apesar da nobreza de seus papeis, sua principal missão é produzir a emancipação de alunos e espectadores.

109

Não se pode pensar em espectadores e alunos emancipados sem que mestres e artistas estejam plenamente conscientes de sua identidade, relevância e missão — ou seja, artistas e mestres devem ter abandonado seus papéis convencionais de monopolizadores do saber e do gosto. Arte e educação emancipadoras podem resgatar o valor cultural que a arte e o ensino vêm perdendo. Porém, tratar a arte como meio de educação dos espectadores rebaixa seu significado. A arte de valor é aquela que redime o sagrado, na aliança com o público, cuja subjetividade, impactos e reações demonstram sua autonomia e centralidade. Referências

ARISTÓTELES. Poética: introdução, tradução e comentários de Eudoro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Trad.: Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1992. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. ______. Pedagogia da autonomia. 25. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad.: Idalina Azevedo e Manuel António de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. PLATÃO. A república. 2. ed. Trad.: Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2012. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Trad.: Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014. ______. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad.: Lílian do Valle. 3a edição. Belo Horizonte, Autêntica, 2002.

110



Sobre os organizadores

Debora Pazetto Ferreira

Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG e professora no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais — CEFET-MG. Rachel Costa

Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG e professora da Universidade Federal de Ouro Preto — UFOP Verlaine Freitas

Doutor em Filosofia (UFMG). Professor Associado Departamento de Filosofia da UFMG. Pesquisador do CNPq.



do

111

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.