Sobre a Odisséia do Capital: comentários acerca da historiografia do Imperialismo Capitalista em nossos dias (2015) [tese de doutorado]

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ECONOMIA

THIAGO FERNANDES FRANCO

Sobre a Odisséia do Capital: comentários acerca da historiografia do Imperialismo Capitalista em nossos dias

CAMPINAS 2015

THIAGO FERNANDES FRANCO

Sobre a Odisséia do Capital: comentários acerca da historiografia do Imperialismo Capitalista em nossos dias

Prof. Dr. Eduardo Barros Mariutti – orientador

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico, área de concentração: História Econômica, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutor em Desenvolvimento Econômico, área de concentração: História Econômica.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO THIAGO FERNANDES FRANCO E ORIENTADA PELO PROF. DR. EDUARDO BARROS MARIUTTI.

CAMPINAS 2015

TESE DE DOUTORADO

THIAGO FERNANDES FRANCO

Sobre a Odisséia do Capital: comentários acerca da historiografia do Imperialismo Capitalista em nossos dias Defendida em 29/10/2015 COMISSÃO JULGADORA

Dedico esta tese ao meu amigo Pedro Biffi, Um homem que planta árvores e desfruta da companhia dos passarinhos.

Agradecimentos

No mestrado, sucumbindo ao comodismo e ao receio de esquecer pessoas importantes, optei por fazer um agradecimento genérico. Algo me diz que aqui preciso fazer diferente. Escrevi mais de 500 páginas. Não vou miguelar mais algumas. Continuo com receio de cometer injustiças e sei que vou. Vai com receio mesmo. Peço desculpas a quem se sentir injustiçado. Precisaria de muito mais do que 600 páginas para agradecer adequadamente, mas vou poupar uns bytes e ir direto ao assunto. Mais ou menos, claro. Em todo o caso, preciso mostrar alguns dos ciclos que agora se encerram, ressaltando que outros permanecem. Vou procurar enfatizar a importância acadêmica que essas pessoas tiveram para esta tese, mas é evidente que não dá pra fazer isso descoladamente da minha vida pessoal. Não sei se isso é bom ou se é ruim, mas eu sou assim. Algumas tradições devem ser respeitadas e mantidas. Uma delas é sempre reverenciar primeiro quem veio antes de nós. Por esse motivo, meus primeiros agradecimentos vão para minhas/meus avós. Por ocasiões várias, puderam e conseguiram aproveitar momentos e lugares muito particulares da história do século passado e promover a nós que viemos depois condições sócio-econômicas-educacionais muito melhores que a que eles próprias tiveram. Quando acompanhamos a trajetória das profissões através das quais obtiveram seus ganhos econômicos, temos uma boa medida de o quanto essa história é a história de precariedades ilusórias que muitas vezes persistem. Meu avô Jayme foi alfaiate. Meu avô Silvio, farmacêutico. Minha avó Carmem

foi professora de “grupo” (Escola Pública). O ofício de alfaiate praticamente inexiste, senão em nichos para executivos ricos. Foi substituído por lojas de departamento e grifes para variados estratos sociais. Os vidrinhos e os instrumentos da farmácia de meu avô foram substituídos por gigantescos monopólios que não têm qualquer interesse pelas pessoas a quem elas deveriam servir. Nunca mais vi farmácia com banco de praça dentro. E as escolas públicas agonizam1. Não tive a ocasião de conhecer minha avó Nely, mas também aproveito para agradecê-la, pelo menos por minha mãe. Não posso deixar de agradecer à Lu, minha madrinha e vó-drasta. Ela, junto ao meu avô Sílvio, são responsáveis por oferecer a mim memórias que certamente marcaram essa tese. Especialmente quando íamos ao distrito de Eleutério, em Itapira. Ali a gente comia fruta “do pé”, catava minhoca, pescava e nadava no rio. Ali contemplávamos a vida em um ritmo completamente deslocado da urbanidade que já marcava Mogi-Mirim nas décadas de 1980 e 1990. Foi gostoso. E dá uma imagem de contraponto das mudanças que separam o quintal da Dona Fany e do seu Filo do mundo que oferecemos às nossas crianças. Tempo e espaço. [e mais um monte de cortes, mas isso fica pra mais tarde]. Às minhas tias e aos meus tios também devo agradecer. É pela convivência com eles que pude traçar diversas pontes entre os diversos ciclos pelos quais se pode pensar o século XX. Em traços gerais, são gentes que estudaram em faculdades num momento em que o ensino superior se estendia às classes menos aristocráticas, contemplando uma certa pequeno-burguesia de profissionais liberais. Foi ali onde essa minha gente aprendeu a viver e a defender os seus. Tiveram e têm uma vida material confortável e legaram aos filhos a oportunidade/necessidade de cursarem faculdades. Que hoje nada disso implique em qualquer garantia econômica e que a maioria de nós não tenha condições de reproduzir a mesma vida confortável que tivemos, também constitui um fato que procuramos explicar ao longo deste longo texto. Devo a essa gente muito afeto, conforto material e, sobretudo, as imagens de quão drástica foi a mudança que separa o mundo deles do meu. Vivemos hoje em um mundo atolado de quinquilharias mercantis que inexistiam. Mas por outro lado, penso que ainda vivemos essa mesma época, porque ela é a época das transformações – pelo menos no interior do Estado de São Paulo; e, mais precisamente, dos brejos do pequeno rio de cobras, de onde viemos. Tudo isso foi muito importante para minha formação e para a minha tese. Oxalá a estudantada em ocupação consiga implodir isso que hoje chamam de escola e fazer algo melhor no lugar. Aqui também não nos parece haver esperanças senão a partir de uma revolução radical. 1

Dessa gente toda não herdamos qualquer patrimônio. Mas ajudando uns aos outros, “chegaram lá” – o que é um baita legado. Além disso, devemos a essa gente grande parte de nossos valores e nossa visão de mundo, devemos também o fato de termos chegado aqui e cursado os tais cursos superiores, o que nos colocou em condições de competição – como dizem por aí – muito vantajosas em termos escolares. Agradeço muito à minha mãe e ao meu pai, que me oferecem muito mais do que é possível exprimir em palavras. Não vou nem tentar. Agradeço aos muitos amigos e amigas de meus pais que estiveram sempre presentes e dispostos a nos ajudar em tudo o que fosse necessário, em especial Brito, Dija e Nelsinho, bem como seus filhos, queridos amigos. A “esses velhos da “Panela” devo uma referência importante de amizade profunda, duradoura e desinteressada. Certo dia meu avô Jayme me contou do seu orgulho que sentia por seu neto cursar duas faculdades. Ele, que não teve a ocasião de estudar senão até a quarta série – na época nem esse nome tinha. Me disse que já que eu faria duas, que fizesse uma por ele. E eu fiz. Tó, vô, esse doutorado também é seu. [O sentimento de que isso não reflete muito mérito meu e que a estrutura escolar é extremamente injusta e exclusiva não pode embotar meus olhos de ver o esforço que vocês fizeram para que eu estivesse aqui. Eu já fiz isso antes, e peço desculpas por isso]. Aproveito também para agradecer à primaiada. Pensando na trajetória de cada um de nós é mais fácil para mim entender as minhas escolhas. Gosto muito de vocês e agradeço pela longa convivência, mesmo quando as mudanças do mundo nos levaram para tão longe que Pindamonhangaba se tornou perto. Não posso deixar de agradecer à minha querida irmã, Maura: mulher muito forte e muito especial, com quem aprendo constantemente. Principalmente porque temos formas muito diferentes de enfrentar as coisas desse mundão véio e sem portêra. Espero continuar aprendendo contigo. Vamos continuar nos esforçando para deixar um mundo melhor do que recebemos e honrar a luta de quem veio antes. Também é verdade que já foi muito pior. Obrigado, Pi, por ser um exemplo para mim.

Desde a infância, carrego importantes e queridos amigos. Como era de se esperar, muito nos afastamos, por motivos diversos. Muitas vezes entre nós se abriu um profundo abismo de valores e de visões de mundo. Mas vocês também estão aqui, de vários modos e por isso eu agradeço: Felipe Pavani, Bruno Biazotto, Rafael Pereira, Rachel de Pieri... Ainda carrego alguns amigos da primeira infância comigo, e agradeço a eles por isso. Bruno Miranda, amigo a três gerações, espero que consiga encontrar seu caminho. Felipe Moreno, espero que seu ceticismo com relação a esse mundão continue sendo um bom guia e que você continue sendo doce, gentil e sagaz. Mesmo de longe, sua companhia ainda se faz muito presente no meu modo de pensar. Impossível mensurar sua importância para a minha vida e para o meu trabalho: valeu, meu caro. Você é um dos meus ídolos. Devo à minha mãe, mas principalmente à Tia Carmela a intransigência que me levou a prestar a contragosto o vestibulinho do Cotuca. A entrada na Unicamp é um dos maiores divisores de água da minha vida, inclusive acadêmica. À minha prima Luciana Barchesi e ao meu primo Bruno Barchesi preciso agradecer por terem pego na minha mão e facilitado o trampo que era sair de Mogi e enfrentar a babilônia campineira na qual vim a me meter. Vocês e a Carol abriram o caminho pra mim. [Foi legal, legal, legal, legal, legal]. Agradeço muito. Me traz muita alegria ver que cada um de vocês conseguiu descobrir o seu caminho, mas lamento que estejamos tão ausentes e que eu até hoje não tive a ocasião de ver o Bruno atuando. Espero resolver isso logo. No Cotuca, formei grande parte do meu modo de ser e dos meus valores. E fiz muitos amigos. Agradeço a todos eles, especialmente a Daniel “Grande” Jacomini Moreira da Silva, sem dúvida a pessoa responsável pela permanência e reprodução de nossa amizade. Agradeço aos companheiros do Panela ELD (Guilherme Fernandes, Will Tadokoro, André Valente, Daniel Rampazzo, Fernando Cocão Narita, Leandro Asnésio Zanvettor e Gabriel Pipa Carvalho), e do Refugo (Thiago Paixão, João Henrique Bodas do Canto Tito, Zé Eduardo Querido...). Dr. Hélio Arakawa, Paulo Farias, Eduardo “Tique” Ferraciolli: não teria chegado aqui sem vocês. Com Simon Sassá Sávio Santos, meu primeiro companheiro de casa, tenho duas dívidas grandes. Além da parceria que me ajudou muito a me adaptar à vida campineira, foi quem me apresentou ao sofista Robson

Gabioneta, grande pequeno amigo, que voltará à história mais tarde. Essa gente toda foi (e é) importante na minha vida para a reafirmação de um sentimento de coletividade e solidariedade. Espero que vocês consigam se achar no meio dessa zica toda. Foi muito engrandecedor estudar em um colégio em que fomos tratados como adultos desde os quinze anos de idade. Parte da pedagogia não-pedagógica que marcava alguns daqueles professores trago comigo em boa conta. Isso também cultiva a autonomia. Também foi ali que comecei – sem saber onde ia dar – um ciclo de 17 anos na Unicamp. Jamais esperava permanecer tanto, e é muito estranho chegar ao final. Foi fundamental conhecer o muitas vezes fascinante mundo das engenharias, que o dinheiro também está destruindo. Agradeço imensamente meus primeiros chefes, que me demitiram ainda estagiário. Eles tinham razão: aquilo não é para mim. Em termos estritamente acadêmicos, preciso ressaltar que foi ali no Cotuca, durante uma apresentação sobre o processo de terceirização do trabalho, na negligenciada disciplina “História”, sob a orientação do professor Edson, que eu escolhi a minha profissão. Naquele dia decidi ser professor, ainda que não soubesse do quê. Sou grato a todas as pessoas envolvidas por todo o caminho que me abriu ali, ainda que de forma aparentemente distorcida. Tenho certeza de que aqueles quatro anos estão aqui nessa tese. Na recusa do ambiente corporativo que seria o “caminho natural” a seguir depois do técnico em eletroeletrônica, e sem saber exatamente porque, “escolhi” traçar um percurso que chamam de transdisciplinar. Dentro das “Humanidades”. Munido de uma bolsa de estudos, frequentei uma faculdade “de elite”, que definitivamente não era para o meu bico, mas à qual devo muito da minha formação (palavra que não consigo desassociar de fôrma, mas que foi tantas vezes repetida ali, que julgo por bem mantê-la). Fiz amizades incríveis com gentes com as quais aprendo muito até hoje. Agradeço aos meus colegas Conrado Evangelista e Fabrizio Sardelli Panzini, meus companheiros de casa antes de Brill, Rodz, Zezão e – agregadamente – o jornalista André Bordim e o pesquisador Luís Carlos Monday. Junto com Fábio Aquino e Luis Renato Rua, Fabrízio e Conrado foram meu grupo de trabalho durante toda a graduação em Relações Internacionais. Aprendi muito com vocês. A Conrado devo ainda o nome pelo qual me tornei conhecido ali: Thiago, o Teimoso. Ou, simplesmente ToT. Foi uma observação

perspicaz a dele, ainda nos primeiros dias de convivência. Aceitei debom grado. Estou certo que não fosse a teimosia não estaria aqui. Agradeço também a Decinho Borsatto, Manuel Nigli e Fernanda Emerenciano. A Laura Mesquita Barbosa e Kelly Barrago, que me economizaram muito trabalho inútil. A Maria Fernanda Trigílio, que eu conheci ainda no primeiro dia e que se mostrou para mim uma grande referência de mulher corajosa e decidida que sabe correr atrás do que quer. A Érika Amusquivar, Patrícia Rinaldi, Alcides dos Reis Peron [amigo desde o “maternal”], companheirada de trabalho. Em especial, agradeço ao meu mestre, Thiago Mendes Borges. É para mim uma grande referência como professor. Ofereceu com muitos anos de antecedência uma chave que se mostrou fundamental para o formato deste trabalho, sem contar as diversas vezes em que menciono ao longo da tese. E ainda faltaram várias, por certo. Mestre, minha gratidão para contigo é muito maior que essa tese. São muitos os sentidos em que eu quero ser que nem você quando eu crescer. Muito te admiro. [E se não for pra falar de amor, nem me chama]. Um forte abraço e muito agradecimento a quem veio depois, em especial a Gabriela Murua, mina muito importante para mim, mesmo e talvez principalmente nas divergências [ali também se aprende, porque não?], a Lucas Page Pereira, meu “filho”, e a Pedro Costa Júnior, inefável e amado amigo. Não cabem aqui xs estudantes que marcaram meu debute como professor, mas destaco Daniel de Paula e Edson Leão Neto, meus primeiros orientandos de monografia: agradeço muito a vocês. Silvia Feola: muito te agradeço por ter participado dessa etapa. Entre a professorada, destaco desde pronto meu agradecimento para Eduardo Mariutti, o primeiro professor do primeiro dia, e que veio a se tornar meu orientador de monografia, mestrado e doutorado. Ao final de um longo ciclo de três subfases totalizando onze anos, estou certo de que foi uma excelente escolha ter pedido sua orientação. Lembro nitidamente quando me indicou que estudássemos juntos o tema do imperialismo, naquele momento ainda fora de moda, conforme explicarei adiante. Tenho certeza de que hoje nosso projeto de iniciação científica não teria sido recusado. [Como não poderia deixar de ser, se não tem bolsa, vai sem bolsa mesmo] As próximas páginas são apenas uma parte do resultado de onze anos de pesquisa e não me parece exagerado afirmar que sem a sua orientação não estariam aqui. Muito provavelmente eu ainda estaria pesquisando outras coisas menos “complexas” e menos “pretensiosas”. Nunca foi

a intenção “resolver o assunto”. O que me traz satisfação e alegria é saber que estamos abrindo caminhos de pesquisa pra quem vem depois. O trabalho sempre deve ser coletivo. Vida longa ao (GE)NII! Muito importantes também foram outros professores daquela instituição. Professor Silvio Rosa, presente na banca de monografia e doutorado, impossível medir sua contribuição e expressar meus agradecimentos. Professora Angelita Souza, que foi a primeira pessoa a me indicar que apresentasse meus trabalhos em congressos científicos. Professor José Luiz Niemeyer dos Santos Filho, com quem tomei o gosto da pesquisa. Professor Rodrigo Passos, hoje grande amigo, pessoa admirável e pesquisador da mais alta qualidade. Professora Carla Corte, mulher sensacional. Professores Carlos Toledo, Hernani Maia, Lício Raimundo, Zeca Ruas – dentre outrxs – muito agradecido por vocês terem ultrapassado as barreiras que costumam separar discentes e docentes. Fico contente de ter partilhado com vocês muito conhecimento e amizade. Ainda naquela instituição, não poderia deixar de mencionar verdadeiros mestres: gente que trabalha na limpeza, na manutenção, na portaria, na secretaria e na jardinagem. Ao “irmão” Roberto, que jamais deixará de ser para mim o grande exemplo de como a missão docente pode ajudar a transformar a vida das pessoas. E de como é gostoso participar disso. Sempre que o cansaço bate me lembro do seu sorriso e da sua gratidão [esta, para mim, um tanto exagerada: os méritos – sim, eles também existem, a despeito da meritocracia – são seus]. Quando me disse que havia pedido demissão e que trabalharia no hospital foi para mim como a renovação dos votos. Ser professor é uma coisa muito legal! Simbolizando toda a minha amizade com a rapaziada segregada desde o uniforme, por quem tenho um carinho muito especial e em quem me reconheço apesar das grandes diferenças, destaco uma pessoa fundamental para a minha formação e para a minha permanência ali, um grande amigo com quem muito aprendi e com quem desfrutei muito do meu tempo: Ginelsom “Fofo” Lima, muito agradecido. Ser teu amigo tornou a passagem bem mais agradável. Em paralelo – quando possível – a esse curso de Relações Internacionais, estava também na graduação de Ciências Sociais. Agradeço imensamente aos grandes mestres com os quais pude conviver ali. Em especial meus amigos Felipe Dittrich Ferreira e Marcos Vinícios Vieira, meus principais interlocutores dos assuntos “teóricos”. Nesses primeiros anos de Barão Geraldo, por imposição de diversas coisas, vivi pouco o IFCH.

Mas trago bons amigos: Benê e Beneti puxando a fila, com um doído e saudoso agradecimento a Rogério “Morcego”: valeu “molekote”. Findo o ciclo da “faculdade de elite”, pude me dedicar integralmente à Unicamp mais uma vez. Não tenho palavras para descrever os conhecimentos acadêmicos e as amizades que travei a partir dos quatro principais grupos políticos dos quais participei até hoje: Cantineiro/Miséria, Pagode do Souza, Associação Atlética Dona Zebra e Miguxos Futsal Clube, sem qualquer ordem de preferência. É conhecida a minha aversão por organizações. Cada uma com sua temporalidade, essas são aquelas que me trouxeram mais alegrias e menos aborrecimentos. Cada uma delas durou o tempo que tinha que durar, deixou os frutos que tinha que deixar, foi substituída por novas pessoas com novas idéias. Lição importante. Agradeço imensamente a essas gentes. Fernando “Souza” Pedrazzoli Filho, Raul Pinheiro, João da Silva (à época, João das Barragens), Batata sem Umbigo Dias, Ricardo Flóqui Normanha, Arthur Prado, Renan Justin Villela, Miguel Damha, Samuel Bussunda Silva Pereira, Lucas Lamonica, Rita de Cássia Barbosa, Fernando Mekaru, Hugo Ciavatta, Caio Moretto Ribeiro, André Lopes, Thiago Aoki, Patrique Bonduki, Gardenal e Pintadinha (in memorian), Thomaz Lenhador Fonseca, Potiguara Lima, Fabinho Zuca, Bruno “Banderas” Conti... Fábio Accardo de Freitas, João Gabriel Priolli e “Vitor Lalo” Canale: muito agradecido a vocês, meus irmãos queridos. Thiago Bueno, Carolina Santos Pinho e João Carlos Maestro Rocha, Eugênio O’Rosa Rodrigues, Richard Martins, Marcus Leijoto, Yan Caramel, Newton Monteiro, Matheus Porpeta Youssef Chabchoul, Danilo Negreti, Nil Sena, Rafael Abdalla, Diego Cajuru e Leon Scoca, Rafael Valotta Rodrigues, Aline Ferragutti, Paulinha Saes, Lauren, Renan Guga Paiva Chaves, Marcelinho, Joseane Carina, Laura Fraccaro, Dan Martins, Daniel Doni Bueno, Franco Villalta, Alê Araújo, Djalma Braz, Edna Pimenta, Rodrigo Eisinger, Ronaldo Gomes, André Capa Grilo, Murilo Antunes, valeu, gente amiga (inclusive os que eu esqueci de citar nominalmente). Agradeço às pessoas amigas que me deram um teto na Moradia. Saudosa P12; Juliano Martoni, Fernando Roberti da Silva, Felipe Jiló, Marcelo Costa, Ricardo Damião Ikier, César Queiroz e a infinita Rafaell Batata Cavaglhyery. Incontáveis idéias dessa tese foram trocadas nessa casa e seus arredores.

Os caminhos da vida, o convite do professor Mariutti me levaram a cursar a pósgraduação no Instituto de Economia. Foi estranho. Era um Instituto frio e opressivo, em que implicavam até mesmo com a minha bermuda – para não falar na minha alergia por camisas. Devo a Pedro Biffi a minha adaptação. Meu amigo querido – a quem dedico esta tese – foi quem me disse, certa vez, que devemos “fazer nosso ambiente”. Essa reflexão eu levo pra sempre. Foi o que me fez persistir ali naquele ambiente até então hostil, com o qual tenho hoje uma relação de afeto, inclusive pelas transformações pelas quais passamos – eu e o Instituto. Faço votos de que a herança autoritária que ainda pesa ali seja extirpada definitivamente: não é possível conciliar autoritarismo e pensamento crítico. Devo a Armando Funari, Andrej Slivnik, Theo Martins e André Calixtre (além da rapaziada do futsal) a sobrevivência nos meus primeiros anos no mestrado. Agradeço também aos meus colegas de turma José Tadeu Tim Almeida, Gustavo Cavarsan, Luciana Portilho, Denis Montagner e Daniel “Brasil” Feldman [já então no doutorado] e ao meu querido parceiro Julierme Felix Tosta (de quem sinto muitas saudades). E também devo expressar minha gratidão imensa a Daniel Costa, amigo de infância e de adulteza, grande economista e sujeito incrível. Devo a Lucas Corazza muito. Foi um isopor com cervejas geladas, uma bola, uns churrascos no bosque e sua amizade que viraram o jogo e geraram uma porção imensa de transformações naquele ambiente. Conhecimentos, amizades, estudos, festa. Sem fronteiras. Em uma palavra de seu agrado: vivência. Valeu, Lucas, é o responsável por isso! Ali nasceram e cresceram muitas amizades: Fábio Pádua dos Santos (muito agradecido, meu nobre, inclusive por estar presente mesmo na ausência), Leo LDN Nunes, Lucas Andrietta (parceiro constante, piadista incansável que deixa o labutar menos pesado e deixou minha tese mais colorida), Roberto Simiqueli, Vitor Burkvar, Thomas Conti, Rafael Silva, Victor Young, Gustavo Zullo, Eduardo Dudu Rao, e Douglinhas Maciel. Preciso de um parágrafo à parte para o meu bom Ulisses [academicamente, SILVA, Ulisses Rubio Urbano da]. Não sei precisar quando ele chegou, mas sei dizer quando nossa amizade foi estreitada: quando eu precisava muito. Conheço e conto com muitas pessoas generosas em meu extenso círculo de amigos. Mas Ulisses tem um lugar especial entre elas. Foi fundamental poder contar com a sua gentileza, presteza, críticas, favores vários... Nos momentos finais da tese – e nos momentos iniciais da minha

terceira revolução na paternidade – foi meu amigo mais presente. Aguentando os desabafos, os choramingos e o mau-humor. Me incentivando muito. Trazendo pão, lavando a louça, puxando a orelha. Cuidando de mim e da minha família... e ainda pensando que incomoda[!!!]. O extremo oposto do homônimo prototípico que nomeia essa tese. Meu bom Ulisses: muito agradecido, sua amizade é fundamental. Agradeço também a quem veio depois, gente por quem tenho muito carinho e especial afeição: à poeta Marina B. Laurentiis; a Bruno Rampone, Caio Momesso, Carlos Iramina, Bruno H. Silva, Mika, Robson de Oliveira, Tom, Ricardo, Codorna, Ana, Mayara Pantaleão, Jéssica Dalcol, Niel Silva, Eduardo Djanikian e diversas outras gentes. Algumas dessas pessoas participaram de um projeto pelo qual tenho grande admiração: o EJA. Vocês me ensinaram muitas coisas e me fizeram ver a pedagogia com novos olhos. Mesmo longe das suas atividades imediatas, a convivência com vocês muito me engrandece. Devo um agradecimento especial às pessoas que participam do GENII, lugar ímpar de formação acadêmica e pessoal. E mais uma vez devo expressar os agradecimentos a trabalhadoras e trabalhadores do IE: Alexandra, Mirian e Cleyton, Fátima, Andréa, Marinete, Regina, Elaine, Luiz “Sassá” Eduardo, Régis e toda a rapaziada gente fina da manutenção. Murilão, meu querido: valeu a força, valeu a torcida! Sou muito grato. Foram incontáveis as vezes em que essas pessoas participaram ativamente da minha vida nos oito anos da pós-graduação e por diversas vezes tornaram a vida acadêmica menos sisuda e menos trabalhosa. Entre o professorado, destaco minha gratidão a Lígia Osório Silva, pessoa incrível, que me marcou profundamente pela erudição, correção, crítica e gentileza. Uma professora como um dia eu gostaria de ser. Agradeço ao professor José Ricardo por suas aulas heterodoxas e eruditas. Agradeço aos professores Marcelo Proni e Fernando Macedo pela supervisão em meus estágios, bem como às professoras Ana Rosa e Simone de Deos, que foram as coordenadoras de graduação com as quais trabalhei. Não posso deixar de expressar minha gratidão com os professores Fabio Campos e Carlos Cordovano Vieira que participaram da minha qualificação e banca de doutorado. Suas sugestões, discordâncias e inquietações reverberarão por muito tempo. Muito agradecido estou à professora Isabel Loureiro, pessoa muito especial, que admirava de longe e tive a satisfação de conhecer na banca de doutoramento.

Ao fechamento do meu ciclo na Unicamp – que começou em uma quinta-feira chuvosa e inesquecível no ano da graça de 1999 – ainda considero que a frase que melhor expressa minha experiência aqui é aquele pixo que tiraram do muro do Cotuca: “Entrei, sofri, sobrevivi”. Essa frase original – afora a piada – é muito triste, e verdadeira. Acho que minha vida na Unicamp, motivada por muito futsal e muito pagode, foi muito mais alegre do que ela expressa. Mas não me parece possível não ser melancólico em uma despedida. Já ouvi muitas vezes que a Unicamp é uma “mãe” ou a “terra do nunca”. Pra mim as relações que tive durante esses nem tão curtos 17 anos não cabem nesse simplismo. Encontrei boas pessoas. Outras nem tanto. Agora que chegou a hora em que meu caminho aqui acabou, é estranho. Não foi fácil. E por outro lado foi fácil. Não tenho nem como listar as pessoas às quais devo agradecer por ainda estar aqui mais ou menos em pé. Pessoas que me deram um afago, um apoio, um teto, uma grana. Fabio Accardo de Freitas, meu querido: sem palavras. Leandro Ramos Pereira: “irmão de alma” e “ex-marido”; parceiro de futebol, de samba, de estudos, que me deu um teto e muito mais que isso quando eu precisei. Rapha Armando, meu irmão querido: como poderia agradecer a tudo? Robson Gabioneta, sofista, amigo de todas as horas: valeu, hominho! Obrigado a todos vocês [que sabem bem o quanto eu evito essa palavra]. Quando a gira gira, sempre tem pessoas por perto. A gente deixa e recebe um tanto e vamo que vamo. Agradeço imensamente a Marina Machado Barbosa do Nascimento. Minha companheira por muitos desses passos. Espero que tenhamos a sabedoria de continuar re-significando a nossa relação para muito além das nossas divergências e saibamos trilhar um caminho de paz, amizade e respeito que propicie às nossas pequenas um ambiente de carinho e afeto. Acho que temos conseguido, apesar de nossos muitos erros. Te admiro por muitas coisas, mas preciso agradecer por você ser uma referência de mulher para nossas filhas. Gosto muito de você. Agradeço à Marcia, Lia, Carol, Júlia e Bia. Agradeço à Eliete e Tom Zé, minha sogra e meu sogro – e muito mais que isso. Sem sua confiança, seu suporte, e os incontáveis apoios que vocês têm nos dado, nada

disso seria possível. O pouco da sanidade que me resta ao final dessa cansativa jornada, devo também a vocês. À Thayana, minha companheira, parceira querida, que tem caminhado comigo nesses últimos anos: meus mais sinceros agradecimentos. Preciso mencionar a força que me dá todos os dias em nossa vida conjunta, mas o que eu gostaria mesmo de agradecer é por ter tido a coragem de ter ficado ao meu lado e me trazido de volta possibilidades de vida que eu julgava não mais poder experimentar. Passamos, em um momento que para mim era crucial, por uma experiência inacreditável naquela UTI neonatal. Foi uma zica do pântano. Mas sobrevivemos. Mais fortes, mais unidos, mais maduros. Espero que vivamos ainda muitos e muitos anos juntos para podermos seguir aprendendo a cada dia como ser uma família mais delícia. Te admiro muito. Você é uma mulher incrível. Agradeço muito a quem – em sua esmagadora maioria mulheres – trabalha no CAISM. Devo a vocês a vida de duas das pessoas mais importantes da minha vida. Não é possível expressar minha gratidão. E agradeço a nosso “anjo da guarda”, André Rangel, pessoa decisiva, amigo leal com quem podemos contar em todos os momentos. Obrigado por tudo. Por fim, seguindo aquela mesma tradição que fazemos questão de respeitar, devo – e quero – agradecer a quem vem depois: às maiores alegrias que a vida me deu, minhas filhas amadas Luiza, Isabel e Clara. Minha maior fonte de aprendizado, minhas experiências mais importantes e profundas. Não há nada que se compare a um abraço e um beijo de vocês. Vocês são a alegria da minha vida. Espero a cada dia aprender mais com vocês a como ser um pai e espero que tenhamos a sabedoria de nos tornarmos a cada dia mais amigos. O mundo que a minha geração deixa para vocês, com todas as significativas melhoras que não convém que esqueçamos, é bem bosta. Mas eu tenho fé de que a geração de vocês vai nos ensinar a viver de um modo melhor. É o que vocês me ensinam sempre. E a vocês eu agradeço muito. Muito mesmo. Amo vocês muito mais do que consigo dizer.

Certo dia, quando as pessoas ainda se sentavam à mesa para tomar café e conversar, ouvi de minha Vó Carmem uma máxima que deu a tônica dessa tese. Ela estava, como de costume, em pé, nos servindo, quando vinha dizendo aquelas frases que saem da nossa boca sem pensar: “No meu tempo é que era bom...e...”. Me lembro como fosse hoje da sua cara de espanto e do seu sorriso quando parou de despejar o café antes de terminar a xícara e soltou uma gargalhada: “Era melhor nada. Muitas coisas eram uma porcaria. A gente tem que parar com essas manias de velho... Muita coisa melhorou”. Autocrítica, não é pra qualquer um. Valeu, vó Carmem. [sei que vou morrer, não sei a hora. deixarei saudades.] Em uma tese que tem por fundamento anotar que pertencemos ao tempo dela, é importante que saibamos que muito se perdeu, mas não podemos deixar de notar que, aos solavancos, um número grande de lutas se fazem presentes em nossas vidas. Não temos espaço para idealizações. Nem do ontem nem do hoje. Como disse certa vez o poetinha em momento de particular grandeza: “O Amanhã não quer ver ninguém bem. Hoje é que é o dia do presente. E hoje é sábado”. À benção aos meus mestres e às minhas mestras do samba, do pagode e das outras coisas importantes da vida, saravá!

Este é o samba do crioulo doido: a história de um compositor que durante muitos anos obedeceu o regulamento, e só fez samba sobre a história do Brasil. E tome de incofidência, abolição, proclamação, Chica da Silva, e o coitado do crioulo tendo que aprender tudo isso para o enredo da escola. Até que no ano passado escolheram um tema complicado: a atual conjuntura. Aí o crioulo endoidou de vez, e saiu este samba:

(Stanislaw Ponte e/ou Sérgio Porto)

Preta

Publicadas originalmente no volume 4 da extinta porque independente Revista Miséria. Disponível online em http://tirasdamiseria.blogspot.com.br/2011/06/cirroses-bar.html

Resumo Neste trabalho, procuramos defender a tese de que a historiografia contemporânea [a partir de 2002] sobre o imperialismo [ainda?] não foi capaz de estabelecer de maneira inequívoca as especificidades do tempo histórico que se esforça por demarcar, o que se manifesta principalmente nas dificuldades em demonstrar em quê exatamente as assim chamadas “teorias clássicas do imperialismo” não dariam conta das explicações das características fundamentais das relações sociais em nossos dias. A partir da constatação de que os conceitos fundamentais das “teorias clássicas” – a despeito de quaisquer mudanças que ocorreram nos cem anos que nos separam daquelas formulações – continuam válidos, nosso exame sobre essas teses contemporâneas assumiu a hipótese de que – em alguma medida, a ser explicada – ainda vivemos naquela mesma temporalidade. A tese se divide em seis movimentos. Na primeira parte, procuramos tecer comentários sobre o que constitui a Ordem do Imperialismo Capitalista. Na segunda parte, avaliamos uma hipótese bastante trabalhada contemporaneamente sobre o suposto sumiço do conceito “imperialismo” durante o século XX (a partir da hipótese levantada por Prabhat Patnaik). Em seguida, na terceira parte, procuramos apresentar e refutar duas das principais críticas contemporâneas às teses clássicas (o suposto fim das rivalidades entre as potências e o suposto “economicismo”). Na quarta parte, por sua vez, procuramos avaliar o que julgamos as principais tentativas de delimitar as especificidades do imperialismo contemporâneo (Ellen Meikisins Wood e David Harvey) e na quinta procuramos apresentar pontos das assim chamadas “teses clássicas” que nos parecem reafirmar particularmente bem a atualidade daqueles escritos (nos trabalhos de Rosa Luxemburg e Rudolf Hilferding). Por fim, na sexta parte, procuramos apreciar uma tentativa de periodizar as supostas novidades do nosso tempo presente (o capitalimperialismo de Virgínia Fontes). Em todas elas, procuramos recorrer ao máximo de citações que conseguimos na tentativa de demonstrar os avanços e limites dessa historiografia sobre o imperialismo que temos por objetivo apreciar. Palavras-chave: Imperialismo; Capitalismo; Relações Internacionais; História Econômica

Abstract In this paper, we try to demonstrate that contemporary historiography [from 2002] on imperialism [yet?] failed to establish unequivocally the specifics of historical time that strives to demarcate, which is mainly manifested in difficulty in demonstrating what exactly the so-called "classical theories of imperialism" would not give account of the explanations of the fundamental characteristics of social relations today. From the realization that the fundamental concepts of "classical theories" - despite any changes that have occurred in the hundred years that separate us from those formulations - are still valid, our examination of these contemporary theories assumed the hypothesis that - to some extent, to be explained – we still live in that same temporality. The thesis is divided into six movements. In the first part, we seek comment on what is the Order of the Capitalist Imperialism. In the second part, we evaluate a hypothesis quite worked contemporaneously on the alleged disappearance of the concept "imperialism" during the twentieth century (from the hypothesis raised by Prabhat Patnaik). Then in the third part, we try to present and refute two of the main criticisms contemporary to classic thesis (the supposed end of the rivalries between the powers and the alleged "economism"). In the fourth part, in turn, we try to evaluate what we consider the main attempts to define the specifics of contemporary imperialism (Ellen Meikisins Wood and David Harvey) and fifth try to present points of so-called "classical theories" that seem to reaffirm particularly well the relevance of those writings (in the works of Rosa Luxemburg and Rudolf Hilferding). Finally, in the sixth part, we seek to appreciate an attempt to periodize the alleged news from our present time (the capital-imperialism Virginia Fontes). In all of them, we seek recourse to a maximum of quotes we can in an attempt to demonstrate the progress and limits of historiography of imperialism that we aim to appreciate. Keywords: Imperialism, Capitalism, International Relations, Economic History.

Sobre a pesquisa que nos conduziu à formulação da idéia central

“Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar” (Paulinho Hermínio Carvalho)

da Viola e Bello de

Nossa hipótese foi construída a partir de leituras sobre as possibilidades de interpretação dos nossos dias pelas categorias de um Imperialismo supostamente novo. Segundo parte dos argumentos que defendem essa idéia, o período do Imperialismo stricto sensu [o imperialismo “clássico”] teria terminado no mais tardar com o fim da Segunda Grande Guerra, quando teria sido inaugurada uma nova fase do capitalismo, marcada pelo pacto social, pela capacidade de o Estado controlar as finanças e pela Guerra Fria. Diante disso – ainda de acordo com essa visão – as “teorias clássicas do Imperialismo” teriam “envelhecido” e perdido o seu poder explicativo. Outra parte desses argumentos defende – de uma maneira que nos parece ainda mais problemática – que foi exatamente porque as relações internacionais se tornaram inequivocamente imperialistas que o conceito imperialismo teria sido deixado para segundo plano. Uma vez que a maior parte dessas visões – de ambas as partes – se baseia em trabalhos predominantemente empíricos, se aceitarmos a hipótese de que o conceito imperialismo perdeu espaço ao longo do século XX, nos parece provável que aquelas teorias que versavam sobre ele teriam sido relegadas a uma curiosidade da história do marxismo que, na melhor das hipóteses, poderia servir para estudos históricos sobre o período ao qual se dedicaram – principalmente o tempo que separa a crise de 1870 e a guerra de 1914. No entanto, independentemente de aceitarmos essa hipótese, isso não ocorreu. Pelo contrário, acompanhamos pelo menos desde 11 de setembro de 2001 – e para sermos mais rigorosos, desde a publicação da Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos [em setembro de 2002] – a um aumento exponencial de trabalhos explicitamente voltados à análise do imperialismo. Mas da mesma maneira como ocorreu nos tempos “clássicos”, esse “resgate” das discussões sobre o “imperialismo”, não surgiu das posições anti-imperialistas [marxistas ou não], mas foram motivadas pelo fato de que sob o governo de George Bush II apareceram inúmeras declarações ”para-

oficiais” que surpreenderam a intelligentsia mundial ao reivindicar e assumir o Império. Neste contexto, não nos parece inusitado que a reação dos discursos anti-imperialistas tenha sido trazer novamente à baila as teorias clássicas sobre o imperialismo, bem como extensos debates sobre o que teria gerado o “eclipse” e o “retorno” do tema. Sob nosso ponto de vista, a apreciação do debate sobre as especificidades do “novo” imperialismo, entretanto, exigia que adotássemos uma entre duas hipóteses de leitura: 1) ou as categorias das “teorias clássicas” serviriam para explicar tanto o imperialismo do começo do século XX quanto o do começo do século XXI (o “novo” imperialismo), mas não o(s) período(s) situado(s) cronologicamente entre um e outro; ou 2) as categorias serviriam para explicar todo o intervalo temporal entre 1870 e os nossos dias – e nesse caso cumpriria demonstrar em quais condições se sustentam as hipóteses contrárias. Paralemamente a isso nos pareceu pertinente discutir quais foram as condições em que o imperialismo teria sumido, ou, melhor dizendo, quais foram as visões sobre o capitalismo que sustentaram a idéia de que ele não serviria para explicar o período do pós-Guerra. Como ambos os movimentos para nós se mostraram frutos de uma mesma raiz, nos cumpre investigar o que aconteceu ao longo desse período que produziu essas interpretações, ou seja: porque o imperialismo do pós-guerra é por vezes interpretado como menos imperialista que o imperialismo dos dois extremos do século. O ponto de partida de nossas pesquisas foram os trabalhos contemporâneos. De imediato, verificamos que grande parte dessa historiografia concorda que diversos aspectos das “teorias clássicas” se mantêm atuais e, assim, procuramos identificar quais são esses aspectos. Em seguida, ainda examinando a historiografia atual, notamos que quase toda ela, apesar de identificar certa atualidade das teses “clássicas”, defende o argumento de que elas não serviriam – ao menos sem substantivas reformulações – para explicar a contemporaneidade. E aqui identificamos o que pensamos ser o problema teórico mais importante dessa historiografia atual: uma enorme dificuldade em apresentar de modo satisfatório em quê, exatamente, aquelas categorias estariam ultrapassadas. Do contrário, quando procuram apresentar o que seriam as “novidades” ou as “especificidades” do tempo presente, em geral xs contemporânexs recorrem a idéias como a “intensificação”, o “aprofundamento” ou até mesmo o “retorno” dos mesmos caracteres que levaram “os clássicos” e a clássica a elaborarem o conceito “imperialismo”.

Sendo assim, nos parece que o problema pelo qual o imperialismo do meio do século foi interpretado como menos imperialista tem nada que ver com os conceitos “clássicos”, mas, sim, com a apropriação seletiva que a historiografia contemporânea faz deles. Sendo assim, voltando às “teorias clássicas”, optamos por assumir a hipótese segundo a qual estas são adequadas para entender, inclusive, a segunda metade do século XX. É uma idéia que pretendemos demonstrar nesta tese. Para o texto que apresentamos na sequência, escolhemos uma estrutura de apresentação que nos pareceu mais adequada do que a que utilizamos em nossas pesquisas. Em particular nos pareceu importante refutar uma hipótese de leitura sobre o século XX que julgamos um grande empecilho para a concepção de formas de vida radicalmente anticapitalistas. Segundo essa visão, supostamente ao período do imperialismo “clássico” (1870-1947) teria sucedido um momento de paz e bonança (1947-1973), marcado pelos pactos sociais que teriam engendrado os tais “Anos Dourados” do capitalismo – que ainda para essa visão, deveriam ser os marcos das lutas contemporâneas contra os efeitos “mais perversos” do capitalismo. Sob nosso ponto de vista, essa leitura é uma cilada. Primeiro, porque essa ordem do “bem-estar social”, ao contrário do que diz a propaganda rasteira, não foi tão “dourada” assim. Para a esmagadora maioria da população – inclusive no centro – foi uma ordem opressiva e excludente. Em segundo lugar, o palavrório que lamenta o fim dessa “época de ouro” não parece se dar conta de que as condições sobre as quais ela se

estabeleceu não existem mais. Imaginar que seja possível retornar a ela é “tão plausível quanto devolver a pasta de dente ao tubo2”.

2Joaquim

Ernesto Palhares, Diretor Geral de Carta Maior, setembro de 2014, no prefácio de A Internacional do Capital Financeiro, Palhares (org.). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. Este livro nos parece bastante ilustrativo da esquizofrenia desse palavrório. Lançado às vésperas do segundo turno da “polarizada” eleição presidencial de 2014 como uma propaganda do governo Dilma – então candidata à reeleição – reúne um conjunto extenso de petistas e/ou simpatizantes que vociferam contra o mal do “neoliberalismo” – que o governo hoje reeleito está levando ao paroxismo. Entretanto, a despeito de a maior parte dxs autorxs em algum momento dos respectivos textos atestar a impossibilidade de voltar à ordem “dourada” esta nunca deixa de ser a perspectiva de cada umx delxs, que sempre acabam por negar qualquer alternativa menos comprometida com a reprodução do capital. Para ficarmos em um paradigmático exemplo, a epígrafe do livro – que precede o prefácio no qual Palhares afirma que não se deve tentar colocar a pasta de dente de volta ao tubo! – afirma que “O capitalismo financeiro é economicamente improdutivo (não cria riqueza de verdade), socialmente parasitário (vive das receitas produzidas por outros setores da economia) e politicamente antidemocrático (restringe a distribuição da riqueza, cria desigualdades imensas e luta por privilégios).” Como diria a sabedoria popular: “Até aí tudo bem”. Mas é exatamente por não perceber que essas são as características intrínsecas e inescapáveis do capital (e não de uma suposta modalidade neoliberal pós-1970) que é possível continuar argumentando que “(Os Bancos) 'deveriam voltar a fazer o que faziam quando foram criados: oferecer um local seguro para as poupanças e capital a negócios que pretendem se desenvolver'.” C.J. Plychroniou, Truthout. Santa Ingenuidade, Batman!. Como pretendemos argumentar, essas interpretações, por mais bem-intencionadas que sejam, na prática fazem coro com o (liberal!) John A. Hobson e ignoram um século de conhecimento sobre o imperialismo capitalista [cuja razão de ser sempre foi a de desvelar as teias que ligam as formas mais aparentes com as contradições essenciais do capital]. Considerando as profundas articulações em voga desde o longo prazo, não nos espanta que – a despeito da chantagem eleitoral “antineoliberal” – o governo do Partido dos Trabalhadores (sic) se empenhe com tanta ênfase na promoção da agenda imperialista do capital: por hora “neoliberal”, noutra “desenvolvimentista” e assim sucessivamente; até que a morte as separe.

Sobre a Odisséia do Capital Sumário Agradecimentos .............................................................................................................................................. ix Resumo ........................................................................................................................................................ xxvii Abstract.......................................................................................................................................................... xxix Sobre a pesquisa que nos conduziu à formulação da idéia central ........................................ xxxi Parte I – Alguns comentários iniciais sobre a ordem do Imperialismo Capitalista .............. 1 Capítulo 1. Sobre a ordem e o Imperialismo Capitalista ...................................................................................................3 1.1 Sobre a ordem em geral ........................................................................................................................................................3 1.2 Sobre as fissuras da ordem em sua forma atual .........................................................................................................9 1.3 Sobre a ordem do Imperialismo Capitalista .............................................................................................................. 13 1.4 Sobre a seletividade da violência e a ideologia imperialista ............................................................................. 23 Capítulo 2. Sobre a periodização do Imperialismo Capitalista ..................................................................................... 37 2.1 Sobre as temporalidades em geral ................................................................................................................................ 37 2.2 Sobre a periodização do Imperialismo Capitalista como um todo ................................................................. 41 2.3 Sobre a Odisséia do Capital .............................................................................................................................................. 56 2.4 Sobre as tarefas da nossa geração................................................................................................................................. 62

Parte II – Podemos considerar o mundo contemporâneo imperialista? – Alguns comentários historiográficos sobre o “sumiço” e o “retorno” do conceito Imperialismo. 69 Capítulo 3. A hipótese do “sumiço” e “retorno” ................................................................................................................... 71 3.1 A “imposição” do tema ....................................................................................................................................................... 78 3.1.1 A Estratégia de Segurança Nacional de 2002 .................................................................................................. 78 3.1.2 Os panfletos yankees: a campanha em favor do Império que “impôs” o debate .............................. 83 Capítulo 4. Considerações sobre as bases que sustentam a hipótese do “sumiço” e “retorno” ..................... 89 4.1 A “mudança” na política externa estadunidense sob Bush II ............................................................................ 89 4.1.1 Entre “neoliberais” e “neoconservadores” ....................................................................................................... 91 4.2 “Globalização” e/ou Imperialismo ............................................................................................................................. 107 4.2.1 A contenda da (revista) Crítica Marxista ........................................................................................................ 108 4.3 Sobre a periodização de diferentes momentos do Imperialismo Capitalista ......................................... 124 4.4 Sobre a “traição das elites” e as (im)possibilidades de um “novo 'New Deal'” ...................................... 137

Parte III – O que há de ‘novo’ no ‘Novo Imperialismo’? – Alguns comentários historiográficos sobre as críticas contemporâneas às “teorias clássicas” ........................... 151 Capítulo 5. Mudanças na dinâmica da rivalidade entre as potências imperialistas ......................................... 159 5.1 Rivalidade entre as potências hoje ............................................................................................................................ 162 5.2 Comentários sobre a centralidade da rivalidade intercapitalista para o debate do Imperialismo183 Capítulo 6. O suposto economicismo nas teorias clássicas do Imperialismo ...................................................... 193 6.1 O “discreto charme” da ciência burguesa: economicismo, juridicismo e outros ismos ..................... 200 6.1.1 A crítica de Karl Polanyi à falácia economicista .......................................................................................... 200 6.1.2 A origem da controvérsia sobre o “economicismo” do marxismo “como um todo” ................... 211

6.1.3 Algumas lições do debate sobre a “transição socialista” e a experiência histórica da U.R.S.S.221 6.2 O fetichismo dos juristas ................................................................................................................................................ 228 6.2.1 O socialismo jurídico, de Friedrich Engels e Karl Kautsky ..................................................................... 233 6.3 O fetichismo dos economistas ..................................................................................................................................... 252 6.4 A importância da totalidade para o materialismo histórico ........................................................................... 261

Parte IV – O que há de específico no Capitalismo Contemporâneo? Alguns comentários historiográficos sobre os principais avanços do debate contemporâneo sobre o imperialismo dos nossos dias ............................................................................................................... 269 Capítulo 7. Alguns comentários sobre a especificidade do Imperialismo Capitalista na interpretação de Ellen Meiksins Wood .................................................................................................................................................................... 271 7.1 Os primórdios do Império do Capital: Império Britânico e a origem (agrária) do capitalismo..... 280 7.2 Uma “nova fase” do Império do Capital: Império Estadunidense ................................................................ 300 7.2.1 Imperativos “puramente ‘econômicos’” que dependem a cada dia mais dos imperativos “extraeconômicos” ............................................................................................................................................................... 306 7.2.2 A distinção do capitalismo a partir da separação do “econômico” e do “político” ...................... 320 Capítulo 8. Alguns comentários sobre a especificidade do “Novo Imperialismo Capitalista” na interpretação de David Harvey ................................................................................................................................................ 333 8.1 “Opressão via capital” ...................................................................................................................................................... 344 8.2 “Acumulação via espoliação” ........................................................................................................................................ 349 8.2.1 Resistências, lutas e as diferenças entre “acumulação primitiva” e “acumulação via espoliação” ...................................................................................................................................................................................................... 363 8.3 Imperialismo como acumulação por espoliação: é novo o novo imperialismo? ................................... 376

Parte V – A “teoria clássica sobre o imperialismo capitalista” caducou? – Alguns comentários historiográficos sobre teorias “clássicas” .............................................................. 387 Capítulo 9. Alguns comentários sobre as interpretações de Rosa Luxemburg sobre o Imperialismo ..... 391 9.1 As primeiras percepções sobre a importância do tema imperialismo ...................................................... 398 9.2 Imperialismo em A acumulação do capital ............................................................................................................ 417 9.3 Reprodução social total em A acumulação do capital ....................................................................................... 424 9.4 Anticrítica .............................................................................................................................................................................. 440 Capítulo 10. Alguns comentários sobre a interpretação de Rudolf Hilferding sobre o Imperialismo ..... 461 10.1 O capital financeiro enquanto síntese das formas parciais do capital ..................................................... 465 10.2 O Estado e as Lutas de Classes em O Capital Financeiro ................................................................................ 469 10.3 O Estado na hegemonia do capital financeiro e no fetichismo do direito burguês ........................... 495 10.4 Alguns comentários sobre o capital financeiro e a propriedade privada capitalista ....................... 502

Parte VI – Considerações sobre a periodização do Imperialismo Capitalista: o “novo” imperialismo e o imperialismo velho de guerra ............................................................................ 517 Capítulo 11. Alguns comentários sobre a periodização de Virgínia Fontes sobre o (capital)imperialismo ................................................................................................................................................................................................................ 519

Parte VII. Mais alguns comentários a título de considerações finais ..................................... 531 Referências ................................................................................................................................................... 535

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Parte I – Alguns comentários iniciais sobre a ordem do Imperialismo Capitalista

“Porque que é que ninguém mete o grampo, num pulso daquele de colarinho branco, roubou jóia e o ouro da Serra Pelada, somente o doutor é que não sabe de nada” (G. Martins e Naval)

“Sambista de rua morre sem glória” (Geraldo Filme)

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Capítulo 1. Sobre a ordem e o Imperialismo Capitalista “Se Deus desse asa à cobra, o mundo não estava perdido, carroça andava na frente e o burro atrás escondido. [...] Carroceiro puxava carroça e na frente do burro ele vinha, a cozinheira ia pra sala e a madame pra cozinha, servente seria chefe, soldado seria tenente, chefe ia trabalhar lá na vaga do servente, se Deus desse asa a cobra, Meu Deus como ia morrer gente. [...] Ai eu queria ver o que iam fazer os ladrões de gravata, quando vissem a coisa preta, porque quem não sabe rezar, não faz trato com o capeta, eles estão me entendendo pra quem sabe ler um pingo é letra” (Cosme da Viola e Darci do Pandeiro)

1.1 Sobre a ordem em geral Assume-se como verdade – corroborada – entre muitos outros – por um iconoclasta filósofo europeu – que “os homens” são dotados, quase que por coisas da sua própria natureza, de certo instinto de obediência que, traduzido para a sociedade, determina que todos os agrupamentos humanos organizados obedecem – porque precisam obedecer – a princípios hierárquicos mais ou menos rígidos em que o poder se confunde automaticamente com o comando. A título de precisão, disse que

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se é verdade que em todas as épocas, desde que os homens existem, houve também grupos humanos (associações sexuais, comunidades, tribos, nações, igrejas, estados) e sempre um grande número de homens obedecendo a um pequeno número de chefes; se, consequentemente, a obediência é aquilo que foi por mais tempo melhor exercido e cultivado entre os homens, temos o direito de presumir que em regra geral cada um de nós possui em si mesmo a necessidade inata de obedecer, como uma espécie de consciência formal que ordena: 'Farás isso sem discutir; privar-te-ás daquilo sem reclamar; em suma, é um 'tu farás'3.

É enorme o poder de sedução dessa verdade – que se assenta na percepção sobre o mundo em que vivemos e a “natural” extensão do que estamos vendo para a “eternidade” – o que não poderia ser operado senão a partir de um egocentrismo latente. Mas, olhando mais de perto, é igualmente impressionante o efeito que ela produz no que toca ao encobrimento da História, inteiramente cicatrizada por atos de rebeldias, rebeliões, insurreições e vandalismos, dificilmente explicáveis sob essa lei geral. Parece-nos, contudo, que essa verdade sobrevive, a despeito de incontáveis e contundentes refutações. Somente a título de exemplo, ficaremos com outro europeu iconoclasta, já este um antropólogo. Pierre Clastres. Encarnando o espírito dessa ciência moderna condenada a empreender a “revolução copernicana” contra o etnocentrismo4 que ela mesma outrora alimentou – Clastres refutou essa verdade com classe e fundamento empírico (!) “(em conformidade com os dados da Etnografia)” 5. Como fruto de uma embasada reflexão comparativa, afirma

3Nietzsche,

Frederich, citado por Pierre Clastres em Copérnico e os selvagens [1969], artigo que abre os trabalhos do fundamental A sociedade contra o Estado, pág. 7. (grifos do autor) 4P. 19. 5As seguintes citações de Clastres são do referido livro A sociedade contra o Estado, dos quais citamos aqui o primeiro (Copérnico e os selvagens, de 1969) e o último artigos (também chamado de A sociedade contra o Estado, de 1972). Todas as críticas que devem ser mantidas, mantidas; a Antropologia continua nos ensinando que nem tudo somos “nós” e que, muitas vezes, a despeito de “nossa” limitada maneira de ver o mundo, o impossível continua sendo tão possível quanto sempre o fora. Por outro lado, também cumpre que ressaltemos o fato de que, segundo Bento Prado Junior – amigo do autor, com quem chegou a passar compartilhar das férias em mais de uma ocasião – diferentemente de muitos de seus pares, Clastres nunca rejeitou a filosofia, de onde partiu e da qual esteve sempre hereticamente próximo. Para uma apreciação dessa discussão, sugerimos a apresentação de Bento para o Arqueologia da Violência – pesquisas de antropologia política, (páginas 7 a 25),

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que o poder político é universal, imanente ao social (quer o social seja determinado pelos ´laços de sangue' ou pelas classes sociais), mas que ele se realiza de dois modos principais: poder coercitivo e poder nãocoercitivo. [E, portanto] O poder político como coerção (ou como relação de comando-obediência) não é o modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente um caso particular, uma realização concreta do poder político em certas culturas, tal como a ocidental (mas ela não é a única, naturalmente).6

Desta maneira, ainda seguindo suas palavras, “não existe (…) nenhuma razão científica para privilegiar essa modalidade de poder a fim de fazer dela o ponto de referência e o princípio de explicação de outras modalidades diferentes” 7. Assim, ao contrário daquele citado filósofo – e de todo o senso comum [inclusive o acadêmico] – que busca na obediência uma espécie de generalização da “natureza do homem” e procura demonstrar que seria, portanto também natural o nosso estatuto de obediência contemporâneo, nosso amigo antropólogo, procurando olhá-las a partir de outras perspectivas, observa que aquelas sociedades “primitivas”, ao contrário do que se supunha, são caracterizadas não pela ausência de mecanismos de poder, mas na forte e organizada recusa a essa forma do poder, que advém do trabalho e do gosto pela acumulação8, por sua vez o fundamento das sociedades divididas entre dominantes e dominados9. Noutros termos, que antecipam uma discussão que se mostrará importante nesta tese: é por recusarem à economia10 que conseguem impedir o surgimento do Estado e da propriedade privada11 e manter uma sociedade que vive da igualdade de seus participantes. Em suas próprias palavras,

6P.

17, grifos do autor. 17. 8P. 137. 9P. 138. 10P. 139, grifos do autor. 11P. 142. 7P.

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nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da diferença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranho desejo de fazer, possuir, parecer mais que o seu vizinho. A capacidade, igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais e a troca de bens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado de bens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo, desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para o desejo de superabundância. As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas, o Estado é impossível12.

O que – insistimos – não significa que nessas sociedades não exista poder, ou qualquer tipo de liderança, mas que (...) o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar uma ordem. O chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço de chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal denominada) do 'chefe' não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral, [porque] (...) a sociedade primitiva nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota.13

Como curiosa ilustração, nosso amigo antropólogo reproduz as palavras de um chefe guerreiro de uma tribo abipone do Chaco argentino, o cacique Alaykin: Os abipones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a de seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por eles.14

O objetivo de nosso herético antropólogo parece ser o de provocar o senso comum e contrariar os consensos estabelecidos – e aos nossos olhos ele o faz com clareza e rigor. Não obstante sejam as “primitivas sociedades” empenhadas em fazer vigorar sua própria “ordem” 15, o que as caracteriza é – pela visão que acompanhamos – exatamente a solidez dos mecanismos que existem para impedir a emergência do que hoje e aqui entendemos por Estado. O Estado, “que em sua essência é unificado”



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interditado naquelas sociedades exatamente pelo seu caráter totalizante, uma vez que,

12P.

143. 143, grifos no original. Qualquer semelhança entre esses líderes reais e os hipotéticos servidores públicos dos contratualistas não nos parece mera coincidência. 14P. 145. A quem notar a total inversão dos pressupostos maquiavélicos que fundam a Ciência Política Moderna, novamente notamos que não nos parece haver coincidência alguma. 15P. 147. 16P. 148. 13P.

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para o sistema simbólico que ali vigora, a representação do Um é a própria representação do Mal17. Para quem já estiver especulando o que essa reflexão está fazendo na introdução de uma tese sobre o Imperialismo, não temos razão para esconder que estamos também aqui, nos referindo à crítica ao “monopólio” [poderíamos acrescentar, tanto a sua versão “política”, quanto sua versão “econômica”], fundamental para o raciocínio que iremos acompanhar mais de perto adiante18. Teremos a ocasião de voltar a comentar sobre essa (tentativa de) monopolização do poder que tribos indígenas chamavam de “Um”. A quem quiser seguir a pista: esse será um dos eixos condutores dessa tese, embora nem sempre isso possa parecer evidente @ leitorx pouco familiarizado com nossos assuntos, com quem gostaríamos de conversar neste exercício. Para finalizar nossa digressão introdutória, fechemos com a conclusão daqueles estudos de antropologia, que oferecem uma singela lição a todxs aquelxs que porventura ainda acreditem na inevitabilidade de que as coisas humanas tenham sido e sempre sejam conforme as conhecemos aqui e agora: 17P.

150. Noutro registro, Elias defende que “a sociedade do que hoje denominamos era moderna caracteriza-se, acima do tudo no Ocidente, por certo nível de monopolização. O livre emprego de armas militares é vedado ao indivíduo e reservado a uma autoridade central, qualquer que seja seu tipo, e de igual modo a tributação da propriedade ou renda das pessoas concentra-se em suas mãos. Os meios financeiros arrecadados pela autoridade sustentam-lhe o monopólio da força militar, o que, por seu lado, mantém o monopólio da tributação. Nenhum dos dois tem, em qualquer sentido, precedência sobre o outro, pois são dois lados do mesmo monopólio. Se uma desaparece, o outro o segue automaticamente, embora o governo monopolista possa ser, às vezes, abalado mais fortemente num lado do que no outro. [...] Apenas quando surge esse monopólio permanente da autoridade central, e o aparelho especializado para administração, é que esses domínios assumem o caráter de ‘Estados’ (vol. ii, páginas 97 e 98)”; para depois acrescentar que “quando falamos em ‘livre competição’ e ‘formação de monopólio’, em geral temos em mente fatos correntes: pensamos, em primeiro lugar, na ‘competição livre’ por vantagens ‘econômicas’, da qual participam pessoas ou grupos, dentro de um dado conjunto de regras, empregando-se o poder econômico, e no curso da qual alguns aumentam gradualmente seu controle sobre as vantagens econômicas, simultaneamente destruindo, submetendo ou restringindo a existência econômica dos demais. As lutas econômicas dos nossos dias, porém, não só culminam diante de nossos olhos, numa restrição constante à competição realmente ‘livre de monopólios’ e na lenta formação de estruturas monopolistas. Conforme já indicamos, tais lutas pressupõem a existência assegurada de certos monopólios muito desenvolvidos. Sem a organização monopolista da violência física e da tributação, limitada no presente às fronteiras nacionais, a restrição dessa luta por vantagens ‘econômicas’ ao emprego do poder ‘econômico’, bem como a observância de suas regras básicas, seriam impossíveis em qualquer época, mesmo em Estados isolados. Em outras palavras, as lutas econômicas e os monopólios dos tempos modernos ocupam seu lugar dentro de um contexto histórico mais amplo. E só em relação a esse contexto mais amplo é que nossas observações genéricas sobre o mecanismo da competição e do monopólio podem assumir todo o seu significado. Só se levarmos em conta a sociogênese dessas instituições monopolistas firmemente enraizadas do “Estado’ – que durante uma fase de expansão e diferenciação em grande escala abriu a ‘esfera econômica’ à competição individual irrestrita, e assim à formação dos monopólios privados –, só então poderemos distinguir mais claramente, em meio ao grande número de fatos históricos particulares, a interação dos mecanismos sociais, a estrutura organizada da formação desses monopólios. (vol. ii; páginas 106 e 107)”. 18

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(…) o que os selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes, é a recusa da unificação, é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm uma história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á com ao menos tanta verdade, a história de sua luta contra o Estado.19

Pensando em nosso trabalho, julgamos que as reflexões sobre como as coisas poderiam ser se não fossem como são – ou, o que é também uma implicação dessa afirmativa – como elas podem vir a ser diferentes, já fornece, pelo negativo, algumas pistas de por quais caminhos deve percorrer nossa busca por uma sociedade mais livre e mais igualitária. Mas, cumpre que nos indaguemos: por que, afinal de contas, continua sendo propagandeada aos quatro ventos aquela verdade segundo a qual o instinto de obediência é natural, de modo que se faça a “todos” convencidos de que “os homens” desejam, naturalmente, a ordem? Alguns anos atrás, em um filme comercial de grande circulação (em português, blockbuster), um louco [“vilão” ou (“anti-”) “herói”?], cinicamente retirou o véu do esquema terrível e injusto no qual vivemos. Esquema este que condena milhões de pessoas à miséria e à morte, para que, abaixo de tudo, as pessoas (algumas!) possam viver sob a falsa aparência da tranqüilidade e da ordem. Alguma ordem. Qualquer ordem, desde que ordem. Mesmo uma péssima ordem. Mesmo uma ordem nefasta. Mesmo uma ordem violenta20. Muito concorre para que essa ordem seja sustentada. Um intenso pacto de solidariedade – hegemonia – faz com que mesmo gentes prejudicadas por essa ordem defendam-na com unhas e dentes, amedrontadas, sucumbindo a um esforçado e constante processo de manutenção perpétua de uma situação de submissão21. Quem pode fazer a denúncia? Os loucos. Apenas os “vilões”, tal qual nossa personagem. Nada

19P.

152 “Quando se diz que a política internacional busca uma ‘ordem’, deve-se perguntar ‘ordem’ para quem e com quais interesses?” (HALLIDAY, 2007, p. 80.) Na “politica interna”, o mesmo é verdadeiro. 21Sobre o processo de manutenção da submissão, sugerimos a leitura de “Resposta a pergunta: O que é o Esclarecimento?” de Immanuel Kant. Existem muitas versões online desse precioso texto, por exemplo em http://thomasconti.blog.br/2013/immanuel-kant-que-e-esclarecimento/, acessado em 17 de março de 2015 às 10:40h. 20

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mais que um baderneiro louco e inconseqüente que dizia tentar subverter a “ordem” em favor do “caos” 22. Se essa classificação fizer algum sentido, esses somos “nós”. 1.2 Sobre as fissuras da ordem em sua forma atual Neste mesmo momento, longe – como fosse possível – das telas, milhares de pessoas tomavam violentamente (?) as ruas em diversos lugares do mundo. A periferia francesa ardia sob as chamas dos molotovs e na Turquia estádios de futebol se tornaram cenários de enfrentamentos entre a polícia e as torcidas. Com o poético nome de “Primavera Árabe”, batizaram os protestos das populações revoltadas na Tunísia, na Líbia, na Síria, na Argélia, em Bahrein, no Djibuti, no Iraque, na Jordânia, em Omã e no Iêmen, dentre vários outros países. As ocupações urbanas protestavam contra mil e uma coisas e pautavam pela reconfiguração das cidades na Espanha e nos Estados Unidos. O Egito era tomado pela guerra civil e na Grécia os confrontos entre a polícia e os manifestantes proporcionaram cenas de dar inveja a premiados cineastas do cinema estadunidense. E assim, quanto mais se denunciava quão macabra era aquela ordem – desejada ordem, violenta ordem –; e quanto mais se divulgava a verdade de que é possível – por meio do enfrentamento, e da insubordinação (sempre!) – a constituição de uma sociedade menos desigual e menos injusta; mais intensos se tornavam os protestos, as revoltas, as revoluções. No momento em que escrevemos essas linhas, muitas coisas que nos diziam perenes demonstram enormes fraturas. Com espantosa (?) semelhança, assistimos de modo menos ou mais indiferente (a) as “ocupações pacificadoras das regiões de risco” do “nosso quintal” e (a) o constante bombardeio de países “acostumados” a “ocupação internacional” das tropas invasoras que o senso comum organizado “jornalisticamente” se ocupa de frequentemente banalizar – “Oriente Médio”, “Cáucaso”, “Bálcãs”, “Mundo Árabe”, “Mundo Islâmico”, etc. –; assistimos (a) o acirramento do ódio racial (ou, pelo menos de suas manifestações mais espetaculares e perigosas) na “democrática” sociedade francesa e na “multicultural” sociedade estadunidense globalizada e assistimos (a) a crescente hostilidade entre as grandes potências na negociação mais ou menos “fria” de reconquistas e renegociações dos espaços de influência. Caso fosse nosso objetivo estender a lista, os exemplos não cessariam. 22Nolan:

O cavaleiro das trevas. Devemos essa pista a nosso querido mestre Thiago Mendes Borges. A cena a que nos referimos pode ser assistida em https://www.youtube.com/watch?v=B0JFjEyaHNU (acessada em 21/2/2015 às 16:27h).

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Apenas quem se recusa a enxergar o óbvio ignora o extenso movimento de “readequação” do mundo a “interesses escusos”. Se o consenso internacional será estabelecido sem conflitos diretos (“Guerras Mundiais”, “Guerras Civis”), como tem ocorrido no “longuíssimo” período de cinco décadas, ou se o pau vai quebrar por todos os lados, não nos cabe profetizar. Mas alguém pode negar que “há algo no ar além dos aviões de carreira” 23? Em nosso (?) país, ocorre um estranho (?) “segundo turno” (ou “segundo round”) dos episódios de 2013: as grandes corporações midiáticas se esforçam mais para rotular e isolar os revoltosos de “baderneiros”, “vândalos” e “vagabundos” procurando criminalizar os “excessos” (sic) dos rebelados24 ao mesmo tempo em que pululam nas redes sociais imagens e mais imagens de incontáveis casos em que a “violência” foi provocada e cometida pelos aparatos policiais repressores25. A despeito do que se procura vender, em faixas de protesto e textos nos mais diversos veículos midiáticos – das grandes corporações às “mídias independentes” – podemos observar um discurso a cada dia mais articulado – embora não necessariamente “consciente” – em torno da negação de uma ordem. Uma ordem baseada na injustiça e na exploração capitaneadas pelo Estado em nome de gigantescas corporações capitalistas que beneficiam – em consagrados dizeres dos manifestantes “lá de fora” – apenas 1% da população. E por outro lado, nesse mesmo “clima”, se articula um discurso cada vez mais intenso em defesa da “ordem”, da “moral” da “ética”. Contra a “corrupção” e a “política”. Em favor da “democracia” e da “intervenção militar”. A ordem está em ruínas, e a disputa pelas condições de seu (re) estabelecimento se intensifica a olho nu. Logrará êxito a tarefa de separar os “vândalos” dos “cidadãos” e preparar o terreno para os “restauradores da ordem social” e da “moralidade” menos ou mais “brandos” assumirem o poder? Conseguirão manter o tênue limite entre esse desejo terrorista de ordem e a restauração do poder pela parcela da população que a cada dia

23Barão

de Itararé, citado por Mouzar Benedito em Barão de Itararé: herói de três séculos, São Paulo: Expressão Popular, 2007. 24https://www.youtube.com/watch?v=7cxOK7SOI2k 25 https://www.youtube.com/watch?v=HiV8alCG5ak; https://www.youtube.com/watch?v=C_eaTr34O1M ;https://www.youtube.com/watch?v=V_e2ku3PPmQ; https://www.youtube.com/watch?v=qDlCsLSwUpg; https://www.youtube.com/watch?v=vFcq9Cdcok4. Dentre tantos outros.

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parece sair ainda mais do armário para mostrar seu ódio reprimido e as suas saudades dos “bons tempos” [da violência militar]? Novamente, não nos cabe profetizar26. “No duro”, vivemos uma grande disputa – emblematizada pela proeminência das “questões urbanas”

. Passada a “Copa das Copas” [para quem cara-pálida?28],

27

aguardamos os “Jogos Olímpicos”. Além disso, No momento em que escrevemos, grupos civis de extermínio e vários outros tipos de justiçagem surgem qual metástase no tal tecido social precariamente mantido sabe-se lá como29. No momento em que escrevemos, não fazemos idéia do que acontecerá. Nem acreditamos nos que dizem fazêla. Sem mais delongas, avancemos nossas comparações afim de – qual Lourenço – acercarmos nosso “objeto”. Sob nosso ponto de vista, se quiséssemos estabelecer um elemento comum, sob o véu das peculiaridades de cada uma das lutas acima elencadas, com suas pautas, sua dinâmica e suas palavras de ordem, teríamos o desmoronamento de alguns dos principais pilares de sustentação da ordem capitalista – pelo próprio

26Mas

é inevitável constatar que o “cenário” não parece promissor. Depois das fortes emoções da disputa presidencial (com as respectivas “bases” mostrando os dentes e destilando ódio à torto e à direita), assistimos “bestializados” à nova campanha da candidata reeleita, que parece se atirar com vigor na surreal tarefa de implementar o que parecia o projeto de governo da oposição a quem combatia. A base de apoio do governo defende – “criticamente”, segundo ela própria – a implementação do projeto que refutou nas urnas; contra o movimento – golpista – a cada dia mais intenso por parte das pessoas que protestam contra o governo que implementa a proposta que ele próprio defendia outrora. Quanto a “nós”, seguimos – na seca ou na enchente – esperando os efeitos de médio-prazo da eleição de uma grande quantidade de representantes do que existe neste país de mais propenso ao fascismo, para não mencionarmos o “passeio” dos tucanos no Tucanistão (de onde escrevinhamos) e a bisonha distribuição do poder presidencial sob o escudo do Partido dos Trabalhadores (sic). A cada dia a agenda se torna mais esquizofrenicamente homogênea. Como uma de muitas provas, poderíamos sugerir o estranho (?) caso do prafrentex governo petista da prefeitura paulista que protagonizou as disputas pelas tarifas de busão ao mesmo tempo em que convidou para a Secretaria Municipal de Educação o ex-secretário Tucano [que, com efeito, disputou a última eleição contra o atual prefeito e é peemedebista – o estranho (?) partido que fez a transição democrática lenta, gradual e seguramente com o apoio dos militares para se tornar a principal base de poder dos governos FHC, FHC, Lula, Lula, Dilma e Dilma] . Dois mais dois são cinco e supostamente vale tudo em nome da governabilidade, ou seja: da capacidade de os políticos conseguirem nos governar (desde que isso não contrarie os interesses que os governam, o que também é assunto dessa tese). http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/01/1572493-haddad-convida-chalita-paraeducacao-e-sonda-psd-para-outras-secretarias.shtml 27Cidades Rebeldes Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Ermínia Maricato [et al.] São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013. Coleção Tinta Vermelha. Agradecemos ao querido Thiago Aparecido Trindade pelas diversas ocasiões em que proseamos sobre os “movimentos sociais”, nos quais é especialista; bem como por ter nos presenteado com este excelente livro. 28Para acompanhar as remoções e despejos, sugerimos uma visita ao sítio http://www.portalpopulardacopa.org.br/ ao som de Despejo na favela, de Adoniran Barbosa. Acompanhamos o mestre na consternação: Mas e essa gente aí, hein? Como é que faz? 29 https://www.youtube.com/watch?v=C6PU_9azEfE; https://www.youtube.com/watch?v=ESYawvRSAQc; https://www.youtube.com/watch?v=A81wfIO5J_M; https://www.youtube.com/watch?v=LvhrEOZk5Ws; https://www.youtube.com/watch?v=lZdLOprv6o0. Dentre muitos.

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aprofundamento de suas contradições e pela intensidade da força que a ela sempre se opõe30. Outra maneira de colocar o problema, estranhamente (?) encontra ressonância nas atuais palavras do principal teorizador marxista sobre o Imperialismo, que por volta de 1910 afirmou que quanto mais avança a monopolização, tanto mais a carga dos lucros extras oprime as demais classes. A carestia ocasionada pelos trustes reduz a qualidade de vida – e tanto mais quando a tendência crescente dos preços dos gêneros alimentícios também faz subir os víveres de primeira necessidade, simultaneamente, cresce a pressão dos impostos que afeta também as camadas médias. E inclusive estas tornam-se cada vez mais rebeldes. Os empregados vêem desaparecer, cada vez mais, suas perspectivas de fazer carreira e sentem-se cada vez mais como proletários explorados. As camadas médias do comércio e da indústria também se apercebem de sua dependência dos cartéis, que as transformam em meros agentes com comissão. Todos esses antagonismos tendem a se agravar a um ponto insuportável quando a expansão do capital entra numa época de progresso mais lento.31

A título de ressalva, é importante que manifestemos que estamos cientes de que existem muitas pautas que se dão nas lutas contra opressões de gênero e de raça; na luta por acesso a direitos apresentados falsamente como universais e diversas outras demandas que não se explicam pelas “classes”. Entretanto, partilhamos de forma mais ou menos convicta da idéia segundo a qual, em sociedades capitalistas, o principal nexo de socialidade – e portanto o “sentido de pertencimento” – se dá por meio do reconhecimento das mercadorias32. Neste contexto, entendemos que, se é verdade que os problemas de gênero raça e outras formas de opressão não se resolvem pela questão da substituição do nexo estruturante “tipicamente capitalista” por outro qualquer, não podemos nos furtar do fato de que, em sociedades capitalistas – necessariamente opressoras – não será possível que consigamos eliminar as opressões. Assim, cientes de que o problema é muito maior do que os limites dessa tese, procuraremos, sempre que possível, não reduzir a questão das opressões à questão da opressão capitalista, ainda 30O

que evidentemente não significa que não possam ser temporariamente “resolvidas”, dada a extrema potência que o Capital já nos demonstrou. 31Hilferding: O Capital Financeiro. 32Certo dia desses encontramos um tanto por acaso um debate entre antropólogxs acerca da precisão do termo “sociabilidade”, de uso comum em várias disciplinas das vizinhanças das Humanidades. Havia uma denúncia de que tal idéia pressuporia uma forma um tanto arbitrária – e autoritária – de simbolicamente eliminar os conflitos. Ao que outra autoridade respondia que não era bem por aí. Nós, por via das dúvidas, sem conseguir julgar onde estava a razão, optamos pelo lado dx denunciante, entendendo que trocar “sociabilidade” por “socialidade”, além de contemplar uma denúncia de uma ordem implícita, não traria prejuízo algum para a clareza da argumentação. Parece que hoje há quem reivindique que “socialidade” não se aplique a pessoas, mas ao sentimento com relação a lugares e objetos. Não é este o sentido que empregamos aqui.

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que grande parte da bibliografia utilizada deixe a entender que assim o é Pretendemos voltar a este ponto sempre que possível de modo que, ao final da tese, possamos, mais uma vez, nos perguntar: o que pode, no fim das contas, ser considerado “tipicamente capitalista”? 1.3 Sobre a ordem do Imperialismo Capitalista Conforme procuraremos enunciar nesta tese – na qual temos por objeto direto as “interpretações sobre o imperialismo” e por objeto indireto as “investigações sobre o capitalismo” – sob o nosso ponto de vista, é preciso desvelar os elementos comuns que articulam as aparentemente desconexas turbulências “internas” e “externas”. Entre esses elementos comuns, sobressai algo como o desmoronamento de uma ordem sustentada pelos pilares daquilo que se convencionou chamar de “capitalismo”. Ao mesmo tempo, não parece haver dúvidas de que existem elementos comuns que articulam as estratégias de gestão dos políticos em cada um desses lugares: máquinas estatais cada vez mais “totalitárias”. Nas palavras do genial historiador egípcio Eric J. Hobsbawm, 'A melhor defesa da idéia de império é a defesa da idéia de ordem'. Em um mundo crescentemente desordenado e instável, é natural que se sonhe com algum poder capaz de estabelecer a ordem e a estabilidade. Esse sonho se chama império.33

Se fôssemos destacar um e apenas um elemento de ligação entre os interesses do Imperialismo Capitalista, destacaríamos a violência contra a população trabalhadora na promoção de uma ordem de dominação de classes em favor dos capitalistas por meio do Capital, que, conforme procuraremos explicar, desde por volta de 1870 é capital

33Eric

J. Hobsbawm, Por que a hegemonia dos Estados Unidos difere da do Império Britânico [2005]; publicado em Eric J. Hobsbawm – Globalização, Democracia e Terrorismo (2008) SP Companhia das Letras [Globalisation, democracy and terrorism (2007)] p. 58-9

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financeiro: uma relação social de dominação de classe e exploração de riqueza cuja potência aparentemente não cessa de aumentar34. 34Vimos

desde a nossa dissertação [Franco, 2011] trabalhando com a idéia – que evidentemente é bastante conhecida entre xs marxistas – de que uma – talvez a principal – particularidade do modo de produção capitalista seja a até então inédita correspondência entre dominação social e acumulação de riqueza por meio da relação social “capital”, ao que nos colocamos em uma encruzilhada importante, que apresentamos lá na página 49, quando comentávamos as teses da Rosa Luxemburg, na nota de rodapé 95, que reproduzimos à revelia da sua extensão, a título de registro. Como dizia o inigualável “embaixador das favelas” Bezerra da Silva “outra vez pra marcar”: “Do nosso ponto de vista, é possível que após o fim do lastro entre a 'forma pura de valor, ou seja, o dinheiro' e quaisquer equivalentes materiais, como, por exemplo, o ouro, essa característica tenha se modificado. É possível que ao capital tenha sido tornada viável sua reprodução sem que houvesse um problema prévio de demanda, que talvez agora seja mesmo criada artificialmente. É possível que os problemas de reprodução do dinheiro tenham se resumido à questão da crença ou da confiança de que determinado pedaço de papel, seja ele uma cédula de dólar ou um 'título', 'vale' determinada coisa. É possível que tenha havido uma espécie de 'descolamento' entre a esfera da reprodução da vida – em que se dá a dominação de classes – e a esfera da produção e apropriação de riquezas, ainda que esse modo de produção e apropriação de riquezas continue como um dos principais mecanismos de manutenção da dominação de classes. Com efeito, os 'capitalistas' se valem de inúmeras outras formas que não a 'produção' para aumentar seu 'capital'. A afirmação de que a dominação e acumulação de capital não são mais coincidentes coloca a todos nós a necessidade de repensarmos grande parte das idéias com as quais nos acostumamos a apreender as relações sociais; sobretudo de uma perspectiva 'marxista'. Contudo, não afirmaremos aqui que estes processos de 'descolamento' de fato se concretizaram, porque isso nos exigiria uma análise apurada de outro período da história capitalista que não está diretamente no escopo dessa dissertação, embora esteja a todo o momento em nossa mente: o período do imperialismo capitalista estadunidense, sobretudo após a década de 1970, quando estas relações assumem sua forma atual. A partir de então, pode ter se tornado ainda mais evidente o que Rosa afirma, na página 14, sobre a produção capitalista, ou seja que 'Assim, a ampliação da produção no sentido de fabricar-se uma quantidade maior de valores de uso não é necessariamente ainda a reprodução ampliada em termos capitalistas. Inversamente, o capital também pode alcançar um nível mais elevado de mais-valia sem fabricar maiores quantidades de produtos, e isso dentro de certos limites, sem alterar a produtividade do trabalho, ou elevando o grau de exploração (por meio da redução de salários, por exemplo)' O que em hipótese alguma significa que o trabalho se tornou desimportante para a acumulação, ou que a exploração dos trabalhadores tenha diminuído, ou que, como querem afirmar os apologetas do capital, a luta de classes tenha se encerrado. Muito pelo contrário. Como vimos insistindo desde o princípio, acompanhamos Marx e Engels quando afirmam que o que caracteriza o capital é a indiferença com que são encarados os modos de valorização ou, noutros termos, 'o capitalismo é um regime de produção orientado para a busca de riqueza abstrata, da riqueza em geral expressa pelo dinheiro'. Outra forma, complementar a essa, de encarar o mesmo problema é a desenvolvida por Thompson em sua extensa obra sobre a formação da classe trabalhadora na Inglaterra. 'A crítica de Thompson, na verdade, é bem mais geral e radical. Ela se dirige ao conjunto da análise de Marx, pelo fato de esta tentar explicar o movimento da relação como um movimento imanente à própria relação e que se esgota nela mesma, de tal forma que, no final das contas, esse movimento já se encontra inscrito (em germe) nas formas iniciais da relação. Assim, a industrialização ou, mais precisamente, a constituição da indústria moderna, não representam senão o resultado da lógica do capital (isto é, da relação, a relação social da dominação capitalista). (...) 'A inversão da explicação pode ser sutil, mas me parece realmente radical. Segundo ela, não seria a industrialização que teria imposto a capitalistas e trabalhadores, com a força de uma lei que regeria suas relações: a busca da mais-valia relativa, como lei da acumulação de capital. Ao contrário, a industrialização seria o resultado de um processo histórico real, como todo processo histórico, único, pouco importando o fato de que, depois, por sua importância e características, ele se tornaria um modelo universal. Para Thompson, a grande indústria moderna é um resultado (histórico) da luta de classes. Como parte fundamental desse processo, poderia ser destacada a própria formação da classe operária.' Sérgio Silva: Thompson, Marx, os marxistas e os outros em As peculiaridades dos ingleses e outros artigos: E.P. Thompson, organizadores Antonio Luigi Negro e Sérgio Silva Campinas, SP Editora da Unicamp 2001(1ª impressão 2001. 2ª reimpressão, 2007) páginas 63 e 64. Por conta de termos alterado ligeiramente o roteiro das nossas investigações e optado mais uma vez pela historiografia em detrimento da história – um tanto porque, do ponto que partimos, não nos parece haver outro modo

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Não obstante, para o desespero dos desesperados, a maior promessa de ordem disponível, o Império dos Estados Unidos da América, “É [também ele] um mito histórico”. Não passa de mais um fantasma que nos assombra. Em síntese: O império americano, com suas esperanças de uma pax americana, tem como imagem a assumida pax britannica, período de globalização e de paz mundial no século XIX associado à assumida hegemonia do Império Britânico, paz que, por sua vez, tinha como imagem e razão do seu próprio nome a pax romana do Antigo Império Romano. Mas isso é conversa mole. [grifo nosso] Se a palavra pax tem algum sentido nesse contexto, é por referir-se ao estabelecimento da paz dentro de um império, e não internacionalmente. E mesmo assim a referência é em grande parte falsa. Os impérios da história raramente deixaram de conduzir operações militares nos seus próprios territórios e com certeza o fizeram nas suas fronteiras em todos os tempos. Simplesmente essas operações não afetaram a vida civil de suas metrópoles35.

Contudo, cumpre-nos fazer a ressalva de que o Império Estadunidense de há muito se habituou a realizar operações que afetam a vida civil de suas metrópoles. E isso começa pela ampla confusão entre as funções militares e as funções policiais de seus aparelhos de repressão – o que inclusive é extremamente comum em filmes e séries de televisão em que constantemente somos alertados das confusões das jurisprudências entre, por exemplo, departamentos de polícia, a CIA e o FBI. Assim, não nos parece correto levarmos ao pé da letra, no caso deles, mas também noutros, as diferenças

de proceder senão que esta seja precedida por aquela, de modo a escapar das armadilhas que se acumulam ao longo das gerações [voltaremos a esse ponto] – não teremos aqui a ocasião de verificar se essa possibilidade efetivamente se confirmou. Por hora, pouco importa. Fixemos duas das proposições essenciais dessa longa nota que nos acompanha desde o mestrado: a acumulação de riqueza não é necessariamente coincidente com a dominação social em qualquer sociedade; os movimentos concretos não podem ser deduzidos de leis gerais, mas estas devem procurar nos dar inteligibilidade sobre aqueles. Posto isso, temos – todos nós que nos importamos com a sorte da nossa gente – que lidar com duas dificuldade adicionais: i) investigarmos se vivemos em uma época em que a dominação se dá efetivamente em termos “capitalistas” [a serem definidos] – ou se efetivamente temos acompanhado o progressivo descolamento da acumulação e da dominação [o que seria um dos fins possíveis do modo de produção capitalista]; ii) qual é a centralidade da indústria, ou, mais rigorosamente, do industrialismo (exploração de mão-de-obra industrial assalariada e acumulação de capital por meio da extração de mais-valia da classe trabalhadora) para o modo de produção capitalista. São problemas que implicam em extensas tarefas de investigação e em imensa dificuldade de comprovação. Esperamos com essa tese fornecer alguma contribuição para “limpar o terreno” das “verdades (pré) estabelecidas” que impedem que compreendamos com clareza esses problemas. Se alcançarmos esse objetivo, por hora nos satisfaremos. 35Hobsbawm, texto citado. Para uma outra apreciação da regularidade da violência durante a assim chamada pax britannica, ou, nas palavras do autor, como “o período conhecido como Pax Britânica, longe de ser caracterizado pela paz na arena internacional, foi moldado por uma nova geopolítica de dominância britânica”, sugerimos a leitura da dissertação de Thomas Conti, Guerras Capitais, em especial o segundo capítulo, intitulado Indústria e Comércio (1815-1873). CONTI, T. V. Guerras Capitais – um estudo sobre as transformações na competição econômica e na rivalidade política internacional: a Hegemonia da GrãBretanha, os Estados Unidos e a Alemanha de 1803 à 1914. Campinas: IE/UNICAMP, 2015 (Dissertação de Mestrado).

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formais36 existentes entre os aparelhos de repressão militares e civis que “afetam [a todo momento] a vida civil de suas metrópoles” 37. Uma ilustração muito convincente da “confusão” a que nos referimos é o causo da prestadora de serviços de “segurança” Academi – que segundo consta, teve seu nome inspirado pela Academia de Platão, depois de uma série de escândalos internacionais a obrigarem a renunciar Blackwater, nome pelo qual se tornara famosa durante a Segunda Guerra contra o Iraque, quando atuou principalmente em serviços de escolta de líderes estadunidenses, logística militar e soldados de aluguel38. Em seus primórdios, pelos idos de 1996, a empresa tinha por objetivo fornecer treinamento privado aos militares estadunidenses, principalmente com campos de tiro para oficiais da Marinha. Poucos anos depois, mostrando sua vocação para grande corporação, astutamente aproveitou as oportunidades – entre as quais figuram massacres escolares como o de Columbine39 e a devastação do furacão Katrina – para diversificar seu portfólio, solidificando sua estratégia de negócios, que hoje consiste no oferecimento de “soluções” nas áreas de “defesa, segurança doméstica, aeroespacial, planejamento contra desastres, relações exteriores e manutenção da lei”

40.

Assim, a

Academi – então ainda Blackwater – também passou a oferecer treinamentos às polícias locais41 e logística de contenção de danos provocados por desastres ambientais, com o que potencializou as estratégias de captação de clientes, buscados desde particulares a governos estrangeiros – polícias brasileiras inclusas, obviamente. 36Aliás,

já deixemos por hora no ar um argumento que nos será caro no futuro: o formalismo é uma das principais armadilhas da fetichizada forma burguesa de concepção da ciência – e não à toa [escapa de nosso escopo, mas a comparação é irresistível] flerta com a “gaiola de ferro” daquele sociólogo da burocracia. 37Para uma ilustração de como se opera essa “confusão” na periferia, sugerimos as emblemáticas Confissões de um Assassino Econômico, disponível em forma de documentário em https://www.youtube.com/watch?v=JwWbiVNCH1k. (Acessado em 21/2/2015 às 16:56h) 38Quem conta sobre a inspiração ironicamente platônica do nome é Mathew BARAKAT [citado por MICELLI, Isabella Rosa, 2013. Monografia intitulada O papel da Academi no Arranjo de segurança privada norte-americana – os efeitos da atuação da empresa privada de segurança na Guerra do Iraque de 2003 a 2008, orientada pela professora Érika Laurinda Amusquivar, a quem aproveitamos para agradecer ao convite para participar daquela banca, dentre muitas outras ocasiões em que tivemos a oportunidade de conversar sobre este e outros temas correlatos.] Já adiantamos que a recusa e o resgate de seu próprio nome é um tema famoso e importante de uma personagem cara ao nosso raciocínio, conforme percebido de cara por quem for mais afeita às imagens. 39Para aprofundar reflexões que circundam o problema desses massacres sugerimos o ilustrativo documentário Tiros em Columbine, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cr8ZstJHNz8 (Acessado em 21/2/2015 às 16:59h) 40p. 53. 41Segundo o mesmo Scahill, entre as atrações daquele “parque de diversões militar”, os clientes em busca de treinamento especializado podiam contar com um macabro simulador de massacres em colégios, depois ampliado para uma ampla área de treinamento policial urbano.

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Com tanto “tino” empresarial, não é de se espantar que depois de alguns anos – simultânea, mas não coincidentemente à ascensão dos republicanos sob Bush II42 – atingiriam em cheio seu principal cliente: o próprio Estado dos Estados Unidos da América. Não apenas o Departamento de Estado e as Forças Armadas, mas também a CIA e o FBI43. Como a máquina (do dinheiro e do poder) não se permite parar, a empresa viria a proporcionar (...) treinamento para quase todas as esferas do governo, passando pelo Centro de Serviços Administrativos da Agência Nacional para a Segurança Nuclear, pela Rede de Prevenção a Crimes Financeiros do Departamento do Tesouro e pelo escritório do secretário-assistente do Departamento de Saúde44.

Mesmo tendo como principal foco os “clientes corporativos”, a empresa investia pesado em publicidade para atingir o consumidor “médio” – e eleitor “médio”, tanto porque costumam ser as mesmas pessoas quanto porque ambos os negócios estão sempre “entrelaçados pornograficamente”

45

. Sob seu comando, foram realizadas

espetaculares aterrissagens de agentes paraquedistas em intervalos de jogos de futebol americano, e a empresa patrocinou um carro de corrida NASCAR e chegou a produzir, em parceria com a famosa empresa de armas Sig Sauer, uma edição especial da pistola de nove milímetros que contava com garantia vitalícia e o logotipo Blackwater na empunhadura. E como o espetáculo não tem limites: “por dezoito dólares, os pais poderiam adquirir roupas de bebê na loja da Blackwater com o logotipo da empresa” 46. A Academi é, em todos os sentidos, uma típica grande corporação que segue o receituário de todo e qualquer administrador, independentemente do ramo de atividades em que seu capital esteja porventura alocado47. Sendo assim, precisa expandir a qualquer custo e ocupar um espaço a cada dia maior. Não é fortuito, portanto, que 42Para

não ficarmos somente na sugestão, deixemos explícito que a família Prince, de onde provém o bilionário dono da empresa, Erik Prince, gastou ao longo de décadas rios de dinheiro para financiar campanhas de políticos da extrema direita e suas causas. Conforme nos demonstra univocamente Scahill, principalmente no capítulo 2, intitulado O pequeno príncipe. 43Scahill, Cap. 3 44Scahill, p. 122. 45 Voltaremos à formulação. 46Scahill, págs. 51-2. 47O capital necessário para a fundação e a manutenção inicial da empresa provinha de Erik Prince, herdeiro de um milionário industrial de Holland, no Michigan, cujas fábricas forneciam peças para as montadoras de automóveis. Para a acumulação individual de seu capital, pouco importa se o que se vende são peças para veículos de passeio ou serviços mercenários de inteligência bélica, ou qualquer outra coisa, ainda que ter como cliente o Estado mais poderoso do planeta não seja uma “vantagem” como qualquer outra.

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tenha se imiscuído com o poder publico imperial surfando na onda dos processos de “privatização” em toda e qualquer área que vinha sendo arquitetado há décadas, com o que contou com um grande investimento em propaganda da ideologia liberalóide e globalóide. E não é nada fortuito que a privatista tenha sido uma das ideologias que superou as barreiras do Flaflu yankee: democratas e republicanos participaram ativamente desse projeto com paixão equivalente, sem o que não teria sido executada – diante do que, conforme teremos a ocasião de discutir, as formas contemporâneas do imperialismo seriam um bom tanto diferentes do que o são. Foi aproveitando esse tipo de “oportunidades” que a empresa constituiu sua simbiótica relação de comunhão com o monopólio da violência outrora exercido exclusivamente pelos aparelhos de repressão do Estado, agora pródigo em compartilhá-lo com a firma que melhor lhe convier – ainda que, ao que tudo indica, retenha para si a prerrogativa de revogar e a “concessão” e “restringir” a competição a empresas provenientes de “Estados amigos”. Sendo assim, cumpre pergunta: em termos estritamente empresariais, em que consiste, afinal, o grande “ativo diferencial” da Academi48? Segundo a própria empresa, o fato de que, sob seus “serviços”, nos lugares mais perigosos do mundo, nenhum de seus “protegidos”, jamais foi assassinado. Isso é que é eficiência! Tendo isso em mente, é claro que pouco importe os “efeitos colaterais”, como o excessivo e injustificável número de iraquianos “não-combatentes” assassinados pelos atiradores mercenários. Nem a estatística de que, de 2005 até a data da audiência [2 de outubro de 2007], os agentes da Blackwater no Iraque haviam aberto fogo em pelo menos 195 ocasiões e em mais de oitenta por cento destas situações, foi quem atirou primeiro “49. Como sabe qualquer empregado de uma grande firma em nossos tempos, as metas devem ser batidas a qualquer “custo”. Em nosso caso específico, segundo relatório do mais famoso processo sofrido pela empresa nos Estados Unidos, “A Blackwater criou e incentivou uma cultura de 48Segundo

Scahill, quando da Segunda Guerra do Iraque, a Blackwater era apenas mais uma entre mais de 170 firmas de mercenários oferecendo seus serviços naquele país. p. 25 49“Estas estatísticas se baseavam nos próprios relatórios da Blackwater. Mas alguns alegavam que a empresa estava reduzindo propositalmente as estatísticas.” Scahill, p. 31. Qualquer semelhança com a Polícia Militar brasileira ou tantas outras polícias não é mera coincidência. Como facilmente apreendido das consultorias e treinamentos que aparatos de violência do mundo todo procuram obter nos centros de formação da empresa, ela exporta o “Padrão Blackwater de Qualidade”, que inclui obviamente muitas doses de violência gratuita com o intuito de aterrorizar as populações “não-combatentes” e garantir suas altas taxas de “eficiência”.

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anarquia entre seus empregados, encorajando-os a agir no interesse financeiro da empresa à custa de vidas humanas inocentes”, provocando indiscriminadamente “assassinatos extrajudiciais” e “crimes de guerra”

. Ainda nesse mesmo processo, a

50

acusação alegou que a Blackwater divulga amplamente o fato de que 'jamais um oficial americano sob sua proteção foi morto no Iraque' e 'enxerga a sua disposição em matar pessoas inocentes como uma vantagem estratégica que distingue a Blackwater das outras empresas de segurança, colocando-a acima das mesmas'.

Destarte, o principal diferencial competitivo da empresa consiste no fato de que ela “esteve e ainda está disposta a matar transeuntes inocentes para preservar a estatística de 'zero mortes' por razões de marketing”, de modo que o relatório conclui o óbvio – mas nem por isso menos importante: “a Blackwater se beneficia financeiramente da sua predisposição em matar transeuntes inocentes” 51. Entretanto, é crucial que tenhamos em mente a amplitude do consórcio. Esse diferencial competitivo não poderia jamais ser garantido exclusivamente pelas competências da própria empresa. Cumpre, pois, que haja uma forcinha do Estado. É por isso que (...) nem um único prestador armado de serviços, seja da Blackwater ou qualquer outra firma, foi acusado por corte alguma quanto a nenhum crime cometido contra um iraquiano. Como resultado, estas forças operam num clima de total impunidade, coisa que alguns observadores afirmam ser deliberado e servir a um propósito maior na ocupação. 'O fato de eles gozarem de imunidade significa que não existe sequer a possibilidade de eles temerem quaisquer consequências de seus atos de brutalidade e assassinato', disse Michael Ratner, presidente do Centro de Direitos Constitucionais. 'Nada disso é por acaso; o verdadeiro objetivo deles é brutalizar e incutir o medo no povo do Iraque'52.

Quanto à associação entre essa empresa em específico e o governo dos Estados Unidos, Jeremy Scahill, cujo raciocínio vimos acompanhando, nos oferece em seu livro – considerado a “obra definitiva” sobre a atuação da empresa – razões consistentes para explicar essa predileção mútua, alertando para as razões estruturais pelas quais se abriu tanto espaço para empresas mercenárias no setor bélico estadunidense. Primeiramente – este é o ponto principal do autor – pelo vigor com que a ideologia privatista imperava naquele momento. Mas também porque esse é um modo particularmente importante de 50P.

47-8.

51Mesmas 52Scahill,

páginas. p. 25.

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contar com mão-de-obra especializada em momentos de crise de legitimidade dos governos em convencer sua população a participar ativamente das atividades militares. Idéia que o autor compartilha, quando oferece a voz a Michael Ratner, de quem empresta o argumento segundo o qual quando uma população é convocada para ir à guerra, existe uma resistência, que é necessária até para evitar guerras de autoengrandecimento, guerras tolas ou, no caso norte-americano, guerras imperialistas hegemônicas. Tropas particulares são quase uma necessidade para os Estados Unidos, empenhados em manter um império em declínio. Pense em Roma e em sua crescente necessidade de mercenários. É o mesmo que acontece hoje nos Estados Unidos. Se se tornar difícil controlar uma população raivosa e oprimida mediante uma força policial obediente à Constituição... as tropas particulares podem resolver esse 'problema'.53

Entretanto, como se não fosse possível manter o Império sem uma ordem interna correspondente – voltaremos ao ponto – ao comentar a amplitude dos serviços prestados pela empresa e a profundidade com que penetram na “vida civil” da população de suas cidades, como nos exemplos já citados, Ratner lembra que essa espécie de grupo paramilitar lembra os camisas-marrons dos nazistas, que funcionavam como um mecanismo de sanção extrajudicial com direito de operar, e que na verdade operava, fora da lei. O emprego desses grupos paramilitares é uma ameaça extremamente perigosa aos nossos direitos.54

Ao que temos os principais elementos do raciocínio que vínhamos concatenando. Sob o argumento de que a qualquer custo a ordem imperial precisa ser garantida, é preciso que os mecanismos de violência possam atuar de modo indiscriminado entre a população periférica e a população doméstica, confundindo necessariamente polícia com

53Scahill,

p. 70. Sobre a comparação com o Império Romano, sempre presente nas análises sobre o Império estadunidense, sugerimos, por se tratar de outra ótica – sobre a tal “sociedade civil (burguesa)” – a trilogia canadense O declínio do Império Americano, As Invasões Bárbaras e A Era da Inocência de Denys Arcand. 54Citado por Scahill, p. 71

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exército; civil com militar55. Trata-se portanto de um germe importante de um estado “totalitário” das coisas, amplamente potencializado pela lógica corporativa capitalista que, necessariamente casada aos interesses Estatais, atinge por meio de medidas extralegais a potência necessária para atuar em todas as frentes possíveis, de modo indiscriminado, sempre em busca da garantia absoluta da “segurança” e da valorização abstrata da riqueza – ou seja, do “lucro”. O que, como desejado por qualquer chefe do poder em exercício, vai se amalgamando numa solidariedade a cada vez mais ampla, em que as pontas se fecham em torno da “hegemonia” (inter) nacional em que “segurança” e “lucro” acabam operando muitas vezes como equivalentes. Na síntese do filósofo Paulo Arantes, Desde a Guerra do Golfo, tornou-se política norte-americana, identificada por todos os interessados, vender suas Forças Armadas como um 'bem público internacionalmente financiado', nas meias palavras de um alto funcionário de então, ou, na fórmula menos delicada de um editor financeiro da grande imprensa conservadora: 'o virtual monopólio norte-americano do mercado de segurança', além das vantagens auferidas por qualquer açambarcador que atue em um meio específico de negócios – no caso, simplesmente toda a segurança do mundo – já se converteu na principal alavanca de 'nosso controle sobre o sistema econômico internacional'. Foi, aliás, por esse tempo que se tornou tão frequente quanto desinibida a menção ao papel a rigor mercenário desempenhado pelos militares norte-americanos [...]. Entre tantas amostras desse à vontade para além de qualquer esforço ideológico: durante os preparativos para a segunda guerra do Iraque, novamente outro personagem das altas rodas financeiras internacionais não se acanhava nem um pouco em assinalar que o singular sistema econômico baseado nos Estados Unidos girava em torno da troca de sobreconsumo por exportação de segurança, um excedente securitário que, de resto, já estava 'tomando a forma física de uma reponsabilidade

55Hannah

Arendt em Origens do Totalitarismo, (pág. 428) nos fornece pistas que serão importantes ao nosso argumento, como quando afirma que “É verdade que a ascendência da polícia secreta sobre o aparelho militar é a marca de muitas tiranias, e não somente das tiranias totalitárias; mas, no caso do governo totalitário, a preponderância da polícia não apenas atende à necessidade de suprimir a população em casa, como se ajusta à pretensão ideológica de domínio global. Pois é evidente que os que vêem toda a terra como seu futuro território darão destaque ao órgão de violência doméstica e governarão os territórios conquistados com as medidas e o pessoal da polícia, e não com o Exército. Assim, os nazistas usaram as suas tropas SS, essencialmente uma força policial, para governar e até conquistar territórios estrangeiros, visando ulteriormente a uma fusão do exército com a polícia sob a liderança da SS.”, o que não deixa de ser uma forma específica do que ela define, quando analisa o Imperialismo, por “efeito bumerangue” (p. 293). De uma maneira um pouco diferente, o geógrafo David Harvey nota, por sua vez, nos idos de 2004 o discurso de uma ministra da Justiça alemã no qual comparava o governo de George Bush II com o regime nazista – mais uma vez procurando articular a violência exercida no “interno” com a violência exercida no “externo”. Como Harvey será importante para nossa argumentação posterior, deixaremos essa reflexão para lá. Aqui fica o registro da correlação possível entre os fascismos de ontem e o de hoje a título de “argumento de autoridade”.

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direta por seu campo de atuação', presença ostensiva no território, numa palavra.56

Para encerrarmos por hora com o causo que apresentamos a título de ilustração e avançarmos na argumentação principal, fiquemos com a síntese de Jeremy Scahill sobre a empresa – símbolo de muito do que pretendemos denunciar nesta tese: o caráter eminentemente “totalitário” do modo de produção capitalista, potencializado sob o signo do capital financeiro. A história da ascensão da Blackwater é um épico na história do complexo militar-industrial. A companhia é o símbolo vivo das mudanças forjadas pela revolução nos assuntos militares e pelo programa de privatização radicalmente ampliado pela administração Bush, tendo a guerra ao terror como pretexto. Porém, mais fundamental ainda é que ela é uma história sobre o futuro da guerra, da democracia e da governança. Essa história vai do início da Blackwater em 1996, com seus executivos visionários abrindo um campo de treinamento militar privado (a fim de 'atender à demanda do governo pela terceirização do treinamento em armas de fogo e segurança'); passa pelo aumento do volume de contratos depois do 11 de setembro; e chega às ruas encharcadas de sangue de Fallujah, onde os cadáveres de mercenários foram pendurados em uma ponte. Mas inclui ainda uma troca de tiros nos telhados da fortaleza de Muqtada al-Sadr, em Najaf; uma expedição ao Mar Cáspio, rico em petróleo, onde o governo norte-americano mandou a Blackwater construir uma base militar a poucos quilômetros da fronteira iraniana; uma incursão pelas ruas de Nova Orleans, devastadas por um furacão; e muitas horas dentro dos centros de decisão em Washington, onde executivos da empresa são recebidos como os novos heróis da guerra ao terror. E, no entanto, a ascensão do mais poderoso exército mercenário do mundo começou bem longe dos atuais campos de batalha, na sonolenta cidade de Holland, em Michigan, onde Erik Prince nasceu de uma dinastia cristã de direita. Foi a família Prince que lançou as bases, gastando milhões de dólares durante muitas

56Paulo

Arantes, Último round (páginas 186 e 187) em Extinção. Aproveitamos a ocasião para sugerir a extensão e a profundidade dos efeitos dessa mentalidade imperialista que vimos procurando esboçar conforme empreende Arantes ao longo dessa coleção de ensaios. Por agora, anotamos a importância do “coquetel de cultura da pistolagem, videogames, pornografia e violência desumanizada” que, segundo pesquisas citadas, passa pela cabeça dos soldados estadunidenses. Não demandaria muito esforço a demonstração de que esse mesmo coquetel “passa pela cabeça” de um conjunto muito mais amplo de pessoas sob essa ordem. Sobre a extensão das consequências dessa ordem noutro registro contemporâneo, sugerimos a excelente reflexão A boçalidade do mal – Guido Mantega e a autorização para deletar a diferença, de Eliane Brum, disponível em http://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/02/opinion/1425304702_871738.html, acessado em 17 de março de 2015, às 12:40h.

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décadas, para que as mesmas forças que possibilitaram a meteórica ascensão da Blackwater chegassem ao poder.57

1.4 Sobre a seletividade da violência e a ideologia imperialista A despeito dessas confusões, hoje como dantes, parece haver uma grande seletividade na ação das empresas – públicas e/ou privadas – de violência. Voltando às palavras de Hobsbawm, nas páginas citadas, Na era do imperialismo dos séculos XIX e XX, as guerras contra os nãobrancos ou outras coletividades inferiores, as 'raças inferiores e sem lei' de Rudyard Kipling, normalmente não se contavam entre as guerras propriamente ditas, às quais as regras usuais se aplicavam.58

Nada muito distante, como sabemos, do que acontece quase a todo o momento em quase todo lugar59. No Brasil, por exemplo, assistimos a um “silencioso” extermínio das “raças inferiores”. Dada a urgência da causa e de sua importância para pontuarmos alguns de nossos argumentos principais – a saber, principalmente a relação entre Capital Financeiro e “Estado Totalitário”, absolutamente cruciais para o entendimento do Imperialismo Capitalista – vamos estender a digressão sobre a estratificação social que 57P.

73. No ano de 2013 a Academi acrescentou mais um capítulo em seu “épico na história do complexo industrial militar” quando a imprensa global ventilou que ela teria sido comprada pela mega-corporaçãomulti-monopólica Monsanto. Devido à alta complexidade das operações financeiras contemporâneas que dificultam muito que se faça o mapeamento preciso das relações de propriedade, mas que não muda sua essência – a polêmica permanece. Não se sabe exatamente se e que tipo de aliança patrimonial foi estabelecida entre as empresas. Independentemente de ter sido realizada ou não, a mera possibilidade de que essa fusão tenha ocorrido ou que venha a ocorrer já nos diz muito sobre o atual estado das coisas em nosso mundo. E para que não nos esqueçamos da necessária amplitude do horizonte das nossas lutas, lembremos a sábia constatação de Hannah Arendt, que em seus estudos sobre a violência afirmou que “(…) os fins correm o perigo de serem dominados pelos meios, que justificam e que são necessários para alcançá-los. Uma vez que os propósitos da atividade humana, distintos que são dos produtos finais da fabricação, não podem jamais ser previstos com segurança, os meios empregados para se alcançar objetivos políticos são na maioria das vezes de maior relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos” (Arendt, Hannah, Da Violência, p. 4). É certo que a autora dissertava naquele momento específico sobre as armas de destruição termonuclear, mas pensamos que a reflexão se ajusta precisamente para o que debatemos nessa nota: a potência infinita do capital financeiro. A despeito de todas as diferenças, devemos sempre lembrar que são dois tipos distintos de armas de destruição em massa, com a ressalva de que o efeito destruidor das bombas atômicas, até quando escrevemos, foi infinitamente inferior ao do capital financeiro. Para interpretações segundo as quais houve a compra da Academi pela Monsanto, sugerimos http://politicalblindspot.com/yes-monsanto-actually-did-buy-theblackwater-mercenary-group/ e http://www.voltairenet.org/article179637.html; para a visão contrária, http://www.democraticunderground.com/10023146763. O sítio oficial da empresa é o https://www.academi.com, onde se pode ver, dentre outras coisas, a ampla gama de serviços que a empresa oferece em seu portfólio de negócios. 58Hobsbawm, mesmo lugar. 59Tornando dignos de riso – para se ver a que ponto chegamos – o chilique daquelxs que se julgavam esterilizados, quando confrontados com a violência que eles próprios negam existir. Sobre as diferenças de percepções sobre essas guerras, sugerimos a leitura de Persépolis completo, de Marjane Satrapi; tradução de Paulo Werneck; São Paulo, Cia das Letras, 2011. Coleção Quadrinhos na Cia. (especialmente o capítulo “A Parabólica”).

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sustenta a ideologia imperialista, que por seu turno funciona como se pudesse – e às vezes consegue – legitimar o que já deveria ser por si mesmo considerado um completo absurdo: a idéia de que possam existir “raças inferiores”.  No recém-publicado documento Juventude Viva, Os Jovens do Brasil, Mapa da Violência 2014, que, a rigor, confirma os dados do documento A cor dos homicídios no Brasil, Mapa da violência 2012, Julio Jacobo Waiselfisz, especialista no tema, relata, a título de conclusão, que, segundo os levantamentos estatísticos avaliados, entre os anos 2002 e 2012, a tendência nos homicídios segundo raça/cor das vítimas foi unívoca: queda dos homicídios brancos – diminuem 24,8% – e aumento dos homicídios negros: crescem 38,7%. Tomando em consideração as respectivas populações, as taxas brancas caem 24,4% enquanto as negras aumentam 7,8%. Com isso o índice de vitimização negra total passa de 73,0 % em 2002 (morrem proporcionalmente 73% mais negros que brancos) para 146,5% em 2012, o que representa um aumento de 100,7% na vitimização negra total. Entre os jovens a situação é mais preocupante: o número de vítimas brancas cai 32,3%. O número de vítimas jovens negras aumenta 32,4%: o diametralmente oposto. As taxas brancas caem 28,6% enquanto as negras aumentam 6,5%. Com isso, o índice de vitimização negra total passa de 79,9% em 2002 (morrem proporcionalmente 79,9% mais jovens negros que brancos) para 168,6% em 2012, o que representa um aumento de 111% na vitimização de jovens negros.60

Da perspectiva da crítica do Imperialismo Capitalista, entretanto, o problema racial, que conforme já indicamos não pode ser reduzido a isso, levando em conta que vivemos em um modo de produção cujo nexo estruturante é a mercadoria, não pode ser analisado senão em confronto com as questões, digamos, “especificamente capitalistas”. Ainda segundo Waiselfisz, três fatores devem ser mencionados para a compreensão dessa situação – todos eles fundados em relações basilares do “capitalismo”. Os dois primeiros, “econômicos”, em primeiro lugar: a crescente privatização do aparelho de segurança. Como já ocorrido com outros serviços básicos, como a saúde, a educação e, mais recentemente, a previdência social, o Estado vai progressivamente se limitar a oferecer, para o conjunto da população, um mínimo – e muitas vezes nem isso – de acesso aos serviços e benefícios sociais considerados básicos. Para os setores com melhor condição financeira, emergem serviços privados de melhor qualidade (escolas, planos de saúde, planos previdenciários etc.). Com a segurança vem ocorrendo esse processo de forma acelerada nos últimos anos. Um segundo fator adiciona-se ao anterior. A segurança, a saúde, a educação, etc. são áreas que formam parte do jogo político-eleitoral e da disputa 60Disponível

em http://www.mapadaviolencia.org.br/

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partidária. As ações e a cobertura da segurança pública distribuem-se de forma extremamente desigual nas diversas áreas geográficas, priorizando espaços segundo sua visibilidade política, seu impacto na opinião pública e, principalmente, na mídia, que reage-se de forma bem diferenciada de acordo com o status social das vítimas. Como resultado, as áreas mais abastadas, de população predominantemente branca, ostentam os benefícios de uma dupla segurança, a pública e a privada, enquanto as áreas periféricas, de composição majoritariamente negra, nenhuma das duas.61

O terceiro fator digno de nota é a amarração ideológica dessa “ordem”, reproduzida amplamente com o apoio entusiasmado da “mídia” e de outros veículos de propaganda: por último, um terceiro fator que concorre para agravar o problema: um forte esquema de “naturalização” e aceitação social da violência que opera em vários níveis e mediante diversos mecanismos, mas fundamentalmente pela visão que uma determinada dose de violência, que varia de acordo com a época, o grupo social e o local, deve ser aceito e torna-se até necessário, inclusive por aquelas pessoas e instituições que teriam a obrigação e responsabilidade de proteger a sociedade da violência. Num primeiro nível, esse esquema opera pela culpabilização da vítima, justificando a violência dirigida, principalmente, a grupos vulneráveis que demandam proteção específica, como mulheres, crianças e adolescentes, idosos, negros etc. Os mecanismos dessa culpabilização são variados: a estuprada foi quem provocou ou ela se vestia como uma “vadia”; o adolescente vira marginal, delinqüente, drogado, traficante; aceitabilidade de castigos físicos ou punições morais com função “disciplinadora” por parte das famílias ou instituições, moreno de boné e bermudão é automaticamente suspeito etc. A própria existência de leis ou mecanismos específicos de proteção: estatutos da criança, do adolescente, do idoso; Lei Maria da Penha, ações afirmativas etc. indicam claramente as desigualdades e as vulnerabilidades existentes.62

Mas é evidente que o problema não se limita à periferia, onde assume as feições mais cruéis, identificadas por alguns grupos dessa luta como o Genocídio da Juventude Negra63. Na sede do Império, no ano de 2014, uma avalanche de protestos atinge mais de 170 cidades. Os principais símbolos dos protestos são Michael Brown, negro, 18 anos, assassinado a tiros no dia 9 de agosto por policiais brancos em Ferguson, Misouri e Eric Garner, morto por asfixia por um policial do departamento de polícia de Nova York dia

61Mesmo

lugar. lugar. 63Dentre muitas outras, http://www.racismomata.org/ e http://www.geledes.org.br/tag/genocidio-dajuventude-negra/#axzz3SaAHgrgB (ambas acessadas em 23 de fevereiro de 2015, às 12:29h). 62Mesmo

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17 de julho64. Nos protestos, que contam com o apoio de importantes figuras negras da sociedade estadunidense como Lebron James, Kobe Briant65 e Samuel L. Jackson, as pessoas exigem justiça e não se contentam com as manifestações pacíficas. “Tudo porque”, depois de décadas de luta por direitos civis – é bom lembrar que os direitos civis das gentes negras foram conquistados no final da década de 1970, ou seja, menos de duas gerações atrás66 – a justiça continua enxergando “muito bem obrigado” e sabe muito bem discernir a cor dos seus alvos67. Michael Brown estava rendido, com mãos ao alto. Eric Garner não foi socorrido pelos policiais que testemunharam sua execução. Parece-nos difícil acreditar que o problema são apenas os executores quando sabemos que é racista toda a base de sustentação dessa ordem na qual. A depender de quem é você e onde você se encontra – não se pode ao menos respirar68. E é lógico que a questão das “raças inferiores” não esteja a rigor situada “apenas” no elemento racial. Ainda mais importante é a estratificação hierárquica que ela significa. Assim, para além das gentes negras, é evidente, outros grupos cumprem essa “função” no macabro esquema ideológico imperialista. Tanto mais quando ousarem contestar o estatuto a que historicamente foram submetidos. É o caso das mulheres, que protagonizam negativamente o mesmo Mapa da Violência 2012, que reflete o aumento da violência contra a mulher (ou, ambiguamente, o aumento do registro dessa violência; os métodos não permitem precisar, mas isso não

64http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/11/nova-york-vive-segundo-dia-de-protestos-por-caso-de-

ferguson.html; http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2014/11/ferguson-ausencia-deindiciamento-de-policial-provoca-indignacao; http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2014/11/onda-de-indignacao-em-ferguson-se-estende-a170-cidades-dos-eua; http://www.ebc.com.br/noticias/internacional/2014/11/ferguson-mais-de-400pessoas-sao-presas-por-protestos-nos-estados 65http://www.ebc.com.br/esportes/2014/12/i-cant-breathe-atletas-norte-americanos-lembram-ericgarner-vitima-de-violencia 66A título de ilustração, mamãe e papai são mais velhos que os direitos civis da população negra dos Estados Unidos. 67cf: Bezerra da Silva, Pena de Morte, disponível em http://www.vagalume.com.br/bezerra-da-silva/penade-morte.html. Acessada em 21/2/2015 às 18:17h. 68Para voltar à periferia: Ferguson é aqui e em todo lugar: http://passapalavra.info/2014/12/10148 (acessada em 23 de fevereiro de 2015, às 12:29h). Que se faça constar: conforme o “processo” legal vai encaminhando e os resultados parciais vão sendo publicados – com a absolvição dos policiais – a população volta às ruas – raramente de forma “pacífica”.

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muda a gravidade da situação69). Segundo essa pesquisa, entre 1980 e 2010 – ou seja, aproximadamente o tempo da nossa vida – mais de 92 mil mulheres brasileiras foram assassinadas – o que corresponde mais ou menos à população de Mogi-Mirim – um aumento de 230%. Somente na última década, foram mais de 43 mil. Em termos mais emblemáticos: em média, não se passa duas horas sem que uma mulher brasileira seja morta por condições violentas70. Por meio de muita luta, diversos movimentos feministas procuram estabelecer um regime jurídico próprio para enfrentar a banalização do Feminicído 71. Segundo ranking internacional do feminicídio, o Brasil ocupa a sétima posição entre 84 países, muito por conta do grande número de violências cometidas no foro íntimo, geralmente por parentes próximos e/ou pelo cônjuge – não tão frequentes em outros países analisados. Segundo Adriana Ramos de Mello, juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,

69Uma

ponderação sobre as taxas de violência contra a mulher na Suécia são bastante ilustrativas dessa dificuldade de compreensão do problema com base no referencial estatístico. Por conta do aumento da legislação e do oferecimento de condições para que as mulheres denunciassem, houve um grande aumento da incidência das taxas de violência, o que, efetivamente, não pode vir a ser entendido como uma piora da condição de vida das mulheres suecas. Com efeito, inclusive por conta das diferentes legislações dos diferentes países, um crime pode ou não ser tipificado como violência contra a mulher, ou nem mesmo ser registrado (por medo, ou mesmo por ausência de instituições que recebem essas denúncias). “Nesse sentido, uma comparação internacional de estatísticas criminais pode ser enganosa. Botsuana, no oeste da África, possui, atualmente, o maior número de estupros – 92,9 por cada 100 mil habitantes – mas um total de 63 países não submetem suas estatísticas, incluindo a África do Sul, onde uma pesquisa conduzida há três anos mostrou que um a cada quatro homens já admitiram ter estuprado uma mulher no país. Em 2010, o relatório da Anistia Internacional destacou que a violência sexual ocorre em todos os países do mundo, apesar de estatísticas oficiais revelarem que a incidência desse tipo de crime em nações como Hong Kong ou Mongólia é zero. Além disso, dependendo do país, as mulheres são menos suscetíveis a registrar um ataque e, em outros, nem conseguem formalizá-lo junto às delegacias competentes. Enrico Bisogno, especialista em estatística das Nações Unidas, afirma que as pesquisas revelam que apenas um em cada dez casos é registrado na polícia, em muitos países do mundo. “Nós sempre usamos a metáfora do iceberg para explicar essa situação. O que podemos ver é somente a ponta dele, enquanto que há uma imensidão que se estende abaixo do mar, ou seja, fora do radar das agências que fiscalizam o cumprimento da lei”, diz. http://www.compromissoeatitude.org.br/o-que-ha-por-tras-da-alta-taxa-de-estupro-nasuecia-bbc-brasil-18092012/ Do nosso ponto de vista, ainda que existam muitos problemas científicos (estatísticos) para o estabelecimento da topografia da violência, isso não faz dessa questão menos importante. Os números da “ponta do iceberg” já são suficientemente alarmantes. Além disso, independentemente dos números, nos parece que os argumentos se sustentam. Seria uma postura demasiado hipócrita invalidar os argumentos com base no formalismo estatístico. 70http://www.compromissoeatitude.org.br/feminicidio-desafios-e-recomendacoes-para-enfrentar-amais-extrema-violencia-contra-as-mulheres/ 71“Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher”, cujas motivações mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre as mulheres”, mesmo lugar. Durante a escritura dessa tese, felizmente o movimento feminista conquistou a tipificação jurídica do feminicídio, conforme a seguinte publicação: http://www.brasil.gov.br/cidadania-ejustica/2015/03/ministra-fala-sobre-aprovacao-da-lei-do-feminicidio. Acessada dia 17 de março de 2015, às 12:55h.

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o feminicídio íntimo é um contínuo de violência. Antes de ser assassinada a mulher já passou por todo o ciclo de violência, na maior parte das vezes, e já vinha sofrendo muito tempo antes. A maioria dos crimes ocorre quando a mulher quer deixar o relacionamento e o homem não aceita a sua não subserviência72.

Para o combate ao Imperialismo Capitalista, que vínhamos travando de modo mais direto, e que tem na violência um elemento crucial, é importante que entendamos que essa estratificação que vimos esboçando é decisiva. Seu ponto principal é a eleição mais ou menos arbitrária de critérios que estabelecem que determinados grupos sociais que possuem determinadas características se enquadram nas posições “inferiores” dessa bizarra hierarquia; e pelos mecanismos de justificação da ideologia imperialista, “merecem” ser violentadas. Conforme o mesmo Julio Jacobo Waiselfisz, basicamente, o mecanismo de autojustificação de várias instituições, principalmente aquelas que deveriam zelar pela segurança e pela proteção da mulher, coloca a vítima como culpada. A mulher é responsabilizada pela violência que sofre. Este tipo de postura institucional de tolerância à violência e impunidade não só permite como incentiva o feminicídio73.

Novamente, se engana quem julgar que é uma questão especificamente brasileira. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) “mostraram que a violência contra as mulheres é muito mais grave e generalizada do que se suspeitava anteriormente”

,

74

sendo que (dados de 1999), a depender do país, entre 10% e 52% das mulheres foram agredidas fisicamente pelo parceiro em algum momento das suas vidas e entre 10% e 30% já haviam sofrido violência sexual por parte do parceiro íntimo75. E para que não reste dúvida de que o problema não é “privilégio” da periferia, tomemos em consideração que nesse mesmo conjunto de pesquisas, chega-se à constatação que um grande número de homens acha que algumas vezes é justificável bater na sua esposa: nos Estados Unidos, cerca de 25% (um em cada quatro) – número semelhante ao brasileiro – e na Alemanha, chega a quase 30%76. Ainda na União Européia, o Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero (EIGE) afirma que “a violência doméstica contra as mulheres continua a ser uma prática 'generalizada, escondida e pouco comunicada' (…)

72Mesmo

lugar. lugar. 74http://www.compromissoeatitude.org.br/alguns-numeros-sobre-aviolencia-contra-as-mulheres-nomundo/ 75Mesmo lugar. 76http://www.compromissoeatitude.org.br/em-muitos-paises-25-ou-mais-acham-justificavel-umhomem-bater-na-esposa/ 73Mesmo

29

realçando que 'as vítimas não recebem apoio suficiente'“

. Ou seja: a estratificação

77

imperialista faz-se presente independentemente do nível de “desenvolvimento” em que a sociedade se encontra. Não obstante, como não deveria surpreender, dado que em nosso mundo a mercadoria é o vínculo principal, uma vez mais a questão “econômica” se mostra fundamental. Não precisamos mobilizar aqui a estrutura dos salários que estratifica – como do conhecimento de todo o mundo – a mão-de-obra remunerando menos – significativamente menos – mulheres e negros e menos ainda as mulheres negras. O argumento já é conhecido. Mas para que tenhamos uma idéia um pouco mais concreta de como toda a pluralidade humana pode ser enquadrada como mercadoria a partir da ideologia dominante – mesmo quando aparentemente em favor das pessoas desprivilegiadas – observemos o argumento que sustenta a preocupação desses organismos multinacionais que andam investigando e combatendo a violência contra a mulher: os custos sociais e econômicos da exploração. Em suas próprias palavras, para que ninguém nos acuse de distorção: vários estudos apontam que os custos sociais e econômicos da violência contra as mulheres são enormes e têm efeito cascata em toda a sociedade. As mulheres podem sofrer vários tipos de incapacidade – passageira ou não – para o trabalho, perda de salários, isolamento, falta de participação nas atividades regulares e limitada capacidade de cuidar de si própria, dos filhos e de outros membros da família78.

Não vamos deixar de anotar que é absurdo e inaceitável que a luta por melhores condições de vida das mulheres seja reduzida a um problema de “custos sociais e econômicos”. Somente uma sociedade em que a ideologia do “econômico” – voltaremos ao ponto – permeia muitas camadas da consciência permite que um discurso desse tipo possa ser sustentado “em favor” das mulheres. Não é aceitável que nos contentemos com um luta pautada nesses termos e a cada dia se faz mais importante a reconstrução de uma demanda já bastante antiga, ainda que fora de moda: a emancipação em geral, e a das mulheres em particular. Mas antes de finalizarmos a seção, ainda temos que percorrer alguns circuitos. Não poderíamos nos calar sobre a base da base da estrutura de violência que coaduna com o Imperialismo Capitalista: as – fiquemos no feminino, por opção delas – de mais 77Mesmo

lugar.

78http://www.compromissoeatitude.org.br/alguns-numeros-sobre-aviolencia-contra-as-mulheres-no-

mundo

30

difícil “classificação” – e provavelmente por isso, aquelas que sofrem as mortes mais violentas: as LGBT. A sigla tem sua origem nas iniciais de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Trânsgêneros, mas atualmente é utilizada para identificar todas as pessoas que não se enquadram e/ou não querem ser enquadradas nos esquemas binários de representação de gênero e/ou orientação sexual. Não cabe aqui uma discussão aprofundada sobre as inumeráveis particularidades dessas pessoas, e nos centraremos no que vinha alinhavando nosso argumento: a violência contra as assim consideradas “raças inferiores” e sua funcionalidade para o Imperialismo Capitalista. Com relação às LGBT, as dificuldades são maiores, porque os dados são ainda mais imprecisos. Contudo, mais uma vez, já são suficientemente alarmantes, particularmente no Brasil, onde, no ano de 2014, foram registrados 50% de todos os casos de assassinatos de pessoas trans no mundo79, corroborando o argumento do 2º Relatório Sobre Violência Homofóbica 2012, que conclui que (…) a homo‐lesbo‐transfobia é estrutural no Brasil, isto é, opera de forma a desumanizar as expressões de sexualidade divergentes da heterossexual, atingindo a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em todos os níveis e podendo ser encontrada nos mais diversos espaços, desde os institucionais até o nível familiar. Concluímos que muitas instituições e segmentos da sociedade brasileira desumanizam a população LGBT, ou seja, entendem essa população como pecadores, criminosos ou doentes que precisam ser “corrigidos” ou, até mesmo, exterminados para que não “contaminem” o restante da sociedade80.

Ao que nos aproximamos ainda mais do que nos interessa em particular para o modo como navegamos por nossa tese: compreender as relações entre a estratificação da dominação e o Imperialismo Capitalista. O aspecto mais espetacular dessa questão é o preocupante aumento da existência de “grupos especializados em crimes de ódio contra a população LGBT”. Entretanto, é preciso olhar além e perceber as bases nas quais essa violência é erigida e legitimada, observando “os mais diversos espaços, desde os institucionais até o nível familiar” em que se fundamenta uma mentalidade e uma prática de discriminação por meio da intolerância à diferença. Porque esse é um ingrediente fundamental para tornar possíveis o caráter imperialista81 e suas práticas – que transcendem, obviamente, a parte mais visível do Império [a política internacional dos Estados Unidos da América] e atinge a sociedade que o Imperialismo tratou de 79Citado

em https://homofobiamata.wordpress.com. em http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012. 81Arendt, 294 e seguintes. 80Disponível

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“globalizar” mantendo e aumentando a hierarquia de exploração e submissão que se alimenta do ódio. Voltando ao emblemático caso das pessoas LGBT, não podemos perder de vista que, os assassinatos são, em geral, marcados pela violência extrema. Além da arma de fogo, muitas vítimas foram mortas por armas brancas – faca, foice, machado – espancamento e enforcamento. Há ainda casos de degolamento, tortura e carbonização. Essas características indicam que se tratam não de ocorrências banais, mas de crimes de ódio contra a população LGBT82.

Brutalidade; barbárie, pura e simples. Mas nada original. Do contrário, e isso consiste um dos eixos fundamentais do nosso argumento, reflete relações muito antigas que são constantemente resinificadas a partir da substituição conflituosa dos nexos estruturantes da sociedade. Neste caso específico, embora a relação social predominante da nossa sociedade seja – demos de barato por hora – a mercadoria, sabemos que não é possível reduzir toda a exploração das pessoas negras, das pessoas mulheres e das pessoas LGBT ao problema “econômico”. Só é possível fazê-lo incorrendo em dois equívocos muito grosseiros: o anacronismo e o economicismo, que não obstante a amplitude de seus debates no que concerne às bibliografias sobre o conhecimento das sociedades humanas, continuam a atormentar as mentes de quem procura descobrir o que há por debaixo das aparências das relações sociais. Em nosso caso, estamos – por conta da escolha de nosso “objeto” e da bibliografia que nos sustenta – constantemente cruzando a linha do economicismo, inclusive para denunciá-lo – e é por isso que dedicaremos uma porção do nosso trabalho para debatê-lo mais diretamente. O que é fundamental que deixemos claro é que não estamos aqui afirmando que as explorações podem ser reduzidas à exploração “econômica”, ou que essa seja a “principal”. Não podemos automaticamente chamar de “econômica” uma discriminação que tem motivações psicológicas, sociais, históricas. Ao mesmo tempo, precisamos estar alertas para que não deixemos dúvidas a quem por ventura se arriscar a ler essa tese de que não estamos creditando ao Imperialismo Capitalista uma estratificação que lhe é muito anterior (racismo, machismo, heteronormatividade). Não estamos aqui – ou, pelo menos é daquilo que procuramos nos afastar – a dizer que, resolvidos os problemas do modo de produção do capital – o que só é possível com a sua abolição – automaticamente se resolveriam os problemas relativos à raça, à identidade de gênero e

82https://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/

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à orientação sexual. Do contrário, o que estamos afirmando – com menos ou mais convicção – é que não acreditamos que em sociedades organizadas pela exploração do trabalho que aparece como mercadoria seja possível emancipar-se senão enfrentando também a forma mercadoria: em sociedades capitalistas, relação social que opera como se sustentasse as demais83. Em síntese, gostaríamos de explicitar que 1) o fato de que, em determinado momento, a mercadoria passou a mediar as outras relações sociais deve ser levado em consideração na luta pela emancipação nas sociedades capitalistas; 2) não é possível lutar pela emancipação sem que se lute contra a dominação do Capital; 3) a constituição da mentalidade imperialista repousa suas bases na mesma matriz da mentalidade que sustenta a ordem capitalista, em que “o outro” é considerado aquele que pode ser violentado. Para tanto, é importante que façamos a ressalva de que não é intencional o fato de que estamos incorrendo no que outros grupos em luta denunciam como a vitimização que impede o empoderamento. Sem dúvida concordamos que esse é um aspecto primordial e aparentemente o modo como vimos argumentando joga água nesse traiçoeiro moinho. Contudo, a despeito do fato de que, em nossa autocrítica, não estamos em conformidade integral com as posições que desejávamos defender, não nos vemos em condição de escapar do fato de que essa hierarquização que procura justificar a violência é uma constituição essencial da ideologia imperialista que precisa ser denunciada. Sendo assim, nos colocamos em solidariedade a que está na busca por

83“Porém

a forma mercadoria e a relação de valor dos produtos de trabalho, na qual ele se representa, não têm que ver absolutamente nada com sua natureza física e com as relações materiais que daí se originam. Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (…) Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém, como a análise precedente já demonstrou, do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias. Objetos de uso se tornam mercadorias apenas por serem produtos de trabalho privados, exercidos independentemente uns dos outros. O complexo desses trabalhos privados forma o trabalho social total. Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos privados só atuam, de fato, como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, dos produtores.” Marx, Capital, Cap. I. p. 71

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novas formas de significação da superação dessa ideologia, cientes das contradições que nos envolvem84. Como uma espécie de contrapartida, nos fiamos na convicção de que quando se luta contra a exploração é o proletariado que não apenas conduz a luta, mas define os alvos, os métodos, os lugares e os instrumentos de luta; aliar−se ao proletariado é unir−se a ele em suas posições, em sua ideologia; é aderir aos motivos de seu combate; é fundir−se com ele. Mas se é contra o poder que se luta, então todos aqueles sobre quem o poder se exerce como abuso, todos aqueles que o reconhecem como intolerável, podem começar a luta onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria. E iniciando esta luta − que é a luta deles − de que conhecem perfeitamente o alvo e de que podem determinar o método, eles entram no processo revolucionário. Evidentemente como aliado do proletariado pois, se o poder se exerce como ele se exerce, é para manter a exploração capitalista. Eles servem realmente à causa da revolução proletária lutando precisamente onde a opressão se exerce sobre eles. As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança de titular. E, na medida em que devem combater todos os controles e coerções que reproduzem o mesmo poder em todos os lugares, esses movimentos estão ligados ao movimento revolucionário do proletariado. Isto quer dizer que a generalidade da luta certamente não se faz por meio da totalização de que você falava há pouco, por meio da totalização teórica, da "verdade". O que dá generalidade à luta é o próprio sistema do poder, todas as suas formas de exercício e aplicação85.

Cientes das dificuldades que daí incorrem, procuraremos colocar nosso trabalho ao lado de quem está travando essas lutas, sem com isso deixar de perceber “a

84Somente

para começar a reflexão, sugerimos a leitura de http://passapalavra.info/2013/04/76480; http://passapalavra.info/2014/12/101210 e http://passapalavra.info/2014/12/101252; além de http://www.fescfafic.edu.br/revista/index.php/component/k2/78-o-terceiro-setor-e-o-servico-socialempoderar-ou-vitimizar; http://www.dan.unb.br/images/doc/Serie319empdf.pdf; http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/669/1/05.pdf e http://enquantoensaio.blogspot.com.br/2013/08/sobre-vitimizacao-das-mulheres-em.html (todas acessadas em 23 de fevereiro de 2015 às 13:03h). 85Conversa entre Foucault e Deleuze, Os intelectuais e o poder [1972]

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indignidade de falar pelos outros”, fundada na convicção que exige que as pessoas a quem nos referimos falem por elas próprias86. No que nos compete especificamente à nossa tese – como se isso existisse – procuraremos, como já dito, “limpar o terreno” das interpretações sobre a história da constituição desse mundo em que a mercadoria assume protagonismo. Para nós, essa história é a história do Imperialismo Capitalista: a imposição desse modo de vida a uma quantidade a cada dia maior de pessoas. Portanto, procuraremos expor algumas das inconsistências da visão de mundo que o justifica; e, como teremos a ocasião de discutir mais de perto, é a maneira como se articula globalmente o imperialismo que faz com que não seja possível, em seus quadros, a constituição duradoura de uma sociedade democrática e tolerante com a diferença. Do contrário, a maneira como o modo de produção capitalista se formou durante o imperialismo capitalista é essencialmente “totalitária”, ainda que, durante esse intervalo temporal que o constitui, tenha sido possível o estabelecimento de precários arranjos que mitigaram temporária e seletivamente essas tendências. Se, como afirmou Hobsbawm na passagem citada, é da característica dos impérios procurar concentrar a violência na periferia, onde ela se manifesta de modo cristalino, é também da característica dos impérios que nos centros metropolitanos – ou, bem dizendo, de determinados grupos ali originados – de onde emana a mentalidade imperialista que a violência retorne com muita força, naquilo que

86Mesmo

lugar. Deleuze credita a Foucault o pioneirismo no ensinamento sobre “a indignidade de falar pelos outros”. Uma questão que nos parece importante destacar aqui, e que já deve ter chamado a atenção de quem estiver porventura lendo esse texto é a problemática da flexão de gêneros que nossa língua portuguesa nos impõe. Durante o processo de escrita desta tese (entre 2012 e 2015), muito se discutiu sobre essa questão, mas as dificuldades ainda não foram superadas. Diante da consciência do machismo, mesmo quando a leitura se mostrava dificultosa [o que não me parece ruim, porque destaca exatamente o que se pretende denunciar] me pareceu a princípio que a escolha por sinais gráficos de indeterminação [x e @, basicamente] se apresentavam como a melhor solução. Hoje não é mais assim, e encontramos diversas referências aos pontos negativos dessa atitude, com sugestões de como suprimi-las, tanto pelas próprias questões ligadas aos gêneros e identidades quanto ao acesso por pessoas com dificuldades visuais, para não falarmos que desde que surgiu a proposta dos sinais gráficos o processo não avançou senão em circunscritos meios universitários. Acredito que é possível que cheguemos algum dia a assimilálas. Contudo, não nos parece que conseguimos evitá-las de todo nesta tese. Em algumas passagens, procuraremos soluções melhores, noutras deixaremos com os sinais gráficos. Conversando com pessoas que militam diretamente na causa, ouvimos e lemos que ainda existem muitas divergências sobre o assunto e ainda não se têm uma solução consensual. O fato de que nossa posição, em um texto acadêmico e em uma área profundamente masculinizada, provoca desconforto na leitura não nos parece de todo despropositada. Esperamos que o incômodo estimule as reflexões. Entretanto, que fique esta nota como uma confissão dos nossos limites e uma demonstração de solidariedade a todas as pessoas que conseguem não se deixar prender por esse tipo de amarras, embora tudo o mais convirja para que se nos rotulem de qualquer modo. Como sugestão de leitura sobre essa dificuldade, sugerimos: http://blogueirasfeministas.com/2013/08/linguagem-inclusiva-de-genero-em-trabalho-academico

35

Hannah Arendt definiu por “efeito bumerangue”

87.

Assim, não há alternativa senão o

combate total em cada uma das frentes da opressão em todos os lugares. Os caminhos que iremos percorrer nas próximas páginas certamente têm a cor vermelha do sangue da população (especialmente a população das consideradas 'raças inferiores'88) escorrendo pelas ruas em meio a bombas de gás, granadas de mão, balas de borracha e outras armas mais ou menos letais. Walter Benjamin, na sua décima segunda lição sobre a história, recorda que o sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a social-democracia. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados89.

Não conseguiríamos e nem pretendemos “fugir dessa dura realidade”. Mas seguimos na “aposta” de que na sociedade que sobreviver a isso tudo – inevitavelmente alguma sociedade sobreviverá – as mulheres e os homens se organizarão mais uma vez – como sempre foi o “natural”: contra o poder-comando. Contra a Autoridade, contra o Estado e contra o Capital. Escrevemos em solidariedade à luta para que a sociedade que sobreviver a isso tudo seja menos injusta e menos hierárquica; mais igualitária e mais livre. Mas essa esperança não pode nos afastar dos perigos que nos cercam. Sendo assim, ao mesmo tempo, não podemos deixar de nos indagar, nos lembrando daquela antiga prosa: Ainda há, aqui, ali e acolá, algozes em número suficiente para executar o que eles ordenarem? Há. E é por isso que a primeira de todas as exigências da nossa existência é que nos mobilizemos para que aquilo nunca mais se repita. A isso, enquanto

87Arendt,

por exemplo na já citada página 293. YUCA, Marcelo . SILVA, Jorge Mário da (Seu Jorge) e CAPPELLETTE, A carne (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=PrhciNo0Uh8) e GIL, Gilberto e VELOSO, Caetano, Haiti http://www.youtube.com/watch?v=TrgdvJQ6XNw 89Magia e Técnica, Arte e Política (Ed. Brasiliense), pág. 228-229. 88cf:

36

“inquiridores do tempo presente”

90

devemos direcionar todos os nossos esforços91.

Assim concebemos esta tese.

90Fernand

Braudel – História e Ciências Sociais. A longa duração. [Annales E.S.C. Nº4 out-dez 1958], em Escritos sobre a História [1ª ed. 1969: Flamarion Paris] trad. J. Guinburg e Tereza Cristina Silveira da Mota. São Paulo. Ed. Perspectiva, 2005. 1ª reimp. da 2ª ed. De 1992. p. 56. 91Adorno: Educação após Auschwitz; http://adorno.planetaclix.pt/tadorno10.htm.

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Capítulo 2. Sobre a periodização do Imperialismo Capitalista “Quem pensa no tempo também perde tempo. [...] Pois é dá um tempo, que o tempo é pra já.”

(Wilson das Neves - Paulo Cesar Pinheiro)

2.1 Sobre as temporalidades em geral Segundo Fernand Braudel, deve ser atribuída a Lucien Febvre a máxima 'história, ciência do passado, ciência do presente'92 que, transmitida ao longo das últimas gerações de estudantes do oficio dos historiadores, elevou ao lugar comum a verdade segundo a qual todo o discurso histórico revela mais sobre o presente do historiador que sobre o passado por ele apresentado. Ou, o que não é exatamente a mesma coisa, mas é também elucidativo: “compreender ontem e compreender hoje, para um historiador, é a mesma operação” 93. Entretanto, por razões diversas, a esmagadora maioria das pessoas que estudam a disciplina História ainda é reticente no lançar-se à tarefa de enunciar o seu próprio momento presente enquanto objeto de seus estudos. Mesmo que estes autores estejamos todos, em menor ou maior grau, pautados pelos valores da dita Era Moderna, na qual – como sabido desde o seu princípio – coloca-se o homem no centro das coisas e o tempo presente como necessidade última das suas realizações a partir da auto certificação94. Alegam esses historiadores reticentes que, na turbulência do acontecer, os 92Mesmo

lugar, p. 58 F. A produção ou o capitalismo em casa alheia. Em Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: Vol. 2 Os jogos das trocas. Tradução Telma Costa; revisão da tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira, 2ª ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 1ª ed. 1996. [1979] p. 199. Ao que acrescenta “será possível imaginar a paixão da história detendo-se bruscamente, a uma distância respeitosa da atualidade, em que seria indecente, até perigoso, dar mais um passo?” Noutro campo, parece que essa prosa toda deve sua origem a um problema da Psicanálise. Até onde se divulga em “fontes nãoconfiáveis” da internet, (o que seria uma “fonte confiável”?), Freud disse que “O homem é dono do que cala e escravo do que fala. Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”, dando ares de credibilidade a uma verdade que qualquer matuto a conhece bem: desconfiai. Ou, conforme cantava o Mussum e os outros Originais do Samba, mais próximos da sabedoria dos antigos “falador passa mal”. 94O “problema” da Modernidade é enorme, inclusive muito maior do que o “problema” do Imperialismo Capitalista. O que nos interessaria aqui seria como essa duas esferas se tocam. E nem isso poderemos abordar. Para uma apreensão da Modernidade, sugerimos a leitura de Jürgen Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade – doze lições; Martins Fontes, São Paulo, segunda tiragem: 2002, tradução Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento [1985]. 93Braudel,

38

“elementos da análise” ainda não estão suficientemente sedimentados, o que, por seu turno, tornaria a tarefa historiográfica mais difícil. Não precisamos discordar. É bem provável que estejam corretos ao refugiarem-se na certeza de que a “(...) vida presente, [é] confusa e pouco legível porque demasiado atravancada de gestos e sinais menores (...)” 95, posto que “com sua fumaça excessiva, enche a consciência dos contemporâneos, mas não dura, vê-se apenas a sua chama”

. Nas palavras do historiador das

96

temporalidades, “o tempo curto é a mais caprichosa, a mais enganadora das durações.” 97 Para a compreensão das questões que queremos investigar é preciso, de acordo com a perspectiva que assumimos, recorrer também a “uma história de respiração mais contida”

. Elas não se opõem. Do contrário, se superpõem – este é um diapasão

98

fundamental desta tese: em que medida vivemos no mesmo tempo de nossos antepassados? Em que medida nosso tempo é completamente “novo”? Mas, por outro lado, nos parece que as razões principais que justificam a reticência sobre a produção deste discurso historiográfico sobre o presente podem ser condensadas no fato, evidente em si mesmo, de que, como o discurso historiográfico é um discurso retrospectivo – e, portanto, pautado pelas “profecias sobre o passado” – os historiadores de seu próprio tempo precisam sair da sua zona de conforto e adentrar mais explicitamente nos rumos da política. E isso evidentemente deixa a todos nós os acadêmicos com muitas pulgas atrás da orelha, acostumados que somos com os confortos do intramuros das bibliotecas e das salas de aula; desacostumados que somos com as mudanças que se processam nas ruas, nos escritórios, nas fábricas, nas residências: em todos os lugares desprotegidos da aura sagrada da Academia99. Por outro lado, esta também é uma enorme dificuldade metodológica que ainda não foi “resolvida” pelos “historiadores modernos” desde que também tiveram que se se

95Braudel,

Escritos sobre a História, p. 56. lugar, p. 45. 97Mesmo texto, p. 46. 98Mesma obra, p. 44. Ficaremos aqui com a “respiração contida” da longa duração, procurando realçar as contradições essenciais do capital desde os fins do século XIX, como vimos argumentando, uma estrutura temporal que parece sobreviver em nossos dias. Não recorreremos aqui ao tempo da longuíssima duração – o tempo das civilizações – ainda que procuremos apontar para os elementos que imaginamos necessários para tocar nossa problemática àquela. 99Esta instituição de origem feudal que, juízos de valor à parte, preservou diversas características daquela sociedade. 96Mesmo

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transformar em alguma medida, ao mesmo tempo, em “cientistas sociais”. Ou, ao menos, desde que não podem mais cumprir seu ofício ao largo daquele100. Neste embate, historiadores e social scientists poderiam pois eternamente passar a bola um para o outro no que tange ao documento morto e ao testemunho muito vivo, ao passado longínquo, à atualidade muito próxima. Não acho que esse problema seja essencial. Presente e passado iluminam-se com luz recíproca. E se se atenta exclusivamente na estreita atualidade, a atenção incidirá sobre o que se mexe depressa, brilha com razão ou sem razão, ou acaba de mudar, ou faz barulho, ou se revela sem esforço. Todo um fatual, tão fastidioso como o das ciências históricas, espreita o observador apressado, etnógrafo que encontra por três meses o povo polinésio, sociólogo industrial que entrega os clichês de sua última investigação, ou que pensa, com questionários hábeis, as combinações dos cartões perfurados, cercar perfeitamente um mecanismo social. O social é uma caça muito mais ardilosa.101

Nós que, no entanto, não nos reconhecemos entre os historiadores, nem tampouco entre os cientistas sociais, procuramos observar atentamente e aprender com debate sobre as respectivas reticências e tocar o barco102: vamos tentar aqui conversar sobre o hoje, para além do tempo curto, procurando, na medida do possível, “(...) reencontrar o jogo múltiplo da vida, todos os seus movimentos, todas as suas durações, todas as suas rupturas, todas as suas variações”

103

– como o velho marinheiro, com

vagar – procurando situar a nossa discussão “de um pólo a outro do tempo, do instantâneo à longa duração” 104. Vivemos o tempo dos acirramentos da polarização latente, e – ainda mais nesses momentos – não tomar partido é tomar o partido da ordem. E essa ordem é nefasta, injusta e deve ser derrubada. Temos aqui, portanto, um objetivo declarado: tecer algum tipo de discurso que se posiciona ao lado de quem luta pela constituição de uma 100Novais,

Aproximações, p. 380. História e Ciências Sociais. A longa duração. p. 57. 102A despeito de nossa desconfiança com essa prosa de modelo, tomada de arroubo pelos economistas que a lançaram por caminhos que não nos interessam, Braudel nos dá uma bela imagem, que coaduna com o espírito de nossa tese, ao que oferecemo-la à apreciação: “Comparei, por vezes, os modelos a navios. O navio construído, o meu interesse é pô-lo na água, ver se flutua, depois fazê-lo subir ou descer, à minha vontade, as águas do tempo. O naufrágio é sempre o momento mais significativo. (…) Para mim, a pesquisa deve ser sempre conduzida, da realidade social ao modelo, depois deste àquela, e assim por diante, por uma sequência de retoques, de viagens pacientemente renovadas. O modelo é, assim, alternadamente, ensaio de explicação da estrutura, instrumento de controle, verificação da solidez e da própria vida de uma estrutura dada. Se eu fabricasse um modelo a partir do atual, gostaria de recolocá-lo imediatamente na realidade, depois fazê-lo remontar no tempo, se possível até o seu nascimento. Após o que, calcularia sua vida provável, até a próxima ruptura, segundo o movimento concomitante de outras realidades sociais. A não ser que, servindo-me dele, como de um elemento de comparação, eu o faça passear no tempo ou no espaço, em busca de outras realidades capazes de se iluminar graças a ele, com uma luz nova.” Mesmo texto, p. 68. 103Fernand Braudel – História e Ciências Sociais. A longa duração, p. 71 104Braudel, p. 44 101Braudel,

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sociedade mais igualitária e mais livre. Nas palavras engajadas que brota da prosa de Foucault com Deleuze, queremos tecer um discurso que seja “como uma caixa de ferramentas (…) que sirva (...) que funcione. E não para si mesma”. Lembrando mais uma vez: tentando ao máximo nunca cometer a indignidade de pretender falar pelo outro, por que se designar os focos, denunciá−los, falar deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse respeito − forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo − é uma primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder105.

Precisamos conquistar e ceder a voz a quem dela faça bom uso. Precisamos que nossas idéias voltem a ser perigosas106. E, acima de todas as outras coisas, precisamos fincar os pés no agora107, para o que “precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nossa tarefa é criar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo.”

108

A tarefa é urgente –

como sempre, aliás. Não é sobre isso que falaremos; mas é com isso que pensamos.

105Foucault

e Deleuze em diálogo: Os intelectuais e o Poder [1972]. objetivos e métodos no escândalo de Strasbourg, publicado em Situacionista: teoria e prática da revolução/ Internacional Situacionista; [tradução de Francis Wuillaume, Leo Vinicius], São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. (Coleção Baderna). Esta citação – cuja referência completa foi recuperada para nós pelo estimado Rafael Batata Sem Umbigo Girondi Dias, acadêmico a contragosto; artista e situacionista bastardo por vocação – em geral atribuída a Guy Debord, mas publicada anonimamente na revista Internationale Situationniste n°11, em outubro de 1967; pode ser encontrada na página 72 desta edição da Conrad. Pedimos aqui axs potenciais leitorxs que guardem isso em mente na sua tentativa de estabelecer suas próprias questões enquanto tentam acompanhar nossos no mais das vezes confusos raciocínios. Sabemos que – tanto pelo caminho pelo qual escolhemos argumentar quanto pelas necessidades acadêmicas desse trabalho – (nuns momentos mais que noutros) essas relações, a despeito de nosso esforço, não serão sempre evidentes. Pedimos paciência e assumimos o compromisso de que, mesmo quando essa tentativa em alguns momentos nos tirarem do foco, tentaremos estabelecer – ainda que em breves enunciados – as conexões de nossas questões com o maior número possível de possibilidades de pesquisas, cientes de que estamos todos em um esforço de uma pesquisa longa, lenta e inescapavelmente coletiva. O estilo dessa tese, senão porque já é condizente com o estilo de quem a escreve, é ainda mais propensa às digressões por conta de seu objeto e seus objetivos mais amplos. Tentaremos agradar tanto aos gregos quanto aos troianos, ainda que, neste caso, não saibamos ao certo dizer quem somos os gregos e quem somos os troianos. 107Benjamin, teses 14 e seguintes. p. 229. 108Benjamin, p. 226. 106Nossos

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2.2 Sobre a periodização do Imperialismo Capitalista como um todo Nosso hoje precisa ter um início lógico109. Talvez o início que escolhemos para o nosso hoje possa parecer longínquo demais aos apressados demais e àqueles desacostumados com a lenta temporalidade da história; ou seja, todos nós. Sabemos que a história é um desenrolar de coisas. E sabemos que a nossa tarefa enquanto historiadores – todos somos, em algum grau, obrigados a prestar contas com o tempo – é sempre uma tentativa de observar esse desenrolar-se e procurar, espanando a poeira dos acontecimentos, algum tipo de inteligibilidade que possa produzir um discurso. Tanto sobre as mudanças quanto sobre aquilo que permanece. E assim, talvez, possamos conferir algum sentido à história110. O difícil – talvez impossível – é estabelecer um critério teórico objetivo que balize a tarefa. Mesmo porque, “sempre há continuidades, semelhanças e diferenças. Num determinado momento, o importante, do ponto de vista analítico, é o que não varia, o semelhante; em outro, é justamente o contrário” 111. Desta maneira, mais “na raça” do que propriamente embasados pela “teoria”, procuramos descobrir – insistimos, para que possamos ter algum tipo de inteligibilidade – “porque num certo período acontece alguma coisa que é diferente do que era antes (...)” 112. Isso porque, concordando com a figura de Norbert Elias, consideramos que o mero conceito de mudança social não basta como instrumento de pesquisa, para explicar esses fatos. Uma simples mudança pode ser do mesmo tipo que se observa em uma nuvem ou em um anel de fumaça: ora se parecem uma coisa, ora se parecem outra. Um conceito de mudança social deve estabelecer uma clara distinção entre as mudanças que se relacionam com a estrutura da sociedade e as que não. E além do mais, entre mudanças estruturais sem uma direção específica e as que seguem um rumo particular ao longo de várias gerações113.

Escolhemos, assim, com toda a inevitável arbitrariedade, o início do nosso hoje para procurar conferir inteligibilidade ao nosso objeto, de acordo com nossos objetivos. “Sem mais rodeios”: utilizaremos como o início do hoje, o que julgamos a gênese de determinadas relações que sustentam a ordem capitalista em que vivemos neste Brasil, 109Não

estamos aqui diretamente empenhados na construção da narrativa do Imperialismo Capitalista, mas na “(re)descoberta” de alguns de seus traços lógicos fundamentais. A necessária narrativa do século XX a partir dessa perspectiva é tarefa que ainda não temos condição de cumprir nesta tese. Esperamos que algum aventureiro lance mão. 110A “teleologia da libertação”, de Fernando Novais; comentada em Aproximações, p. 395 e seguintes. 111Novais, Aproximações, p. 396 e seguintes. 112Novais, no mesmo lugar, acrescenta: “e do que é depois.”; mas isso é um problema que procuraremos enfrentar somente no final de nosso percurso. 113 Norbert Elias, O processo civilizador, vol. 1, página 217.

42

e

que,

quase

sempre,

sob

nosso

ponto

de

vista,

aparecem

disfarçadas;

esquecidas/escondidas/veladas nos discursos de nossos coevos. Logicamente, essa ordem capitalista que vivemos aqui neste Brasil hoje também poderia ter como início muitos outros marcos. A chegada dos primeiros portugueses tanto quanto o começo da exploração comercial; a transposição da côrte tanto quanto a Independência ou a proclamação da República. Até mesmo a internalização relativa dos meios de produção capitalistas já foi apresentada como critério de periodização. Em si mesmo, todo critério é igualmente adequado, de acordo com os objetivos propostos. Cada um deles enfatizaria determinados aspectos, como a composição de uma “civilização” indígena-européia-africana; a acumulação de capital; a “autonomia nacional”; a constituição do Estado; ou o desenvolvimento de uma exótica “economia

43

capitalista nacional”. Certamente haveria vantagens e prejuízos em cada uma dessas escolhas114. Sendo nosso objetivo a superação de uma determinada ordem vigente em favor de uma sociedade mais justa e mais igualitária, procuraremos aqui estabelecer em linhas gerais os elementos que, sob nosso ponto de vista, (re) produzem as condições dessa injustiça e dessa falta de igualitarismo. Assim – convém, neste momento, que insistamos – cientes de que não conseguiríamos abarcar todas as formas de opressão de “nossa sociedade” – raça, gênero, preferência sexual, idade, religiosidade e tantas outras –

114Nosso

amigo, ala direito, fotógrafo, historiador, marqueteiro, cozinheiro e muitas outras coisas João Gabriel Priolli, ao ler os primeiros esboços deste texto, nos indaga/alerta sobre nosso critério de periodização: “Notei uma confusão. Você problematiza o fazer historiográfico e a dificuldade de estabelecer origens para determinados fenômenos e lança mão de exemplos da História do Brasil. Como já vinha também analisando a atualidade da crise capitalista também neste chão – ponto geográfico. Porém sua periodização está ligada a fenômenos, ou melhor, a uma tradição que analisa o capitalismo no centro. O movimento financeiro, o imperialismo. Há para mim um caminho confuso neste item. Você vai da periferia ao centro para retornar a periferia e não me fica claro como justifica a periodização. O que quero dizer é que este é um movimento do centro, e a relação que você estabelece entre a periferia do capitalismo em 1870 me parece solto. Concorda?” João Gabriel Priolli, por correio eletrônico. Nosso querido amigo João é um homem muito perspicaz e nota a duplicidade de nossa confusão. Por um lado, fenômenos entendidos como fossem “do centro”. De outro, por uma “tradição” historiográfica que analisa o capitalismo no centro. Não teremos aqui a ocasião de debatermos as incontáveis críticas – na qual gostaríamos de destacar as Teorias Marxistas da Dependência [felizmente em voga, criticas à parte] – às assim chamadas de Teorias do Imperialismo, tidas por negligentes com relação à “periferia”. Entretanto, lembrando que não existe “um tempo”, mas tempos que se sobrepõem, aproveitamos mais essa ocasião para tentar alicerçar o enunciado de nossa tese: Em 1900 e pouco, quando escritas, as assim chamadas teorias do Imperialismo, porque entendiam esse fenômeno uma “nova fase” do Capitalismo, a partir do método marxiano [se é que ele existe], se voltam à primeira expansão do modo de vida industrialista, potencializado pelas mutações do Capital, por volta de 1870, com a constituição do assim chamado Finanzkapital, o Capital Financeiro. Naquele momento, a articulação do modo de produção capitalista com a periferia mais longínqua [como a América Latina, que interessa mais particularmente a nós e axs “teóricxs da dependência”, por razões auto evidentes] não se dava pela extensão e transformação de um modo de vida urbano e industrialista, ainda que pequenos esboços localizados [Rio de Janeiro, Buenos Aires...] já pudessem se fazer notados. Do contrário, o sentido profundo da articulação dessa periferia mais longínqua ainda era eminentemente colonialista. [CF: Fernando Novais; Caio Prado Jr.]. Acontece que, para a confusão geral, a periferia mais afetada pelas transformações deste modo de vida naquele momento, a saber, os Estados Unidos e a Alemanha, posteriormente, assumiu o papel de potências. Portanto, não consideramos justa a crítica de negligência com a periferia. Só que a periferia mais afetada em um sentido capitalista, naquele momento era outra: Estados Unidos e Alemanha. Além disso, conforme teremos a ocasião de demonstrar, esse pensamento heterogêneo que se convenciona chamar de “teorias do imperialismo”, com o aproximar-se da Grande Guerra conscientizava-se a cada dia mais da importância das questões coloniais e dos conflitos entre as potências – tanto na periferia quanto no próprio centro. E como se articulava a América Latina nessa engrenagem? Xs autorxs da dependência e os demais citados constituíram ricas explicações, que não cabem aqui, evidentemente. Mas nos interessa anotar mais uma vez: somente ao longo do século XX, mas ainda dentro dos mesmos marcos potencializados pelo Capital Financeiro, o modo de produção capitalista passou a modelar a vida na América Latina. Resumindo: como Marx respondeu àqueles que o criticavam por supostamente analisar somente as condições da Inglaterra, os teóricos clássicos – e a teórica clássica, inclusive mais que os seus colegas! – do imperialismo poderiam responder que se engana quem pensar que, porque versa predominantemente sobre o “centro”, as teorias do imperialismo nada tem que ver com a “periferia”. “É de nós que fala essa fábula”. É a história desse movimento que julgamos necessária para a narrativa do nosso hoje. E é por isso que ele começa nos entornos da crise de 1873.

44

procuraremos aqui concentrar nossas atenções nas opressões que convencionaram chamar de “tipicamente capitalista”

, motivados por uma aposta da qual estamos

115

menos ou mais convencidos. Esta aposta tem por base a idéia de que, o tipo de organização social em que vivemos, “confere sentido contemporâneo” às outras formas de opressão – ou, no mínimo, as resinifica. Portanto, procuraremos ao longo deste trabalho estabelecer em linhas gerais alguns traços da dominação capitalista enquanto um modo de organização social ou, em termos – nos desculpem o palavrão – marxistas, enquanto um modo de produção da vida. Ou seja, procuraremos esboçar as linhas gerais dos processos pelos quais as mulheres e os homens se organizam hoje para se reproduzir, comer, beber, vestir, morar, constituir famílias etc.116. Mais do que isso, procuraremos definir as características essenciais do tempo em que houve a transformação de modos “tradicionais” para o modo “capitalista” de produção. Do ponto de vista que assumimos, nosso hoje começa em algum momento da transição do século XIX para o XX, quando se dá o arranjo fundamental que acaba por alterar o padrão das relações internacionais com o aumento da centralidade das “exportações de capital” – o que não implica, é claro, na diminuição das exportações de mercadoria, mas na relativa perda de sua centralidade. Ou, nas palavras de Lenin, traduzido em linguagem comum, isto significa que o desenvolvimento do capitalismo chegou a um tal ponto em que a produção de mercadores, se bem que continue “reinando” como antes, e seja considerada a base de toda a economia, na realidade ela encontra-se desacreditada e os lucros principais vão para os “gênios” das maquinações financeiras. Na base destas maquinações e destas trapaças encontra-se a socialização da produção; mas o imenso progresso da humanidade, que chegou a essa socialização, beneficia... os especuladores. 117

De acordo com a bibliografia em que nos apoiamos (e que submeteremos ao escrutínio logo menos – inclusive para desfazer as aproximações grosseiras que por hora nos permitimos com o intuito de facilitar o encaminhamento da argumentação) este período que recortamos – ou, ao menos, parte dele – e estes processos de expansão 115A

definição e a crítica do que se entende por “tipicamente capitalista” é fundamental para nossa tese. Voltaremos ao tema quando oportuno. 116Marx e Engels: A Ideologia Alemã. 117Lenin, p. 133 e diversas outras passagens, como, por exemplo: “O que caraterizava o velho capitalismo, onde reinava plenamente a livre concorrência, era a exportação de mercadorias. O que carateriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital.” (Lenin, p. 180). Essa história sobre a “livre concorrência” nos parece furada, mas para o que precisamos reter aqui, basta sabermos que algo – a ser definido – aconteceu como resposta à crise de 1873, e isto provocou uma série de processos que ainda não cessaram de se espraiar.

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do modo de produção capitalista118 conformam aquilo que se convencionou denominar “Imperialismo”: um período em que o capital financeiro se tornou o nexo estruturante da sociedade por meio das exportações de capitais que alteram fundamentalmente as relações sociais onde quer que cheguem, impondo a mercadoria como relação social predominante. Abordaremos ao longo de nosso texto algumas das características principais deste Imperialismo para tentar demonstrar que, a despeito de terem assumido ao longo de todo este tempo algumas características aparentes diversas, os elementos principais identificados por aquele conjunto de autores permanecem, a ponto de podermos defender o argumento de que hoje – e talvez hoje ainda mais – vivemos em um período no qual essas características se tornaram mais intensas. Se for defensável o argumento segundo o qual, – voltando à maneira com a qual vínhamos lidando com a questão – o período iniciado no final do século XIX inaugura o nosso hoje, temos que lidar com a dificuldade em explicar como o mundo de hoje é tão diferente daquele. Esta é uma das tarefas mais complexas desta tese, ainda que, como dissemos, procuraremos abordá-la tão somente nas linhas gerais do seu plano lógico. Dizendo de uma forma “poética”, que encontraria ecos em figuras caras à filosofia, poderíamos comparar o fim do século XIX à aurora e o início do século XXI ao ocaso de nosso hoje – com o risco de que talvez esse ocaso se prolongue mais que o desejado. Dizendo de uma forma ainda mais abstrata, nossa tarefa é compreender como o período que se estende do final do século XIX até o século XXI é estruturado pelas mesmas características principais apontadas por autores e autora que, no começo do século XX, as identificaram e com elas definiram o que entendiam por “Imperialismo”. Concordamos que essa comprovação é difícil. Mas, se não porque vivemos – em algum sentido – em um mesmo tempo, como poderíamos explicar a extrema atualidade dos autores do começo do século passado119? É oportuno que ressaltemos desde o início que do ponto de vista que pretendemos defender ao longo desta tese, o Imperialismo não pode ser confundido com as guerras e a dominação colonial – coisa que o sabiam muito bem as pessoas do começo do século XX – mas deve, principalmente, ser entendido como o processo de expansão de

118Nunca

é demais lembrar: por meio das armas, da guerra, da cooptação das elites locais e da exportação de capitais, dentre outros estratagemas. 119Sabemos que esses autores – mais do que aquela autora – são reverenciados como os antigos profetas por parte da literatura especializada no Imperialismo, mas, adiantando um pouco um argumento: essa sorte de hagiografia não nos interessa muito.

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um modo de produção por meio, sim, das guerras e da dominação colonial, mas também da enorme exportação de capitais (principalmente ferrovias; hidrelétricas; e outras grandes obras, bem como as grandes corporações monopolistas) que exigiu que fossem montados aparatos colonialistas e/ou Estados-nação cuja defesa do capital e da propriedade privada capitalista estava acima da defesa de modos milenares de produção da vida – e, com efeito, contra elas. E desde o seu princípio, nos primeiros anos do século XX, já se fazia notar que a mudança perfazia todo o modo de produção capitalista, no qual “as relações de domínio e a violência” foram potencializadas pela “constituição de monopólios econômicos todopoderosos”

, quando “o novo capitalismo veio substituir definitivamente o velho”

120

,

121

caracterizado pela profunda alteração do padrão de relacionamento entre os capitalistas, que passaram a se associar em “sociedades de capital aberto” altamente concentradas, trustes e cartéis. Assim, seguindo essa linha, “o século XX marca, pois, o ponto de viragem do velho capitalismo para o novo, da dominação do capital em geral para a dominação do capital financeiro” 122. Lenin, provavelmente a grande referência do debate sobre o Imperialismo a partir da publicação de seu Imperialismo, insiste em acentuar dentre as diversas características desse capital financeiro, uma que – ao seu juízo – nem sempre recebe a atenção que merece. Trata-se do caráter monopolista deste capital financeiro123. Dada a centralidade deste para o raciocínio de nosso autor e da importância deste para a caracterização desse tempo do modo de produção capitalista que estamos aqui chamando de hoje, vale a pena acompanharmos a maneira como Lenin

120Lenin,

134. pág. 124. Não aprofundaremos aqui um ponto crucial, que é o caráter assumidamente europeu do recorte de Lenin. A passagem completa da qual tiramos nossa citação é: “No que se refere à Europa, podese fixar com bastante precisão o momento em que o novo capitalismo veio substituir definitivamente o velho”. Em nossa leitura, Lenin não nos oferece subsídios o suficiente para conjecturarmos como poderíamos pensar seu recorte de um ponto de vista periférico, ou global, ambos os recortes que também nos interessariam. 122Lenin, pág. 159. Indubitavelmente o capital financeiro, como veremos logo a seguir, é uma categoria imprescindível na explicação de Lenin sobre o imperialismo, sendo que, na página 176 – dentre outras – o autor as apresenta, inclusive, como sinônimos [“O imperialismo, ou domínio do capital financeiro, é o capitalismo no seu grau superior...”] Essa é uma consideração bastante polêmica, e cumpre que analisemola detidamente em momento oportuno, sobretudo quando resgatarmos a maneira como Rudolf Hilferding – o autor de quem Lenin toma a categoria – a apresenta em sua seminal obra O Capital Financeiro. Também será importante ali que consideremos que, para Hilferding, o capital financeiro deve ser entendido precisamente como a nova forma do capital em geral. 123“Monopólio, eis a última palavra da ‘mais recente fase de desenvolvimento do capitalismo’”(Lenin, p. 137). 121Lenin,

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se apropria da reconstituição de Vogelstein124 para que nos aproximemos um pouco – ainda de forma abstrata – da radicalidade dessas transformações. Segundo Vogelstein, A época anterior a 1860 pode dar-nos alguns exemplos de monopólios capitalistas; podem-se descobrir ai os germes das formas que são tão familiares na atualidade; mas tudo isso percente indiscutivelmente a época pré-histórica dos cartéis. O verdadeiro começo dos monopólios contemporâneos situa-se, no máximo, na década de 1860. O primeiro período importante do seu desenvolvimento começa com a depressão internacional da indústria na década de 1870 e prolonga-se até princípios da última década do século. Se examinarmos a questão no que se refere à Europa, a livre concorrência alcança o ponto culminante de desenvolvimento nos anos de 1860 a 80. Por essa altura, a Inglaterra acabava de erguer a sua organização capitalista do velho estilo. Na Alemanha, esta organização iniciava uma investida decisiva contra a indústria artesanal e doméstica e começava a criar as suas próprias formas de existência. A grande viagem começa com o crack de 1873, ou, mais exatamente, com a depressão que se lhe seguiu e que - com uma interrupção quase imperceptível em princípios da década de 1880 e com uma expansão extraordinariamente vigorosa, mas breve, por volta de 1889 - abarcando vinte e dois anos da história econômica da Europa. Durante o breve período de ascenso, de 1889 e 1890, foram utilizados em grande escala os cartéis para aproveitar a conjuntura. Uma política irrefletida fez subir os preços ainda com maior rapidez e em maiores proporções do que teria acontecido sem os cartéis, e quase todos esses cartéis pereceram ingloriamente, enterrados ‘no fosso do crack’. Decorreram outros cinco anos de maus negócios e preços baixos, mas na indústria já não reinava o estado de espírito anterior. A depressão não era mais considerada uma coisa natural, mas, simplesmente, uma pausa antes de uma nova conjuntura favorável. O movimento de formação dos cartéis entrou na sua segunda fase. De fenômeno passageiro, os cartéis tornaram-se uma das bases de toda a vida econômica; conquistaram, um após outro, os setores industriais e, em primeiro lugar, o da transformação de matérias-primas. Em princípios da década de 1890, ao construírem o sindicato do coque, que serviu de modelo à organização do sindicato do carvão, elaboraram uma tal técnica dos cartéis que, no fundamental, não foi ultrapassada. O grande progresso de fins do século XIX e a crise de 1900 a 1903, pelo menos na que se refere às indústrias mineira e siderúrgica, pela primeira vez decorreram inteiramente sob o signo dos cartéis. Se na época isso parecia ainda algo de novo, atualmente é uma verdade evidente para a opinião pública que grandes setores da vida econômica são, regra geral, subtraídos à livre concorrência125.

Do que Lenin conclui que “as principais fases da história dos monopólios podem se resumir do seguinte modo”:

124Th.

Vogelstein [1914]: Die finanzialle Organisation des Kapitalistischen Industrie und die Monopolbildugen. 125Vogelstein, citado por Lenin nas págs. 125 e 126.

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1) anos 1860-1880: ponto culminante do desenvolvimento da livre-concorrência. Os monopólios não são mais do que embriões dificilmente perceptíveis; 2) após a crise de 1873: período de grande desenvolvimento dos cartéis; no entanto, eles ainda aparecem apenas a título excepcional. Carecem ainda de estabilidade. Têm ainda caráter transitório; 3) expansão do fim do século XIX e crise de 1900-1903: os cartéis tornam-se uma das bases de toda a vida econômica. O capitalismo se transformou em imperialismo.126

Para Lenin, em sua incessantemente citada síntese, “se fosse necessário dar uma definição, a mais breve possível do imperialismo, dever-se-ia dizer que o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo” 127. Segundo ele, essa definição compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundido com o capital das associações monopolistas de industriais, e, por outro lado, a partilha do mundo é a transição da política colonial que se estende sem obstáculos às regiões ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista para a política colonial de posse monopolista dos territórios do globo já inteiramente repartido. 128

Mas como “as definições excessivamente breves, se bem que cômodas, pois contêm o principal, são insuficientes, já que é necessário extrair delas especialmente traços muito importantes do que é preciso definir”, e porque, para ele, é importante procurar estabelecer definições que possam abarcar “as múltiplas relações de um fenômeno no seu completo desenvolvimento”, então “convém dar uma definição do imperialismo que inclua os cinco traços fundamentais seguintes” 129, ao que apresenta a igualmente famosa quina: 1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse “capital financeiro” da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes. 130

Cuja síntese é expressa na seguinte definição: 126Lenin,

p. 126. p. 217. 128Lenin, mesma página. 129Lenin, mesma página. 130Lenin, pág. 218. 127Lenin,

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o imperialismo é, pois, o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trustes internacionais e terminou a partilha de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes. 131

A questão da atualidade dessa definição é um dos pilares do capítulo no qual procuraremos identificar se há algo de novo no “novo imperialismo”, mas é também a hipótese da qual partimos em nossa investigação e a razão pela qual nos permitimos essa relativamente longa e pretensamente detalhada recuperação. Este é também o primeiro sentido em que julgamos verdadeira a compreensão de que, dado que suas características fundamentais permanecem “vivas”, “o que agora há a considerar é que, interpretado no sentido referido, o imperialismo representa em si, indubitavelmente, uma fase particular de desenvolvimento do capitalismo”

. Assim, porque essas

132

características fundamentais permanecem “vivas” é possível afirmarmos que vivemos no mesmo intervalo temporal que Lenin e demais baluartes das assim chamadas “teorias clássicas do imperialismo”, período esse, segundo nosso autor, cujos antecedentes imediatos repousam na maneira como os capitalistas se articularam de forma

131Mesmo

lugar. 129. Grifos nossos. Há um ponto importante a ser ressaltado, que suscita certa polêmica, ao nosso juízo sem razão. Há quem interprete que a própria categoria “imperialismo”, para Lenin, seria uma especificidade do capitalismo, sendo que, nessa mesma linha, ele utilizaria “império”, para os períodos anteriores à viragem anotada acima. Salvo problemas de tradução – que não temos como conferir senão com o conhecimento da língua russa – a seguinte passagem desmente essa interpretação: “A política colonial e o imperialismo existiam já antes da fase mais recente do capitalismo e até antes do capitalismo. Roma, baseada na escravatura, manteve uma política colonial e exerceu o imperialismo. Mas as considerações “gerais” sobre o imperialismo, que esquecem ou relegam para segundo, plano as diferenças radicais entre as formações econômico-sociais, degeneram inevitavelmente em trivialidades ocas ou em jactâncias, tais como a de comparar ‘a grande Roma com a Grã-Bretanha’. Mesmo a política colonial capitalista das fases anteriores do capitalismo é essencialmente diferente da política colonial do capital financeiro.” P. 208. Talvez seja um problema certa indistinção das categorias e dos conceitos – ainda que fosse necessário indicar qual seria esse problema – mas parece que foi assim que o autor formulou. 132Pág.

50

monopolística para superar a crise de 1873 e cujos contornos principais se definiram por volta de 1900133. O que, em termos de periodização, já nos dá uma aproximação mais do que suficiente. Mais precisão seria um esforço de arbítrio extremamente indesejável. Concordamos mais uma vez com Lenin: “seria absurdo discutir, por exemplo, sobre o ano ou a década precisos em que se instaurou definitivamente o imperialismo”, dado que “na natureza e na sociedade todos os limites são convencionais e mutáveis”

.O

134

importante aqui, para que avancemos, é seguirmos na investigação do que aconteceu nesses mais de cem anos que nos separam do início do nosso tempo. Lenin – bem como qualquer de seus coevos – não poderia descrever algo que viria a acontecer somente muito tempo depois da sua morte, porque – insistimos – por mais que alguns de seus seguidores assim o considerem, não é nem nunca foi um profeta, embora fosse um homem cuja capacidade de análise e intuição eram extremamente aguçadas. Já em 1916, sem ter como imaginar o mundo de quinquilharias e consumo espetacular que seus bisnetos experimentariam, já revelava o segredo da “caixa de Pandora” que caracteriza o imperialismo capitalista:

133Gostaria

de deixar anotado, para quem julga que esse intervalo temporal é grande demais para que o consideremos nosso hoje – como se o tamanho do intervalo fosse um critério de invalidação do argumento – que o ano de 1900 marca, dentre muitas outras coisas, o nascimento da minha querida bisavó, Dona Mariquinha – com quem tive a satisfação de conviver por quase uma década e meia – e que marcou definitivamente a maneira como meu avô e, consequentemente o meu pai transmitiram a mim grande parte da visão de mundo que querendo ou não eu reflito no texto que ofereço agora à leitura. Minha bisavó, professora na cidade de Mogi-Mirim, enviuvou-se ainda nova, e teve a ocasião de se casar com um cidadão britânico que morava em nossa cidade, até então ainda importante para a Estrada de Ferro Mogiana, que apesar de vir perdendo importância, ainda cumpria o seu papel o transporte ferroviário do estado de São Paulo. A quem julgar que o comentário é inútil, até concordaríamos, mas não sem antes reiterar que por mais abstrata que possa parecer a conversa e por mais longínquo que possa parecer o início que estabelecemos para o nosso hoje, é importante que tenhamos em mente que ainda estamos todos, em grande medida, nos mesmos quadros das pessoas com as quais vimos dialogando, mesmo – e talvez especialmente com elas, se aceitarmos a tese de que as coisas se mostram mais transparentes em seu começo e no seu término – aquelas que escreveram nas primeiras décadas do século XX. 134Lenin, pág. 219.

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o monopólio, logo que tenha se constituído e controlando milhares de milhões, penetra de maneira absolutamente inevitável em todos os aspectos da vida social, independentemente do regime político e de qualquer outra ‘particularidade’ 135.

A partir de então, a humanidade vivenciaria um conjunto de transformações que, olhadas retrospectivamente, apresentam uma forte coerência. Essas transformações, potencializadas pelas rivalidades interestatais (que ocorrem, por seu turno, por meio da necessária transformação na relação entre as classes e dessas com o Estado) que culminaram nas duas Guerras Mundiais, podem ser responsabilizadas – insistimos: retrospectivamente – pela assustadora expansão de um modo de vida capitalista até então exclusivamente europeu136 caracterizado pelo aumento das dimensões do “mercado”, que transforma – de modo inédito – em mercadorias as coisas necessárias à sobrevivência humana137, submetendo a esmagadora maioria (aqueles 99%?) das mulheres e dos homens – para garantir sua própria vida – a condições de trabalho

135Lenin,

p. 175. Para que tenhamos um pouco mais de noção do que se trata, afinal, “todos os fatores da vida social”, fiquemos com as imagens de https://algueminovou.wordpress.com/2012/07/23/monopolio-das-marcas/ e http://www.capital.es/2013/04/18/ellas-lo-controlan-todo/ (acessadas em 23 de fevereiro de 2015 às 13:46h) 136A rigor, “europeu” já é um exagero, dado que somente uma minúscula parte da Europa, neste momento, poderia ser chamada de modo apropriado com o nome “capitalista”. O problema sobre a expansão geográfica do modo de produção capitalista – que já é, em sua gênese, necessariamente, “transnacional”, para não dizermos “transcontinental” – é uma hipótese importante para essa tese, ainda que apareça de modo apenas ocasional. 137“A transformação implica numa mudança na motivação da ação por parte dos membros da sociedade: a motivação do lucro passa a substituir a motivação da subsistência. Todas as transações se transformam em transações monetárias e estas, por sua vez, exigem que seja introduzido um meio de intercâmbio em cada articulação da vida industrial. Todas as rendas derivam da venda de alguma coisa, e qualquer que seja a verdadeira fonte de renda de uma pessoa, ela deve ser vista como resultante de uma venda. É isto o que significa o simples termo ‘sistema de mercado’ pelo qual designamos o padrão institucional descrito. Mas a peculiaridade mais surpreendente do sistema repousa no fato de que, uma vez estabelecido, tem que se lhe permitir funcionar sem qualquer interferência externa. Os lucros não são mais garantidos e o mercador tem que auferir seus lucros no mercado. Os preços devem ter a liberdade de se autorregularem. É justamente esse sistema auto regulável de mercados o que queremos dizer com economia de mercado. A transformação da economia anterior para esse sistema é tão completa que parece a metamorfose de uma lagarta do que qualquer alteração que possa ser expressa em termos de crescimento contínuo e de desenvolvimento. Contrastemos, por exemplo, as atividades de venda do mercador-produtor e suas atividades de compra: suas vendas são apenas de artefatos e, se ele tiver ou não sucesso em encontrar compradores, o tecido da sociedade não precisa ser afetado. Mas o que ele compra são matérias-primas e trabalho – natureza e homem. Na verdade, a produção de máquinas numa sociedade comercial envolve uma transformação que é a da substância natural e humana da sociedade em mercadorias.” Polanyi: A Grande Transformação: as origens da nossa época: P. 58. Voltaremos ao assunto.

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degradantes sob a situação de aparente dependência – que é exploração – dos proprietários dos meios de produção138. Ao longo do trabalho, conforme vimos pontuando desde o princípio, tentaremos defender o argumento de que este modo de vida – diferentemente do que dizem seus defensores mais ingênuos [para não dizermos desonestos] – não se expandiu de forma pacífica, atraindo com suas luzes e sua vida sedutora os bárbaros da periferia. Do contrário, essa expansão foi produzida por incontáveis atos de subordinação e imposta de forma extremamente violenta, freqüentemente por meio das guerras, mas não apenas. Tendo essas reflexões em mente, procuraremos denunciar a outra grande sustentação dessa tal “ordem capitalista”: a articulação entre o “poder econômico” e o “poder político”. Ainda que, logicamente, essa articulação entre “economia” e “política” ultrapasse em termos históricos – em muitos séculos139 – o que chamamos de modo menos ou mais arbitrário de “hoje”; procuraremos defender que lá por volta daqueles 1870 se gestaram determinadas relações que “atualizaram”– mais ou menos como uma nova versão de um software – as formas de subordinação de tal modo que procurar entender minimamente os traços gerais desse “contemporâneo” pode nos ajudar a entender como produzir um discurso que sirva para auxiliar a resistência contra esse poder, ou, em termos – ops! outro palavrão – anarquistas, a Autoridade – da qual o autoritarismo é “apenas” um derivado. Porque, do ponto de vista que procuraremos defender, a tal “ordem capitalista” e o tal “autoritarismo”, naquele momento renovaram as bodas e reavivaram o relacionamento. Porque se é verdade que “(...) o entendimento entre o Capital e o Estado não é de hoje. Atravessa os séculos da modernidade, a ponto de, cada vez que o Estado vacila (…), vermos o capitalismo acusar o golpe”

, ainda mais importante é a

140

compreensão de que esse bom casal, mesmo que aos olhos de certos observadores viva em permanente “crise”, confundiu suas coisas de tal sorte que a vida de um ou de outro 138Não

queremos aqui comungar da amplíssima polêmica sobre as origens do modo de produção capitalista, muito menos de sua datação (a famosa polêmica entre o marxismo e as teorias do sistemamundo). Cumpre-nos anotar entretanto – e isso voltará à baila posteriormente – que tratamos apenas do Imperialismo Capitalista, não do Capitalismo como um todo. 139Por exemplo, a tentativa de unificar os principados italianos do founding father da Ciência Política, e as receitas de enriquecimento da nação de seu análogo da Ciência Econômica, os obrigatoriamente citados Nicolau Maquiavel e Adam Smith, ambos os “nacionalistas” apenas forçosamente catalogados como “politólogo” e “economista”. 140Braudel, Vol. 3. p. 579.

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não pode ser sequer imaginada de maneira isolada141. Um e outro se lançam constantemente na defesa infatigável de seu respectivo parceiro e, do nosso ponto de vista, portanto, não passa de um equívoco – derivado do excessivo apego ao curto-prazo – os “polêmicos” debates entre os defensores de um Estado Mínimo e os defensores de um Estado Desenvolvimentista. Para ficarmos, por hora, com o historiador da longa duração – geralmente tido por conservador – observando o mundo durante a “crise” do final do século XX: os homens de negócios gostam de dizer que a política ocupa atualmente o principal papel, que o poder do Estado é tal que nem o banco, nem o grande capital industrial contam com relação a ele. E, claro, não faltam analistas sérios que falam do Estado mastodonte, do Estado que tudo esmaga e retira a iniciativa do setor privado, da liberdade benéfica do 'inovador'. Dever-se-ia obrigar esse mastodonte a voltar ao seu antro. Mas também lemos o contrário, ou seja, que a economia e o capital invadem tudo, esmagam a liberdade dos indivíduos. Na realidade, não nos deixemos enganar, Estado e Capital, ou pelo menos um certo capital, o das grandes firmas e dos monopólios, formam um bom casal, e este último, sob nossos olhos, sai-se muito bem. Ao Estado deixou, como outrora, as tarefas pouco remuneradoras ou demasiado dispendiosas: a infraestrutura das estradas, das comunicações, o exército, os prodigiosos encargos do ensino e da pesquisa. Deixou-lhe também os cuidados da higiene pública, uma boa parte do peso da Seguridade Social. Sobretudo, vive sem constrangimento das complacências, isenções, auxílios e liberalidades do Estado, máquina de coletar enormes fluxos de dinheiro que chegam a ela e que ela redistribui, máquina de gastar mais do que recebe e, portanto, de contrair empréstimos. O capital nunca está muito longe dessa fonte ressurgente. (…) Finalmente graças às suas boas relações, à sua simbiose com o Estado, distribuidor de vantagens fiscais (para ativar o sacrossanto investimento), de encomendas suntuosas, de medidas que lhe abrem melhor os mercados externos, é que o 'capitalismo monopolista' (…) prospera.142

Em síntese: o “bom casal” divide tarefas, partilha a intimidade, confunde as suas pernas143. Um não pode mais andar sem o outro144. Não pode mais cuidar isoladamente

141cf:

Hollanda, Chico Buarque de, Eu te amo; Arlindo Cruz e Acyr Marques, Casal Sem Vergonha. F. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII: Vol. 3 O tempo do mundo. Tradução Telma Costa; revisão da tradução Mônica Stahel, 2ª ed. - São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. 1ª ed. Os negritos são nossos. 1996. [1979] p. 575. 143Mesmo autor, mesma canção. 144Para nos ajudar a emplacar a metáfora, o leitor poderia se lembrar daquela fábula segundo a qual era preciso fazer com que o “capital nacional” (sic) “andasse com suas próprias pernas”? Lembram como era a “autoridade” naquela época? Pois é. Haja boa vontade para acreditar que foi por mero acaso. E se você ainda não o percebeu, teimaremos tanto quanto necessário for: “é de ti que fala esta fábula” Cf: Marx, O Capital. Resumindo noutros termos: “Para nós”, nem Mercado e nem Estado. 142Braudel,

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de suas questões domésticas, nem tampouco pode isoladamente embrenhar-se mundo afora em suas costumeiras viagens nos mais vastos confins do planeta Terra145. A história desse Imperialismo não é senão uma história marcada pelo sangue, pelo ferro e pelo fogo146, por turbulências e desvios de rota, pelo enfrentamento de “monstros” e por muitos conflitos. Sobretudo por muitos conflitos. A despeito do que os historiadores encarregados de inventar uma história “idílica” para a expansão do capitalismo procuram fantasiar, não foi a sedução deste modo de vida ou o “instinto de obediência” que levou as mulheres e os homens a abandonar voluntariamente seu modo de vida milenar em prol das novidades do Progresso e do Esclarecimento. A tese defendida neste texto é a de que a história da expansão do capitalismo é uma história em que capitalistas, homens de Estado e seus intelectuais-lacaios deliberadamente inventaram – com graus variáveis de consciência – inúmeras formas de destruir modos tradicionais de vida e obrigar os explorados do mundo a viverem de acordo com os ditames da reprodução do capital e da acumulação capitalista147. Porque a história do Imperialismo Capitalista – a expansão do capitalismo pelo mundo – não é uma história

145Até

então a expansão do modo de produção capitalista para além do planeta Terra ainda não passou de seus primeiros passos, embora a ficção científica já tenha se encarregado de prever e determinar muitos dos contornos dessa nova frente de expansão – “em extensão e em profundidade” – que o Capital há muito procura condições – objetivas e subjetivas – de explorar. O Professor Eduardo Mariutti nos conta que, recentemente, uma série de televisão chamada Terra Nova apresentou uma nova-velha questão para a reprodução do capital, que é a exploração intertemporal dos recursos. Nesta série, o mundo caótico em 2149 – similar ao nazista – impõe cotas familiares, torna a vida fora das redomas no entorno das cidades impossível, etc. As possibilidades de reprodução desta sociedade se expandem quando se descobre um jeito de mandar gente para o passado (na Pangéia, junto com os dinossauros) para recolonizar a Terra. A princípio, este portal funciona somente em um sentido (do futuro para o passado) mas um sujeito renegado no passado tenta construir um meio de fazer o portal funcionar dos dois lados. Não tarda para que essa descoberta desperte o interesse de megaempresários que contratam mercenários para permitir a transferência intertemporal dos recursos da Pangéia para 2149. Como sempre, a ficção científica e as pesquisas de tecnologia de ponta guiadas pelos interesses do capital caminham lado a lado, de modo potencializadas por agências como a DARPA dentre outras. Por exemplo: Chalmers Johnson; Nemesis: The Last Days of the American Republic; cap 6: Space: The Ultimate Imperialist Project. 146Marx, O Capital: cap. XXIV 147Perelman: The invention of capitalism

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da concorrência e da eficiência da iniciativa privada, mas uma história de roubos, fraudes e assassinatos. Uma história de pilhagens148. Uma história de piratas149. 148Eduardo

Galeano, na Introdução de As veias abertas da América Latina é bastante ilustrativo dessa perversa relação, que se é específica no conteúdo, nem por isso deixa de representar toda a periferia devastada pelo Capital: “É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra.” “Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm dolorosas razões para crer na mortandade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas de fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga.” “A brecha se amplia. (…) O desenvolvimento desenvolve a desigualdade: (…) A força do conjunto do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das partes que o formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas. Os países opressores tornam-se cada vez mais ricos em termos absolutos, porém muito mais ainda em termos relativos, pelo dinamismo da disparidade crescente. O capitalismo central pode dar-se ao luxo de criar e acreditar em seus próprios mitos de opulência, mas os mitos não são comestíveis, e os países pobres que constituem o vasto capitalismo periférico o sabem muito bem.” “Há 60 milhões de camponeses, cuja fortuna ascende a 25 centavos de dólares por dia; no outro extremo, os proxenetas da desgraça dão-se ao luxo de acumular cinco milhões de dólares em suas contas privadas na Suíça ou nos Estados Unidos, e malbaratam na ostentação e luxo estéril – ofensa e desafio – e em inversões improdutivas os capitais que América Latina poderia destinar à reposição, ampliação e criação de fontes de produção e de trabalho. Incorporadas desde sempre à constelação do poder imperialista, nossas classes dominantes não têm o menor interesse em averiguar se o patriotismo poderia ser mais rentável do que a traição ou se a mendicância é a única forma possível de política internacional. Hipoteca-se a soberania porque “não há outro caminho”; os álibis da oligarquia confundem interessadamente a impotência de uma classe social com o presumível vazio de destino de cada nação.” “O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao Diabo por um preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições. Até a industrialização dependente e tardia, que comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o desemprego ao invés de tentar resolvê-lo; estende-se a pobreza e concentra-se a riqueza, que conta com imensas legiões de braços cruzados, que se multiplicam sem descanso. Novas fábricas se instalam nos pólos privilegiados de desenvolvimento – São Paulo, Buenos Aires, a cidade do México –, porém reduz-se cada vez mais o número da mão-de-obra exigido. O sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras ociosas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens.” 149Niall Ferguson: Império: como os britânicos fizeram o mundo moderno.

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2.3 Sobre a Odisséia do Capital Na procura de uma figura – de um “fantasma” que possa acompanhar nosso caminho por essa tese – nos recordamos – em referência a estes piratas, marinheiros modernos – de termos lido em algum tempo remoto um ensaio sobre aquela outra turba de marinheiros – cantada pelo bardo na Odisséia. Trata-se do ensaio Ulisses, ou Mito e Esclarecimento150, que Max Horkheimer e Theodore W. Adorno publicaram em Dialética do Esclarecimento151, nos alertando que “(...) o herói das aventuras revela-se precisamente como um protótipo do indivíduo burguês” 152 e que, do ponto de vista econômico, o elemento aventureiro de seus empreendimentos nada mais é do que o aspecto irracional de sua ratio em face da forma econômica tradicionalista ainda predominante. Essa irracionalidade da ratio sedimentou-se na astúcia enquanto assimilação da razão burguesa àquela irrazão que vem ao seu encontro como um poder ainda maior. O solitário astucioso já é o homo oeconomicus, ao qual se assemelham todos os seres racionais.153

Do que temos diversos pontos com os quais podemos florear a nossa tese, que versa sobre tema tão mais prosaico, mas sobre o qual se ergue um imaginário mítico senão igualmente fértil, ao menos tão fantasioso quanto os outros. Como já indicamos, é especialmente contra esse imaginário mítico que escrevemos. Mas antes, descansemos um pouco. Vamos sem pressa, que o assunto é complicado. Deixemos indicado que o referido ensaio, pode ajudar-nos a inscrever nosso problema imediato (a constituição histórica do Imperialismo Capitalista) em um quadro mais geral (a constituição histórica de um mundo valorado à partir da Modernidade), mas não aqui nessa tese, que já é maior do que convinha. Por hora, comecemos com o núcleo principal de nossa tentativa de composição da figura que oferecemos ao leitor. A Odisséia, talvez o livro mais influente do imaginário ocidental depois da Bíblia154, é um poema épico de cerca de 2700 anos que consiste em 12109 versos hexâmetros, compostos, provavelmente, em fins do século VIII ou início do século VII a.C. por um poeta possivelmente cego e analfabeto, conhecido nas gerações posteriores 150No

original, os autores trabalham com a versão latinizada, e o chamam de Ulisses. Assim como alguns outros comentadores. Para mantermos a coesão de nosso texto, e porque gostamos de dar às coisas os nomes que elas têm, utilizaremos aqui sempre o nome de Odisseu. 151Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos / Max Horkheimer e Theodore W. Adorno; tradução Guido Antonio de Almeida. – RJ: Jorge Zahar Editora, 1985 [1944] 152Mesma obra, pág. 53. 153Mesmo texto, pág. 66. Grifos dos autores. 154Lourenço, F. Em Odisseia – Homero; tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e notas de Bernard Knox. – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. p. 95.

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como Homero, de quem não nos chegaram informações confiáveis a respeito de sua vida e atividades155. Segundo um importante intérprete de seus épicos, 'Odisséia’ é uma palavra comum a várias línguas, com suas respectivas variações, e significa, em uma definição genérica, ‘uma longa jornada cheia de aventuras e eventos inesperados’. Já a palavra grega Odusseia, a forma da qual o termo deriva, significa meramente ‘a história de Odisseu’ [em latim, Ulisses], herói grego da guerra de Tróia que levou dez anos para regressar ao seu lar na ilha de Ítaca, ao largo da costa oeste da Grécia continental.156

Assim sendo, nos cumpre desvelar alguns dos segredos de Odisseu – o motivo “(...) que nos leva a seguir, com o coração nas mãos, a narrativa ao longo de 24 cantos e 12 mil versos”; “o elemento-chave que liga esses episódios, o elemento que ao mesmo tempo articula e secundariza tudo com o que, além dele, nos deparamos no poema” 157 – para que não percamos de vista: este, que pode ser considerado (dentre tantas coisas mais) o prototípico indivíduo burguês. Frederico Lourenço, comentarista e tradutor de quem tomamos de empréstimo o argumento, nos informa que aa primeira palavra do poema (em grego) é ‘homem’. Desde o primeiro verso somos convidados a nos identificar com ‘o homem astuto que muito sofreu’, a ver nele a própria consubstanciação da inteligência humana (aqui referida por meio da idéia de astúcia) e da vocação do ser humano para o infinito sofrimento. O desenrolar da história vai nos ligar ainda mais a essa figura que sofre, mas que também saboreia os prazeres da sensualidade e da aventura158.

Mas quem é esse Odisseu? Para Frederico Lourenço, um homem que

155cf:

KNOX, Bernard, em Odisséia, op. Cit. 7 e seguintes. página. 157Lourenço, pág. 96. 158Mesma página. 156Mesma

58

(...) mente, mata, sobrevive; abraça as múltiplas experiências que vêm ao seu encontro; conhece o canto das sereias e o leito de Circe; desce ao mundo dos mortos e recebe, mais tarde (ou mais cedo, pela ordem por que nós lemos a história), a oferta de nunca morrer; mas essencialmente, é uma figura a quem as circunstâncias, e não a sua própria natureza, conferem dimensão heróica. É na superação desesperada dos perigos, nas ameaças que lhe surgem na luta pela sobrevivência, que nos identificamos com ele – e de uma maneira primária, inexplicável (…) 159.

Como poderíamos nós não nos encantar por Odisseu160? Mas aqui também é preciso discernir para que não nos apaixonemos pela falsa imagem de um [prototípico indivíduo burguês] “explorador inquieto”

. Para Knox, diferentemente de Frederico

161

Lourenço, “(...) tais visões de Odisseu como explorador incansável, ávido por novos mundos, têm pouco a ver com o Odisseu de Homero, que deseja, acima de tudo, encontrar o caminho de casa e nela permanecer”

. Ainda para Knox, é preciso que

162

descubramos, por sob seus incontáveis disfarces e ardis, um Odisseu “mestre de todos os embustes” 163, viajante contra sua vontade, ávido para voltar para o lugar que julga seu. Além disso, “Comandante de marinheiros que são eles próprios mercadores: Alguém que só pensa na carga e está sempre muito atento aos lucros do regateio.”164

159Mesmo

autor, pág. 97. inclusive com os seus “defeitos”, foi ardilosamente alçado a modelo de todos os posteriores heróis modernos. Esse senso comum é partilhado por Knox, Lourenço e muitos outros autores que consultamos aqui e acolá. Um dos casos mais bem-sucedidos de elevação de Ulisses à categoria de herói universal é o romance homônimo de James Joyce. O que também nos interessa aqui é que na tentativa de filmar O Capital de Karl Marx, o cineasta russo Sergei Eiseinstein tenha constatado que “a única maneira possível de empreender tal tarefa seria utilizar a estrutura narrativa do Ulysses de James Joyce”. Importa-nos também que o russo tenha malogrado na tarefa, cuja história foi resgatada por Alexander Kluge, que, enfim, compõe as mais de nove horas do enredo de Notícias da Antiguidade Ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital, no qual encontramos um sem-número de reflexões pertinentes ao nosso tema. Devemos essa pista ao Professor Carlos Cordovano Vieira, que a nos ofereceu em nossa banca de qualificação. Para uma dentre as inúmeras resenhas disponíveis sobre o filme sugerimos A odisséia do capital, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1907201109.htm, na qual explica seu método nos seguintes termos: "Se você fica no centro da bola, pode atingir todos os seus pontos e sempre voltar ao núcleo. Pode trabalhar em fragmentos, com pequenos filmes abreviados. Isso mantém o interesse do público". É uma aposta ousada a de Kluge. Quase ao final de nosso percurso, nos demos conta de que, de modo mais involuntário do que intencional, em alguma medida essa proposta estética animou a nossa forma, dando forma a uma idéia antiga de nosso mestre Thiago Mendes Borges, para quem deveríamos explorar melhor as estruturas de hiperlinks que a cibernética nos proporciona. Só não partilhamos da aposta que “isso mantém o interesse do público”. Seria muita pretensão nossa. 161Segundo Knox, essa era a imagem de Odisseu alimentada por Dante. Op. Cit. Páginas 36 e7. 162Knox, pág. 38. Qualquer semelhança com a metáfora de Braudel sobre o Capital, o mundo e sua casa não é mera coincidência. É exatamente o que estamos procurando sugerir. Cf: Os jogos das trocas, cap. 3 (A produção ou o capitalismo em casa alheia) e 4 (O capitalismo em casa). 163Knox, pág. 48 164Homero, (VIII. 161-4) citado por Knox, página 40. 160Que,

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Não somente um reles mercador, porque – não é esta a história da civilização européia, erguida sobre as ruínas helênicas? – “Aos comerciantes logo seguiram os colonizadores”

. A nosso ver – e, não neguemos, este é um argumento que muito nos

165

interessa – Knox é consistente na reconstituição de um Odisseu ‘saqueador de cidades’166, o colonizador que se revela – neste momento talvez mais na intenção do que no gesto167 – quando descreve a terra dos ciclopes “[...] não têm naus de vermelho pintadas, Nem têm no seu meio homens construtores de naus, [...] Homens esses que teriam feito da ilha um terreno cultivado, Pois a terra não é má: tudo daria na época própria. Há prados junto às margens do mar cinzento, Bem irrigados e amenos, onde as vinhas seriam imperecíveis. A terra é fácil de arar; e na altura certa poder-se-ia ceifar Excelentes colheitas, de tal forma rico é o solo por baixo.”168

Ali, diante do grande poder de seus adversários, o astuto e mentiroso Odisseu, apesar de apresentar “(...) a autêntica voz do explorador a avaliar um local para assentamento” 169, não pôde realizar seu projeto. Destino muito pior tiveram adversários mais fracos. Estes conheceriam “um guerreiro fiel ao ideal marcial”, que “terá todo o prazer em empregar a fraude para obter vitória” 170

165Mesma

página. ressalta que um dos epítetos de Odisseu é ptoliporthos, ‘saqueador de cidades’ P. 43 167 cf: Fado Tropical. Chico Buarque de Hollanda. 168Homero (IX. 125-35) citado por Knox na pág. 42. 169Knox, p. 42. 170Knox, p. 57. 166Knox

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A viagem de Odisseu aos lendários mares ocidentais tem início no mundo real, quando ele deixa as ruínas de Tróia a caminho de casa, com as naus carregadas dos despojos oriundos do saque à cidade. Como se tais despojos não lhe bastassem, Odisseu ataca o primeiro povoado com que se depara no caminho, a cidade de Ismaro, na costa da Trácia, no lado oposto de Tróia: ‘aí saqueei a cidade e chacinei os homens./ Da cidade levei as mulheres e muitos tesouros, que dividimos” (IX. 40-1). Isso é pura pirataria – Ismaro não era aliada de Tróia.171

Por motivos que esperamos se tornem explícitos para quem nos acompanhar em nosso percurso, pensamos que muito da história da imposição do modo de produção capitalista noutros rincões da Terra – a depender do hipotético narrador – se assemelha com a epopéia dos helenos. Como o doloso172 Odisseu, os imperialistas, na sanha mais ou menos consciente de impor o modo de produção capitalista “por aí”, “saíram de casa” e viajaram ao mundo com suas esquadras, se apropriando das riquezas, ludibriando nativos, guerreando. Como Odisseu, esse modo de produção capitalista “maduro” não pode ser reconhecido com facilidade e suas características principais são muitas vezes – por astúcia ou por acaso – disfarçadas, escondidas, esquecidas, transformadas. Como Odisseu, é somente quando “volta pra casa”173, que o Capital – nem sempre capaz de esconder suas cicatrizes – “se revela o que sempre foi”

. “A casa resistiu, de todo

174

modo”175. Como sobre a história de Odisseu, sobre a história do capitalismo muito se cantou acerca de suas virtudes e de sua astúcia, mas os cantos sobre o seu caráter predatório – por mais numerosos que sejam – ainda são encobertos pelos hinos do ufanismo. Mas, mais uma vez, como Odisseu, a escrava, que o conhece em toda a sua dura realidade, entrevê, por meio de suas cicatrizes, a sua natureza. Assim, aquela gente que ironicamente vínhamos chamando, para deixar claras as intenções imperialistas, de “raças inferiores”, é quem pode desmascarar as falsas aparências deste Capital-Odisseu. 171Knox,

p. 43. Horkheimer e Adorno, no artigo citado, são bastante enfáticos quanto à crueldade do ardiloso Odisseu. Para ficarmos em apenas um exemplo, quando rememora posteriormente as aventuras de quando se deparara com os comedores de lótus – representantes do estágio primitivo dos humanocoletores – que não conhecem a necessidade do trabalho, Odisseu canta que “Os preguiçosos são despertados e transportados para as galeras: ‘mas eu os trouxe de novo à força, debulhados em lágrimas, para as naus; arrastei-os para os navios espaçosos e amarrei-os debaixo dos bancos” Horkheimer e Adorno, op. Cit. p. 67. Qualquer semelhança com a “acumulação primitiva” que integrará nosso argumento quando oportuno, também não é mera coincidência. 172“A palavra grega dolos tanto pode ser empregada como enaltecimento quanto como ofensa. (...) é com essa palavra que Ulisses descreve o cavalo de madeira com o qual conseguiu deixar Tróia em chamas. (...) Mas, lisonjeiro ou acusatório, o vocábulo sempre implica a presença (…) [d]a intenção de enganar.” Knox, p. 54-5 173Braudel: O jogo das trocas. 174Mello: Prólogo ao Celso Furtado 175 Alejandro Zambra: Formas de voltar para casa: p. 156.

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∙ Se a figura da Odisséia não lhe parecer adequada, procure outra, ou viaje sem. Sabemos que as figuras, por um lado, podem vir a excitar o pensamento e “fazer cócegas no raciocínio”

176

e é nesta intenção que a apresentamos. Mas por vezes, diante do seu

poder hipnótico, também podem alimentar obsessões. Em nosso caso, esperamos que nossos leitores brinquem com as possibilidades de reconhecer na história do Capital a história de Odisseu, o “saqueador de cidades”, bem como tenha a perspicácia de identificar as formas atuais de que se travestem o canto das sereias e seu convite para viver eternamente nos dias que já passaram – “o que é uma espécie de morte”, alçada por Knox ao estatuto de “provavelmente a mais poderosa tentação” pela qual passa Odisseu, ao longo da Epopéia. Mas não se aborreçam muito quando julgarem as comparações forçosas ou inadequadas, nem se divirtam177 muito com a possibilidade de o Capital poder ser comparado a um homem astucioso – nunca é demais lembrar: o Capital não é um ser (humano ou divino) provido de vontades; o Capital é uma relação social fadada a ser superada, como outras178. Como já dissemos, este texto está em campo ao lado de quem procura construir um mundo em que possamos ser mais livres. Assim, convidamos sinceramente a leitora a que se sinta livre para caminhar por este texto como melhor lhe convier. Só não podemos nos deixar ludibriar: como Odisseu, as pessoas que falam pelo Capital, possuem o talento para a enganação: são oradores extremamente persuasivos – e nunca dispensam a ajuda daquelas pessoas que “falam” por meio do cassetete, do gás de pimenta e outras formas de persuasão. Suas estórias são, “como afirma Homero, ‘mentiras semelhantes a verdades’, completamente convincentes, precisas (…) mas, ainda assim, mentiras do começo ao fim” 179. Como procuraremos defender nesta tese, diferentemente do que cantam os propagandistas mais ou menos enrustidos, o modo de produção capitalista – novamente como Odisseu – não “amadureceu” na sua própria casa e saiu para o mundo pronto, mas foi justamente no atirar-se ao mundo que “amadureceu”. Odisseu e o modo de produção capitalista nunca teriam “amadurecido” se não tivessem se lançado ao mar em busca de

176Leon

Eliachar, O Homem ao quadrado, São Paulo: Círculo do Livro S.A. [sem data], p. 5. v.lat. divertère 'afastar-se, apartar-se, ser diferente, divergir'. Cf: Candeia: Amor não é brinquedo. 178Ou, entrar em colapso, como oportunamente lembra o professor Mariutti. 179Knox, pág. 56 177Houaiss:

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glória, aventuras, riquezas e guerras. O que é urgente que consigamos perceber é que, por mais que Odisseu e o Capital se “realizem” em suas viagens, i) viajam a contragosto; e ii) é somente na “volta pra casa” que se deixam reconhecer em sua plena forma, revelando-nos a sua “natureza”. Neste trabalho, seguindo as pistas de um amigo180, procuramos em alguma medida tecer um texto que tem por intuito estabelecer alguns pontos de conexão nem sempre evidentes entre aquelas tendências principais do modo de produção capitalista e as diversas maneiras que elas se manifestam. Pelo próprio caráter mutável deste modo de produção, não nos espanta que muitas vezes essas aparências se apresentem como supostas oposições, sendo que são, no fundo, manifestações das mesmas características. Trata-se, para ficarmos no jargão, de uma “unidade de contrários” que, em seu processo dinâmico denotam uma “síntese de múltiplas determinações”

. Mas antes que estes

181

jargões todos desanimem a leitura, passemos para o último movimento desta já longa apresentação no qual procuramos traçar de modo mais claro o itinerário que pretendemos percorrer. Ou, pelo menos, a cartografia dos pontos sobre os quais não podemos deixar de conversar. 2.4 Sobre as tarefas da nossa geração Considerando, que grande parte das coisas que conhecemos se dá por meio da transmissão coletiva da consciência – e da memória – reproduzida predominantemente pela “educação”, todo o processo de tomada da consciência que pretenda se libertar das idéias pré-concebidas precisa, como primeira e mais urgente tarefa, lidar com um problema extremamente complicado, qual seja, o de estabelecer – tomando o cuidado de preservar o que precisa ser retido enquanto experiência – a superação de um conjunto

180Gostaria

de agradecer ao Professor Silvio Rosa pela sua importância na inspiração de muitas idéias que estão aqui. É muito provável que ele encontre, neste texto, ecos distorcidos de nossas antigas conversas. Senão pelas teses, ao menos pelos temas. 181cf: Hegel, Heráclito, Platão etc. A quem pertence o conhecimento? Para divagar sobre essa problemática, que muito nos interessa, sugerimos a leitura da dissertação de nosso querido sofista Robson Gabioneta, com quem travamos incontáveis diálogos sobre os usos e os desusos das “verdades” dos discursos: Um estudo sobre o sofista Protágoras nos diálogos de Platão, Unicamp, 2013.

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de verdades que assimilamos de modo praticamente inconsciente por meio daquilo que recebemos de nossos ancestrais mais próximos182. Nada nos intriga mais no movimento que pretendemos realizar nas próximas páginas do que as lembranças de conversas com tios, tias e avós e a constatação inegável de que vivemos hoje em um mundo muito diferente daquele em que eles viveram em suas infâncias e juventude. Especialmente quando conversamos sobre as coisas mais importantes e mais triviais: rotina, hábitos, alimentação, higiene, organização do tempo, da casa, lazer. Parece-nos inegável que, neste plano ocorreram mudanças significativas nos últimos 100 anos (pouco mais que a idade que nossxs avós teriam hoje se estivessem vivxs). Sendo assim, como é possível afirmar – conforme pretendemos fazer nesta tese – que se trata de um mesmo movimento histórico, de um mesmo hoje – para abusar mais uma vez da figura de linguagem que vem conduzindo esta apresentação –? Primeiramente, temos que estabelecer uma distinção fundamental. Do nosso ponto de vista, a história desse período que escolhemos para tratar nesta tese é precisamente a história da constituição [e reforço/generalização/intensificação?] desse modo de produção da vida – capitalista. Na observação histórica dessa constituição, podemos notar que ocorreu de forma extremamente rápida e violenta a dissolução de modos de vida antigos, que pautavam a vida das pessoas de modo relativamente semelhante há séculos. Porque se é verdade que a distância da realidade cotidiana da nossa vida para a dxs nossxs avós em suas infâncias e juventude é extremada, o mesmo não pode ser dito com tanta segurança sobre a distância entre a realidade cotidiana deles com relação axs avós delxs. E assim sucessivamente. Este é um fato bastante importante para compreendermos a mudança gigantesca que opera na imposição de critérios “racionais” de legitimação da ordem se comparados com o argumento de que “sempre foi assim”, fundamento essencial de uma ordem guiada pela “tradição”183 e critério absolutamente crucial para o entendimento da certeza sensível que nutrem nossos antepassados mais próximos segundo a qual “hoje o tempo passa muito mais 182Esta

seção é animada por muitas conversas travadas com Lucas Page Pereira, sociólogo especialista – dentre muitas outras coisas, dada a natureza incontida do rapaz em questão – em Sociologia Francesa, sobretudo Durkheim e Halbwachs. Aproveitamos a ocasião para agradecê-lo pelas muitas conversas sobre o tema, dentre outras coisas muitas. Ainda que não tenhamos conseguido apreender em sua profundidade essa importantíssima discussão sociológica, achamos o jabá importante: Lucas Page Pereira, Maurice Halbwachs: reminiscência sociológica, Unicamp, 2013. 183Não abordaremos nesse trabalho as famosas teses de Weber sobre a mudança do fundamento da legitimidade da ordem e os diferentes tipos de dominação, mas deixamos aqui manifesto que se trata de um problema de importância para o nosso tema, que não será tratado por incompetência nossa.

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rápido do que antigamente”. É claro que essa percepção depende de inúmeros fatores, sobretudo porque vivemos em um país de urbanização recente, formação migrante e passado escravocrata, todos muito “novos” do ponto de vista da memória social. Mas se não for verdade que essa sensação de que a mudança aqui indicada tenha ocorrido nesta determinada geração, ainda assim – o que é muito mais importante – pensamos que o sentido do argumento se sustenta: passamos, há algumas décadas, por uma violenta mudança no sentimento sobre o tempo, que parece acelerar bruscamente, e é muito improvável que não se encontre bases concretas para essa percepção184. Feito esse gigantesco esforço – permanente; jamais tido por terminado – de nos livrarmos de determinados preconceitos aos quais estamos todos necessariamente condenados a receber de nossos antepassados e que repousam, por sua vez, nas visões de mundo correspondentes àquela época, precisamos entender as gigantescas mudanças que se operam nessa sociedade em vias de “modernização”. De modo mais ou menos automático, essa “modernização” geralmente é identificada com a consolidação de uma sociedade de consumo de bens descartáveis; com uma sociedade de consumo de bens duráveis; com a expulsão das pessoas do campo e com a urbanização; e/ou com as revoluções dos meios de informação e transportes. Sem mencionarmos aquela que provavelmente se configura na mais fantástica dentre todas as novidades, a luz elétrica; e que por certo teve um impacto fascinante para a implementação definitiva da ideologia do Progresso185 responsável por plasmar, no plano ideológico, as relações que eram operadas no plano “concreto”. Aqui, concordamos mais uma vez com o grande historiador – insistimos, para não dar mais essa aos ingleses: egípcio – Eric Hobsbawm: recontar a história do século XX é recontar a história de como a espécie humana – que viveu por milênios no campo produzindo a sua própria comida – se mudou para a cidade, e é, portanto, a história da constituição de sociedades organizadas sobremaneira pela mercadoria enquanto relação social fundamental, ou seja, a constituição de um modo capitalista de produção da vida; por que

184Existe

uma já longa tradição que fala sobre a percepção da aceleração do tempo na modernidade. Por hora, sugerimos os seguintes vídeos, onde se pode encontrar mais referências: https://www.youtube.com/watch?v=yTARiMPJYrg e https://www.youtube.com/watch?v=4tlTlDcbIaQ (acessados em 22 de fevereiro de 2015 às 20:19h). 185Sobre a qual conversamos em O progresso na obra de Adoniran Barbosa. Lucas S. Andrietta, Thiago F. Franco e Robson Gabioneta, Revista Filosofia & Ciência, número 93. Contrastado com Lampião de Gás, na voz de Inezita Barroso.

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(...) no meio do século passado entramos subitamente em uma fase nova da história que acarretou o fim da história como a conhecemos nos últimos 10 mil anos, isto é, desde a invenção da agricultura sedentária186 [e] dentro de poucas décadas, teremos deixado de ser o que a humanidade sempre foi desde o seu surgimento – uma espécie cujos membros se dedicam sobretudo à coleta, à caça e à produção de alimentos.187

Voltando para o exemplo concreto: as nossas vidas cotidianas são imensamente mais dependentes do mercado do que as vidas de nossxs avós, e inacreditavelmente mais dependentes do mercado do que as vidas cotidianas dxs avós dxs nossxs avós 188. É disso que se trata a constituição do modo capitalista de produção: na subordinação crescente das pessoas em relação ao “mercado”, ou seja, na restrição cada vez maior da autonomia de vivermos para além das relações pautadas pelo valor de troca e pela significação

abstrata

de

nossas

necessidades;

pela

“fetichização”

e

pela

“espetacularização” de cada aspecto de nossa vida cotidiana. E só podemos entender a tese de que o mundo do final do século XIX está inscrito no mesmo período do início do nosso século XXI – do qual é tão diferente – se entendermos – conforme gostaríamos de demonstrar ao longo deste texto – que este é um período que deve ser entendido exatamente como o período em que essas transformações na vida cotidiana se deram de forma mais violenta; o que evidentemente só pode ser feito tomado de uma perspectiva histórica de “respiração mais contida”, “de amplitude secular”, “a história da longa, e mesmo da longüíssima duração”, quando o historiador tem uma maior probabilidade de desprender-se das “miragens” e colocar em questão as suas próprias estruturas mentais transmitidas a ele como memória 186Eric

J. Hobsbawm – Guerra, paz e hegemonia no início do século XXI [2004] republicado em Globalização, Democracia e Terrorismo (2008) SP Companhia das Letras [Globalisation, democracy and terrorism (2007)] p. 36.Quando o autor acrescenta quatro aspectos sociais dessas profundas mudanças, quais sejam: 1 – forte declínio do campesinato, que até o século XIX formava a grande base da raça humana e o alicerce da economia; 2 – correspondente ascensão de uma sociedade predominantemente urbana e sobretudo o aparecimento das hipercidades; 3 – substituição de um mundo de comunicação oral por um mundo baseado na leitura e na escrita universais; 4 – transformação da situação das mulheres. p. 37 187Mesmo texto, p. 38. Aqui é importante que notemos que é possível que tenhamos nos deparado com um grave problema na periodização que propusemos. Se houve mesmo uma grande (a maior de todos os tempos) ruptura na metade do século XX, como sugere Hobsbawm e nos parece muito defensável, é possível que não vivamos mais no mesmo ciclo aberto em 1870. Mas, se for verdade, conforme definimos, que vivemos ainda sob os mesmos ditames do Capital Financeiro e da rivalidade (“capitalista”) entre as potências, teríamos que explicar em que diferimos do período do Imperialismo “clássico”. Sendo assim, vamos examinar essas teorias para, somente ao final da tese, voltarmos ao problema da periodização, que é o nosso objetivo. Mas já temos a pista fundamental para que não nos percamos nesse emaranhado temporal: não existe um tempo, mas vários tempos que se sobrepõem: curtíssima, curta, média, longa e longuíssima durações – pelo menos. 188 Sobre a importância do mercado para o caipira na época das bandeiras e depois dela: https://www.youtube.com/watch?v=zm3Pz8qxqNA

66

coletiva189, procurando apreender “toda a espessura da história”

. Conforme

190

procuraremos argumentar posteriormente – depois de ultrapassada uma etapa grande de nosso percurso, quando resgataremos essas idéias do início, em especial no que concerne à definição da periodicidade do hoje – pensamos que, com efeito, para a constituição deste discurso historiográfico que pretendemos desenvolver, precisamos aprender a operar com o fato nada evidente de que “cada 'atualidade' reúne movimentos de origem, de ritmos diferentes: o tempo de hoje data, ao mesmo tempo, de ontem, de anteontem, de outrora”.191 Mas por hora temos a terceira etapa fundamental da tarefa de constituição de um discurso crítico que seja capaz de estabelecer elementos para um pensamento libertário: vivemos em um momento em que a palavra “crise” predomina nos diagnósticos em todos os planos de nossa vida. As cicatrizes são visíveis: a “economia” está em “crise”; a “política” está em “crise”; a “escola” está em “crise”; a “família” está em “crise”, o “amor” está em “crise” etc. Enfim, nos parece192 que vivemos num momento de profundo desgaste das relações capitalistas de produção e de putrefação do capitalismo – do que as rebeldias são algumas das manifestações visíveis. E nos parece que as atuações recentes das autoridades tidas por competentes intensificam ainda mais as tensões que se evidenciam. No plano político, a resposta tem sido mais violência, mais vigilância, mais autoridade. No plano econômico, empréstimos aos bancos; periferização da produção; aumento ainda mais vertiginoso da acumulação “fictícia” 193. Contudo, por outro lado, vivemos num momento em que ainda sobrevive a memória – como todas, “inventada” e “distorcida” – das supostas maravilhas da modernização; dos “milagres econômicos”, do “progresso” e do “pleno emprego”, enfim

189Braudel,

História e Ciências Sociais. A longa duração, pág. 44. texto, página 46. 191Mesmo texto, página54. 192Pedimos ao leitor que, neste ponto, nos perdoe a heresia de apresentar nesta tese um raciocínio incomprovável; pensemos juntos. 193Voltando para a Odisséia, parece que o Capital finalmente voltou para a esfera da circulação, onde sempre “se sentiu mais em casa” [Braudel, O jogo das trocas], onde ele é mais facilmente cognoscível. Discordamos de que é disso que se trata; em nossa concepção a oposição entre acumulação “fictícia” e acumulação “real” carece de muitos pormenores. 190Mesmo

67

do “desenvolvimento”. Ainda se acredita na memória-miragem dos Wonder Years194. “Até aí tudo bem”.195 Entretanto, “o espantoso é que tais imagens continuem presentes na linguagem política, jornalística, na divulgação e no ensino da economia, quando a dúvida já se introduziu nas discussões dos especialistas, e isso já antes de 1929.” 196 Portanto, estamos vivendo um momento curioso: a tentação da reforma de um sistema putrefeito ainda é o guia das ações de grande parte dos rebelados. Muitos – estranhamente197 grande parte dos rebelados – ainda demanda “ordem” e “paz”. Enquanto isso, os governantes e os capitalistas não parecem sensíveis à pauta da reforma. Do contrário, parecem dispostos a intensificar ainda mais as contradições de um sistema que já não mais dá conta da reprodução dessa sociedade. O que nos cumpre observar é que se este diagnóstico estiver correto, estamos novamente, depois de muito tempo – para quem é ansioso demais e/ou está desacostumado com a lenta temporalidade da história, ou seja: todos nós – diante de um “contexto revolucionário” .

198

Esta tese tem por objetivo, portanto, a reconstituição dos elementos principais da história de um modo de produção em ruínas com a intenção de contribuir para a destituição dessa memória reformista em favor do estabelecimento de um modo de vida mais igualitário e mais libertário. Longe da tentativa de tessitura de um único 194Um

mito que nos cumpre desmascarar com urgência! Para quem quiser acompanhar esse processo em um excelente registro, indicamos que (re) assistam à genial série de televisão Wonder Years, traduzida para o português como Anos Incríveis. Não tínhamos consciência disso, mas quando, ainda crianças, assistíamos às desventuras de Kevin Arnold, Winnie Cooper e Paul Pfeiffer nos subúrbios estadunidenses, era-nos oferecida uma verdade cristalina: o sonho acabou. Em fins da década de 1960, já havia acabado. E se as condições [com o perdão de mais um jargão] subjetivas e objetivas que o sustentavam um dia existiram – ou seja, se não foi uma ilusão criada em cima de fetiches e mentiras – não existem mais. É preciso que nos desiludamos. Ou, para acompanhar a excelente metáfora dos autores: que cresçamos. Não dá pra acreditar eternamente em contos da carochinha, na fábula e na ilusão infantil do conforto e da segurança permanentes no mundo em que vivemos. [agradecemos a indicação precisa do resgate dessa até então aparentemente despretensiosa série a Mateus Mendonça Oliveira, que apresentou, sob o título Anos Incríveis: os valores de uma sociedade em 20 minutos, um trabalho de fim curso no Laboratório de Pesquisa em Relações Internacionais (LaPRI) uma ótima análise sobre o episódio piloto, que pode ser encontrado em: http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=6&cad=rja&uact=8&ved=0CCw QtwIwBQ&url=http%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3Dzn2Nlja4WJg&ei=jmHNU4jVI42 eyATa8YHAAg&usg=AFQjCNEdxdOF89AKZh5MrRo9kNKZP0dAkw&bvm=bv.71198958,d.aWw, acessado em 21 de julho de 2014.] Sobre as várias versões dessa fábula, o sempre mordaz e preciso João da Silva desenhou http://tirasdamiseria.blogspot.com.br/2011/06/cirroses-bar.html, acessado em 17 de março de 2015 às 22:34h. 195Domínio público retirado de https://www.facebook.com/AjudaLuciano?fref=ts 196Braudel, Civilização material... Livro três, pág. 584. 197Para quem não assistiu à palestra do Coringa a que nos referimos no começo desta apresentação. 198 Será que existem tempos mais e menos revolucionários? Como saber se estamos em tempos mais ou menos revolucionários? Em que isso implica?

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argumento coerente e coeso preferimos o esforço de sistematizar algumas referências e procurar articular [o máximo possível] debates que se nos avizinham, com a intenção de oferecer às nossas amigues de jornada – a quem dedicamos esse esforço – uma provisória cartografia do problema. Neste esforço de organização de um amplo leque de questões, nos colocamos na tarefa – necessariamente coletiva – de constituição daquele discurso libertário de que vimos falando desde o princípio. Mas é certo que essa intenção alterou nosso curso. Se poderíamos dialogar mais proximamente de quem estuda os assuntos específicos dos debates sobre o Imperialismo, procuramos, sem deixar de cumprir as obrigações auto impostas pela escolha do tema, alargar ao máximo as possibilidades de conversar com outras pesquisas, com as quais partilhamos a agenda comum de combater o que deve ser combatido. Seguindo os conselhos da professora Virgínia Fontes – estudiosa do imperialismo contemporâneo

com quem voltaremos

a

conversar



procuramos “sacudir

interpretações, evitar sacralizações e socializar esboços de interpretação em construção” . Este é mais um dos espíritos que animam nossa jornada.

199

199Virgínia

Fontes: O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história.EPSJV/Fiocruz e Editora UFRJ, 2010. p. 145, grifos meus.

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Parte II – Podemos considerar o mundo contemporâneo imperialista? – Alguns comentários historiográficos sobre o “sumiço” e o “retorno” do conceito Imperialismo200 “Quando eu penso no futuro eu não esqueço o meu passado” (Paulinho da Viola)

Hoje contamos uma quantidade imensa de trabalhos que versam sobre o (supostamente) (novo) imperialismo, ao que podemos inferir que é um debate que “está na moda”

. Por incrível que possa parecer, essa não é uma tendência constante ao

201

longo da história desse conceito, que já conta mais de um século. Ao menos – resta investigar – não podemos afirmar com segurança que a percepção sobre a centralidade deste tema tenha se mantido constante ao longo deste período. Nossa tarefa nesse capítulo é reconstituir o debate contemporâneo a partir da percepção de que o tema teria sumido dos debates em algum momento do século XX para retornar com força nos primeiros anos do século XXI. Nosso intuito com isso é demonstrar a maneira pela qual outros debates influenciaram o debate sobre o Imperialismo, verificando o que essa influência revela sobre as leituras que foram feitas das “teses clássicas”, sobretudo sob duas perspectivas: 1) a relação entre os conceitos Imperialismo e Capitalismo; 2) o que o conceito Imperialismo deveria ajudar a entender. Na maneira como constituímos nosso roteiro, este é um passo importante para entendermos que o conceito Imperialismo – um conceito de periodização – é adequado para a definição de todo o período que se estende de por volta das crises de 1870 até os nossos dias e qualquer confusão sobre isso que porventura tenha ocorrido no transcorrer dos séculos é um problema da perspectiva adotada, não do conceito. Aqui é importante que destaquemos que, tendo em mente que, para o materialismo histórico, nenhuma idéia se sustenta sem que para isso conte com uma “base material”, é

200Submetemos

parte dessa introdução à seção de comunicações do VIII Colóquio Internacional Marx Engels, promovido pelo CEMARX, Unicamp. 201A título de registro, anotemos o comentário do argentino Atílio Borón, com o qual concordamos: “Não deixa de ser sintomático da situação da cultura latino-americana que esta reaparição temática tenha sido 'autorizada' (…) pelo ressurgimento da discussão em torno ao imperialismo não apenas na periferia do sistema capitalista, mas também em seu próprio núcleo fundamental: os Estados Unidos. De fato, não é um mistério para ninguém que, se o tema foi reinstalado nos meios acadêmicos e no espaço público da América Latina, isso foi em grande medida possível porque primeiro 'entrou na moda' nos Estados Unidos.”

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importante que não entendamos esses “problemas de perspectiva” como “erros” ou meras “distorções ideológicas” por parte dos autores e das autoras. Do contrário, cumpre que procuremos entender – para atingir as raízes – o que na realidade permite que esse discurso se apresente como verossímil. Além disso, a partir da forma de leitura das “teses clássicas” que começamos a sugerir aqui, o período do pós-Guerra e da “globalização” são ambos momentos do aprofundamento do modo de produção capitalista e o “New Deal”, por mais que também deva ser entendido como uma conquista da classe trabalhadora, teve como resultado o aumento da submissão desta ao capital, e, portanto, não deve jamais ser considerado, como sugerem várias pessoas, o horizonte para a luta anticapitalista em nossos dias.

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Capítulo 3. A hipótese do “sumiço” e “retorno” “Muitas vezes me aborrece o teu feitiço pois sei que podes com isso prender a outro qualquer, porém, eu prefiro viver enfeitiçado, estar sempre a teu lado mesmo sem saber porque” (Lupicinio Rodrigues)

Em 2004, The European Journal of Sociology publicou um instigante artigo denominado The return of Imperialism to Social Sciences, do marxista indiano Vivek Chibber que começa pela constatação de que um dos curiosos acontecimentos nos círculos intelectuais ao longo dos últimos anos é que o tema do Imperialismo não é mais uma jurisdição (bailiwick) da esquerda. Para ser preciso, enquanto os impérios coloniais ainda eram fortes, não havia como negar a realidade da expansão imperial da Europa e dos Estados Unidos. Mas ao longo da era do Pós-Guerra, enquanto a descolonização trepidava o Terceiro Mundo e os mecanismos formais do controle colonial eram abolidos, qualquer insistência na continuidade da importância do imperialismo passou a ser identificada com ideologias esquerdistas.202

Este artigo certamente provocou forte impacto no debate que o sucedeu – inclusive no Brasil203. Mas Chibber não estava sozinho na defesa da idéia de que o assunto Imperialismo estava retomando um protagonismo “merecido”. Em 2002, por exemplo, o editor da Monthly Review, o estadunidense John Bellamy Foster, no texto The Rediscovery of Imperialism afirmara que o conceito de ‘imperialismo’ foi considerado fora do limite aceitável do discurso político dentro dos círculos dirigentes do mundo capitalista durante a maior parte do séc. XX. A referência a ‘imperialismo’ durante a

202Com

o intuito de facilitar a leitura optamos por sempre traduzir as passagens das línguas estrangeiras para o português, a despeito das recorrentes vezes em que o tiro pode sair pela culatra. Quando se tratarem de texto para os quais não encontramos a tradução, optaremos pela tradução livre. (CHIBBER, p. 1) 203Embora discordemos de boa parte de suas afirmações – por razões que explicaremos mais tarde – foi com base na reelaboração de argumentos que Chibber apresentou nesse artigo que estabelecemos uma “bússola” que nos ajudou a encarar o [assunto] imperialismo contemporâneo – adiantando: é possível, a título de abordagem da bibliografia, classificar os estudos sobre o imperialismo entre aqueles que contribuem para a atualização de problemas “superficiais” (mais ou menos importantes) e aqueles que buscam repensá-lo de modo “radical”, ou “estrutural”. Não é simples definir objetivamente o que é “estrutura” e o que é “superfície” e inclusive divergimos da maneira como o autor as entende. Não podemos negar, contudo, que foi um passo importante dessa investigação.

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guerra do Vietnã, não importando se realista ou não, era quase sempre sinal de o autor estar do lado esquerdo do espectro político.204

Mas como a produção (inclusive a) acadêmica não pode parar, já em 2007, passada essa onda de denúncias sobre o sumiço das discussões sobre o imperialismo – e dadas as profundas (?) alterações (?) das relações internacionais dos EUA depois de 2002205 – marxistas de várias partes do mundo já haviam começado a cumprir com a sua “lição de casa”. A ponto de Atílio Borón poder afirmar, em A questão do Imperialismo, que “(...) a teorização contemporânea sobre o imperialismo (…) tem recobrado nos últimos anos uma centralidade que nunca deveria ter perdido”. Ao que acrescenta que não obstante, tratava-se mais de um eclipse que de uma desaparição porque (...) a situação começou a mudar. Depois de uma prolongada ausência intelectual e política que se estendeu ao longo de quase trinta anos, a problemática do imperialismo que havia suscitado alguns dos mais importantes debates teóricos e práticos das sociedades latinoamericanas na década de sessenta reapareceu com força na esfera pública em sintonia com o acelerado debilitamento da hegemonia ideológica e política do neoliberalismo. (…) Aparece, também, na linguagem comum e corrente utilizada pelos meios de comunicação de massas, produzindo um certo deslocamento – não total mas importante – do eufemismo que até esse momento se havia empregado para aludir ao fenômeno do imperialismo sem ter que nomeá-lo: globalização.206

Essas hipóteses são muito semelhantes às assumidas pelas economistas brasileiras Marisa Amaral e Leda Paulani. Em trabalho de 2013, afirmam que depois de constar entre os temas de discussão mais proeminentes dentro do marxismo – sob o impacto causado pelas obras de Hilferding (1910), Lenin (1917), Bukharin (1917) e Luxemburgo (1912) –, o tema do imperialismo simplesmente desaparece de cena a partir de meados da década de 1970, exatamente (e ironicamente) num contexto de crescente dependência externa e perda da soberania nacional vivida pelas principais economias periféricas do globo.207

Poderíamos citar muitos outros trabalhos contemporâneos que orientam suas pesquisas sobre o imperialismo nesse diapasão, mas por hora nos parece mais importante indagar como esses autores constituem sua argumentação. Por exemplo: o que explicaria o sumiço? E o que teria feito com que ele “reaparecesse”? Quanto à hipótese do sumiço, um fato que chama atenção é que – até onde temos conhecimento – toda a bibliografia que aborda o debate sob esse prisma (por exemplo,

204Foster,

2002. P. 201. debate é interminável. 206Borón, 2007 207AMARAL e PAULANI, 2013. 205O

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todos os textos que citamos) se sustenta em um despretensioso artigo, também publicado pela Monthly Review, intitulado Whatever happened to imperialism?. Nele, o indiano Patnaik (1990) afirma que, a despeito de, na realidade, ele estar mais forte do que nunca, na última década, no debate marxista estadunidense, “quase ninguém mais fala sobre o imperialismo” 208. É importante que notemos que em nenhum momento Patnaik procura embasar o argumento de que o debate sumiu. Do contrário, assume sua percepção209 como verdade e segue em frente210. Sob nosso ponto de vista, esse artigo é uma provocação que a historiografia posterior assumiu como fato (em especial ante o impacto do supracitado artigo de Chibber, que ratificou a percepção). Mas será que, para além das percepções, a hipótese do sumiço é verdadeira? Essa não é uma pergunta simples de ser respondida. Ainda no campo da especulação, um levantamento preliminar ilustrativamente nos sugere que estamos girando em volta de uma pista falsa. A título de exemplo, somente na base de dados JSTOR podemos encontrar, entre 1980 e 1990 [recorte de Patnaik] 21.430 textos com o termo de busca “imperialism” em língua inglesa. Entre 1970 e 2000 são 92.417 entradas com os mesmos termos211. Isso é muito? É pouco? Trata-se de uma “perda de centralidade”? A priori, é impossível afirmar prescindindo de um mapeamento detalhado da produção acadêmica e outros procederes biblioteconômicos, numa perspectiva histórica e comparativa que levasse em consideração, dentre inúmeros outros fatores, o aumento absoluto da “produção” em todas as áreas – que reflete o modelo de Academia que veio se desenhando ao longo do século XX – e uma discussão sobre o que é ou não “marxista”. Não temos condições de fazê-lo, nem está entre nossos objetivos realizá-lo. Mesmo assim, precisamos sair do campo das percepções. Se não podemos demonstrar que não houve um sumiço, tampouco o fizeram quem o 208E

não deixemos passar desapercebido que o autor, independentemente das (im) precisões de sua pontificação é lúcido quanto às potenciais consequências desse desaparecimento: em síntese: a negligência dos marxistas quanto ao estudo do imperialismo traria efeitos cruéis, porque significaria, na prática, um retrocesso das lutas revolucionárias contra o imperialismo; o que, por seu turno, iria gerar movimentos racistas, fundamentalistas e xenofóbicos. Qualquer semelhança com o que vivemos está longe de ser uma mera coincidência. 209O tom pessoal e biográfico de seu artigo é absolutamente cristalino, como podemos observar no seguinte parágrafo: “Um estrangeiro não pode deixar de notar uma notável transformação que teve lugar no discurso marxista nos Estados Unidos na última década: quase ninguém fala sobre o imperialismo mais. Em 1974, eu deixei Cambridge, Inglaterra, onde estava ensinando economia, e agora voltei para o Ocidente , desta vez para os Estados Unidos , depois de 15 anos. Quando eu saí, o imperialismo ocupava talvez o lugar mais proeminente em qualquer discussão marxista e em nenhum outro lugar se escreveu ou se falou mais sobre este assunto do que nos Estados Unidos.” 210Também precisamos denunciar a visível afetação colonizada em seu modo de tecer o argumento. 211http://www.jstor.org, acessado em 5/3/15, 12:38h.

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identificou. Essa constatação nos basta para levarmos a discussão para outro lugar, que nos interessa mais. Independentemente de ter ou não ocorrido o tal sumiço, o “consenso” somente foi possível porque a percepção de Patnaik coadunou com percepções bastante disseminadas. Noutros termos: independentemente da sua veracidade, a percepção mostrou-se verossímil, e foi, assim, elevada ao estatuto de verdade. Que essas percepções somente podem ser analisadas à luz dos acontecimentos do período, é uma reflexão que teremos a ocasião de realizar depois de resgatarmos alguns encadeamentos fundamentais à construção dessa hipótese, porque a despeito de quaisquer divergências, a reconstituição do artigo de Patnaik revela coisas importantes. Primeiro, ressaltemos que – diferentemente do que aconteceu posteriormente, com a extensão da percepção para outras situações – o artigo de Patnaik parte de um recorte bastante limitado. Para ele, a percepção da perda de centralidade do Imperialismo, é a percepção de uma perda de centralidade específica: i) no discurso marxista; ii) nos Estados Unidos; iii) na década de 1980. Por razões que não cabem no escopo do nosso texto – mas que constituem capítulos importantes da historiografia sobre o Imperialismo – o debate marxista dos EUA na década de 1980 – já em diálogo com as teses produzidas por autorxs do “terceiro mundo”, muitxs emigradxs para os Estados Unidos – se concentrava em uma trinca de assuntos, a saber: a expansão mundial do capital monopolista estadunidense por meio de empresas de transformação industrial; as intervenções militares na América Latina que sustentavam ditaduras; e, por fim, uma crítica – correta – de que a literatura “marxista” deveria incorporar perspectivas “terceiro-mundistas”. Conforme procuraremos argumentar mais à frente, não nos parece que o Imperialismo possa ser reduzido a essas – sem dúvida importantes – características212. Mas o que nos interessa de imediato é a forma como a percepção de Patnaik sobre o “desaparecimento” do Imperialismo tornou-se a visão “oficial” sobre a historiografia do tema. Voltando à nossa tentativa de reconstituição do argumento de nosso autor, notamos que, sem jamais abandonar o tom pessoal, depois de elencar e minimizar a importância de argumentos sobre a ingenuidade e certa tendência para as “teorias da 212E

também nos parece que a discussão sobre o que se entende por Imperialismo é uma das questões principais que repousam por trás do véu das percepções.

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conspiração” (sic) por parte dxs marxistas estadunidenses, Patnaik apresenta a seus pares uma consideração que sustenta até hoje a hipótese do sumiço. Vamos destacá-la, que a constatação é rica em parênteses importantes, muitas vezes ignorados pela historiografia do Imperialismo: (…) agora temos uma nova ofensiva à abertura dos mercados do terceiro mundo, não somente para bens, como percebeu Rosa Luxemburg, mas também por serviços. (…) O ponto não é, como geralmente interpretado, se a persistência do subdesenvolvimento se deve ao imperialismo ou às contradições internas ao terceiro mundo (o que, em todo caso, deriva de uma contraposição mal formulada entre as duas idéias [!]); o ponto não é se o capitalismo pode sobreviver sem o imperialismo (uma questão especulativa externa ao método marxista [!]); o ponto também não é se este ou aquele teórico do imperialismo estava correto (isso é hagiografia, não análise [!]).

Concordamos com cada uma das anotações, e vamos sublinha-las: 1) a rapinagem do terceiro mundo aumentou muito; 2) do ponto de vista das explicações para a persistência das condições de miséria da população do terceiro mundo, não há contraposição entre as contradições do sistema internacional e as contradições da própria periferia; 3) as questões das condições de sobrevivência do modo de produção capitalista no futuro são especulações externas ao materialismo histórico; 4) a questão sobre quais teóricxs estavam “corretos” quanto ao que ocorreu depois de suas respectivas mortes e os seus respectivos processos de canonização interessam somente para os debates específicos da marxologia e acrescentam nada às análises que precisam ser feitas. Mas então, se esses não são os pontos principais, para Patnaik, qual é ele? Para Patnaik, o ponto é o paradoxo de que, enquanto o sistema de relações encoberto pela rubrica do imperialismo não mudou nem um pouco na última década e meia, hoje são discutidas questões fundamentais, mesmo entre os marxistas, ao contrário de antes, sem qualquer referência ao termo.213

O que explicaria esse “paradoxo”? Para ele, o próprio sucesso do Imperialismo em superar seus obstáculos e gerenciar os conflitos que lhe foram impostos. Noutras palavras: “O silêncio ensurdecedor sobre o imperialismo no discurso marxista atual, especialmente neste país, é desta maneira um reflexo da extraordinária força e vigor que ele está ostentando no presente”. Mas se for assim, o que explicaria o ressurgimento?

213PATNAIK,

1990, grifo nosso.

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Teria o Imperialismo perdido “força” e “vigor” no começo do século XXI? Não nos parece ser o caso. Argumentando de maneira mais direta, mais objetiva e menos pessoalizada, as economistas brasileiras Marisa Silva Amaral e Leda Maria Paulani (2013) parecem ratificar parcialmente o “paradoxo” de Patnaik, sintetizando que o que justifica tal silêncio (inclusive!) no discurso marxista do período, de acordo com o argumento de Patnaik, não é o fim do imperialismo ou sua perda de importância, mas, contrariamente, a extraordinária força e vigor que este conjunto de relações econômicas214 características do mundo contemporâneo adquire naquele momento, reforçando sua “capilaridade” e sua capacidade de fazer frente a qualquer tipo de ameaça à sua hegemonia. É quase como se a evidência de sua existência e a certeza de sua sobrevivência fizesse de qualquer menção ao termo uma mera tautologia; como se reafirmar insistentemente que a fase do capitalismo prevalecente naquele momento era a sua fase imperialista fosse o mesmo que dizer obviedades em relação às quais não há nenhuma objeção; como se colocar em discussão as raízes, estrutura, lógica de funcionamento, contradições, impactos e tendências do imperialismo não fosse mais do que uma grandessíssima perda de tempo; como se, finalmente, a teoria do imperialismo não tivesse mais nada a dizer.

Contudo, vão além, retificando que “o fenômeno que parece ocorrer (...) nos parece um pouco mais amplo do que sugere Patnaik”. Trata-se, sem dúvida, de um revigoramento do imperialismo, bem como de sua capacidade de afirmar sua hegemonia. No entanto, ocorre que esse fato mais geral vem encoberto pelo discurso da globalização, algo que anuvia e mascara sua verdadeira natureza.

Voltaremos ao problema da “globalização” – que sob muitos pontos de vista, estranhamente (?) assumiu extrema importância para o debate – mas não sem antes apontar outros rumos que o debate tomou. Também partindo da extensão da percepção de Patnaik, John Bellamy Foster defende que (…) foi o enorme êxito das teorias marxistas do imperialismo, as quais puseram a descoberto a exploração sistemática do capitalismo à periferia e as condições da rivalidade interimperialista com grande pormenor — de forma que o imperador passou a ser visto em toda a sua nudez — que fez com que o termo 'imperialismo' fosse apagado do discurso convencional.215

O deslocamento é importante – e perpassa grande parte do debate: o que era uma reclamação sobre os marxistas estadunidenses durante a década de 1980, foi estendido Sob nosso ponto de vista, o Imperialismo não pode ser reduzido a um “conjunto de relações econômicas”, mas este é um argumento que será exposto à frente. 215 Foster, 2002. 214

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para o “discurso convencional”. E o mesmo “desaparecimento”, que era uma omissão dos marxistas, passa a ser visto por Foster também como uma tática de disfarçamento por parte dos executores do imperialismo. Em suas próprias palavras: enquanto a URSS existiu e uma maré forte de revoluções antiimperialistas era evidente na periferia, não era possível o capitalismo abraçar abertamente o conceito de imperialismo em nome da promoção da civilização. As intervenções militares dos EUA no terceiro mundo para combater revoluções ou para obter o controle de mercados foram explicadas invariavelmente, dentro do discurso oficial dos EUA, em termos de Guerra Fria e não em termos de objetivos imperiais.

A hipótese do “eclipse” e do “retorno” da categoria Imperialismo, portanto, diferentemente do que parecia à primeira vista, mesmo entre quem dela comunga, é bastante controversa. Apesar da percepção de Patnaik ser sempre destacada, ninguém demonstra a. Todo o debate se baseia na percepção – não demonstrada e talvez mesmo indemonstrável – de que o tema “perdeu centralidade” – e também não há definição alguma do que seria essa “centralidade”. Assim, o que vimos tentando dizer é que, apesar de à primeira vista haver um consenso sobre o sumiço das discussões sobre o Imperialismo durante as décadas finais do século XX, é importante nos atentarmos para o fato de que estamos longe da apreciação de um debate coeso no entorno de uma questão meramente terminológica. Do contrário, trata-se de um debate com muitas questões superpostas, que carecem de indagações e que nos revelam uma porção de coisas importantes. Comecemos pela análise do que há por trás desse “mínimo comum”. Enquanto Patnaik – insistimos, base da hipótese – está discutindo o desaparecimento do assunto Imperialismo entre os marxistas estadunidenses durante a década de 1980; Chibber (cujo horizonte é o processo de “descolonização” durante a “era do Pós-Guerra”) fala do sumiço nas Ciências Sociais em geral e Foster (aparentemente pensando em uma sorte de “esfera pública”) está ocupado com o fato de que, para ele, "durante a maior parte do século XX" e em especial "durante a guerra do Vietnã" o termo “imperialismo” foi evitado por uma certa intelectualidade. Já do ponto de vista “latino-americano”– aliás, com o qual Foster não deixa de concordar – o marco do desaparecimento das discussões sobre o Imperialismo é o quadro de intensificação do “neoliberalismo” e da “globalização”, a partir de meados da década de 1970. Não é casual, evidentemente, que o fundamento do discurso dependa de sua posição. A perspectiva africana e/ou asiática se fundamenta no processo de descolonização; enquanto da perspectiva “latino-americana” cumpre denunciar a

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ofensiva “neoliberal” do discurso em favor da “globalização”. Mas é importante que se registre sua concomitância – que indica mudanças importantes ocorridas em âmbito global: diversas posições periféricas produzem discursos com um alvo em comum ao mesmo tempo. Contudo, isso ainda não esclarece o problema do suposto sumiço e do suposto retorno do tema. Qual é a relação entre a “globalização” e a “descolonização” e o problema do imperialismo? Vejamos, por outro lado, a questão do “retorno”. Parece-nos que podemos apreender algo dali. 3.1 A “imposição” do tema O que chama a atenção de imediato, é que se a questão da perda da é controversa centralidade – o que ela representa? de onde e quando exatamente a categoria sumiu? –, quanto ao “retorno”, não há espaço para polêmica: é inegável e consensual que – independentemente de qualquer “eclipse” – por volta da década de 2000 – em especial após as declarações de guerra de 2002 – podemos mapear uma ampla e insistente campanha que na prática impôs o tema à intelligentsia em geral e @s marxistas em particular. Reconstituamos os episódios principais dessa imposição. 3.1.1 A Estratégia de Segurança Nacional de 2002

No dia 17 de setembro de 2002, o então presidente dos Estados Unidos da América, George Walker Bush (Bush II) – que enfrentara uma eleição manchada por polêmicas e fraudes; resolvida, por fim, num imbróglio jurídico de legitimidade muito contestada216 – cumprindo obrigações legais para com a sociedade que o elegeu – enviou para o Capitólio217 um documento que teria por destino estabelecer um dos (possíveis)

216A

eleição de Bush II foi marcada por uma porção de fraudes e outros trambiques. Por fim, foi homologada na Suprema Corte dos Estados Unidos, por critérios confusos até mesmo para quem conhece a fundo o intrincado sistema de “colégios eleitorais” que o fundamenta – tão confuso que até hoje se contesta a legitimidade desta eleição. Mesmo assim, a despeito de ter obtido menos votos absolutos que seu adversário Al Gore, e de uma grotesca fraude no estado governado por seu próprio irmão (Jeb Bush), George foi eleito presidente em 12 de dezembro de 2000 e nomeado em 20 de janeiro de 2001. Essa decisão jurídica, contudo, não serviu para eliminar os protestos em favor da candidatura democrata, que só foram atenuados com os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, em onze de setembro de 2001. Para mais informações, amplamente disponíveis na internet, sugerimos, a título de exemplo, http://en.wikipedia.org/wiki/Bush_v._Gore e http://operamundi.uol.com.br/conteudo/historia/32916/hoje+na+historia+2000++suprema+corte+dos+eua+confirma+bush+como+presidente.shtml ambos acessados em 25 de janeiro de 2015. 217http://pt.wikipedia.org/wiki/Capit%C3%B3lio_dos_Estados_Unidos acessado em 25 de janeiro de 2015.

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marcos do século que se enunciava: a Estratégia de Segurança Nacional218. Começava – como de costume em documentos dessa natureza – por um balanço geral, no qual afirmava que As grandes lutas do século 20 entre liberdade e totalitarismo terminaram com uma vitória decisiva das forças da liberdade – e um único modelo sustentável para o sucesso nacional: liberdade, democracia e livre iniciativa. No século 21, somente nações que compartilhem um comprometimento para proteger direitos humanos básicos e garantindo liberdade política e econômica serão capazes de libertar o potencial de seu povo e garantir sua prosperidade futura. (grifos nossos)

Não obstante a declarada oposição entre “liberdade” e “totalitarismo”, e a suposta defesa da “liberdade” por parte dos estadunidenses [quem, afinal, em nossos dias, poderia tecer um discurso abertamente contra a liberdade?] o que dá o tom do texto é a idéia – totalitária por si mesma – de que havia [e há] somente um caminho a seguir. Sem dúvida, essa – insistimos: totalitária – idéia de que só existe um caminho foi favorecida pela extensiva lavagem cerebral que dominou a década que a precedeu: a inevitabilidade da “Globalização e da Nova Ordem Mundial”

, que naquela época

219

acabou por mitigar o tom totalitário da mensagem.

218É

interessante que notemos que embora cada presidente estadunidense seja obrigado a pronunciar uma “Estratégia de Segurança Nacional”, posicionando-se ante as estratégias de longo prazo [Estado] e “imprimindo a sua marca” nas políticas do país [governo] nenhuma das anteriores – possivelmente a de Reagan – assumiu o destaque da de Bush – o que sem dúvida reflete um tanto da espetacularização dos atentados que a precederam, mas não pode ser reduzido a ela. A hoje Professora do Departamento de Direito Público da Universidade de São Paulo, Juliana de Oliveira Domingues, em O imperialismo: do século XIX ao século XXI nos informa que "Quem, primeiramente, divulgou a expressão Doutrina Bush foram as próprias autoridades do governo Bush, diferentemente da Doutrina Monroe, de 1873, que foi assim definida pelos historiadores, os quais, no passado, eram os responsáveis por definir quais as idéias que deveriam ser chamadas de doutrinas. Especificamente, foi a assessora de segurança da Casa Branca, Condoleeza Rice, que primeiro a mencionou durante entrevista aos jornalistas, em novembro de 2001.” (página 123). disponível em http://lob-svmfa.com.br/arquivos/site/publicacoes/files/artigos/38_O%20imperialismo%20%20do%20seculo%20XIX%20ao%20seculo%20XXI%20%28JOD%29.pdf O texto original dessa estratégia, na íntegra de 35 laudas, está disponível em http://nssarchive.us/?page_id=32, acessada em 20 de janeiro de 2014 às 19:38h. Para uma necessária comparação com as demais estratégias, de outros presidentes como Bill Clinton, Barack Obama, Ronald Reagan e o próprio George H.W. Bush (Bush I), acessar http://nssarchive.us. Aqui, para facilitar que mantenhamos nossa “política” de escrever no “corpo do texto” somente na língua portuguesa, citaremos a tradução (um tanto truncada) que Marcelo Vaz publicou no sítio da Folha de São Paulo em 29 de outubro de 2002: Leia a introdução da 'Estratégia de Segurança Nacional dos EUA', Folha de S.Paulo, publicada em 29/10/2002 – 02h50. George W. Bush, Washington, 17 de setembro de 2002. 219Que costumam, sob nosso ponto de vista de modo equivocado, ser tratadas como idênticas ao pensamento “neoliberal”.

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Assim, a liberdade (sic) repetitivamente220 contrasta com o totalitarismo (sic) em um texto inerentemente totalitário que explicita a importância da imposição da liberdade221. Na sequência, Bush afirma que pessoas em todos os lugares querem ser capazes de falar livremente; escolher quem as vai governar; cultuar conforme seu desejo; educar suas crianças – dos sexos masculino e feminino; possuir propriedade; e aproveitar os benefícios de seu trabalho. Esses valores de liberdade são direitos e verdadeiros para todas as pessoas, em todas as sociedades – e a tarefa de proteger esses valores contra seus inimigos é a exigência básica de pessoas, em todo o globo e de todas as idades, que apreciam a liberdade. (grifos nossos) 222

Mas para deixar claro de que se tratava afinal, de uma peculiar “Estratégia de Segurança Nacional”, Bush II precisava dizer logo a que vinha. Fazia-se mister enfatizar o fim de uma era e a inauguração de novos tempos – e de uma nova situação, em que aquela propalada liberdade traria, como muitos outros produtos, o selo made in USA. Nas palavras de nossa ilustre personagem: hoje, os Estados Unidos aproveitam uma posição de poderio militar sem paralelos e grande influência política e econômica. (…) Nós defenderemos a paz lutando contra terroristas e tiranos. Nós preservaremos a paz construindo boas relações entre as grandes potências. Nós estenderemos a paz encorajando sociedades livres e abertas em todos os continentes. (grifo nosso)

Bush decretava, portanto – mais uma vez – o fim da Guerra tida como Fria. O imperativo do momento – respondendo (sic) aos atentados de 2001 – passava a ser reafirmar a ordem – sempre ela – em todo o tempo, todos os lugares e de qualquer maneira. Agora, além da fronteira geográfica, se abolia do horizonte de cálculo da potência a “fronteira temporal”, dando forma àquela que se tornaria conhecida como a “Guerra (preventiva [prehemptive]) ao Terror”: A guerra contra terroristas de alcance global é uma iniciativa global de duração incerta. (...) E, como um problema de senso comum e 220Confrontar

com A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin, cuja primeira versão está disponível em http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/A%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da %20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf. 221Qualquer semelhança com a novilíngua não é mera coincidência. cf: http://pt.wikipedia.org/wiki/Novil%C3%ADngua, acessado em 25 de janeiro de 2015. 222Evidentemente não há espaço para contestação da própria existência de governos, do sexismo, da propriedade e do trabalho, bem como não há espaço para se discutir os conteúdos da educação e dos cultos. Do contrário, tudo isso é assumido enquanto “valores de liberdade” e, portanto, como verdades rigorosamente incontestáveis, para todas as pessoas de todas as partes do mundo.

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autodefesa, a América vai agir contra as ameaças desses inimigos antes que elas estejam totalmente formadas. Nós não podemos defender a América e nossos amigos somente esperando pelo melhor. (grifos nossos).

Neste “novo mundo”, não há espaço para hesitação, por que a história julgará cruelmente aqueles que viram esse perigo, mas não agiram. No novo mundo em que entramos, o único caminho para paz e segurança é o caminho de ação. Enquanto defendemos a paz, nós também tiraremos proveito de uma oportunidade histórica para preservar a paz. Hoje, a comunidade internacional tem sua melhor chance desde a ascensão do Estado-nação no século 17 para construir um mundo em que grandes poderes compitam em paz em vez de continuamente se preparar para a guerra. (grifos nossos)

Aqui temos mais um ponto de extrema importância. Anotemos: segundo Bush II, agora vivenciamos um novo mundo. Um mundo que não se pauta mais pelas jurisdições nacionais, que vigoravam desde o longínquo século XVII. Agora, a crença no “Estadonação” – e na soberania, seu paradigma-sistêmico-chave desde o século XVII – deveria – atendendo às exigências de todas (sic) as pessoas do mundo – ser substituída pela crença na “globalidade”, porque “(...) os Estados Unidos usarão esse momento de oportunidade para estender os benefícios de liberdade por todo o globo”

. Mas como se a liberdade

223

fosse uma categoria vazia – e como Bush não é homem de meias-palavras – é preciso explicitar os pormenores do plano [scheme]: “Nós lutaremos ativamente para trazer a esperança de democracia, desenvolvimento mercados livres e livre comércio para todos os cantos do mundo” (grifos nossos). [Vamos repetir: Democracia, Desenvolvimento, Mercados Livres e Livre Comércio – conteúdos agora defendidos até as últimas consequências pelos “neoconservadores”, mas valores “neoliberais” por definição], porque “livre comércio e livre mercados provaram sua habilidade de tirar sociedades da pobreza”; e

223Mais

uma vez em conluio com aquele blábláblá globalizante que já denunciamos.

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por isso os Estados Unidos trabalharão tanto com nações individualmente, regiões inteiras e toda a comunidade global de comércio para construir um mundo que negocia com liberdade e, portanto, cresce em prosperidade (grifos nossos).

Qualquer especulação filosófica sobre a liberdade é mera perda de tempo: liberdade é liberdade de fazer negócios. Em bom português, liberty is business224. Na novilíngua missionária bushiana: a liberdade é uma exigência não-negociável da dignidade humana. O direito inato de todas as pessoas – em todas as civilizações. Ao longo da história, a liberdade foi ameaçada pela guerra e pelo terror; ela foi ameaçada pelos desejos conflitantes de Estados poderosos e ordens perniciosas de tiranos; e ela foi testada por amplas pobreza e doença. Hoje, a humanidade tem em suas mãos a oportunidade para ampliar o triunfo da liberdade sobre esses opositores. Os Estados Unidos dão as boas-vindas à nossa responsabilidade de liderar essa grande missão (grifos nossos).

Não iremos aqui mais uma vez reiterar a importância da comoção “universal” que sucedeu os atentados sobre os prédios no ano anterior – e não é coincidência que esse malfadado pronunciamento tenha sido proferido no primeiro aniversário daquele acontecimento. Mas antes de mirarmos o campo de ressonância desse discurso, cumpre que anotemos que ele pode ser sintetizado nos seguintes pontos: 

a Estratégia de Segurança Nacional de Bush, além de ser uma exigência legal que recai sobre todo e qualquer presidente daquele país, é um documento oportunista, no sentido literal do termo, conforme fica claro quando reivindica o “senso de oportunidade” do governo estadunidense, que procura reforçar, por outro lado, a inevitabilidade dessa nova forma de ação;



apesar das noções vagas de liberdade, é um tratado em defesa da importância dos negócios na promoção da paz – cuja forma principal, ao menos no discurso, é o “livre-comércio”;



não há qualquer oposição entre “livre comércio” (comumente tomado como pilar de sustentação da ideologia neoliberal; e se coloca no campo semântico do “Estado Mínimo”) e “segurança” (usualmente considerado

224Não

acrescentaremos o famigerado e quase irresistível “stupid” imortalizado em forma de slogan por James Carville na bem-sucedida campanha de Clinton contra Bush I (http://pt.wikipedia.org/wiki/It's_the_economy,_stupid, acessada em 25 de janeiro de 2015). Essa coisa de tratar interlocutorxs por idiotas é uma postura deveras totalitária. E, conforme já dissemos antes: é necessário que lutemos incansavelmente contra o fascista que reside em nós.

83

parte da ideologia “neoconservadora” e do campo semântico do “Estado Máximo”); 

apesar da repetição da palavra liberdade, todos os Estados e – muito mais do que isso – todas as pessoas de todo o mundo têm somente um caminho a seguir, e este caminho será inequivocamente imposto pelos Estados Unidos da América225 ;



por ser escrito quase que em sua totalidade em tom imperativo, não se pode com certeza afirmar se é uma promessa, uma necessidade, uma ameaça, ou uma propaganda.



Aquela referida comoção conferiu, pelo menos no plano simbólico, e pelo menos inicialmente a desejada legitimidade [interna e internacional] às ações do Estado dos Estados Unidos – pelo menos no caso do Afeganistão226.

É sobre essa legitimidade que falaremos na sequência, procurando investigar as motivações que faziam com que essa ordem tenha sido aplaudida pelos “cidadãos de bem” – sempre eles227. 3.1.2 Os panfletos yankees: a campanha em favor do Império que “impôs” o debate

Dado o grau de espetacularidade que as caracteriza, e o ativo papel dos veículos “midiáticos” que as cobre, o primeiro impulso que costuma acometer aqueles que 225Noutros

termos, todo o mundo é objeto desta ordem a ser imposta “de cima pra baixo”. Guerra do Iraque, à revelia do Conselho de Segurança da ONU, já são outros quinhentos. Sobre a construção da legitimidade – interna e internacional – é nada desprezível a importância dos grandes veículos midiáticos. Mesmo sobre a Guerra do Iraque, Harvey, em um parêntese irônico nos lembra de que “todos os 175 jornais de propriedade de Murdoch em todo o mundo, dirigidos por redatores-chefes supostamente escolhidos por sua independência, proclamaram unanimemente que a guerra era uma boa coisa, o mesmo ocorrendo com vários outros órgãos de propriedade de magnatas dos meios de comunicação”. E mesmo assim, “(...) a média da opinião pública mundial, apesar de uma imprensa belicosa (…) e de constantes declarações apocalípticas feitas por políticos, permaneceu profundamente cética com relação à guerra, se não totalmente oposta a ela.” p. 20. Sobre Murdoch, e sua megalomania, http://exame.abril.com.br/negocios/noticias/rupert-murdoch-o-magnata-que-quer-dominar-a-midiamundial. 227Sobre “Os Cidadãos de Bem”, http://en.wikipedia.org/wiki/The_Good_Citizen e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ku_Klux_Klan, além de http://www.confradewashington.com.br/2014/04/o-cidadao-de-bem-ja-nasceu-do-mal.html, no qual o autor Rodrigo Monteiro defende que “(...) o cidadão de bem dissemina o ódio, defende a justiça com as próprias mãos, acha a exploração algo natural e, em alguns casos, acredita que o estupro é um bom remédios para lésbicas.” Mais à frente, enuncia o argumento principal, segundo o qual “os xenófobos, racistas e preconceituosos no geral foram os primeiros cidadãos de bem da história, sempre visando o 'bem da família', e o termo permanece sendo utilizado para justificar a supremacia de determinadas classes.” (todos acessados em 25 de janeiro de 2015). Em síntese: concordamos com Rodrigo no repúdio aos “cidadãos de bem”. 226A

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pensam sobre essas declarações de guerra é, sem dúvida, sucumbir à tentação de enquadrá-las como abruptas rupturas numa ordem vigente, frequentemente fazendo coro com as declarações oficiais para as quais a guerra se move pelo revide, quando não para garantir que agressões como essa não se repitam. Para que não deixemos passar batido, enfatizemos: esse é o modo conservador de encarar os fatos. Outro modo de abordar a declaração de guerra, não de todo desconectado daquela “primeira impressão” é colocar todo o seu peso no “grupo” que ocupa o poder naquele momento, tanto em termos de partido político (naquele caso, os republicanos) quanto ideológico (ainda naquele caso, neoconservadores, cristãos, etc.). Uma terceira opção “imediatista” é a reciclagem de diversos tipos de teorias conspiracionistas que ganham vulto (foram os próprios estadunidenses que promoveram os atentados; foram grupos “internos” tradicionalmente ligados à conspiração; se deve aos interesses das grandes empresas, dentre muitas outras). E nesse caso específico, sem dúvida o petróleo ocupa espaço importante em qualquer análise séria sobre as motivações dessa “reorientação” da Estratégia de Segurança Nacional228. Não nos parece haver dúvidas de que nenhuma dessas abordagens é “estúpida” ou “idiota”. Cada uma delas, em grau menor ou maior, possui o seu grau de verossimilhança. Entretanto, nos parece que cada um desses modos de encarar as coisas se volta mais para a fumaça que para o fogo. Para nós, mais importante que entender como se deu a declaração é entender quais são as razões pelas quais essa política “colou” – tanto no que compete à sociedade estadunidense quanto às demais. Neste sentido, é muito mais importante procurar investigar quais são as condições de formação deste consenso em torno dessa nova forma de guerrear (contra um inimigo de difícil identificação, em lugares indetermináveis e durante um tempo imprevisível). Essas razões são muitas. Comecemos, então, com a mais aparente. O sinal da Estratégia de Segurança Nacional – ansiosamente aguardada pela população ainda atônita com os ataques dos aviões – era unívoco: era preciso agir, mesmo que não se soubesse exatamente o que fazer. Esse plano [scheme] – de modo nada estranho, se nos lembrarmos do diálogo com o qual começamos nossa prosa lá nas

228Como

provoca David Harvey – autor que assumirá mais à frente papel importante neste texto – “Os oponentes da guerra com o Iraque descrevem com freqüência o conflito como motivado todo por causa do petróleo. O governos norte-americano ou descarta de imediato essa alegação por absurda ou ignora por completo a questão. Não há dúvida de que o petróleo é crucial. Mas não é tão fácil determinar exatamente como e em que sentido o é.” (Harvey, O Novo Imperialismo, pág. 24).

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nossas primeiras páginas – encontrou ressonância em diversos setores, que de modo menos ou mais tímido saíam do armário e assumiam publicamente desejos até então inconfessáveis, de uma forma eminentemente cínica. Desejavam uma única e exclusiva resposta por parte das autoridades: ordem. Deste modo, era preciso tornar explícitas ações até então tomadas às sombras de modo que se alterasse o conteúdo simbólico do que se entende por “segurança”. Mas, antes, vamos tentar traçar o mapa de como essa idéia foi “vendida”. Comecemos com John Bellamy Foster, citando Gilferd John Ikenberry229: nas sombras da guerra ao terrorismo da administração Bush, novas ideias abrangentes estão a circular acerca da grande estratégia americana e da reestruturação do mundo unipolar de hoje. Elas apelam ao direito unilateral e preferencial, até mesmo preventivo, de usar a força, facilitada se possível por coalizões de vontades – mas em última análise sem os constrangimentos das regras e das normas da comunidade internacional. No limite, estas noções formam uma visão neo-imperial em que os Estados Unidos se arrogam o papel global de estabelecer padrões, determinar ameaças, usar a força e fazer justiça.

Bellamy Foster complementa que, “para Ikenberry isto não representa uma critica”, mas que “os objetivos imperialistas americanos e o seu modus operandi são muito mais limitados e benignos do que os dos antigos imperadores”. E é evidente que Ikenberry não “prega no deserto”. Na mesma Foreign Affairs (abril de 2002 – portanto antes da Estratégia, que é de setembro), o colunista do Washington Post Sebastian Mallaby (segundo Foster “auto-intitulado 'imperialista relutante'”) deixa escapar num tom quase “neutro” e “fatalista” que “a lógica do neoimperialismo é demasiado atrativa para a administração Bush lhe resistir”. Com o que faz coro o sempre presente Henry Alfred Kissinger, quando afirma, em seu livro Precisa a América de uma política estrangeira?, que “Os Estados Unidos gozam de uma proeminência não rivalizada nem mesmo pelos maiores impérios do passado”

230

. Como podemos ver, outra constatação

“científica”. Já Robert Kaplan, ensaísta do Atlantic Monthly, em livro intitulado Políticas guerreiras, é menos comedido e argumenta abertamente em favor de uma cruzada estadunidense “para levar a prosperidade a distantes partes do mundo sob a influência imperial americana”. Receita seguida de perto pelo conselheiro presidencial para a

229Professor

de Geopolítica e Justiça Global (sic) na Universidade de Georgetown, e colaborador regular da prestigiada revista Foreign Affairs. 230Kissinger é ex-secretário de Estado, foi confidente de Nixon e conselheiro de todos os presidentes estadunidenses de Eisenhower a Ford. Hoje é crítico da estratégia estadunidense com a Rússia, como veremos.

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Segurança Nacional do presidente Carter – democrata (!) e vencedor do Nobel da Paz (!) – Zbigniew Brzezinski, que advoga em favor das políticas imperiais dos Estados Unidos, que para ele deveriam “impedir a colusão e manter a dependência entre vassalos, manter os clientes dóceis e protegidos, e impedir que os bárbaros se agrupem e ressurjam”. Ainda em 2002, neste mesmo texto, John Bellamy Foster já denunciava que “os intelectuais americanos e a elite política estão calorosamente a abraçar de forma aberta a missão 'imperialista' ou 'neoimperialista' dos Estados Unidos, reiteradamente enunciada em publicações de prestígio como o New York Times e a Foreign Affairs” 231. Mas essa reivindicação para que “a América” assumisse o estatuto imperial não poderia deixar de ser acompanhada do discurso hipócrita que caminha passo a passo com as doutrinas imperialistas. Max Boot, eminente colunista do Wall Street Journal [agora citado por Harvey], defende que “certa dose de imperialismo norte-americano pode ser a melhor resposta ao terrorismo” ou – muito pior – que a ingerência iluminada da potência é um desejo dos que vivem na periferia232. Diante disso, a “solução” parecia óbvia: um pedido para que os EUA: saíssem do armário e assumissem seu estatuto imperial. É o que defende – se bem que em outros termos, evocando o império da GrãBretanha – o cínico polemista Niall Ferguson [também citado por Harvey]: “façam a transição de império informal para império formal”. Fazendo coro com a defesa do imperialismo escancarado – e contra aqueles estadunidenses que supostamente desejavam a “mudança”, mas não tinham coragem de assumi-la – faz-se notar o “corajoso” e “politicamente incorreto” Michael Ignatieff, Professor de Política de Direitos Humanos (!) da Kennedy School of Government da Universidade de Harvard, e figurinha contumaz no influente New York Times. Na edição da NYT Magazine de 28 de julho de 2002 [novamente: anterior à publicação da Estratégia] – citada por Foster naquele mesmo texto – Ignatieff argumenta: “[O] imperialismo costumava ser o fardo do homem branco. Isto deu-lhe má reputação. Mas o

231Todas

essas declarações foram tiradas de John Bellamy Foster, A redescoberta do imperialismo – disponível em http://resistir.info/mreview/redescoberta_do_imperialismo.html#asterisco (acessado em 9 de agosto de 2014), Tradução de José Carlos Barreiros Correia. O original pode ser acessado em http://www.monthlyreview.org/1102jbf.htm. 232“o Afeganistão e outra[s] terras perturbadas clamam hoje pelo tipo de administração externa esclarecida um dia proporcionada por ingleses autoconfiantes que usavam jodpurs [N.T.: roupas de montaria] e capacete”. Citado por Harvey.

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imperialismo não deixa de ser necessário só porque é politicamente incorreto”

. Vai

233

além: as forças especiais não são assistentes sociais. São um destacamento imperial, avançando o poder e os interesses americanos na Ásia Central. Chamem a isso manter a paz ou construir uma nação, chamem o que se quiser, política imperial é o que está em marcha em Mazar234. De fato, toda a guerra americana ao terrorismo é um exercício de imperialismo. Isto pode ser um choque para os americanos, que não gostam de pensar no seu país como um império. Mas o que mais se pode chamar às legiões de soldados, espiões e Forças Especiais americanos a cavalgar o globo?

Neste contexto de campanha, muita gente concorria em busca de uma imagem – sempre ela – que sintetizasse de maneira precisa todo o esforço coletivo aplicado no marketing imperial. Finalmente, Michael Ignatieff, autor do artigo de capa da emblemática edição do New York Times de 5 de janeiro de 2003 – ilustrada por um enorme punho – apresenta o slogan definitivo que pontifica de modo rigorosamente sintético o consenso em voga: “Império Norte-americano: Acostume-se com ele” 235. Assim, quando temos em mente a amplitude e a profundidade desse enorme esforço empreendido para justificar/cobrar/exigir que os Estados Unidos assumissem o que já não podiam mais negar – o fato de que eram um Império – discurso esse presente em setores intermediários do governo, na imprensa e na Academia; não é de se espantar o alvoroço em torno de uma declaração tão autoritária quanto aquela Estratégia de Segurança sobre a qual vínhamos conversando. Nem tampouco causa espanto – desse prisma – a aparente urgência com que “os marxistas” voltaram a falar sobre o Imperialismo. Quando os setores mais conservadores da intelligentsia estadunidense reivindicaram com tanta pertinácia a idéia de Império e mesmo de Imperialismo – com eclipse ou sem eclipse – @s “marxistas” não havia outra saída senão (re) estudar aquela gente supostamente ultrapassada que havia escrito no começo do século XX sobre esse mesmo conceito. Contudo, afora essas diversas declarações propagandísticas apologéticas e da resposta marxista, que aparecia então como um contraponto, em forma de denúncia, a assunção imperial não veio a público em pronunciamentos oficiais por parte dos altos

233Citado

por Foster, no mesmo texto. Não é estranho que a maneira como hoje se reivindica o discurso do “politicamente incorreto”, nada mais do que o direito de ser abertamente opressor contra as minorias. Sobre o assunto, recomendamos o instantaneamente clássico e obrigatório documentário O Riso dos outros, de Pedro Arantes, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uVyKY_qgd54 234http://pt.wikipedia.org/wiki/Mazar-e_Sharif 235Citado por Harvey, neste mesmo texto.

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escalões do governo dos Estados Unidos, possivelmente receoso de conferir um aparato de ideologia oficial ao que vem sendo realizado há muito – e de modo aparentemente eficaz – por baixo dos panos. Assim,

muitos,

convenientemente

desmemoriados,

dão

o

imperialismo

novamente como “teoria da conspiração” ou mimimi marxista “vazio de conteúdo”. Aquela propaganda explícita – conveniente naqueles primeiros momentos em que o espírito de vingança pairava sobre a “América” – foi dando lugar a uma retórica mais usual, em que a tônica é a conquista da legitimidade velha de guerra – ou, noutros termos, a hegemonia. E nos parece claro que para isso também concorre o fracasso [no mínimo relativo] das ações no Afeganistão e no Iraque. De nossa parte, concordamos com David Harvey – e com tantos outros, inclusive conservadores –: embora a já comentada Estratégia de Segurança Nacional “Talvez (...) não equivalha a uma declaração formal de império, (...) sem dúvida sugere intenções imperiais” justifica o que avancemos mais um ponto em nosso itinerário.

236Págs.

14-5

, o que

236

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Capítulo 4. Considerações sobre as bases que sustentam a hipótese do “sumiço” e “retorno” “Oh! Minha Romântica Senhora Tentação!”

(Silas de Oliveira e J. Llarindo)

4.1 A “mudança” na política externa estadunidense sob Bush II Mas representaria essa Estratégia de Segurança Nacional de 2002 um ponto de ruptura na longa tradição da política externa estadunidense ou apenas um aprofundamento das tendências antigas? Como já sugerimos, o debate é interminável. A rigor, essa discussão deveria ponderar sobre o que define uma mudança. Como já dissemos anteriormente, mudanças sempre ocorrem. Saber se ela é “uma simples mudança (...) do mesmo tipo que se observa em uma nuvem ou em um anel de fumaça” ou uma “mudança que se relaciona com a estrutura da sociedade” e possui “uma direção específica” já são outros quinhentos237. Para nos ilustrar o debate no qual nos colocamos, ficamos com o balanço de Chibber, no artigo citado, quando comenta as interpretações de Andrew Bacevich, Michael Mann e Noam Chomsky. O balanço de Chibber sobre esse debate pode ser resumido nas seguintes citações: ninguém escrevendo sobre o novo imperialismo estadunidense considera que o projeto começou com o jovem Bush. A questão, portanto, é o quê – sé que algo o é – é novo na agenda de Bush? Existe uma idéia predominante, não somente entre os acadêmicos, mas na opinião pública mundial, que alguma coisa mudou com a nomeação de Bush pela Rehnquist Court238. Os dois mais comumente citados são um novo unilateralismo nos assuntos internacionais e o militarismo da administração Bush. E esses parecem ser dois bons candidatos. A sórdida história do ataque contra o Iraque, o obstinado desrespeito pelas Nações Unidas, o anúncio de uma guerra aparentemente ilimitada (open-ended) contra inimigos ainda não escolhidos – estes são apenas alguns dos poucos exemplos de como a administração recorreu às táticas mencionadas. A ascensão de Bush ao poder pode representar um

Elias, Vol. I. P. 217. (Willian) é o nome do chefe de justiça que proferiu a sentença favorável a Bush e que decidiu pela sua nomeação. Sobre Rehnquist, http://en.wikipedia.org/wiki/William_Rehnquist. 237

238Rehnquist

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ponto de inflexão com relação ao modo como seus predecessores recorreram às ferramentas da arte de governar. 239

Por outro lado, um vigoroso argumento contra a visão de que Bush II é um ponto de inflexão para o militarismo estadunidense, vem de uma fonte incomum: o soberbo livro de Andrew Bacevich: American Empire. Bacevich, como Mann, vê a política externa estadunidense como crescentemente militarista e, a partir de então, imperialista. Mas a transição, para ele vem em dois passos: primeiro, com a queda do bloco soviético, que tirou de cena o único contrapeso real à hegemonia dos Estados Unidos; depois, durante a administração Clinton, que marca o ponto em que a política externa estadunidense assume uma posição decididamente agressiva, baseada principal, mas não exclusivamente, no peso de sua força militar. A queda da União Soviética ocupa um papel central para Bacevich, como não poderia deixar de ser; o que é surpreendente é que Mann não tenha dado a ela a devida atenção em sua análise. Se ele tivesse dado, ele teria se colocado a questão natural, notadamente: porque, uma vez que seu único rival saiu de cena, os Estados Unidos não iriam tentar aproveitar essa chance única de consolidar o poder global? Uma razão para a objeção, seria se a política externa durante a Guerra Fria tivesse sido dirigida por interesses defensivos, para conter a expansão soviética. Mas Bacevich não cai nessa. Se tivesse sido verdade, quando a União Soviética saiu de cena os formuladores da política estadunidense teriam diminuído sua própria agressividade no teatro global. Mas eles não o fizeram. A resposta atual deles foi mais lógica: a elite estadunidense a viu como uma oportunidade de trazer à tona antigas metas frustradas. E essas, ele disse, foram duplas: abrir a economia mundial e estabelecer os Estados Unidos como o poder preeminente, tanto política como economicamente. O fim da Guerra Fria permitiu aos Estados Unidos retomar um padrão de expansão que havia sido contido pela rivalidade com o Bloco Oriental. 240 A especificidade de Bush, concluímos, localiza-se na sua disposição em dar esse passo extra, comprometer as tropas estadunidenses e empreender engajamentos mais longos e mais orquestrados. (…) Bush e sua panelinha [coterie], com efeito, 'estão oficialmente declarando uma política ainda mais extrema'. À primeira vista, parece que (...) a real diferença é que Bush é mais aberto e indiscreto em sua agressão imperial – ele declara o que outros simplesmente fazem silenciosamente. 241

Deste modo, ainda que o imperialismo fosse apenas uma questão de política externa – e ele é muito mais que isso – as ações militares após 2001 – mantidas pelo governo democrata que sucedeu o governo de Bush II – já seriam o suficiente para anotarmos que – assumido ou não – os Estados Unidos podem ser considerados um Império. CHIBBER, p. 6. P. 8-9. 241 P. 11 e 12. 239 240

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Mas essa afirmação ainda não nos diz muita coisa, e cumpre que – antes de discutirmos o quê isso vem a significar – sigamos um roteiro para percorrer certos pontos obscuros para os quais nos escalamos. Aproveitamos, nesse momento do texto, antes de voltarmos para o nosso trilho principal, para deixar registrado que, diante do que expusemos nessa seção – uma grande tentativa de impor o fim do tabu em torno do Império por parte do complexo midiático-acadêmico-estatal yankee –, pensamos que é preciso buscar as razões desse “consenso”. Noutras palavras, faz-se necessária a investigação dos motivos pelos quais esse discurso perpassou ambos os partidos, diversas instituições importantes e teve amplo apoio social. É preciso explicar porque, enfim, esse discurso ultrapassou a dicotomia entre “neoliberais” e “neoconservadores” – nosso próximo assunto. Mas que fique aqui o registro que a historiografia sobre o Imperialismo não pode ser contada sem que se considere a importância dessa imposição. Para voltarmos ao ponto de outrora: a historiografia que ressalta o sumiço da categoria ao longo do século XX é a mesma que se surpreende com as ações impetradas pelo Estado dos Estados Unidos da América, frequentemente se metendo em outra fabulosa conversa sobre as condições da hegemonia internacional neste período – à qual iremos nos furtar. Independente disso, finalizamos a seção com a certeza de que não é possível entender o debate marxista sobre o Imperialismo – considerando ou não a hipótese do sumiço – sem tomar em conta a “imposição” do tema por parte dos ufanistas – o que também aconteceu no “debate clássico”, conforme sugeriremos mais à frente. 4.1.1 Entre “neoliberais” e “neoconservadores”

Acompanhamos David Harvey mais uma vez: embora seja possível afirmar que o petróleo é uma motivação importante e que a ascensão conservadora em grande medida justifica a maneira como o discurso foi se articulando em torno do consenso, não podemos imaginar que o complexo político militar como um todo ou os interesses corporativos em geral pudessem aprovar uma guerra simplesmente por essas razões e o governo de Bush foi muito mais do que uma máfia que usurpou o poder público – o que

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ficou confirmado com o fato de Obama, quaisquer que tenham sidos seus desejos e interesses, não reverteu essas políticas242. O que nos coloca mais uma vez em nossa velha pista. Procuremos identificar, pelo seu avesso, o que o discurso cínico manifesta. Nas palavras de Stephen Peter Rosen [citado por Foster], responsável de Estudos Estratégicos do Instituto Olin na Universidade de Harvard: “O nosso objetivo [da ação militar] não é combater um rival, mas manter a nossa posição imperial bem como a ordem”. Mas de onde vem e no que implica essa busca incondicional da ordem? Comentando sobre as circunstâncias que precederam e eleição de George Bush II, o geógrafo David Harvey, nos fornece o mapa da sociedade estadunidense conforme a via então. Sintetizando seus argumentos, temos algumas das principais linhas desse mapa. Vejamos: 1. A recessão iniciada no começo de 2001 e agravada depois de setembro, não cedia. 2. O desemprego crescia. 3. A sensação de insegurança econômica era palpável. 4. Os escândalos corporativos se sucediam em cascata. 5. Impérios empresariais aparentemente sólidos se dissolviam literalmente da noite para o dia. 6. Wall Street estava se desmoralizando por conta de erros contábeis, brechas na regulamentação e pela corrupção pura e simples. 242Cf:

Harvey, p. 24. Numa visão em certo sentido contrária, mas que não incorre na ingênua afirmação de que somente a rapinagem já explicaria o processo todo, Paulo Arantes defende que “Sem querer sugerir que a Casa Branca esteja sob o domínio do crime organizado, o que pensar do fato – o mais saliente de uma constelação portentosa – de que a empresa que enriqueceu o vice-presidente dos Estados Unidos é exatamente a mesma que açambarcou contratos milionários para a reconstrução de um país ocupado, e previamente destruído pelas mesmas forças armadas do país presidido por seu superior imediato? Uma operação desse calibre atende pelo nome científico de racket, que é como se denomina a atividade profissional dos gangsteres, a saber: a dominação e apropriação diretas, sem maiores rodeios, a alma de um negócio que consiste em ameaçar com a violência e depois cobrar o devido pagamento pela 'proteção' oferecida no mesmo pacote assustador, o conjunto da obra se exprimindo na forma de monopólios e demarcação de territórios exclusivos. Segundo o historiador Charles Tilly, a formação original do Estado europeu obedeceu rigorosamente a esse mesmíssimo esquema de chantagem, num momento em que a distinção entre senhores da guerra, bandoleiros e governantes não era muito nítida, sobretudo quando esses últimos, ao cabo de sucessivas guerras de subjugação, monopolizando os meios de violência em um determinado território, se dedicavam a extorquir os tributos que financiaram as próximas campanhas militares de expansão. Endinheirados em geral e mercadores de longo curso, cujos lucros extraordinários provinham da proteção de governantes, pela qual de resto pagavam, em nada diferem das empresas ou dos grupos econômicos que cooperam e compram proteção de uma organização criminosa vitoriosa na luta pelo poder numa 'jurisdição' particular – qualquer que seja a dimensão histórica dos protagonistas, a lógica é a mesma.” (Último round, p. 188-9, em Extinção).

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7. As ações e outros ativos estavam despencando. 8. Os fundos de pensão perderam entre um quarto e um terço de seu valor (quando não evaporaram de vez). 9. As perspectivas de aposentadoria da classe média sofreram um rude golpe. 10. A assistência médica estava em profunda crise. 11. Os superávits dos governos federal, estaduais e locais estavam evaporando com rapidez. 12. Os déficits começaram a aumentar sem cessar. 13. O saldo comercial das operações com o resto do mundo ia de mal a pior e os EUA se tornaram a maior nação devedora da história. 14. A desigualdade vinha aumentando há muito. 15. O fetiche do corte de impostos do governos parecia acentuar ainda mais as desigualdades. 16. As proteções ambientais estavam sendo ignoradas. 17. Havia profunda relutância em voltar a impor um arcabouço regulatório aos mercados mesmo diante de provas do fracasso destes. 18. O presidente enfrentava uma grande crise de legitimidade (50% de contestação) por conta de a sua eleição ter sido definida na Suprema Corte, não no voto direto do povo. 19. A competição era viciosa. 20. Os líderes da “nova economia” tornaram-se milionários da noite para o dia e ostentavam sua opulência. 21. Os golpes eletrônicos e esquemas fraudulentos proliferavam. 22. Escândalos (reais e imaginários) eram recebidos em toda parte com prazer. 23. Circulavam rumores de assassinatos tramados na Casa Branca. 24. Houve a tentativa de provocar o impeachment do presidente. 25. Os meios de comunicação – e os programas sensacionalistas – estavam totalmente descontrolados. 26. Houve distúrbios em Los Angeles. 27. As tragédias de Waco e Oklahoma simbolizaram uma inclinação à violência e à oposição interna que por muito tempo permanecera latente. 28. Adolescentes atiraram em colegas e os mataram em Columbine. 29. A exuberância irracional prevaleceu sobre o bom senso.

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30. A corrupção corporativa do processo políticos era flagrante243. Mais uma vez, é imperativo que lidemos com o problema da percepção sobre o Imperialismo. Parece-nos muito claro que, inclusive por basear-se muito mais na memória de Harvey do que na documentação, precisamos observar criticamente as considerações dessa seção244 [e qual fonte, afinal, não precisa?]. Mais do que isso, tendo sido escrito em 2004, o texto todo – e essa seção, pelo seu próprio caráter, mais que outras partes – deve, a rigor, ser compreendido enquanto uma visão retrospectiva “póstraumática”, com tudo o que isso implica na reconstrução da memória. A despeito disso, é evidente que essas considerações não são ruins em si mesmas. Inclusive, nos parece extremamente importante que as levemos em consideração, sobretudo para capturar as “sensações”, uma espécie de “espírito coletivo” da sociedade estadunidense desde os antecedentes da ascensão de Bush II – que, pelo contraste do que se sucedeu no trauma, tende a idealizar – de modo pessimista ou otimista – o que o precedeu. Isso se expressa em Harvey de várias formas, como quando afirma que na década de 1990, não havia um inimigo inequívoco, e a economia doméstica em expansão deveria ter garantido um nível sem precedentes de contentamento e satisfação para todos exceto os mais desprivilegiados e marginalizados da sociedade civil. Não obstante (…) os anos 1990 vieram a ser uma das décadas mais desagradáveis da história norte-americana. 245

Assim, considerando o contexto da transição eleitoral de Clinton (Democrata) para Bush II (Republicano) e os primeiros momentos de seu contestado governo, Harvey defende – em tom de denúncia – que “(...) a sociedade civil estava longe de civil. A sociedade como um todo parecia estar fragmentando e perdendo a coesão com alarmante rapidez”. Deste modo, “a única coisa capaz de evitar a aniquilação política dos republicanos era a intensa solidariedade – que beirava o retorno ao nacionalismo – criada ao redor dos eventos [11 de setembro de 2001] e o terror do antraz”. É evidente que a apreciação deste “problema” da manipulação nacionalista mereceria toda a atenção em qualquer lugar, mesmo porque, o autor reconhece que “há de fato uma longa história de governos com problemas internos que buscam livrar-se de suas dificuldades seja por meio de aventuras externas, seja pela fabricação de ameaças externas com Voltando um pouco o assunto: é ou não é o cenário perfeito para uma empresa como a Blackwater/Academi prosperar? 244Todas as seguintes citações, salvo eventual disposição em contrário foram tiradas de A dialética da sociedade civil norte-americana, p. 20 e seguintes de O Novo Imperialismo. 245 Harvey, p. 23 243

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vistas a consolidar solidariedades internas”. Mas para David Harvey, naquele contexto a gestão do problema era particularmente “delicada”, uma vez que os Estados Unidos “são uma sociedade imigrante extraordinariamente multicultural movida por um inflexível individualismo competitivo que revoluciona de modo perpétuo a vida social, econômica e política”, o que, para ele, implica que “essas forças tornam a democracia cronicamente instável246, difícil, senão impossível, de controlar exceto por meio da corrupção do poder financeiro. Há momentos em que todo o país parece insubordinado a ponto de ser ingovernável247”. Não estamos certos da particular dificuldade da democracia estadunidense, nem tampouco porque ela seria mais “cronicamente instável” que outras, que supostamente seriam mais governáveis e subordinadas. Mas concordamos que, em sociedades capitalistas – nunca de todo afastadas de seu caráter eminentemente plutocrático – não é possível conceber a democracia senão “controlada” por meio da corrupção do dinheiro, de modo que, levando em consideração que “a condição interna dos Estados Unidos durante 2002 estava em muitos aspectos mais perigosa do que o fora durante anos”, não causaria espanto a assim chamada “ascensão (neo) conservadora”, porque – ainda para Harvey – “parte do atrativo eleitoral de George Bush em 2000 foi, suspeito, a promessa de fornecer um diapasão determinado e moralmente firme a uma sociedade civil perto da total perda de controle”. O que também ajudaria a explicar porque “todos os seus principais assessores vinham das fileiras de neoconservadores inclinados à ação estatal autoritária”, dando espaço para toda e qualquer teoria conspiratória que ligue a administração ao conspiracionista think-tank The Project for the New American Century, que ansiava por um “evento catastrófico catalizador” a la Pearl Harbor. Ainda neste sentido, o espetáculo de 2001 teria “caído como uma luva” às pretensões imperiais. 246Sublinhemos

de passagem que o tema “Democracia contra capitalismo” é o norte de um interessante livro de Ellen M. Wood, autora que trava com Harvey um debate importante sobre as características “contemporâneas” do imperialismo. Voltaremos a esse debate. 247Nunca é demais lembrarmos que os Estados Unidos possuem desde a sua “fundação” – caminhando lado a lado com um conservadorismo extremamente poderoso – uma importante tradição libertária e/ou “de contestação” que assumiu as mais variadas formas como, por exemplo, a “desobediência civil”, o movimento feminista, os movimentos negros pelos direitos civis e o movimento hippie, para não entrarmos no imprescindível e difícil tema das “artes”, que no século XX assumem uma importância inédita no cotidiano das pessoas. Sobre as Artes no século XX, temos os dois excelentes capítulos do sempre oportuno Eric J. Hobsbawm em Era dos Extremos: As artes: 1914-45 (cap. 6) e Morre a vanguarda: as artes após 1950 (cap. 17). Devemos a reflexão sobre a importância da tradição libertária na sociedade americana a nosso mestre Thiago M. Borges. A reflexão sobre a importância dos capítulos sobre as artes nas obras de Eric J. Hobsbawm, a nosso estimado amigo Lucas Corazza, que os identifica – a nosso ver com razão – que os capítulos sobre as “artes” costumam funcionar como momentos de “síntese” em diversas obras do “historiador das eras”.

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Voltaremos a esse assunto posteriormente. Ao nosso juízo, até aqui já podemos indicar o ponto central de Harvey, ao qual voltaremos: para ele existiu uma sociedade capitalista menos desregulada e mais “progressista” – o que nos parece um fetiche, ainda que bastante difundido. Chegaremos a essa discussão. Mas por hora precisamos reter que, segundo o argumento de Harvey, foi, contudo, naturalmente, o 11 de setembro que forneceu o ímpeto para romper os hábitos dissolutos dos anos 1990. Ele proporcionou a abertura política não só para afirmar um propósito nacional e para proclamar uma solidariedade nacional como também para impor a ordem e a estabilidade à sociedade civil em casa. Foi o combate ao terrorismo, imediatamente seguido pela perspectiva da guerra com o Iraque, que permitiu ao Estado acumular mais poder. O envolvimento com o Iraque foi bem mais do que uma mera manobra diversionista das dificuldades domésticas – foi uma grande oportunidade de impor um novo sentido de ordem social em casa e de submeter a comunidade. O inimigo externo malévolo tornou-se a força primordial por meio da qual exorcizar ou domar os demônios que espreitavam no interior. 248

O que, portanto, teria justificado “socialmente”, entre outras coisas, o encrudescimento das políticas de migração, a construção de muros e outras formas de isolacionismo na fronteira com o México, bem como a instauração dos assim chamados Atos Patrióticos, os marcos regulatórios para a Internet e diversas outras formas de castração das liberdades civis em nome da Segurança249.

P. 23 e 24. conhecemos nenhum trabalho que sistematize essa importante temática. O professor Mariutti nos indicou como referência do debate Richard HOFSTADTER, com The paranoid style of american foreign police, o qual não tivemos a ocasião de estudar. Por hora, nos basta enunciar que o que se entende por Segurança – no original, Security – vai se tornando algo a cada dia mais elástico, como o provam termos como Segurança Alimentar – no original, Food Security, controlado pelo Departamento de Agricultura USDA (conforme disponível em http://www.ers.usda.gov/data-products/food-security-in-the-unitedstates.aspx) – e a extensa lista de preocupações do Departamento de Segurança Doméstica – US Department of Homeland Security – que inclui em sua lista de ocupações, por exemplo, Cibersegurança, Segurança Econômica, Segurança Biológica e Segurança Química, por exemplo, na mesma pasta que Prevenção ao Terrorismo”, Combate à Violência Extremista, Tráfico Humano, Segurança Nuclear e Desastres, bem como Direitos Civis e Liberdades Civis (http://www.dhs.gov/topics). Como se pode facilmente presumir, absolutamente tudo pode ser entendido em termos de “segurança”. E como ninguém pode articular um discurso orientado contra a segurança, o potencial totalitário dessa vaga idéia – bem como o potencial de lucro das empresas desse setor – é praticamente inelástico – como, aliás, já prenuncia há muito tempo o que no Brasil chamam de Teorias das Relações Internacionais (TRIs). Como mais uma ilustração das possibilidades infinitas de desdobrar para além de quaisquer limites o argumento da “segurança”, sugerimos a leitura do documento Estratégia Nacional para a Segurança da Cadeia de Suprimentos Global (National Strategy for Global Supply Chain Security), assinada por Obama no dia 23 de janeiro de 2012, disponível em https://www.hsdl.org/?view&did=698202. 248

249Não

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Em suma, como bem observa Harvey – retomando as teses sobre o “bumerangue” de Hannah Arendt250 – “para suster o ímpeto e realizar as suas ambições, o governo teve de pôr em operação o estilo paranóide da política norte-americana251”, fomentando o

250As

teses dessa autora são manifestamente cruciais para a argumentação de Harvey, mas aparecerão aqui de modo apenas superficial. Em nosso juízo, As origens do totalitarismo é uma obra preciosa, que merece mais atenção do que recebe, ao que, diante dessa atenção, pensamos que há muito a ser aprendido ali para além dos incontáveis ataques que ela costuma receber por parte dos marxistas. Cf: http://marxismo21.org/hannah-arendt/. 251p. 157. Para uma visão mais aprofundada sobre o estilo paranóide da política do poder estadunidense, recomendamos um pequeno trecho do documentário Tiros em Columbine, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RJe-rTCzoZU; a versão integral, por sua vez, pode ser visualizada em: https://www.youtube.com/watch?v=cr8ZstJHNz8

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racismo252, porque “o imperialismo no exterior [é] comprado ao preço da tirania no plano doméstico”253. A esse misto de tirania com imperialismo Harvey denomina “projeto imperial neoconservador”254, que seria o reflexo do fato de que “o neoconservadorismo substituiu o neoliberalismo do tipo defendido por Clinton”. 252p.

159. Neste momento, dentro do complexo e profundamente hierarquizado mecanismo do racismo, predomina nos EUA a islamofobia, seguida pela fobia aos “asiáticos” e “latinos”. Sobre a islamofobia, dentre muitas outras “fontes”, recomentamos o documentário Road for Guantánamo, disponível em inglês: https://www.youtube.com/watch?v=SXCth19kwRw; e em espanhol: https://www.youtube.com/watch?v=5fimeH0tZkI). 253Harvey, p. 169. Num – como de praxe – instigante artigo sobre o etnocídio, Pierre Clastres observa que para ser etnocida no exterior, cumpre que a civilização ocidental – aos curiosos e/ou puristas: o autor problematiza cada um desses termos em seu texto – seja etnocida em primeiro lugar no interior dela mesma. (p. 82) Noutros termos, que em muitos sentidos podem ser entendidos como antecipação da síntese da tese que gostaríamos de defender, “Aceita-se que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo (o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro). Em outras palavras, o etnocídio resulta da dissolução do múltiplo no Um. O que significa agora o Estado? Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um. (…) Essa vista de olhos sobre a história de nosso país [a incontestável França] é suficiente para mostrar que o etnocídio, como supressão mais ou menos autoritária das diferenças socioculturais, está inscrito de antemão na natureza e no funcionamento da máquina estatal, a qual procede por uniformização da relação que mantém com os indivíduos: o Estado conhece apenas cidadãos iguais perante a Lei. Afirmar (…) que o etnocídio pertence à essência unificadora do Estado conduz logicamente a dizer que toda formação estatal é etnocida. (…) A violência etnocida, como negação da diferença, pertence claramente à essência do Estado, tanto nos impérios bárbaros quanto nas sociedades civilizadas do Ocidente: toda organização estatal é etnocida, o etnocídio é o modo normal da existência do Estado. Há portanto uma certa universalidade do etnocídio, no sentido de ser característico não apenas de um vago 'mundo branco' indeterminado, mas de todo um conjunto de sociedades que são as sociedades com Estado. (…) [Mas somente nos Estados da sociedade ocidental] a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela é desenfreada. É exatamente por isso que ela pode conduzir ao genocídio e que se pode falar do mundo ocidental, de fato, como absolutamente etnocida. Mas de onde provém isso? O que a civilização ocidental contém que a torna infinitamente mais etnocida que qualquer outra forma de sociedade? É seu regime de produção econômica, espaço justamente do ilimitado, espaço sem lugares por ser recuo constante do limite, espaço infinito da fuga permanente para diante. O que diferencia o Ocidente é o capitalismo, enquanto impossibilidade de permanecer no aquém de uma fronteira, enquanto passagem para além de toda fronteira; é o capitalismo como sistema de produção par ao qual nada é impossível, exceto não ser para si mesmo seu próprio fim: seja ele, aliás, liberal, privado, como na Europa ocidental, ou planificado, de Estado, como na Europa oriental. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo; tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade. Eis porque nenhum descanso podia ser dado às sociedades que abandonavam o mundo à sua tranquila improdutividade originária; eis por que era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício representado pela não exploração econômica de imensos recursos. A escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o etnocídio, ou o genocídio.” Pierre Clastres, Do Etnocídio, em Arqueologia da Violência. 254p. 159

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Temos aqui mais uma passagem fundamental para o nosso argumento principal acerca da periodização do Imperialismo. Como vemos, ainda que noutras passagens – sem dúvida importantes, como os capítulos sobre A acumulação por despossessão255 (cap. 4) e A coerção consentida (cap. 5) – o argumento seja mais complexo a formação de um bloco único ligando os interesses neoconservadores e neoliberais dê a tônica do argumento, não podemos deixar de refutar o argumento de Harvey segundo o qual os anos que se seguiram aos espetáculos de setembro seriam o resultado da “substituição” do “neoliberalismo” pelo “neoconservadorismo” como duas “modalidades” diferentes de imperialismo256. Conforme procuramos defender em nossa dissertação de mestrado257, o decisivo, desde o surgimento das críticas hobsonianas e marxistas sobre o Imperialismo no início do século XXI é compreendê-lo como Imperialismo Capitalista258. Que os aparatos imperialistas possuam feições peculiares e as cores de bandeiras nacionais não implica que o imperialismo seja nacional e isso é um ponto absolutamente crucial sobre o qual se construíram as teorias anti-imperialistas e anticapitalistas que procuraram – conforme defenderemos em momento mais oportuno – elaborar o conceito Imperialismo enquanto uma “totalidade” e, portanto, uma “temporalidade”. Assim, discordamos, pelas razões apresentadas, que “Estados diferentes produzem imperialismos diferentes, como foi tão óbvio no caso dos imperialismos britânico, francês, holandês, belga etc. entre 1870 e 1945”

259

– embora não discordemos que sociedades distintas tenham produzido

imperialismos distintos antes do capitalismo260. Já o Imperialismo Capitalista é

255Até

aqui, preferimos seguir a tradução para o português da Editora Loyola, ainda que deixe o texto truncado. Não obstante, não podemos ratificar a tradução de “despossession” por “espoliação”. 256A idéia de “substituição” está na já citada página 22. A idéia de “modalidade” consta na página 150: “Pensemos, dessa ótica, no caso da recente mudança de forma do imperialismo nos Estados Unidos, da modalidade neoliberal para a modalidade neoconservadora.” 257Franco, 2011. 258E, portanto, transnacional, porque não existe nem pode existir “capitalismo nacional”, nem, portanto, o que no fim das contas é a mesma coisa “desenvolvimento capitalista nacional”. 259P. 149. Ressaltemos a periodização, que nos interessará posteriormente. 260Nas palavras com as quais circunscrevemos a questão naquela referida dissertação, “O imperialismo capitalista é a expressão das contradições de classe típicas de sociedades capitalistas na mesma medida em que o imperialismo de cada um dos impérios que o precederam é – e não poderia deixar de ser – a expressão política das contradições de classe então existentes. Em nossa opinião, toda tentativa de entendimento sobre qualquer império ao longo da história é também uma tentativa de entendimento sobre o sistema de dominação no qual esse império está inscrito. Deste modo, a tentativa de compreensão das diversas interpretações sobre o imperialismo capitalista britânico é – e não poderia deixar de ser – uma tentativa de entendimento sobre o sistema capitalista de dominação.” (negrito no original). Franco, 2001, página 5.

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essencialmente transnacional, assim como são transnacionais as características que o “produzem” – se quisermos manter o verbo escolhido por Harvey. Pra agora, sigamos com Harvey procurando acompanhar até onde o raciocínio em bases nacionais irá nos levar. Por exemplo, quando procura debater as mudanças de forma do “imperialismo yankee” se valendo de sua “fórmula”, aqui manifesta da seguinte maneira [menos esquemática do que no início de O Novo Imperialismo]: (…) creio que podemos avançar muito no estabelecimento de um sólido arcabouço interpretativo das formas distintivamente capitalistas de imperialismo recorrendo a uma dupla dialética, primeiro a das lógicas territorial e capitalista do poder, e em segundo lugar, a das relações interiores e exteriores do Estado capitalista.261

Tendo em mãos essa “fórmula” – Harvey nunca consegue se libertar de todo de um pedante esquematismo formalista – o autor nos apresenta uma reconstituição de uma suposta mudança do Estado, quando analisa a passagem de Clinton para Bush II. O fundamental, de acordo com essa reconstituição – que faz coro com incontáveis interpretações das mais variáveis estirpes à esquerda e à direita – é que vinha ocorrendo – já contando com algumas décadas – um tipo específico de “financeirização”262, com o aumento do poder do “complexo Wall Street-Tesouro-FMI” e a conformação de uma “classe transnacional” que “envolveu muitos custos internos como a desindustrialização, as fases de rápida inflação seguida pelo esmagamento do crédito e o desemprego estrutural crônico263”, dando voz a uma sorte de interpretação – insistimos, comum da esquerda à direita segundo a qual (...) foi uma característica peculiar desse mundo que uma classe capitalista crescentemente transnacional de financistas, chefesexecutivos e rentistas recorressem ao hegemon territorial para proteger seus interesses e para construir o tipo de arquitetura institucional no âmbito da qual pudessem reunir a riqueza do mundo em suas mãos. Essa classe pouco ligava para as lealdades ou tradições nacionais ou vinculadas ao lugar; podia ser multirracial, multiétnica, multicultural e cosmopolita. Se as exigências financeiras e a busca de lucros requeria 261Pág.

149-150. Sabemos que as pessoas que conhecem as polêmicas específicas de nosso assunto esperam nosso posicionamento ante as famosas teses de Harvey tomadas de empréstimo de Giovanni Arrighi sobre as lógicas territoriais e capitalistas de poder, mas pedimos paciência: chegará esse momento. 262A tradução da edição brasileira, embora bastante útil para quem – como nós – não domina completamente o idioma inglês, toma determinadas escolhas que são completamente diversas da historiografia especializada. Assim, traduziu-se “financialization” por “financialização” [página 185 no original; 150 na tradução], e não por “financeirização”, como de costume. Nessas ocasiões, preferimos trocar os termos da tradução deste livro pelos termos mais comuns na historiografia especializada. Procuramos identificar quando isso ocorreu. 263P. 150.

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que se fechassem fábricas e se reduzisse a capacidade manufatureira no próprio quintal dessa classe, que assim se agisse.264

Conforme voltaremos daqui um pouco, discordamos tanto de que existia uma classe capitalista para que “ligava para as lealdades ou tradições nacionais ou vinculadas ao lugar” quanto que essa classe foi substituída por outra, diante da “traição das elites locais”. Para nós, esse é mais um fetiche dos “Anos Dourados”, dos quais Harvey usa e abusa. Mas por hora avancemos em seu argumento, para vermos como ele lida com a necessidade explicar as diferenças entre o imperialismo supostamente neoliberal e o imperialismo supostamente neoconservador. Para Harvey, “o imperialismo neoliberal no exterior tendeu a produzir inseguranças crônicas no plano doméstico”, de modo que, contra o “cosmopolitismo” das elites neoliberais, “muitos elementos das classes médias puseram-se a defender o território, a nação e a tradição como forma de armar-se contra um capitalismo neoliberal predatório. Buscaram mobilizar a lógica territorial do poder para se proteger dos efeitos do capital predatório”. Em suas palavras, o racismo e o nacionalismo que um dia criaram a coesão da naçãoEstado e do império ressurgiram no nível da pequena burguesia e da classe trabalhadora como arma de organização contra o cosmopolitismo do capital financeiro. Como culpar os imigrantes pelos problemas era uma manobra diversionista conveniente para os interesses da elite, floresceu uma política excludente fundada na raça, na etnia e na religião, particularmente na Europa, em que movimentos neofascistas começaram a angariar considerável apoio popular. 265

Deste modo, teria sido o “neoliberalismo” [sempre ele!] – ao proporcionar as bases para a “traição das elites” – que teria criado o clima propício ao “populismo”, em que as pessoas não acreditavam no Estado, “tão claramente do lado dos financistas, e de qualquer maneira agindo como principal agente da política de acumulação por espoliação” – voltaremos ao ponto, que é crucial. A questão é que, para Harvey, o neoliberalismo é o responsável por ter começado a ebulição social e a propensão às revoltas – que iria desembocar na “ascensão neoconservadora”266. Então a eleição fortuita [!] de George W. Bush, um cristão reconverso, para a presidência dos Estados Unidos deixou um grupo neoconservador de pensadores próximos do poder. Os neoconservadores, bem financiados 264P.

152. 152-3. 266Ao que é fácil inferir que o autor irá caminhar para a proposta de conciliação da sua agenda política com as agendas em torno de um Estado forte o suficiente para “domesticar” o capital de “suas” elites. Mas não nos adiantemos tanto. 265P.

102

e organizados em inúmeros think-tanks como os liberais antes deles, havia muito tentavam impor seu programa político ao governo. E esse programa diferia do neoliberal, tendo por objetivo primordial o estabelecimento da ordem e o respeito a ela, tanto internamente como no cenário mundial. Isso implica uma liderança forte no topo e uma lealdade inabalável na base, associadas à construção de uma hierarquia de poder tanto segura quanto clara. Para o movimento neoconservador, a adesão a princípios morais também é vital. Nesse aspecto, sua sustentação e base eleitoral são os cristãos fundamentalistas que acalentam crenças de um tipo muito especial. 267

Assim,

para

o

autor,

com

a

transição

democrata(neoliberal)-

republicana(neoconservadora), teria sido empreendida uma mudança fundamental na conduta política estadunidense, manifesta no fato de que enquanto as posições-chave do governo Clinton estavam no Tesouro (em que Rubin e Summers reinavam supremos), o novo governo Bush recorre a seus especialistas em defesa – Cheney, Rumsfeld, Wolfowitz e Powell – para moldar a política internacional, contando com um cristão conservador – Ashcroft – como secretário de Justiça para fazer viger a ordem em casa. (…) Nesse aspecto, o grupo entendeu bem a ligação entre a ordem interna e a externa. Aceitou intuitivamente a concepção arendtiana268 de que o império no exterior implica a tirania no plano doméstico, mas a afirma em outros termos: a atividade militar externa requer no plano doméstico uma disciplina semelhante à militar. 269

Agora, a partir da confusão entre neoliberalismo e neoconservadorismo, vejamos como o autor amarra os elos do raciocínio que ele havia enunciado. Para ele, com a ascensão neoconservadora, (…) houve a apropriação de um momento de solidariedade social e de patriotismo para construir um nacionalismo norte-americano capaz de oferecer a base para uma forma diferente de empreendimento imperialista e de controle interno. A maioria dos liberais, mesmo aqueles que antes criticavam as práticas imperialistas dos Estados Unidos, apoiou o governo em sua guerra ao terror e aceitou sacrificar parte das liberdades civis pela causa da segurança nacional. A acusação de antipatriotismo foi usada para suprimir a participação crítica ou a dissensão fundada. Os meios de comunicação e os partidos políticos se enquadraram. Isso permitiu à liderança política promulgar legislações repressivas sem praticamente nenhuma oposição – com destaque para a Lei patriota e a Lei de Segurança da Pátria [the Patriot and Homeland Security Acts]. Foram instituídas draconianas suspensões dos direitos civis. Mantiveram-se prisioneiros ilegalmente e sem representantes legais na baía de Guantánamo, ocorreram detenções indiscriminadas de 'suspeitos' e muitos ficaram presos durante meses sem acesso a assistência legal, para não mencionar julgamento. A polícia podia prender arbitrariamente todo suspeito de 'terrorismo', o que podia 267Harvey,

154. ao ponto. 269Harvey, p. 156 268Voltaremos

103

incluir como logo ficou claro, mesmo membros do movimento antiglobalização. Introduziram-se técnicas draconianas de vigilância (o FBI teve permissão de acesso a registros de empréstimos de livros em bibliotecas, compras de livros, acessos à internet, registros de matrícula de estudantes, participação em clubes de scuba-diving etc.)270

Enfim, o esquema de paranóia havia sido imposto, e o “terror” interno enquanto resposta ao “terrorismo” dava a tônica. Embora contasse, com forte apoio das classes mais baixas [para Arendt, a “ralé”: the mob], que demandava “ordem” e “moralidade” contra a corrupção em seus mais variados sentidos, teria havido aqui, novamente uma “traição” das elites, por que o governo também aproveitou a oportunidade para cortar todo tipo de programas de assistência aos pobres (em nome do sacrifício por uma causa nacional). Impôs um programa de redução de impostos que favoreceu flagrantemente o um por cento mais abastados (em nome do estímulo à economia), chegando a propor a eliminação de impostos sobre dividendos na vã esperança de que isso promovesse os valores dos ativos em Wall Street. Todavia, essas políticas, associadas a flagrantes violações da Carta de Direitos (Bill of Rights) e da tradição constitucional norte-americana, só podiam ser sustentadas, como Washington, Madison e muitos outros tinham reconhecido e temido havia muito, mediante compromissos externos do tipo imperialista.271

Como sempre, os grandes capitalistas foram beneficiados às custas dos pobres, independentemente da orientação neoliberal ou neoconservadora do condottiere que, no fundo não são tão diferentes assim, e executam o mesmo projeto, embora com alguns toques pessoais. O que nos chama a atenção é que mesmo que Harvey tenha sustentado sua argumentação em torno das mudanças ocorridas durante os anos 1990 polarizadas em torno dos neoliberais e dos neoconservadores, não há como negar que as semelhanças são enormes e no duro, “os neoconservadores se sobrepõe ao neoliberalismo na crença de que os livre-mercados de mercadorias e de capital contém tudo o que é preciso para proporcionar a todos liberdade, bem-estar, sombra e água fresca”272. Desta maneira, o neoconservadorismo vai dar prosseguimento a uma economia política fundada na acumulação por espoliação (…) e não fará absolutamente nada para conter a espiral de desigualdades que vem sendo produzida pelas formas contemporâneas de capitalismo. Na verdade, a julgar por suas políticas fiscais, os neoconservadores tudo farão para acentuar essas desigualdades, presumivelmente com a justificativa de que, a

270p.

157.

271Mesma 272162

página 157.

104

longo prazo, recompensar dessa maneira a iniciativa e o talento vai melhorar a vida de todos.273

Mas, enfim, qual é a relação entre “neoliberalismo” e “neoconservadorismo” para Harvey? Difícil de mapearmos, pois essa relação varia ao longo do texto, hora se complementando, hora substituindo. Sob nosso ponto de vista, este não parece ser um problema da maneira como o autor delineia a lógica do seu argumento, mas em sua visão de mundo que nem sempre se faz aparecer. Harvey não é o único a encontrar dificuldades em distinguir “neoliberalismo” e “neoconservadorismo”. Embora os acadêmicos se esforcem em acentuar as diferenças, quando representantes dessas “escolas” chegam ao poder, eles raramente deixam de perceber que o Estado não é a Academia e quando se analisa o exercício do poder na prática é muito difícil distinguir quais medidas se devem à orientação de cada escola. Se não fosse porque – a teoria explica isso muito claramente, embora os analistas das políticas raramente levem isso em consideração – “na teoria, a prática é outra”, certamente porque o exercício do poder não é apenas um exercício de vontade, mas um exercício que precisa considerar uma série de “fatores exógenos” como a burocracia e a distribuição do poder – cinicamente aplaudida ou vaiada como “governabilidade”. Essa dificuldade se faz nítida quando apreciamos o debate da Ciência Econômica. Para os especialistas, nada mais diferente de um economista de orientação liberal que um economista de orientação “heterodoxa”. As rixas são enormes e parecem se basear em divergências filosóficas e teóricas muito importantes. Em tese, um grupo político heterodoxo, quando no governo, implementaria políticas “intervencionistas”, de inspiração “keynesiana” ou – como se diz aqui na periferia – “(_________) desenvolvimentista”. E o que faria um grupo “ortodoxo”? Confiaria no fato de que o Mercado seria o “ente” principal da mediação social e, portanto, aplicaria medidas “liberalizantes” – tanto às questões monetárias quanto fiscais, trabalhistas etc. E o que acontece na realidade? Todo e qualquer grupo no poder precisa lidar com problemas concretos que contrariam – pelos mais variados fatores – essa orientação teórica, gerando um sem-fim de debates sobre como classificar as políticas adotadas daquele ponto de vista teórico apriorístico. Para além da tipologia, qual a validade dessa contenda? Qual é o rigor que a fundamenta? Alguma; dependendo de por que ângulo se analisa. Mas para o desespero dos teóricos mais ingênuos – e para o deleite dos 273Mesma

página.

105

oportunistas – a realidade não é tão “preto no branco”. Acreditar que as gentes de Estado são fanáticas pelas idéias da Academia é somente mais uma das ilusões desta em sua sempre renovada capacidade de voltar-se exclusivamente para os próprios umbigos. No máximo, as orientações apriorísticas dos grupos no poder servem como algum suporte para o seu raio de ação, que quando contrastado com a realidade do exercício do poder, se afasta em menor ou maior medida dos rótulos que se valeram na propaganda. Qualquer semelhança com a realidade brasileira atual não é mera coincidência. Enquanto os partidos hegemônicos se digladiam numa luta fratricida para decidir qual é a diferença entre o charm e o funk274 o fantasma do controle social e do autoritarismo crescem incessantemente. Independentemente do debate entre o que se chama “de esquerda” e o que a cada dia tem menos vergonha de se identificar como “a direita”, o controle e a opressão sobre a população aumentam, o grau de mercantilização da vida explode e as condições de vida (pra ficarmos num exemplo apenas: ambiental) pioram a olhos vistos275. Se for verdade que houve por algumas vezes ao longo do século XX, uma associação entre “intervencionismo econômico” e “autoritarismo” – dentre as quais o nazismo, o bolchevismo, os governos militares na América Latina e tantos outros; não parece justificável, por outro lado, que os governos ditos “(neo) liberais” não tenham sido igualmente “intervencionistas” (quando não foram mais, especialmente no que concerne o militarismo) e “autoritários” 276. Deste modo, no mesmo pântano em que atolam tantos “marxistas” e “anticapitalistas” quando analisando o século XX em retrospectiva, também David Harvey afunda, confundindo a “disputa” entre ideologia neoliberal e a ideologia neoconservadora – superficialmente distintas, essencialmente iguais – com mudanças nas políticas do Estado em favor do Capital. Não é por fetiche das idéias que os governantes adotam tais políticas. Diferentemente do que julgam os teóricos, os homens de Estado, tão logo estejam no Estado, de bom grado abrem mão do que defendiam na 274https://www.youtube.com/watch?v=XavrXeI_-gk;

Sobre a mesma coisa, só que sobre uma coisa diferente, assinamos embaixo da explicação de Zeca Pagodinho para a diferença entre samba e pagode: https://www.youtube.com/watch?v=0w3mzrwXcqE. E para completar a analogia, pensamos que a idéia de que “é igual, mas é diferente” é um excelente modo de sintetizar o que vimos tentando dizer, tanto nessa parte específica “neolib x neocon”; “heterodoxo x ortodoxo” como em geral “novo imperialismo” e “velho imperialismo”. Conforme teremos a ocasião de prosear, como bem o sabiam anticapitalistas velhos de guerra, o combate ao modo de produção em curso não pode ser feito à partir do modo fetichista de pensamento com o qual constitui seus fundamentos. 275 Em síntese: https://www.facebook.com/genildo.vix/photos/pb.160957004064341.2207520000.1426088588./284045925088781/?type=3&theater 276http://naofo.de/3936

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Academia em nome da Política de Poder. Como procuramos demonstrar, sua tese principal é que, depois de um momento de vigor (por conta do 'New Deal'277), a sociedade

estadunidense

(por

conta

do

neoliberalismo278),

encontrava-se

profundamente instável e a democracia ruía. Em seus termos, a própria “a sociedade civil estava longe de civil. A sociedade como um todo parecia estar fragmentando e perdendo a coesão com alarmante rapidez”279. Para ele, neste contexto, os neoconservadores e o seu discurso moralizante teriam encontrado terreno fértil, ao que puderam promover medidas tirânicas/draconianas sem romper com as medidas neoliberais que favoreciam a especulação financeira e a fuga das empresas para a China280. E assim, embora geralmente essa seja colocada na conta dos “neoliberais”, os “neoconservadores” não deram nem ao menos um passo para reverter a tal “globalização”281. Dito de outra forma, o argumento de Harvey – muito claro em uma série de questões difíceis – se turva no momento em que precisa colocar em perspectiva a “ascensão conservadora” em contraposição ao neoliberalismo – porque os neoconservadores são neoliberais. Mas vejamos de perto a relação entre “globalização” e “imperialismo”.

277Teremos

a ocasião de voltar ao assunto, mas fica registrado aqui também: para Harvey, “Há com efeito soluções bem mais radicais espreitando nos cantos, mas a construção de um novo 'New Deal' liderado pelos Estados Unidos e pela Europa, tanto doméstica como internacionalmente, é por certo, diante das magníficas forças de classe e interesses especiais alinhadas contra ela, uma meta suficientemente ampla pela qual lutar na atual conjuntura.” página 169. 278Embora presente, aparece menos no texto de Harvey o argumento da dissolução da União Soviética, que funcionara mais como inimigo externo que limitava o campo de ação possível aos Estados Unidos. Esse argumento é muito importante para outros autores, como explicitado no supracitado texto de Vivek Chibber. 279p. 23 280E sua respectiva periferia. Sempre é possível estar abaixo na hierarquia do poder, como visível na didática animação argentina El Empleo (https://www.youtube.com/watch?v=cxUuU1jwMgM) 281 O marxista grego Spyros Sakellaropoulos, cuja contribuição para o debate contemporâneo será apreciada mais à frente, é sagaz na observação de que o tipo de visão de mundo de Harvey, que se confunde quanto à relação entre a “globalização” e o “imperialismo”, “converge com elementos da retórica da globalização”, deixando pouco claro como o Estado pode se beneficiar desse processo. Entretanto, o principal problema dessa visão, para o grego, é que restringe as possibilidades da luta anticapitalista – o que nos parece muito claro quando consideramos a parte final do texto de Harvey. Para a crítica específica de Sakellaropoulos a Harvey, consultar a página 60 do seu artigo The Issue of Globalization through the Theory of Imperialism and the Periodization of Modes of Production. Critical Sociology, 35(1), 57–78, de 2009. Este artigo chegou ao nosso conhecimento a partir do comentário do Professor Leonardo de Magalhães Leite, do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal Fluminense (UFF), publicado na revista Economia e Sociedade, da Unicamp. Por sua vez, esse artigo foi sugerido durante a nossa banca de qualificação deste doutorado pelo professor Carlos Cordovano Vieira, a quem aproveitamos para agradecer. O artigo pode ser encontrado em http://www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?id=3366&tp=a

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4.2 “Globalização” e/ou Imperialismo Conforme já enunciamos anteriormente, os debates sobre a “globalização” são particularmente importantes para as interpretações latino-americanas sobre o Imperialismo contemporâneo, mas evidentemente elas transcendem muito essa perspectiva, atingindo de modo importante, especialmente, diversas vozes que partilham da hipótese do “sumiço” do tema, ao que se faz importante que debatamos como as tensões entre ambas as categorias aparecem no debate. Retomando as teses de Marisa Amaral e Leda Paulani, temos que o tema Imperialismo teria sido “encoberto pelo discurso da globalização, algo que anuvia e mascara sua verdadeira natureza”. No discurso da globalização, “o que se propala é a falsa ideia de que todas as nações são interdependentes e de que, por isso, a vinculação de todas elas à lógica global de acumulação seria benéfica a todas, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social”. Quanto à tradição do pensamento “econômico” – especialidade das autoras – é também uma afirmação de idéias “neoliberais”. A relação entre “neoliberalismo”, “financeirização”, “globalização” e assemelhados geralmente é expressa de forma confusa, não apenas por Amaral e Paulani, mas por muitas gentes mais. Muitas vezes dão a entender que, menos ou mais, se referem às mesmas coisas. Isso evidentemente não é de se estranhar quando se tem em mente que são tentativas de abarcar coisas que aconteceram no mesmo período, mas isso, ao nosso ponto de vista, ainda exigiria que se esforçasse mais para demarcar as confluências e distâncias entre cada uma dessas idéias, que estão longe de significar a mesma coisa. Como aqui se trata de identificarmos a relação entre globalização e imperialismo – o neoliberalismo aparece meio a contrabando – , é importante que retenhamos o principal. Nas palavras de Marisa e Leda, neste momento

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resgata-se com força o conhecido argumento das vantagens comparativas, travestido agora de uma roupagem moderna por meio do modelo Heckscher-Ohlin-Samuelson (bem como das novas teorias do comércio internacional), segundo o qual o padrão do comércio internacional é determinado pela diferença na disponibilidade dos fatores, levando a um aumento nos índices de produtividade, de competitividade, de rendimento e, portanto, a uma ampliação do bemestar coletivo das massas, que se daria principalmente por meio do acesso ao mercado internacional. Enfim, tudo se passa como se o imperialismo tivesse se convertido no seu contrário.

Trocando em miúdos, para elas, o que explicaria o desaparecimento das discussões sobre o imperialismo seria a potência do discurso sobre a globalização, com a respectiva enxurrada de propaganda em favor de uma suposta “Nova Ordem Mundial”282 e do consenso “neoliberal”. Mas, afinal, a globalização consiste em alguma novidade objetiva ou é apenas um discurso? Não é uma questão simples de responder, ao que recorreremos a um excurso, a título de examinarmos a tensão na forma de um debate que nos interessa resgatar. 4.2.1 A contenda da (revista) Crítica Marxista

Como uma entre várias possíveis maneiras de demonstrarmos a controversa relação entre globalização e Imperialismo no debate latino-americano, gostaríamos de ressaltar a travada no terceiro número da revista Crítica Marxista, do Centro de Estudos Marxistas (CEMARX) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade de Campinas (Unicamp), que – em 1996, ou seja, no auge da euforia globalóide – dedicou uma seção inteira para apresentar posições divergentes sobre o tema283. Enunciando nosso objetivo para direcionar a leitura, chamamos a atenção para a seguinte questão: quais são as concepções de Imperialismo (e de capitalismo) que sustentam as visões de cada um dos autores e da autora? Como de costume, é bom que frisemos que, a nós nos interessa menos as visões de cada um dos artigos e mais o que os impasses podem revelar.

282Quem,

como nós, estava na escola durante a década de 1990 se lembra perfeitamente bem da lavagem cerebral que sofremos no colégio sobre o fim da Guerra Fria e essa “Nova Ordem Mundial” da “globalização” e da “paz liberal” que hoje podem parecer ao leitor mais novo uma grande asneira. É uma asneira mesmo. Foi duro de engolir. E deu azia. 283 Citaremos os artigos individualmente, mas deixemos anotado que a revista pode ser consultada no seguinte endereço: http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/sumario.php?id_revista=3&numero_revista=3

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Em Globalização e Imperialismo, o professor de Ciência Política da Unesp, Marcos del Roio apresenta o problema de modo claro: o século XX iniciou-se sob o signo do debate sobre o tema do imperialismo e está terminando com a discussão sobre a globalização. Qual a relação entre esses dois conceitos e realidades dentro da história da acumulação capitalista e da crítica socialista? Há continuidade ou ruptura? Quais as implicações derivadas para a ação e teoria socialista no tema proposto? 284

Procurando defender a tese de que “A globalização é uma nova fase do capital em processo” – expressa no subtítulo do artigo – Del Roio considera que “a década de 1980 marcou a vitória completa do imperialismo sobre seus oponentes, permitindo que o capitalismo ingressasse numa outra fase”. Assim o Imperialismo é uma espécie de inimigo – dos trabalhadores, com especial destaque aos socialistas, presumimos – que luta em favor do capitalismo; ou seja, uma espécie de “favorito”. Essa “vitória completa do imperialismo” teria ocorrido devido à “incapacidade de [os socialistas] formular[em] uma nova hegemonia (...) centrada no mundo do trabalho, que teria na análise crítica do capital em processo na forma imperialista seu ponto de partida”. Ainda segundo Del Roio, essa derrota, “permitiu ao capital, conduzido pelo setor financeiro, ingressar numa nova fase cuja forma está ainda mal delineada, mas que vem sendo chamada de capitalismo globalizado”. O autor não nos diz se ele concorda ou discorda dessa forma como a nova fase do capital vem sendo chamada, mas o texto nos leva a inferir que ele concorda. Dessa maneira, a “globalização” deveria ser entendida como uma fase que sucedeu a vitória completa do imperialismo. O que se poderia dizer sobre ela, naquele momento, segundo Del Roio é que embora essa nova fase do capitalismo globalizado esteja apenas se delineando, em meio a um verdadeiro caos, pois o capital tem limites intrínsecos na sua capacidade de planejamento e suas características não estejam suficientemente claras, desde já algumas afirmações, contrárias aos apologistas das teorias sistêmicas e do fim liberal da história, podem ser feitas: o capital se assenhoreando do conjunto do planeta agora é uma realidade, antecipada, num erro profícuo, por Rosa Luxemburgo285; o risco da barbárie é ainda mais iminente, pois, além da guerra civil generalizada, ameaça a espécie humana uma catástrofe ecológica; e, pior que tudo isso, não há uma subjetividade antagônica à

284DEL

ROIO, Marcos. Globalização e imperialismo: a globalização é uma fase do Capitalismo em processo. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.153-155. 285 A hipótese dos “erros profícuos” é hegemônica da historiografia crítica sobre Luxemburg, como veremos e procuraremos refutar.

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ordem do capital global que reproponha o mais que maduro comunismo como superação do atual estado de coisas286.

Já para o sociólogo Octávio Ianni (da Unicamp) – o que não nos parece explicar muita coisa – as categorias também se interpenetram, por que desde que se fala em globalização, logo se põe em causa o imperialismo. Um e outro se contrapõem, se complementam, dinamizam-se ou se atritam, conforme a dinâmica das relações, processos e estruturas que constituem o capitalismo como modo de produção mundial. Não se trata de imaginar que um nega ou anula o outro, mas de reconhecer que ambos se determinam reciprocamente. Entretanto, o globalismo subsume histórica e teoricamente o imperialismo. Trata-se de duas configurações históricas e teóricas distintas. Podem ser vistas como duas totalidades diferentes, sendo que uma é mais abrangente que a outra. O globalismo pode conter vários imperialismos, assim como diferentes regionalismos, muitos nacionalismos e uma infinidade de localismos287.

E, portanto, sem propriamente explicar o que quer dizer com isso 288; afirma que quanto ao globalismo “trata-se de uma totalidade mais ampla e abrangente, tanto histórica como logicamente”, ao passo que (...) cada imperialismo diz respeito a um todo histórico e lógico compreendido pela metrópole e as nações dependentes ou colônias. Tanto é assim que o imperialismo tem sido norte-americano, japonês, inglês, alemão, russo, holandês, belga, italiano ou outro. 289

Já o economista Wilson Cano (também da Unicamp), reitera as teses que se tornaram uma espécie de consenso – principalmente no campo da Ciência Econômica –

286Em

outro texto, de 2004, o autor afirma que “a fase atual do capitalismo é uma fase que se aproxima da realização de um império universal, perspectiva existente antes mesmo do capitalismo, mas que as suas características fundamentais se expressam em um aprofundamento do imperialismo capitalista, particularmente a financeirização e a militarização. No entanto, são as próprias contradições imperialistas a conter a realização do império do mundo.” Em novo texto, agora de 2007, Del Roio coloca a questão em outros termos, igualmente inconclusivos, de modo que ficamos sem saber, afinal, qual é a posição do autor sobre a relação entre imperialismo e globalização. Em suas palavras de 2007, "A questão que se coloca inicialmente é se nos encontramos numa nova fase do capitalismo ou dentro de uma subfase do imperialismo capitalista". A Mundialização Imperialista. Lutas Sociais, 10. Disponível em http://www.pucsp.br/neils/downloads/v11_12_del_roio.pdf e Breve nota sobre a teoria do Imperialismo (1902-1916), Revista Novos Rumos ano 22, n.47 2007, p. 33 – 39 (pág. 38), disponível em: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/viewFile/2103/1735 287IANNI, Octavio. Globalização e imperialismo. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.130-131. 288Ao menos neste texto; não estendemos a pesquisa à longa lista de obras do autor sobre Imperialismo e “Globalização”. 289P. 130. Já tivemos a ocasião de comentar, e insistimos: quando consideramos o Imperialismo um momento do Capitalismo – se quiser, por enquanto “em sua fase monopolista” – ainda que existam impérios “nacionais”, não faz sentido pensar em “imperialismos nacionais”. Se o Imperialismo Capitalista é uma “conformação” das contradições do modo de produção capitalista, a questão nacional deve ser entendida de modo perpetuamente entrecruzada com a questão global, uma vez que “capitalismo nacional” é uma idéia logicamente inconsistente.

111

entre observadores do espantoso grau em que as cifras “financeiras” aparentemente se deslocaram da “economia real” a partir do fim do “Consenso de Bretton-Woods”. Em Notas sobre o imperialismo hoje, firma que “(...) o imperialismo viu-se obrigado a vestir nova 'roupagem', dado que a supremacia da acumulação de excedentes financeiros não pode impedir, por muito tempo, a inevitável crise explicitada pela debilidade da acumulação real.”

290

Assim, o que dá a tônica da argumentação de Cano é a suposta

falência dos Estados em tomar a dianteira da acumulação capitalista291. Supostamente esse teria sido um efeito da ofensiva imperialista “sob nova roupagem” – e temos nas entrelinhas que talvez Cano esteja sugerindo que a montagem desses Estados desenvolvimentistas possa ser explicada pela “roupagem antiga” do imperialismo, mas é apenas uma suposição cuja demonstração exigira um esforço que não pretendemos dispor no momento. Mas voltando para o que Wilson Cano explicitamente argumentou, para ele o imperialismo, a partir de meados da década de 1970, passava assim a atuar em duas grandes frentes: 1. ataque frontal aos Estados nacionais já financeiramente debilitados, que consistiria em acirrar a crítica "ineficiência" administrativa e produtiva estatal e reafirmar que o mercado dá alocação melhor aos "fatores" e obtém melhor eficiência; 2. apropriar-se, em velocidade vertiginosa, dos novos conhecimentos já disponíveis da ciência e da tecnologia e acelerar a busca de novas descobertas292.

A globalização, destarte, seria uma espécie de consequência do imperialismo e, Assim sendo, o imperialismo, para "completar" sua globalização nos países subdesenvolvidos, está causando um verdadeiro flagelo, sucateando precocemente capacidade produtiva e infraestrutura, ao exigir a moderna substituição daqueles ativos293

Mais uma vez, a mesma visão de mundo segundo a qual havia algo que foi “flagelado”, “sucateado precocemente”. Para essa visão de mundo, a globalização é uma espécie de interrupção, traição, degeneração de algo bom (o desenvolvimento capitalista durante o período anterior). A professora Rosa Maria Marques, do Departamento de Economia da PUC/SP e técnica do Instituto de Economia do Setor Público (IESP) da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (FUNDAP), por sua vez, em Globalização e Estados 290CANO,

Wilson. Notas sobre o imperialismo hoje. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.132-135. (p. 133) 291Meta esta que os economistas também chamam de “desenvolvimentismo” ou “keynesianismo”. 292P. 133. 293P. 134

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Nacionais, coloca os termos do debate em outros alicerces, mas ainda nos quadros dessa mesma visão de mundo. Indaga ela, “no que consiste a globalização, ou, como dizem os franceses, com o rigor que lhes é próprio, a mundialização?294” Ao que responde, de imediato, que “Trata-se de um dado estágio de desenvolvimento do capitalismo, que se caracteriza por um aprofundamento da concentração do capital e de uma nova forma de organização das empresas” além da “financeirização” e da “fragmentação”295. Alicerçando sua argumentação em uma interpretação específica de “finança” – contrária ao conceito de “capital financeiro” de Rudolf Hilferding, que como argumentaremos mais à frente sustenta o conceito de Imperialismo –; para Rosa Maria Marques, “nesse sentido, a mundialização é entendida muito mais como uma reorganização do capital industrial do que um fenômeno ao nível da troca”296; sem entretanto, deixar de anotar que “essa análise ficaria incompleta se não fizesse referência ao papel exercido pelo capital financeiro (sic) na reprodução do capital dessa fase de mundialização297 A partir dessa concepção – que, insistimos, anda na contramão da tradição marxista (o que em si mesmo não é nem bom nem ruim, mas é digno de nota) – o Imperialismo parece nem existir (mais?). Sob nosso ponto de vista, essa é a provável razão pela qual essa palavra “imperialismo” não aparece sequer uma única vez no texto em questão, que, como fosse a mesma coisa, trata “apenas” da relação entre os governos, as empresas e os capitalistas. Citando o economista francês François Chesnais, sua principal referência, Rosa Maria Marques conclui que “se os governos não tivessem desregulamentado, privatizado e liberado o comércio internacional, o capital financeiro e os grandes industriais não teriam a liberdade de ação que ora usufruem”298. Já Jorge Miglioli, professor de Sociologia da Unesp, se questiona se não seria a globalização

uma

nova

fase

do

capitalismo,

um

“resultado

natural

desse

desenvolvimento, na medida em que o capitalismo se implantou por todo o mundo a partir do século XIX299”. Segundo essa visão, a etapa atual seria, portanto, uma etapa que 294MARQUES,

Rosa Maria. Globalização e Estados nacionais. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.136-139. p. 136 295p. 136 296137 297138 298Mesmo texto, página 138. Como, pelo roteiro que escolhemos, ainda não tivemos a ocasião de expor o surgimento da categoria Imperialismo, cumpre-nos ressalvar que reduzir essa complexa questão a uma questão de políticas públicas é entrar na máquina do tempo e voltar mais de cem anos no debate, antes das primeiras formulações de John A. Hobson. 299MIGLIOLI, Jorge. Globalização: uma nova fase do capitalismo?. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.140-142. p. 140

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lembra a fase inicial do capitalismo300. Deste modo, a globalização seria posterior ao imperialismo, uma espécie de imperialismo superdesenvolvido. Ou, em suas próprias palavras, ainda que hesitantes: “Para concluir, é preciso acrescentar (embora temerariamente) que a tendência capitalista à globalização supera (no sentido do verso alemão aufheben, que significa ao mesmo tempo abolir, preservar e elevar) o conhecido imperialismo.”301 De uma perspectiva radicalmente distinta, o Professor de Relações Internacionais e História Contemporânea no IFCH da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Paulo G. Fagundes Vizentini, em Imperialismo e Globalização, misturando o marxismo com as perspectivas dos sistemas-mundo argumenta que “(...) é preciso situar o próprio significado de 'globalização', expressão que se tornou corrente nos últimos anos”. Segundo ele, uma coisa é “o processo de globalização enquanto tal” que “vem ocorrendo há cinco séculos, desde a expansão comercial européia, configurando gradativamente a articulação do que Braudel denominou economia-mundo.”302 Este sentido de globalização, para ele, “trata-se de um fenômeno inerente à história do capitalismo”. Mas não é isso que, segundo ele, “hoje vulgarmente denomina-se globalização”. O que hoje se entende por “globalização” seria apenas “a etapa presente desse fenômeno, parte integrante da Revolução Técnico-Científica (RTC) ou Terceira Revolução Industrial”. Neste texto, eminentemente especulativo, Vizentini se pergunta “qual o caráter desta nova fase e, dentro dela, do imperialismo?”; ao que empreende a reconstituição dos tais “ciclos hegemônicos” típicos daquele modo de teorizar. Depois de posicionar a Revolução Industrial, a pax britânica e o liberalismo como os definidores do ciclo de 1776 a 1890; comenta o ciclo que se abre no final do século XIX, não como o momento do Imperialismo – como o definem os marxistas do período – mas como o acirramento deste [deixando no ar quando teria começado: possivelmente junto com o capitalismo e

300p.

141. 142. Hoje, por razões que nos escapam do escopo, o termo globalização saiu de moda, e a formulação do professor Miglioli soa um tanto “envelhecida”. Contudo, a reflexão sobre estarmos em uma etapa pósimperialista é extremamente viva. Como já dissemos, temos por objetivo dessa tese, enquadrar o atual momento dentro do contínuo temporal iniciado com as crises de 1870, mas este ainda não é o momento de desenvolvermos essa argumentação. E não podemos deixar de registrar que a percepção de que a fase atual se parece com aquela fase do início é também uma hipótese importante, e nos coloca o desafio de compreendermos o que houve no intervalo entre ambas que, se não se parecia com as extremidades, cumpre anotar o que a diferenciava. 302VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. Imperialismo e globalização. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.149-152. 301p.

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a globalização, alguns séculos atrás]303. Ainda nesse ciclo de acirramento do imperialismo a humanidade teria vivenciado a ascensão de “novos países competidores”, do “paradigma fordista”, o desgaste da hegemonia inglesa, duas guerras mundiais, uma depressão de caráter planetário, a emergência do fascismo e a Segunda Revolução Industrial. Depois, teria vindo o ciclo da Guerra Fria, com a paz americana (aqui, nenhuma palavra sobre a URSS) e o keynesianismo. Enfim chegaríamos ao que parece interessar diretamente à questão que o autor se coloca, conforme a vinha enunciando desde o começo: o mais recente ciclo (a partir de 1970) com a Terceira Revolução Industrial e o desgaste da hegemonia americana. Neste ciclo, chama a atenção para a Revolução Técnico-Científica (alcunhada RTC), que "configura-se, então, como uma resposta global do sistema capitalista [sic] à crise do modelo de acumulação, gerando, entre outros elementos, um novo e intenso ciclo de globalização econômica” [na sequência, qualifica: “globalização da produção, das finanças e intensificação do comércio internacional”]. A essa altura já podemos saber o que há por trás desse modo de contar a história, mas sigamos com a reconstituição. A questão, segundo Vizentini, é procurar investigar “o que se deve entender por “‘imperialismo’ nesse contexto?”. Procurando responder, destaca que o capitalismo demonstrou “notável capacidade de transformação” e que “a dialética do imperialismo ensejou novos tipos de contradição”. Quais sejam elas? Anteriormente, as forças políticas da esquerda denunciavam o imperialismo por seu avanço sobre os recursos naturais, a estrutura produtiva e força de trabalho das nações periféricas do sistema internacional. Contudo, a nova realidade criada pela RTC e pelo processo de globalização conduziu à marginalização de regiões inteiras do Terceiro Mundo. A existência de uma ampla força de trabalho malremunerada, de abundantes recursos naturais e mesmo de determinados setores agrícolas ou industriais simplesmente deixou de ser atrativa, em si mesma, ao capital internacional. A globalização é responsável pela marginalização relativa de regiões inteiras do planeta, como por exemplo ocorre com vastas áreas da América Latina, da África subsaariana e da Ásia meridional e ocidental. Nessas regiões, mesmo governos progressistas tiveram que aceitar ajustes socioeconômicos brutais, demandados pelo FMI e pelo Banco Mundial, para lograr deter o

A idéia de que o Imperialismo é uma política que acompanha toda a história do desenvolvimento capitalista também é creditada à Rosa Luxemburg. Como teremos a ocasião de argumentar, embora seja uma posição sustentável, pensamos que, ao longo do tempo, ela foi se aproximando progressivamente da idéia de que o imperialismo é uma fase específica, embora o que se convencione catalogar como imperialismo (expansão militarista) seja constituinte do capitalismo em todos os seus momentos. 303

115

processo de marginalização, internacional304.

e

voltara

inserir-se

no

circuito

Embora a idéia de que a Revolução Técnico-Científica teria “marginalizado” (“abandonado”) regiões como a América Latina tenha sido uma percepção do período (fim dos anos 1990), as próximas décadas viriam a demonstrar que os interesses classicamente colonialistas (exploração de recursos “naturais”, “logísticos” e “humanos”) continuam absolutamente fundamentais para a estratégia de desenvolvimento dos países centrais: a pilhagem, de que trataremos na sequência. Diante disso, analisando quase duas décadas depois, esse texto, que reflete em alguma medida uma fração do “espírito” daquele tempo, também nos mostra os limites daquela visão de mundo e do entorpecimento que marcou determinados discursos produzidos no fim do século XX em sua dificuldade de explicar porque aquela segunda metade do século era imperialista. Em 1996, Vizentini afirmou que

304Ao

que voltamos mais uma vez ao problema da ilusão de que “governos progressistas” poderiam – por meio do quê? Voluntarismo? – não “aceitar ajustes socioeconômicos brutais demandados” e mesmo assim permanecer no “circuito internacional”. A essa altura [1996] supomos que já deveria ser conhecido do autor o artigo de Giovanni Arrighi – protagonista das assim chamadas “perspectivas dos sistemas-mundo” e incontornável referência dos debates sobre os “ciclos hegemônicos” – em que procura esclarecer como tanto na conjuntura da industrialização quanto da “desindustrialização” a atuação das lideranças – “progressistas” ou “não-progressistas” – da periferia acaba – por intenções anti-sistêmicas ou não, reproduzindo o padrão de inserção – imperialista? – do centro capitalista. A título de síntese: “A primeira suposição questionável é que 'industrialização' é o equivalente de 'desenvolvimento' e que 'núcleo orgânico' é o mesmo que 'industrial'. É interessante que essa suposição atravesse a grande linha divisória entre as escolas da dependência e da modernização. Para ambas as escolas, 'desenvolver-se' é 'industrializar-se', por definição. Desnecessário dizer, as duas escolas discordam vigorosamente a respeito de como e por que alguns países se industrializaram e outros não, ou se desindustrializaram, mas a maioria dos profissionais aceita como verdadeiro que desenvolvimento e industrialização são a mesma coisa. Essa visão está tão entranhada que permanece hegemônica mesmo depois da recente onda de desindustrialização entre os Estados mais ricos da economia capitalista mundial” (p. 208). Cumpre anotarmos que essa visão está tão entranhada que ela continua obscurecendo o fato de que – independentemente das interpretações “da esquerda” ou “da direita”, o imperialismo permaneceu e aprofundou-se ao longo dos séculos XX e XXI. Mesmo porque, ainda segundo Arrighi, “(…) a expansão da industrialização aparece não como desenvolvimento da periferia, mas como periferização de atividades industriais. A industrialização da semiperiferia e da periferia foi, em última análise, um canal, não de subversão, mas de reprodução da hierarquia da economia mundial. Essa descoberta ilustra o processo, enfatizado em nossa conceituação anterior, pelo qual a tentativa generalizada, por parte dos atores econômicos e políticos, de capturar o que, em qualquer momento dado, são atividades de núcleo orgânico, estimula a competição que transforma essas atividades em atividades periféricas” (p. 231) Giovanni Arrighi, A ilusão desenvolvimentista: uma reconceituação da periferia [publicado originalmente em 1990] em A Ilusão do Desenvolvimento [1997]. Gostaríamos de anotar que a passagem central desse raciocínio foi tirada de artigo anterior, citado pelo autor. É ele The Stratification of World-Economy: An Exploration of the Semiperipherical Zone, de Giovanni Arrighi e Jessica Drangel. Publicado em 1986 pela Review.

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o que há de mais irônico, entretanto, é que a esquerda hoje se vê na contingência política de ter de denunciar o imperialismo "pelo abandono e falta de interesse pelo Terceiro Mundo" (sic!). Ou seja, frequentemente critica-se o imperialismo pela sua ausência, o que vem a ser historicamente inédito!

Iremos resgatar esse problema logo mais à frente, mas por hora cumpre que procuremos entender, afinal, em quê o autor avança na compreensão da distinção entre Imperialismo e Globalização? Não parece claro. Do contrário, coloca o Imperialismo, a Globalização e o Capitalismo todos mais ou menos no mesmo saco e com a mesma idade, sem discriminar cada uma das idéias. Depois de apresentar esse raciocínio acerca dos “ciclos de hegemonia”, para especular sobre a emergência de uma nova potência, de um mundo com multipotências ou a superação do “imperialismo apoiado no Estado-nação” diante do desenrolar das condições criadas pelo próprio “sucesso do imperialismo em sua 'fase superior' neoliberal, tecnológica e globalizada” – aliás, procedimento típico daqueles que se dedicam às Relações Internacionais enquanto uma disciplina. Por fim, Vizentini conclui seu artigo ressaltando o “novo perfil multifacético e, às vezes, insólito do imperialismo na fase da globalização” sem que fique claro o que ele quer dizer, afinal, com isso, mas colocando o imperialismo dentro da globalização. Até aqui, quando já apresentamos a maior parte dos argumentos do debate publicado em 1996 – portanto, insistimos, no auge da retórica da “Nova Ordem Mundial Globalizada” – naquele número 3 da Crítica Marxista sobre Imperialismo e Globalização, não avançamos muito no entendimento de qual, afinal é a relação entre essas duas categorias e muito menos qual a relação entre os fenômenos que elas pretendem dar conta de explicar. Aliás, por hora, somente temos de barato que ambos existem, mas não sabemos de quando datam, se um está dentro do outro, se o outro está dentro do um nem ao menos a que se atribuem essas relações. E isso não apenas quando contrastamos cada uma das opiniões – o que provavelmente revelaria as concepções distintas que procuramos – mas também por falta de clareza interna a cada uma das argumentações. E é muito provável, como procuramos recuperar, que mais uma vez isso se deva àquela incontáveis vezes referida concepção que, ao contrastar o período “clássico” do Imperialismo – grosso modo, de 1870 à Primeira Guerra – com a segunda metade do século XX, acentua suas diferenças e se apressa em apontar uma “nova fase do capitalismo” – e, portanto, do Imperialismo ou da Globalização. Mas ainda nos resta a reconstituição dos dois últimos textos presentes naquele debate que vimos comentando, que nos ajudam a pensar, por outro lado, na hipótese de

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que o imperialismo sempre foi imperialista, com ou sem o “véu da Globalização” que supostamente o encobria. O professor de filosofia da Unicamp, João Quartim de Moraes, por seu turno, em seu estilo costumeiramente direto e sem meias-palavras, dá o pontapé inicial do seu texto – A miragem global e a rearticulação imperialista – procurando desmascarar a retórica dominante no discurso globalóide. Para Quartim de Moraes, ao lado de privatização, terceirização, dolarização, desnacionalização, desestatização etc., globalização hoje constitui idéia-força no sistema das idéias dominantes, que normalmente, sobretudo em períodos de refluxo das esperanças revolucionárias como o atual, são as idéias das classes dominantes.305

Desta maneira, ao mesmo tempo em que a enquadra globalização como uma ideologia das classes dominantes, o Professor Quartim não deixa espaço para qualquer boa-vontade com os supostos benefícios da “integração” que ela representaria – tanto para seus defensores quanto para os que procuram balancear “efeitos positivos” e “efeitos negativos”. Em uma posição completamente oposta a essa, ressalta que o incontestável crescimento global do desemprego, do racismo, dos conflitos bélicos "localizados" (em todos os continentes), do obscurantismo cultural e religioso, e tantas outras misérias físicas e morais diretamente relacionadas com a epifania da "nova ordem" neoliberal, configura uma dinâmica exatamente oposta àquela para a qual aponta a doutrina da "globalização”. (…) Avançando no rumo do cosmopolitismo, a reprodução ampliada do capital (do global business, como dizem os neoliberais) engendra o desemprego crônico em larga escala, que por sua vez engendra o oposto dialético do cosmopolismo cultural, a saber, o ódio étnico e racial.

E assim, sem qualquer hesitação, pontua a relação entre “globalização” e Imperialismo de forma cristalina: tal é a perversa e potencialmente catastrófica contradição de nosso tempo. Caracterizá-lo como tempo da "globalização" implica ocultar sua essência imperialista, isto é, o aprofundamento da dominação do planeta pelos grandes conglomerados capitalistas. A "nova ordem" do capital anuncia não a superação dos velhos antagonismos, mas sua transposição para uma situação internacional caracterizada não mais pelo predomínio do confronto entre o bloco soviético e o "Ocidente" e sim pelo predomínio das grandes potências capitalistas e pelo isolamento diplomático-militar dos países socialistas, reduzidos, com exceção da imensa China, à condição de "bolsões" em defensiva estratégica. Contrariamente, porém, à fraseologia mistificadora ou, no melhor dos casos, ingenuamente otimista, que aponta para uma 305MORAES,

João Quartim de. A miragem global e a rearticulação imperialista. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, 143-145. (p. 143)

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"sociedade civil mundial" em gestação, a "nova ordem" imperialista tirou força dos Estados nacionais, enquanto suportes políticoburocráticos e instâncias de regulamentação da produção capitalista, não para instaurar um "mundo sem fronteiras" e sim para recentrar suas instâncias decisórias em grandes blocos regionais de força desigual. Ela não supera, nem muito menos suprime, os velhos antagonismos. Apenas muda a escala em que eles se articulam. 306

Portanto, as sugestões que os ideólogos e outros escribas do aparelho ideológico do capital (entre nós Roberto Campos, Delfim Netto et caterva) propõem para enfrentá-las (privatização, terceirização e outras rimas fáceis de globalização) terminam todas, exatamente, por agravar a miséria, a desigualdade e o desespero, na rima das rimas, que os dois citados conhecem bem, serviçais que foram da ditadura militar: em repressão.307

Como dizíamos. Nenhuma hesitação, nenhuma confusão. Tudo muito simples e conforme as centenárias teses sobre o imperialismo. Basta eliminar a fraseologia propagandística e se enxerga claramente, em plena década de 1990, no auge da suposta confusão entre Imperialismo e Globalização, que esta nada mais é que uma ideologia que, em nome da “eficiência”, do “mercado”, do “moderno” e do “cosmopolitismo”, na realidade, tenta cinicamente encobrir o parasitismo da reprodução ampliada do capital cujos produtos são a miséria, o desemprego, o racismo e a repressão. O texto de Quartim – salvo se creditarem a ele o papel de profeta, que teria em mente as décadas posteriores – já nos dá um bom exemplo de como, fiando-se nas convicções corretas, sempre foi possível se guiar em meio à penumbra globalóide. Mas essa clareza não era monopólio deste autor. Para alcançá-la, bastava que se fizesse algumas questões bastante simples, como podemos encontrar no mesmo número da revista (encerrando o debate) em um texto que, sob nosso ponto de vista, 20 anos depois de publicado, continua sendo de extrema valia para evitar falsas-polêmicas: Globalização ou Imperialismo?, de Paulo de Tarso P.L. Soares, professor da FEA-USP. Sua orientação consiste na importante consideração – raramente levada em conta no debate contemporâneo, geralmente em busca das últimas

306p.

144-5. Quanto à perda de poder dos Estados em favor “grandes blocos regionais de força desigual” e/ou a relação entre Estado e instâncias multilaterais, a afirmação é controversa, mesmo para aqueles que, no geral, coadunam com as perspectivas defendidas naquele artigo. Teremos a ocasião de voltar ao assunto logo menos, quando comentarmos as posições de Sakerallopoulos. 307p. 145. Aqui, temos um bom indício de como os Estados ganham poder nas últimas décadas naquilo em que eles fazem de “melhor”: a violência contra “sua” população “civil”.

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novidades – de que não basta ter corrido um tempo (no caso, cerca de cem anos) para que as categorias tenham se tornado caducas. Em seus próprios termos: as noções básicas têm uma longa tradição. A antigüidade de uma idéia, no entanto, não é suficiente para enobrecê-la. Uma idéia/teoria é nova, tem vitalidade intelectual, quando repensa processos sociais antigos ou quando, recorrendo a antigas abordagens e noções, caracteriza processos sociais emergente308.

Didaticamente, trata-se de um texto feito quase que exclusivamente na base de interrogações. Ao que vamos colocá-las em forma de tópico para uma apresentação gráfica mais simples. Acompanhemos as indagações: 

“A denominada globalização é um fenômeno novo?”



“Os trabalhos sobre a globalização constituem uma teoria nova?”



“O que está ocorrendo que já não tenha sido explicado pelos textos escritos por Hilferding, Bukharin e Lenin?”



“O que há então de novo para ser anunciado, explicado, explicitado, enfatizado, sobre o estágio atual do desenvolvimento do capitalismo que já não o tenha sido feito pelos autores marxistas acima citados?”



“Que o estágio atual de desenvolvimento do capitalismo é o estágio superior da contradição básica do capitalismo, entre o caráter social da produção e o caráter privado da associação?”



“Que o desenvolvimento do monopólio na indústria e nos bancos criou o capital financeiro?”



“Que apesar da produção mercantil continuar reinando, uma parte cada vez maior dos lucros não se origina na produção, mas nas maquinações financeiras (basta lembrar da intensidade da especulação com câmbio, juros e matérias-primas, que tanto assusta os governos nacionais)?”



“Que o desenvolvimento das forças produtivas é incompatível com as amarras impostas pela nação e daí a luta para a abertura das portas dos países para as mercadorias e os capitais provenientes dos países imperialistas?”

308SOARES,



“Que o capital financeiro exerce uma política imperial?”



“Que o imperialismo atual não é o mesmo do passado?”

Paulo de Tarso P. L.. Globalização ou imperialismo?. Crítica Marxista, São Paulo, Brasiliense, v.1, n.3, 1996, p.146-148

120



“Que os monopólios dos países maduros, auxiliados pelos seus Estados nacionais, romperam as barreiras dos demais países e construíram uma economia mundial?”



“Que a exportação de capitais predomina sobre a de mercadorias?”



“Que a exportação de capital, mediante a 'nacionalização' do capital, 'aprisiona' o país (recursos naturais, mercado e política externa) e as tarifas aduaneiras, antes de serem um instrumento de defesa da produção nacional, constituem um instrumento de defesa dos monopólios 'nacionais'?”



“Que o mesmo pode ser dito em relação aos empréstimos (às dívidas) e à tendência de se firmarem acordos de comércio?”



“Que

atualmente

predomina

a

internacionalização

das

relações

econômicas e do capital?” 

“Que a capacidade de os Estados nacionais fazerem política econômica foi enormemente reduzida?”



“Que a exportação de capital é a maneira típica de como o capitalismo se espalha pelo mundo, homogeneizando comportamentos, padrões de consumo, etc.?”

121



“Que, hoje, como nunca antes, a racionalização da produção assumiu a forma de colaboração íntima entre as ciências abstratas e a indústria?” 309



“Que a divisão internacional do trabalho se baseia cada vez menos nas diferenças naturais das condições de produção, baseando-se cada vez mais nas diferenças do desenvolvimento das forças produtivas?”



“Que está mais acirrada a competição pelo controle de fontes de matériasprimas utilizáveis atualmente ou no futuro (basta lembrar da pesquisa com os assim chamados novos materiais)?



“Que a instabilidade econômica, as crises e os confrontos entre os países imperialistas são cada vez mais frequentes e intensos?”

Permitamos ao autor concluir seu raciocínio em suas próprias palavras:

Em seu capítulo “As mutações da mundialização ou quando o capitalismo financeiro direciona o capitalismo cognitivo: desafios para a América Latina”, Marcos Costa Lima oferece um modo instigante de nos aproximarmos desse assunto na contemporaneidade, quando discute a maneira pela qual o “tecnológico” vem sendo “colonizado” pela finança mundializada por meio, principalmente, das mudanças sobre os Direitos de Propriedade Intelectual, cujas “mudanças mais radicais” se dão “no domínio das ciências da vida”. Assim, o autor procura utilizar como fio condutor de suas investigações, “a relevância da ciência e da tecnologia contemporâneas na definição [das] desigualdades e [do] processo de mundialização avançado” e, ao mesmo tempo, “como se mantém um modo de regulação [grifos do autor], de grande instabilidade, que permite, no longo prazo, a reprodução da sociedade mundial no seu conjunto.” Do ponto de vista da dinâmica interestatal, podemos, a partir da perspectiva construída por Costa Lima [por sua vez baseado, principalmente em François Chesnais], compreender como o sistema de hegemonia dos valores vai se hierarquizando desde a base até o topo, por meio de “substanciais investimentos estatais e privados na qualificação dos recursos humanos, na criação de laboratórios de pesquisa, no sistema de ensino superior e nas performances em termos de crescimento econômico, da produtividade, de um padrão de consumo e bem-estar que tem se propagado de forma acentuadamente desigual”. Nesse sistema de hierarquização de valores, a questão da finança em sua forma abstrata [e isso ressoa, como veremos, na maneira como Hilferding estabelece sua categoria fundamental: o capital financeiro] penetra em várias dimensões, compondo a visão de mundo hodierna, que [essa é uma aposta fundamental desta tese] se torna mais clara a partir da problematização das categorias essenciais dessa forma social. Para nos apropriarmos da maneira como conduz Costa Lima, deveríamos realizar um bom número de mediações as quais nos furtamos para não desviarmos ainda mais do nosso assunto principal. Mas a título de sugestão de pesquisas futuras, e porque sob nosso ponto de vista, como indicado, essa forma de abordar coaduna com um raciocínio sobre o capital financeiro que defenderemos na sequência, gostaríamos de adiantar de modo descuidadoso que, para o autor, “É a partir deste novo regime de acumulação, sob o comando do sistema financeiro, que faz as empresas refém das normas de gestão e dos níveis de rentabilidade buscados pelos acionistas – a corporate governance – que se deve analisar o lugar da técnica de pesquisa, do progresso técnico, da educação, da circulação de informações, dos sistemas de inovação, da aprendizagem organizacional e da gerência estratégica das organizações, bem como a orientação do consumo para a técnica. (...) Essa hegemonia do regime de acumulação à dominância financeira tem permeado a pesquisa científica e tecnológica, pela implantação de uma pontuação do trabalho dos cientistas, pela multiplicação de formas de concorrência pessoal e de ‘financeirização’ das recompensas no interior dos laboratórios públicos e privados, bem como nas redes cooperativas, criando rivalidades que só amesquinham o conteúdo e a qualidade do avanço da ciência”. Em síntese, afora a controvertida idéia de “regime de acumulação”, pontua de forma clara o que de fato é o decisivo: a forma abstrata do capital financeiro se infiltra em diversas dimensões da vida, o que, afinal, confere a legitimidade de que precisa gozar enquanto relação social dominante. Publicado em COSTA LIMA, Marcos (org.) 309

122

As respostas a essa lista de perguntas, evidentemente incompleta, até mesmo pela limitação de espaço, claramente são negativas. Não existe fenômeno novo nem teoria nova que acrescente algo de substantivo ao conhecimento estabelecido. Descrições atualizadas não consistem fatos novos ou teorias novas [grifo nosso]. O uso da 'teoria' da globalização para fazer a crítica ao capitalismo é redundante, desnecessário e, mesmo, plágio (...). A inegável popularidade da globalização entre os críticos (com diferentes matizes) do capitalismo é explicada, em parte, pelo desconhecimento absoluto sobre o que foi escrito anteriormente ou pela leitura superficial desses escritos, fruto da falta de treino escolar e/ou do impedimento ideológico.

E fazendo coro com o professor Quartim, Paulo de Tarso Soares finaliza dizendo que

123

a globalização, no entanto, quando usada para fazer o elogio da modernidade, é uma teoria nova. Não por ser o imperialismo revisitado e melhorado, mas pela tentativa de distorcer e/ou negar as teses leninistas e bukharinistas [grifo nosso]. A fase superior do desenvolvimento da contradição básica, nessa nova perspectiva, transforma-se na melhor fase do desenvolvimento (sem contradição) do capitalismo. A fase da decomposição e parasitismo e, portanto, a proximidade do esgotamento do capitalismo, transforma-se na fase de maior eficiência produtiva e na eternização desse modo de produção. O que serve para mostrar o aumento da opressão nacional passa a servir como indicador da melhoria das condições de vida dos povos. O instrumental teórico desenvolvido para a crítica é distorcido e usado para o elogio. A ênfase na globalização, sua enorme divulgação e popularidade, explica-se, também, pela necessidade política de negar validade teórica a textos escritos, no começo do século, por expoentes marxistas. Numa fase em que, pela ENÉSIMA vez, tenta-se destruir a validade do marxismo, tenta-se negar a existência da luta de classes e proclamar a superioridade da teoria burguesa, é imprescindível, para alguns negar o caráter científico, a validade teórica e a atualidade dos textos marxistas clássicos sobre a etapa superior do desenvolvimento da contradição básica do capitalismo, a contradição entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação. Com a vulgarização que é conhecida como "marxismo" (ressaltem-se as aspas), a ponto de alguns acreditarem que a microeletrônica, a produção flexível, a derrocada da URSS e a queda do muro de Berlim são provas da superação do marxismo, é compreensível que a 'globalização' seja vista como novidade e encontre tantos adeptos. É urgente, portanto, não perder de vista o sentido da recomendação de Lukács: 'A função do marxismo ortodoxo – superação do revisionismo e do utopismo – não é a liquidação, de uma vez por todas, de falsas tendências, mas sim uma luta incessantemente renovada contra a influência corruptora de formas de pensamento burguês sobre o pensamento do proletariado. Esta ortodoxia não é guardiã de tradições, mas a sentinela avançada e anunciadora da relação entre o momento presente e suas tarefas com referência à totalidade do processo histórico.' É urgente retomar as leituras e divulgar os textos de Lenin e Bukharin sobre a etapa imperialista do capitalismo.

Não faremos emendas pontuais no texto, embora precisássemos de uma ou outra – a inclusão de determinados autores e uma autora no time dos clássicos; algo contra uma suposta autonomia dos Estados nacionais. Mas qualquer retoque a essa altura implicaria alterações demasiadamente técnicas para serem feitas nesse momento. Nossas discordâncias aparecerão ao longo do texto. Por hora preferimos nos valer do impacto retórico do artigo. Concordamos integralmente que no debate contemporâneo não surgiram novas teorias que acrescentem algo de substantivo ao conhecimento sobre o Imperialismo, ainda que contemos com várias “descrições atualizadas” – como de se esperar, umas melhores que outras. E teremos a ocasião de examinar de perto aquelas

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problematizações que, se não trazem algo de substantivamente novo, ao menos ilustram passagens importantes do debate “antigo” que nem sempre se fazem evidentes, mesmo nas melhores descrições. Com certeza, nem sempre o mais “recente” é o mais “atual”. Mas há uma questão que precisamos resgatar, para dar seguimento à nossa própria investigação acerca do debate sobre a categoria Imperialismo e, para tanto, não podemos deixar de anotar nossa discordância com a idéia de que a popularidade da categoria globalização se deve “ao desconhecimento absoluto sobre o que foi escrito anteriormente ou pela leitura superficial desses escritos, fruto da falta de treino escolar e/ou do impedimento ideológico”. Essa idéia não nos acrescenta nada ao problema que nos interessa mais particularmente: o que aconteceu, durante o curso do século XX, que sustentou como se fossem verdadeiras as interpretações segundo as quais o conceito Imperialismo teria deixado de explicar as relações que anteriormente explicava? Sobre nosso ponto de vista, isso tem muito a ver com a maneira como o modo de produção capitalista se arranjou ao longo do século XX. Precisamos, para denunciar essa amarração, que entender como determinadas configurações que são imperialistas, foram vistas como se não o fossem. Sobre este ponto, que voltará à tona várias vezes, voltaremos a conversar na sequência. Por hora cumpre que apresentemos, num registro contemporâneo, uma contundente refutação à idéia de que a globalização pode ser considerada qualquer coisa senão uma “ideologia das classes dominantes”. 4.3 Sobre a periodização de diferentes momentos do Imperialismo Capitalista Noutro período, e falando sobre outros autores, o marxista grego Spyros Sakellaropoulos argumenta de modo não muito diferente daquele defendido anteriormente por Quartim de Moraes, com a ressalva que já fizemos acerca do papel dos Estados nacionais. Para ele, o principal problema com todas essas posições é a aceitação, ou, melhor dizendo, a não-rejeição, do termo ‘globalização’. De acordo com esses marxistas, ambos imperialismo e globalização são conceitos legítimos. Globalização pode, até mesmo, ser uma nova forma de imperialismo. Ou um elemento inerente ao imperialismo. Ou algo paralelo ao imperialismo. Ninguém contesta a utilidade do termo. 310

Mais uma vez, notamos a importância da percepção sobre o retorno do debate, quando Sakellaropoulos defende que “é sem dúvida um sinal de esperança que nos

310P.

59

125

últimos anos a crítica do imperialismo tenha passado por uma reaparição teórica e não simplesmente tido como antiquado”311. Mas, ao mesmo tempo, Sakellaropoulos critica a forma como isso vem sendo feito, porque, em sua concepção, “um genuíno renascimento da crítica do imperialismo exige a negação teórica da própria noção de globalização”312. Com efeito, novamente como para Quartim, para ele essa nem ao menos deve ser considerada um conceito teórico, mas uma mera visão ideológica, uma vez que não existe capital global, nem bloco de poder global, nem proletariado global e “assim, não existe globalização, no sentido estrito de um uniforme sistema de relações sociais”313. Não obstante – e aí reside a importância que dedica a criticar os (des) usos do termo – o próprio fato de se aceitar essa existência senão enquanto ideologia, para ele, já próxima as análises que assim procedem do – este sim, um conceito – ultraimperialismo como exposto por Kautsky (e que, segundo ele, deve ser novamente combatido) 314. A maneira como Sakellaropoulos encadeia sua argumentação é bastante sólida – a partir de certo esquematismo um tanto aborrecido, é verdade, mas consistente – procurando as raízes do Imperialismo nas categorias modo de produção, formação social e modo de produção capitalista, a partir das quais empreende uma investigação cujos “princípios orientadores devem ser o desenvolvimento do sistema capitalista, com a insistência da pertinência do imperialismo e a exposição das fraquezas do conceito de globalização.” 315 Sua conclusão é a de que ao nível teórico, tudo o que foi dito em relação aos conceitos de modo de produção, formação social, constituição das classes sociais, papel do Estado no capitalismo e a criação da cadeia imperialista [imperialist chain] nos ajuda a entender porque imperialismo e globalização não podem coexistir em um modelo teórico coerente. (...) É verdade que o capital, como tal, é governado pela acumulação interminável e ilimitada, e, como tal, não conhece fronteiras. Mas isso é apenas o capital na sua 311p.

59 59 313O autor toma essa como a única possibilidade de conceito de globalização, o que não nos parece preciso. Muitxs outrxs autorxs discutiram sobre esse termo noutros moldes, mas não nos interessa aqui resgatar essa discussão. Afora essa imprecisão, pensamos que a crítica de Sakellaropoulos poderia, com as adaptações necessárias, ser mantida. Preferimos então acompanhar seu raciocínio. cf: p. 60 314Sobre essa polêmica, que trataremos no próximo item, deixemos anotada a posição de Sakellaropoulos, a título de registro: “A questão é que toda a retórica da globalização aparece para excluir a possibilidade de novas guerras entre os Estados imperialistas centrais [key imperialist states], dado que as forças do mercado, acima e além dos Estados, estão comandando o processo da globalização. Mas esse tipo de possibilidade não pode ser excluído. Mesmo se empiricamente, desde a Segunda Guerra Mundial, não tenha havido nenhum caso de guerra interimperialista, o elemento básico que deve ser retido da dinâmica da cadeia imperialista [imperialist chain] é o antagonismo entre formações nacionais com o potencial de encontrar expressão por meio de guerras.” P. 74 315P. 60. 312p.

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forma de valor auto-valorizado [self-valorized value] mais simples e abstrata. A noção de modo de produção capitalista é uma muito mais complexa abstração teórica da economia, da política e das práticas, estruturas e instituições ideológicas que torna possível a reprodução das relações sociais capitalistas. A reprodução das relações socialprodutivas capitalistas exige a emergência do modo de produção capitalista e sua reprodução em formações sociais específicas. O Estadonação foi a forma política concreta que se demonstrou a mais efetiva em contraste com outras que também foram experimentadas, como a corporação colonial (por exemplo, a Companhia Holandesa das Índias Orientais e a Companhia Inglesa das Índias Orientais), o império, o império colonial, as cidades-estado e a rede de cidades comerciais.316

Até aí, conforme indicamos, não há grandes novidades, e o debate é suficientemente conhecido para que possamos deixá-lo para um momento mais oportuno. O que nos interessa particularmente aqui é a maneira como o autor apresenta uma “periodização alternativa” para tentar escapar desse problema. Mais do que isso, queremos delimitar a visão de mundo que sustenta as bases dessa “nova” construção e o que ela nos ilumina sobre pontos negligenciados do debate “clássico” sobre o Imperialismo, Como já indicamos anteriormente, nos parece que grande parte da dificuldade na compreensão do Imperialismo ao longo do século XX se deve a certo assombro quando analisados os diferentes momentos dentro da estrutura temporal do Imperialismo (cujo movimento completo estamos sugerindo que possa ser estabelecido como o período que vai de, aproximadamente 1870 aos nossos dias). Por vezes, a depender de como se observam, os diferentes momentos dentro dessa estrutura temporal (conjunturas) podem parecer antagônicos. É contra essa visão que Sakellaropoulos se levanta. O argumento que defende neste referido texto, diante da negativa da possibilidade de incorporar a idéia de globalização, é o de que “o quadro social desde a era de Lenin não mudou no que tange a como seus elementos fundamentais são concebidos. E isso não quer dizer que não houve mudanças desde então. O capitalismo de hoje não é o mesmo que ele era na revolução industrial”317. Já dissemos desde o princípio que concordamos com ambos os pontos. Para nós, pautados em uma perspectiva que ressalta a importância de entendermos a multiplicidades concomitantes dos tempos, essa afirmação implica que enfrentemos o desafio de entendermos em que medida estamos dentro de um mesmo intervalo temporal iniciado por volta do final do século XIX o qual 316p.

73 Aqui, lendo versões preliminares deste trecho, Lucas Salvador Andrietta nos sugere https://www.youtube.com/watch?v=PJnM03vBM_E. 317P. 60.

127

chamamos de Imperialismo, mesmo tendo em vista as diferenças óbvias entre aquele mundo e o nosso. Ainda sob nosso ponto de vista, quando dizemos que estamos num mesmo intervalo, também podemos afirmar que, quaisquer que sejam as subfases estabelecidas

analiticamente,

elas

necessariamente

comungam

das

mesmas

características fundamentais que – aos nossos olhos, de observadores retrospectivos – conferem um sentido de unidade a um conjunto de mudanças. Do contrário, não poderíamos falar de um mesmo critério de unidade de periodização como, por exemplo, o modo de produção capitalista. Mas ainda não enfrentamos um problema importante: existem subperíodos do Imperialismo? Ainda não temos elementos para responder a essa importante questão, mas ressaltamos que, para que seja possível afirmar que podemos identificar subperíodos, cumpriria que conseguíssemos delimitar, em cada um deles, o que eles mantêm de igualdade (que seria o responsável por que continuássemos os caracterizando como parte do grande período) e também em quê um diferencia do outro. Emprestando o raciocínio formal da Matemática, poderíamos recorrer à Teoria dos Conjuntos. Nesta analogia, o Imperialismo (de 1870 aos nossos dias) seria composto de unidades menores (a serem definidas), pelo menos em alguma medida, discerníveis umas das outras. Os elementos comuns a cada um desses momentos seriam os responsáveis pelo fato de poderem ser classificados como partes do conjunto maior. Assim, também poderíamos pensar a multiplicidade dos tempos em termos de “sobreposição”, interseção” e “união”, por exemplo. Com efeito, conforme teremos a ocasião de argumentar de modo mais cuidadoso, mas já adiantamos, o estabelecimento da periodização é um artifício lógico, ou seja analítico. O tempo não existe por ele mesmo. O que existe são unidades de medida e percepções sobre o tempo. No que toca à periodização, o importante é estabelecer o critério de análise, muito mais do que identificar precisamente quando e onde os períodos iniciam ou terminam. Do nosso ponto de vista, diferentemente daquele exposto por Sakellaropoulos, as “fases” não devem ser entendidas como uma divisão precisa e sequencial do tempo318.

318Como

dissemos, teremos a ocasião de conversar sobre isso mais de perto mais à frente. Por hora, aproveitamos para sugerir a excelente discussão do historiador britânico Edward Palmer Thompson sobre Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial, que ilustra de um modo muito convincente como as percepções sobre o tempo e suas medições foram impostas como mecanismo de controle do trabalho em um mundo em industrialização.

128

Formalmente, essa parece ser a saída de Sakellaropoulos, para quem, citando Poulantzas, ao nível da formação social, o modo de produção pode ser dividido em estágios [stages], que, ao seu turno, são similarmente divisíveis em fases [phases]. A noção de “estágio”, implica formas mais estruturais e um nível mais elevado de abstração. “Fase” denota formas e características dentro dos “estágios” e consequentemente um nível inferior de abstração. Existem também conjunturas de transição entre estágios e entre fases.319

Para ele, “algumas mutações notáveis ocorreram ao longo do último século, de modo que é possível que falemos de duas fases dentro do [mesmo] estágio imperialista/monopolista”320. Mas o que caracterizariam essas duas fases? A primeira, seria definida pela “reprodução ampliada do imperialismo” e a segunda pelos “esforços para sair da crise”321. O argumento não é muito claro de como se deu anteriormente, mas ao que parece, subscreve integralmente as teses de Lenin sem se ocupar muito dessa primeira fase. Desta maneira, para Sakellaropoulos, a primeira fase, a da Reprodução Ampliada do Imperialismo,

P. 61 60. 321P. 66. 319

320P.

129

diz respeito a um período de tempo que começou com o final da Primeira Guerra Mundial, e completou-se com a deflagração da crise de sobre-acumulação em 1973. Ao nível da produção, foram criadas unidades de produção de massa, manufaturando commodities que podem ser estocadas por extensos períodos de tempo. Este procedimento é caracterizado pela contratação de trabalhadores bempagos e semi-qualificados, pela sistematização dos processos de exploração da experiência e das habilidades dos produtores diretos, pela codificação [codification] desses produtores diretos pelos staffs científico e gerencial e pela fragmentação do processo de produção em tarefas simples e padronizadas, como as que requerem um nível de qualificação e experiência menores e que podem ser quantificados em termos de ritmo de trabalho e em tempos de quantidade de trabalho produzido. Ao mesmo tempo, a verticalização da produção criou a necessidade de aumentar o controle do estrato gerencial e assim aumentou a burocratização das formas organizacionais. Tudo isso ocorreu em um cenário marcado pelas incessantes tendências à concentração e centralização do capital e a internacionalização da economia em todos os níveis (investimentos, commodities e capitaldinheiro [money-capital]. O papel do Estado na esfera econômica aumentou, e ele assumiu para si partes cruciais dos processos de produção e reprodução.322

É digno de nota que o autor nem chega a questionar se essa fase é ou não imperialista, nem incorre em idealizações ingênuas sobre as supostas “virtudes” desse período, o que já o diferencia de uma porção de gentes que consideram que esse momento contrasta com o Imperialismo. Teremos a ocasião de voltar a esse assunto, mas por hora acompanhemos Sakellaropoulos na sua descrição da segunda fase, na qual segundo ele, “surgiram todos [grifo nosso] os novos fenômenos (reestruturação capitalista, pós-fordismo, reforço do capital financeiro, criação de novas organizações intergovernamentais etc.)” que geralmente são identificados por quem defende a idéia de globalização. Dada a insistência do nosso autor com a questão, e a enorme confusão que explicitamos anteriormente entre os dois termos, não custa enfatizarmos, com ele, que essa nova “fase” nada mais é do que “um sub-período do imperialismo”.323 Mas vejamos o que mais ele nos diz sobre essa “segunda fase”, a “fase do Esforço para Sair da Crise” e as três estratégias que para ele vigiram durante o período. Segundo ele,

322P.

67

323Sakellaropoulos

prossegue: “Assim, o que vem sendo testemunhado ao longo das últimas décadas não é a emergência de um novo modo de produção ou a transição para um novo estágio do capitalismo, mas simplesmente imperialismo em sua fase moderna.” Dado o enquadramento do autor, declarada e assumidamente leninista, esta afirmação não nos parece fazer sentido quando lembramos que para aquele Lenin o próprio imperialismo é um “estágio” transitório para outro modo de produção, o socialismo. Na obsessão por marcar a posição de que essa “nova fase” não é ainda outra coisa senão o mesmo imperialismo, nosso autor parece cair no erro oposto: eternizar este Imperialismo. cf: P. 61

130

a deflagração da crise em 1973 assinalou a transição para uma nova fase do estágio monopolista/capitalista, que ainda não se completou até o presente momento[324]. Seu elemento básico é o esforço para criar mecanismos para refrear a tendência da queda da taxa de lucro e para encontrar uma solução para a crise de sobre-acumulação. A estratégia inicial adotada para por fim à crise de 1973 envolveu a aplicação de políticas contra-cíclicas, com o Estado assumindo o controle de empresas com baixas taxas de lucro e a continuidade das políticas de redistribuição. A segunda crise do petróleo de 1979 iria revelar os limites dessa política. Contra o pano de fundo do declínio das lutas populares ao longo da década de 1970, as classes dirigentes capitalistas foram obrigadas a reajustar suas políticas de saída para a crise. A política que seria escolhida foi chamada por muitos de “neoliberalismo”, “thatcherismo” ou “reaganismo”. Seu elemento básico foi a desembaraçada implementação de políticas de “racionalização”: rejeição dos capitais que apresentavam baixos níveis de lucratividade, aumento do desemprego de modo que este poderia funcionar como um meio de segurar a queda dos custos do trabalho e disciplinar a classe trabalhadora, redistribuição de renda em favor do capital, limitação dos direitos trabalhistas, retorno ao capital privado [privatização] ou fechamento de todas as empresas das quais o Estado tinha assumido o controle. (...) Durante os anos 1980, uma nova estratégia foi adotada, ainda nos quadros da mesma fase do estágio monopolista/imperialista, com o objetivo de superar a crise de sobre-acumulação por meio de uma série de transformações muito importantes, não apenas na economia, mas também nos níveis político e ideológico. Foi uma estratégia para a reestruturação capitalista, que julgamos irá continuar até que as taxas de lucro retornem aos níveis anteriores.325

As consequências dessa estratégia são amplamente conhecidas e incluem – no elenco de Sakellaropoulos – a austeridade; a flexibilização dos processos e as mudanças na organização do trabalho; mudanças do nível de educação e habilidades exigidas, tanto quanto os constantes programas de requalificação, de modo que as constantes mudanças tecnológicas possam ser monitoradas; incorporação das metas da empresa entre os trabalhadores; intensificação do autoritarismo no local de trabalho; piora das condições de negociação coletivas; derrotas [defeat] dos movimentos sindicais; regime de crescente desemprego e generalização dos trabalhos de meio-período; para não falarmos do nível ideológico, em que a identidade coletiva (de trabalhadores, estudantes ou membros de partidos políticos) para um modo individualista de entendimento da realidade, na qual o indivíduo passa a se enxergar como um consumidor individual,

324O

texto é de 2009, mas podemos inferir que para o autor as coisas não de modificaram drasticamente desde então não obstante, sob nosso ponto de vista, já em 2009 os sinais do desmoronamento já estivessem visíveis e as fissuras tenham aumentado muito de lá pra cá. 325P. 68

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favorecendo a aceitação de valores como a tecnocracia e a competitividade/meritocracia [competitiveness]326. Em nossos termos, para os argumentos que virão mais à frente, poderíamos acrescentar que essas mudanças podem ser sintetizadas no fato de que as pessoas passam cada vez mais a enxergar a si próprias e às outras à partir da ideologia do “econômico”, aprofundando ainda mais a penetração da mercadoria enquanto relação social predominante e abrindo espaço ainda maior para a idéia de eficiência econômica – provavelmente um dos elementos ideológicos mais importantes deste período. Assim, neste momento, ganham destaque slogans como “investir na carreira”, “investir no futuro”, “investir nos filhos” e “investir nos relacionamentos”. Mas isso não pode ofuscar o fato de que esse aprofundamento não seria possível caso essas pessoas não estivessem previamente imersas nos circuitos e na ideologia do capital. O que queremos insistir aqui, é que esse aprofundamento, sem dúvida importante – importante tanto para a luta anti-imperialista quanto para o entendimento sobre a periodização que vimos tentando esboçar – acaba, por muitas vezes, deslocando o eixo das análises de modo que o período anterior não assuma o destaque que merece. Sob nosso ponto de vista, considerando que estamos procurando entender o Imperialismo Capitalista como o período de expansão da mercadoria enquanto relação social predominante e, portanto, do aumento da submissão das pessoas à relação social usualmente chamada de capital, o período decisivo é a implementação desse circuito de dependência, no qual as pessoas foram englobadas originariamente. Nesse sentido, o aprofundamento não deve causar espanto, ou ser visto como a questão a ser combatida, como se antes fosse bom. Esse aprofundamento era esperado desde que a máquina estivesse em funcionamento. As lutas, nesse contexto, enquanto não obtiverem a superação completa da relação dominante, não podem ser senão momentos precários de conquista, de contra tendência. Isso não quer dizer que elas não sejam importantes. O que isso quer dizer é que é preciso ir além – tanto do ponto de vista do combate quanto da crítica. Do ponto de vista do combate, é preciso que as pessoas encontrem meios de refundar as relações sociais de um modo radicalmente diferente da relação social do capital – afinal, é disso que se trata abolir o capitalismo. Do ponto de vista teórico, é preciso entender que, tomado o saldo do período (desde 1870 até os nossos dias), o momento de implementação dessa relação social predominante, geralmente associada aos processos 326cf:

p. 69 e 70.

132

de ressignificação (em termos agora capitalistas) da divisão social do trabalho, da urbanização, do assalariamento e da constituição da sociedade de consumos de massa é “tão imperialista quanto” os períodos em que se formaram as “indústrias de base” e as obras de infraestrutura, ou a “financeirização”. A questão sobre o conjunto, é que é neste período (todo) que os seres humanos se tornaram (mais) submissos ao capital. Aqui, a crítica [no sentido forte, que evidentemente tem na prática a questão principal] precisa ser resolutamente radical e não há espaços para idealizações sobre a fase de “reprodução ampliada”. Quanto ao nosso autor, ainda nos cumpre examinar suas idéias um pouco mais de perto, na expectativa de que elas nos revelem pontos que ainda precisam ser levados em consideração quando procurarmos apresentar nossas conclusões sobre a tarefa de periodização do Imperialismo Capitalista. É importante que insistamos em destacar o fato de que, diferentemente de muitas outras pessoas que analisam esse conjunto de mudanças, Sakellaropoulos não idealiza a sociedade da primeira “fase”. Como dissemos, para ele, o período em questão, tomado em seu conjunto, é um contínuo aprofundamento das cadeias imperialistas. Até aqui concordamos. Entretanto – e aqui começamos a explicitar a visão de mundo que pretendemos desvelar – a idéia de decadência ainda parece fazer parte da sua forma de enxergar as questões, extremamente fundamentada no binômio expansão e crise. Assim, sua descrição, afora as advertências, ainda não consegue superar completamente o senso comum segundo o qual havia um caráter “civilizatório” no modo de produção capitalista em sua fase de expansão, conforme fica visível na sua descrição da piora das condições de trabalho – como se as condições de trabalho naquela sociedade da “expansão do Imperialismo” fossem boas. Do nosso ponto de vista, que objetiva a abolição do modo de produção capitalista, elas não podem ser sequer aceitáveis327. Avançando o argumento, queremos tentar demonstrar como a maneira pela qual Sakellaropoulos encadeia sua argumentação nos revela dois pontos absolutamente cruciais, que serão imprescindíveis para nossa argumentação posterior. Nos termos em que iremos resgatá-las à frente: o capital financeiro e a reprodução social total, que sob nosso ponto de vista, podem conferir aquela desejada unidade entre o período do Imperialismo Capitalista que vínhamos desejando circunscrever desde o início, e da qual 327Como

disse o genial humorista Bob Black em Palavras de Poder: “PLENO EMPREGO? Uma ameaça, não uma promessa.” Groucho-Marxismo, [tradução de Michele de Aguiar Vartulli]. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006. Coleção Baderna. Página 14. A propósito: “CIVILIZAÇÃO? A doença da biosfera.” P. 13.

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o modo de pensar de Sakellaropoulos convenientemente nos aproximou. Não iremos ainda, para que possamos ter coerência em nosso roteiro, desenvolver aqui esses pontos a contento. Nosso objetivo por hora é demonstrar como o argumento de Sakellaropoulos, afora seus muitos méritos, nos revelam as insuficiências da maneira como as “teorias clássicas do imperialismo” são usualmente lidas. Para que não fiquemos em termos puramente formais, indicamos: a ausência da discussão pormenorizada das duas categorias que enunciamos, desenvolvidas respectivamente por Rudolf Hilferding e Rosa Luxemburg. Sob nosso ponto de vista, a periodização de Sakellaropoulos – cumpre anotarmos: coerentemente – só é possível a partir de uma determinada perspectiva sobre o que define o modo de produção capitalista que se caracteriza por dois elementos fundamentais: o industrialismo e o etnocentrismo. É assim, e não de outro modo, que se explica a interpretação segundo a qual a fase final do século XX pode ser apresentada como uma crise do modo de produção capitalista – e não uma expansão ainda mais violenta. Quanto ao industrialismo, predominante entre as críticas marxistas, consiste na crença de que a transformação industrial (e correlatamente, a mão-de-obra assalariada) seria uma relação fundamental para a definição do capitalismo, ou, noutras palavras, seria especificamente capitalista. Nunca é demais lembrar: o capitalista é um modo de produção orientado para a valorização da riqueza abstrata. Como Rosa Luxemburg demonstra pacientemente ao longo de cansativas páginas sobre os esquemas de reprodução, os capitalistas não produzem por “amor à produção”, mas por “amor ao lucro” – em sua forma abstrata. Não se pode confundir a forma como o modo de produção capitalista se constituiu historicamente – na qual a indústria e o assalariamento foram duas questões fundamentais – com uma espécie de “dever-ser” do capital, ou como essas fossem, não sua forma histórico-concreta situada no tempo, mas sua forma única. Por outro lado, o fato de que a esfera “financeira” (ou a “fictícia”, ou como queiram) tenha crescido a uma taxa muito maior do que o setor dito produtivo, não prova outra coisa que não a potência do capital financeiro em sua capacidade praticamente infinita de modificar sua forma de valorização concreta e abstratamente. A “esfera financeira” crescer mais que a “esfera produtiva” num mesmo período de tempo não significa que a “esfera financeira” cresceu mais às expensas da “esfera produtiva”, mas meramente que elas são concomitantes, e que, durante o desenvolvimento do modo

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de produção capitalista – porque ele é orientado para a acumulação de riqueza abstrata – isso é absolutamente o esperado. Se analisarmos as estratégias das grandes corporações monopolistas, isso se torna ainda mais visível. Ao mesmo tempo em que o setor da gestão financeira ganha importância fundamental, a mundialização seletiva da produção se pauta em importantes decisões estratégicas de global sourcing, levando em consideração aspectos da localidade como a oferta de recursos, mercado, acesso, capacitação e docilidade da população trabalhadora, entre outras. Assim, as grandes corporações capitalistas precisam necessariamente lidar com as diferenças das sociedades e de seus respectivos

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aparelhos de repressão (Estados) que estão em constante disputa para ver quem oferece ao seu par perfeito (o Capital) as melhores condições de reprodução.328 Sendo assim, nos parece uma distorção analítica considerar que o capital “foge” da produção para as formas mais “financeiras” de valorização quando as taxas de lucro caem – o que é apenas uma das possibilidades de interpretação da famigerada lei da tendência da queda da taxa de lucro329. O que a racionalidade capitalista impõe, em 328Um

exemplo atual da importância da questão da logística e a disputa entre os Estados para oferecerem excelentes condições de exploração para o capital é a concorrência em torno das vias de transporte marítimo na América Latina, intensificado ante a necessidade de ampliação do Canal do Panamá: “Atualmente, cerca de 50% dos navios porta-contêineres em operação ou encomendados no mundo são grandes demais para atravessar suas comportas. Os navios Panamax, historicamente projetados para cruzar o canal, são hoje quase apenas lambaris. (...) Interessados em defender seu status como uma das grandes vias do comércio mundial, os panamenhos decidiram ampliar o canal em um referendo nacional realizado quase sete anos atrás. Esse projeto, envolvendo investimentos de US$ 5,25 bilhões, está atrasado quase seis meses em relação ao cronograma original, mas quando a obra for terminada, em meados de 2015, o canal ampliado deverá transformar algumas das rotas comerciais mais importantes entre o Atlântico e o Pacífico. Empresas de logística, como ferrovias, tentam avaliar se a expansão irá, em última instância, aumentar substancialmente os embarques diretos para o leste dos EUA. (...) Numa tendência algo cruel para o Panamá, as dimensões dos navios estão mais uma vez ultrapassando as dimensões acomodadas pelo canal enquanto o próprio trabalho avança. A Maersk Line, operadora da maior frota de contêineres do mundo, tem 20 novos navios encomendados que são tão enormes que não conseguirão cruzar nem a hidrovia alargada. (...) Apesar disso, o Panamá não será capaz de explorar sem concorrentes essas mudanças nos fluxos comerciais. A Assembleia Nacional da Nicarágua, dominada pela esquerdista frente sandinista, deu sinal verde a uma proposta de investir US$ 40 bilhões para que a HKND, uma empresa chinesa pouco conhecida, abra um concorrente ao canal do Panamá. Muitos já duvidam da viabilidade econômica de um projeto com percurso três vezes mais longo do que os 80 km da hidrovia panamenha. Sem querer ficar para trás, Guatemala e Honduras já anunciaram projetos de "pontes terrestres" entre o Atlântico e o Pacífico. Há também especulação no México sobre um investimento chinês numa conexão pelo istmo de Tehuantepec.” Como não poderia ser diferente, os capitalistas aprovam. “Empresas de transporte de contêineres, como a Maersk, com cerca de 15% de participação de mercado na América Latina, vêm tais projetos com mente aberta. ‘Para mim, qualquer investimento em infraestrutura que facilite o comércio entre os clientes é bem-vindo’, diz Robbert van Trooijen, executivochefe da Maersk Line para a América Latina e Caribe. (...) Provavelmente haverá intensa competição entre os candidatos a tornarem-se centros de irradiação logística. Neil Davidson, um analista de portos na Drewry Shipping Consultants, salienta que, no lado do Caribe, os portos de Caucedo, na República Dominicana, e Freeport, nas Bahamas, já têm profundidade suficiente. Obras de dragagem também estão em andamento em Kingston, Jamaica, embora tenha havido longas conversações sobre um centro de irradiação logístico potencial em Cuba. No lado do Pacífico, os portos mexicanos de Lázaro Cárdenas e de Manzanillo provavelmente demandarão algum trabalho de transbordo.” Entretanto, “os panamenhos estão confiantes que os concorrentes regionais não absorverão muito de seus lucros. ‘Não consideramos que haverá nenhum tipo de concorrência’, disse Fernando Núñez Fábrega, ministro das Relações Exteriores do Panamá, ao ‘Financial Times’ no mês passado, quando indagado sobre o concorrente nicaraguense. Para ele, se todos que desejam construir um canal fizerem isso, ‘a América Central acabaria ficando como um queijo suíço’”. A nós, cabe a pergunta: alguém duvida que a competição imperialista [Estados e Capital, como sempre] pode vir a transformar a América Central em um queijo suíço? Para a notícia completa, visitar http://www.valor.com.br/internacional/3252856/ampliado-canal-do-panamapretende-redesenhar-comercio#ixzz2fTdP85EN. Devemos a indicação do exemplo ao nosso querido colega Henrique Braga. 329Essa visão se manifesta na conclusão do texto de Sakellaropoulos, quando depois de longo raciocínio, no qual dedica boa parte do texto ao estudo das raízes das categoriais mais fundamentais do modo de produção, afirma que “em contraste com as visões que postulam a globalização incontrolada dos mercados financeiros ou a queda da posição dos EUA, o fato é que a queda da lucratividade do setor industrial traz o capital para dentro da esfera financeira sob a hegemonia do Estado e da burguesia estadunidenses.” P. 75

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quaisquer circunstâncias, como sabe muito bem qualquer um dos “economistas vulgares” – como se dizia antigamente – é alocar seu capital onde ele for mais lucrativo – desde que essa seja, aí sim, uma possibilidade concreta para ele330. Assim, o capitalista – especialmente, como sugerimos e teremos a ocasião de demonstrar, depois da configuração do capital financeiro [fusão das formas parciais que possibilita efetivamente a indiferenciação entre as formas de valorização] – não tem também qualquer amor pelo seu “setor”. Do contrário, alocará sempre o seu capital onde este for mais lucrativo – o que, a rigor, implica no fato de que a própria idéia de “industrialista” seja um completo anacronismo. Ainda que seja eminentemente verdadeiro o raciocínio segundo o qual em momentos de “crise” o capital recorra às formas mais “seguras”, também é verdade que esse raciocínio não inclui a questão mais importante de todo o processo do capital durante o Imperialismo: a incessante expansão (em extensão e profundidade) do modo de produção como um todo. E aqui cruzamos com aquele etnocentrismo que havíamos denunciado, porque, quando observada a reprodução social total do modo de produção capitalista – e não apenas o modo de produção nos países avançados e nas regiões de “desenvolvimento tardio” – é impossível pensar que o capital “fugiu” da produção. Com efeito, se analisarmos a partir da perspectiva de determinadas regiões de determinados países asiáticos (Japão, Coréia do Sul, China etc.) a hipótese da crise do modo de produção capitalista (ou, mesmo do setor produtivo) nos parece difícil de ser defendida. O que, aliás, é simplesmente observável se examinarmos a quantidade absurda de quinquilharias industrializadas que simplesmente não existiam antes de, para simplificarmos, 1970, quando supostamente o capital teria fugido da produção. Do contrário, se tomarmos isso em consideração, veremos que podemos explicar o que aconteceu como a expansão do modo de produção capitalista como um todo (indústrias inclusas), transformando relações muitas vezes milenares e englobando sociedades 330Aqui

ganha importância um conjunto de questões sobre as decisões de “investimento/inversão”. Primeiro, porque nem sempre o “investimento” é possível, porque podem haver “barreiras” impeditivas como ausência de informação, impedimentos legais ou tecnológicos, falta de infraestrutura mínima etc. Por outro lado, entre os homens de negócio existe, é claro, uma certa ponderação entre lucratividade e risco/segurança. É evidente que, caso o setor mais lucrativo seja muito arriscado, os grandes capitalistas não alocarão ali todo o seu capital, mas procurarão, como também o faz todo bom caipira, distribuir seus ovos em várias cestas. Assim, diante das dificuldades, existem alguns imperativos de que alguém faça o “trabalho pesado” – e “sujo” – em nome do funcionamento do “sistema”. Essa é uma das funções históricas do Estado: garantir as condições básicas coletivas necessárias para a reprodução capitalista, que por sua vez exigem a expansão constante das bases de reprodução do capital. Mas aqui nos adiantamos. Deixemos essas explicações para mais tarde e voltemos ao ponto.

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inteiras na esfera da reprodução do capital. O que aparece para um europeu (ou estadunidense, ou latino-americano, dependendo da região) como crise, se considerarmos do ponto de vista das sociedades até então não-capitalistas (é impossível não ter a imensa população chinesa em mente) é o ingresso no modo de produção capitalista e somente alguém não de todo convencido da importância de se combater o nefasto modo de produção capitalista, em especial depois das desgraças que ele empreendeu ao longo do último século, pode hoje enxergar nisso qualquer coisa de “progressista”. A expansão do modo de produção capitalista é a expansão da barbárie e o ingresso nesse modo de viver é o “convite” a [imposição de] uma forma ainda mais profundo de submissão. É evidente que industrialismo e etnocentrismo não consistem meramente em erros, mas em uma percepção completamente explicável quando se toma a história do capitalismo em seu conjunto, sobretudo no século XX, em especial entre as pessoas que tiveram a ocasião de nascer em determinadas regiões de determinados países durante as primeiras décadas do século e vivenciar as transformações da urbanização e tudo o que dela implica – do contrário: soa mais estranho que as gerações que nasceram em suas décadas finais continuem reproduzindo essa cantilena: a observação da realidade não permite mais que essa fábula encontre condições de verossimilhança. 4.4 Sobre a “traição das elites” e as (im)possibilidades de um “novo 'New Deal'” Essa visão industrialista do capitalismo é particularmente mais nociva quando colada na questão nacional, quando aquele suposto amor à produção pela produção se liga ao suposto amor à pátria. São esses alguns dos ingredientes principais, no centro ou na periferia, da ideologia que não consegue deixar de ver progressismo no modo de produção capitalista, ou, dito de outra forma, enxerga como se todas as melhorias ocorridas nesse período pudessem ser creditadas não às lutas das classes trabalhadoras, mas ao avanço do capital enquanto relação social predominante. As narrativas sobre o século XX costumam destacar o fato de que, num primeiro momento, houve um engrandecimento monstruoso da potência imperial (fiquemos com o caso estadunidense, deixando por hora em suspenso a URSS) pautada no vigor de sua economia industrial que alterou radicalmente a paisagem do mundo entulhando o planeta de mercadorias Made in USA. Isso foi percebido como a superação da hegemonia britânica e a implementação da hegemonia estadunidense. Fazia parte dessa hegemonia

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– bom lembrar: que nascia na (da) fábrica331 – a crença de que a sociedade civil estadunidense estaria passando por melhorias porque o modo de produção capitalista configurado em sua forma industrial assim proporcionava. De acordo com esta narrativa, a seguir, teríamos vivenciado um momento igualmente – talvez mais – transformador, em que as plantas industriais teriam “migrado” para a “periferia”. É um modo de tentar explicar como o mundo foi entulhado com uma quantidade ainda maior de produtos industrializados – mas agora Made in China. Mas o que é de extrema importância: essa “migração” das plantas industriais, na prática, quando analisada para além do discurso da administração dos ativos econômicos, demonstra o que de fato importa anotar, da perspectiva da totalidade do modo de produção capitalista (para muito além de quem comanda o processo de expansão): neste momento, uma quantidade imensa de pessoas teve sua força de trabalho, suas terras, suas moradias e incontáveis outras coisas pertinentes à sua vida – pela primeira vez na história – transformadas em mercadoria. Que isso tenha se transformado em uma fonte incomparável de lucro, é uma consequência lógica da própria expansão do modo de produção capitalista. E que isso esteja ocorrendo agora na periferia ilustra perfeitamente o que se costuma entender pelo “desenvolvimento do capitalismo”: a constante sucessão de “exploração e abandono” por parte do capital em diferentes áreas (“geográficas” ou não). [Para ficarmos na geografia] O processo de expansão do capital ao longo de sua história [extremamente potencializado no momento do Imperialismo] se caracteriza pela transformação radical da maneira como as sociedades organizavam suas respectivas formas de viver. Mantida sempre alguma coloração particular, uma pluralidade imensa dessas formas foi destruída, ou passou a

Antonio Gramsci, Americanismo e Fordismo. Ainda sobre esse ponto, mas já no registro das dificuldades de se acreditar nesse logro, sugerimos o excelente episódio “O escritório do meu pai”, da referida série Anos Incríveis, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WtowYDNDcRk. 331

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ser organizada de modo capitalista. Isso implica necessariamente em transformar em mercadorias, coisas que nunca o foram332. Visto por esse ângulo, o que se costuma glorificar como Anos Dourados é um momento em que as pessoas progressivamente aprofundam de maneira brutal sua dependência do circuito de mercadorias do capital, a cada dia mais central em suas vidas. Quando comparamos a vida de um cidadão estadunidense no começo do século XX com o seu final – e, portanto, podemos verificar a transformação dos tais Anos Dourados – dessa perspectiva, podemos observar claramente que o tal “progresso” representou a 332“Nenhuma

sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de alguma espécie. Acontece, porém, que, anteriormente à nossa época, nenhuma economia existiu, mesmo em princípio, que fosse controlada por mercados. Apesar das fórmulas cabalísticas acadêmicas, tão persistentes no século dezenove, o ganho e o lucro feito nas trocas jamais desempenharam um papel importante na economia humana. Embora a instituição do mercado fosse bastante comum desde a Idade da Pedra, seu papel era apenas incidental na vida econômica.” (P. 59) “(...) o padrão de mercado, relacionando-se a um motivo peculiar próprio, o motivo da barganha ou da permuta, é capaz de criar uma instituição específica, a saber, o mercado. Em última instância, é por isso que o controle do sistema econômico pelo mercado é de consequência fundamental para toda a organização da sociedade: significa, nada menos, dirigir a sociedade como se fosse um assessório do mercado. Ao invés da economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico.” (P. 72) “A auto regulação significa que toda a produção é para a venda no mercado, e que todos os rendimentos derivam de tais vendas. Por conseguinte, há mercados para todos os componentes da indústria, não apenas para os bens (sempre incluindo serviços), mas também para o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo seus preços chamados, respectivamente, preços de mercadorias, salários, aluguel e juros.” (P. 82) “Acontece, porém, que o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o ambiente no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado.” (P. 84) “O ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria. Eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem que ser produzido para a venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de mercadoria, eles não são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para a atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para a venda, mas por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido, mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia. Não obstante, é com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do trabalho, da terra e do dinheiro. (...) A ficção da mercadoria, portanto, oferece um princípio de organização vital em relação à sociedade como um todo, afetando praticamente todas as suas instituições, nas formas mais variadas.” (P. 84-5) “Os mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para uma economia de mercado. Entretanto, nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções, mesmo por um período de tempo muito curto, a menos que a substância humana e natural, assim como a sua organização de negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico.” (p. 85-6) Que Karl Polanyi, autor do raciocínio exposto, conclua que caiba ao Estado o papel de proteger a sociedade “contra os assaltos desse moinho satânico” – ou, mais precisamente, que a sociedade possa organizar-se de tal modo que o Estado possa frear os ritmos da mudança dos processos sociais – o torna facilmente apropriável pela visão de mundo que passaremos a refutar. A necessária exposição sistemática de seu raciocínio e a fortuna crítica de seus sucessores nos desviaria demasiado de nossos objetivos deste nada retilíneo percurso no qual nos lançamos. O deixaremos para outra ocasião, ainda que pretendamos voltar a este autor na sequência do nosso texto.

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implementação intensiva de uma sociedade de consumo de massas de uma grandeza impensável no começo desse processo. Mas, ainda mais importante de entender, é que, ao mesmo tempo – essa é a especificidade do modo de produção capitalista – a expansão da quantidade de mercadorias é acompanhada pelo profundo agigantamento da importância do capital e da mercadoria como relações sociais predominantes – e, nunca é demais lembrar, uma caminhada acelerada para o consumo irreversível dos recursos naturais333. Desse ponto de vista, como seria possível argumentar que o período do pósGuerra foi, como gostam de dizer os pseudo-críticos do modo de produção capitalista, um momento de “controle de capitais”, em que supostamente o período do parasitismo imperialista teria sido domesticado pelas voluntariosas políticas “keynesianas”? Isso é ideologia burguesa pura e simples! 334 O que vimos tentando sugerir até aqui, é que é preciso que enquadremos o debate sobre o “neoliberalismo” e a “globalização” não apenas com relação à tradição das assim chamadas teorias do Imperialismo – o que faremos posteriormente – mas também com relação aos seus debates contemporâneos com os quais dialogam, não raramente sem fazer-lhes as referências. Mesmo que esses debates contemporâneos não constituam interlocutores diretos, compõem a paisagem das décadas do fim do século XX e início do XXI, e as pessoas que pensaram esses problemas, formaram seu quadro de referências muitas vezes por meio de uma organização diferente dos mesmos elementos. O que também nos interessa, ainda que de modo indireto, é que nesse período se deu uma importante e inconclusiva (porque depende de desdobramentos no futuro) discussão sobre a perda ou não da hegemonia estadunidense. No que toca especificamente a produção industrial dos Estados Unidos, duas coisas chamam a atenção: 1) os capitalistas ali residentes lucraram como nunca, e de modo crescente, em

333https://www.facebook.com/malvadoshq/photos/a.181209315329627.38166.181129068670985/734

727886644431/?type=1&fref=nf&pnref=story 334 Karl Polanyi, muito mais sofisticado, falaria sobre o “controle sobre o ritmo da mudança”. É uma crença um tanto quanto distinta, mas de um voluntarismo semelhante.

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ambos os subperíodos (de crescimento e decrescimento industrial)

; 2) os

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trabalhadores estadunidenses, outrora ocupados em empregos industriais – em organização usualmente conhecida por “fordista” – precisaram encontrar ocupação no setor de serviços – aos que não conseguiram, “azar” deles. O saldo final desse processo tem sido – porque ainda se aprofunda – a formação de cidades-fantasmas nos Estados Unidos336 – com imensas áreas produtivas simplesmente “abandonadas” e a formação de áreas de intensa urbanização na periferia [que somente de um ponto de vista profundamente fetichista pode ser chamado de desenvolvimento. Não é outra coisa senão a intensificação da exploração do trabalho e outras fontes de riqueza, agora sobre as tais formas “especificamente capitalistas”, ao que voltaremos]337. Levando isso em consideração, não causa espanto que naquele país tenha ganhado vulto um intenso (sub)debate sobre a responsabilização da “elite” decisória pela “traição à pátria”. O que os “traídos” não parecem levar em consideração são as constatações óbvias de que 1) do ponto de vista da economia concorrencial capitalista, de fato, não existem opções senão aumentar a lucratividade a qualquer custo [essa gente que se diz traída raramente está disposta a lutar contra essa economia concorrencial capitalista, que eles também chamam de american way of life]; 2) essa trajetória, do ponto de vista sistêmico, repete a trajetória da outra potência imperial capitalista, a GrãBretanha, que no final do século XIX também parecia ter “aberto mão” das condições de pujança que a elevaram ao patamar do “Império onde o sol nunca se põe” [e talvez, 335Se

o decrescimento é absoluto, relativo, ou qualquer outra nuance porventura necessária é secundário. É também importante que ressaltemos que os capitalistas residentes noutros países também lucraram muito – em ambos os períodos – pois a distribuição transnacional ainda que hierarquizada dos “bônus” sempre fizeram parte do exercício do poder hegemônico. Uma das prováveis características do Imperialismo Capitalista é que essa distribuição se torna progressiva e incessantemente transnacionalizada, sofisticando a hierarquia em vários níveis capazes de contemplar uma gama muito variada de interesses de poder sem contudo modificar suas estruturas fundamentais. Como contraparte necessária – porque o capitalista é um sistema de exploração – essa hierarquia também (re) produz uma hierarquia que define quem pode legitimamente ser violentado, conforme conversamos no início de nosso percurso. 336 O caso mais famoso é o de Detroit, cujas ruínas podem ser vistas em http://www.theguardian.com/artanddesign/gallery/2011/jan/02/photography-detroit. Sobre os efeitos desse processo nas megalópoles, sugerimos a leitura de Planeta Favela, de Mike Davis. Para uma comparação entre a bolha imobiliária nos Estados Unidos e no Brasil, sugerimos a leitura da tese de doutorado da Professora Mariana Fix, Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil (Unicamp, 2011). 337http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150322_cidades_fantasmas_china_mj_cc; http://gizmodo.uol.com.br/cidade-fantasma-ordos-china/; http://www.megacurioso.com.br/orientebizarro/70075-conheca-10-cidades-abandonadas-na-china-que-sao-loucas-e-bizarras.htm; http://gizmodo.uol.com.br/china-cidades-fantasmas/. Sobre o mesmo assunto: https://www.facebook.com/malvadoshq/photos/a.181209315329627.38166.181129068670985/77667 2722449947/?type=1&pnref=story

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portanto, isso não seja tão específico dessa dita “elite transnacional cosmopolita contemporânea”]; 3) para “recuperar” a posição produtiva anterior, as configurações trabalhistas nos Estados Unidos precisariam se dar de tal modo que o trabalho fosse muito mais barato, ou seja, a sociedade estadunidense precisaria aceitar taxas indonésias de exploração; 4) assim como não foi porque industrial que a sociedade estadunidense teve suas condições de vida melhoradas, a industrialização das periferias da periferia não melhora as condições de vida dessas populações, porque – é demais lembrar? – capitalismo e desenvolvimento são conceitos antagônicos; 5) o que se espera da “elite”, afinal?. Na crítica impiedosa do professor Eduardo Mariutti, o debate público nos EUA nas últimas décadas – o 'centro', portanto – mostra isso. Basta ver a chorumela sobre a 'brasilianização' dos EUA – em tons muito próximos da crítica à 'elite aculturada', aos bloqueios à difusão do progresso técnico, etc. – denunciada por Michael LIND em The Next American Nation (…): 'Brasilianização [dos Estados Unidos] é simbolizada pela crescente retração da classe dominante americana branca (...) para o mundo dos bairros privados, escolas privadas, polícia privada, sistema privado de saúde e até mesmo estradas privadas, isolando-se da onda de pobreza generalizada. Como a oligarquia latino americana, os ricos e bem relacionados membros desta classe dominante podem ascender em uma América decadente, marcada por índices terceiro-mundistas de desigualdade e criminalidade.' (p. 14 – Grifo de Mariutti). Ou então, na mesma linha, a banal denúncia de Christopher LASH, também escrevendo em meados dos anos 90, chega a uma conclusão que chocou os ingênuos: a principal ameaça à democracia americana vem das Elites – que, no caso, 'traíram a nação' ao criarem círculos fechados cada vez mais cosmopolitas, distanciando-se das classes médias e de uma democracia inclusiva. Espantoso seria se as 'elites' não se comportassem como 'elites', isto é, não defendessem seus privilégios de forma aguerrida, contra a maioria da sociedade, explorando as suas fontes internas e internacionais de poder (...)338

Compartilhamos integralmente a crítica – radical – do professor Mariutti a essa concepção sobre a “traição” e a possibilidade de pautar a luta pelos “pactos sociais”. A rigor, esta arraigada crença no progressismo da burguesia é um traço tragicômico dos serviçais dessa classe: são diversas as referências às “traições” da burguesia, em todas as épocas e em praticamente todos os

338Mariutti,

Texto para discussão 240, de junho de 2014, intitulado Violência, capitalismo e mercantilização da vida, disponível em http://www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?id=3354&tp=a, pág. 2, quando também sugere que “Para uma crítica cuidadosa dessa tendência, ver Paulo ARANTES Zero à Esquerda São Paulo: Conrad, 2004 p.30-45; 57-9; 75-7.”

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lugares. Mas, mesmo assim, o mito do burguês progressista e empreendedor sempre ressurge das cinzas339.

Antes de voltarmos um pouco atrás, fiquemos com a conclusão da crítica de Mariutti, que nos interessará à frente: o problema básico desta discussão toda é que ela nunca conseguiu ultrapassar o fetichismo do capital: a crença infundada e fantasmagórica de que a abundância é fruto do movimento do capital entendido não como uma relação social de exploração, mas como uma coisa, isto é, uma massa de riqueza, meios de produção e conhecimento técnico, cuja eficácia pode ser aprimorada por políticas econômicas gestadas por elites tecnicamente competentes e imbuídas de 'espírito público'. Em suma: a quixotesca tarefa de salvar o capitalismo dos capitalistas340.

Que se faça notar, para não mais voltarmos atrás: nenhuma dessas características tem qualquer coisa a ver com o “neoliberalismo”, e seria levada a cabo independentemente da orientação ideológica de seus gerentes momentâneos, simplesmente porque é motivada pelos constrangimentos concorrenciais que fazem do capitalismo capitalista – ou seja, um sistema de exploração de classes que corresponde a um modo de produção da vida pautado pela acumulação incessante de riqueza em forma abstrata. Se isso se deve a constrangimentos “econômicos” [concorrência empresarial] ou “políticos” [geopolítica do poder; luta de classes] é questão a ser debatida com muito cuidado. Insistimos: o erro que não podemos incorrer é colocar na conta do neoliberalismo [uma ideologia de gestão do capital] o que deve ser colocado na conta do capitalismo [um sistema de exploração/modo de produção]. Do contrário, corremos o risco de cair nas armadilhas da crítica não-radical e de propostas do tipo “defender um novo 'New Deal' esperando que se crie condições para que as forças progressistas um dia cresçam” ou, muito pior, “esperar e torcer para que a luta dos Estados Unidos penda para o nosso lado”. Que essas sejam as “soluções” defendidas por David Harvey em O Novo Imperialismo só ilustra o que vimos tentando defender: mesmo um autor consciente da necessidade da crítica ao modo de produção capitalista, e que nos ajuda a

339Mariutti,

p. 3. Conforme discutimos na introdução, a lenda sobre o “bom burguês” procura – com sucesso – deitar raízes no mito de Odisseu, supostamente o astuto antepassado remoto do burguês típico. Que essa farsa tenha sido constituída quando do Romantismo alemão para ser completamente desmentida pelas investigações contemporâneas sobre a Odisséia é um fato muito interessante. Reforcemos: se Odisseu pode ser considerado o protótipo do indivíduo burguês é muito mais pelo seu epíteto “o saqueador de cidades” – que a visão romântica convenientemente abandona – do que por qualquer qualidade de trabalhador compromissado com o “desenvolvimento econômico” que porventura nosso herói também possua. 340p. 4

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avançar a compreensão das relações sociais contemporâneas em muitas questões importantes não consegue superar o horizonte dos “Anos Dourados”. Vivemos uma situação catastrófica. Querer colocar a “pasta de dentes de volta ao tubo” só não é pior do que esperar sem fazer nada. O mundo em que vivemos – incluindo cada um dos lugares que podem, em qualquer sentido, serem chamados de “centro” – caminha progressivamente para o aumento da opressão e do controle e para as catástrofes ambientais, em todos os lugares. Internacionalmente, ocupações, pressões, embargos, (re) conquistas espaciais. No plano interno, os aparelhos de vigilância sobre os cidadãos, associados a diversos mecanismos de repressão aos “distúrbios civis” não param de se multiplicar, criando o que Paulo Arantes denominou como uma “sociedade securitária de risco”, capaz de suspender a qualquer momento os direitos de cidadania e as garantias constitucionais341.

Em resumo, podemos observar em todos os lugares os efeitos da “reorientação” dos Estados Unidos, porque “o colapso da URSS paradoxalmente acirrou o militarismo estadunidense, ao enfatizar ainda mais a sua orientação para mudar regimes, fortalecendo o mecanismo de retroalimentação da violência construído logo no início da Guerra Fria”342. Esta seria a forma mais contemporânea de um antigo mecanismo que, [conforme aquele citado esquema de Hannah Arendt] “mescla sistematicamente a ameaça 'interna' à 'externa', criando uma sensação de insegurança perene, que fortalece e legitima os dispositivos de controle social343”. O efeito disso é que esse “mecanismo de retroalimentação da violência”, “simultaneamente, tenta eliminar do horizonte todas as perspectivas genuinamente emancipatórias344”. E aí reside a importância de que se dê espaço para aquelas “soluções bem mais radicais que espreitam nos cantos”345, e não, mais uma vez, como faz Harvey, clamar pelo estabelecimento de um “novo ‘New Deal’ liderado

pelos

Estados

Unidos

e

pela

Europa,

tanto

doméstica

como

internacionalmente”. Para ele, esta é, “diante das magníficas forças de classe e interesses especiais alinhadas contra ela” uma meta suficientemente ampla pela qual lutar na atual conjuntura. E a idéia de que isso poderia, mediante a busca adequada de alguma ordenação [fix] espaço-temporal de longo prazo, mitigar de fato os problemas de sobreacumulação ao menos pelos próximos anos e reduzir 341Mariutti,

2014. pág. 1 e 2. obra, p. 2. 343Mesmo lugar. 344Mariutti, mesmo lugar. 345Harvey, p. 169. cf: Marcha da Quarta-feira de cinzas, Vinícius de Moraes e Toquinho. 342Mesma

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a necessidade de acumular por despossessão pode estimular forças progressistas e humanas a alinhar-se em seu apoio e transformá-lo em alguma espécie de realidade prática. Isso de fato parece propor uma trajetória imperial bem menos violenta e bem mais benevolente do que o imperialismo militarista grosseiro hoje oferecido pelo movimento neoconservador nos Estados Unidos.346

Temos em relação àquele texto [publicado em 2004] uma vantagem enorme: não precisamos mais especular. De fato, por conta de seu próprio fracasso, do seu próprio sucesso, da luta interna, do contexto internacional ou sabe-se lá por quais motivos; a coalizão neoconservadora que sustentava George Bush II foi substituída. No eterno dueto estadunidense, foi a vez dos democratas assumirem a presidência, chegando mesmo a anunciar certas intervenções que a ala mais delirante da sociedade local taxou de “socialistas”. Assim, não se pode claramente chamá-la de neoliberal (como Clinton), nem de neoconservadora (como Bush II). E o que de fato há de novo do ponto de vista do Imperialismo? Provavelmente a “novidade” é que, a despeito da dicotomia partidária, as políticas de Estado permanecem inabaladas. Nas palavras de Laymert Garcia dos Santos, (...) um olhar retrospectivo permite ver com clareza que a ambição de hegemonia norte-americana nunca deixou de ser intrinsecamente belicosa, e belicosa ao extremo – porque sempre se pautou por uma estratégia de conquista e de extermínio, apesar dos veementes e incessantes protestos de estima e consideração pela democracia... Nesse sentido, os Estados Unidos nunca deixaram de cultivar e de reivindicar uma espécie de direito à exceção. A diferença, porém, é que agora, com a revolução nos assuntos militares e a doutrina da guerra preventiva, a exceção norte-americana não só extrapola as fronteiras nacionais daquele país, como instaura uma ordem cosmopolita cuja concepção conduz ao abandono do paradigma jurídico-político moderno e, reatando as prerrogativas pré-modernas da guerra justa, funda-se na exceção soberana, doravante pensada em escala planetária e não mais restrita ao âmbito dos Estados nacionais. 347

Sem mencionarmos por hora o fato de que a conjuntura internacional hoje é tão pior que mal se consegue disfarçar a crescente rivalidade entre a outrora estável tríade EUA-Rússia-China. Pelos tentáculos específicos do Imperialismo Capitalista ao longo do século XX – que, sendo o objeto desta tese, voltará ao primeiro plano ainda por diversas vezes – as sociedades dos países centrais, durante algum tempo, conseguiram minimamente mitigar os efeitos mais destrutivos da dominação do capital. Mas isso não muda o fato de que, concretamente, o 'New Deal' é o arranjo que mais aprofundou as raízes do capital na vida cotidiana das pessoas e, portanto, sua capacidade de oprimi-las. 346Harvey, 347

pág. 169. Laymert Garcia dos Santos, A exceção à regra, Prefácio de Extinção, de Paulo Arantes, pág. 10.

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Apostar nessa saída – mais uma vez? – é entregar as armas para o adversário confiando na sua boa-vontade em não usá-la contra você. Tanto na “periferia” quanto no “centro”. Este mecanismo geral de produção violenta da sujeição ao status quo se combina com outro processo mais sutil de dominação. Ao subordinar e ajustar à sua lógica as formas pretéritas de exploração à acumulação incessante de capitais, o capitalismo favoreceu o deslocamento das irrupções mais nítidas da violência para os bastidores da vida social, isto é, para as diversas periferias e para os estratos e grupos sociais inferiorizados. É isso que, dentro de outras determinações, ajuda a dar sustentação à visão fictícia de que o capitalismo se identifica com – ou, em suas variantes mais tacanhas, determina – o 'progresso' da civilização ou da 'modernidade'. A combinação entre 'arcaico e o moderno', portanto, é um fenômeno geral, embora geralmente mais nítido nas zonas periféricas348.

Esta é a conclusão cristalina quando se analisa o “saldo” do século XX, no qual se insistiu tanto na promessa do tal “desenvolvimento sustentável” e terminou com as cidades fantasmas no centro. Novamente nas palavras de Laymert, tudo se passa como se tivéssemos entrado em uma fase em que, por um lado, o capitalismo precisasse reciclar as velhas práticas imperialistas do passado e, por outro, não pudesse mais pretender universalizar o estado democrático de direito, em crise tanto na periferia distante quanto nas periferias do centro, porque agora se trata de universalizar a exceção. Assim, o estado de sítio como estado do mundo se configura não só como a exceção permanente a que nós, da periferia, estávamos habituados, mas também, e principalmente, como exceção permanente à regra que até então estávamos acostumados a tomar como parâmetro. Nesse sentido, a redefinição das relações centro-periferia implica a ocorrência de uma fantástica inversão: não se trata mais de considerar a excepcionalidade da periferia como uma condição de fato permanente, mas em princípio transitória, a que ela estaria sujeita por ainda não ter alcançado a desejável normalidade da regra; trata-se, muito ao contrário, de considerar a crescente contração da norma vigente no centro correlacionada ao futuro promissor da permanente expansão da exceção periférica.349

Em Extinção, livro prefaciado pelo texto de Laymert, o citado Arantes pontua que [As novas guerras cosmopolitas estão] no epicentro de um novo e mais abrangente sistema da violência cuja marca histórica talvez seja mesmo uma crueldade de espécie ainda não identificada, pavimentando o caminho sabe-se lá de que outra limpeza social, para a qual nem mesmo a palavra fascismo faria mais sentido. (p. 71)

Para o filósofo – conforme já indicamos anteriormente – uma das questões mais importantes é a confusão entre as operações policiais (supostamente domésticas) e as operações militares (supostamente externas). Na prática, o que vimos observando é que 348Mariutti, 349

p. 2. Laymert, mesmo texto, página 13.

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o que caracteriza o sistema de violência contemporâneo é a impossibilidade de estabelecer essa distinção. Em suas palavras, que o governo norte-americano tenha centrado sua propaganda de guerra na parolagem altissonante da justiça e da lei é trivial. Já não é tão trivial assim a 'metáfora legalista' com que o discurso público e o establishment intelectual traduziram a enxurrada jurídica oficial: a transferência metafórica de um discurso originário da arena doméstica dos sistemas legais instituídos para o plano da política mundial fez com que milhões de pessoas vissem a nova guerra cosmopolita que se estava inaugurando como uma questão judicial de crime e castigo, uma questão de polícia, enfim, como, aliás, foi dito na primeira hora pelas raras vozes destoantes mais articuladas. Desde então expedições punitivas desse calibre passaram a ser vendidas por seus promotores como se não fossem guerras clausewitzianas de verdade [voltaremos ao ponto], mas o desfecho incontornável de imperativos morais – como se a nova guerra fosse, a bem dizer, um discurso, um 'jogo de linguagem', por que não?, regido pelos princípios normativos da ética discursiva –, e com a mesma naturalidade com que CEOs alardeiam a vocação ético-cidadã de suas respectivas corporações (analogia com as fraudes da Enron e demais; a maquiagem midiática da campanha do Golfo inaugurou com um certo pioneirismo essa mesma 'contabilidade criativa' na gestão da guerra) Sem dúvida, trata-se de marketing, mas marketing de uma guerra nada virtual. Para ficar só numa observação, digamos, técnica: uma operação de polícia como a do Golfo – vendendo segurança ao mundo dos negócios –, já pelo simples fato de ser conduzida por um 'agente' que dispõe do monopólio mundial da violência, está condenada a se revestir de todas as características de uma guerra, e chamá-la de 'justa' (ou cosmopolita) apenas confirma sua índole original. Quando um conflito armado dessas proporções é deflagrado, a lógica da guerra tende a prevalecer, como a destruição do inimigo e a preservação da vida de seus próprios combatentes. Porém com a diferença característica dos novos tempos: a morte gloriosa no campo da honra, paradoxalmente, já não vale mais a justa causa de uma guerra, mesmo se defendida como justa; e isso tanto mais ainda que a proporção desmesurada do poderio militar requerido por tal ação de polícia planetária já não admite qualquer controle do ângulo normativo complementar, do jus in bello das antigas convenções. E aqui começamos a entrar no reino da exceção. Quer dizer: a guerra cosmopolita sobre a qual dou essa breve notícia nada mais é do que a manifestação mais contundente do regime de estado de sítio planetário no qual estamos desde então nos instalando.” (p. 40)

Assim, “o fato de já não sabermos mais se estamos em guerra ou em paz talvez seja a evidência mais tangível e abrangente dessa indistinção entre a exceção e a regra que é o híbrido extremo em que se cristaliza a atual escalada de uma dominação a céu aberto” (p. 43). Isso porque, segundo Arantes, vivenciamos um “novo tipo de violência organizada, na qual se borram as fronteiras entre guerra, criminalização e violação de direitos humanos, mas ainda assim guerras” (p. 48) e na qual “máquinas de destruição

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de última geração aparecem como postos de trabalho absolutamente normais” (Kurz, citado por Arantes, p. 57)350. O vínculo entre as formas contemporâneas da “guerra” e as formas contemporâneas de “vida pacífica” é explícito e inequívoco. Assim, não é mera coincidência que o vocabulário desse reaparelhamento militar lembre as campanhas pela 'flexibilização da mão-de-obra'. Como no modo de produção capitalista, em que, no lugar de 'exércitos de trabalho' em massa aparece um sistema global de áreas de atuação mais diversificadas, extremamente enxutas em termos empresariais e com alta mobilidade, na estratégia militar o paradigma de tropas especiais flexíveis dissolve o paradigma anterior de exércitos de massa baseados na infantaria e nos veículos blindados. (p. 58)

Desta maneira, “a banalização da guerra que daí se segue também não deixa de suscitar uma espécie de inflexão cínica do caráter pós-militar” (p. 58); uma espécie de “esterilização da guerra” (p. 58). Por fim, conforme Arantes conclui noutro lugar, “não estamos mais diante da guerra, mas, agora sim, diante da política como mera continuação da guerra.” (p. 29). Dentre os vários méritos dos textos de Arantes, se destaca a ênfase nas diferenças de percepção entre as perspectivas a partir do “centro” em relação às perspectivas “periféricas” ao mesmo tempo em que vincula as implicações do sistema como um todo. E aqui temos uma questão importante para a nossa apreciação acerca do debate contemporâneo sobre o Imperialismo em ambos os lados do sistema, em especial com relação à questão da normalidade e da exceção de regimes de violência e da visão sobre os tais Anos Dourados, quando Arantes dá relevo a (...) uma curiosa inversão de perspectiva, quando passamos da periferia ao centro, ainda na esteira dos estudos sobre a violência – no caso, violência urbana. Diante do fenômeno de explosão de violência, também jamais vista no passado recente dos anos de crescimento econômico do pós-guerra, não se fala em coabitação paradoxal entre democracia e violência, mas da descoberta desconcertante de que algo como um capitalismo com lei e cidadania bem poderia ter sido não mais do que uma miragem de trinta anos. Enquanto nos democratizávamos na periferia – verdade que democracia tetanizada pela regressão econômica que também sepultara uma simétrica ilusão desenvolvimentista –, as sociedades centrais experimentavam o retorno dramático da ‘questão social’, isto é, redescobriram que as desigualdades estavam s volta e cavando uma nova ‘fratura social’, que a pobreza não fora erradicada, sendo os ‘novos pobres’ uma legião, que o racismo e a xenofobia redivivos pareciam recompor o cenário de entreguerras, pior ainda, que a violência supostamente absorvida por um secular processo civilizador – nos termos clássicos de Norbert Elias – parecia retornar em escala endêmica, e não só nos bairros sinistrados 350

Sobre isso, sugerimos “As pessoas ficaram loucas”, em Refluxo de Batata Sem-Umbigo, pág. 13.

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e guetoizados das grandes cidades. Em vez de paradoxo, uma ferida narcísica de bom tamanho: onde está a ‘civilização’ de sociedades que já não eram mais nem coesas nem igualitárias e, muito menos, pacíficas? (p. 73) (...) Reparemos agora que a crueldade da guerra cosmopolita voltada para o ameaçador caos exterior – indissociável, aliás, de sua ordem interior, como já vimos – é alimentada pela violência de sua retaguarda, digamos, pós-nacional, e que, por isso mesmo, viu sua pacificação anterior se desmanchar no ar. (p. 74-5)

E apesar do espanto dos ingênuos que acreditaram nas promessas pacifistas do capitalismo “(...) o sistema mundial de violência é um só” e como “a nova guerra cosmopolita é uma só, o mesmo regime de crueldade vigora no front do espetáculo e no matadouro das limpezas sociais. Em ambos a pacificação interna se esfarinha segundo a lógica da violência pós-moderna.” (p. 74-5) O que caracterizaria para ele nossos tempos seria a “entrada acelerada das sociedades ocidentais em uma nova era (para variar...), de arremate do processo civilizador” (p. 77). Como podemos ver, uma posição muito distante da visão de Harvey, que conclui sua extensa e muitas vezes instrutiva argumentação de O Novo Imperialismo com uma patética aclamação do tipo: “Trabalhadores de todo o mundo, torcei!”:

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os Estados Unidos são naturalmente o real campo onde travar essa batalha. Quanto a isso, há alguma base para a tênue esperança, visto que as graves restrições às liberdades civis e o reconhecimento já duradouro de que o imperialismo no exterior será comprado ao preço da tirania no plano doméstico oferecem uma firme base para a resistência política, ao menos da parte daqueles que de fato acreditam na Carta de Direitos, e cuja visão da constitucionalidade difere da que tem a maioria neoconservadora que hoje domina a Suprema Corte. (…) Há um movimento antiguerra e antiimperialismo que labuta para exprimir-se, mas o clima de nacionalismo e patriotismo, e a supressão da dissensão em todos os níveis, particularmente no âmbito dos meios de comunicação, mostram que há uma dantesca batalha a ser travada internamente contra a versão neoconservadora de imperialismo, bem como contra a continuidade do neoliberalismo no nível econômico. O poder de classe alinhado em apoio ao neoliberalismo, por exemplo, é formidável, porém, quanto mais problemática se mostra a forma neoconservadora de governo, tanto interna como internacionalmente, tanto mais provável serão a divisão e a dissensão mesmo nas classes de elite com respeito à direção que deve tomar a lógica territorial de poder. As atuais dificuldades por que passa o modelo neoliberal e a ameaça que ele hoje representa para os próprios Estados Unidos podem chegar ao ponto de provocar clamores em favor da construção de uma lógica territorial alternativa do poder. A ocorrência ou não disso depende de modo vital do equilíbrio de forças políticas no interior dos Estados Unidos. Ainda que possa não ser determinante, terá um imenso papel em nosso futuro individual e coletivo. Quanto a isso, o resto do mundo só pode observar, esperar e alimentar esperanças (grifos nossos).351

Como disse, em contexto análogo, o “embaixador das favelas” Bezerra da Silva, muito mais sensível às causas das gentes exploradas: “Acho-te uma graça!”352.

351Harvey,

p. 169-170.

352https://www.youtube.com/watch?v=FELXV6dRASk.

Ou, noutra pérola: “meu bom doutor o morro é pobre e a pobreza não é vista com franqueza nos olhos desses pessoal intelectual”. Por falar nisso, sobre a questão do “progresso”, também sugerimos https://www.youtube.com/watch?v=K-N35de9Q0s.

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Parte III – O que há de ‘novo’ no ‘Novo Imperialismo’? – Alguns comentários historiográficos sobre as críticas contemporâneas às “teorias clássicas” “Meu pai me disse que a tradição é lanterna Vem do moderna

ancestral,

Bem mais modernoso

que

é o

É a marola que vira o mar furioso Netuno misterioso, O tesouro da caverna

Maré muda com o luar Futuro é lembrar”

pra

quem

(Moacyr Luz, Aldir Blanc e Luiz Carlos da Vila)

Dada a profusão de publicações atuais sobre o nosso tema sob uma pluralidade de perspectivas – em especial após os episódios de setembro de 2001 e as “respostas” que eles provocaram – fazia-se necessário o estabelecimento de critérios de pesquisa – como todos os demais, inerentemente arbitrários. O critério que procuramos adotar, por ser em nosso juízo o mais presente na bibliografia contemporânea, não é a descrição das manifestações imperialistas contemporâneas por si mesmas, mas, especialmente, o contraste com os trabalhos considerados “clássicos”, cuja atualidade ou obsolescência costuma-se colocar em questão. Até aqui, nossa preocupação principal foi analisar a validade da hipótese do sumiço e do retorno da categoria Imperialismo – sobretudo no campo marxista – a partir de algum momento da segunda metade do século XX. Mais do que isso, procuramos ressaltar a importância de determinadas discussões contemporâneas que “confundiram”

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analistas voltados a essa temática, procurando destacar o impacto das transformações “recentes” do capitalismo nas análises sobre o Imperialismo, buscando sempre fugir da resposta fácil de apontar “erros”, “falta de estudo” ou “distorções ideológicas”. Nessa investigação,

mostraram-se

importantes

a

questão

do

“neoliberalismo”,

da

“globalização” e da “traição das elites”, cada uma delas compondo um “universo” comum de questões – nem sempre explicitadas nos textos sobre o imperialismo, mas que neles impactam por serem algumas das questões fundamentais do momento da formulação desses estudos e parte dos debates a eles contemporâneos. Entretanto, a hipótese que assumimos (a do sumiço para posterior retorno do tema imperialismo), evidentemente, não é a única maneira de apreciar este debate. A nossa escolha por ela se deveu a quatro questões, que convém deixarmos explícitas aqui. A primeira, é que nos pareceu que assim poderíamos ter uma boa porta de entrada para a contraposição das teses contemporâneas às “teses clássicas”. A segunda se deveu à grande recorrência desta forma de apresentação no debate contemporâneo. A terceira, é que ela nos permitia apresentar um conjunto de questões de forma sistematizada, o que era importante da perspectiva que adotamos, que tem por intenção apresentar diversas vozes do debate atual (privilegiando o autorxs autodeclaradxs marxistas) sobre o imperialismo. Por fim, e mais importante, é que julgamos que apreciar o debate contemporâneo a partir da hipótese do sumiço nos permite olhar para determinados pontos obscuros e revelar determinadas características de algumas visões de mundo em voga das quais nos interessa tentar escapar. Assim como todxs xs autorxs que comentam essa hipótese, até onde a conhecemos, não nos propusemos a efetivar o estudo biblioteconométrico que poderia vir a demonstrar ou refutar a hipótese de algum tipo de “desaparecimento” ou “retorno” do tema. Entretanto, essa idéia – como esperamos que tenha ficado claro – nos desagrada bastante, uma vez que parece que a partir dela, pode-se acabar por concluir que foram mudanças no próprio Imperialismo (pelo seu enfraquecimento ou porque ele teria se tornado óbvio demais [sic]) que automaticamente levaram as pessoas a não mais o perceberem enquanto imperialista. Neste sentido, a imagem do “eclipse” nos parece particularmente ruim, uma vez que os eclipses são episódios cíclicos e naturais, os quais se pode observar, mas sobre os

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quais provavelmente não se pode interferir353. Essa postura nos parece oposta ao que pretendemos assumir. Poderíamos, por outro lado, considerar – seguindo mais de perto a nossa metáfora principal, na qual comparamos livremente o capital ao herói Odisseu – que houve uma espécie de “disfarce”, no qual o Imperialismo, ou – para ficarmos em termos menos abstratos – os capitalistas, teriam se esforçado para mascarar seus elementos principais numa espécie de logro pessoas com o objetivo deliberado de fingir que o imperialismo não era imperialista. Não obstante, essa retórica da negação das características imperialistas do Imperialismo não é exclusiva deste período em que o tema teria sumido. Do contrário, podemos identificá-la desde o princípio e durante toda a história das discussões sobre ele. Assim não nos parece claro como elas teriam sido menos ou mais eficazes no sentido de deslocar o debate sobre a categoria em um momento específico. Procedendo desta maneia, portanto, temos que as respostas às questões propostas levam inexoravelmente ao próprio ponto de partida: o que houve no meio do caminho que fez que com que o discurso sobre o Imperialismo tenha sido afetado? Por outro lado, as idéias de “desaparecimento” ou “sumiço” também parecem não descrever o que de fato aconteceu, porque também levam a entender que o “problema” reside “no objeto” do Imperialismo. Da nossa perspectiva, se houve algum tipo – não comprovado – de “sumiço” ele não se deve às questões fundamentais que definem o Imperialismo, mas na dificuldade que muitas pessoas tiveram em identificá-lo. No que nos parece, isso se deve a um conjunto de duas questões. A primeira, é que as mudanças ocorridas ao longo do Imperialismo, se não foram mudanças de seus fundamentos (se o fossem, não poderíamos mais chamar esse período de Imperialismo), ainda assim potencializam determinadas visões de mundo que encontram ressonância em outros espaços e debates que lhes são contemporâneos, e, deste modo, acabam por distorcer a percepção daquelxs que passam a não reconhecer no Imperialismo suas características eminentemente imperialistas. Isso nos parece mais recorrente a partir de maneiras específicas pelas quais as características fundamentais descritas nas teses clássicas foram lidas, em especial, mas não somente, com a escolha de determinados autores para

No registro “objetivo”: https://www.youtube.com/watch?v=v8ERtGtnyrk. No registro “filantrópico”: http://noticias.terra.com.br/ciencia/sustentabilidade/empresa-alema-cria-maquina-que-faz-chover-emlocais-secos,3cb8235822b4b410VgnCLD200000b1bf46d0RCRD.html. No registro “científico”: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-e-feito-o-bombardeamento-de-nuvens-paraprovocar-chuva. No registro “didático”: https://www.youtube.com/watch?v=6jDYjXbtK9Y. 353

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serem “mais clássicos” que outras.

A crítica, em nossa concepção não conseguiu

assimilar radicalmente o fato de que o Imperialismo é um momento em que a dominação do capital está se aprofundando brutalmente, e aumentando em muito sua capacidade de se apropriar do metabolismo das sociedades humanas – e dos recursos do planeta Terra. Dito de outro modo, nos parece que houve uma espécie de “embriaguez” com relação à capacidade de “os homens” “domesticarem” o capital e se aproveitarem dos benefícios materiais que supostamente derivaram dele. E isso, por seu turno, poderia ser explicado pela confusão entre o capital enquanto uma relação social de dominação de classes e o capital enquanto um amontoado de riquezas e/ou suas manifestações materiais. Se for verdade que ele é as duas coisas ao mesmo tempo, é ainda mais verdadeiro que ele não pode ser o segundo senão sendo o primeiro e disso deriva a importância da crítica e do combate às raízes de sua constituição, ou seja: é porque o capital não pode abolir a exploração que ele não pode ser encarado como uma possibilidade de melhoria da vida das pessoas como um todo. Qualquer melhoria da vida das pessoas, neste contexto, significa,

conforme

indicamos,

dois

processos

concomitantes:

a

diminuição

indiscriminada das condições de autonomia por parte das pessoas submetidas à relação social do capital e

o aumento da exploração de outros grupos – que a ideologia

imperialista tratou de rotular enquanto “raças inferiores”. Por isso, em nosso ponto de vista, não basta combater qualquer uma de suas manifestações (por exemplo, o neoliberalismo), mas é preciso negar o capital em sua totalidade (modo de produção capitalista). E para tanto, é preciso saber escapar dos seus mitos e da sua capacidade de ludibriar os incautos354. 354Sobre

essa “embriaguez” e a incapacidade de perceber no Imperialismo o que o Imperialismo é, nos chamam a atenção as palavras do economista João Manuel Cardoso de Mello, que em 1997 – simultaneamente, portanto, ao debate da Crítica Marxista sobre o Imperialismo e a Globalização – proferia um discurso que vai direto ao ponto, reconhecendo a incapacidade de sua geração em perceber o que estava acontecendo nos anos do pós-guerra. Em suas palavras: “Estou convencido de que vivemos por assim dizer um momento inverso ao período do imediato pós-guerra, que Polanyi denominou a Grande Transformação. Àquela altura do século, o capitalismo parecia (grifo nosso) ter sido domesticado pela sociedade. Agora que ele rompeu a carapaça que o submetia a protegia as populações, podemos falar de uma vingança do capitalismo contra a sociedade. Tudo se passa como se as tendências fundamentais do capitalismo reemergissem com intensidade redobrada. O desenvolvimento monstruoso do capital financeiro revelou uma verdade incontestável. Ou por outra, verdade bem conhecida de Marx e Keynes, de Braudel e Polanyi – nós é que andávamos meio entorpecidos pelas décadas de capitalismo domesticado (grifos nossos), esquecidos de que o capitalismo é um regime de produção orientado para a busca da riqueza abstrata, da riqueza em geral expressa pelo dinheiro. Esta abstração destrutiva aparece com toda a sua força nua e crua no atual rentismo especulativo. Mas aparece por assim dizer encoberta pelo véu tecnológico das forças produtivas desencadeadas pela Terceira Revolução Tecnológica, sob o qual também se camufla o conflito entre capital produtivo e capital especulativo. Dai a enorme disparidade entre o crescimento dos últimos anos – medíocre, se comparado aos 30 anos ditos (grifo nosso) gloriosos do pós-

155

Por razões que apresentaremos ao fim do capítulo – quando imaginamos que a nossa crítica a essa ideologia que “entorpece” a observação esteja suficientemente clara – de acordo com o nosso ponto de vista, a hipótese do sumiço não deve ser explicada por problemas no próprio objeto (uma vez que o Imperialismo nunca deixou de ser imperialista) nem tampouco nos sujeitos e nas sujeitas (que não cometeram “erros” ou coisas assim) mas na interação entre essas duas personagens (sujeitx e objeto) que surge na ocasião do discurso que pretende tornar a realidade inteligível. Portanto, devemos procurar entendê-la a partir da perspectiva da totalidade. Aqui, estamos tentando o máximo possível apresentar a história do problema Imperialismo enquanto um conjunto cognoscível de relações sociais; como uma história do problema do Imperialismo enquanto uma categoria utilizada com o intuito de auxiliar a compreensão daquelas relações sociais sobre as quais ela se projeta. Assim, procuramos, por meio da exposição do debate, descobrir o que ele esconde.  A partir de agora, adotaremos outro percurso – ainda no diapasão das comparações entre as teses contemporâneas e as teses “clássicas” – que nos aproxima um pouco mais das definições que vimos enunciando. Neste capítulo, temos por objetivo contestar duas críticas lançadas sobre as teses “clássicas”: a suposta mudança da rivalidade entre as potências imperialistas (que se refere a um problema da configuração do mundo) e o suposto “economicismo” daqueles autores e daquela autora guerra – e o imenso potencial de desenvolvimento que a aplicação da ciência moderna poderia oferecer à humanidade, não fosse ele bloqueado pelas forças predominantes da propriedade capitalista (grifos nossos). Resta a crescente redundância do trabalho vivo. Outra tendência fundamental – a desvalorização do trabalho – que retornou com força total. O desemprego estrutural, a precarização do trabalho, a intensificação da disparidade dos rendimentos, a heterogeneidade do mercado de trabalho e o agravamento da pobreza estão aí para quem quiser ver, e reconhecer enfim no capitalismo o que ele sempre foi(sic) , uma gigantesca máquina de produzir desigualdade. Era o que gostaria de dizer sobre a Contrarevolução liberal-conservadora desencadeada pela mundialização do Capital.” Manuel, J., & Mello, C. De. (1997). A contra-revolução liberal-conservadora e a tradição crítica. Economia E Sociedade, 9, 159–164. Disponível em http://www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?id=468&tp=a. Por outro lado, nos parece que essa constatação, de 1997, deve ser – e não somente por quem estiver interessado na história específica deste Instituto que nos abriga – contrastada com aquelas defendidas em 1979 (!) em um livro que “trata da expansão capitalista do pós-guerra, das crescentes dificuldades enfrentadas pelo capitalismo de meados dos anos 60 a 1973, e da ‘crise’ subsequente”. Este livro, que “nasceu como notas de aula para o Mestrado em Economia da Universidade de Campinas. Cresceu na polêmica surda (grifos nossos) com outras posições. E acabou por ganhar vida própria, levando-me, entre relutante e fascinado, muito além de quaisquer planos.” Em 1979, Antonio Barros de Castro já argumentava contra a embriaguez, nesta obra cujo título já mostra a que vem: Antonio Barros de Castro, O capitalismo ainda é aquele (1979), Rio de Janeiro: Forense Universitária. Capa de Ziraldo. Talvez pudéssemos acrescentar sobre o nosso debate, parafraseando o professor polemista que O Imperialismo ainda é aquele e torcer para que os tempos da “polêmica surda” tenham sido superados definitivamente em favor do pensamento crítico [não existe crítica que não seja autocrítica e não existe crítica que se recuse a ser radical].

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de outrora (que é uma questão de “método”, mas que, quando observamos de perto, nos revela uma diferença entre as visões de mundo “atuais” em contraste com a visão de mundo ”clássica”). Antes, contudo, precisamos fazer uma pequena ressalva sobre a presença das teses “clássicas” entre autorxs contemporânexs. Entre uma grande constelação de autorxs, nossas observações permitem-nos assumir que Lenin reina incomparável no topo da lista, por razões que nos parecem evidentes demais para exigir demonstração. Ainda que sua concepção sobre o imperialismo pudesse ser apreciada de várias maneiras, tanto pelo modo como teceu seu argumento no livro, quanto pela configuração das potências depois do final da Segunda Guerra, a polêmica com Kautsky é um ponto bastante ressaltado. Por outro lado, autores como Bukharin e Hilferding aparecem em geral como bons escudeiros de Lenin, sempre a reforçar sua hipótese, mas sem grandes problematizações – à exceção de algumas discussões sobre capital financeiro empreendidas pelos economistas que se voltam à temática da financeirização. Hilferding, por vezes aparece mais distante de Lenin, mas que o permitiu chegar aonde chegou. A sempre maldita Rosa Luxemburg aparece com importância crescente, pelo fato de ter procurado caracterizar as relações do centro dinâmico do capitalismo com suas periferias crescentemente incorporadas ao modo de produção capitalista e antecipado – ainda que muito incipientemente – os problemas de esgotamento dos recursos naturais. Entretanto, ainda dominam as interpretações sobre seus supostos “erros” – subconsumismo, excessiva atenção aos esquemas de reprodução etc. Quando não aparece simplesmente para ser agredida, são apontados os seus “erros profícuos”. Por outro lado, autores importantíssimos para a conformação do debate marxista sobre o Imperialismo – como, para ficarmos com apenas um significativo exemplo: Bernstein – simplesmente são ignorados. Também recebem pouca atenção autorxs “neomarxistas” como, dentre muitos outros, Schumpeter e Hannah Arendt355. Nesse campo, Hobson aparece em uma posição distinta, o que nos parece que também podemos creditar à importância que Lenin lhe conferiu. Deste modo, Hobson sempre é citado como uma espécie de “pai fundador”, mas , dado seu caráter bastardo e “não marxista”, raramente é discutido com a profundidade que julgamos que suas teses merecem. Para nós, o resgate desses debates é de extrema importância para a historiografia do Imperialismo, ainda que uma tarefa impossível de ser empreendida individualmente, 355Até

onde sabemos, Harvey é a única exceção digna de nota.

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mais ainda nos termos em que nossa vida acadêmica nos exige em nossos tempos. Portanto, aqui, como já dissemos noutros termos, procuraremos seguir dois eixos principais: 1) quais são as principais “críticas” levantadas pelxs autorxs contemporânexs (pós 2001); 2) em quê, exatamente, o Imperialismo dos nossos dias seria teoricamente distinto do Imperialismo conforme analisaram “xs clássicxs”. E mesmo nesses dois eixos, o debate estará necessariamente incompleto. Não obstante, temos a pretensão de que nosso esforço ofereça alguma contribuição para aquela pesquisa coletiva sobre a historiografia do Imperialismo, especialmente procurando eliminar determinadas pistas-falsas que julgamos atrapalhá-la: acima de qualquer outra, a dificuldade de compreensão da segunda metade do século XX com as teorias desenhadas pelos idos da década de 1910. Mas para que possamos concatenar o raciocínio sem deixar de dar voz às nossas personagens, antes de refutá-la, assumiremos a suposição de que, ao longo do século XX, as

“teses

clássicas”

teriam

caducado.

Vejamos

como.

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Capítulo 5. Mudanças na dinâmica da rivalidade entre as potências imperialistas “Depois de uma hora de briga, com meu amor, um beijo é tão bom, tem tanto sabor, que a gente brigando uma vez,tem que acostumar e depois não pode viver sem brigar.” (Lupicínio Rodrigues)

Uma crítica bastante presente no debate atual concerne às mudanças da rivalidade entre as potências, que supostamente exigiria uma reformulação das teorias vigentes sobre o Imperialismo. Uma das mais claras manifestações dessa tentativa de colocar as novidades dos novos tempos nesse ponto foi empreendida por Aijaz Ahmad, publicando na Socialist Register de 2004, paradigmaticamente intitulado Imperialismo do nosso tempo. Explica Ahmad: uso a expressão simples ‘imperialismo de nosso tempo’ com o fim de evitar o uso de termos como ‘Novo Imperialismo’, que por estar em voga em diversos momentos, tomou significados distintos. O imperialismo tem estado conosco durante longo tempo, tomando diversas formas e reinventando-se na medida em que, para dizê-lo de algum modo, as estruturas do capitalismo global foram mudando. O que oferecemos aqui é uma série de indicações provisórias que tendem a facilitar a compreensão de uma conjuntura, ‘nosso tempo’, que em si mesma é um complexo de continuidades e descontinuidades – e como tal, algo muito mais novo.356

A observação inicial sobre o fato de que temos muitos “novos” Imperialismos nos parece irrefutável. A própria historiografia sobre o Imperialismo – que é muito mais recente do que o imperialismo – é fundada nessa clivagem. Hobson, por exemplo, o pai fundador por excelência dessa historiografia, argumentava já de início que o novo imperialismo distingue-se do velho, primeiro porque, em vez da aspiração de um só império crescente, segue a teoria e a prática de impérios rivais, cada um deles guiando-se por idênticos apetites de expansão política e de lucro comercial; segundo, porque os interesses financeiros, ou relativos ao investimento de capital, predominam sobre os interesses comerciais (p. 2)

Também levando em conta a questão da variedade de potências concorrentes, mas destacando a importância do capital financeiro como critério principal da distinção

356Socialist

Register, p. 72.

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– o que já faz de sua definição muito diferente em relação a Hobson –Lenin também considerava “novo” o imperialismo que estava analisando, uma vez que “a política colonial e o imperialismo já existiam antes da fase contemporânea do capitalismo e mesmo antes do capitalismo. Roma, alicerçada na escravatura, levava a cabo uma política colonial e praticava o imperialismo (pág. 81)”. Assim, procurando demarcar claramente a “especificidade” do imperialismo capitalista – que será o assunto principal do nosso próximo capítulo – completa o argumento: mas os raciocínios ‘de ordem geral’ sobre o imperialismo que negligenciam ou relegam para segundo plano a diferença essencial entre as formações econômicas e sociais, degeneram, infalivelmente, em banalidades ocas ou em jactâncias, como a comparação entre a ‘Grande Roma e a Grã-Bretanha’. A própria política colonial do capitalismo, nas fases anteriores a ele, distingue-se funcionalmente da política colonial do capital financeiro (mesma página).

Além disso, em 1978, Victor Kiernan publicou America, the new imperialism: from white settlement to world hegemony – republicado no Brasil, em 2009, sob o título Estados Unidos: o Novo Imperialismo357. E pra não deixarmos de citar a referência mais importante do debate atual, foi com o título de O Novo Imperialismo que David Harvey nominou seu livro, publicado em 2003 – e nessa mesma obra sugere que pode ser que estejamos entrando em um novíssimo imperialismo, conforme conversaremos à frente. Portanto, são muitas as possibilidades de periodização das mudanças internas do imperialismo, e várias gerações o chamaram de “novo”. O que não é tão simples de definir – para além do fato óbvio de que, com o passar dos anos as coisas mudam – é a delimitação de em que, afinal, consistem as novidades que fazem com que as categorias usuais percam sua capacidade explicativa? Para Ahmad, a novidade fundamental do imperialismo de nosso tempo é que ele emerge depois da dissolução das duas grandes rivalidades que marcaram a política global do século XX, ou seja, o que Vladimir I. Ulianov (Lênin) chamava de ‘rivalidade interimperialista’ da primeira metade do século XX, e o que podemos chamar, na falta de um termo melhor, rivalidade intersistêmica entre os EUA e a União Soviética durante cerca de setenta anos. O fim de tais rivalidades fecha a era política inaugurada pela Primeira Guerra Mundial, permitindo, assim, ao único vencedor, os EUA, partir de modo mais agressivo para saquear os possíveis espólios da vitória e a desfazer à vontade as conquistas que as classes trabalhadoras e as nações oprimidas do mundo haviam conseguido naquele período. Esta nova face do imperialismo surge não apenas depois da dissolução dos grandes impérios coloniais KIERNAN, V.G.. Estados Unidos: o novo imperialismo: da colonização branca à hegemonia mundial. Rio de Janeiro: Record, 2009[1978]. 486 p. Tradução de Ricardo Doninelli-Mendes. 357

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(principalmente o britânico e o francês) e das ambições de outros países capitalistas rivais (basicamente Alemanha e Japão), mas também depois da derrota definitiva do nacionalismo das burguesias locais em grande parte do chamado Terceiro Mundo (o anticolonialismo, as guerras de libertação nacional, o projeto Bandung, o não-alinhamento, o Estado protecionista em industrialização), o qual havia sido sustentado de forma considerável pela existência de um pólo alternativo sob a forma dos países comunistas. Os três grandes objetivos pelos quais os EUA travaram a guerra de posições ao longo do século XX – contenção/desaparecimento dos Estados comunistas, supremacia sobre outros países líderes e derrota do nacionalismo do Terceiro Mundo – foram alcançados. Longe de ser um imperialismo enrolado em um nó de rivalidades interimperiais, trata-se do imperialismo da era na qual (a) os capitais nacionais têm sido interpenetrados de tal modo que o capital ativo em qualquer território dado se compõe em proporções variáveis tanto de capital nacional como de transnacional; (b) o capital financeiro predomina sobre o capital produtivo numa extensão tal que nem a tese de Lênin sobre ‘exportação de capitais’ nem as advertências de John M. Keynes sobre a rapacidade dos rentistas puderam vislumbrar; e (c) tudo, dos mercados de bens até os movimentos financeiros, está globalizado a tal nível que o Estado global, com capacidades militares globais, converteu-se em uma necessidade objetiva do próprio sistema, muito além das ambições dos grupos dominantes norte-americanos que, para impor suas estruturas e disciplinas, têm que expor o complexo como um todo a fissuras tremendas e quebras potenciais.358

Em síntese, para Ahmad, “na medida em que se revisam aqueles textos clássicos, evidencia-se seu pertencimento a uma época totalmente distinta”359. Nem vamos entrar no mérito de reduzir as teses de Lenin à rivalidade entre as potências – Ahmad, como muitos outros, ao longo deste artigo, parece reduzir um trabalho seminal do materialismo histórico em uma espécie de “Teoria da Estabilidade Hegemônica”, por sua vez um subproduto das assim chamadas “Teoria das Relações Internacionais” de tipo estadunidense. Deixaremos para um momento posterior a discussão específica sobre os porquês de não concordarmos com a leitura do autor sobre o capital financeiro, quando também teremos a ocasião de procurar articular de outro modo a relação entre os “capitais nacionais” e já conversamos um bom tanto sobre os porquês de considerarmos que as “novidades” da globalização não exigem uma reformulação da categoria Imperialismo. Mas não poderíamos deixar de observar a inconsistência da afirmação de que não vivemos mais um período de rivalidade interimperialista. Como qualquer observador atual pode facilmente perceber, o tabuleiro do poder entre Estados Unidos, China e

358Idem, 359p.

p. 72-3. 79. Grifos nossos.

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Rússia [para não entrarmos no mérito das potências européias hoje em uma capenga União] está longe de se mostrar estável. 5.1 Rivalidade entre as potências hoje Não são poucas as vozes que vêm procurando alertar sobre os perigos da escalada da guerra interimperialista nos últimos anos. Uma das mais veementes com certeza é o jornalista australiano John Pilger, que, pelo menos desde 2008, vem denunciando “O Grande Silêncio” sobre “a Nova Guerra Mundial” em curso. Segundo ele, essa nova guerra é pautada em “um novo autoritarismo social” e muita hipocrisia em torno da defesa de “valores” vagos como a “democracia”, a “guerra contra as drogas”, o “terrorismo” e o “crime organizado”360. Em texto publicado pouco tempo depois da anexação da Geórgia pela Rússia, já alertava para a importância da possibilidade da escalada para um conflito de proporções mundiais. Desde então a situação se agravou bastante. Para Pilger, “o alerta sobre o desafio de uma nova Guerra Mundial está cada maior”361. Diante disso, procura indagar: “por que nós toleramos a ameaça de uma nova Guerra Mundial em nosso nome? Por que nós permitimos que esse risco seja justificado por mentiras?”. Para ele, a doutrinação acaba por encobrir o conflito por meio da capacidade deliberadamente inculcada nas pessoas de negar a realidade, como numa espécie de hipnose, de modo que é difícil – ou até impossível – aceitar a realidade mesmo quando ela está se impondo aos nossos olhos362. A título de exemplo de como a guerra já está em curso em escala planetária, Pilger cita os dados do ‘sumário atualizado da política externa dos Estados Unidos’ do historiador estadunidense William Blum, publicado todos os anos. Segundo esse relatório, desde 1945, os Estados Unidos tentaram derrubar mais de 50 governos, muitos deles eleitos democraticamente; interferiram fortemente nas eleições de 30 países; bombardearam a população civil de 30 países; usaram armas químicas e biológicas e tentaram assassinar diversos líderes estrangeiros. Ainda segundo o perspicaz Pilger,

360http://johnpilger.com/articles/the-new-world-war-the-silence-is-a-lie

(setembro, 2008)

361http://johnpilger.com/articles/breaking-the-last-taboo-gaza-and-the-threat-of-world-war

(setembro,2014) 362Por exemplo, em http://johnpilger.com/articles/the-strangelove-effect-or-how-we-are-hoodwinkedinto-accepting-a-new-world-war (abril de 2014)

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o nome de “nosso” inimigo variou ao longo dos anos, do comunismo para o islamismo, mas geralmente é alguma sociedade independente ocupando territórios estrategicamente úteis ou ricos em recursos naturais. Os líderes dessas nações são muitas vezes retirados do poder, como os democratas Muhammad Mossadeq, no Irã e Salvador Allende, no Chile; ou são assassinados, como Patrice Lumumba, no Congo. Todos são submetidos a uma campanha de caricaturização ou vilipêndio pela mídia ocidental – pense em Fidel Castro, Hugo Chávez, e agora Vladmir Putin363.

E o que há de novo nas “novas” posições dos Estados Unidos? Para o jornalista, o papel de Washington na Ucrânia é diferente somente em suas implicações para o resto de nós. Pela primeira vez desde os anos Reagan, os Estados Unidos estão ameaçando levar o mundo à Guerra. Como agora a Europa Oriental e os Bálcans são postos avançados da OTAN, os últimos Estados-tampões que fazem fronteira com a Rússia estão sendo dilacerados. Nós, no Ocidente, estamos sustentando neonazistas em um país onde os nazistas ucranianos sustentaram Hitler. (...) Os russos defenderam-se eles mesmos, assim como fizeram contra cada ameaça de invasão ocidental por quase um século. (...) Um truísmo corrente é que “o mundo mudou” depois do onze de setembro. Mas o que mudou? De acordo com (...) Daniel Elsberg, um golpe silencioso aconteceu em Washington e um militarismo desenfreado hoje impera. O Pentágono atualmente desenvolve “operações especiais” – guerras secretas – em 124 países. Em casa, o aumento da pobreza e a sangria da liberdade são o corolário histórico de um perpétuo Estado de Guerra. Adicione a isso o risco de uma guerra nuclear, e a questão se impõe: por que nós toleramos isso?

O problema, percebido por Pilger, é que, longe de constituir-se num voluntarismo de Putin, a anexação da Geórgia pela Rússia (em 2008) respondia aos imperativos da geopolítica, uma vez que ela estaria sendo acossada pela política dos Estados Unidos depois da queda do regime em 1991, sobretudo com o descumprimento da promessa de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) “não se moveria um centímetro para o Leste”. E é por conta de estar respondendo aos imperativos da geopolítica – e não por loucura, voluntarismo, ou especial crueldade – que, para ele, o risco da escalada para um conflito de proporções ainda maiores vem aumentando muito. Nesta visão, seriam os países Ocidentais (leia-se Estados Unidos e seus aliados europeus) que estariam forçando a Rússia a se posicionar de modo mais agressivo. Esse argumento, diferentemente do que pode parecer à primeira à pessoa não acostumada com o tema, encontra ressonância entre muitos estudiosos da guerra – à esquerda e à direita. Immanuel Wallerstein (à esquerda), por exemplo, em artigo de novembro de 2014, defende que 363http://johnpilger.com/articles/break-the-silence-a-world-war-is-beckoning

(maio, 2014)

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o colapso da União Soviética (...) deveria ter significado na teoria o fim de qualquer função para a OTAN. Na verdade, é bem conhecido que, quando o presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev aceitou a incorporação da República Democrática da Alemanha [Alemanha Oriental] à República Federal da Alemanha [Alemanha Ocidental], ele recebeu a promessa de que nenhum país do Pacto de Varsóvia seria incorporado à OTAN. Essa promessa foi violada. Ao contrário, a OTAN assumiu um papel inteiramente novo. Depois de 1991, conferiu a si mesma o papel de polícia mundial para o que quer que ela considere uma solução política apropriada para os problemas do mundo.364

Para Wallerstein, inclusive, é possível identificar entre as sociedades dos países da OTAN o que poderia ser chamado de “Partido da Guerra” [war party]. Mas não para por aí, e afirma que a OTAN e o que ela simboliza são hoje uma grave ameaça porque representam a reivindicação dos países ocidentais de interferir em qualquer lugar em nome de suas próprias interpretações da realidade geopolítica. E isso pode conduzir a um conflito altamente perigoso, e ainda mais intenso. Acabar com a OTAN seria um primeiro passo para manter a sanidade e para a sobrevivência do mundo. 365

A importância das mudanças da OTAN após os pactos negociados com o fim da União Soviética também são o ponto principal do conflito na visão de Noam Chomsky (também à esquerda), para quem

364http://iwallerstein.com/nato-danger-to-world-peace/ 365

Mesmo artigo.

(novembro, 2014).

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é extremamente perigoso o que se sucedeu desde que Washington violou as promessas verbais para Gorbachev e expandiu a OTAN para o Leste, junto às fronteiras da Rússia, além da tentativa de incorporar a Ucrânia, que é de grande importância estratégica para a Rússia e claramente tem íntimas ligações históricas e culturais com ela. (...) A autocracia russa está longe de ser irrepreensível, mas (...) nós estivemos perigosamente próximos do desastre antes, e estamos brincando com a catástrofe novamente. E não é por falta de possíveis soluções pacíficas. 366

Noutra entrevista, Chomsky afirma que “a missão da OTAN hoje mudou, e se tornou o controle do sistema global de energia e suas tubulações, e isso significa controlar o mundo367.” Para ele, diante disso, “não há garantias de que a prevenção das guerras nucleares continuem funcionando” e “hoje, especialmente quanto à crise da Ucrânia, e os assim chamados sistemas de defesa anti-mísseis próximos às fronteiras da Rússia, vivemos uma situação ameaçadora368.” Mas como vínhamos afirmando, o argumento de que os Estados Unidos e a Europa podem vir a provocar uma escalada da guerra com a Rússia pelas atitudes que vêm tomando não é exclusividade dos discursos anticapitalistas (como os de Chomsky e Wallerstein). É também, por exemplo, o argumento do ex-secretário de Estado Henry Kissinger (melhor enfatizar: direita), para quem “a Europa e os Estados Unidos precisam entender o impacto desses eventos, começando pelas negociações sobre as relações econômicas da Ucrânia com a União Européia”. Mais do que isso, defende que todos esses assuntos “devem ser objeto de diálogo com a Rússia”. Para Kissinger, as ações dos

366http://www.alternet.org/world/chomsky-world-crisis-isil-ukraine

(novembro 2014). Nos termos em que vimos analisando, William Pfaff afirma que a Otan acaba por funcionar como “a legião estrangeira do Pentágono”. William Pfaff, “A Foreign Legion for the Pentagon? NATO’s Relevance”, International Herald Tribune, Nova York, 7 nov., 2002, p. 8. Citado por Ellen Wood, O Império do Capital, pág. 119. Ellen Wood, comentando os argumentos de Pfaff, contudo, muda ligeiramente o rumo da prosa: “Dito de outra forma, a principal função da OTAN, agora mais do que nunca, tem menos a ver com forjar uma aliança contra os inimigos comuns do que com manter a hegemonia norte-americana sobre os amigos” (mesma página). Para ela, conforme resgataremos mais adiante, “Uma doutrina militar, então, está sendo desenvolvida nos Estados Unidos para tratar das contradições do capitalismo global. Seu primeiro pressuposto é que os Estados Unidos devem ter tamanho grau de supremacia militar que nenhum outro Estado ou combinação de Estados, amigo ou inimigo, se sentirá tentado a contestá-la ou igualá-la. O objetivo dessa estratégia não é simplesmente dissuadir ataques, mas, acima de tudo, assegurar que nenhum outro governo aspire à dominância global – nem mesmo à regional.” (pág. 119) Os objetivos dos Estados Unidos com as mudanças nos rumos da OTAN, neste sentido, estariam voltados tanto aos “inimigos” quanto aos “amigos”. 367A centralidade do petróleo em nossos dias é um dos pontos de maior destaque do livro de David Harvey, O Novo Imperialismo, em especial em seu primeiro capítulo: Tudo por causa do petróleo, no qual, depois de enunciar de maneira sagaz que “Não há dúvida de que o petróleo é crucial. Mas não é tão fácil determinar exatamente como e em que sentido o é” (pág. 24); glosa Mackinder e afirma que “quem controlar o Oriente Médio controlará a torneira global do petróleo, e quem controlar a torneira global do petróleo poderá controlar a economia global, pelo menos no futuro próximo.” (pág. 25) 368http://rt.com/news/203055-us-russia-war-chomsky/

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Estados Unidos e dos países da União Européia com relação às ações da OTAN pode, sim, levar à escalada da guerra. Ainda mais enfático é o eminente teórico (também de direita) do “realismo ofensivo” estadunidense John J. Mearsheimer, que em artigo de setembro de 2014 para a revista Foreign Affairs afirmou categoricamente que “a crise ucraniana é culpa do Ocidente”369. Seu argumento, que se assemelha ao de Pilger, consiste na refutação da “sabedoria predominante no Ocidente”, segundo a qual “a crise da Ucrânia deve ser creditada inteiramente às agressões russas” e que “o presidente russo Vladimir Putin anexou a Criméia atendendo ao desejo de longa data de ressuscitar o Império Soviético, e ele pode ir além e eventualmente anexar o resto da Ucrânia, assim como outros países da Europa Oriental”. Um exemplo dessa forma de estabelecer a narrativa, sem qualquer contenção das palavras, pode ser vista no artigo do The Guardian em sua edição de primeiro de fevereiro de 2015 assinado pelo polêmico “historiador e politólogo” britânico Thimothy Garton Ash (de direita370). Em sua coluna, Ash defende que “Putin é o Slobodan Milošević da antiga União Soviética: tão mal quanto, só que maior”. Para ele, “preocupada com a Grécia e a zona do Euro, a Europa está permitindo que uma nova Bósnia aconteça em seu próprio jardim”, ao que brada: “Acorde, Europa. Se nós tivéssemos aprendido qualquer coisa da nossa própria história, seria que Putin deve ser parado”. Nesta coluna, segue elencando medidas cujo centro gira em torno da importância de atacar a Rússia com duras sanções e o patrocínio – por parte dos Estados Unidos, que a estão negociando no Congresso – da modernização dos armamentos ucranianos. Mas também destaca a importância de uma guerra de contra inteligência liderada pela BBC britânica, porque, segundo ele, a Rússia insistentemente difunde mentiras nacionalistas e antiocidentais para esconder suas más ações. Assim, em sua opinião, a diplomacia deveria ser deixada para um momento futuro, pois agora é o momento de “agir”, ao que resmunga contra a lentidão inerente à tomada de decisões por parte do “Ocidente democrático” – com a União Européia acima das demais. Mas apesar dessa lentidão, segundo Ash em sua conclamação para a Guerra, o Ocidente precisa ter fé de que, embora no curto prazo as

https://www.foreignaffairs.com/articles/russia-fsu/2014-08-18/why-ukraine-crisis-west-s-fault A direita gringa, como a brasileira, também tem seus partícipes mais “folclóricos” e “politicamente incorretos”, infelizmente, para todo o mundo. 369 370

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ditaduras levem certa vantagem, no fim a democracia sempre vence371. Em suas pretensamente premonitórias palavras, no longo prazo, Putin vai perder. As pessoas que vão sofrer mais com a loucura dele serão os russos, não menos que aqueles na Criméia e na Ucrânia Oriental. Mas o longo prazo para ditadores hábeis e cruéis, à frente de Estados bem armados, ricos em recursos e psicologicamente feridos pode ser bastante longo. Antes dele chegar, mais sangue e medo irão ruidosamente fluir pelo rio Donets. (...) Então, o desafio é encurtar esse período e parar a mutilação. (...) Somente quando as forças militares ucranianas puderem conter a ofensiva russa e criar um impasse a negociação será possível. Às vezes, faz-se necessário armas para poder parar armas372.

E é importante que explicitemos que Ash, assim como muitos outros representantes do “partido da Guerra” também vem de há muito conclamando à ação, considerando que a Rússia já iniciou a escalada. Assim, para ele, os países “ocidentais” não podem “se dar ao luxo” de não reagir. Em sua coluna republicada no jornal O Estado de São Paulo de 13 de setembro de 2008, destaca o fato de que no sétimo aniversário dos ataques terroristas de 11 de setembro, China, Rússia e as mudanças climáticas competem com a Al-Qaeda para chamar nossa atenção. Os sete anos que se passaram desde 11 de setembro de 2001 confirmam uma antiga verdade: os problemas em geral não se resolvem, são apenas atropelados por outros problemas. Por exemplo, os de 8 de agosto. No dia 8/8 de 2008, duas poderosas nações declararam seu retorno ao cenário mundial. A Rússia invadiu a Geórgia usando tanques; a China abriu a Olimpíada de Pequim com seus acrobatas. A mensagem era a mesma: "Mundo, aqui estamos de novo".

O que não quer dizer que, para ele, a velha política da guerra entre as potências tenha simplesmente voltado atrás a roda do tempo. A Guerra ao Terror continua na ordem do dia. Mas Ash intercede junto aos leitores: não me interpretem mal. Uma grave ameaça dos terroristas jihadistas takfirs (declarados infiéis), possivelmente armados com bombas atômicas, biológicas ou químicas, continua pairando sobre nós. Eles têm uma ideologia que se baseia na fé, com a simpatia comprovada de uma minoria de muçulmanos desiludidos, principalmente os que vivem no Ocidente, e os meios para provocar destruição são perigosamente fáceis de encontrar. Enquanto vocês estiverem lendo este artigo, outro grupelho difícil de ser detectado, que trabalha num quartinho de uma casa perto de vocês, poderá tentar mais uma vez. Nem sempre será fácil frustrar suas tentativas. Proteger-nos contra "outro 11/9", sem destruir nossa liberdade no esforço de preservá-la, continua sendo um grave desafio para os líderes políticos de todos os países livres. O que se 371Para

uma visão com mais embasamento da crença de que, no fim, o “bem” sempre vence o “mal”, sugerimos https://www.youtube.com/watch?v=96N3k9IhHpw 372http://www.theguardian.com/profile/timothygartonash

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mostrou falsa é a afirmação dos neoconservadores de que esse desafio define todo o quadro da política internacional – para Norman Podhorez, a luta contra o fascismo islâmico é a 4ª Guerra Mundial. Voltando aos Estados Unidos após um ano de ausência, surpreendeu-me o fato de que a própria direita americana fala relativamente pouco da "guerra ao terror".

Mas é que – vamos insistir, na cabeça de Ash – "além do terrorismo, duas gigantescas mudanças estão definindo o mundo em que vivemos”. Em seus termos, até certo ponto, ambas podem ser atribuídas ao avanço mundial do desenvolvimento econômico "marketizado" (ou seja, a globalização). A primeira é a "ascensão do restante do mundo", que ficou clara em 8/8. Potências que não podem ser consideradas ocidentais desafiam o predomínio econômico do Ocidente. Estão derrotando o Ocidente no jogo que ele próprio inventou (assim como os ingleses são derrotados no críquete), e silenciosamente vão mudando suas regras. Analistas da Goldman Sachs previram que, até 2040, China, Índia, Rússia, Brasil e México apresentarão em conjunto uma produção econômica maior do que a do G-7. A tendência é mais importante do que o prazo. (...) Mesmo hoje, as mudanças que ocorrem em termos de poder econômico se traduzem em poder político e militar mais rapidamente do que havia sido previsto.

O fato é que – e aqui poderíamos concordar, caso Ash estivesse assentado em outros pressupostos sobre o período anterior – “teremos de nos confrontar com uma nova desordem mundial. Ou nova-velha, pois a desordem, mais do que a ordem, faz parte da condição mais natural da sociedade internacional.” Mas, sem medir sua própria metralhadora giratória raivosa (sabe como é a direita stand-up comedy) por outro lado, Ash também é contra a forma como foi conduzida a questão da Guerra ao Terror, por que a ordem internacional, que também pode ser chamada paz, é sempre uma frágil conquista. Não preciso repetir que, em sua reação aos ataques do 11 de Setembro, o governo George W. Bush contribuiu, ao longo de apenas sete anos, para a enfraquecer e não para construir a ordem internacional. A invasão russa da Geórgia foi, entre outras coisas, uma vingança pela invasão americana do Iraque. Com essa ameaça à ordem, a liberdade não é mais tão óbvia à medida que avançamos para o futuro. Os franceses referem-se aos seus 30 anos de crescimento econômico, depois da 2ª Guerra Mundial, como os "Trinta Gloriosos". Os futuros historiadores poderão considerar as três décadas que se passaram da Revolução dos Cravos em Portugal, em 1974, à revolução laranja da Ucrânia, em 2004, como os Trinta Gloriosos durante os quais a liberdade foi conquistando seu espaço na Europa, mas também na América Latina, na África e em alguns países da Ásia.

Mas aqui o jogo geopolítico se impõe mais uma vez. Para ele,

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Rússia e China não são apenas grandes potências que desafiam o Ocidente. Também representam duas versões alternativas do capitalismo autoritário, ou autoritarismo capitalista. É este o maior concorrente ideológico em potencial do capitalismo liberal democrático, desde o fim do comunismo. Talvez o islamismo radical possa impressionar milhões de muçulmanos, mas não irá além da umma (comunidade) dos fiéis, exceto pela conversão. O mais importante é que não pode ser associado de modo plausível à modernidade econômica, tecnológica e cultural. Por outro lado, a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos em Pequim, assim como os arranha-céus de Xangai, mostram que o capitalismo autoritário já reivindica essa modernidade com todo o direito. No estádio Ninho de Pássaro, a alta tecnologia audiovisual mais avançada prestou seu serviço a uma fantasia coletivista hiperdisciplinada, que se tornou possível graças aos recursos financeiros que nenhuma democracia teria ousado destinar a essa finalidade. Zhang Yimou, o diretor artístico [grifo nosso] das cerimônias da Olimpíada, disse que somente a Coréia do Norte poderia produzir aquelas exibições festivas de sincronização em massa. Durante cerca de 500 anos, a modernidade se espalhou pelo mundo a partir do Ocidente. O historiador Theodore von Laue a chamou de Revolução Mundial da Ocidentalização. Na Europa do século 20, a liberal democracia defrontou-se com duas poderosas versões de modernidade, ocidentais, mas não liberais: o fascismo e o comunismo. Parte do apelo desses sistemas estava precisamente no fato de serem modernos. ("Vi o futuro e ele funciona", disse um entusiasta ao regressar de Moscou.) A liberal democracia finalmente viu o fim de ambos, embora não sem uma guerra mundial, uma Guerra Fria e uma grande ajuda dos Estados Unidos373. Agora, na China, vislumbramos a perspectiva de uma modernidade que não é ocidental nem liberal. Mas será o capitalismo autoritário um modelo estável e duradouro? Esta, na minha opinião, é uma das principais questões do nosso tempo – que é ainda um tempo pós-11/9, mas também pós-8/8 e, em termos ecológicos, o tempo que corresponde a 5 minutos para a meia-noite.

Na sequência, a título de encaminhamento, Ash recomenda que os “países ocidentais” negociem também com os “outros” (palavra nossa, mas julgamos adequada ao repertório dele), destacando o tempo todo a importância dos valores da democracia e do liberalismo que fatalmente triunfarão. [Ufa!] Como vínhamos dizendo, para além da direita delirante – que ao que parece é também um fenômeno global a cada dia mais perigoso – vozes importantes do pensamento conservador estadunidense discordam frontalmente dessa visão de que a ordem internacional está sendo contestada por conta do acesso ao poder por parte de pessoas pautadas por uma visão de mundo antiocidental, antiliberal e antidemocrática. Para Mearsheimer, por exemplo, tudo isso é uma grande e conveniente mentira. Para ele, Para uma interpretação inteligente e de qualidade incomparavelmente superior sobre essa tese, sugerimos a leitura do genial Era dos Extremos de Eric Hobsbawm, em especial os capítulos Rumo ao abismo econômico (3), A queda do liberalismo (4) e Contra o inimigo comum (5). 373

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abaixo da retórica belicosa oficial, “os Estados Unidos e seus aliados europeus partilham a maior parte da responsabilidade por essa crise”. Mearsheimer, assim como o exsecretário de Estado yankee Henry Kissinger e os esquerdistas Noam Chomsky e Immanuel Wallerstein, acredita que a questão fundamental da crise em curso – que para ele tem grande potencial de escalada caso os Estados Unidos e seus aliados não ajam com “realismo” – também é a mudança no papel da OTAN depois da queda da União Soviética. Em suas palavras, a principal raiz do problema é o alargamento da OTAN, o elemento central de uma estratégia mais ampla que visa mover a Ucrânia para fora da órbita da Rússia e integrá-la ao Ocidente. Ao mesmo tempo, a expansão da União Européia para o leste e o suporte dado ao movimento democrático na Ucrânia – a começar pela Revolução Laranja de 2004 – também foram elementos críticos.

E, o que também é importante que se ressalte, porque indica uma tendência de prazo mais longo, essa mudança não é de hoje, porque “desde meados dos anos 1990, os líderes russos obstinadamente se opuseram ao alargamento da OTAN”. E dadas as constantes ofensivas, nos anos recentes os russos se empenharam em deixar claro que “não esperariam parados enquanto vizinhos seus de importância estratégica se transformavam em bastiões ocidentais”. Ainda segundo Mearsheimer, – vamos insistir, quem está argumentando isso é um dos principais defensores do “realismo ofensivo” estadunidense – para Putin, “a gota d’água teria sido a derrubada ilegal do presidente ucraniano pro-Rússia eleito democraticamente – o que ele corretamente [sic] denominou de ‘golpe’”. Assim, para ele, a resposta de Putin de tomar a Criméia com o temor de que a OTAN instalasse ali uma base naval não é um delírio de um homem maldoso e “antiocidental”, mas uma posição completamente justificada, defensiva, racional e correta (!). Ainda para o conservador professor Mearsheimer, eminente teórico da Guerra,

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o revide de Putin não deve ser visto com surpresa, sobretudo depois de o Ocidente se mover para o quintal russo e persistir ameaçando seus interesses estratégicos vitais, um ponto que Putin ressaltou enfática e repetidamente. As elites nos Estados Unidos e na Europa foram surpreendidas por esses eventos somente porque aderiram a uma visão equivocada da política internacional. Eles tenderam a acreditar que a lógica do realismo perdeu relevância no século XXI e que a Europa poderia ser mantida inteira e livre com base nos princípios liberais como o império da lei, a interdependência econômica e a democracia374.

O que é importante que destaquemos aqui é que Mearsheimer, partindo de pontos de vista completamente diferentes, e defensor de uma posição obstinadamente conservadora, também acredita que a aposta na paz liberal como previam os defensores da “globalização” não passa de uma grande besteira. Para ele, assim como para as diametralmente opostas correntes do leninismo, a rivalidade é a constante do sistema internacional e, sendo assim, a Guerra nunca deixa de ser o horizonte da tomada de decisões dos Estados375.  Sobre a racionalidade que embasa a possibilidade de escalada do conflito por parte da Rússia, é urgente que se tenha a ciência de que, o que já vinha se tornando a cada dia mais preocupante, no final de 2014 se agravou perigosamente. Essa preocupação, que a transcende em muito, pode ser simbolizada pela nova doutrina militar assinada por Putin, cujo tom é significativamente mais áspero que a versão anterior. É evidente que essa doutrina militar mantém a importância da “dissuasão nuclear”, que continua sendo considerada por ela um “direito legítimo”, mas, embora reitere que as maiores ameaças são os “riscos internos” – afinal, a principal função dos Estados nunca deixa de ser zelar pela ordem (opressão seletiva) dos “seus”; e embora afirme que a "probabilidade de uma grande guerra contra a Rússia diminuiu"; enfaticamente nomeia a OTAN como um dos maiores riscos à Rússia, especialmente sua insistência na implementação do tal escudo anti-mísseis. Segundo as principais lideranças que advogam a favor dessa causa, este “escudo” teria objetivos meramente defensivos, mas a Rússia não acredita nisso e contesta o “reforço das capacidades

374Mesmo

texto diferença, fundamental, é que para Lenin isso vale enquanto o sistema internacional for um sistema internacional capitalista; não é portanto, um mecanismo eterno. 375A

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ofensivas da OTAN diretamente nas fronteiras da Rússia e as medidas tomadas para implementar um sistema de defesa antimíssil global376”. Mas além da nova doutrina – que, como as outras, é uma carta de princípios que deve ser entendida como um “recado” – é crucial que se marque a importância do fato de que tanto Putin quanto diversos assessores importantes estão falando abertamente sobre a possibilidade de utilização do recurso nuclear no caso de uma escalada na Criméia com a participação das potências ocidentais, o que claramente consiste em uma ameaça. No mínimo, é um indicativo simbólico importante, e não deveria ser tratado como mera “retórica”, embora assim o perceba muita gente importante na política internacional “ocidental”, que aposta que tudo isso não passa de um blefe russo. Segundo reportagem da Bloomberg, do dia 15 de março de 2015, “o presidente russo disse que estava pronto para colocar as forças nucleares nacionais em alerta quando ele anexou a península ucraniana da Criméia (...) em caso de intervenção dos Estados Unidos e seus aliados.” Essa mesma reportagem, traz a informação de que o líder russo também teria dito que advertiu os Estados Unidos e a Europa para que não se envolvessem, ameaçando-os e indicando toda a disposição para defender suas ações, quando supostamente teria declarado: “Isso porque eu penso que ninguém quer iniciar um conflito mundial”. Além disso, Putin abertamente acusa-os de orquestrar a derrubada ilegal – Mearsheimer chama de golpe – do presidente eleito Ucraniano Viktor Yanukóvych, que era apoiado pela Rússia. Em todo o caso, por precaução, como a Rússia não estivesse segura de como os Estados Unidos e a União Européia iriam responder, Putin “ordenou às forças armadas para que estivessem prontas” para o que quer que acontecesse. Novamente de acordo com a reportagem, Putin teria declarado: eu falei com meus colegas e os disse que esse era um território historicamente nosso, pessoas russas moram ali, eles estavam em perigo e nós não poderíamos abandoná-los. Vocês estão dispostos a brigar pelo que? Vocês não sabem? Nós sabemos. E estamos preparados para isso377.

Ao que tudo indica, é claro para os russos que a interferência ocidental é uma política deliberada de Washington e seus aliados para cercear as ações russas. Segundo informação de The Independent, Putin “acusa os EUA de orquestrarem a crise, dizendo:

376http://www.dw.de/em-nova-doutrina-militar-putin-v%C3%AA-expans%C3%A3o-da-otan-como-

amea%C3%A7a-para-r%C3%BAssia/a-18153055 377http://www.bloomberg.com/news/articles/2015-03-15/russia-was-ready-for-crimea-nuclearstandoff-putin-says

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‘Eles ajudaram os nacionalistas e treinaram seus grupos armados, na Ucrânia Ocidental, na Polônia e em alguns lugares da Lituânia. Eles facilitaram o golpe armado’378”. A Rússia ainda não engoliu essa “interferência”, e tomando em consideração que a OTAN vem se manifestando no sentido de estabelecer bases na Polônia, na Romênia e em outros países próximos às suas fronteiras, a Rússia começa a estender suas ameaças aos países que apoiam ativamente essas iniciativas. Nesse contexto, as declarações se tornam cada vez mais ríspidas. Em artigo de opinião para o jornal dinamarquês Jyllands-Posten, em 21 de março de 2015, o embaixador russo em Copenhague, Mikhail Vanin, declarou que a Dinamarca pode vir a ser alvo de mísseis nucleares caso participe do sistema de defesa antiaérea da OTAN. Nas palavras de Vanin, acho que os dinamarqueses não compreendem plenamente as consequências de a Dinamarca aderir à defesa antimísseis liderada pelos Estados Unidos (...). Se isso acontecer, os navios de guerra dinamarqueses se tornam alvos dos mísseis nucleares russos. 379

Tão simples quanto isso.  Mas é evidente que essas declarações também podem ser vistas como uma pressão em favor de outros objetivos. Por exemplo, conforme sugere o historiador Igor Delanoë no artigo “A Ucrânia entre a guerra e a paz”, publicado na edição de março de 2015 da Le Monde Diplomatique Brasil, é possível que se estabeleça um acordo entre as partes – retomando os assim chamados acordos de Minsk – em que se dê uma solução pacífica que agrade minimamente cada uma das partes. Mas essa solução, longe de garantida, é de realização prática muito difícil, e implica necessariamente na aceitação tácita da anexação da Criméia pela Rússia. E é evidente que não encerraria as tensões mais duradouras com nenhuma das partes. Seria apenas uma espécie de trégua um pouco mais consistente380. Mas o que queremos argumentar, é que a questão não se resume à crise da Ucrânia, nem tampouco à política de expansão da OTAN. O “tabuleiro” no qual atuam as 378http://www.independent.co.uk/news/world/europe/vladimir-putin-says-russia-was-preparing-to-

use-nuclear-weapons-if-necessary-and-blames-us-for-ukraine-crisis-in-crimea-documentary10109615.html 379http://www.dw.de/dinamarca-pode-se-tornar-alvo-de-m%C3%ADsseis-russos-adverteembaixador/a-18333266 380Igor Delanoë, A Ucrânia entre a guerra e a paz, Le Monde Diplomatique Brasil (março de 2015). págs. 267. Ano 8, número 92.

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potências é muito mais amplo, e muito mais complexo. É o que chama a atenção, por exemplo, o mesmo Immanuel Wallerstein, para quem poderiam estar em curso alterações geopolíticas muito importantes que poderiam levar ao realinhamento das alianças, inclusive com estratégias milenarmente conhecidas pelos militares, de simular uma intenção numa direção para atacar em outra. É o que explicaria, para ele, os tratados de aproximação da Rússia com a China, que refletiriam, na verdade, a intenção da China de barganhar com os Estados Unidos e da Rússia de se aproximar da Alemanha (e, em menor medida, da França) 381. O importante aqui é que entendamos que a geopolítica é uma “ciência” muito complexa, na qual as alianças e as rivalidades se superpõem o tempo todo – coisa que, aliás, já defendiam tanto Lenin quanto Kautsky, dentre muitos outros. Sobre a questão da Alemanha, Wallerstein – com o que concorda o historiador Luís Felipe de Alencastro382 – também alerta para a importância que pode vir a assumir a crise diplomática entre Berlim e Washington por conta do episódio de 2014, quando os Wikileaks vazaram a informação de que teria sido descoberto um espião que teria grampeado as informações da chanceler Angela Merkel. Segundo o teórico dos sistemasmundo, esse incidente significa uma violação sem precedentes das relações entre ambos os países, e embora possa evidentemente ser contornada, a crise por ela gerada deve ser encarada com muita preocupação383. Outro indicativo da importância dessa possível escalada dos conflitos é que ela começa a aparecer no discurso de pessoas muito importantes para o mundo comandado pelo dinheiro. A título de exemplo, em um recente anuário para os negócios, um importante capitalista declara que “nossa política tem sido expressa claramente ao longo dos anos. Colocado de uma maneira simples, consiste em oferecer crescimento de capital de longo-prazo preservando ao mesmo tempo o capital dos acionistas”. Ao que emenda: “a realização dessa política enfrenta um momento de risco intensificado, complexidade e incerteza.” porque o “desenvolvimento econômico e geopolítico, (...) se torna a cada dia crescentemente mais difícil de prever”. Ao que discrimina,

381http://iwallerstein.com/geopolitics-ukraines-schism

(fevereiro, 2014) e http://iwallerstein.com/russian-chinese-geopolitical-game (junho de 2014) 382http://noticias.uol.com.br/blogs-e-colunas/coluna/luiz-felipe-alencastro/2014/07/11/espionagemagrava-tensao-diplomatica-entre-berlim-e-washington.htm#fotoNav=1. E também http://brasil.elpais.com/brasil/2014/07/12/internacional/1405192669_877921.html 383http://iwallerstein.com/germany-united-states-unprecedented-breach/ (julho, 2014)

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a economia mundial cresceu a uma taxa decepcionante em 2014 depois de anos de estímulos monetários e taxas de investimento extraordinariamente baixas. Os mercados de ações, contudo, estão próximos ao ponto mais alto de todos os tempos (...). De modo nada surpreendente, o valor do papel moeda tem sido aviltado conforme os países são levados a competir e crescer através da desvalorização de suas moedas. (...) As consequências indesejadas desses experimentos monetários nessa escala são impossíveis de se prever. Além desse contexto econômico [economic background], nós somos confrontados com uma situação geopolítica de um perigo que talvez nós não encaramos desde a Segunda Guerra Mundial: caos e extremismo no Oriente Médio, agressões e expansões por parte da Rússia, e a enfraquecida Europa desafiada pelo horrendo desemprego, em grande medida causado por um fracasso no enfrentamento de reformas estruturais em vários dos países que formam a União Européia. (...)

São por essas considerações que muitos analistas apostam que seria possível o estabelecimento de uma nova sorte de pacto social de tipo “keynesiano”, supostamente mais afeito ao crescimento, à geração de empregos e à estabilidade social. Neste contexto, seria possível regulamentar melhor as finanças e impor determinadas restrições de mobilidade com o intuito de aumentar os investimentos na “produção” e é o que supostamente se espera dos capitalistas que tenham se dado conta da gravidade do problema, como parece ser o caso do investidor em questão, que, “no entanto”, conclui, para desespero de keynesianos e desenvolvimentistas de vários tipos: “em um mundo de rendimento dos títulos zero, ou mesmo negativo as ações podem muito bem continuar sendo a escolha para os investidores destinarem seus recursos384. O capitalista em questão é Lord Jacob Rothschild, e que sua família esteja a mais de um século atrelada à história do imperialismo e do lucro dos grandes capitalistas é um ingrediente a mais para que entendamos a gravidade da situação, especialmente quando destacamos, em sua fala: 1) A recentemente declarada “retomada” da importância da geopolítica para a acumulação de dinheiro, marcando o fim de uma era

Fonte: http://www.ritcap.com/download/Annual-report-2014.pdf (todos os grifos são nossos). Há quem acredite em mudanças estruturais guiadas pela tomada de consciência por parte dos grandes investidores, como é o caso de propostas “heterodoxas” de pessoas como o bilionário Warren Buffet, que frequentemente vem a público com todo o seu cinismo defender que os governos devem diminuir o poder de que pessoas como ele próprio gozam. Assim, defende o aumento dos impostos sobre os mais ricos para a diminuição dos impostos sobre as classes médias (como por exemplo em http://economia.uol.com.br/ultimas-noticias/redacao/2011/08/15/bilionario-buffett-pede-paragoverno-dos-eua-aumentar-impostos-dos-mais-ricos.jhtm e http://folhapolitica.jusbrasil.com.br/noticias/113728312/warren-buffett-bilionario-diz-que-e-injustoque-classe-media-pague-mais-impostos-que-super-ricos). Para uma “comovente” declaração de um rico filantropo que acha que tem mais poder do que deveria ter, sugerimos https://www.ted.com/talks/nick_hanauer_beware_fellow_plutocrats_the_pitchforks_are_coming?languag e=pt-br. 384

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em que supostamente se lucrava “livremente”; 2) O reconhecimento do grau de imprevisibilidade econômico [sic] e geopolítico [sic] no mundo atual; 3) A aposta de que as “ações” e outras formas mais “líquidas” de apresentação do capital continuarão sendo a escolha dos capitalistas, tornando ainda mais ridículas as apostas em supostos pactos sociais “keynesianos” em favor da garantia e criação de empregos. É evidente que nenhum desses episódios irá fatalmente conduzir à escalada dos conflitos, ou à Terceira Guerra Mundial. Mas a cada dia parece mais claro que aquela estabilidade propagandeada a partir do fim da União Soviética

se torna

progressivamente mais inverossímil. Vivemos em um mundo crescentemente belicoso e a aposta de que a guerra entre as potências é impossível é nada realista. Ao contrário, a humanidade parece estar brincando com o azar e a proliferação nuclear aumenta progressivamente o risco de que em algum lugar, em algum momento, se acione o gatilho da escalada de modo que não se possa contê-lo. É o que defende, por exemplo, a reportagem de The Economist publicada em sete de março de 2015, segundo a qual, neste contexto, “o medo da Guerra nuclear é correto”. Em seus termos, vinte e cinco anos depois do colapso soviético, o mundo está ingressando em uma nova era nuclear. A estratégia nuclear se tornou um refúgio [cockpit] para regimes trapaceiros [rogue regimes] e inimigos regionais que pressionam as cinco potências nucleares originais (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, China e Rússia), elas próprias tendo que lidar com suspeitas e rivalidades. (...) Com o fim da Guerra Fria o mundo fechou com a idéia de que a aniquilação nuclear estava fora do jogo. Quando Barack Obama, discursando em Praga em 2009, trouxe novamente a meta de livrar o mundo das armas nucleares, ele foi tratado não como um defensor da paz [peacenik], mas como um homem de Estado. Hoje, sua ambição parece fantasiosa. Apesar de que o mundo continua se confortando com o pensamento de que a destruição mútua assegurada é improvável, o risco de alguém em algum lugar utilizar armas nucleares está crescendo rapidamente.

E como indício de que a ameaça aumenta a cada dia, The Economist argumenta que todas as potências nucleares estão gastando prodigamente para melhorar/atualizar/“modernizar” [upgrade] seu arsenal atômico. O orçamento de defesa russo tem crescido mais de 50% depois de 2007, e mais de um terço disso se destina às armas nucleares: o dobro, por exemplo, da cota francesa. A China, ainda um peixe-pequeno no campo nuclear, está adquirindo e investindo pesadamente em submarinos e baterias de mísseis móveis. O Paquistão está acumulando dezenas de campos de batalha nucleares [battlefield nukes] para compensar sua inferioridade em relação à Índia em termos de armas convencionais. A

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Coréia do Norte, presume-se, é capaz de acrescentar uma ogiva por ano em seu estoque, que já possui cerca de dez, e está trabalhando em mísseis que são capazes de atingir a costa oeste dos Estados Unidos. Mesmo o ocupante da Casa Branca laureado com o Prêmio Nobel da Paz solicitou ao Congresso por cerca de 350 bilhões de dólares para empreender um programa de uma década para a modernização do arsenal estadunidense.

E ainda que a qualquer momento o conflito possa ser deflagrado por algum dos Estados nucleares menores, a questão se torna particularmente perigosa quando analisada sob a ótica das potências. Segundo The Economist ressentido, nacionalista e violento, [Putin] quer reescrever as normas Ocidentais que sustentam o status quo. Primeiro na Geórgia, agora na Ucrânia, a Rússia tem demonstrado que vai promover uma escalada extrema para afirmar seu domínio sobre seus vizinhos e convencer o Ocidente que a intervenção é inútil. Mesmo se Mr. Putin estiver blefando sobre o uso de armas nucleares (e não existem razões para acreditar que ele está), qualquer líder nacionalista que vier depois dele pode vir a ser ainda mais perigoso. (...) A China representa uma ameaça mais distante, mas que também não pode ser ignorada. Apesar de as relações sino-americanas não se parecerem com a Guerra Fria, a China parece destinada a desafiar os Estados Unidos pela supremacia em grandes partes da Ásia. Seus gastos militares estão crescendo cerca de 10% ao ano. Sua expansão nuclear é projetada para conferir à China uma chance de retaliação utilizando o “segundo golpe” e os Estados Unidos devem tentar destruir seu arsenal. Entretanto, os dois mal falam sobre contingências nucleares – e uma crise sobre, digamos, Taiwan pode escalar de modo alarmante. Além disso, o Japão, vendo a força militar convencional da China, pode sentir que não pode mais depender dos Estados Unidos para se proteger. Se for assim, o Japão e a Coréia do Sul podem recorrer à bomba, criando, com a Coréia do Norte, mais uma situação regional perigosa.

Contra quem argumenta que, dada a umbilical relação entre as economias sinoestadunidenses, a escalada do conflito entre as duas potências é impossível, o editorial do jornal chinês Global Times385 do dia 13 de maio de 2015, defende o contrário. Segundo este mesmo editorial, fazendo eco a muitas vozes das “mídias ocidentais”, David Lampton, “um pesquisador estadunidense reconhecido pelos seus estudos sobre a China”, “recentemente nomeado o mais importante observador da China”, em discurso no Carter Center, em Atlanta, demonstrou preocupação quanto ao fato de que infelizmente as coisas mudaram drasticamente desde cerca de 2010. O ponto de inflexão está próximo... Estamos testemunhando a erosão de

385

Sobre o jornal: http://en.wikipedia.org/wiki/Global_Times

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alguns fundamentos críticos do laço predominantemente positivos entre Estados Unidos e China. 386

Isso explicaria o recente confronto em torno da mudança nas peças do jogo geopolítico no Mar da China Meridional, que vem produzindo uma série de declarações a cada dia mais ríspidas de todos os lados. Ainda que o jornal procure ressaltar que o relacionamento geopolítico entre Estados Unidos e China é complexo e não pode ser definido em simples termos de “melhorando ou piorando”; e que existem muitos laços que podem impedir a escalada da violência, defende que “nos últimos anos temos observado [que] rivalidades em torno de questões nacionais estão erodindo dramaticamente a confiança mútua” e se no passado ambos os lados tinham a confiança de que a guerra não era sequer uma opção nas relações bilaterais, agora, ainda que a guerra seja a última coisa que ambos desejam, os dois lados estão considerando essa possibilidade.

E mais uma voz alerta sobre a responsabilidade estadunidense em uma possível escalada, porque “a escalada do conflito não está na agenda de Beijing”, mas estando os Estados Unidos “excessivamente preocupados [over-anxious] com sua própria segurança, a paranoia estadunidense sobre a China vem crescendo, e isso é encarado como uma ameaça”. Por fim, termina o editorial com um aviso: “Washington deve ter cautela contra as indulgências do seu pensamento ofensivo”. No dia seguinte em novo editorial, o jornal Global Times comenta mais uma vez os conflitos em curso. Como que respondendo ao The Wall Street Journal, que reportou que “os Estados Unidos estão considerando utilizar aeronaves e navios para contestar as reivindicações territoriais chinesas” 387 e lembrando que “muitos comentários na mídia ocidental tem percebido um aumento das tensões entre China e Estados Unidos”, o jornal engrossa ainda mais o tom e diz com todas as letras: “se um plano agressivo for aprovado, ele irá criar grandes ondas no Mar da China Meridional, e um confronto entre os dois lados dificilmente poderá ser evitado.” Para eles, “as reivindicações chinesas são legítimas”. É evidente que Global Times defende uma perspectiva interessada e nada http://www.globaltimes.cn/content/921364.shtml. Sobre David M. Lampton, http://asiafoundation.org/about/profiles/david-m-lampton e http://asiafoundation.org/about/profiles/david-m-lampton 387http://blogs.wsj.com/chinarealtime/2015/05/13/u-s-military-proposes-challenge-to-china-seaclaims. Para mais informações sobre a crise do Mar da China Meridional do próprio The Wall Street Journal, http://blogs.wsj.com/chinarealtime/tag/south-china-sea/ bem como o vídeo http://www.wsj.com/video/us-china-dispute-heats-up-in-south-china-sea/B25F1D6E-E9BD-4A81-AC7A9EC7869A7F3C.html 386

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isenta, mas, mais uma vez, levemos em consideração o lado simbólico de uma declaração de que “Washington aumenta suas preocupações cínicas de que a China estaria expandindo suas atuações na região com propósitos militares, a despeito da insistência chinesa em defender que seus fins são pacíficos.” Mas, “se Washington tomar essas medidas estará violando flagrantemente a soberania chinesa, e pode esperar fortes medidas de resposta. Se a coisa piorar, a região verá o confronto entre China e Estados Unidos”. Ainda no mesmo texto, o editor reitera que “a China valoriza como ninguém a estabilidade da região, porque ela é fundamental para seus interesses nacionais” e que “a China continua evitando a escalada das disputas territoriais e marítimas sobre os assuntos de interesse geopolítico primário (...)”. Assim, desde que “com um efetivo controle de riscos, por enquanto, o confronto físico continua sendo improvável”. Mas se os Estados Unidos se aventurarem a ultrapassar os limites, farão do Mar da China Meridional um barril de pólvora. Washington estaria sendo ingênua se acha que neste cenário a China seria tolerante e exerceria a autocontenção. Do contrário, deveriam manter em mente que a China é uma grande potência com armas nucleares, e jamais tolerariam ações imprudentes naquela região. A China não tem a intenção de desafiar o equilíbrio da região, mas não irá evadir ante provocações à sua soberania por parte dos Estados Unidos. Nós gostaríamos de sugerir que Washington pense duas vezes antes de provocar uma reviravolta na sua política para a Ásia e o Pacífico. 388

Na sequência, ante as declarações de que os Estados Unidos consideravam a possibilidade de operações na região, o assunto voltou à tona. Novamente, o jornal afirma em editorial (agora no dia 22 de maio) – seguindo a linha que vimos traçando sobre os Bálcãs, que passa por autores como Wallerstein e Kissinger, Chomsky e Mearsheimer – que “Washington está aumentando as tensões com a China propositadamente e esse movimento está aumentando o risco de confrontação física entre ambos os lados”. Isso porque os Estados Unidos estariam “convencidos de que são mais capazes que a China de arcar com os riscos militares, o que os deixam menos preocupados sobre a tensão no Mar da China Meridional”. Mesmo para o jornal, o choque, contudo, não é inevitável, e depois desse momento de turbulência, é possível que “essas tensões possam, no futuro, ajudar a manutenção da estabilidade da região”. Mas para tanto, a China deve tomar muito cuidado com a aplicação das respostas às provocações estadunidenses, medindo proporcionalmente cada uma delas, enquanto “Washington deve manter em mente que o poder de seus navios de guerra” podem até 388

http://www.globaltimes.cn/content/921618.shtml

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ser capazes de algum dano imediato, mas no longo prazo, teria que encarar a “sabedoria centenária da China389”. Essa “sabedoria centenária” é tradicionalmente utilizada para insistir no fato de que com base em uma cultura milenar – no sentido amplo, militar evidentemente incluso – os chineses resistiram a diversas invasões, e, no longo prazo, conseguiram impor seu modo de vida para muito além das influências “externas”. Se vai sobreviver ao desafio de se modernizar na velocidade com que vem se modernizando sem abandonar essa cultura é uma das questões mais importantes das próximas décadas, não apenas para os próprios chineses, mas em grande medida para o mundo inteiro. O que não podemos perder de vista de imediato é que todas essas operações que vimos comentando ocorrem no contexto da publicação de uma nova “Estratégia Militar da China” – conhecida como “o livro branco” – que sublinha que, além do território tradicionalmente entendido, os oceanos, o espaço sideral, o ciberespaço e as forças nucleares foram apontados como um dos quatro “domínios de segurança críticos”

. Os chineses

390

continuam alegando que tudo isso é simplesmente para a defesa, mas ninguém parece acreditar muito. E independentemente da crença, faz parte da racionalidade da geopolítica se preparar para o caso de os chineses estarem simplesmente mentindo. A corrida armamentista chama a atenção de diversos especialistas, e ocorre em diversas partes do mundo tanto na periferia quanto no centro391, mesmo em países não declaradamente bélicos e independentemente de qualquer regulamentação392. É o que se manifesta nas palavras de Mikhail Gorbatchov, um dos mais destacados protagonistas dos acordos que colocaram termo à Guerra Fria, que quando questionado – pelo jornal alemão Der Spiegel – sobre o risco de uma guerra nuclear ser deflagrada hoje, respondeu: Estou muito preocupado. O atual estado das coisas é assustador. As potências nucleares ainda possuem milhares de ogivas nucleares. Armas nucleares ainda estão posicionadas por toda a Europa. O ritmo da redução dos arsenais desacelerou consideravelmente. Estamos testemunhando o início de uma nova corrida armamentista. A militarização do espaço é um risco real. O risco de proliferação nuclear é http://www.globaltimes.cn/content/922969.shtml http://www.globaltimes.cn/content/923571.shtml 391 Periferia: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/04/1620435-guerras-provocam-nova-corridaarmamentista-no-oriente-medio.shtml.Centro: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06/150616_corrida_armamentista_russia_eua_lgb. 392http://operamundi.uol.com.br/conteudo/reportagens/41548/alemanha+dobra+exportacoes+de+arm as+de+guerra+entidades+exigem+plebiscito.shtml 389 390

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maior do que antes. O Tratado Abrangente de Proibição de Testes Nucleares nunca entrou em vigor, principalmente porque os americanos não o ratificaram. Isso teria sido extremamente importante. 393

E ainda para Gorbatchov, a idéia de que a doutrina de mútua destruição assegurada é suficiente para impedir os conflitos nucleares é “uma idéia perigosa”. Para ele, Armas nucleares são inaceitáveis. O fato de poderem eliminar toda a civilização as torna particularmente inumanas. Armas como essas nunca existiram antes na história e não pode ser permitido que existam. Se não nos livrarmos delas, cedo ou tarde serão usadas. 394

Novamente é importante que ressaltemos: nenhuma dessas evidências, obviamente, deve ser lida como uma garantia de que a Guerra será deflagrada. Isso é impossível de prever e em cada um dos seus momentos a escalada, a rigor, é passível de ser contida. Contudo, sob nosso ponto de vista, é necessário que as tomemos em consideração como uma espécie de guia das ações, para que não nos esqueçamos das palavras do estrategista nuclear estadunidense Albert Wohlstetter, citado por The Economist, segundo o qual “nós devemos considerar algumas possibilidades extremamente desagradáveis exatamente porque nós queremos evitá-las395”. O fundamental é que se tenha em mente que, quando enfrentamos um conflito com esse grau de hostilidade, por uma questão qualquer da política, “interna” ou “externamente”, a qualquer momento, é possível que outro arquiduque “vá para a caçapa” mais uma vez e deflagre o conflito396. Como sabe qualquer pessoa que já pensou sobre a guerra: muitas vezes a possibilidade da guerra é o suficiente para a guerra pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar a batalha é suficientemente conhecida. Portanto, a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo

http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/derspiegel/2015/08/07/estamos-vendo-oinicio-de-uma-nova-corrida-armamentista-afirma-gorbatchov.htm 394 Mesmo lugar. 395http://www.economist.com/news/leaders/21645729-quarter-century-after-end-cold-war-worldfaces-growing-threat-nuclear?fsrc=scn%2Ftw%2Fte%2Fpe%2Fed%2Fnewnuclearage 396https://br.noticias.yahoo.com/blogs/marcelo-mirisola/o-arquiduque-na-boca-da-ca%C3%A7apa122049719.html 393

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o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz (págs. 79-80). 397

Quem poderia afirmar que temos garantia de que a guerra não acontecerá? Com efeito, a própria relação entre a guerra e a “política” é nada simples. A esse respeito, gostaríamos de remeter aos estudos do Professor Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos – professor da Unesp de Marília especialista em Gramsci e nas assim chamadas Teorias das Relações Internacionais – que em sua tese de doutorado, Clausewitz e a Política: uma leitura política de Da Guerra (USP, 2005), se dedicou ao tema na obra do famoso general prussiano com o objetivo de demonstrar que “a guerra é uma ação política específica, a saber, uma ação política forte, que envolve paixão, na qual os homens se lançam de todo o coração, com coragem (pág. 10)”. Clausewitz, como sabido, propunha que “[...] a guerra não é um mero ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas por outros meios”, ou ainda, com “a mistura de outros meios”. Rodrigo comenta: tal definição permite entender que a guerra pode ser comparada ao comércio e inserida nas relações sociais, já que ‘é sobretudo parte da existência social do homem [...]’, ‘[...] um choque entre diferentes interesses maiores que é resolvido pelo derramamento de sangue – que é a única maneira em que ela difere dos outros conflitos’. Na mesma linha de argumento: ‘Mais do que compará-la à arte, poderíamos mais acuradamente compará-la ao comércio, que é também um conflito de interesses e atividades humanas’ [...]e ‘[...] é ainda mais próximo da Thomas Hobbes de Malmesbury, Leviatã – ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil [1651] (tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, São Paulo: Editora Abril Cultural, 1ª ed. 1974. Muitas pessoas observam a pertinência dessa reflexão para o mundo contemporâneo. A título de exemplo, sugerimos Eric J. Hobsbawm, A era dos impérios, capítulo 13, onde Hobsbawm afirma que “Nos anos 1900, a guerra ficou visivelmente mais próxima e nos anos 1910 podia ser e era considerada iminente. E contudo sua deflagração não era realmente esperada. Nem durante os últimos dias da crise internacional – já irreversível – de julho de 1914, os estadistas, dando os passos fatais, acreditavam que realmente estivessem dando início a uma guerra mundial, Uma fórmula seria com certeza encontrada, como tantas vezes no passado. Os que se opunham à guerra também não podiam acreditar que a catástrofe há tanto tempo predita por eles chegara. Bem no final de julho, depois de a Áustria ter declarado guerra à Sérvia, os líderes do socialismo internacional se reuniram, profundamente abalados mas ainda convencidos de que uma guerra generalizada era impossível e que uma solução pacífica para a crise seria encontrada. ‘Eu, pessoalmente, não acredito que haverá uma guerra generalizada’, disse Victor Adler, chefe da social-democracia do Império Habsburgo, no dia 29 de julho. Nem aqueles que estavam apertando os botões da destruição nela acreditavam, não porque não quisessem, mas porque era independente de sua vontade: como o imperador Guilherme, perguntando a seus generais, no último minuto, se a guerra, afinal de contas, não poderia ser situada na Europa oriental se evitasse atacar a França e a Rússia – e ouvindo a resposta de que infelizmente isso era impraticável. Aqueles que haviam construído os mecanismos da guerra e ligado os interruptores agora estavam vendo, com uma espécie de incredulidade estupefata, as engrenagens começarem a se pôr em movimento. Para os que nasceram após 1914, é difícil imaginar como a crença de que uma guerra mundial não podia ‘realmente’ acontecer estava profundamente enraizada no tecido da vida antes do dilúvio. Assim, para a maioria dos Estados ocidentais, e na maior parte do tempo entre 1871 e 1914, uma guerra européia era uma lembrança histórica ou um exercício teórico para um futuro indefinido.” Hobsbawm, A era dos impérios, páginas 419 e 420. 397

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política, que pode por sua vez ser considerada um tipo de comércio em uma escala maior’. De modo correlato, ‘[...] a guerra em si não suspende as relações políticas ou as muda para algo inteiramente diferente [...]’ e a ‘[...] decisão pelas armas é para as operações maiores e menores o que é o pagamento em espécie para o comércio’ (págs. 8 e 9).

Mais à frente, Rodrigo sintetiza suas preocupações da tese: em suma, nos parece, em um primeiro momento, que a análise da guerra é intrinsecamente ligada à política, e nos permite aplicar parte da conceituação clausewitziana sobre a guerra à política. Isso permite dizer que estamos tratando essencialmente de coisas muito semelhantes ao abordarmos a guerra e a política? Não exatamente. Há pontos em que ambas podem ser aproximadas e outros que as diferenciam (pág. 10).

Trocando em miúdos, sob nosso ponto de vista, para que a guerra seja eliminada do horizonte da humanidade – se é que isso é possível – é fundamental que esta se estabeleça em bases não sustentadas pela rivalidade. O que quer que se pense sobre ele, não é o caso do modo de produção capitalista398. 5.2 Comentários sobre a centralidade da rivalidade intercapitalista para o debate do Imperialismo Segundo grande parte da bibliografia, a rivalidade interimperialista é a tensão fundamental do debate “clássico”, sobretudo pela polarização entre as teses de V.I. Lenin e Karl Kautsky, geralmente reduzida à questão da inevitabilidade do conflito entre as potências. Nesse assunto, acompanharemos o raciocínio do professor Leonardo de Magalhães Leite, da Universidade Federal Fluminense, em Sobre as teorias do imperialismo contemporâneo: uma leitura crítica, sob nosso ponto de vista um excelente trabalho de reconstituição sintética dessa polêmica, que por isso mesmo, como procuraremos demonstrar, expõe seus limites. Segundo Leonardo de Magalhães Leite, essa é a síntese d “a grande divergência dentro do marxismo clássico” que, dita de outra forma, é a questão de saber “se o

O mesmo Professor Rodrigo Passos sugere que Clausewitz exerce grande influência sobre a concepção revolucionária de Lenin. Segundo Rodrigo, “A tese central [do artigo citado] refere à existência de um parentesco intelectual entre Lenin e Clausewitz que aponta para a validade de vários aspectos da guerra para a política e principalmente para as revoluções” (Revista Outubro, nº20, 2012, pág. 152, disponível em https://www.academia.edu/9337419/Uma_leitura_sobre_Clausewitz_Lenin_a_revolu%C3%A7%C3%A3o _e_a_guerra e http://www.revistaoutubro.com.br/edicoes/20/out20_07.pdf) 398

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imperialismo constitui-se como o último estágio do capitalismo ou se pode surgir uma nova configuração capitalista pós-imperialista399”. Diferentemente de grande parte da literatura crítica, Leonardo M. Leite dá importância ao fato de que o que se costuma considerar os “formuladores da ‘teoria marxista clássica do imperialismo’” definidos pela busca da compreensão das causas, da natureza e das possíveis implicações da “nova fase que o capitalismo ingressara” é, com efeito, um “grupo heterogêneo de marxistas”, dentro do qual “constam distintas e muitas vezes antagônicas percepções sobre alguns traços conceituais”. Ao que temos um ponto crucial, que enunciaremos aqui para trabalharmos mais à frente, quando formos comentar os trabalhos da professora Virgínia Fontes. Leonardo de Magalhães Leite destaca – sob nosso ponto de vista com total razão – o fato de que de todo modo [independente de todas as possíveis divergências citadas por ele] a obra que se consolida como uma referência em termos do imperialismo é a obra de Lenin, O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Dentro da perspectiva da teoria marxista clássica, Lenin foi o último autor a teorizar sobre esta nova fase do capitalismo. Por isso, sem esquecermo-nos das críticas, podemos afirmar que sua obra representa uma síntese das construções teóricas até então.

Conforme argumentaremos na sequência, sob nosso ponto de vista, as polêmicas sobre a rivalidade, hoje, dizem mais do que as próprias teses, e explicitam os limites desses desdobramentos que foram feitos a partir delas, de modo que, como nos parece demonstrar o raciocínio do professor Leonardo, pelos próprios termos em que a polêmica se enuncia, do ponto de vista teórico, ela não pode superar o impasse inicial do qual parte. Vejamos como. Com o trabalho de analisar cuidadosamente uma lista extensa e consistente de autores contemporâneos – que também formam, como ele mesmo destaca, um grupo heterogêneo e por vezes antagônico – Leite espera resgatar uma importante polêmica no marxismo: por um lado, através de autores contemporâneos que atualizam as posições de Lenin; e, por outro lado, com autores que rompam com suas teses essenciais, aproximando-se das interpretações de Kautsky400.

Não nos interessa neste momento seu balanço – muito bem feito – sobre as posições desses “autores contemporâneos”, mas sim a maneira como os sintetiza.

399Leite,

L. de M. (2014, August). Sobre as teorias do imperialismo contemporâneo : Economia E Sociedade, 23(2), 507–534. Disponível em http://www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?id=3366&tp=a. 400Pág. 510.

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Com efeito, este artigo que citamos é uma espécie de síntese da dissertação de mestrado que Leonardo de Magalhães Leite defendeu no ano de 2010 junto ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico, Universidade Federal do Paraná intitulada Uma Análise das teorias do imperialismo contemporâneo à luz da teoria marxista clássica do imperialismo. Segundo suas próprias palavras (...) o objeto de pesquisa deste trabalho é analisar as teorias contemporâneas do imperialismo à luz das teorias marxistas clássicas. Espera-se, com isso, resgatar o sentido clássico de imperialismo, verificar se as interpretações correntes do fenômeno são coerentes com a interpretação clássica e analisar os limites e possibilidades da teorização contemporânea em termos do entendimento real do conceito. Por fim, refletir-se-á acerca da possibilidade de se enquadrar as diversas abordagens contemporâneas em termos de uma teoria do imperialismo que reflita as bases teóricas que a enseja. (página 10)

Tomamos aqui a liberdade de citar o artigo, que nos facilita o trabalho. Até onde conseguimos perceber, não há grandes divergências entre as questões principais da dissertação e as do artigo, mas evidentemente diversos pressupostos da dissertação não couberam no artigo. Em nossa análise mais cuidadosa dos pressupostos, encontramos um conjunto não de todo desimportante de discordâncias nossas com as interpretações do autor sobre as “teses clássicas”, mas isso neste momento não vem ao caso. O que nos importa destacar é que, com todos os seus muitos méritos, este trabalho, sob o nosso ponto de vista, leva o debate das rivalidades – que é menor do que a polêmica de Lenin contra Kautsky – ao seu limite máximo e, portanto, nos ilumina sobre outras tarefas complementares que precisamos empreender para avançarmos na luta contemporânea contra o imperialismo para além deste diapasão. Vejamos como. De acordo com a sua reconstituição temos que, do período imediatamente posterior à obra de Lenin até a metade do século XX, o capitalismo mergulhou em importantes convulsões: duas guerras mundiais e a crise estrutural da década de 1930. Parecia, então, “uma inescapável confirmação do cenário histórico antecipado por Lenin” (Arcary). Entretanto, de 1945 em diante, as transformações históricas do capitalismo indicam o nascimento de uma espécie de ultraimperialismo, através da afirmação da hegemonia estadunidense, bem como da consolidação de um tipo de internacionalização do capital que estreita os laços entre as burguesias dos países avançados. Nessa fase particular do imperialismo, o Estado assume um papel mais proeminente e ocorrem ganhos reais para a classe trabalhadora em termos de salários, caracterizando o que Duménil e Lévy classificam como compromisso keynesiano. O problema da sobreacumulação e a consequente incapacidade de valorização do capital se manifestam na década de 1970, marcando a transição para a fase contemporânea do

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capitalismo, na qual o regime de acumulação de capital apresenta uma natureza financeirizada (Lapavitsas) e uma lógica ditada pelo capital fictício (Carcanholo).

Tentemos voltar um passo atrás na reconstituição da polêmica “clássica”, tentando manter à mão a polêmica contemporânea em sua tentativa de explicação do período que as separa. Do ponto de vista de Kautsky, temos que “o que Marx disse sobre o capitalismo também pode ser aplicado ao imperialismo: os monopólios criam competição e a competição cria os monopólios” e, da mesma maneira que “a competição frenética de firmas gigantescas, bancos gigantescos e multimilionários força os grandes grupos financeiros” a recorrerem à formação de cartéis; “no mesmo sentido, o resultado da Guerra Mundial entre as grandes potências imperialistas pode ser uma federação dos mais fortes, que renuncie ao uso das armas”. De modo algum, portanto, isso implicaria para ele o fim das rivalidades, porque os cartéis nunca eliminam a rivalidade, ainda que produzam tréguas temporárias. Sua idéia reside apenas na consideração de que talvez fosse equivocada a aposta de que o imperialismo é a derradeira fase do capitalismo porque “a partir de um ponto de vista puramente econômico” – sempre ele – “não é impossível que o capitalismo possa ainda viver outra fase: a translação da cartelização da política externa: a fase do ultraimperialismo”, “a qual, é claro, nós devemos combater tão energicamente quanto nós fazemos contra o imperialismo, mas cujos perigos residem noutras direções”. Noutros termos, novamente “do ponto de vista puramente econômico”, “não existe nada que impeça que essa explosão violenta do imperialismo seja, por fim, substituída por uma santa aliança imperialista”. Não obstante, Kautsky não desconsidera o fato de que – para além do ponto de vista puramente econômico – a paz subsequente possa ser apenas mais um “pequeno armistício”. (todas as citações estão na página 46 da New Left Review 59) 401 Por outro lado, do ponto de vista defendido por Lenin em sua crítica, alguns escritores burgueses (aos quais se juntou agora Kautsky, que atraiçoou completamente a sua posição marxista de 1909, por exemplo) exprimiram a opinião de que os cartéis internacionais, sendo como são uma das expressões de maior relevo da internacionalização do capital, permitem acalentar a esperança de que a paz entre os povos virá a Não é aqui o lugar adequado para expormos nossa crítica ao fato de Kautsky superdimensionar a importância da discrepância entre nações mais desenvolvidas industrialmente e sua busca por recursos naturais das regiões “agrárias” que, ao nosso juízo, minimiza a importância do capital financeiro como critério explicativo. Pretendemos retomar o assunto em outros textos, mas por hora indicamos que já desenvolvemos este ponto preliminarmente em nossa dissertação de mestrado. 401

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imperar sob o capitalismo. Esta opinião é, do ponto de vista teórico, completamente absurda, e do ponto de vista prático um sofisma, um meio de defesa pouco honesto do oportunismo da pior espécie402.

Lenin passa por cima do fato de que Kautsky estava ali defendendo uma possibilidade, mas o ponto principal da crítica – seu ponto forte – é um apelo às relações concretas, à história. Em suas palavras, os cartéis internacionais mostram até que ponto cresceram os monopólios, e quais são os objetivos da luta que se desenrola entre os grupos capitalistas. Esta última circunstância é a mais importante, só ela nos esclarece sobre o sentido histórico e econômico dos acontecimentos, pois a forma de luta pode mudar, e muda constantemente, de acordo com diversas causas, relativamente particulares e temporais, enquanto a essência da luta, o seu conteúdo de classe, não pode mudar enquanto subsistirem as classes. 403

Como veremos mais à frente, essa mudança de posições de Kautsky – a bem dizer, da esmagadora maioria das lideranças da Internacional Socialista – deixou a ala mais radical do socialismo bastante surpresa, mais do que isso, indignada. Quem fica preso a esses textos específicos sobre o imperialismo, de cada um dos autores, dificilmente se apercebe de que a disputa principal não é sobre a possibilidade ou não de trégua entre as potências – isso seria o ponto que uma sorte de “Teoria da Estabilidade Hegemônica” trataria de forma obsessiva. Para Lenin, mais do que apontar para o fato evidente em si mesmo que as potências podem cooperar por algum tempo – Lenin nunca refuta isso – o problema principal da posição kaustkista é que, na prática, inclusive porque ela sustentou a famigerada aprovação dos créditos de guerra, da qual voltaremos a falar e, portanto, reforçava os interesses imediatos da burguesia, com quem fazia coro. E isso independentemente de quaisquer ressalvas em contrário por parte de Kautsky que, como vimos, dizia ser necessário combater o ultraimperialismo. No juízo de Lenin, “compreende-se que os interesses da burguesia alemã, por exemplo, para a qual Kautsky se passou na realidade nos seus raciocínios teóricos [...], ditem a conveniência de ocultar o conteúdo da luta econômica atual (pela partilha do mundo), de sublinhar ora uma ora outra forma dessa luta” 404. Assim, seu julgamento é o de que a ênfase na possibilidade da cooperação “política” que acomode a competição “econômica” tem por efeito encobrir o fato de que, concretamente, esse “sistema” repousa nas bases da concorrência, tanto 402Lenin,

obra citada, página 198. obra, mesma página. 404 Mesma página. 403Mesma

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entre as empresas como, principalmente, entre as classes [e por meio da hierarquização das empresas, classes e nações se compõe a “anatomia” da estratificação imperialista]. Os imperativos da constituição desta ordem – que não são em si mesmos “políticos” ou “econômicos” – é que interessa serem desvelados. E aqui a crítica de Lenin ao voluntarismo “político” se mostra essencial (e atual), por que os capitalistas não partilham o mundo levados por uma particular perversidade, mas porque o grau de concentração a que se chegou os obriga a seguir esse caminho para obterem lucros; e repartem-no “segundo o capital”, “segundo a força”; qualquer outro processo de partilha é impossível no sistema da produção mercantil e no capitalismo. A força varia, por sua vez, de acordo com o desenvolvimento econômico e político; para compreender o que está a acontecer é necessário saber que problemas são solucionados pelas mudanças da força, mas saber se essas mudanças são “puramente” econômicas ou extraeconômicas (por exemplo, militares), é secundário e em nada pode fazer variar a concepção fundamental sobre a época atual do capitalismo. Substituir o conteúdo da luta e das transações entre os grupos capitalistas pela forma desta luta e destas transações (hoje pacífica, amanhã não pacífica, depois de amanhã outra vez não pacífica) significa descer ao papel de sofista. 405

Lenin é explícito e se recusa a considerar qualquer possibilidade de armistício duradouro. A questão principal é que – voltaremos à questão, ainda que menos do que ela mereça – para Lenin, a classe operária não deveria apostar no armistício, mas aproveitar o momento de rivalidade agudizada e, em vez de procurar a paz – projeto de Kautsky – tomar o poder e transformar a guerra interimperialista em uma guerra civil, revolucionária, anticapitalista, socialista. Mas como o sistema é dinâmico – e Lenin insiste, com razão, concorrencial – existem imperativos que permanentemente alteram as “relações de força” e – em outros termos, estranhos ao vocabulário de Lenin – “desequilibram a balança do poder”. Cumpre sublinharmos – porque este é um assunto importante sobre o qual conversaremos na sequência do nosso argumento – que Lenin recusa seguir o enquadramento “estritamente econômico” proposto por Kautsky, porque ao fim e ao cabo, o fato dessas alterações as “relações de força” ocorrerem por motivos “econômicos” ou “extraeconômicos” (“militares, por exemplo”) “é uma questão secundária”. O ponto, novamente, que interessa é a compreensão das situações históricas concretas. E quanto a isso,

405Lenin,

obra citada, páginas 198 e 199.

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a época do capitalismo contemporâneo mostra-nos que se estão a estabelecer determinadas relações entre os grupos capitalistas com base na partilha econômica do mundo, e que, ao mesmo tempo, em ligação com isto, se estão a estabelecer entre os grupos políticos, entre os Estados, determinadas relações com base na partilha territorial do mundo, na luta pelas colônias, na “luta pelo território econômico”. 406

Agora, se levarmos essas considerações sobre a rivalidade para a reconstituição histórica do período transcorrido dos fins do século XIX aos nossos dias, a questão, sob nosso ponto de vista, se mostra insolúvel, ao menos no campo teórico: a Guerra Mundial (sintetizando, de 1919 a 1945) daria razão a Lenin, uma vez que houve o conflito. Já o período da Guerra dita Fria (quando restrita somente à relação entre as potências) pode ser considerada o início do “período Kautsky”, que supostamente vigorará enquanto não se deflagrar o confronto, se é que ele virá. E ainda que o considerássemos um critério decisivo para os marcos do debate, quando pensamos sobre o problema específico da deflagração do conflito (tanto no último século quanto nos últimos meses), embora nos pareça impossível concluir que a Guerra acontecerá, nos parece absurdo e irrealista considerar que ela jamais acontecerá. Portanto, Kautsky ou Lenin? Sob nosso ponto de vista, mais importante do que decidir entre Lenin e Kautsky quem é mais capaz de iluminar as questões da possível guerra entre as potências em nossos dias, é a compreensão de que o debate entre eles não é apenas um debate sobre a guerra ser inevitável, ou sobre a relação entre guerra e paz. A rigor, tanto um quanto outro considerava esses estágios transitórios e de difícil definição. A questão entre eles nunca foi de futurologia, mas, em muitos sentidos, em uma “aposta teórica”, ou seja: – vamos desconsiderar por hora a hipótese da traição pura e simples, que nos parece infrutífera – como conduzir a luta pelo socialismo a) considerando que a guerra é inevitável e que os acordos da burguesia são transitórios, e que a revolução é mais provável em um contexto de guerra interimperialista [Lenin]; b) considerando que é mais provável que as potências entrem em acordo (ao menos provisoriamente, mas por um tempo suficientemente longo) e que, neste contexto, a melhor estratégia para as classes trabalhadoras é fazer alianças provisórias com setores pacifistas da burguesia de

406Lenin,

página 199.

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modo a evitar as catástrofes da guerra que invariavelmente afeta mais os trabalhadores, muitas vezes pagando com suas próprias vidas [Kautsky] 407. E aí se revela mais uma vez a importância do debate sobre o retorno e o sumiço do tema, porque quando confrontado com o debate sobre o imperialismo e o ultraimperialismo, conforme já tivemos a ocasião de explicitar, se constata que, de fato, determinados momentos do século XX, vistos de um determinado ângulo, são mesmo passíveis de serem interpretados como um período de cooperação entre as potências. Tomando os dois debates (“sumiço” e “ultraimperialismo”) simultaneamente, perguntamo-nos 1) o período que vivemos é um período em que está afastada a possibilidade do conflito entre as potências [com ou sem o recurso nuclear]? 2) Se a possibilidade da guerra voltou depois de um período em que esteve ausente, podemos entender que houve um período imperialista, seguido de um período ultraimperialista e de um posterior “retorno” do imperialismo? 3) Se estamos em um período de “trégua ultraimperialista”, esse período é suficientemente longo para que possamos apostar na hipótese do ultraimperialismo enquanto quadro no qual se insere nossas possibilidades de luta contra o imperialismo? 4) Quanto tempo seria longo o suficiente para que essa estratégia fosse a mais indicada? Sob nosso ponto de vista, nenhuma dessas perguntas pode ser respondida de modo peremptório e é significativo que depois de examinar cuidadosamente as teses de um e de outro campo, o artigo de Leonardo de Magalhães Leite termine por concluir que

407Aqui,

aproveitamos para acrescentar a nota de rodapé do Professor Mariutti sobre as teses de Kautsky, que ilustram um tanto das nossas posições partilhadas. Em seu texto Interpretações clássicas do Imperialismo, publicado em Textos para Discussão, de 2013, Mariutti, justificando seu “recorte”, afirma que “A única grande interpretação que não será contemplada diretamente é a de Karl Kautsky. Esta autor será adequadamente retratado em estudos posteriores, dada a sua influência sobre as reflexões em torno do novo imperialismo. Mas alguns pontos precisam ser apontados aqui, ainda que de forma muito sumária. Na realidade, foi ele quem pautou o debate marxista, especialmente após os seus escritos publicados entre 1914 e 15, onde reforçou seus argumentos apresentados em 1912 de que o imperialismo não era a única política viável para os grandes financistas e que, mesmo com eclosão da Guerra, ela poderia cristalizar uma aliança entre as nações imperialistas – ao estilo dos cartéis – com o objetivo de estabilizar o sistema internacional e garantir a dominação da burguesia. Para evitar este cenário, ele sugeria uma aliança entre o movimento proletário e os setores pacifistas das classes médias e da burguesia contra a guerra (a exemplo do que ocorrera na Rússia começo de 1917) e, é claro, contra qualquer forma de imperialismo. Uma posição bastante sensata, e não necessariamente ‘reformista’”. (Página. 6). O mais importante nos parece indicar que, sob nosso ponto de vista, aquele debate marxista do começo do século XX ainda precisa ser resgatado em seus termos contemporâneos [daquele tempo], resgatando inclusive a imensa quantidade de textos importantes que foram debatidos na impressa socialista, comunista e socialdemocrata daquele período, e que, podemos dizer, salvo disposição em contrário, são praticamente ignorados pela literatura especializada nas discussões sobre o imperialismo, voltadas exclusivamente às obras paradigmáticas.

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como podemos observar, embora com alterações no plano da aparência, a essência de cada traço fundamental do imperialismo continua a mesma. A grande questão contemporânea, ainda obscura, é (...): qual o futuro mais provável, imperialismo ou ultraimperialismo?408

Ou seja, cerca de cem anos passados depois da explicitação das teses de Lenin e Kautsky e com todos os debates teóricos que os seguiram, mesmo considerando toda a história do século XX e suas guerras, do ponto de vista teórico, “a grande questão contemporânea, ainda obscura” é exatamente a mesma: “qual o futuro mais provável, imperialismo ou ultraimperialismo”. Sob nosso ponto de vista, do ponto de vista teórico, tal impasse sugere que devemos seguir outros caminhos investigativos e deslocar a questão para ver se, sob outro ângulo de visão, outros aspectos nos permitem avançar nas pesquisas. O que nos parece, portanto, depois de acompanharmos uma retrospectiva muito bem feita e rigorosa sobre os textos mais importantes da historiografia contemporânea que se debruçou sobre essa questão, é que quando tomadas pelo eixo central da polêmica sobre “rivalidade entre as potências”, as “teorias sobre o imperialismo” não tem nada de novo a acrescentar do ponto de vista teórico, qualquer que seja o seu mérito em “atualizar” a morfologia dos elementos. Ainda sob nosso ponto de vista, nos parece que, no entanto, esta não é a única maneira de apreciarmos os debates “clássicos” sobre o imperialismo. Quando retiramos a rivalidade do núcleo explicativo e consideramos que o imperialismo é o momento em que a subordinação das pessoas ao capital se torna progressiva (o que, julgamos, encontra respaldo nas argumentações “clássicas”) nos parece evidente que ainda estamos na mesma fase de Lenin e Kautsky, embora possivelmente em outra “subfase” (que também precisa ser definida, conforme já discutimos). Assim como na fase de Lenin e Kautsky, e – talvez de uma maneira ainda mais intensa – vivemos sob um sistema que se reproduz em razão da acumulação do capital, necessariamente sustentado por estruturas de repressão que atuam tanto “internamente”

(“estado

de

polícia”)

quanto

“externamente”

(“megapotências

expansionistas”). Mas aqui também precisamos ter em conta alguns pontos: a questão mais importante não é a de saber se as questões analisadas são “puramente econômicas” ou não. Nem tampouco o é determinar se o imperialismo é ou não a fase derradeira do capitalismo – que é uma das possibilidades de compreensão sobre a obra de Lenin, e não 408Leite,

pág. 531.

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é de todo incompatível com a idéia de que dentro dessa mesma fase pode haver outras subfases, talvez até mesmo as indicadas por algumas dessas interpretações contemporâneas – divergentes entre si. O que cumpre que anotemos com muita atenção é que o núcleo do argumento de Lenin é que o Imperialismo é uma “fase” do Capitalismo. Saber se ele é a última, a mais recente ou a superior – várias maneiras de compreender as teses do russo, muito disputadas ao longo da história do debate e da linguística – é menos importante do que o fato de que é um conceito que se volta à definição de um momento e, portanto, é um conceito de temporalidade409. Quais são as consequências disso é um assunto para mais tarde. Ainda precisamos contestar outras críticas antes de retomarmos este problema.

Segundo o professor de russo Rodrigo Alves do Nascimento, em conversa por via eletrônica, “A frase toda em russo, no original, é: “‘Империализм, как высшая стадия капитализма’; (...) ‘высшая’ é um superlativo e significa ‘o mais alto, superior’, ou ainda, em alguns contextos religiosos, ‘Supremo’. ‘стадия’ significa "estágio, período, fase ou etapa’. Todas essas possibilidades de tradução, das duas palavras, foram tiradas do dicionário que tenho aqui, que é bem completo e atualizado.” NASCIMENTO, Rodrigo Alves do. Tradução do título do livro Imperialismo, de Lenin. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por: . em: 29 mar. 2015. Para os fins que nos propomos, como podemos verificar, a polêmica não pode ser resolvida pela linguística, dado que na língua original os termos possuem diversos significados, abrindo brechas para os infindáveis problemas. Contudo, polêmicas à parte, não nos parece que a questão de que o vocábulo ‘стадия’ implica em uma temporalidade seja sempre levada às suas últimas consequências lógicas, como explícito na próxima seção, dedicada à crítica de que as teses leninistas seriam “economicistas”. “Efetivamente, o que é um ‘período’, uma ‘época’? Aqui reside o problema fundamental.” [Novais, Aproximações, Anotações sobre a vida cultural na época do Antigo Regime. Pág. 160.] 409

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Capítulo 6. O suposto economicismo nas teorias clássicas do Imperialismo “Sô véio e sô feliz, mais véio é quem me diz”

(Adoniran Barbosa)

Outra crítica às teorias marxistas do Imperialismo muito recorrente compete ao suposto “simplismo” com que estas encarariam o papel do Estado no desenrolar da dinâmica capitalista. Noutros termos, de acordo com essa crítica, as teorias marxistas do Imperialismo seriam "economicistas". É, por exemplo, a leitura de Vivek Chibber, em texto já comentado e que tem grande influência no debate atual sobre o imperialismo. Para ele, nos anos imediatamente posteriores à publicação de Imperialism, o grande peso [sheer weight] de algumas figuras como Hilferding, Luxemburg, Lenin e outras figuras da Segunda Internacional exerceu uma atração gravitacional das teorias políticas do Imperialismo para as sistêmicas e econômicas. De fato, a mais notável característica desses trabalhos é a virtual ausência de qualquer discussão em política, ou a mediação política das forças econômicas profundas que supostamente estariam conduzindo os projetos imperiais. Existe, em vez disso, uma determinação única [single-minded determination] para alcançar [to get] a raiz econômica [economic taproot] do fenômeno. (…) Para Lenin e Luxemburg, o Estado não figura como um fator independente na explanação sobre o imperialismo, principalmente porque eles operam com uma razoavelmente simples noção da relação Estado-capital. Na discussão de Lenin sobre toda a miríade de fatores que dirigem os poderes imperialistas, o Estado é quase inteiramente ausente, sendo largamente creditada a ele uma hipótese, penso eu, de que os Estados basicamente fazem o que seus capitalistas dizem a eles para fazer. Assim, uma vez que surgem, as operações dos cartéis e trustes nas economias avançadas decidem sobre como retalhar o mundo entre eles, e é assumido para Lenin que os Estados tomam este como o projeto deles próprios. O legado dessa perspectiva tem sido uma conformidade com o economicismo nas análises da política externa dos Estados Unidos: por trás de toda mudança nas decisões políticas, é iniciada uma procura pelo rastro de dinheiro do grande grupo pronto para lucrar com elas410.

Do nosso lado, julgamos importante apontar que esses comentários ignoram completamente todos os outros textos que tanto Lenin quanto Rosa escreveram sobre o 410

CHIBBER, p. 2-3.

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Estado, nos quais problematizam a questão com muito mais profundidade do que nos textos sobre o Imperialismo – nos quais a questão aparece, diferentemente da leitura de Chibber. A nosso juízo, a consideração dessas obras já modificaria substancialmente as críticas de que Imperialismo de Lenin e A acumulação do capital de Rosa reproduzem uma visão simplista sobre o Estado. Além disso, pensamos que um estudo sistemático sobre as obras de ambxs mostraria claramente a coerência e a profundidade de suas considerações sobre o papel do Estado no período do imperialismo para muito além dessa redução mecanicistas que a crítica neles aponta. Podemos encontrar uma versão ainda mais profunda desta crítica a Lenin em um livro importante para o debate marxista contemporâneo, The making of global capitalism: the political economy of American Empire411, dos influentes Leo Panitch e Sam Gindin. Além de criticar a incontáveis vezes citada máxima segundo a qual o Estado seria o comitê executivo dos negócios comuns da burguesia (visão esta supostamente defendida em seu suposto simplismo pelos “autores do imperialismo”) Panitch e Gindin vão além e contestam praticamente todas as bases daquelas teorias do imperialismo e colocam em xeque a própria relação entre Capitalismo e Imperialismo. Em suas próprias palavras, a análise da dimensão internacional do capitalismo, e o insight de que a exportação do capital estava transformando o papel do Estado tanto nos países que o exportam quanto no países que o importam, foram as mais importantes contribuições dos teóricos do imperialismo que escreveram no começo do século XX. Mas a ligação que essa teoria estabeleceu entre a exportação de capital e a rivalidade interimperialista naqueles anos era problemática, e se tornaria ainda mais a partir de 1945. O problema não era apenas que as teorias clássicas do imperialismo viam o Estado como mero comandado de suas respectivas classes capitalistas, e, por isso, não deram suficiente importância ao papel que desempenhavam as classes dirigentes pré-capitalistas na rivalidade interimperial daquela época. Era também que eles tratavam a exportação de capital ela mesma como imperialista, e assim, suas teorias não registram, de fato, a diferenciação entre as esferas política e econômica do capitalismo, ou a importância dos impérios informais a esse respeito. Isso, por sua vez, – como disse Colin Leyes – foi produto da dificuldade [failure], em 'desembaraçar [disentangle] o conceito de imperialismo do conceito de capitalismo'. Apesar de isso não ser surpreendente, dada a conjuntura em que essas teorias foram formuladas (na escalada para a Primeira Guerra Mundial e durante seu desenrolar) sua tendência em associar diretamente a nova exportação de capital à velha história do imperialismo (como uma extensão do controle [rule] por meio da conquista armada de territórios), os conduziu a erroneamente concluir 411Ed

Verso: London, NY, 2012.

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que essa fusão define o estágio final [historical terminus] do capitalismo maduro [mature capitalism]412.

Como vemos, a crítica é bastante radical (de raiz), chegando inclusive a contestar as explicações basilares daquelas "teorias clássicas". Segundo os autores, além disso, a noção de 'capital financeiro' (extrapolada de longe dos trustes monopolistas formados entre as firmas industriais e financeiras na virada do século na Alemanha) foi o obstáculo ao entendimento da ligação mais frouxa entre produção e finança que crescentemente se tornou a norma, seguindo a trajetória estadunidense, ao longo do século. Mas o mais problemático de tudo foi a tentativa de explicar a exportação de capitais em termos da saturação dos mercados domésticos nos principais países capitalistas. Desse modo, falharam em reconhecer as implicações de longo-prazo no crescimento das organizações da classe trabalhadora para a dinâmica do capitalismo. Na “Era de Ouro” depois de 1945, quando os mercados domésticos não estavam saturados; os lucros foram realizados pelo aumento do consumo da classe trabalhadora, enquanto o capital ele mesmo foi transformado ao longo do século XX no contexto da integração internacional da produção pelas corporações multinacionais e o extensivo desenvolvimento dos mercados financeiros internacionais. 413

Não parece haver dúvida de que a ampliação do consumo de massa ao longo do século XX alterou substancialmente a dinâmica do capitalismo, mas isso seria suficiente para invalidar as teorias outrora formuladas? Há que se demonstrar. Do nosso ponto de vista, pensamos que não. Primeiro porque, como teremos a ocasião de discutir em seus pormenores, a transformação dos Estados no centro e na periferia, apontadas pelos autores como “a mais importante contribuição dos teóricos do imperialismo que escreveram no começo do século XX” – brilhantemente argumentada por Rudolf Hilferding na parte derradeira de seu O Capital Financeiro, supostamente um livro de “economia” que extrapola a configuração do capital na Alemanha para todo o sistema do capital – simplesmente não pode ser explicada senão pelas transformações na natureza imperialista das exportações de capital [que tinham por objetivo gerar lucros por meio da apropriação dos recursos “naturais” e “humanos” da periferia]. Depois, porque a fusão entre a “nova exportação de capitais” e “a velha história do imperialismo” é a raiz de toda a explicação marxista sobre o Imperialismo. Nas “teorias clássicas”, como teremos a ocasião de discutir, o Imperialismo não deve ser entendido como um recorte “econômico” [como Panitch e Gindin os acusam] ou “político” [o recorte por eles

412 413

Pág. 5-6 Pág. 6

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preferido] mas como uma totalidade e, portanto uma temporalidade – nos termos daquela época: um (novo) estágio/fase/período/etapa do capitalismo. No referido texto de 2004, Chibber, resgatando argumentos que o jornalista liberal John A. Hobson levantou no começo do século passado, já alertava “a esquerda” sobre os problemas em que incorre essa perspectiva defendida por Panitch e Gindin. Para Chibber, a mais importante contribuição de Hobson em Imperialism, a study, é que o autor apresenta a guerra enquanto “consequência dos problemas sistêmicos da economia capitalista”, delineando o que Chibber denomina “argumento estrutural”. É ali, que pela primeira vez que Hobson apresenta de modo cristalino o que já vinha defendendo em seus trabalhos anteriores, quando já afirmava que as guerras colonialistas britânicas vinham sendo travadas de modo mais ou menos direto a serviço dos interesses financeiros da City (o que Chibber chama de “uma espécie de explicação política para a expansão imperial”)414. De acordo com esse argumento – a principal razão da simpatia que Lenin nutria por esse trabalho – “o impulso do expansionismo foi uma tentativa de encontrar uma solução para os profundos e sistêmicos problemas da acumulação capitalista”. Ao que Chibber destaca, com perspicácia: o que é digno de nota, e em geral é ignorado nos estudos sobre Hobson, é que enquanto ele desenvolvia a segunda visão de grande fôlego sobre o Imperialismo [o “argumento estrutural”, ou “econômico”], Hobson também continuou a utilizar a explicação política – no mesmo texto (grifos nossos). (…) Se existem forças estruturais – necessidades funcionais profundas da economia – exigindo um impulso expansionista, existe uma alta probabilidade de que os grupos envolvidos nessas políticas sejam encontrados nas mais altas camadas do Estado. O Estado não pode permanecer impermeável às demandas estruturais de sua base econômica. A importância da retenção dos argumentos políticos por Hobson é que, se você não comprar o argumento do subconsumo – ou qualquer argumento que advirta para as necessidades sistêmicas ocultas do capitalismo – então existe um segundo mecanismo à mão para explicar a agressão imperial. Então Hobson nos deixou um duplo legado. O ponto que merece atenção, porque ilumina a súbita guinada

Em nossa dissertação de mestrado, dedicamos o terceiro capítulo, comentando as teses sobre o “capitalismo gentleman”, para a nossa apreciação da importância das relações pessoais da City para a conformação de uma nova classe social proprietária da nova forma de capital, a forma de capital “superior”, a “mais sublime e a mais absurda forma do capital”, o “capital financeiro”. Ali aparecia um problema de extrema importância para esta tese, ainda que abordado de maneira apenas lateral: a constituição de uma visão de mundo burguesa organizada a partir de uma mentalidade de mercado na base e de contramercado na cúpula já organizada por meio da indistinção das formas parciais sob o domínio deste capital financeiro – em sentido que iremos precisar. 414

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evidente nos novos estudiosos, um século depois das análises clássicas de Hobson. 415

O que nos interessa particularmente é que, segundo Chibber, aqui está a principal diferença entre as teorias do imperialismo de então e as de hoje. Não é que as pressões estruturais e condicionantes estão hoje sendo consideradas irrelevantes. Em vez disso, elas aparentemente são tomadas como uma premissa implícita para a análise: presente, mas não teorizada. 416

Assim, o indiano destaca a importância de se observar as duas explicações simultaneamente – “as duas almas de Hobson” – para a compreensão dos fenômenos do imperialismo – mesmo por que: de qual ponto de vista elas se excluem?. A título de ilustração – e porque voltaremos ao assunto dentro em breve – é bom que adiantemos que, para Chibber, temos à nossa disposição uma “notável exceção”, que consegue fazer jus a essa dupla explicação: o “extraordinário livro de David Harvey, The New Imperialism” que “em sua motivação básica (...) é um avatar das teorias marxistas clássicas” que se distingue pela “maneira como ele relaciona imperialismo e as necessidades estruturais do capitalismo”, “mas a arquitetura do livro também possui as marcas das teorias do Estado desenvolvidas pela New Left durante os anos 1970´s”

.

417

Voltaremos à maneira como Harvey procura dar conta desse desafio de encarnar – enquanto um avatar das teorias marxistas clássicas [rs] – o que Chibber chama de “as duas almas de Hobson” – e na verdade como ele encarna mais o Hobson do que os marxistas e a marxista. Mas voltando a Panitch e Gindin, sob nosso ponto de vista, apesar de oferecerem contribuições relevantes na “descrição atualizada” do fenômeno do Imperialismo – em especial quando discorrem sobre as dinâmicas estadunidense no pós-Guerra –; do ponto de vista teórico, ignoram um século de tradição dos estudos sobre o Imperialismo. Inclusive, não consideram a importância dos avanços empreendidos pelo próprio Hobson, amplamente elogiado por enxergar além das políticas imperiais e desvendar as “raízes profundas” do Imperialismo em sua relação com a dinâmica do capital. Assim, Panitch e Gindin não apenas acrescentam novidade nenhuma à teoria marxista sobre o (CHIBBER, p. 2) Sob nosso ponto de vista – que em grande medida difere do de Chibber – os trabalhos que seguiram essa linha de Hobson (por exemplo Hilferding, Lenin, Bukharin, Luxemburg, Kautsky) comungam dessa dupla preocupação (com menor ou maior sucesso, a depender de muitas coisas, inclusive o foco). A questão é que o materialismo histórico não pode – como iremos argumentar na sequência – partir dessa separação positiva entre “economia” e “política”. O problema teórico, portanto, deve ser sustentado em termos completamente diferentes. 416 P. 3 417 Mesma página. 415

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imperialismo como a negam radicalmente. No anseio por criticar o “economicismo”, passam ao largo das pressões estruturais do modo de produção capitalista e situam o imperialismo em sua dimensão exclusivamente “política”. Superdimensionam a questão da política internacional e passam ao largo das determinações capitalistas. Ao que nos parece que deveríamos indagar se não seria isso uma espécie de “politicismo”, algum tipo de inversão do “economicismo” que procuram refutar. Além disso – e provavelmente mais importante – devemos notar que, ao retirar as motivações “econômicas” do imperialismo, Panitch e Gindin estão fazendo coro com as alas mais conservadoras entre as defensoras do Império estadunidense – o que evidentemente não é um critério de validade em si mesmo, mas tem implicações que nos interessa refutar. Essas implicações ficam claras quando observamos os falcões estadunidenses que adoram lembrar as glórias de Roma, estabelecendo a comparação do Imperialismo contemporâneo com outros tipos de Império anteriores ao capitalismo. Para isso, obviamente, precisam operar um recurso analítico crucial, de modo que a transposição seja tão possível quanto desejada. Nas palavras de John B. Foster, sobre aquela campanha de valorização do termo “Império” que conforme apresentamos no capítulo anterior, impôs a predominância das discussões sobre o Imperialismo entre marxistas, não se opera – e nem poderia operar – sem que se obedeçam a certas “regras” que fazem com que “só as motivações benevolentes dos Estados Unidos devem ser enfatizadas”, qual seja? Segundo Foster, “os proponentes do novo imperialismo devem limitar-se cuidadosamente aos conceitos militares e políticos de império e imperialismo (evitando qualquer alusão ao imperialismo econômico)”. 418 Assim, para Foster, “tudo o que é preciso para tornar a comparação plenamente aproveitável é libertar o conceito das suas velhas associações marxistas de hierarquia econômica e de exploração – para não mencionar o racismo” e, assim, “eles devem evitar quaisquer noções radicais que liguem imperialismo com capitalismo e exploração”. 419

Professor Mariutti acrescenta que existe uma dimensão deste resgate que também é crucial, a saber, a seletividade da escolha de qual “fase” do império romano será reivindicada, sugerindo a leitura de The End of American Era, de Charles Kupchan. 419(FOSTER, 2002) O autor conclui: “A redescoberta do imperialismo pelos medias dominantes significa somente que estes processos estão a ser agora apresentados, especialmente nos círculos governantes dos Estados Unidos — uma realidade da qual não há nenhuma escapatória. A revolta contra esta nova fase do imperialismo, contudo, claramente só agora começou. A maior parte da população do mundo sabe aquilo que os sábios americanos convenientemente esquecem, que o imperialismo americano assemelha-se aos impérios exploradores do passado, e provavelmente sofrerá o mesmo destino dos outros, com revoltas internas e ‘bárbaros’ às portas.” 418

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Ainda que Panitch e Gindin estejam verdadeiramente preocupados em estabelecer uma oposição sincera contra o “Imperialismo Global levado a cabo pelo Império dos Estados Unidos da América” [não temos qualquer indício de que não estão] o que essa retomada parcial do conceito Imperialismo sem a consideração de seu caráter capitalista faz – pouco importa se essa tarefa é executada à esquerda ou à direita – é esterilizar a problemática do Imperialismo de todo o seu potencial revolucionário. Deste modo, o discurso “crítico” se aproxima perigosamente do discurso da ala imperialista mais ufanista. Procurando refutar esse procedimento, procuraremos argumentar nos próximos passos de nosso raciocínio que, mesmo se existisse algum “economicismo” para ser criticado por parte dxs clássicxs, essa crítica não pode se sustentar em qualquer sorte de “politicismo”. Como teremos a ocasião de discutir na sequência, tanto o “economicismo” quanto o “politicismo” deitam raízes no mesmo lugar: o modo fetichizado como o pensamento burguês se configura – e, tendo isso em mente, não nos parece estranho que a crítica parcial ao imperialismo partilhe o mesmo argumento que seus mais destacados defensores. Do nosso lado, para a crítica efetiva do imperialismo (e do capitalismo, do qual o imperialismo é um momento), não nos basta estabelecer duas categorias estáticas “economia” e “política” e apresentar a relação – de (sobre) determinação – entre elas – por mais “dialético” que o argumento possa parecer à primeira vista, e seus defensores insistam em argumentar. Nem tampouco seria menos inadequado se a elas duas acrescentássemos quaisquer outras, como a “cultura” ou a “religião”. O que a perspectiva anticapitalista exige, como já indicamos, não é a apresentação da dinâmica entre cada uma dessas “esferas” – o fetiche máximo da “interdisciplinaridade” –, mas a adoção de uma perspectiva radicalmente distinta; a perspectiva da totalidade – um modo de pensar o mundo completamente diferente da perspectiva das dimensões parciais das “esferas da existência” (“economia”, “política”, “cultura” etc.) e que surge somente da crítica a esta. Além disso, o que nos parece mais importante de ser denunciado, é que essa sorte de interpretações que se volta a dimensões parciais da existência, ao negar os vínculos da totalidade, abre espaço para todo o tipo de pseudo-críticas que confundem as possibilidades de ação anti-imperialista com a abertura para agendas reformistas extremamente limitadas. Por exemplo, combater o “neoliberalismo”, ou o “capital

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especulativo” – e não o modo de produção capitalista em sua totalidade. A escolha desse alvo para a crítica, independentemente da vontade e da astúcia de cada um dxs propositorxs, abre espaço para apenas três tipos de agenda “políticas”: a) o reformismo inocente que excluiu a disputa política em todo o planeta e para a qual a única coisa que importa é a campanha interna dos Estados Unidos para que os ocupantes da Casa Branca sejam menos hostis; b) o reformismo ingênuo que acredita que é possível reinventar um “New Deal” de tipo “keynesiano”

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sem o apoio dos capitalistas; e c) o reformismo

canalha que propagandeia acriticamente o “desenvolvimento sustentável” e atribui a culpa pelas desgraças do capitalismo aos indivíduos tomados isoladamente. Cada uma delas é, a rigor, uma maneira tipicamente burguesa de assimilar a crítica. É por isso que nossa refutação precisa ir aos fundamentos dessa visão de mundo. 6.1 O “discreto charme” da ciência burguesa: economicismo, juridicismo e outros ismos 6.1.1 A crítica de Karl Polanyi à falácia economicista

Conforme César Benjamin ressalta em Nota da edição brasileira de A subsistência do homem e ensaios correlatos, de Karl Polanyi, “é longa a tradição de cientistas sociais que buscaram interpretações abrangentes do fenômeno humano” e, no bojo dessa tradição, “o húngaro Karl Polanyi (1886-1964) foi um dos mais originais.” Benjamin segue a apresentação contando que Polanyi “estudou Direito e Economia Política. Socialista desde jovem, não aderiu ao marxismo nem militou em partidos, mas foi um fomentador de ideias e um organizador de pessoas” e que “em 1908 criou o Círculo Galileu, grupo de ativistas que se opunha ao caráter retrógrado do ensino universitário na Hungria, lutava por reformas democráticas e organizava cursos para educação de adultos”. Este grupo, fundado e liderado por Polanyi, contava com a participação, entre outros, de jovens que marcariam época em suas respectivas áreas de atuação, como Karl Mannheim e Gyorgy Lukács421. Karl Polanyi é um autor bastante sofisticado que se dedicou a uma ampla gama de assuntos que perpassam um conjunto muito grande de “disciplinas”, dentre as quais se destacam a Antropologia e a Economia. Reconstituirmos suas linhas gerais na tentativa de incorporá-lo no debate específico que nos escalamos para comentar seria uma tarefa Aquele mesmo que tenta sempre “colocar a pasta de dentes de volta ao tubo”. A subsistência do homem e ensaios correlatos Org. Kari Polanyi Levitt Introdução Michele Cangiani Tradução Vera Ribeiro Revisão César Benjamin Ed. Contraponto, RJ, 2012 420 421

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extremamente longa e que deveria necessariamente passar pelas influências de gente como Max Weber e Thorsten Veblen, bem como as interlocuções com autores do calibre de Fernand Braudel. Não nos atreveremos, por razões óbvias. Entretanto, procuraremos acessar – ainda que passando ao largo de algumas possivelmente necessárias mediações – seu debate sobre a constituição do campo do “econômico” de modo que possamos, na crítica à sua crítica, chegar ao ponto que no interessa: criticar não apenas o economicismo, mas a própria concepção de mundo segundo a qual é desejável, para melhor apreendê-las, dividir as coisas dos homens em “esferas da existência” ou “disciplinas do conhecimento”, seja ela a economia, o direito, a antropologia, a política ou qualquer outra – à qual, a despeito de quaisquer intenções em contrário, sob nossa avaliação, Polanyi sucumbe. Do nosso ponto de vista – como vimos procurando argumentar – é preciso que resgatemos – a despeito de sua inegável dificuldade intrínseca – o projeto da crítica a determinados fundamentos da ordem vigente que ataquem a sua constituição em sua totalidade. A crítica a qualquer um dos campos isolados do conhecimento científico inevitavelmente reforça o fetiche em ao menos um outro, e isso, por sua vez, reforça o fetiche da própria visão de mundo ao qual nos cumpre a oposição. Mas nos adiantamos. De imediato nos interessa observar a maneira pela qual Polanyi busca demonstrar a originalidade – na história dos seres humanos – da constituição das traves principais nas quais se sustenta a sociedade atual. Neste ponto em específico, algumas vezes Polanyi é comparado com Karl Marx, se não em suas implicações, em alguns de seus encadeamentos teóricos. Em alguma medida nos parece uma comparação adequada, desde que se estabeleçam os pontos de aproximação e afastamento. É o contraste entre essa proximidade entre alguns encadeamentos teóricos e as diferenças no que concerne às possibilidades emancipatórias entre Polanyi e Marx que nos interessa destacar, porque, ao nosso juízo, essa é uma forma promissora de alcançar os limites da visão de mundo em questão422. Começando pelas proximidades, temos a bem fundamentada introdução A teoria institucional de Karl Polanyi: a sociedade de mercado e sua economia “desenraizada”, de

É evidente que existem outras. A escolha por Polanyi se deve a dois motivos principais. O primeiro, é que ele interessa a um conjunto de interlocutores dessa tese, dentre os quais se destacam nossos colegas do GENII. O segundo ponto, diretamente ligado ao conteúdo da tese, é que Polanyi é uma das referências mais importantes de Ellen Wood, autora de destaque na historiografia contemporânea sobre o imperialismo com a qual conversaremos na sequência. 422

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Michele Cangiani, que expõe, dentre outras coisas importantes, o argumento de que, para Polanyi, os mercados locais, o comércio exterior e a moeda existiram em quase todas as sociedades. Mas o sistema de mercado, como forma de organização social, é bem diferente disso e coincide com o capitalismo. Quando o uso dos recursos humanos e naturais – sustenta Polanyi – foi organizado em ‘unidades industriais, sob o comando de pessoas privadas, empenhadas sobretudo em comprar e vender para obter lucro’, a ‘ficção da mercadoria, aplicada ao trabalho e à terra, transformou a própria substância da sociedade humana’ (Polanyi, A subsistência do homem). A peculiaridade da sociedade moderna é ressaltada de maneira semelhante por Marx: a grande maioria dos bens transforma-se em mercadorias, escreve ele, (O Capital), somente em um modo de produção absolutamente específico, o capitalista’, que se caracteriza como uma ‘era dos processos sociais de produção’ pelo fato de que ‘o proprietário dos meios de produção e subsistência encontra o trabalhador livre vendendo sua força de trabalho no mercado’. 423 (pág. 15) Tais propostas teóricas e políticas implicam uma crítica tão profunda da economia, que chega a exigir uma definição diferente de ‘economia’. ‘O significado substantivo do econômico’, escreve Polanyi (A economia como processo instituído), ‘decorre de a subsistência do homem depender da natureza e de seus semelhantes. Refere-se ao intercâmbio com seu meio natural e social, a medida e que isso resulta em lhe prover os meios de satisfazer a necessidade material’. Uma definição similar pode ser encontrada em Marx (Grundrisse): ‘Todo processo de produção é uma apropriação da natureza pelo indivíduo, dentro e por intermédio de determinada forma social [Gesellschaftsform]’. 424

Agora segundo as próprias palavras do autor, o projeto intelectual de Polanyi teve como um dos seus objetivos centrais a refutação de “um portentoso obstáculo” com os quais se deparam “os esforços de nossa geração para chegar a uma visão mais realistas do problema geral da subsistência do homem”: “um hábito de pensamento arraigado, peculiar às condições de vida no tipo de economia que o século XIX criou nas sociedades industrializadas [...] personificado na mentalidade de mercado” (p. 47), também definido com o sugestivo nome A falácia economicista – título do primeiro ensaio da referida edição. Segundo Polanyi, quase nunca é pertinente resumir a ilusão central de uma era em termos de um erro lógico, mas, em termos conceituais, é impossível descrever de outra maneira a falácia economicista. O erro lógico foi algo comum e inofensivo: um fenômeno genérico foi considerado idêntico a outro, já familiar. Nesses termos, o erro consistiu em igualar a economia humana em geral com sua forma de mercado (erro talvez facilitado pela ambiguidade básica do termo econômico, à qual voltaremos adiante). A 423 424

P. 15. P. 16.

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falácia é evidente: o aspecto físico das necessidades do homem faz parte da condição humana: não pode existir sociedade que não possua algum tipo de economia substantiva. Por outro lado, o mecanismo de ofertaprocura-preço (que chamamos mercado, em linguagem popular) é uma instituição relativamente moderna e possui uma estrutura específica: não é fácil estabelece-la nem mantê-la em funcionamento. Reduzir o âmbito do econômico especificamente aos fenômenos de mercado é eliminar a maior parte da história humana. Em contrapartida, ampliar o conceito de mercado para fazê-lo abarcar todos os fenômenos econômicos é atribuir a todas as questões econômicas as características peculiares que acompanham um fenômeno específico. É inevitável que a clareza de pensamento fique prejudicada. 425

Neste momento, ao destacar a “clareza de pensamento”, o autor parece sugerir que esse fosse um problema das posturas dos intérpretes aos quais implicitamente se refere426. Mas na sequência, coloca o problema noutros termos, mais profundos. Para ele, não é simplesmente uma questão das possibilidades de “clareza do pensamento”, por que os pensadores realistas [sic] explicitaram a distinção entre a economia em geral e suas formas de mercado: foi em vão, pois essa distinção sempre foi obliterada pelo clima intelectual [Zeitgeist] economicista. Esses pensadores enfatizaram o significado substantivo do termo econômico. Identificaram a economia com a indústria, não com os negócios; com a tecnologia, não com o cerimonialismo; com os meios de produção, não com os títulos de propriedade; com o capital produtivo, não com as finanças; com os bens de capital, não com o capital – em suma, com a substância econômica, não com sua forma e terminologia de mercado. 427

A despeito dos “pensadores realistas” – que o autor não nos permite saber quem são – “as circunstâncias” – que ele também não indica quais – “foram mais fortes que a lógica”. Para ele, “forças históricas esmagadoras” – novamente não sabemos quais – “entraram em ação para fundir esses conceitos díspares em um só.428” O que o autor enfatiza, contudo, é que se trata da constituição de uma sociedade regulada pelo mercado. Do nosso lado, somos levados a especular em quais circunstâncias, para Polanyi, “a lógica” poderia ser “mais forte” que as “forças históricas” e o que isso significaria. Uma das possibilidades é a acusada tendência a superestimar o peso dos “intelectuais” e/ou dos “estadistas” em uma espécie de voluntarismo que nos é muito

P. 48. Essa tendência permanece nas suas posteriores formulações. Não teremos a ocasião de demonstrar, mas sugerimos que x leitorx investigue por si próprix nas obras indicadas, a despeito de quaisquer críticas, muitíssimo instigantes. 427 Mesma página. 428 Mesma página. 425 426

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familiar, e explicaria a peculiar atração que determinados aspectos de sua teoria assumiram entre “nós”429 em detrimento de outros que nos parecem mais promissores. Mas deixemos isso de lado por hora, para que possamos seguir com o argumento de Polanyi, em geral bastante profícuo, apesar da penumbra entre “os pensadores”, “a lógica”, o “clima intelectual” etc. Sugerimos a quem se interessar pelo tema que acompanhe o raciocínio do autor no próprio texto, mas aqui gostaríamos de reter um aspecto fundamental da sua breve crítica da Economia Política (em especial Quesnay, Smith e Marx): a importância do “constructo da ideia de excedente”, que “foi, simplesmente, a projeção do modelo de mercado sobre um aspecto mais amplo da existência – a economia.430” Mas ao que nos compete, a argumentação de Polanyi se torna mais interessante, novamente, na medida em que se desloca de um problema interpretativo – o “erro lógico” – para a própria realidade, na medida em que a “ficção” “se materializa” e passa a funcionar como o elemento de organização da sociedade. Em seus termos, no início, a identificação falaciosa dos ‘fenômenos econômicos’ com os ‘fenômenos de mercado’ foi compreensível. Mais tarde ela se tornou quase uma necessidade prática da nova sociedade e do estilo de vida que nasceram das dores da Revolução Industrial. O mecanismo de Nós quem, cara pálida?! P. 51. Não temos condições de reproduzir as apropriações e as críticas de Polanyi ao sistema marxiano como um todo, nem ao menos nos problemas que aparecem aqui de forma mais direta, o que exigiria a reconstituição da totalidade de sua obra, bem como a discussão do infindável problema da relação entre Marx e os muitos marxismos. Se Marx estava entre os que defendem a universalidade da primazia do “econômico” ou a sua circunscrição ao período do modo de produção capitalista – dito mais precisamente: o que é e qual a importância da “economia” para ele – é assunto que voltaremos a tratar mais à frente. Por hora, ficamos com a consideração do Professor Fernando Novais, que defende o argumento de que Marx nunca se ocupou de modo sério de qualquer outro modo de produção que não o capitalista – e somente a partir daí se entende a centralidade que confere em sua obra ao pensamento sobre a economia [a crítica da Economia Política enquanto ideologia burguesa]. Defende Novais: “Por que o livro de Marx se chama Crítica da Economia Política? Porque critica os conceitos da economia política, isto é, incorpora o conceito e o ultrapassa. Marx propõe uma teoria para explicar a produção e o consumo dos bens, o modo de produção da vida, é uma teoria do capitalismo. Tudo isso está certo se você pensar no capitalismo; se pensar fora desse âmbito não funciona. Marx historicizou os conceitos no sistema capitalista. Qual é a diferença entre sua teoria e os Annales? É que ele dá um critério, os Annales não. Por isso sempre afirmo que o modo de produção é um critério de periodização da história – quando se define o modo de produção, circunscreve-se um período onde os conceitos vão funcionar. Fora disso não funcionam. Muito bem, o que é modo de produção? Marx nunca explicou. Como ele formulou o modo de produção capitalista a vida inteira, porque seu fim não era a História, mas fazer história, nunca explicou direito o que era modo de produção. Nem sei se ele saberia ao certo definir tal conceito. Isso é muito complexo, a maior parte dos marxistas define modo de produção como um sistema econômico.” (Aproximações, p. 383-4) Noutra passagem, na página 263, Novais argumenta que: “O conceito de modo de produção é mais amplo, ou seja, trata-se de um tipo especial de articulação das várias instâncias que envolve, inclusive, dimensões nãoeconômicas, e nessa concepção o modo de produção não está vinculado nem sequer a um sistema econômico. Pode existir um modo de produção que contenha várias ‘maneiras de produzir as coisas’ articuladas com o sistema global. Repito: para mim é um idéia muito ampla, é o critério de periodização da história, que envolve política, cultura, economia; trata-se da forma de articulação das instâncias.” 429 430

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oferta-procura-preço, cujo aparecimento produziu o efeito profético de ‘lei econômica’, converteu-se rapidamente numa das forças mais poderosas que já entraram no cenário humano. Em uma geração – digamos, de 1815 a 1945, durante a Paz de Trinta Anos de Harriet Martinau –, o mercado formador de preços que antes existia apenas em amostras, em alguns portos comerciais e poucas bolsas de valores, mostrou sua espantosa capacidade de organizar os seres humanos como se fossem simples quantidades de matéria-prima e de combiná-los junto com a superfície da mãe-terra, que agora podia ser livremente comercializada – em unidades industriais comandadas por pessoas privadas, que se dedicavam sobretudo à compra e venda com fins lucrativos. Num período extremamente curto, a ficção mercantil aplicada ao trabalho e à terra, transformou a sociedade humana. A identificação da economia com o mercado foi colocada em prática. Dependência essencial do ser humano em relação à natureza e a seus semelhantes, para obter meios de subsistência, foi posta sob o controle dessa moderna criação institucional de poder superlativo, o mercado, que se desenvolveu da noite para o dia de um começo modesto. Essa engenhoca institucional, que se tornou a força dominante da economia – agora justificadamente descrita como economia de mercado – originou um fenômeno ainda mais extremo: uma sociedade inteira inserida no mecanismo de sua própria economia – a sociedade de mercado. (p. 51-2) [todos os grifos são de Polanyi]

Assim, Polanyi chega a um ponto extremamente interessante: o “surgimento” concreto de uma sociedade organizada hierarquicamente – que pode ser mais bem compreendida por uma categoria específica: a mercadoria –: a sociedade de mercado. Contudo, parece conferir automatismo ao mercado e não fica claro em seu argumento qual é a relação concreta entre a falácia economicista e a implementação de uma ordem pautada pela categoria mercadoria, como por exemplo quando argumenta que

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desse ponto de vista, não é difícil discernir que aquilo que chamamos aqui de falácia economicista foi, antes de tudo, um erro teórico. Na prática, a economia passou a consistir em mercados, e o mercado envolveu a sociedade. Por essa linha de argumentação, fica claro que a importância da visão economicista residiu precisamente em sua capacidade de gerar uma unidade de motivações e valorações que criaram na prática o que ela preconcebia como um ideal, a saber, a identidade entre mercado e sociedade. Só quando um estilo de vida passa a cobrir todos os aspectos relevantes, incluindo-se imagens sobre o homem e a natureza da sociedade – com uma filosofia de vida cotidiana que contém critérios de conduta sensata, riscos razoáveis e uma moral viável –, passamos a ter esse compêndio de doutrinas teóricas e práticas que conseguem produzir uma sociedade, ou, o que dá no mesmo, transformar uma sociedade durante o tempo de vida de uma ou duas gerações. Essa transformação foi alcançada para o bem ou para o mal, pelos pioneiros do economicismo. A mentalidade mercantil continha as sementes de toda uma cultura, com suas possibilidades e limitações. A imagem do homem e da sociedade, transformada em economia de mercado, foi uma decorrência necessária da estrutura essencial de uma comunidade humana organizada pelo mercado. 431

Vamos passar batido pelo eurocentrismo do autor porque noutras ocasiões já tivemos a oportunidade de argumentar que a falácia sobre o automatismo do mercado e a omissão quanto à crescente expansão do modo de produção e a destruição de modos de vida milenares é uma das narrativas mais eficientes para esconder a exploração internacional [para não enfatizarmos o caráter intercontinental que os europeus e os estadunidenses convenientemente subordinam ao recorte nacional] da opressão. Ainda que o autor nos ofereça a curiosa metáfora sobre o “moinho satânico” que o mercado representa, seu argumento não comporta o fato de que o principal mecanismo de expansão desse processo reside precisamente nos Estados Imperialistas – em sua necessária relação com as elites locais. Mas por hora é importante que notemos um dos pontos mais fortes do argumento de Polanyi, ainda que com seus termos ao nosso juízo um tanto mal formulados. Nessa passagem, Polanyi insiste no fato de que o que originalmente era apenas uma “falácia”, pelas “forças históricas esmagadoras” acaba se tornando uma “ficção” que se “materializa” – mas não explica afinal qual seria a relação entre uma e as outras. Mais do que isso, o próprio sistema valorativo que organiza a vida cotidiana das pessoas passa a ser constituído a partir da mentalidade do mercado, ou seja, de cada um dos aspectos da vida humana, passa a ser considerado uma mercadoria – por sua vez, redutível, em um sistema de mercado, ao mecanismo oferta-procura-preço. 431

Páginas 52 e 53.

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Ilustrando a constituição desse mecanismo, o humorista judeu (autodenominado “cairoca”) Leon Eliachar nos oferece a seguinte croniqueta: Faltavam apenas 6 cruzeiros e 50 centavos para ele descer do taxi. Já eram 800 cruzeiros da noite e ele ainda não havia feito um bom negócio. Entrou num restaurante e comeu 180 cruzeiros; tomou 1 cruzeiro de café e saiu 10 % mais tarde. Na rua encontrou uma belíssima mulher, trajada com 48 mil cruzeiros de jóias. Há mais de 2 milhões de cruzeiros que não via uma mulher tão elegante. Convidou-a para um cinema. Ela regateou um pouco, mas por fim cedeu. Sentaram-se primeiro numa confeitaria e bateram um papo de 250 cruzeiros. Depois assistiram a 72 cruzeiros de Cinemascope: namoraram 36 cruzeiros de entrada e o resto a longo prazo. Um dia, decorridos 185 mil cruzeiros de vida em comum terminaram tudo, à vista. 432

Essa croniqueta, que critica por meio da exposição do ridículo a valoração monetária das relações sociais pode ser encarada como uma citação da machadiana Marcela (que amou Brás Cubas “durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”). O que nos cumpre observar é que esse mecanismo, para Eliachar, constitui o ethos judeu – explicitado no título da crônica. Para Machado, era o substrato de uma mentalidade burguesa em constituição no Brasil, desnudada em Brás Cubas, personagem principal e narrador do romance – neste caso específico, em sua relação com Marcela433. Entretanto, do ponto de vista do nosso itinerário, é importante sublinhar mais uma vez que estamos conversando sobre o momento em que esse modo de pensar – “judeu”?; “burguês”?; “protestante”? – se constituiu na mentalidade predominante (ainda que diversas vezes velada) de todas as sociedades organizadas pela mercadoria sob o modo de produção capitalista. Para Polanyi, essa estrutura representou uma ruptura violenta com as condições que a precederam. O que antes era apenas uma ligeira expansão de mercados isolados transmudou-se num sistema autorregulado de mercado. O passo crucial foi a transformação do trabalho e da terra em mercadorias, como se tivessem sido produzidos para a venda. É claro que eles não eram mercadorias de fato, pois ou não haviam sido produzidos (como a terra), ou, se haviam (como o trabalho), não visavam à venda. Nunca se concebeu uma ficção mais eficaz. Como o trabalho e a terra passaram a ser livremente comprados e vendidos, o mecanismo de mercado os absorveu. Passou a existir oferta e procura de trabalho, assim como oferta e procura de terra. Passou a existir um preço de mercado para o uso da força de trabalho, chamado salário, e O Judeu, em O homem ao quadrado, Leon Eliachar, São Paulo. Círculo do Livro, s/d, pág. 23. Disponível eletronicamente em http://www.releituras.com/leoneliachar_contos.asp. 433 Um dos pontos fortes da narrativa machadiana é a condução do enredo por meio da personalidade de seus narradores-personagens. Neste caso, somos conduzidos durante todo o romance pelas lentes de Brás Cubas, um burguesinho egoísta e egótico. Pela maneira como ele nos apresenta, Marcela aparece como uma cortesã. Não nos é permitido acessar como Marcela se entendia a ela mesma. 432

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um preço de mercado para o uso da terra, chamado renda. O trabalho e a terra passaram a ser oferecidos em mercados próprios, semelhantes aos das mercadorias propriamente ditas, que eles produziam. O verdadeiro alcance desse passo pode ser estimado se lembrarmos que trabalho é apenas outro nome para ser humano, e terra, outro nome para a natureza. A ficção mercantil pôs o destino do ser humano e da natureza nas mãos de um autômato que operava em seus próprios circuitos e era regido por suas próprias leis. 434 No tocante à sociedade, propôs-se a doutrina [...] de que suas instituições eram ‘determinadas’ pelo sistema econômico. O mecanismo de mercado criou a ilusão de que o determinismo econômico é uma lei geral de toda a sociedade humana. É claro que essa lei é válida numa economia de mercado. Nesse caso, aliás, o funcionamento do sistema econômico não só ‘influencia’ o resto da sociedade, mas efetivamente o determina – tal como, num triângulo, os lados não se limitam a influenciar, mas determinam os ângulos. 435

Portanto, mais do que perceber como o discurso sobre o funcionamento da sociedade se desenvolveu entre os intelectuais, a importância da argumentação de Polanyi consiste em demonstrar quando o mecanismo de auto regulação dos mercados atingiu a vida cotidiana das pessoas, pelo espraiamento e pelo aprofundamento do “racionalismo econômico”

436

que passa a ser o “regime de verdade”

437

das relações

cotidianas (o “investimento” na educação dos filhos e nos relacionamentos amorosos e o Você S.A., por exemplo). Mas ao mesmo tempo em que vemos o pensamento de Polanyi alcançar essa radicalidade, também podemos perceber os limites da maneira pela qual equaciona sua crítica ao economicismo. Acompanhemos com vagar. Ao mesmo tempo em que, para ele, “nenhum autor isolado jamais propôs a doutrina completa” – “Bentham ainda confiava no governo e não se sentia seguro com a economia; Spencer amaldiçoava o Estado e o governo, mas também conhecia pouco de economia; a Von Mises, um economista, faltava o saber enciclopédico dos outros dois” – “Não obstante, esses homens criaram um mito [grifo nosso] que foi o devaneio da massa educada durante a Paz dos Cem Anos, de 1815 até a Primeira Guerra Mundial, e mesmo depois dela, até a guerra de Hitler”. Este é o xis do problema para Polanyi, porque – notese como é um raciocínio binário – “no plano intelectual, esse mito representou o triunfo do racionalismo econômico e, inevitavelmente, o eclipse do pensamento político”. Ao que prossegue, dizendo que P. 53. P. 55. 436 P. 56 437 Foucault, O Nascimento da Biopolítica. 434 435

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o racionalismo econômico do século XIX foi o descendente direto do racionalismo político do século XVIII. Foi tão irrealista quanto o seu predecessor, se não mais. Ambos permaneceram alheios aos fatos da história e à natureza das instituições políticas. Os utopistas políticos ignoravam a economia, enquanto os utopistas do mercado não tomavam conhecimento da política. No cômputo geral, se os pensadores do Iluminismo foram notoriamente desatentos a algumas realidades econômicas, seus sucessores do século XIX foram totalmente cegos para a esfera do Estado, da nação e do poder, a ponto de duvidar de sua existência. 438

Então, para ele, cumpre que, para superar aquele “hábito de pensamento arraigado” – aquele “portentoso obstáculo” para se “chegar a uma visão mais realistas do problema geral da subsistência do homem”, “os homens” se levantem contra o “eclipse do pensamento político”, que foi “a deficiência intelectual da época” 439, por que o solipsismo econômico barrou o reconhecimento do papel pioneiro do Estado. Assim, a mentalidade de mercado veio a predominar. A absorção da economia pelos conceitos de mercado foi tão completa, que nenhuma das disciplinas sociais pôde escapar de seus efeitos. Imperceptivelmente, elas foram transformadas em redutos de modos de pensamento economicistas. 440

Contra o “moinho satânico” do mercado, o “reconhecimento do papel pioneiro do Estado” e a sua capacidade em “alterar o ritmo da mudança”, conforme defende em seu livro mais importante, A grande transformação: a crença no progresso espontâneo pode cegar-nos quanto ao papel do governo na vida econômica. Este papel consiste, muitas vezes, em alterar o ritmo da mudança, apressando-o ou diminuindo-o, conforme o caso. Se acreditarmos que tal ritmo é inalterável ou, o que é pior, se acreditarmos ser um sacrilégio interferir com ele, então não existe mesmo um campo para qualquer intervenção. 441

Contra o mito do mercado, Polanyi propõe a intervenção estatal – sob nosso ponto de vista, mais um mito – se não equivalente, pior, dado seu potencial totalitário ainda mais eficaz. Nenhuma palavra sobre a opressão e a exploração capitaneadas pelo Estado. O exemplo mais claro para ele são os cercamentos. Analisados extensivamente por Marx em O capital, em sua narrativa os cercamentos constituem-se em “uma série de pilhagens, horrores e opressão que acompanha a expropriação violenta do povo (O capital, vol. 1, cap. XXIV, pág. 799). A intervenção dos estadistas define-se pela “legislação sanguinária (805 e seguintes)” e o P. 58. P. 59. 440 P. 61. 441 P. 54. 438 439

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que Polanyi define como “um bom exemplo” da capacidade de o Estado – por meio da astúcia dos governantes – “intervir no ritmo das mudanças” já havia sido descrito por Marx como “a expropriação dos produtores diretos [...] consumada com o mais implacável vandalismo e sob o impulso das paixões mais infames, abjetas e mesquinhamente execráveis (pág. 831)”. Resumindo, o que para Marx aparece como “a conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma a violência (pág. 786)”, para Polanyi oferecem um bom exemplo. Em retrospecto, nada pode parecer mais claro do que a tendência de progresso econômico da Europa Ocidental, o qual objetivava eliminar uma uniformidade artificial das técnicas de agricultura, faixas de cultura entrelaçadas e a instituição primitiva das áreas comuns no campo. No que se refere à Inglaterra, é certo que o desenvolvimento da indústria lanígera foi um recurso para o país levando, como o fez, ao estabelecimento da indústria têxtil – o veículo da Revolução Industrial. Além disso, é claro também que o incremento da tecelagem doméstica dependia do aumento do fornecimento doméstico de lã. Esses fatos são suficientes para identificar a mudança da terra arável para a pastagem e o movimento de cercamentos que a acompanhou como a tendência do progresso econômico. Entretanto, não fosse a política consequente mantida pelos estadistas Tudors e os primeiros Stuarts, o ritmo desse progresso poderia ter sido ruinoso, transformando o próprio desenvolvimento em um acontecimento degenerativo, ao invés de construtivo. Justamente desse ritmo dependia, principalmente, saber se os despojados poderiam ajustar-se às condições modificadas sem danificar fatalmente a sua substância humana e econômica, física e moral; se eles encontrariam novos empregos nas áreas de oportunidade indiretamente ligas à mudança; e se os efeitos do incremento de importações, induzido pelo aumento das exportações, permitiria àqueles que perderam seus empregos com a mudança encontrar novas fontes de subsistência. Em cada um dos casos, a resposta dependia dos ritmos relativos de mudança e ajustamento (...) a economia de mercado é uma estrutura institucional, e sempre nos esquecemos disto, que nunca esteve presente a não ser em nosso tempo e, mesmo assim, ela estava apenas parcialmente presente. A comparação entre ritmo da mudança e o ritmo do ajustamento decidirá o que deve ser visto como resultado líquido da mudança. Em nenhum caso porém, podemos presumir sobre o funcionamento da lei de mercado, a menos que se demonstre a existência de um mercado auto regulável. As leis de mercado só são relevantes no cenário institucional de uma economia de mercado; não foram os estadistas da Inglaterra dos Tudors que se afastaram dos fatos e sim os economistas modernos, cujas observações a respeito dele deixaram implícita a existência anterior de um sistema de mercado. 442

Em que implica, portanto, a crítica ao economicismo de Polanyi? Às recomendações sobre a prudência dos governantes, que não podem impedir o 442

Páginas 54 e 55.

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progresso, mas podem e devem interferir em seu ritmo. Como alternativa ao fetichismo dos economistas, levanta mais uma vez a bandeira do “bom governo”, típica do pensamento conservador, aristocrático e elitista, desde sempre. Não nos parece muito diferente do que Marx acusava, ainda no mesmo capítulo, como a “imperturbabilidade estóica com que o economista político encara as violações mais inescrupulosas do ‘sagrado direito de propriedade’, e os atos mais grosseiros de violência contra as pessoas” 443 6.1.2 A origem da controvérsia sobre o “economicismo” do marxismo “como um todo”

Imaginamos que já esteja claro, a essa altura, o nosso argumento de que não é possível opor ao “economicismo” qualquer outro tipo de pensamento parcial, como o “politicismo” em que Polanyi e – voltando, para não perdermos de vista o foco da crítica – Panitch e Gindin, incorrem. Mas isso ainda não responde se os trabalhos “clássicos” sobre o Imperialismo são economicistas. Ao nosso juízo, como esperamos também já esteja claro, um conjunto de citações “não-economicistas” não seria em absoluto o suficiente para refutar a crítica. A quem quiser assim proceder, julgamos que é possível encontrar tanto citações que corroborem o “economicismo” quanto citações que corroborem o “não-economicismo”. A nós, nos interessa mais procurar entender as traves nas quais essa “polêmica” se equilibra para que possamos demonstrar que, com efeito, ela somente é possível a partir de uma visão de mundo – burguesa – muito distante da defendida pelo materialismo histórico, a partir do qual a oposição entre “economia” e “política” – para ficarmos apenas nas duas de maior relevo para o nosso problema específico – não faz sentido. Avançando mais um ponto para que possamos voltar ao nosso assunto mais específico, consideramos que, dentre alguns caminhos possíveis para o levantamento da questão sobre o economicismo das teses “clássicas” do marxismo no tema Imperialismo, nos parece importante voltarmo-nos para a origem da crítica ao suposto economicismo que caracterizaria o marxismo como um todo. Retomemos os passos principais procurando ver o que esse debate nos revela e como a maneira como o problema se constrói pra o marxismo é muito mais radical do que a de Polanyi, sem mencionar o fato de que para o marxismo – sempre a partir da leitura que estamos propondo, porque existem diversos marxismos – o problema da relação entre as idéias e as “forças 443

P. 799.

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históricas” se articula de uma maneira a colocar a atuação política – tanto a “agenda” quanto os “atores” – em outros patamares.  A origem da crítica ao suposto economicismo de Marx reside em determinadas maneiras de ler o famigerado Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, onde Marx afirma que o resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. 444

Temos aqui o princípio da polêmica em torno do “economicismo”. Como vemos, nesta passagem, Marx inequivocamente identifica “a estrutura econômica da sociedade” com “a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política”. Ao que emenda passagem igualmente conhecida: em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim. 445

Na qual mais uma vez – agora num momento de transformação – estabelece a metáfora da relação entre a “base econômica” e uma “colossal superestrutura”, na qual enfatiza a distinção entre as “condições econômicas de produção” [“materiais”], e as 444 445

P. 45. Páginas 45 e 46.

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“formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim”. No nível formal, estão aqui todos os elementos para a implementação da longa e inextinguível polêmica acerca do economicismo marxiano e não nos parece honesta a postura dos marxistas que procuram creditar o “economicismo” apenas a determinados continuadores do pensamento marxiano (Lenin, no nosso exemplo), e que procuram salvar os textos sagrados dessas possibilidades de interpretação. A leitura “economicista” e “evolucionista”, nestas passagens, em um nível formal e isolado, é verossímil. O que procuraremos aqui, mais uma vez, é, ao refutá-la, também apresentar as condições nas quais essa leitura encontra verossimilhança, para recolocar a questão em outro ponto, mais favorável ao desvelo das raízes da “polêmica”. Para tanto, nos parece promissora a “tradição” resgatada pela edição (da Expressão Popular) por meio do Prefácio de Reinaldo Carcanholo e da clássica Introdução de Florestan Fernandes [além das introduções e prefácios “originais”], de Contribuição à Crítica da Economia Política. Em ambos os textos, saltam aos olhos a intenção – sob nosso ponto de vista bem-sucedida – de colocar a crítica a essas citadas passagens em conjunto com o que poderíamos chamar – não despidos de um vocabulário um tanto hegeliano – de “espírito geral” da obra marxiana. Dito de uma forma mais “pé no chão”: contrastando as citadas passagens com outros trechos do autor. Nas palavras de Carcanholo (2007), (...) o ‘Prefácio’, apesar de ser um texto de dimensões reduzidas, poderia ser tratado como obra independente. Sua importância está no fato de apresentar, de um ponto de vista abstrato, a concepção marxiana sobre o desenvolvimento histórico a concepção dialética e materialista sobre a história da humanidade. Por se tratar de um texto reduzido, aqueles que desejarem encontrar ali uma visão mecanicista e determinista poderão sair até certo ponto satisfeitos [grifos nossos] mas isso está longe de ser a real perspectiva de Marx. Uma leitura mais atenta pode desfazer essa interpretação. 446

Nos termos de Florestan, divergente da possibilidade de leitura autônoma dessa obra, mas concordante de que é uma leitura “ruim”,

446

P. 14.

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o conteúdo do livro, porém, foi roubado pela excelência do prefácio; a maioria dos seus leitores e críticos não tem passado daí. Todavia, como auto exposição, esse prefácio é o trabalho mais esquemático e condensado escrito por Marx. Por isso deu origem a inúmeros malentendidos, incompreensões e críticas injustas às suas concepções em geral, fora dos círculos estritamente marxistas. 447

A leitura de Florestan nos parece mais frutífera, e é uma pista que nos interessa seguir. Para ele, “tanto este livro quanto O capital, nasceram da necessidade que Marx sentiu de dar bases teóricas mais sólidas ao programa político estabelecido em o Manifesto Comunista” 448. Mas, para apreciar a importância dessa Contribuição, Florestan a situa na própria história do pensamento “sociológico”. Segundo ele – e aqui começamos propriamente a refutar a interpretação de que Marx estaria sendo “economicista” – [Marx] fazia severas críticas aos métodos naturalistas dos clássicos, os quais davam uma perspectiva falsa das leis econômicas – transformadas em leis gerais e eternas, numa mal-entendida aplicação do conceito de lei científica, tomado às ciências físicas da época. 449

Ainda para Florestan, “onde se concentra o melhor da herança de Marx às modernas ciências sociais” são as “questões metodológicas” 450 diante das quais caberia a ele um importante papel na história da Sociologia por ter sido quem apresentou de modo original e consistente a observação – que hoje pode parecer lugar-comum, mas cujas implicações nem sempre são levadas em consideração [sobretudo pelos cientistas sociais dedicados às Ciências Econômicas] – de que “as leis que as ‘ciências históricas’ – todas as ciências não-naturais – podem chegar são leis históricas, porque cada período histórico se rege por suas próprias leis” e “as leis econômicas [portanto] manifestam-se enquanto duram as relações que exprimem” 451. Desta maneira, para Florestan, Marx se apropria “[d]o que havia de essencial e de fecundo no “método naturalista”, que permite apanhar o que é geral nas coisas; e o que havia de essencial no “método histórico”, que permite captar as coisas em sua singularidade” dando “origem a um novo método de trabalho científico, conhecido posteriormente sob o nome de ‘materialismo histórico’” 452 em um momento em que

P. 18. Mesma página. 449 P. 19. 450 P. 21. 451 Mesma página. 452 P. 22. 447 448

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as ciências sociais abandonavam os projetos do filósofo francês [Auguste Comte] – a busca de leis gerais do funcionamento da sociedade e do desenvolvimento da humanidade – para estudar apenas um tipo de sociedade: a sociedade européia capitalista, num dado período de tempo, mais ou menos delimitado entre o século 19 e toda a fase anterior de ascensão e vitória da burguesia. 453

É absolutamente crucial, para Florestan, o fato de que no método de Marx o problema parte do conceito hegeliano e, assim, “‘o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso’, diz Marx. Por isso, o concreto aparece no pensamento como um resultado e não como um ponto de partida” . E, ainda que esse ponto abra margens para outros infindáveis debates e uma

454

reprodução infinita de jargões [especialidades dos marxistas], para Florestan, os resultados a que Marx chegou em suas investigações somente foram possíveis graças à sua concepção de dialética: possibilidade de um conhecimento sintético e completo da realidade – o conceito como reprodução do concreto, noção hegeliana – e a existência de um movimento dialético imanente às próprias coisas (desenvolvimento das formas sociais, como movimento do real, no tempo, por exemplo), que nos afasta de Hegel. 455

Florestan não está sozinho, evidentemente, na defesa da importância do método de Marx para a história da Sociologia e, para ficarmos apenas na edição citada da valente Editora Expressão Popular, Carcanholo, também ressaltando o “método”, afirma que “a dialética marxista é em si mesma revolucionária”. 456  Sobre isso, o mestre Thiago Mendes Borges saca do seu inesgotável “cinto de utilidades” as seguintes passagens sobre outras possibilidades de compreensão da dialética e de seu conteúdo eminentemente revolucionário no combate à conciliação reformista que procura eternizar a ordem vigente qualquer que seja ela. Nas palavras de um observador sobre um dos incontáveis momentos de tensão entre a revolução e a conservação, toda a sabedoria dos conciliadores consiste em pretender que duas tendências opostas, pelo facto mesmo da sua posição, são exclusivas e, por consequência, falsas, e se os dois termos da contradição, tomados no abstrato, são falsos, é necessário, portanto, que a verdade esteja entre os dois, é necessário conciliar os contrários para chegar à verdade. À primeira vista, este raciocínio parece irrefutável; nós mesmos admitimos o carácter exclusivo do negativo enquanto ele se opuser ao P. 23. P. 24. 455 P. 25. 456 P. 15. 453 454

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positivo e que nesta oposição relacione tudo consigo. Não resultará daqui que se realize e se complete essencialmente no positivo? E os conciliadores não têm razão de querer conciliar o positivo e o negativo? De acordo, se esta conciliação for possível: mas será verdadeiramente possível? A única razão de ser do negativo não é a destruição do positivo? Logo que os conciliadores fundam o seu ponto de vista sobre a natureza da contradição, quer dizer, sobre o facto que duas exclusividades opostas se supõem, enquanto tais, adversários, é-lhes necessário então permitir e aceitar que esta natureza toma toda a sua extensão; é-lhes necessário também, em razão das consequências que isto arrasta para eles, ficar fiéis ao seu ponto de vista, visto que a face da contradição que lhes é favorável é inseparável daquela que lhes é desfavorável. Ora, o que é desfavorável para eles é que a existência de um termo da contradição supõe a existência do outro: e isto não é qualquer coisa de positivo, mas bem de negativo e de destruição, É necessário chamar a atenção destes senhores sobre a lógica de Hegel onde ele faz um estudo tão notável sobre a categoria da contradição. A contradição e o seu desenvolvimento imanente formam um dos nós principais de todo o sistema hegeliano, e como esta categoria é a categoria principal, a característica principal da nossa época, Hegel é sem réplica o maior filósofo do nosso tempo, o mais alto cume da nossa cultura moderna considerada unicamente do ponto de vista teórico. E precisamente, porque ele é este cume, porque compreendeu esta categoria e, por consequência a analisou, precisamente ele está na origem de uma necessária auto decomposição da cultura moderna. Certamente, no princípio, era ainda prisioneiro da teoria, mas porque ele é este cume, evadiu-se, está por cima dela e postula um novo mundo prático; um mundo que não se realizará, em caso algum, pela aplicação formal e a extensão de teorias feitas, mas somente por uma ação espontânea do espírito prático autónomo. A contradição é a essência a mais íntima, não somente de toda a teoria determinada ou particular, mas ainda da teoria em geral; e assim, o momento em que a teoria é compreendida é também, ao mesmo tempo, quando o seu papel acabou.

Adotando posição semelhante, poucos anos depois Marx escreveria em sua famosa décima primeira tese contra Feuerbach que “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Mas voltando à nossa personagem em defesa do método dialético, devido a este contributo a teoria transforma-se num mundo novo prático e espontâneo, na presença real da liberdade. Mas não é aqui o lugar para desenvolver longamente esta questão, e queremos ainda, mais uma vez, debruçarmo-nos sobre a discussão da natureza lógica da contradição. A própria contradição, enquanto tal, inclui os dois termos exclusivos num e no outro, é total, absoluta, verdadeira; não se lhe pode censurar esta natureza exclusiva à qual está necessariamente ligado um carácter superficial e estreito, porque ela não é somente o negativo, mas é também o positivo e, englobando-o inteiramente, é a plenitude total, absoluta, não deixando nada fora dela. E isto autoriza os conciliadores a exigir que não se retenha abstratamente só um dos dois termos em exclusivo, mas que, respeitando o laço necessário e indissolúvel que os une, se apreendam na sua totalidade: “Só a contradição á verdadeira”,

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dizem eles: “cada um dos termos opostos, tomados em si, é exclusivo e, portanto, falso; resulta que devemos compreender a contradição na sua totalidade para conhecermos a verdade”. Mas é precisamente aqui que começa a dificuldade: a contradição é bem a verdade, mas não existe como tal, ela não é como a totalidade, é somente uma totalidade em si e escondida, e a sua existência nasce precisamente da oposição e da divisão dos seus dois termos: o positivo e o negativo. A contradição, enquanto que verdade total, é a união indissolúvel da sua simplicidade e da sua própria divisão num princípio único. É essa a sua natureza em si, a sua natureza escondida que, por consequência, o espírito não pode imediatamente apreender, e precisamente porque esta união está escondida, a contradição só existe unicamente sob a forma da divisão dos seus termos e não é mais que a adição do positivo e do negativo; ora, estes termos excluem-se um ao outro tão categoricamente que esta exclusão recíproca constitui toda a sua natureza. Mas então como compreender a contradição na sua totalidade? Restam-nos, parece, duas saídas: ou bem que arbitrariamente é preciso fazer a abstração de a divisão refugiar-se nesta totalidade da contradição, totalidade simples e precedente da divisão — mas isto é impossível, porque o que escapa à compreensão nunca pode ser compreendido pelo espírito e porque a contradição, como tal, não tem existência imediata senão como divisão dos seus termos, e sem estar não existe; ou bem que é preciso procurar conciliar os termos opostos com um cuidado maternal, e é nisto que se esforça a escola conciliadora: vamos ver se tem êxito.

Precisamos interromper aqui, infelizmente, mais uma vez, antes que nos acusem de que nos valemos de uma citação exageradamente grande – e que nos soa demasiado hermética. Mas também aproveitamos a ocasião para sublinhar a felicidade da expressão sobre o “cuidado maternal” com que determinadas personagens se esforçam para conciliar o inconciliável. Quanta atualidade, se tomarmos em conta os esforços dos “conciliadores” que nos cercam! Voltemos ao texto: “Mas” dir-me-ão, “não irão cair, com a vossa separação absoluta dos extremos, neste ponto de vista abstrato desde há muito tempo superado por Shelling e Hegel? E este mesmo Hegel que tendes em tão alta consideração, não remarcou justamente que na luz pura se vê tão pouco como na obscuridade pura, e que só a união concreta dos dois torna a visão geralmente possível? E o grande mérito de Hegel não é de ter demonstrado que todo o ser vivo não vive se não possuir a sua negação não exteriormente a ele, mas nele como uma condição vital imanente, e que se fosse somente positivo e tivesse a sua negação exteriormente a ele, seria privado de movimento e de vida?”. Sei-o muito bem, senhores! Admito que, por exemplo, um organismo vivo não vive se não traz o germe da sua morte. Mas se querem citar Hegel, é necessário fazê-lo integralmente. Vereis então que o negativo não é condição vital dum determinado organismo senão durante o tempo em que aparece nesse organismo como fator mantido na sua totalidade. Vereis que chega um momento onde a ação gradual do negativo é bruscamente quebrada, transformando-se em principio independente, que este instante significa a morte deste organismo e que a filosofia de Hegel caracteriza este

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momento como a passagem da natureza a um mundo qualitativamente novo, ao mundo livre do espírito457.

O autor das passagens anteriores, que defende o caráter revolucionário do próprio método dialético é o anarquista Mikhail Bakunin 458. Comentando sobre a grande quantidade de autores que tentam refutar Hegel sem tê-lo lido, o marxista brasileiro Leandro Konder afirma que, não é esse, certamente, o caso de Marx, que estudou com muita atenção a Ciência da Lógica. Relendo o livro, num exemplar que tinha sido de Bakunin e que Freiligrath lhe mandou, o autor d' O Capital escreveu a Engels: "se voltar o tempo para trabalhos desse tipo, eu teria muita vontade de, em poucas páginas, tornar acessível à compreensão do homem comum tudo aquilo que existe de racional no método que Hegel descobriu e, ao mesmo tempo, mistificou" 459

O que nos cumpre insistir – e essa é a justificativa dessa longa digressão – é que à dialética não basta a separação analítica para a posterior (re) conciliação entre os objetos da investigação. Do contrário, a dialética – entendida nesse sentido eminentemente revolucionário – é um modo de pensamento completamente distinto daquela separação analítica [entre “econômico” e “político”, a título de exemplo].  Voltando gradativamente ao nosso assunto, retomemos no ponto em que dele havíamos nos afastado. Dizíamos que, para Florestan, “uma estreita interpretação econômica da história [...] nada tem em comum com a teoria marxista 460” e, nesta, jamais seria possível explicar toda a vida social e todo o processo histórico pelo fator BAKUNINE, Miguel. A reação na Alemanha [1842].In: Cadernos Peninsulares, Nova Série, Ensaio 17. Tradução: José Gabriel. Portugal: Editora Assírio & Alvin, 1976. Páginas 105-127 disponível em http://arquivobakunin.blogspot.com.br/2010/10/reacao-na-alemanha-1842.html. 458 Hoje, muita gente considera Bakunin uma espécie de inimigo mortal dos marxistas, mas temos que lembrar que houve um tempo em que anarquistas e comunistas lutaram juntos na construção de uma revolução Internacional. Como sabemos, Marx foi um dos responsáveis pela expulsão dos anarquistas, em uma história que não temos como reconstituir. Mas estamos entre aqueles que julgam que ambos o anarquismo e o marxismo tem muito mais a ganhar com a reaproximação – tanto prática quanto teórica – do que com a manutenção desse divórcio. 459 KONDER, Leandro. Hegel: a razão quase enlouquecida. Rio de Janeiro: Campus, 1991. 103 p., p. 48. No começo do texto, Konder também aponta para o caráter revolucionário da filosofia de Hegel, embora alerte que se trata, contudo, da conturbada relação deste com a Revolução Francesa, que encarava com um misto de fascínio, entusiasmo e medo (da fase do terror). Por fim, ao final do livro, Konder conclui com a consideração de que “Talvez, para recuperar todo o seu potencial crítico (e autocrítico), a dialética precise combinar inserção ativa (revolucionária) do sujeito na história com uma constante interpelação feita a si mesma a respeito de seus limites. Talvez a dialética possa preservar toda a sua vitalidade se assumindo, permanentemente, como um problema, esquivando-se às tentativas dos que desejam fazer dela um corpo doutrinário, ou, o que é mais preocupante, um método científico. Talvez a dialética só possa se debruçar periodicamente, cheia de dúvidas, sobre si mesma, submetendo-se a uma rigorosíssima limpeza para poder tornar a se sujar na vida. Ou, quem sabe, ela deve se perder um pouco na floresta do irracional para sair de lá com a seiva necessária para que sua razão não fique ressecada? p. 98 460 P. 28. 457

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econômico entendido em seu sentido estrito461; o que fica claro na constatação de que “na terminologia marxista ‘modo de produção’ implica todo um complexo sociocultural, extremamente típico e variável; compreende as noções de forma social e de conteúdo material em sua correspondência efetiva.462”. Em sua exposição didática – ainda que bastante chata, como de seu costume – de como apreender o método marxiano, Florestan destaca “três elementos essenciais, em geral considerados isoladamente por seus críticos”: a) as forças materiais de produção (as forças naturais, os instrumentos de produção como máquinas, técnicas, invenções etc.); b) um sistema de relações sociais, que definem a posição relativa de cada indivíduo na sociedade através de seu status econômico; c) um sistema de padrões de comportamento, de que depende a preservação ou transformação da estrutura social existente.

A grande questão, é que – para o desespero dos adeptos mais ou menos conscientes dos problemas da “interdisciplinaridade” – esses elementos são interativos. Qualquer mudança numa das esferas provoca mudanças concomitantes nas demais. As duas últimas, nas sociedades capitalistas européias, esclarece Marx, dependem de forma imediata da primeira, que assim constitui a base material do ‘modo de produção’. Mas a articulação das três com o sistema social geral não é uniforme – a das duas últimas é muito maior. Por isso o que é efeito num momento torna-se a causa em outro (modificações no sistema social geral em função do modo de produção). 463

Assim, refutando a hipótese de que a exposição marxiana possa ser entendida como “economicismo”, Florestan defende que, com efeito, isso somente é possível a partir da concepção dos críticos, não de Marx. Deste modo, conclui que “os principais obstáculos à compreensão de Marx pelos autores que encaram as ciências sociais como ciências naturais são de natureza metodológica464”. Em nosso caso específico, a mesma coisa poderia ser dita de outra forma: autorxs que vêem economicismo na exposição marxiana sobre o modo de produção capitalista e sobre a exposição leninista sobre o imperialismo, por não conseguirem identificar que a base do sistema de pensamento desses autores opera a partir de uma lógica dialética – e não positivista, naturalista – não compreendem o que significa a própria concepção de “econômico” do materialismo histórico. Na síntese de Florestan,

P. 31. P. 32. 463 P. 32. 464 P. 34. 461 462

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o fenômeno econômico é tomado abusivamente num sentido restrito e não em sentido lato. Isso tem uma importância particularíssima, agora, por causa da própria noção de historicidade do econômico. [...] O fato econômico não é histórico apenas porque se pode apresentar de um modo típico [...], mas ele existe de um modo típico exatamente porque é social [...]. O seu caráter histórico depende diretamente da totalidade das ligações que o articula à estrutura e à cultura de um povo em uma fase determinada de seu desenvolvimento no tempo. Pondo de lado aquelas considerações obsoletas, a respeito dos ideais e da reificação da cultura econômica no materialismo histórico, mais que rebatidas, constata-se que a única objeção séria é a que dirige às bases valorativas dessa teoria. Mas, é verdadeiro que Marx escolheu prédeterminadamente o fator econômico e atribuiu-lhe de modo, antecipado a sua validade explicativa? De acordo com o testemunho do próprio Marx – que se dedicara ao estudo da Economia depois de passar pelo campo da Filosofia, da Literatura, do Direito, etc. – esse foi o ponto de chegada e não o ponto de partida, conforme indicado no Prólogo desse livro. 465

As palavras do próprio Marx, citadas por Florestan, dizem que minha área de estudos era a jurisprudência, à qual, todavia, eu não me dediquei senão de modo acessório, como uma disciplina subordinada relativamente à Filosofia e à História. Em 1842-1843, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), encontrei-me pela primeira vez, na embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os debates do Landtag [parlamento – alemão] reinando sobre os delitos florestais e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que o Sr. Von Schaper, então governador da província renana, travou com a Gazeta Renana sobre as condições de existência dos camponeses do Mosela, as discussões, por último, sobre o livre-câmbio e o protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu começasse a me ocupar das questões econômicas.466 Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas de Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século 18, compreendia sob o nome de ‘sociedade civil’. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política. 467

Todos os grifos são nossos. O objetivo é destacar o que o próprio autor indica como as razões pelas quais se acercou da Economia Política e o que esta ciência burguesa poderia lhe revelar depois de descortinada a sua ideologia: os interesses materiais em disputa e as condições (materiais) de existência, desde que apreendidas em suas totalidades. Assim, embora o autor insista que a “base das condições materiais P. 36. P. 44. 467 P. 45. 465 466

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de vida” são “econômicas”, não está dado de antemão o que entende por “econômico” ou “economia”. Enquanto hodiernamente se identifica “econômico” e “economia” com a ciência que se formou para tentar apreendê-las, Marx as aproximava do campo semântico das palavras “histórico”, “material” e “concreto”. A distância entre essas duas posições frente ao problema é gritante.  Aqui precisamos recusar o caminho mais usual para a demonstração do raciocínio que vimos empreendendo: a insistência na explicação metodológica. Trata-se, em nosso juízo de uma área demasiado pantanosa, que nos desviaria ainda mais do foco de nossas ocupações. Sob nosso juízo, já explicitamos o essencial: a necessidade de um pensamento radicalmente distinto da separação analítica entre “economia” e “política”. Partiremos agora para a consideração da importância dessa prosa: a compreensão sobre as condições necessárias para a superação do modo de produção capitalista. Para tanto, recorreremos a uma historiografia que se expressa na problemática dos estudos sobre a transição para uma sociedade pós-capitalista. O que justifica o procedimento, sob nosso ponto de vista, é que precisamos ponderar que, quaisquer que venham a ser as sociedades que virão a se impor sobre as inevitáveis ruínas da sociedade capitalista – “socialista”, “comunista”, “anarquista” ou “outra” –, para que possamos considerar o capitalismo superado, precisamos saber quais são os fundamentos do modo de produção capitalista. E quais foram os problemas concretos das tentativas de superação que se apresentaram historicamente. Que essa bibliografia retome os estudos jurídicos dos quais Marx partiu e que a crítica do Direito e as análises concretas o tenham levado à crítica da Economia Política são “detalhes” que não deixaremos passar batido. 6.1.3 Algumas lições do debate sobre a “transição socialista” e a experiência histórica da U.R.S.S.

Do ponto de vista histórico, em especial para a história do marxismo, provavelmente a experiência mais importante para a superação do capitalismo – afora todas as “insuficiências”, “limites” e críticas que devem ser e são feitas – foi a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia: declaradamente uma revolução anticapitalista, socialista, inspirada pelo marxismo e com o objetivo de superar a exploração e implementar uma sociedade radicalmente distinta daquelas que a precederam.

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Quanto às inúmeras medidas que constituem essa tentativa, gostaríamos de destacar aquela que por certo tempo foi considerada a mais radical: a tentativa de abolição legal da propriedade privada capitalista sobre os meios de produção, que supostamente

teria

inaugurado

a

sociedade

socialista,

definida

quase

que

exclusivamente como esta sociedade sem propriedade privada dos meios de produção. Tentando simplificar um pouco os termos desse complicado debate: com a propriedade privada capitalista abolida, a sociedade não seria mais dividida entre proprietários dos meios de produção e proletários. Assim, teríamos conhecido um mundo “sem luta de classes” e, portanto, socialista. Nas palavras do grande jurista marxista brasileiro Márcio Brilharinho Naves, ainda hoje o socialismo é definido, fundamentalmente, a partir de dois atos fundadores: por um lado, a estatização dos meios de produção por um Estado ‘operário’, por outro lado, a adoção do planejamento econômico (supostamente acarretando o fim da anarquia da produção). Essa concepção do socialismo apóia-se na teoria do primado das forças produtivas como ‘motor’ dos processos sociais e históricos e, portanto, na crença de que ainda no interior do modo de produção capitalista, previamente à tomada do poder pelos trabalhadores, já tenha ocorrido a socialização dos meios de produção. Estes seriam apenas ‘recebidos’ pela ‘sociedade socialista’ sem qualquer necessidade de uma transformação do seu caráter de classe. A base tecnológica do processo de produção seria, assim, considerada ‘neutra’ em relação à luta de classes, com o que fica o caminho aberto para a reprodução das relações de produção capitalistas e a constituição de uma nova burguesia (de Estado). 468

Dentre muitos esforços teóricos para a refutação dessa simplificação no campo da esquerda ao longo do século XX, destaca-se a monumental obra de Charles Bettelheim, na qual este autor procura reconstituir A[s] Luta[s] de Classes na U.R.S.S. [há traduções no singular e no plural]. Trata-se de uma obra extensa e bastante controversa, sendo que ao longo de suas pesquisas, o próprio autor mudou de posições. Tão radicalmente que hoje é renegado (ao menos os volumes finais e as posturas adotadas na velhice) mesmo por seus pares. Não faz parte do nosso roteiro a apreciação deste debate, mas, sim, seguir um pouco as pistas que essa pesquisa incitou. Esse debate é importante para os nossos objetivos por uma dupla de motivos. O primeiro – cujo percurso é mais longo – é exatamente a percepção de Bettelheim de que a abolição da propriedade privada capitalista, uma mudança na legislação, jamais poderia, por si mesma, implementar qualquer sociedade socialista. O segundo, que por 468

Apresentação p. 5.

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mais curto, nos permitiremos apresentar primeiro, reside exatamente na crítica de Bettelheim, que ao longo dos anos foi se aprofundando de tal modo que ultrapassou a crítica à U.R.S.S. (inicialmente tomada a partir da concepção de uma espécie de degeneração por meio do stalinismo) e atingiu o próprio bolchevismo – e todo o pensamento de Lenin – para Bettelheim, intrinsecamente economicista469. Sem reconstituir detalhadamente o debate, nos permitimos aqui concordar com o marxista italiano Mimmo Porcaro, que em sua análise sobre a “traição” de Bettelheim, pontua para um fato que compõe parte importante do argumento geral da nossa tese. Segundo ele, por características da própria sociedade de transição, não é possível que o pensamento revolucionário se apresente “totalmente purificado” das formas de pensamento burguesas, porque as condições concretas ainda estão se modificando e – para esses fins, mais importante destacar – o próprio “sujeito proletário cinde-se e representa, por um lado, a tendência à construção de relações de produção comunistas, por outro, a tendência a reproduzir, em formas novas, relações burguesas470”. Ao que conclui que se a ruptura do poder burguês é inicialmente “só” político, se as relações de produção burguesas permanecem e tendem a reproduzir-se de forma nova, isto significa que toda revolução comunista assinala contextualmente o início de uma revolução capitalista de tipo específico (não necessariamente vitoriosa). Tudo isso não absolve os bolcheviques, nem obscurece o componente economicista da sua ideologia: significa somente que é extremamente reducionista (e desarmante) identificar unicamente nesta ideologia (ou nas “condições concretas” particulares), os obstáculos que interromperam a Revolução russa e que poderão interromper uma futura revolução. Todo empreendimento revolucionário encontrará frente a si um capitalismo capaz de produzir uma ideologia economicista, e uma tendência para o funcionamento burguês dos aparelhos do novo poder (e isto se torna ainda mais significativo se pensarmos que as condições da ruptura revolucionária tendem a apresentar-se mais frequentemente nos chamados “países em via de desenvolvimento”). Disso tudo pode-se tirar uma pequena lição. Mesmo se nós fossemos capazes de elaborar um marxismo não economicista e de provocar, sobre esta base, uma modificação inicial das relações de produção, as futuras gerações de revolucionários poderiam repreendermos pelos numerosíssimos sedimentos de ideologias e práticas burguesas, ou até mesmo pela produção de uma nova e Para que não percamos de vista, temos que nos lembrar de que embora possa ser encarada como uma aparentemente longa digressão, esta parte da tese tem por objetivo considerar a validade das críticas de Panitch e Gindin, dentre outros, que comungam da idéia que identifica um intrínseco economicismo nos argumentos de Lenin, especificamente em suas teses sobre o Imperialismo. Segundo esta interpretação, da qual discordamos, tanto Lenin quanto xs demais autorxs do debate “clássico” – do qual Lenin seria a síntese – seriam economicistas. 470 Revista Outubro, “Charles Bettelheim, um longo adeus”; página 68. 469

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específica ideologia capitalista. Isto deve sempre estar presente quando se julgar as revoluções passadas. 471

Para Porcaro – com o que concordamos – é uma tarefa, portanto, incessante do pensamento revolucionário armar-se contra as formas de pensamento burguês que inevitavelmente se reproduzem, persistem e se ressignificam ao mesmo tempo em que o pensamento revolucionário contra ele se ergue. A tarefa da Revolução, deste modo, se mostra muito mais complexa do que o combate às ameaças externas. Trata-se – retomando de outro modo um pensamento que apresentamos na introdução – de procurarmos desarmar e lutar contra o pensamento burguês que reside na nossa própria forma de pensar e formular os problemas. Neste diapasão, pode ser – a ser demonstrado –que determinados resquícios de formas burguesas de pensamento – o economicismo, por exemplo – estejam presentes nas teorias sobre o Imperialismo. Essa questão, contudo, é muito menos relevante do que a consideração de como faremos nós para estabelecer nossas críticas – radicais – ao modo como se mantém o mundo em que vivemos. Neste sentido, voltando ao debate sobre o “economicismo” das teorias “clássicas” sobre o Imperialismo, negar a importância da dinâmica concorrencial capitalista – “economia”? – para o entendimento do mundo contemporâneo em nome de teses que privilegiem a dinâmica – “equilíbrio”? – do poder entre as potências, ou da dinâmica do poder – “política”? – entre as classes na disputa pelo Estado é andar muitos passos atrás das pioneiras e centenárias tentativas de identificar as motivações profundas do Imperialismo. Não porque a “economia” enquanto conhecimento científico seja mais profunda que quaisquer outros campos do conhecimento, mas porque aquelxs autorxs estavam empenhados – com mais ou menos limitações – na constituição de um pensamento radical da perspectiva do combate à totalidade da exploração capitalista. Neste sentido, as teses sobre o Imperialismo que a bibliografia crítica sobre o assunto toma isoladamente, com efeito compõem uma pequena parte do pensamento dxs grandes autorxs do começo do século XX, não mais importante, para elxs, que os debates sobre nacionalismo e internacionalismo; processos específicos e intrínsecos à acumulação do capital; reforma e revolução; partidos políticos e outras formas de associação; dentre muitos outros. Portanto, o mínimo que podemos esperar daqueles que quiserem criticar o “economicismo” das teses “clássicas” sobre o Imperialismo é a 471

Mesmo texto, página 69.

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consideração da obra daquelxs autorxs como um todo, e não apenas a consideração de alguns pontos que retirados de qualquer contexto, possam indicar o que o intérprete quiser tirar dele. Não precisamos concordar com Porcaro que o economicismo é inescapável em momentos de transição, mas concordamos com o argumento mais geral: o pensamento revolucionário convive necessariamente com o pensamento burguês enquanto a transição não estiver completa. Acrescentaríamos: provavelmente depois também, como o provam persistências de pensamentos “pré-capitalistas” em nossas condutas, nunca de todo tomadas pela “mentalidade de mercado” explicitada por Polanyi. E isso tanto no interior dos movimentos revolucionários como mesmo no interior de cada um dos indivíduos. Escrevendo em 1983, muito tempo depois de não restar mais dúvidas quanto ao caráter capitalista que persistiu na União Soviética apesar da Revolução de Outubro, Porcaro pondera que a luta entre as duas tendências internas ao marxismo (a tendência revolucionária e a burguesa, sempre presentes nas posições de todas as “correntes” do movimento operário – mas em proporções diversas) conclui-se progressivamente por volta dos anos 20 e 30, com a vitória do marxismo burguês. Uma vitória favorecida pela ambigüidade economicista necessariamente presente na ideologia comunista, e “reflexo” da construção do capitalismo de Estado na União Soviética e da prática dos partidos comunistas do Ocidente. Essa (depois do caso da Segunda Internacional) é a segunda, não imediatamente declarada, crise real do marxismo. 472

O problema é que não bastou para tanto a amplamente difundida crítica ao “economicismo” [que agora vemos dominar o debate contemporâneo sobre o Imperialismo, empobrecendo-o a ponto de reduzi-lo a um simulacro de ‘Teoria da Estabilidade Hegemônica”]. Mesmo porque,

472

Páginas 75 e 76.

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opondo-se ao economicismo, o marxismo subjetivista pôde, nas últimas duas décadas [TFF: a partir de 1983], fornecer um referencial ideológico a novas classes e frações de classe não adequadamente representadas nos aparelhos políticos existentes: a exaltação do “social” em relação ao “político”, do movimento em relação ao partido, é tão só o reflexo desse estranhamento real (e fornece o modelo para uma leitura democrática da única tentativa concreta de saída do stalinismo: a experiência maoísta). 473

Ao que Mimmo Porcaro pode concluir que tanto o economicismo quanto o subjetivismo são “deformações” (sic) do “socialismo científico” (sic)

474

, a rigor, ambas

fundadas nas mesmas bases. Mas, então, como pensar para além dessas “deformações”? Trata-se de uma tarefa em curso, essencial ao materialismo histórico, cujas pistas-falsas estamos procurando identificar. Um dos caminhos propostos por diversxs marxistas contemporânexs que criticam o “economicismo” é trocar a esfera da “economia” pela esfera da “política” – em nosso problema específico, pela “economia política internacional”. É o que Porcaro chama de “hiperpoliticismo”, para ele uma consequência natural do economicismo (P. 67). Em nossa concepção, é exatamente neste problema, conforme vínhamos conversando, que incorrem Panitch e Gindin. Para nos afastarmos definitivamente dessa possibilidade, que apenas repõe o problema substituindo jargões cientificistas de uma disciplina por outra, seguiremos um pouco mais na pista deste debate sobre a transição que visa superar o capitalismo, concordando uma vez mais com Márcio Naves, para quem a justa compreensão da natureza da sociedade soviética continua a ser, mesmo após o seu desaparecimento, uma questão decisiva para a esquerda revolucionária. Decisiva a um duplo título. Por um lado, esse conhecimento é necessário para que seja possível pensar a transição socialista sem que se reproduzam a ideologia e as práticas que aquela experiência consagrou. Por outro lado, esse conhecimento é necessário para que a esquerda possa abandonar, na análise do socialismo, uma concepção não apenas superficial e dogmática do marxismo, mas sobretudo uma concepção que, embora refira-se às obras de Marx, pertence, na verdade, à ideologia burguesa. 475

E para comprovar que a concentração exclusiva no problema do Estado (para o qual nossos debatedores voltam as atenções na análise sobre o Imperialismo) é uma face análoga ao economicismo, cumpre que percorramos a crítica a essa concepção estatista, tendo em vista que, ainda segundo Naves, P. 76. Mesma página. 475 (Stalinismo e Capitalismo, pág. 58) 473 474

227

a incapacidade de proceder a uma análise marxista dos problemas da transição socialista é um verdadeiro “ponto cego” da atividade teórica da esquerda, e um dos meios privilegiados por onde penetra a ideologia burguesa e, particularmente, a ideologia jurídica burguesa. 476

É, portanto, crucial o entendimento de que a substituição do “mercado” pelo “Estado”, da “Economia” pelo “Direito” – ou da “Política” – não pode dar conta de superar o problema proposto. E isso nem ao mesmo a partir da concepção de um “Estado Operário”, repetimos, no exemplo histórico mais importante já vivenciado da perspectiva consciente e autodeclarada socialista. Por que a Revolução de Outubro teve como consequência possibilitar, por um lado, o controle do aparelho de Estado pelo partido bolchevique e, por outro lado, a estatização dos principais meios de produção. Ora, a “nacionalização” das empresas, não obstante ser necessária, não é suficiente para transformar a sociedade burguesa. Ela não pode suprimir as relações de produção capitalistas cuja existência é “indiferente” a quaisquer medidas de natureza jurídica. A relação de capital é uma relação fundada na separação entre os meios de produção e o trabalhador imediato. No processo de produção imediato, o operário, expropriado das condições materiais de existência, é também expropriado de sua “potência mental”, de tal sorte que ele se transforma em um “apêndice da máquina”. Uma específica forma de organização do processo de trabalho, permite a contínua reprodução dessas condições de exploração da força de trabalho, de valorização do valor. (...) É evidente, portanto, que somente com a “desmontagem” da organização capitalista do processo de trabalho, com a superação da divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, e entre as tarefas de direção e as tarefas de execução, é que será possível à classe operária a reapropriação das condições materiais da produção e a consequente extinção do processo de valorização. (pág. 58-9 itálicos no original, negritos nossos.)

Em suma, o projeto político-intelectual assumido por Márcio Naves, a partir dessa coletânea de textos sobre a sociedade de transição para o comunismo tem como elemento essencial o combate à ideologia burguesa como um todo, dando ênfase à sua dimensão que se delimita no “campo de representação do juridicismo e do economicismo” .

477

Porque consideramos que este percurso – embora digressivo – ajuda no equacionamento do problema do fetiche da ciência burguesa como um todo e que essa crítica favorece a profundidade e a radicalidade da nossa apreciação dos debates sobre o Imperialismo iremos aqui reproduzi-lo.

476 477

P. 58. (Naves, Apresentação, pág. 5)

228

6.2 O fetichismo dos juristas Segundo esta tradição que vimos procurando comentar, a ilusão do direito burguês (“fetichismo do direito”, ou “juridicismo”

478)

advém de uma característica

essencialmente moderna de conceber as coisas do mundo que é a suposta separação entre as esferas da existência a partir da invenção de “campos de saberes” distintos, como o “Direito”, a “Economia” e a “Sociologia” para dar conta de operar e explicar as relações sociais que, com efeito, em sua realidade, são tanto jurídicas quanto econômicas, sócio-político-antropológicas, religiosas, ou técnicas. Este processo de separação, por sua vez, guarda estreita relação com a separação cada vez maior do “trabalhador” com relação aos meios de produção; com relação aos produtos do seu trabalho; com relação aos outros “trabalhadores” que se encontram em situação semelhantes; e com relação a si mesmos e é, portanto, um mecanismo fundamental na engrenagem da constituição do modo capitalista de produção. Nos termos de Charles Bettelheim, é preciso romper com a tese do “marxismo estratificado” segundo a qual existe uma identificação “mecanicista” entre as formas jurídicas de propriedade e as relações de classe, ou seja, “a transformação das formas jurídicas de propriedade não basta para eliminar as condições de existência das classes, nem, portanto, da luta de classes” e, portanto, não devemos superestimar as formas jurídicas de propriedade, mas procurar entender as mudanças nas relações de produção, ou seja, “na forma do processo social de apropriação, no lugar que a forma desse processo destina aos agentes da produção, isto é, nas relações que se estabelecem entre eles na produção social479”. Pois “são os fatos que contam, e não as categorias jurídicas480”.

Maria Turchetto, página 10. Luta de classes vol. I, páginas 28 e 29. Bettelheim chega a afirmas que a identificação das relações de produção com a propriedade e a propriedade do Estado com a apropriação social eram duas das contradições mais importantes dos bolcheviques. (ver a partir da página 483 do volume II. É importante ressaltar que mesmo toda a tradição marxista de crítica ao fetichismo da propriedade – juridicismo – não foi suficiente para evitar o que aconteceu o que aconteceu na URSS). 480 Vol. II pág. 485 478 479

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Este problema do fetichismo das categorias jurídicas aparece nos trabalhos de Marx de forma bastante esparsa e sem sistematicidade481, embora o autor as lance em diversas ocasiões e em momentos estratégicos de sua obra, como por exemplo, no princípio do segundo capítulo do livro I d’O Capital, em que, logo depois de apresentar sua crítica à Economia Política por meio da mercadoria, Marx passa pelo fetiche da propriedade privada para descrever o processo de troca. Para ele, as mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode toma-las à força482. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete uma relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva483 é dado pela própria relação

Já reproduzimos o parágrafo da Contribuição à Crítica da Economia Política em que Marx afirma que antes de estudar a Economia Política e percebê-la enquanto uma chave para a compreensão da anatomia da sociedade civil burguesa, se dedicou aos estudos jurídicos. Possivelmente por conta disso, a crítica ao caráter fetichista do direito está presente de forma relativamente sistematizada em suas “obras de juventude”, como os Manuscritos econômico-filosófico – uma coleção de anotações destinadas ao estudo, não à publicação – e em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, entre outras. Contudo, como a questão entre as relações das “obras de juventude” e as “obras da maturidade” é extremamente ampla e a relação entre a Economia Política e a Jurisprudência nos parece uma pista falsa por razões que entendemos que já estejam relativamente claras neste momento, optamos por continuar o argumento a partir de estudiosos marxistas que se debruçaram especificamente sobre o assunto do fetiche do direito. 482 Na edição da Boitempo, reproduz-se uma nota: “No século XII, tão célebre por sua piedade, frequentemente aparecem entre tais mercadorias coisas muito delicadas. Assim, um escritor francês daquela época numera, entre as mercadorias que se encontravam no mercado de Landit, ao lado de peças de roupas, sapatos, couro, instrumentos agrícolas, peles etc. também ‘femme folles de leur corps’ [mulheres com corpos ardentes]. Não foi localizada a fonte desta citação. (N. E. A. MEGA)]” 483 Cf: dicionário Houaiss: volição: n substantivo feminino; 1 ação de escolher ou decidir Ex.: ato de v.. 2 escolha ou decisão feita. 3 poder de escolher ou determinar; arbítrio, vontade. 4 vontade imperfeita, sem resultado; veleidade. 5 Rubrica: psicologia. capacidade, sobre a qual se baseia a conduta consciente, de se decidir por uma certa orientação ou certo tipo de conduta em função de motivações. 6 Rubrica: psicologia. um dos três tipos de função mental [As funções mentais dividem-se em afeto, cognição e volição.] 481

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econômica484. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidores de mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento, veremos que as máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das relações econômicas, como suporte [Träger] das quais elas se defrontam umas com as outras.485

Deste modo, os possuidores da mercadoria são os representantes da mercadoria na troca; são o mecanismo através do qual as mercadorias se reconhecem e, para isso, os homens, neste momento, precisam reconhecer-se como iguais. Do que decorre o misticismo da igualdade jurídica cuja forma mais acabada é o reconhecimento da propriedade privada, um reconhecimento – geralmente outorgado pelo Estado por meio de um contrato a partir do reconhecimento do “sujeito de direito”, que legitima a existências de determinados bens passíveis de serem trocados por outros supostamente equivalentes. Isso por que a sociedade capitalista, ao se desenvolver segundo a circulação dos produtos com base no valor de troca, cria uma dinâmica de exploração lastreada no próprio direito. A autonomia da vontade, a liberdade para comprar e vender (vender-se, no caso do trabalho), a igualdade formal dos contratantes, tudo isso se dá por conta da ferramenta do sujeito de direito. Esse átomo, universalizado pela sociedade capitalista, é o elemento jurídico mínimo do funcionamento de toda estrutura da reprodução social do capital, tal qual a mercadoria o é para o nível econômico. 486

A mercadoria e o sujeito de direito, portanto, são uma relação dupla que surge como contrapartida do fato de que “as relações entre os produtores, nas quais se efetivam aquelas determinações sociais de seu trabalho, assumem a forma de uma relação social entre os produtores do trabalho487”. Em uma análise superficial, a

Outra nota, ilustrativa do pensamento cientificista: “Proudhon cria seu ideal de justiça a justice éternelle [justiça eterna], a partir das relações jurídicas correspondentes à produção de mercadorias, por meio do que, diga-se de passagem, também é fornecida a prova, consoladora para todos os filisteus, de que a forma da produção de mercadorias é tão eterna quanto a justiça. Então, em direção inversa, ele procura modelar de acordo com esse ideal a produção real de mercadorias e o direito real que ela corresponde. O que se pensaria de um químico que, em vez de estudar as leis reais do metabolismo e de resolver determinadas tarefas com base nesse estudo, pretendesse modelar o metabolismo por meio das ‘ideias eternas’ da ‘naturalité’ [naturalidade] e da affinité [afinidade]? Por acaso se sabe mais sobre um agiota quando se diz que ele contraria a ‘justice éternelle’ e a ‘équité éternelle’ [equidade eterna], a ‘mutualité éternelle’ [mutualidade eterna] e outras ‘vérités éternelles’ [verdades eternas] do que os padres da Igreja o sabiam quando diziam que ele contradiz a ‘grâce éternelle’ [graça eterna], a ‘foi éternelle’ [fé eterna] e a ‘volonté éternelle de Dieu’ [vontade eterna de Deus]?” 485 P. 159-160. 486 Alysson Leandro Mascaro (Pachukanis e Stutchka: o direito, entre o poder e o capital) em O Discreto charme do direito burguês: Ensaios sobre Pachukanis. Márcio Brilharinho Naves (org.) Coleção Idéias 8 IFCH-Unicamp, 2009. (pág. 49) 487 P. 147. 484

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mercadoria aparenta ser “uma coisa óbvia, trivial [mas] sua análise resulta em que ela é uma coisa muito intricada, plena de sutilezas metafísicas e melindres teológicos488”. O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-suprassensíveis489 ou sociais. A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo óptico não se apresenta, pois, como um estímulo subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma objetiva de uma coisa que está fora do olho. No ato de ver, porém, a luz de uma coisa, de um objeto externo, é efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de uma relação física ente coisas físicas. Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parece dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. 490

Daí tiramos que a grande dificuldade que precisamos enfrentar para o entendimento das relações capitalistas – que passa, como vimos no segmento de nosso texto dedicado às teses de Polanyi, inclusive pela forma como as palavras escondem as relações que representam – é a compreensão de que além de um pedaço de papel que garante determinada possibilidade de uso para determinada coisa, a propriedade privada esconde o trabalho expropriado e o capital acumulado, frutos da relação de produção capitalista. Por isso, quando conseguimos perceber a mesma relação social (de classe) por trás dessas três formas fetichizadas (propriedade, trabalho e capital), podemos perceber que “a relação da propriedade privada é trabalho, capital e a relação

P. 146. Nota: “No original: ‘sinnlich übersinnliche’. Referência à fala de Mefistófeles em Fausto, de Goethe (primeira parte, “No jardim de Marta”: ‘Du übersinnliche, sinnlicher Freier,/Ein Mägdelein nasfüret dich’ [‘Tu, conquistador sensível, suprassensível,/ Uma mocinha te conduz pelo nariz’] (N.E.A. MEGA)”. 490 P. 147-8. Conforme Marx expõe no capítulo XLVIII do livro terceiro d’O Capital, sobre “A Fórmula Trinitária”, “o capitalista é apenas o capital personificado, funcionando no processo de produção apenas como portador do capital”: Vol. III tomo II 1985. Pág. 272 488 489

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entre ambos491”, porque “a essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho492”, e a “propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a conseqüência necessária do trabalho exteriorizado, da relação externa (äusserlichen) do trabalhador com a natureza e consigo mesmo493” e “resulta, portanto, por análise, do conceito de trabalho exteriorizado, isto é, de homem estranhado, de vida estranhada, de homem estranhado494”. Ou seja, a propriedade capitalista deriva da exploração capitalista e é somente por meio das relações fetichizadas que vivemos cotidianamente (cujas manifestações mais aparentes foram expostas por juristas e economistas burgueses) que pensamos que a exploração do trabalho é um resultado da propriedade privada, como se a propriedade privada precedesse o trabalho. “Mas evidencia-se na análise desse conceito que, se a propriedade privada aparece como fundamento, como razão do trabalho exteriorizado, ela é antes uma conseqüência do mesmo495”. Somente mais tarde esta relação se transforma em relação recíproca [este grifo é nosso, os demais do autor]. Somente no derradeiro ponto de culminância do desenvolvimento da propriedade privada vem à tona novamente este seu mistério, qual seja: que é, por um lado, o produto do trabalho exteriorizado e, em segundo lugar, que é o meio através do qual o trabalho se exterioriza, a realização desta exteriorização496.

A propriedade é, portanto, depois de constituída, uma dupla relação, na medida em que é resultado da exploração do trabalho e fonte de novas explorações do trabalho e, portanto, não é somente uma relação entre um homem e a coisa por ele possuída, mas uma relação entre os homens que possuem com os homens que não possuem, entre proprietários e trabalhadores e, portanto, entre capitalistas e não capitalistas. Assim, a propriedade privada, como a expressão material, resumida, do trabalhador exteriorizado, abarca as duas relações, a relação do trabalhador com o trabalho e com o produto do seu trabalho e com o não-trabalhador, e a relação do não-trabalhador com o trabalhador e [com] o produto do trabalho deste último.497

Nos confusos termos de Marx em seu caderno de anotações publicado como Manuscritos econômico-filosóficos, Manuscritos, pág. 97 Manuscritos pág. 99 493 Manuscritos p. 87. 494 Manuscritos pág. 87 495 “(...) assim como também os deuses são, originalmente, não a causa, mas o efeito do erro do entendimento humano”, mesma obra, mesma página. 496 Manuscritos págs. 87 e 88. 497 Manuscritos, pág. 90. 491 492

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a relação (Verhäultnis) da propriedade privada contém latente em si a relação da propriedade privada como trabalho, assim como a relação dela mesma como capital e a conexão (Beziehung) destas duas expressões uma com a outra. [Por um lado, trata-se d] a produção da atividade humana enquanto trabalho, ou seja, enquanto uma [atividade] totalmente estranha a si, ao homem e à natureza e, por conseguinte, a consciência e a manifestação de vida (Lebensäusserung) também [como] atividade estranha; a existência abstrata do homem como um puro homem que trabalha e que, por isso, pode precipitar-se diariamente de seu pleno nada no nada absoluto e, portanto, na sua efetiva (wirkliche) não-existência. Por outro lado, [trata-se d] a produção do objeto da atividade humana como capital, no qual toda determinidade natural e social do objeto está extinta, [em que] a propriedade privada perdeu sua qualidade natural e social (ou seja, perdeu todas as ilusões políticas e gregárias, sem se mesclar com relação aparentemente humana alguma) – no qual também o mesmo capital permanece o mesmo na mais diversificada existência natural e social, é completamente indiferente ao seu conteúdo efetivo (wirklicher Inhault). Esta oposição (Gegensatz) levada ao seu extremo é necessariamente o auge, a culminância e o declínio de toda a relação. 498

Em suma, a relação social aparece como outra coisa (um título de propriedade, ou uma ação), é lida por essa outra coisa e, a partir dessa aparência e dessa leitura adquirem concretude e atuam, de maneira objetiva, na configuração das relações sociais e o proprietário desses títulos passa a contar com meios concretos e a proteção efetiva do Estado na garantia dessa relação fetichizada, bem como o poder efetivo de intercambiar sua propriedade com a de outros capitalistas, diminuindo os riscos e aumentando sua capacidade de explorar as classes trabalhadoras e acumular capital. Portanto, precisamos desmistificar o fetiche e compreender que, na realidade, ele apenas representa uma relação fantasmagórica que esconde a luta de classes por meio da qual se configura a história. 6.2.1 O socialismo jurídico, de Friedrich Engels e Karl Kautsky

Para a compreensão da crítica do caráter fetichista do Direito, consideramos que o melhor ponto de partida é o texto O socialismo jurídico, “publicado originalmente na revista da social-democracia alemã Die Neue Zeit [A Nova Gazeta], em 1887, sem que fossem nomeados seus autores, só depois identificados como Friedrich Engels e Karl Kautsky499”. Segundo Márcio Naves, “a redação havia sido iniciada por Engels, mas, tendo

Manuscritos, pág. 93. Márcio Brilharinho Naves, em Prefácio a O socialismo jurídico, de Friedrich Engels e Karl Kautsky – Tradução: Lívia Cotrim e Márcio Brilharinho Naves Boitempo Editorial – São Paulo, 2012 (Coleção MarxEngels) 2ª ed. rev. 498 499

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ele adoecido, Kautsky foi chamado para completar o artigo”. O objetivo do livro diz muito sobre a importância da empreitada. Ainda segundo Naves, “O socialismo jurídico” é uma crítica ao livro de Anton Menger, O direito ao produto integral do trabalho historicamente exposto, publicado no ano de 1886, e que vinha obtendo grande repercussão nos meios socialistas. Nascido na Áustria, Menger (1841-1906) foi professor de Direito Processual Civil, reitor da Universidade de Viena e um dos mais expressivos representantes do socialismo jurídico. (pág. 9) Em seu livro, Menger propõe-se a tarefa de reelaborar o socialismo de um ponto de vista jurídico, possibilitando a transformação do ordenamento jurídico por meios pacíficos. 500

Além da patética tentativa de demonstrar que “a concepção teórica de Marx e Engels era simplesmente um plágio de autores socialistas que o precederam501”; “As posições de Menger favoreciam, de forma muito particular, a ala direitista da socialdemocracia alemã, que privilegiava a participação no sistema eleitoral502”. A importância do texto em nossos dias também é destacada por Naves neste mesmo prefácio503. Em suas próprias palavras, o texto de Engels e Kautsky tem grande importância teórica e política e é de impressionante atualidade. Nestes tempos, em que se abate sobre o P. 10. Mesma página. 502 Mesma página. Embora raramente façam parte da bibliografia sobre o Imperialismo clássico, este debate é de importância crucial para o tema. Conforme já enunciamos noutra passagem, é um dos nós da articulação do debate entre Lenin e Kautsky e uma das principais razões para a ruptura de Rosa Luxemburg e demais Spartakistas com relação à social-democracia alemã. Embora esse tema esteja presente em cada uma das obras “clássicas”, não conhecemos nenhum texto que procure reconstituir o debate sobre o Imperialismo a partir dos debates que lhe eram contemporâneos. Tal tarefa, de importância fundamental e dificuldade enorme, precisaria encarar com seriedade interlocutores importantes e renegados como Bernstein e Bebel, bem como uma quantidade grande de textos que foi publicada sobre outros “assuntos” que não o Imperialismo, frequentemente apresentados em artigos de jornal. Como dissemos, é uma tarefa imensa. Entretanto, ao nosso juízo, traria muita luz aos problemas hoje em voga, e provavelmente refutariam grande parte das críticas contemporâneas às teses clássicas. 503 Precisamos voltar a conversar sobre a atualidade dos debates clássicos, com uma pergunta em mente: por que é surpreendente que eles sejam atuais? Sob nosso juízo, a perplexidade sobre a atualidade de obras “velhas” se deve ao completo descompasso entre a temporalidade de nossas próprias vidas e a temporalidade dos processos históricos dos quais fazemos parte. Se do nosso ponto de vista individual o século e pouco que nos separa dos textos referidos pode parecer uma eternidade, isso reflete o fato de que – não sem razão – somos tomados de uma ansiedade que não coaduna com determinantes estruturais que ultrapassam nossas vidas. Quanto ao nosso objeto mais específico – a historicidade das categorias que compõem o campo dos estudos sobre o imperialismo – vemos que grande parte da historiografia contemporânea renega de antemão que idéias formuladas um século atrás possam ser atuais, ou então se surpreendem ao reconhecer essa atualidade. Por quê? Estranho seria se diferente fosse. De acordo com o nosso juízo, quando explicitamos o enunciado de que, embora isso soe estranho a partir de nossas perspectivas individuais, vivemos em algum sentido o mesmo período daquelxs autorxs, procuramos conferir inteligibilidade a este problema, porque se entendemos que vivemos em um mesmo período, nos parece lógico que os conceitos d que elxs se valeram para explicar o período – por exemplo, imperialismo – sejam atuais. Num contexto diferente, Silvio Caldas, falando sobre Noel Rosa, mata a pau: “As músicas de Noel possuem uma estranha atualidade. Mas eu não sei se ele era mesmo um gênio, ou se o Brasil é que teima em não mudar.” 500 501

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marxismo uma avassaladora ofensiva em nome da democracia, isto é, do direito, e em que a ideologia jurídica penetra profundamente no movimento operário e em suas organizações, vale a pena voltar a atenção para o ataque sem concessões que Engels e Kautsky dirigem contra o núcleo duro da ideologia burguesa, a sua concepção jurídica de mundo. Engels e Kautsky defendem um ponto de vista irredutivelmente antijurisdicista. (...) mostram que Marx desloca a questão [sobre o “maisvalor”, deslocado por Marx para “mais-valia”, um conceito distinto] ao fundar sua análise da exploração não na forma supostamente “injusta” da distribuição, mas nas relações de produção, e ao lembrar que ele “nunca reivindicou o ‘direito ao produto integral do trabalho’” nem jamais apresentou reivindicações jurídicas de qualquer tipo em suas obras teóricas.” 504

Para Naves, “relacionando a forma do direito com a forma da mercadoria (...) Engels e Kautsky permitem desvendar todo o segredo do direito”, qual seja, “o processo de trocas mercantis generalizado exige, para a sua efetivação, o surgimento da subjetividade jurídica e dos princípios da liberdade, da igualdade etc. que a acompanham”. Assim, conforme vimos argumentando – acompanhando Naves e outros autores que ele nos apresenta nos livros que organiza – “a emergência da categoria de sujeito de direito vai possibilitar, então, que o homem circule no mercado como mercadoria, ou melhor, como proprietário que oferece a si mesmo no mercado” e portanto, “O sujeito existe apenas a título de representante de si próprio enquanto mercadoria”. Desse modo, o direito põe o homem em termos de propriedade, ele aparece ao mesmo tempo na condição de sujeito e objeto de si mesmo, isto é, na condição de proprietário que aliena a si próprio: “A estrutura mesma do sujeito de direito, na dialética da vontade-produção-propriedade, não é, definitivamente, mais que a expressão jurídica da comercialização do homem”. O direito faz funcionar, assim, as categorias da liberdade e da igualdade, já que o homem não poderia dispor de si se não fosse livre – a liberdade é essa disposição de si como mercadoria – nem poderia celebrar um contrato – esse acordo de vontades – com outro homem se ambos não estivessem em uma condição de equivalência formal (caso contrário, haveria a sujeição da vontade de um pela do outro). 505

Assim, a “ilusão jurídica”

506

é um baluarte fundamental para a sustentação das

“relações sociais existentes” cuja transformação exige uma negação radical da visão de mundo burguesa em cada um dos seus fetiches essenciais [para mantermos o foco: o sujeito de direito e a mercadoria – correspondentes]. Segue Naves:

Páginas 10 e 11. P. 12. As citações entre aspas foram tiradas por Naves de Evgeni Pasukanis e Bernard Edelman. 506 P 14. 504 505

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a isso se contrapõe todo o esforço dos aparelhos de Estado burgueses, que se encaminha no sentido de encerrar a existência da classe operária e suas lutas no estrito terreno jurídico, ali onde a luta já está, por antecipação, ganha pela burguesia, uma vez que o funcionamento do direito implica obrigatoriamente a reprodução das relações sociais burguesas. Essa legalização da luta de classes significa que as formas de luta do proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que o direito e a ideologia jurídica estabelecem. Assim, a greve só se transforma em direito de greve se os trabalhadores aceitam os termos que a ela emprestam licitude: a greve não pode desorganizar a produção colocando em risco o processo do capital, questionando, portanto, a dominação burguesa dos meios de produção. 507

Mas, o que é importante, para retermos as contradições vivas entre as formas de pensar burguesas e a sua superação, isso não significa, no entanto, que a classe operária permaneça inteiramente fora do terreno do direito, pois, como afirmam Engels e Kautsky: “toda classe em luta precisa, pois, formular suas reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações jurídicas”. Porém, eles próprios nos lembram que uma luta conduzida sob reivindicações jurídicas tem como consequência a consolidação da concepção jurídica de mundo. Toda a complexidade da questão reside em que a classe operária deve apresentar demandas jurídicas ao mesmo tempo que deve recusar o campo jurídico. (...) As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento desestabilizador, que “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica. 508

Acompanhemos com paciência e procuremos compreender a importância da crítica à visão burguesa de mundo como um todo, a partir da radicalidade com que Engels e Kautsky constroem o argumento de O socialismo jurídico. O primeiro passo do raciocínio desses autores é a consideração de que na Idade Média, a concepção de mundo era essencialmente teológica. A unidade interna europeia, de fato inexistente, foi estabelecida pelo cristianismo diante do inimigo exterior comum representado pelo sarraceno. Essa unidade do mundo europeu ocidental, formada por um amálgama de povos em desenvolvimento, foi coordenada pelo catolicismo. A coordenação teológica não era apenas ideal; consistia, efetivamente, não só no papa, seu centro monárquico, mas sobretudo na Igreja, organizada feudal e hierarquicamente, a qual, proprietária de cerca de um terço das terras, em todos os países detinha poderosa força no quadro feudal. Com suas propriedades feudais, a Igreja se constituía no verdadeiro vínculo entre os vários países; sua organização feudal conferia consagração religiosa à ordem secular. Além disso, sendo o clero a única classe culta, era natural que o dogma da Igreja fosse a medida e a base de todo pensamento. Jurisprudência, ciência da natureza e filosofia, tudo se resumia em saber se o conteúdo estava ou não de acordo com as doutrinas da Igreja. Entretanto, no seio da 507 508

Mesma página. P. 15.

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feudalidade desenvolvia-se o poder da burguesia. Uma classe nova se contrapunha aos grandes proprietários de terras. 509

Assim, lembrando que a sociedade burguesa precisou, para se consolidar no poder, impor às demais tanto a sua “mentalidade de mercado” quanto a sua visão de mundo em um sentido mais amplo – que não é rigorosamente idêntica a ela (ou, pelo menos, não o foi durante toda a sua existência) –, enquanto o modo de produção feudal se baseava, essencialmente, no autoconsumo de produtos elaborados no interior de uma esfera restrita – em parte pelo produtor, em parte pelo arrecadador de tributos –, os burgueses eram sobretudo e com exclusividade produtores de mercadorias e comerciantes. A concepção católica de mundo, característica do feudalismo, já não podia satisfazer à nova classe e às respectivas condições de produção e troca. Não obstante, ela ainda permaneceu por muito tempo enredada no laço da onipotente teologia. Do século XIII ao século XVII, todas as reformas efetuadas e lutas travadas sob bandeiras religiosas nada mais são, no aspecto teórico, do que repetidas tentativas da burguesia, da plebe urbana e em seguida dos camponeses rebelados de adaptar a antiga concepção teológica de mundo às condições econômicas modificadas e à situação de vida da nova classe. Mas tal adaptação era impossível. A bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo. 510(pág. 18)

Assim, como vínhamos argumentando, existe uma relação fundamental entre a implementação da “mentalidade de mercado” e a “concepção jurídica de mundo” porque para a constituição da “mentalidade de mercado” – absolutamente superior à simples troca de mercadorias – faz-se mister o reconhecimento – garantido pelo Estado, legitimado pelas pessoas – de “sujeitos de direito” que possam constituir-se em “proprietários de mercadoria”. Desta maneira, com a ascensão da burguesia e a implementação da “mentalidade de mercado”, acontecia a “secularização da visão teológica” e “o dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado”. Com isso, as relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado. Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social – isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos – engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade – normas jurídicas estabelecidas pelo Estado –, imaginou509 510

P. 17. P. 18.

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se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do Estado. Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia. Contribuiu para consolidar a concepção jurídica de mundo o fato de que a luta da nova classe em ascensão contra os senhores feudais e a monarquia absoluta, aliada destes, era uma luta política, a exemplo de toda luta de classes, luta pela posse do Estado, que deveria ser conduzida por meio de reivindicações jurídicas. 511

Mas o cerne do problema, contudo – que explicava tanto a radicalidade das mudanças como o vigor de um pensamento reformista que conviviam de modo extremamente tenso512 – era a transformação do modo de produção513, progressiva transnacionalmente tomado pelas relações capitalistas514. Este problema, conforme já discutimos de passagem, não é apenas um problema “teórico” ou “ideológico”. Do contrário, constitui um dos mais candentes temas na constituição da experiência revolucionária orientada pelo marxismo mais avançada que conhecemos: a Revolução Russa. Ali o problema assumiu uma importância central, porque se para Marx e Engels era urgente assentar uma “concepção materialista da história”, ao que “era mais importante mostrar o direito como um epifenômeno e não como elemento determinante da realidade”, “durante a Revolução Russa de 1917, os bolcheviques tinham outra tarefa: a construção de um Estado operário”, que pode ajudar a explicar “a profundidade e a centralidade do debate em torno do direito e das formas que tomaria durante a ditadura do proletariado”

. Neste debate, figura um sujeito de

515

grande destaque: o jurista russo Evgeni Pachukanis. Segundo Silvia Alapanian, em seu trabalho A teoria geral do direito e o marxismo, Pachukanis “promove uma verdadeira revolução no campo da crítica marxista do direito, recuperando as indicações de Marx, sobretudo em O capital, sobre o fenômeno jurídico em sua relação com a forma mercadoria”, ou, – mais uma vez nas palavras de P. 19. Sobre outro contexto, Novais pontua que: “Não é possível haver um pensamento reformista tão articulado e uma política levada a cabo com tanta eficácia, se não estiver subjacente uma tremenda crise, isto é, a elite dominante, o grupo dirigente, só se movimenta dessa maneira e com tal intensidade quando está enfrentando uma situação muito dramática. Do contrário mantém o sistema de dominação. Então temos aqui uma crise estrutural, visto que só uma crise estrutural requer, promove, um tamanho esforço de análise e pertinácia de atuação. Qual a estrutura que entra em crise? (Aproximações, pág. 353). 513 P. 19. 514 Martin Wight; A política do poder. 515 A crítica marxista do direito: um olhar sobre as posições de Evgeni Pachukanis – Silvia Alapanian (Doutora em Serviço Social pela PUC-SP, assistente social e professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina), em O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis Márcio Brilharinho Naves (org.) Coleção Idéias 8 Campinas, IFCH-Unicamp 2009 (pág. 26) 511 512

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Naves – “a apreensão da natureza específica do direito como mediação necessária do processo do valor de troca516”. Não que Pachukanis tenha “inventado a roda”. Como ele mesmo explicita: “considero necessário enfatizar (...) que eu não inventei nada de novo aqui (...) mas simplesmente enunciei de modo mais ou menos sistemático as posições de Marx, Engels e Lenin sobre esse assunto517”. Ainda em seus próprios termos, as premissas materiais da comunidade jurídica ou das relações entre os sujeitos jurídicos foram definidas pelo próprio Marx no primeiro tomo de O capital, ainda só de passagem e sob a forma de anotações muito gerais. Estas anotações, porém, contribuem muito mais para a compreensão do momento jurídico nas relações humanas do que qualquer volumoso tratado sobre a teoria geral do direito. Para Marx a análise da forma do sujeito tem origem imediata na análise da forma mercadoria. 518

Mas a importância da crítica ao pensamento juridicista empreendida por Pachukanis enquanto um problema concreto ultrapassa em muito as discussões específicas sobre a Jurisprudência519. Nas palavras do jurista uspiano Celso Naoto Kashiura Júnior, a teoria de Pachukanis avançou a ponto de demonstrar não apenas que o capitalismo se apóia numa construção jurídica específica, mas também que a persistência do direito implica a persistência do capitalismo, e que, assim sendo, o fim deste modo de produção deve ser igualmente o fim da forma jurídica. Direito é capitalismo tanto quanto capitalismo é direito520. Pachukanis levou às últimas consequências as indicações de Karl Marx – logrou construir não uma teoria jurídica que apenas se apóia nos raros excertos que Marx tratou especificamente do direito ou que apenas se desenvolve de modo coerente em relação ao conteúdo da obra de Marx como um todo, mas uma crítica do direito que segue os passos da crítica da economia política. Deste modo, Pachukanis desenvolveu no campo do direito não simplesmente o parco legado de um Marx jurista, mas o legado maior do Marx da economia política: o pensamento de Pachukanis está claramente construído sobre o mesmo método dialético a partir do qual Marx elaborou O capital, o que resulta numa análise tendente a reconstruir o direito como totalidade concreta; o mesmo que Marx, do ponto de vista econômico, buscou fazer com o

Evgeni Bronislavovitch Pachukanis (1891-1937) – Márcio Brilharinho Naves, mesmo livro. (p. 14-5) (E. Pachukanis, “Zasedanie sektsii orava 28 maia 1926” apud R. Sharlet, op. cit., p. 49), citado por Naves, última obra citada, (pág. 15) 518 Mascaro, obra citada. (pág. 49) 519 Cf: Dicionário Houaiss. n substantivo feminino. 1 Rubrica: termo jurídico. ciência do direito e das leis 2 Rubrica: termo jurídico. conjunto das decisões e interpretações das leis feitas pelos tribunais superiores, adaptando as normas às situações de fato 3 Derivação: sentido figurado. uso estabelecido, aquilo que serve como modelo ou exemplo para agir, pensar, dizer Ex.: ao resolver o problema informático daquele jeito, ele fazia j. 520 P. 54. 516 517

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capitalismo, com vistas a explicitar toda a sua dinâmica interna e todas as suas contradições imanentes. 521

A ênfase do argumento de Kashiura Júnior é na radicalidade do método dialético que Pachukanis toma de Marx em sua crítica do direito 522, em especial, acima de todas as demais, a historicidade, que faz com que a crítica do direito alcance a crítica à visão de mundo burguesa e ao modo de produção capitalista. Para Pachukanis, a a história da forma jurídica é mais complexa do que usualmente consideram os juristas. Ela não estava já pronta desde as sociedades primitivas, tendo posteriormente o direito evoluído, em compasso com a ‘evolução do espírito humano’, apenas quanto ao conteúdo. Pelo contrário, o completo desenvolvimento da forma jurídica, quando ela se torna aquilo que hoje conhecemos, ocorre apenas com a ascensão do modo capitalista de produção523. Pachukanis pode tratar com muita propriedade da história da forma jurídica porque, contrariando as teorias dominantes, encontra a especificidade do direito não no descolamento quanto á realidade social, mas nela própria. A forma Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis – Celso Naoto Kashiura Júnior – Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Naves (org.), O Discreto charme. (págs. 54-5) No outro texto do autor que compõe a coletânea de Naves, “Duas formas absurdas: uma defesa da especificidade histórica da mercadoria e do sujeito de direito”, reforça que “A teoria que segue o legado do pensamento de Marx deve ser perguntar como uma certa forma social chegou a ser o que é ao longo do movimento repleto de transformações e de descontinuidades que constitui a história. Trata-se do pensamento da ruptura – cada forma social torna-se o que é a partir de uma ruptura – e do acidental – as singularidades históricas não são descartáveis, mas essenciais para a teoria. (pág. 120).” Para tanto, insiste – o que procuraremos explicar logo na sequência – que “O que se entende por direito, na visão de Pachukanis, é a forma jurídica correspondente à sociedade burguesa. (pág. 121) e, portanto, “Pachukanis não limita [T.F.F.: como defende uma crítica publicada no livreto] a historicidade do direito, apenas recusa a indistinção em que cai a teoria tradicional em função da insistente negação da ruptura entre passado, presente e futuro. O ponto de vista segundo o qual o direito é uma forma específica do capitalismo não cerceia a análise histórica, mas traz outras questões que as teorias adeptas da linearidade histórica simplesmente não se colocam. O que há de novo na sociedade capitalista que resulta em que as relações sociais assumam uma forma jurídica? Como as relações sociais que, a princípio, não estão vinculadas à troca, assumem forma jurídica? Como o direito contribui para a manutenção do modo de produção capitalista? A forma jurídica poderá continuar a existir após o capitalismo? Como ocorrerá a extinção do direito? (pág. 121)” 522 Sobre o método dialético de Marx e Pachukanis (para o autor, fundamental para o sucesso da crítica marxista do direito), Kashiura destaca três momentos distintos, que compõem sua argumentação. São elas “a dialética entre forma e conteúdo, a diferença entre a totalidade abstrata e totalidade concreta e o caminho de ascensão do abstrato ao concreto”. Como estamos nos acercando também deste tema, seguimos aqui também Kashiura em sua ressalva: “(...) é necessária uma advertência. Ao contrário de outros métodos de pensamento, o método dialético não tem independência quanto ao objeto de análise, isto é, não é um método pré-determinável, tampouco um método indiferente ao objeto. ‘O não ser a dialética um método independente de seu objeto – já escreveu Theodor Adorno – impede sua apresentação com um para-se, tal como a permite o sistema dedutivo’. Assim, o método dialético não pode ser apresentado previamente para que posteriormente seja simplesmente aplicado a este ou aquele objeto, porque é o próprio objeto, e não o sujeito cognoscente, que dita o caminho a ser tomado em seu estudo. Cumpre ressaltar, portanto, que a abordagem dos métodos de Marx e Pachukanis aqui realizada, embora busque destacar similitudes, não tem e não pode ter o escopo de apontar uma mera transposição de método da economia política para o direito e, principalmente, não pretende constituir qualquer espécie de ‘guia metodológico’ a ser aplicado pela teoria crítica do direito”. (pág. 55) Conforme já indicamos, no método dialético, “não sou em quem me navega, quem me navega é o mar”. 523 P. 59. 521

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jurídica é, segundo sua visão, não essencialmente normativa (‘deverser’), mas forma de relação voluntária entre sujeitos equivalentes, forma esta cuja gênese reside numa relação social determinada, a relação de troca mercantil. Uma vez que a forma jurídica está no ‘mundo real’ (do ‘ser’), captar a sua história se torna possível – sua história acompanha a história da relação de troca. É apenas quando as relações de troca se generalizam e se tornam socialmente dominantes que a forma jurídica atinge seu pleno desenvolvimento. Portanto, é apenas a partir do advento do modo de produção capitalista, que se pode falar da forma jurídica como tal, é apenas neste momento que começa a história da forma jurídica. O que ficou para trás foi a pré-história, na qual apareceram estágios ‘embrionários’, estágios não completamente desenvolvidos da forma jurídica. Ao propor isso, Pachukanis procura seguir outra diretriz do método de Marx, aquela segundo a qual é a forma mais desenvolvida que serve de ‘chave’ para a compreensão das menos desenvolvidas e não o contrário. 524(págs. 59-60)

Aqui, mais uma vez, se mostra necessário o retorno ao debate da Contribuição à crítica da economia política. Primeiramente, Kashiura resgata que ‘A sociedade burguesa – afirma Marx – é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação, etc. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies anteriores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior.’ (Introdução à crítica da economia política).

Kashiura procura, então, tirar as conclusões desta proposição quanto ao pensamento jurídico, insistindo na importância da história. Para ele, explicar o homem a partir do macaco implica que o macaco se tornou homem, quando, na verdade, foi a ruptura com a ‘forma’ do macaco que deu origem ao homem. Se, pelo contrário, o macaco é explicado a partir do homem, torna-se possível compreender o que na forma menos desenvolvida gerou a transformação que deu origem à mais desenvolvida. O que, em suma, Marx propõe é um olhar que inverte o sentido da história, de modo que se abandone a história como ‘evolução linear’, isto é, sem interrupções, sobressaltos ou transformações radicais. Assim, ao invés de procurar, na economia política, analisar a passagem da economia antiga para a economia feudal e desta para o capitalismo, como mera evolução do mesmo, no qual a forma menos desenvolvida é que explica a mais, Marx quer conhecer a economia capitalista, tomando esta como resultado de uma ruptura com as anteriores, e só depois buscar conhecer as formas econômicas menos desenvolvidas. Quanto ao direito, Pachukanis conclui, de modo semelhante, que a forma jurídica como tal, a forma jurídica da sociedade 524

P. 59-60.

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capitalista, é resultado de uma ruptura com as formas anteriores: é apenas o capitalismo que a forma jurídica ganha completa autonomia. 525

Isso significa que na história ocidental, durante a antiguidade e o medievo, não havia completa diferenciação daquilo que hoje se identifica como o direito. A forma jurídica não apresentava fronteiras claras quer quanto à religião – misticismo e uma pretensa vontade divina constituindo regras de conduta –, quer quanto à política – a vontade do soberano como lei, status sociais fundamentando privilégios. O romano que pronunciava palavras sagradas para selar um pacto profano, o vassalo que se ligava por laços de dependência pessoal ao suserano, o sistema de provas conhecido como ordália e o direito oriundo das monarquias absolutas, para ficar apenas com exemplos mais patentes, atestam a indiferenciação da forma jurídica em relação a outros domínios da vida social. A generalização das relações de troca mercantil – generalização que acarreta, de um lado, a conversão de todas as coisas em mercadorias e, de outro, a conversão de todas as pessoas em sujeitos de direito – marca o apogeu da forma jurídica.526

Portanto, mais uma vez somos levados a partir da crítica a certos aspectos da ideologia burguesa (no caso, o juridicismo), não apenas à crítica da parcialidade, mas à crítica das raízes da visão de mundo burguesa como um todo. Seguindo o raciocínio que vimos acompanhando, não é o caso, portanto, de simplesmente denunciar o caráter parcial, falseador ou mesmo absurdo das categorias jurídicas abstratas, nem simplesmente ignorá-las. Em primeiro lugar, porque seu aspecto irreal não as torna exteriores à realidade. Marx ressalta ser necessário ter em conta que um dado objeto existe simultaneamente no cérebro, como categoria teórica, e na realidade efetiva. O capital, por exemplo, existe tanto no pensamento como na realidade, mas a categoria capital só pode ser elaborada em toda a sua pureza quando o capital se torna, na realidade efetiva, a força que rege toda uma ordem social, o sujeito que move a si mesmo e arrasta tudo mais consigo em seu movimento. As categorias abstratas expressam não apenas um aspecto parcial que se

525 526

pág. 61. Mesma página.

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quer universal, mas, nesta parcialidade, expressam também a história real que as condiciona. 527

Portanto, a tarefa identificada pela tradição dialética que Kashiura reivindica, passa pela identificação da categoria que “no interior da ordem social capitalista, ocupa um posto tal que perpasse todos os demais, que contenha em si a explicação potencial da sociedade burguesa como um todo” [grifo nosso]

. E aqui temos um ponto de

528

importância central. Acompanhemos a exposição de Kashiura: Marx, em O capital, inicia sua exposição pela mercadoria. Esta é a categoria que, na ordem burguesa completamente desenvolvida, serve de fundamento para tudo mais, e isto não porque surgiu antes das demais ou porque não é logicamente viável passar às demais sem passar pela mercadoria, mas porque ocupa um lugar estratégico na hierarquia interna da economia capitalista. A mercadoria é a forma social necessária que todo produto do trabalho humano deve tomar no capitalismo – ela é o ‘átomo’ da economia capitalista. É a partir dela que deve ter início a reprodução da estrutura da economia capitalista: a partir da mercadoria, Marx pode explicar o dinheiro, depois o capital e daí por diante, reconstruindo a economia como um todo pela síntese de suas partes, isto é, como totalidade concreta. Como resultado, Marx consegue – embora O capital tenha restado incompleto – reproduzir na teoria a estrutura complexa e contraditória do modo de produção capitalista. 529

De forma correspondente, em A teoria geral do direito o marxismo, Pachukanis encara a forma jurídica completamente desenvolvida, que corresponde ao mesmo estágio histórico analisado do ponto de vista econômico por Marx, e encontra a categoria pela qual deve iniciar sua exposição no sujeito de direito. Também neste caso não se trata de precedência lógica ou 527P.

64. Por exemplo, o imperialismo é e não é um tigre de papel. Cf: https://www.marxists.org/espanol/mao/escritos/IPT56s.html. Noutro registro, “trata-se de mostrar por que interferências toda uma série de práticas – a partir do momento em que são coordenadas por um regime de verdade –, por que interferências essa série de práticas pôde fazer que o que não existe (a loucura, a doença, a delinquência, a sexualidade, etc.) se tornasse porém uma coisa, uma coisa que no entanto continuava não existindo. Ou seja, não [como] um erro – quando digo que o que não existe se torna uma coisa, não quero dizer que se trata de mostrar como um erro pôde efetivamente ser construído –, não como a ilusão pôde nascer, mas [o que] eu gostaria de mostra [é] que foi certo regime de verdade e, por conseguinte, não um erro que fez que uma coisa que não existe possa ter se tornado uma coisa. Não é uma ilusão, já que foi precisamente um conjunto de práticas e de práticas reais, que estabeleceu isso, e por isso, o marca imperiosamente no real. O objeto de todos esses empreendimentos concernentes à loucura, à doença, à delinquência, à sexualidade e àquilo de que lhes falo agora é mostrar como o par ‘série de práticas/regimes de verdade’ forma um dispositivo de saber-poder que marca efetivamente no real o que não existe e submete-o legitimamente à demarcação do verdadeiro e do falso. O que não existe como real, o que não existe como pertencente a um regime de verdadeiro e falso é esse momento, nas coisas de que me ocupo atualmente, que assinala o nascimento dessa bipolaridade dissimétrica da política e da economia. A política e a economia, que não sem nem coisas que existem, nem erros, nem ilusões, nem ideologias. É algo que não existe e no entanto está inscrito no real, estando subordinado a um regime que demarca o verdadeiro e o falso.” Páginas 26 e 27. Foucault: Nascimento da Biopolítica. 528 Páginas 67 e 68. 529 P. 68.

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histórica. Do ponto de vista lógico-formal, o sujeito de direito ocupa um posto ordinário ao lado das demais categorias jurídicas – note-se, por exemplo, que uma teoria que se pretende logicamente impecável, como a de Hans Kelsen prefere a norma como categoria-chave para todas as demais. E, de maneira semelhante, do ponto de vista histórico o sujeito de direito não se destaca, e não apenas porque não é necessariamente a figura mais antiga entre os componentes do fenômeno jurídico, mas porque o desenvolvimento e o ‘papel’ do sujeito de direito em períodos anteriores (por exemplo, no direito romano e no direito costumeiro feudal) não foram os mesmos que os atuais. 530

Portanto, o fundamental para a crítica da Jurisprudência, seguindo o raciocínio pachukaniano de Kashiura, é a compreensão de que “assim como a mercadoria no domínio econômico, o sujeito de direito é, no domínio jurídico, a categoria que, na relação com todas as demais, serve de ‘chave’ para desvendar o arranjo que forma o todo.531” Isso porque “é a categoria mais simples, que concentra em si o potencial de explicação das demais e que por isso deve ser o ponto a partir do qual se inicia a reprodução da estrutura da forma jurídica no pensamento532”. Chegamos, então ao ponto mais importante. A descoberta de Pachukanis de que o “sujeito de direito” é a categoria essencial do pensamento jurídico repousa no fato de que ela é correspondente à mercadoria – categoria essencial do pensamento econômico e, por sua vez, a categoria essencial do pensamento burguês como um todo. Na síntese de Kashiura: pois se, como nota Marx, toda a riqueza das sociedades capitalistas se manifesta como uma ‘imensa colação de mercadorias’ e tem a ‘mercadoria individual como sua forma elementar’, isto equivale, numa perspectiva inversa, a dizer, como faz Pachukanis, que ‘a sociedade em seu conjunto, apresenta-se como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas’ e tem o sujeito de direito como sua forma elementar. No capitalismo, a universalização da forma mercadoria tem um ‘outro lado’: a universalização da forma do sujeito de direito. Basta lembrar o que diz Marx: ‘As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e se trocar.(...) Para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria’. Portanto, é condição para que a esfera da circulação de mercadorias se desenvolva completamente que, do mesmo modo como toda coisa se torna mercadoria, todo homem se torne sujeito de direito. ‘o homem – diz Pachukanis – torna-se sujeito de

Mesma página. P. 69. 532 Mesma página. 530 531

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direito com a mesma necessidade que transforma o produto natural em uma mercadoria dotada das propriedades enigmáticas do valor.’ 533

Desta maneira, a mercadoria e o sujeito de direito são as categorias ‘atômicas’ dos pensamentos “econômico” e “jurídico”, respectivamente534, na medida em que estão “calcadas na mesma relação, a troca de mercadorias, que no capitalismo se torna socialmente dominante535”. O que “do ponto de vista econômico (...) aparece como pura relação entre coisas, onde reina a mercadoria, e, do ponto de vista jurídico, ela aparece como pura relação entre pessoas, onde reina o sujeito de direito536”. Assim – e este é possivelmente o ponto mais importante dessa digressão sobre a crítica ao juridicismo – além do fato evidenciado de que “o fetichismo da mercadoria e o fetichismo do direito operam concretamente e têm papéis concretamente essenciais na sociedade burguesa537”, temos que existe uma relação muito estreita entre ambos, porque, com efeito, o sujeito de direito opera como uma espécie de “espelho” da mercadoria538, estando ambos “irremediavelmente vinculados ao ‘estreito horizonte’ da sociedade burguesa539”. E aqui, de uma forma bastante mais sofisticada, podemos voltar à vinculação entre a coisa concreta – representada pela mercadoria – e a coisa representada – o sujeito de direito, este próprio também uma representação. Mas deixemos o autor concluir seu próprio raciocínio, que vimos procurando reconstituir. Para Kashiura, (...) ao contrário da mercadoria, que reifica relações sociais, o sujeito de direito ‘personifica’ relações que, na realidade, são dominadas por coisas. É apenas porque as mercadorias não se movem e não se trocam por conta própria que os homens são todos alçados à condição de sujeitos de direito, mas os sujeitos de direito ignoram o seu papel secundário na relação entre coisas, que para eles parece uma relação tão-somente entre vontades, isto é, entre pessoas. O ‘feitiço’ do sujeito de direito parece reverter o ‘feitiço’ da mercadoria: nascida de relações em que os homens se submetem a coisas, a forma sujeito de direito quer Mesma página. Mesma página. 535 P.70. 536Mesma página. Kashiura Júnior acrescenta: “Estas ‘duas formas absurdas’ da relação de troca mercantil fazem desaparecer, sob a pura objetividade da mercadoria, o processo social de produção e a conversão do próprio homem em mercadoria, e sob a pura subjetividade do sujeito de direito, a sujeição efetiva do homem à coisa e o domínio social de uma classe sobre outra através de coisas (bens de produção). Mas são também as ‘formas absurdas’ da mercadoria e do sujeito de direito que permitem conhecer a economia e o direito de modo a desvelar isto que jaz sob elas mesmas, ou seja, a parcialidade dessas formas simultaneamente oculta e revela a totalidade, pois é a totalidade que engendra esta parcialidade e que, portanto, pode ser desvendada a partir dela. (pág. 70)”. 537 P. 75. 538 P. 76. 539 Kashiura: Duas formas absurdas... p. 133. 533 534

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fazer crer que, nestas mesmas relações, as coisas se submetem aos homens. A troca, na qual se comparam apenas trabalhos abstratos corporificados, na qual impera a equivalência sob a medida do valor, aparece juridicamente como uma relação na qual tudo é voluntariamente estabelecido entre sujeitos de direito. Aquilo que economicamente está além do domínio dos indivíduos que trocam aparece pura e simplesmente como fruto da vontade dos sujeitos de direito. 540

Noutras palavras, “o fetiche da mercadoria apresenta uma relação entre homens como algo ‘exterior’ – relações sociais de produção como relações de valor entre coisas – , o fetiche do sujeito de direito, ao inverso, apresenta algo fora dos homens como ‘interior’ a eles541”, mas “é o domínio das coisas, em função do qual o homem se torna sujeito de direito, que concede ao homem e dele exige este elemento voluntário. A vontade juridicamente predominante apenas consolida o domínio econômico da coisa”. Por fim, “a ‘inversão’ que caracteriza o fetiche do sujeito de direito, que parece deslocar a mercadoria para o segundo plano, apenas reafirma o predomínio da mercadoria542”. Trocando em miúdos, com o modo de produção capitalista já constituído – não em todos os lugares e não em todas as relações sociais possíveis, o que é importante para a constituição das relações imperialistas – temos que o mecanismo do direito – sintetizado pela figura do sujeito de direito exerce um papel primordial na ordem do capitalismo, uma vez que o fetiche “jurídico” complementa o fetiche “econômico” funcionando exatamente como o seu inverso cada um escondendo o que o outro revela. Isso evidentemente não pode significar, como tentamos argumentar de modo insistente, que as “ciências” fundamentais para o desvelamento da visão de mundo burguesa são a “economia” e a “jurisprudência”. O que é muito diferente é afirmar que a crítica da ideologia dos economistas e a crítica da ideologia dos juristas são momentos fundamentais do desvelamento da visão de mundo burguesa. Estamos insistindo nisso, para refutar a crítica segundo a qual, ao “economicismo” das visões “clássicas” sobre o imperialismo capitalista deve-se constituir um pensamento capitaneado pela “ciência política” e/ou as “teorias das relações internacionais”; ambas, conforme constituídas academicamente, profundamente fincadas no interior dessa mesma visão de mundo burguesa, de cuja ciência o máximo que se pode esperar são leis de previsibilidade e

P. 130. Páginas 130 e 131. 542 P. 132. 540 541

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repetição, por si mesmas inexoravelmente incapazes de pensar a transformação radical da ordem instituída. Voltando para O socialismo jurídico a título de amarração do argumento, levemos em consideração o alerta de Engels e Kautsky para o inescapável fato de que assim como para a constituição do modo de produção capitalista fez-se necessária a concomitante formação de uma visão de mundo burguesa (contraditória; formada por elementos “arcaicos” e “modernos”), a superação da exploração que implica a ordem pós-capitalista defendida pelos comunistas exige outra visão de mundo, radicalmente distinta (ainda que necessariamente contraditória e composta de elementos “novos” e “velhos”). É por este motivo específico que, para Engels e Kaustky, é necessária a superação da “ilusão jurídica da burguesia”, “porque [A classe trabalhadora] só pode conhecer plenamente [sua] condição se enxergar a realidade das coisas sem as coloridas lentes jurídicas”

.

543

Do que decorre a aposta dos autores, a bem dizer do marxismo anterior à experiência histórica da União Soviética, de que a concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas, etc. – derivam, em última instância, de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos.544

Aqui temos um vínculo fundamental ao qual precisamos dedicar atenção mais uma vez para retomarmos o fio que talvez permita que escapemos desse aparente labirinto: qual seja a investigação sobre a relação entre as “condições econômicas de vida” e as “representações”. Já abordamos o assunto em sua origem historiográfica – a famigerada Introdução à Contribuição para a crítica da economia política, de Karl Marx. Mas aqui temos a ocasião de avançar algumas posições na crítica à visão de mundo burguesa como um todo pela reconstituição dos últimos passos do argumento antijurisdicista. Mais uma vez, seria perda de tempo entrar na disputa contra as acusações de “economicismo” com citações “não-economicistas”. Já dissemos que, sob nosso ponto de vista, essa contenda seria reprodutível eternamente, sem qualquer benefício para o esclarecimento da questão. A crítica de Pachukanis e da fortuna crítica que o seguiu, como não poderia deixar de ser, a partir do método do materialismo histórico, é a de que, no fim das contas, a mercadoria é a relação social predominante. Do mesmo lado, 543 544

P. 21. Mesma página.

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Engels e Kautsky defendem que, porque se ocupa de fatos, não de “simples representações”, a economia é “algo mais científica do que a filosofia do direito545”. Mas é imprescindível – o que parece ignorado pela mentalidade viciada do academicismo contemporâneo – destacarmos o que os autores entendem por “economia”, ou, mesmo, por “Ciência Econômica”. Não podemos deixar de sublinhar todo o combate que os autores do materialismo histórico insistentemente travaram contra a “economia vulgar” bem como às concepções burguesas da “economia política” – as quais Marx dedicou décadas a criticar. Conforme já pontuamos, a única forma de constituir uma “ciência” não-burguesa seria a atenção para os aspectos históricos546, ou seja, para os aspectos que correspondem às relações reais547 – e não à disciplina História. Neste sentido, é emblemático que a contraposição principal que Engels e Kautsky apresentam aos argumentos de Menger não se trata de elevar o “econômico” em contraposição ao “jurídico”, mas em ressignificar o marxismo enquanto uma forma de pensar contra a visão de mundo burguesa, contrapondo, à visão “jurídica” cientificista burguesa a afirmação de um materialismo histórico, entendido como um “movimento histórico-mundial548”. O que complica a discussão, entretanto, é que como se tornou mais claro a cada dia que os determinantes sociais não estavam mais sob o monopólio de uma ordem religiosa e/ou tradicional” e que a cada dia se tornava mais importante a compreensão dos “mecanismos” e das “leis” segundo as quais “os homens” organizavam suas condições “econômicas” de vida, seu modo de produzir e trocar produtos, também esse aspecto da vida material – a “economia” – se “autonomizou” e criou seus próprios fetiches. Foi por essa razão que as “figuras da Economia” também elas se elevaram ao patamar científico, sendo tanto efeito (o surgimento da Ciência Econômica) quanto causa (como produto das políticas que pessoas orientadas pela Ciência Econômica implementaram na prática).

P. 23. Páginas 24 e seguintes. 547 P. 48. 548 P. 36. A respeito da crítica de Engels e Kautsky contra o cientificismo, cumpre destacarmos a ilustração da página 29 em que os autores acusam Menger de construir um pensamento que funciona como o mitológico Leito de Procusto, no qual “tudo que ultrapassar suas medidas constitui ornamento econômicopolítico e filantrópico, que eu corto!” (sobre o mito de Procusto: http://pt.wikipedia.org/wiki/Procusto). 545 546

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Procurando, em seu curso Nascimento da Biopolítica, circunscrever problemas análogos, Foucault nos oferece uma pista bastante interessante ao nosso objetivo de apreciar o “economicismo”, o “juridicismo” e o “politicismo”. Embora a tarefa merecesse, não temos aqui como reproduzir a sua tentativa de genealogia dos regimes de veridição549 em que ganha destaque o assim chamado neoliberalismo. Vamos nos ater aqui ao movimento de aumento da importância dos argumentos ditos “econômicos” em termos gerais na sociedade. Retomando a aula anterior, e nos trazendo de volta para um ponto importante de nossa tese, Foucault afirma: eu havia procurado lhes mostrar na última vez que essa idéia, esse tema, melhor dizendo, esse princípio regulador de um governo frugal tinha se formado a partir do que se podia chamar, do que designei grosseiramente como a conexão à razão de Estado, e o cálculo da razão de Estado, de certo regime de verdade, o qual encontrava sua expressão e sua formulação teórica na economia política. O aparecimento da economia política e o problema do governo mínimo eram, como procurei lhes indicar, duas coisas interligadas. Mas creio que é preciso tentar precisar um pouco mais a natureza dessa conexão. Quando falo em conexão da economia política à razão de Estado, quer isso dizer que a economia política propôs certo modelo de governo? Quer isso dizer que os homens de Estado se iniciaram na economia política ou que começaram a ouvir os economistas? Que isso dizer que o modelo econômico tornou-se princípio organizador da prática governamental? Não foi, evidentemente, isso o que eu quis dizer. O que eu queria dizer, o que procurei designar, era uma coisa que é, a meu ver, de uma natureza e de um nível um pouco diferentes. O princípio dessa conexão que eu procuro identificar, essa conexão entre prática de governo e regime de verdade, seria isto: [...] 550 haveria portanto uma coisa que no regime de governo, na prática governamental dos séculos XVI-XVII, já da Idade Média também, tinha constituído um dos objetos privilegiados da intervenção, da regulação governamental, uma coisa que havia sido objeto privilegiado da vigilância e das intervenções do governo. E é esse lugar mesmo, e não a teoria econômica, que, a partir do século XVIII, vai se tornar um lugar e um mecanismo de formação de verdade. E, [em vez de] continuar a saturar esse lugar de formação da verdade com uma governamentabilidade regulamentar indefinida, vai-se reconhecer – e é aí que as coisas acontecem – que se deve deixá-lo agir com o mínimo possível de intervenção, justamente para que ele possa formular a sua verdade e propô-la como regra e norma à prática governamental. Esse lugar de verdade não é, evidentemente, a cabeça dos economistas, mas o mercado. 551

A questão, entretanto, que mais o interessa, é a transformação do regime de veridição por meio das transformações que se expressam no mercado. Inicialmente, Foucault parte da idéia de mercado “no sentido bastante geral da palavra, tal como P. 49. Este colchete e a reticência estão na edição citada. 551 Páginas 41 e 42. 549 550

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funcionou na Idade Média, no século XVI, no século XVII, creio que poderíamos dizer, numa palavra, que era essencialmente um lugar de justiça552”. Naquele tempo, segundo Foucault, “a regulamentação do mercado tinha por objetivo, portanto, de um lado, a distribuição tão justa quanto possível das mercadorias, e também o não-roubo, o não delito553”. Ainda em seus termos, esse sistema que tinha por principais mecanismos a regulamentação, o justo preço e a sanção da fraude fazia portanto que o mercado fosse essencialmente, funcionasse realmente como um lugar de justiça, um lugar em que devia aparecer na troca e se formular nos preços algo que era a justiça. Digamos que o mercado era um lugar de jurisdição.554

E é exatamente a transformação desse funcionamento que nos interessa sublinhar. Nos termos de Foucault, o mercado surgiu, em meados do século XVIII, como já não sendo, ou antes, como não devendo mais ser um lugar de jurisdição. O mercado apareceu como, de um lado, uma coisa que obedecia e devia obedecer a mecanismos ‘naturais’, isto é, mecanismos espontâneos, ainda que não seja possível apreendê-los em sua complexidade, mas espontâneos, tão espontâneos, que quem tentasse modifica-los só conseguia alterá-los e desnaturá-los. De outro lado – e é nesse segundo sentido que o mercado se torna um lugar de verdade –, não só ele deixa aparecer os mecanismos naturais, como esses mecanismos naturais, quando os deixam agir, possibilitam a formação de certo preço que Boisguilbert chamará de preço ‘natural’, que os fisiocratas chamarão de ‘bom preço’, que posteriormente será chamado de ‘preço normal’, enfim, pouco importa, um certo preço natural, bom, normal, que vai exprimir a relação adequada, uma certa relação adequada entre custo de produção e extensão da demanda. O mercado, quando se deixa que ele aja por si mesmo de acordo com a sua natureza, com a sua verdade natural, digamos assim, permite que se forme certo preço que será metaforicamente chamado de preço verdadeiro, que à vezes será também chamado de preço justo, mas já não traz consigo, em absoluto, essas conotações de justiça. Será um certo preço que vai oscilar em torno do valor do produto. A importância da teoria econômica – quero dizer dessa teoria que foi edificada no discurso dos economistas e se formou na cabeça deles –, a importância dessa teoria da relação preçovalor vem precisamente do fato de que ela possibilita que a teoria economia indique uma coisa que agora vai ser fundamental: que o mercado deve ser revelador de algo que é como uma verdade. Não, é claro, que os preços sejam, em sentido estrito, verdadeiros, que haja preços verdadeiros e preços falsos, não é isso. Mas o que se descobre nesse momento, ao mesmo tempo na prática governamental, é que os preços, na medida em que são conformes aos mecanismos naturais do mercado, vão constituir um padrão de verdade que vai possibilitar P. 42. P. 43. 554 P. 43. 552 553

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discernir nas práticas governamentais as que são corretas e as que são erradas. Em outras palavras, o mecanismo natural do mercado e a formação de um preço natural é que vão permitir – quando se vê, a partir deles, o que o governo faz, as medidas que ele toma, as regras que impõe – falsificar ou verificar a prática governamental. Na medida em que, através da troca, o mercado permite ligar a produção, a necessidade, a oferta, a demanda, o valor, o preço, etc. ele constitui nesse sentido um lugar de veridição, quero dizer, um lugar de verificabilidade/falseabilidade para a prática governamental. Por conseguinte, o mercado é que vai fazer que um bom governo já não seja simplesmente um governo que funciona com base na justiça. O mercado é que vai fazer que o bom governo já não seja mais um governo justo. O mercado é que vai fazer que o governo, agora, para poder ser um bom governo, funcione com base na verdade. Portanto, em toda essa história e na formação de uma nova arte de governar, a economia política não deve seu papel privilegiado ao fato de que ditaria ao governo um bom tipo de conduta. A economia política foi importante, inclusive em sua formulação teórica, na medida em que (somente na medida, mas é uma medida evidentemente considerável) indicou onde o governo devia ir buscar o princípio de verdade da sua própria prática governamental. 555

De acordo com a nossa interpretação sobre o assunto, as constatações de que as transformações expressas no mercado produziram mudanças no regime de veridição, estabelecendo a Economia como o lugar em que se busca os critérios de verdade556 é um indicativo da importância com que devemos encarar os “seus” assuntos, mas também que, para além dessa verdade, existem muitas coisas mais que outrora eram encobertas por outros regimes de verdade, mas que agora são encobertos pelo discurso econômico. Na busca de um discurso emancipatório, portanto, para desmistificar radicalmente a visão burguesa de mundo, não podemos ser envolvidos na armadilha de trocar uma ciência pela outra e estabelecer com maior ou menor “astúcia” e “dialética” a relação entre os aspectos parciais da realidade (“direito”, “religião”, “política”, mas também “economia”). O que nos cumpre é o resgate da busca pela totalidade e pela desmistificação de cada um desses fetiches particularistas. Mas, antes disso, ainda precisamos refutar a hipótese de que a Ciência Econômica é superior no alcance da profundidade das relações sociais no modo de produção capitalista.

P. 45. O que reforça em muito a importância dos assuntos “econômicos” no discurso dos “políticos” e o papel das decisões “técnicas” na gestão dos governos. 555 556

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6.3 O fetichismo dos economistas O próximo passo de nosso argumento consiste na reconstituição do fetiche dos economistas. Para tanto, vamos aproveitar a discussão que vínhamos travando e seguir ainda na linha dos debates sobre a experiência histórica da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Por hora, daremos espaço para o texto As características específicas da transição ao comunismo, da escritora marxista Maria Turchetto, traduzido por Naves do italiano. Neste texto, em que vai diretamente ao ponto, a autora argumenta que “A contribuição mais relevante para uma correta abordagem do problema do debate marxista em torno das questões da transição ao comunismo, pode-se dizer sem delongas, está ligada à crítica do ‘economicismo’557”. Mas o avanço da autora para o que vimos argumentando até aqui se refere ao deslocamento da questão para o que de fato nos interessa: o que está em jogo neste debate não se limita a estabelecer o ponto central da “economia” no pensamento marxista, mas, mais do que isso, na discussão acerca das diferentes “concepções

de

‘história’

e

de

categorias

marxianas

de

interpretação

do

desenvolvimento histórico social” – a saber, especialmente “modo de produção” e “formação econômico-social” 558. Segundo a autora, na abordagem ‘economicista’ [que defende que o que é decisivo para a passagem de uma forma de sociedade a outra, a ‘mola propulsora’ da transição, é o desenvolvimento das forças produtivas materiais], a ‘história’ é vista, em sua continuidade, como um desenvolvimento progressivo e continuado (de tipo ‘evolucionista’) das forças produtivas. Sobre essa ‘base’, linear se apresenta, como algo de ‘exterior’, a sucessão das diversas formas de relações sociais; assim, os diferentes ‘modos de produção’ representam uma série de ‘adequações’ das relações sociais (‘adequações violentas ou graduais, conforme as versões de ‘direita’ ou de ‘esquerda’ do economicismo) aos sucessivos níveis de desenvolvimento alcançados pelas forças produtivas. O mecanismo de sucessão histórica consiste, portanto – nessa visão –, em um processo de crise de um dado modelo de sociedade frente à modificação de um determinado nível das forças produtivas, e na “remodelação” das relações sociais face ao novo nível das forças produtivas. Nessa interpretação, por um lado, a “contradição”, a “dialética fundamental” ocorre entre dois elementos – forças produtivas e relações de produção – os quais permanecem ‘externos’ um em relação ao outro, cada um deles regulados por suas próprias e “autônomas” leis de movimento; por outro lado, os conflitos entre as classes antagônicas são apreendidos somente sob o aspecto “natural” (como desenvolvimento das forças produtivas). Portanto, as forças produtivas acabam sendo 557 558

P. 7. P. 8.

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determinantes na transição de uma forma de sociedade a outra, e “neutras” em relação aos conflitos sociais. Resulta disso, evidentemente, ou a completa desvalorização do papel da luta de classes ou, então, a sua apreciação em termos meramente subjetivistas e voluntaristas. 559

Ao contrário, em uma abordagem não-economicista, a “história” é vista como uma sucessão de diversos “modos de produção”, compreendidos como diversas formas de estruturação dos elementos do processo produtivo (das forças produtivas) determinados pelas diversas formas das relações de produção. A transformação histórica, portanto, não é nem desenvolvimento linear e progressivo (“progresso” evolucionista, de grau em grau, das forças produtivas), nem sucessão de “formas sociais” puras (formas de relações sociais “exteriores” em relação ao aspecto “natural” da produção, enquanto processo de apropriação da natureza). Isto significa que a apreensão das diversas “formas” das relações sociais de produção que se sucedem implica imediatamente também a apreensão dos diversos conteúdos, da “qualidade” das relações recíprocas dos elementos da apropriação da natureza (das forças produtivas); conteúdos, qualidade, relações que são determinadas pela forma das relações sociais de produção e que representam parte integrante da sua “realidade”. É claro que, nessa abordagem, são as relações de produção que decidem sobre o tipo de desenvolvimento das forças produtivas e sobre a passagem de uma forma de produção social para outra. 560

Entretanto, é importante marcarmos que, para Maria Turchetto, não se trata de modo algum de, uma vez identificados os elementos da ‘dialética histórica’ nas forças produtivas e nas relações de produção, escolher um deles, privilegiando um ou outro como “elemento dinâmico” e decisivo para a transição a novas formas de sociedade. Na verdade, nessas diversas abordagens o conceito mesmo de “relações de produção”, a rigor, vem interpretado de modo muito diferente. 561

Ainda mais do que isso, “é claro que, em uma concepção não-economicista, não é concebível um nexo de ‘exterioridade’ entre forças produtivas – condições da produção – e relações de produção, relações que se estabelecem entre os homens no decurso da produção562”. Já o economicismo, ao contrário, “estabelece um nexo de ‘exterioridade’ entre as forças produtivas e as relações de produção563”. Ao que se passa a outro ponto crucial do raciocínio que vimos empreendendo, ao estabelecer mais uma vez a crítica às concepções “hiperpoliticistas” e de quebra estendê-la a mais uma fronteira: as questões “políticas” expressas pelas relações do Estado, ou relações “jurídicas”. Isso porque, para a autora, com o que concordamos, mais importante do que anotar a dificuldade que Mesma página. Páginas 8 e 9. 561 P. 9. 562 Mesma página. 563 P. 10. 559 560

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resulta da supervalorização da dimensão “econômica” (“forças produtivas”), é perceber que esse procedimento analítico acaba resultando n a redução das relações de produção a simples relações de propriedade (no sentido puramente jurídico-formal), ou o seu deslocamento tendencial para a esfera do “político” (em uma operação de tipo substancialmente idealista), onde se “transformam” em relações superestruturais e meramente “subjetivas” (como é o caso das abordagens preponderantemente “superestruturais” do problema da transição, que representam um traço característico do marxismo italiano). 564

Ou, “em outras versões”, no que diz respeito especificamente às relações capitalistas de produção, a idéia de ‘relações entre homens mediadas por coisas’ vem retomada, mas referida somente’ à mediação por parte das coisas representada pela circulação mercantil generalizada, portanto ao ‘fetichismo da mercadoria’, ao invés da específica relação entre produtores e condições objetivas da produção, que, na sociedade burguesa, funda o mais ‘profundo’ – e essencial – ‘fetichismo do capital’, base real da exploração capitalista. Tudo isso significa, substancialmente, reduzir as relações de produção a relações de troca; e tal redução, de fato, sempre caracterizou o ‘economicismo’, em qualquer de suas versões. 565

Neste ponto, Maria Turchetto argumenta que “o domínio do capital tem seu fundamento exclusivamente no ‘econômico’”, mas, é importante anotar, começa a dar substância a esse enquadramento, procurando definir o que exatamente se entende por “econômico”. Para ela, antes de mais nada, a exploração capitalista é fetichizada na forma de relações entre coisas, é ocultada pelas relações mercantis: e são precisamente essas relações formais, imediatamente evidentes, dentre os aspectos fenomênicos da realidade capitalista, essas conexões “exteriores” entre os resultados empíricos do movimento do capital, que constituem o “econômico” em sentido burguês [T.F.F.], o objeto da ‘ciência econômica’ (burguesa). 566

Voltaremos em mais de uma ocasião ao problema da “ciência econômica” burguesa, mas cumpre que sublinhemos que, para ela, a questão fundamental é exatamente fugirmos da limitação dessa definição – insistimos, burguesa – de “econômico” para escapar do “emaranhado” do “fetichismo dos economistas”. Para tanto, é preciso desvelar o que a própria categoria – no caso, o “econômico” – esconde. Para ela, Mesma página. Mesma página. 566 P. 37. 564 565

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o significado fundamental, que deve ser salientado, é que a exploração capitalista tem seu fundamento no processo de produção imediato do capital, no qual o processo de trabalho é meio para os fins de valorização. É tal processo, de fato, que cria continuamente as condições de troca entre capital e trabalho (base da aquisição da forma de mercadoria e de valor de todo produto), recriando a cada ciclo a propriedade capitalista face à expropriação dos produtores; que, desenvolvendo uma específica divisão técnica do trabalho no interior das unidades produtivas capitalistas determina, a partir desta, a divisão social do trabalho de tipo capitalista, ou seja, a base mesma da circulação capitalista. 567

O problemático é que a própria “ciência econômica” burguesa não pode deixar de ser “fetichista”. E isso não porque é uma “ciência econômica”, mas pelo fato mesmo de partir de uma concepção burguesa568. Deste modo, cumpre que adotemos uma postura essencialmente radical do ponto de vista dos próprios fundamentos nos quais podemos assentar nossa visão de mundo, que não pode, sob o risco de esterilizar toda a crítica, aceitar a própria existência de uma ciência econômica autonomamente constituída. Mas não deixemos de reproduzir a palavras de nossa autora. Segundo ela, a partir disso, pode-se acrescentar uma observação posterior a propósito da ‘ciência econômica’ burguesa. Essa – já o vimos – é ‘fetichista’, no sentido de que não consegue apreender o ‘movimento profundo’ do capital para além dos resultados empíricos provindos das relações de circulação (e de distribuição). Mas seria errado pensar que se trata de uma pura e simples ‘mistificação’, guiada por uma vontade consciente de ocultar a exploração capitalista: aqui nos deparamos com uma expressão do modo específico em que o movimento ‘real’ do capital no processo de produção imediato se verifica através do movimento ‘aparente’ da circulação capitalista. No modo de produção capitalista, o aumento da riqueza e do domínio da classe exploradora se baseia exclusivamente na subordinação do processo de produção aos fins da valorização: em tal modo de produção, o problema do aumento da riqueza controlada de forma capitalista – e, portanto, a técnica produtiva, a comparação entre o capital ‘antecipado’ e a mais-valia obtida, os ‘custos de produção’, etc. – torna-se objeto da análise ‘científica’. Não só isso: porque a exploração capitalista não encontra a sua própria justificação fora de si, não encontra uma ‘legitimação’ fora Mesma página. Voltaremos ao ponto, que é muito importante para a forma que estamos procurando conferir ao nosso argumento, mas aproveitemos a ocasião para apresentar um fundamento absolutamente crucial para a constituição da forma de pensar burguesa: a própria divisão entre esferas supostamente distintas da realidade que acaba por permitir que o discurso de constituição de ciências “autônomas”, seja na “Economia”, no “Direito”, na “Política” ou qualquer outra seja considerado legítimo em si mesmo, ao que se formam campos conceituais a princípio rigorosos e instransponíveis com vocabulários e procederes específicos. Estão, nas palavras de Naves na contracapa desse interessante livreto, todas elas “no mesmo quadro”. Que a Ciência Econômica – burguesa – seja “a mais científica entre as ciências sociais” e também a mais matematizável – para não mencionarmos os usos e abusos do recurso lógico do “ceteris paribus”, da perversão da estatística e da sempre disponível e infinitamente elástica definição de “externalidade” não poderíamos, deste ângulo, nos surpreendermos menos. 567 568

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das relações econômicas, estas últimas tornam-se objeto de uma ‘ciência autônoma’. Desse ponto de vista, portanto, a ‘ciência econômica’ exprime precisamente a ‘fundação no econômico’ que caracteriza de modo específico a forma capitalista da exploração, mesmo quando trata apenas daquilo que indicamos como o significado ‘fetichista’ de tal forma de exploração. 569

O que devemos reter, ao lado da crítica à economia enquanto manifestação peculiar do pensamento burguês, é que isso se refere a cada uma das suas formas de se debruçar sobre os seus “objetos” de pesquisa e em qualquer de suas fases – para nos remetermos sem perder muito tempo às teses de um capitalismo de suposta livreconcorrência [para ficarmos com um termo apenas: mítico]. Assim, lembremos que o movimento de valorização, no qual a exploração capitalista ganha substância, impõe-se através da ‘lei coercitiva externa’ da concorrência entre os capitais individuai na esfera da circulação. Em outros termos, o ‘capital enquanto tal’ – que se valoriza e se reproduz enquanto relação social de produção – existe empiricamente na forma do movimento concorrencial dos capitais individuais. Isso significa que os ‘agentes do capital’ perseguem as leis ‘imanentes’ da produção e reprodução capitalistas situando-se não mais do ponto de vista do ‘capital enquanto tal’, mas do capital individual que tem como ponto de referência necessária os dados da circulação e da concorrência. Por isso, por exemplo, a aplicação de técnicas para aumentas a produtividade do trabalho apresenta-se não tanto como meio para aumentar a mais-valia e a taxa de exploração, mas antes como instrumento da luta concorrencial ou – no máximo – como meio para o incremento da taxa de lucro (que é uma categoria fenomênica). O mesmo ponto de vista é assumido, evidentemente, também pelos ‘ideólogos’ do capital, os “economistas”. 570

Ainda que a exposição tome mais tempo do que se possa porventura julgar necessário, faz-se mister que se perceba definitivamente que

569 570

P. 38. Páginas 38 e 39.

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tudo isso, por um lado, justifica o objeto da ‘ciência econômica’; por outro lado, evidencia como esta só pode dizer respeito ao modo de produção capitalista, sendo totalmente ‘interna’ à sua lógica, enquanto um ‘ponto de vista de classe’ diverso – o ponto de vista da ‘saída’ dessa sociedade sobre um outro objeto e sobre um outro método. Assim – para reportar essa digressão ao tema da ‘transição’ – não têm evidentemente nenhum fundamento as tentativas “marxistas” de construir uma ‘economia política do comunismo’, portanto de delinear (ainda uma vez com os procedimentos de generalização das categorias especificamente capitalistas) ‘leis’, ‘relações quantitativas’, etc., da produção e da distribuição de uma diversa forma de sociedade. 571

Deste modo, o que é importante para nosso “objeto” – a expansão imperialista do modo de produção capitalista – temos que a expansão das relações burguesas, que se manifesta como progressivo alargamento do mercado capitalista, é na verdade uma expansão do domínio da lei da valorização. Desde a fase da ‘subsunção formal’, os processos produtivos de que o capital se apossa não se destinam simplesmente a produzir para a troca, mas estão subordinados aos fins da valorização: isto significa que tem início imediatamente – como vimos – a transformação da sua estrutura material. Esse processo é muito mais evidente na época da ‘subsunção real’ do trabalho ao capital, quando o sistema capitalista constitui um modo de produção irreversivelmente constituído e estavelmente dominante. Mesmo aqui, a sua dominância ‘aparece’ como subordinação de toda forma produtiva à onipresente rede de vínculos mercantis: mas tal ‘dominância’ do mercado é apenas a expressão fenomênica da ‘dominância’ da lei da valorização. Os resíduos das formas produtivas pré-capitalistas estão submetidos ao domínio do capital não só porque ‘devem prestar contas ao mercado’ (portanto, com o sistema de preços, com a concorrência, etc.), mas também e, sobretudo, na medida em que sejam transformados interiormente. O capital expande-se ‘despedaçando’ os modos de produção precedentes, quebrando os nexos existentes dentro deles entre elementos objetivos e subjetivos do processo de trabalho, e subsumindo-os desse modo não tanto ao sistema das trocas, quanto à lei da valorização. Sob o domínio do capital o artesão, ou o pequeno camponês independente, não apenas estão ligados ao mercado, mas são constrangidos a se relacionar de modo diferente face aos próprios meios de trabalho, à organização do próprio processo produtivo, à própria atividade laborativa. Pode-se afirmar, então, que a formação social burguesa é, na aparência, um conjunto de diversas formas produtivas ligadas entre si através do ‘capital mercantil’; na ‘realidade profunda’, um complexo de diversos níveis de penetração da lei da valorização (portanto, de diversos níveis de ‘desenvolvimento capitalista’). 572

Concordamos com a autora em pelo menos dois pontos fundamentais: a centralidade da crítica às formas burguesas (inclusive a Economia) de pensamento; e a consideração de que “esse esquema interpretativo pode ser útil para uma correta 571 572

P. 39. P. 54.

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abordagem do problema da fase imperialista do capitalismo573”. Ainda que carregada de jargões, as conclusões da autora sobre este nosso objeto guardam grande importância. Em seus próprios termos, a ‘cadeia imperialista’ aparece, essencialmente, como uma rede de relações mercantil-financeiras (atualmente ressalta-se a importância da dependência tecnológica, o vínculo entre ‘capital financeiro’ e ‘capital produtivo’, etc.; porém, a época do imperialismo britânico, por exemplo, é apresentada sobretudo como domínio puramente mercantil). Mas, se a subordinação das diversas formas produtivas – e, portanto, também das diversas áreas econômicas – é sobretudo a sua subsunção sob a lei da valorização, decorre daí que a cadeia das relações imperialistas seja essencialmente interpretada a partir do movimento da valorização do capital que se desenvolve – segundo a forma de uma sempre maior expropriação e subordinação real dos produtores – nas metrópoles imperialistas. Nestas, encontramos o ‘coração’ do movimento de ‘aprofundamento’ da relação de produção capitalista na divisão técnica do trabalho, na aplicação da ciência e da tecnologia à organização dos processos produtivos, no crescente domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, etc.; movimento que se ‘projeta’ para o exterior, na divisão social do trabalho, manifestando-se, por um lado, na maior complexidade da ‘estratificação social’ que caracteriza os países capitalistas avançados, e determinando, por outro lado, o desenvolvimento em ‘extensão’, o alargamento ‘da superfície’ do domínio do capital em escala mundial. A dominância do modo de produção capitalistas parece ocorrer através de um aumento da divisão social do trabalho, ou seja, através de uma extensão no mercado, ou, de qualquer modo, de uma ‘especialização’ das diversas formas produtivas no âmbito da divisão social do trabalho que a torna funcional ao modo de produção capitalista. Na verdade, esta é tão só a manifestação fenomênica da subsunção de tais formas produtivas sob a lei da valorização (é esse, de fato, o modo pelo qual o capital as torna funcionais ao seu próprio domínio e ao seu próprio desenvolvimento): não nos deparamos mais, na verdade, com resíduos de modos de produção pré-capitalistas, porque o capital quebrou-os, despedaçou suas velhas formas de conexão entre elementos objetivos e subjetivos do processo de trabalho, os submeteu aos fins da valorização, os subsumiu ao movimento de ‘aprofundamento’ do modo de produção e exploração capitalistas. Concluindo, podemos afirmar que a lei da valorização – que é a essência mesma do capital – é um movimento que fixa as relações capitalistas na estrutura material das forças produtivas e que ‘destrói’ toda forma produtiva diversa. Desse ponto de vista, a partir da ocorrência da subsunção real do trabalho ao capital, que marca a sua ‘vitória’ como lei dominante da produção social, a lei da valorização capitalista não deixa alternativa: ou se dá o movimento de ‘autorreprodução’ (e de ‘aprofundamento’) da relação de produção capitalistas, movimento que ‘exclui’ qualquer outra forma produtiva; ou se dá o processo de radical inversão – por certo não imediatamente, mas a longo prazo – das relações capitalistas em relações comunistas. Isso significa que, mesmo na fase do ‘socialismo’, a luta pela perspectiva do 573

Mesma página.

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comunismo não se dirige contra a permanência de ‘sobrevivências’ das relações capitalistas de produção, mas a permanência do sistema completo da reprodução das relações capitalistas de produção, ou seja, do ‘capital’ que – não obstante a derrota da “burguesia” enquanto classe dominante “subjetiva” – existe empiricamente na estrutura material das forças produtivas e desaparece apenas com a completa transformação destas últimas com a ‘reapropriação real’ dos produtores. 574

No próximo capítulo, teremos a ocasião de discutir os pressupostos dessa interpretação em alguns de seus traços mais importantes, bem como sua estreita ligação com alguns elementos das interpretações “clássicas” – para quem já quiser se adiantar: especificamente aquelas teses de Rosa Luxemburg que hoje teimam em reaparecer575 a despeito de todo o esforço dedicado a rejeitar sua interpretação. Comentando sobre nossa estimada autora, o filósofo Georg Lukács nos oferece as pistas finais para o encerramento deste capítulo576. Para ele, após décadas de vulgarização do marxismo, a obra principal de Rosa Luxemburgo, A acumulação do capital, “retoma o problema” a partir da “aplicação verdadeira do método dialético sobre a exigência da totalidade577” – e não da perspectiva dos indivíduos ou dos capitalistas individuais que caracteriza as formas burguesas de desenvolvimento teórico. Ainda para Lukács, o desenvolvimento econômico da época imperialista tornou cada vez mais difícil acreditar nos simulacros de ataque contra o sistema capitalista e a análise 'científica' dos seus fenômenos considerados isoladamente, no interesse da 'ciência exata e objetiva'. Seria preciso tomar partido, não apenas politicamente, a favor ou contra o capitalismo. Quanto à teoria, também seria preciso fazer uma escolha: ou considerar toda a evolução da sociedade de um ponto de vista marxista e então dominar o fenômeno do imperialismo de modo teórico

Páginas 55 e 56. A título de exemplo, recomendamos a leitura do artigo A era da pilhagem, de Ruy Braga, para o blog da editora Boitempo (http://blogdaboitempo.com.br/2015/05/25/a-era-da-pilhagem/), em que o autor procura entender algumas disputas em curso no Brasil com as lentes das teses de Rosa sobre o Imperialismo reinterpretadas por David Harvey. Voltaremos a falar sobre Rosa e David mais à frente. 576 Provando e comprovando a vocação marxista para o polemismo, é possível argumentar, conforme Alapanian, na obra citada, que Lukács sofreu a influência de Pachukanis. Em suas palavras, “em um ensaio publicado em 1930 e incluído a título de “Introdução” na edição portuguesa de A teoria geral do direito e o marxismo, Karl Korsch salienta que a obra de Pachukanis repercutiu diretamente em G. Lukács, no que diz respeito aos seus estudos sobre reificação, isto é, sobre o disfarce fetichista da realidade social na época da produção mercantil capitalista (pág. 27)”. Já Naves, no mesmo livro, afirma o contrário: “sobre a diferença entre as concepções de Lukács e Pachukanis, ver Étienne Balibar, A filosofia de Marx, na qual o filósofo mostra que a leitura que Pachukanis faz do ‘fetichismo da mercadoria’ de Marx é precisamente o oposto daquela que a compreende como uma forma de ‘reificação’”. 577 “Rosa Luxemburgo como marxista”, Gyorgy Lukács em História e Consciência de Classe – Estudos sobre a dialética marxista (tradução Rodnei Nascimento). Martins Fontes, São Paulo, 2003. P. 109. 574 575

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e prático, ou furtar-se a esse encontro, limitando-se ao estudo de aspectos isolados de alguma ciência específica. 578

Neste sentido, faz questão de sublinhar que “A acumulação do capital retoma o método e a problemática do jovem Marx da Miséria da filosofia579”, e do mesmo modo como a concepção da totalidade pelo jovem Marx havia iluminado nitidamente os sintomas patológicos do capitalismo ainda florescente, o último brilho do capitalismo adquire na perspectiva de Rosa Luxemburgo, pela integração do seu problema fundamental na totalidade do processo histórico, o caráter de uma dança macabra, de uma marcha de Édipo para seu inelutável destino. 580

Não é ainda o momento de apreciarmos em seus pormenores as contribuições de Rosa Luxemburg, mas se é por meio desta que Lukács nos conduz para o cerne da crítica às críticas contemporâneas à qual consagramos o capítulo, não nos convém interromper o fluxo de suas idéias, mesmo porque nos interessa adiantar as duas razões – umbilicalmente atadas – pelas quais julga que A acumulação de capital constitui – ao lado de Estado e Revolução, de Lenin – “obra fundamental com a qual começa o renascimento teórico do marxismo” 581. Primeiramente, o que denota “a originalidade do livro”, o fato de “ele ser consagrado principalmente a um estudo histórico do problema” . Além disso, a centralidade da “categoria da totalidade”, “a única capaz de síntese” 583.

582

Para Lukács, “o núcleo do livro é constituído por uma análise histórico-literária das grandes discussões sobre o problema da acumulação” e “mesmo nesse método de exposição, Rosa Luxemburg não abandona a tradição de Marx. Seu modo de composição significa, antes, um retorno ao marxismo original e autêntico: ao procedimento de exposição do próprio Marx”, especialmente em suas obras de juventude. E antes que se acuse de que essa postura não passava de “imaturidade” Lukács emenda que se sua [de Marx] principal obra teórica [O capital] adotou apenas parcialmente esse método de exposição histórica dos problemas particulares que são tratados nessa exposição, isso não deve mascarar a similitude real na maneira de tratar os problemas. [...] Essa forma interna da estruturação do problema remete ao problema central do método dialético, à compreensão exata da posição dominante que ocupa a categoria totalidade e, assim, à filosofia hegeliana584. [...] Seja qual for o tema em discussão, o método dialético trata sempre do mesmo problema: o conhecimento da totalidade do processo histórico. Sendo P. 110. P. 113. 580 P. 114. 581 P. 117. 582 P. 140. 583 P. 123. 584 Páginas 115 e 116, grifos no original. 578 579

261

assim, os problemas 'ideológicos' e 'econômicos' perdem para ele sua estranheza mútua e inflexível e se confundem um com o outro. A história de um determinado problema torna-se efetivamente numa história dos problemas. A expressão literária ou científica de um problema aparece como expressão de uma totalidade social, como expressão de suas possibilidades, de seus limites e de seus problemas. O estudo histórico-literário do problema acaba sendo o mais apto a exprimir a problemática do processo histórico. A história da filosofia torna-se filosofia da história. 585

Em síntese, “a abordagem histórico-literária dos textos por Rosa Luxemburgo se desenvolve numa história das lutas em torno da possibilidade e da expansão do sistema capitalista586” por que em Rosa Luxemburgo, a dúvida quanto à possibilidade da acumulação se livra da sua forma absolutista. Ela se transforma na questão histórica das condições da acumulação e, assim, na certeza de que uma acumulação ilimitada é impossível. Pelo fato de ser tratada em seu meio social como um todo, a acumulação torna-se dialética. Ela se desenvolve em dialética de todo o sistema capitalista. 587

6.4 A importância da totalidade para o materialismo histórico Deixamo-nos adiantar na interpretação de Lukács sobre a importância da “obra maior” de Rosa sobre a acumulação do capital e o imperialismo porque é por meio dela que o autor defende a tese que nos interessará agora imediatamente: a crítica às formas parciais de apreensão da realidade do modo de produção capitalista em detrimento da perspectiva da totalidade, necessária ao método dialético – por sua vez uma maneira privilegiada (ainda que não garantida) de combate às visões de mundo burguesas. Em grande medida, pensamos que essa ênfase na totalidade sintetiza a crítica ao “economicismo” sem cair no “juridicismo” ou no “politicismo”, todas elas manifestações do mesmo problema: a insistência em trilhar os caminhos da própria visão de mundo burguesa, que já predeterminam os pontos de chegada da crítica: reformas pontuais com o intuito de reproduzir o sistema eternamente no melhor estilo “vão-se os anéis, ficam os dedos” em que “também se muda de roupa sem trocar de pele588”. 

P. 117. P. 118. 587 P. 120. Grifo nosso. 588 ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1904. Disponível em: . Acesso em: 7 ago. 2015. 585 586

262

A questão mais complicada se refere à centralidade da categoria mercadoria para a compreensão da maneira pela qual a sociedade em que vivemos hierarquiza os sistemas de dominação, sobretudo levando em consideração o “método” pelo qual defendemos que é preciso criticá-la. Sob nosso ponto de vista, concordando com xs autorxs que vimos escalando para defender esse ponto de vista, a despeito do fato de que essa categoria usualmente é enquadrada no campo da ciência econômica e do fato de que é possível que se encontre citações – de cada um dos grandes autores do materialismo histórico – que corroboram o argumento daqueles que os acusam de “economicismo”, trata-se de uma maneira equivocada de colocar a questão. Primeiramente, porque identifica o que aquelxs autorxs entendiam por “economia” (as relações concretas, historicamente definidas) com o que atualmente se toma por “ciência econômica” (um conjunto de figuras teóricas fetichizadas). Além disso, porque a proposição que advém dessa crítica acaba deslocando as pesquisas para muito longe dos fundamentos da exploração capitalista desnudados pelas teses “clássicas” e simplesmente ignora as relações “econômicas”. Ainda sob nosso ponto de vista, a distinção de Polanyi entre “economia substantiva” e “economia formal” – apenas indiretamente abordadas em nosso excurso sobre suas teses principais, mas que voltarão à tona na sequência do nosso argumento – não pode, por seu turno, dar conta do problema em questão, porque não se trata, sob o ponto de vista do materialismo histórico, de apresentarmos – como ele propõe – uma distinção positiva entre as relações concretas e as categorias que pretendem explica-las. Tomada desse ponto de vista, a “ambiguidade” entre a esfera “substantiva” da economia e as categorias da “ciência” economia não são apenas uma “confusão intelectual”. Muito pelo contrário. Pelas razões que as teses do próprio autor auxiliam que apreendamos – a autonomização da esfera do mercado e a implementação de uma mentalidade de mercado – o problema da “ambiguidade” e da “confusão” entre a “economia formal” e a “economia substantiva” não pode ser “resolvido” no plano lógico, mas apenas no plano histórico, na transformação as relações concretas e na crítica radical à totalidade visão de mundo (burguesa) que sustentam concretamente esse modo de produção. Assim, nada mais inadequado que apresentarmos uma solução do problema em termos lógicos, na exposição sistemática e positiva dos conceitos da economia na crença de que supostamente a ciência econômica poderia revelar os fundamentos da exploração capitalista, ou que esses problemas possam ser expressos na linguagem daquela.

263

Voltando a Lukács, não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria da totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre as partes constituem a essência do método que Marx recebeu de Hegel e transformou de maneira original no fundamento de uma ciência inteiramente nova. 589 O método dialético em Marx visa ao conhecimento da sociedade como totalidade. Enquanto a ciência burguesa confere uma 'realidade' com realismo ingênuo, ou certa autonomia com espírito 'crítico', àquelas abstrações que, para uma ciência não pertence ao âmbito da filosofia, são necessárias e úteis do ponto de vista metodológico e resultam, de um lado, da separação prática dos objetos da investigação e, de outro, da divisão do trabalho e da especialização científicas, o marxismo supera essas separações elevando-as e rebaixando-as à categoria de aspectos dialéticos. O isolamento – por abstração – dos elementos, tanto de um domínio de investigação quanto de conjuntos específicos de problemas ou de conceitos no interior de uma área de pesquisa, é certamente inevitável. O que permanece decisivo, no entanto, é saber se esse isolamento é somente um meio para o conhecimento do todo, isto é, se ele se integra sempre no contexto correto de conjunto que ele pressupõe e ao qual apela, ou ainda se o conhecimento abstrato do domínio parcial isolado conserva sua 'autonomia', e permanece um fim 'em si'. Para o marxismo, em última análise, não há, portanto, uma ciência jurídica, uma economia política e uma história etc. autônomas, mas somente uma ciência histórico-dialética, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade. 590

Entretanto, para que não percamos de vista, Lukács lembra que este problema não pode ser superado de maneira individual – acrescentaríamos pela astúcia, pela diligência ou pela capacidade lógicas de qualquer indivíduo – porque “o ponto de vista da totalidade não determina, todavia, somente o objeto, determina também o sujeito do conhecimento” e como “a ciência burguesa, de maneira consciente ou inconsciente, ingênua ou sublimada – considera os fenômenos sociais sempre do ponto de vista do indivíduo” a crítica ao modo de produção que vivemos não pode partir do indivíduo, porque “o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade”. Acrescenta o autor, quando muito [o ponto de vista do indivíduo] pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a 'fatos' desconexos ou a leis parciais arbitrárias. A totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele

589 590

P. 105. P. 107.

264

mesmo uma totalidade; e se o sujeito deseja compreender a si mesmo, ele tem de pensar o objeto como totalidade. 591

O que Lukács está tentando nos convencer é de que se torna, assim, uma tarefa daqueles que se ocupam da transformação do mundo, ao mesmo tempo “romper intelectualmente as barreiras do pensamento racionalista formal (do pensamento burguês reificado)

592

” e recusar “a questão fundamental do pensamento burguês” e,

portanto, a consideração da “coisa em si” separada das “questões subjetivas” como se tivesse uma própria “realidade objetiva” 593. Em nosso caso concreto, é preciso recusar a existência objetiva das categorias econômicas – jurídicas, políticas, sociológicas etc. – ao mesmo tempo em que se transforma o mundo e os próprios sujeitos, porque “a ação de uma categoria da mediação sobre a imagem do mundo não é algo meramente subjetivo” 594, mas algo que assume uma concretude fantasmagórica, uma ideologia que se materializa em mecanismos de opressão. O que implica, em nosso caso, que a colocação do problema separando a ciência econômica das relações concretas que elas procuram significar – se é que pode ser encarada como uma crítica – contesta a ideologia – a acusação economicismo – de um lado para reforçar de outro – o “hiperpoliticismo”. Da perspectiva que queremos adotar – que Lukács chama de dialética –, “somente o processo histórico elimina realmente a autonomia – encontrada – das coisas e dos conceitos das coisas, assim como a rigidez que dela resulta595”. E dessa maneira, destina “a totalidade concreta do mundo histórico, o processo histórico concreto e total, como único ponto de vista a partir do qual podem ser compreendidos596”, sabendo que “a história é o único elemento vital possível do método dialético597”. A partir dessa possibilidade de pensamento para além da ideologia burguesa – uma tarefa a ser executada – Lukács propõe o nascimento de “uma lógica inteiramente nova” em que o sujeito não é um “espectador imutável da lógica objetiva do ser e dos conceitos” – uma espécie de Cassandra – nem tampouco “o senhor, orientado para a prática, das suas possibilidades puramente mentais” – um grande arquiteto de um Mesma página. A reificação e a consciência de classe do proletariado, em História e Consciência de classes, P. 307. 593 P. 310. 594 Mesma página. 595 Páginas 300 e 301. 596 P. 301. 597 P. 305. 591 592

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mundo inteiramente irreal – mas, no próprio processo dialético, ocorre a “dissolução da oposição fixa entre formas fixas” que se “desenrola [...] essencialmente entre o sujeito e o objeto598”. Desta maneira, supõe Lukács, é possível que se supere simultaneamente tanto a sociedade burguesa ela mesma, como a própria “filosofia clássica” que aposta na crítica meramente intelectual que “visa a superar no pensamento a sociedade burguesa” e “despertar especulativamente para a vida o homem aniquilado nessa sociedade e por ela”. No fundo, qualquer crítica à filosofia (à ciência, à ideologia) sem a superação concreta da própria realidade que alicerça as condições de verossimilhança dessa filosofia não pode dar conta do desafio a que se propõe. Por fim, como vimos em diversos exemplos de autorxs contemporânexs em suas tarefas de criticar xs “clássicxs”, o que principia como um projeto emancipatório resulta no reforço dos mecanismos de dominação. Desse modo, funcionam assim como a “filosofia clássica”, que “em seus resultados, não consegue [m] mais do que a reprodução intelectual completa, a dedução a priori da sociedade burguesa”. Desta maneira, concordamos com Lukács, somente “o método da dialética [...] aponta para além da sociedade burguesa599”. Enquanto a filosofia e a ciência burguesas procuram compreender e operar as leis dentro de uma estrutura fixa, imóvel e em eterna reprodutibilidade, o pensamento pautado pelo materialismo histórico é consciente de que a essência da história reside justamente na modificação dessas formas estruturais, por intermédio das quais, num determinado momento, ocorre o conflito do homem com seu meio, que determina a objetividade de sua vida interior e exterior 600

Desta maneira – e somente desta maneira – é possível conceber um pensamento crítico e transformador que opera a partir da certeza de que a crítica não pode ser dirigida apenas a aspectos conceituais e de pontos de vista individuais e intelectuais externos – “somente as classes representam esse ponto de vista da totalidade como sujeito na sociedade moderna601”. Do contrário, deve ser empreendida ao modo de produção capitalista – no qual homem é coisa e natureza, paisagem602 – como um todo. A crítica, portanto, deve ser dirigida à totalidade (tanto concreta quanto “intelectual”). Somente assim é possível conceber um pensamento para além da visão de mundo P. 296. P. 307. 600 P. 315. 601 “Rosa Luxemburg como marxista”, p. 107. 602 “A reificação e a consciência de classe do proletariado”, 323. 598 599

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burguesa, um pensamento que tem a certeza de que “o problema do presente [é] um problema histórico603” e, mais do que isso, é o único problema histórico realmente relevante. O problema da constituição prática de uma nova visão de mundo, que já estava muito bem colocado para Marx e Engels, contudo, torna-se a cada dia mais importante – e mais difícil de ser apreendido. Analisando a obra de Rosa – mas podendo estendê-la para o que hoje costuma ser chamado de “as teorias clássicas sobre o imperialismo” – Lukács ressalta que o pensamento ahistórico e anti-histórico burguês crescia – e temos razões fortes para argumentar que continua crescendo, talvez ainda mais604 – a despeito do fato de que o desenvolvimento econômico da época imperialista tornou cada vez mais difícil acreditar nos simulacros de ataque contra o sistema capitalista e a análise 'científica' dos seus fenômenos considerados isoladamente, no interesse da 'ciência exata e objetiva' [e diante disso] seria preciso tomar partido, não apenas politicamente, a favor ou contra o capitalismo. Quanto à teoria, também seria preciso fazer uma escolha: ou considerar toda a evolução da sociedade de um ponto de vista marxista e então dominar o fenômeno do imperialismo de modo teórico e prático, ou furtar-se a esse encontro, limitando-se ao estudo de aspectos isolados de alguma ciência específica. 605

Contra isso, do ponto de vista que queremos defender, ocupado com a transformação radical do modo como vivemos com o objetivo de combater as explorações que estruturam esse modo de vida, não podemos aceitar que nossas ações sejam orientadas por uma ciência específica que se apresenta como marxista, mas que não passa de uma visão mecanicista e esclerosada do marxismo, com efeito reduzido à economia [e à ciência política] vulgar606. Para evitarmos esta sorte de armadilha, nos atentemos à lição de Lukács, para quem, seja qual for o tema em discussão, o método dialético trata sempre do mesmo problema: o conhecimento da totalidade do processo histórico. Sendo assim, os problemas 'ideológicos' e 'econômicos' perdem para ele sua estranheza mútua e inflexível e se confundem um com o outro. A história de um determinado problema torna-se efetivamente uma história dos problemas. A expressão literária ou científica de um problema aparece como expressão de uma totalidade social, como expressão de suas possibilidades, de seus limites e de seus problemas. O estudo P. 322. Temos à mão uma porção de projetos (______desenvolvimentistas; ____________ keynesianos) de salvação do capitalismo que não nos deixam mentir que contamos muita gente disposta a se convencer de que é possível “colocar a pasta de dentes de volta ao tubo”. 605 “Rosa Luxemburg como marxista”, p. 109. 606 Cf: P. 117. 603 604

267

histórico-literário do problema acaba sendo o mais apto a exprimir a problemática do processo histórico. A história da filosofia torna-se filosofia da história. 607

Neste momento, Lukács resgata uma crítica marxiana de extrema importância para o esclarecimento das interpretações contemporâneas do capitalismo que se constituem, conforme já enunciamos, na miragem dos Anos Dourados. Trata-se da completa refutação – expressa em Miséria da filosofia – das teses de Proudhon segundo as quais é possível identificar um “lado ruim”, mas também um “lado bom” da evolução capitalista. Contra possíveis interpretações de que o marxismo estaria inexoravelmente calcado no reconhecimento de que existe um caráter progressista no capital – cuja apreciação exigiria um esforço que não empreenderemos aqui608 – Lukács sublinha que o caminho trilhado por Rosa coloca a questão noutros termos, porque, a partir da maneira como apresenta o problema – que abordaremos no próximo capítulo, reconhecer a questão da acumulação significa reconhecer que esse 'lado ruim' está inseparavelmente ligado à essência mais íntima do capitalismo. Significa, por conseguinte, que o imperialismo, a guerra e a revolução mundiais devem ser entendidas como necessidades da evolução. Contudo, como se sublinhou, isso contradiz o interesse imediato daquelas camadas que tiveram nos marxistas do centro seus porta-vozes ideológicos, camadas que desejam um capitalismo altamente desenvolvido, sem 'excrecências' imperialistas, uma produção 'bem regrada', sem as 'perturbações' da guerra etc. 'Essa concepção', diz Rosa Luxemburg, 'visa persuadir a burguesia de que o imperialismo e o militarismo seriam prejudiciais do ponto de vista dos seus próprios interesses capitalistas. Espera-se, com isso, poder isolar o punhado de aproveitadores, por assim dizer, desse imperialismo e formar um bloco com o proletariado e as largas camadas da burguesia para 'atenuar' o imperialismo, [...] para 'retirar dele o seu espinho'. Do mesmo modo como, na época de sua decadência, o liberalismo transferiu seu apelo da monarquia mal-informada àquela que precisava de mais informação, o 'centro-marxista' transfere seu apelo da burguesia mal-aconselhada à burguesia que precisa ser instruída.’ 609

A denúncia é clara: esta – e aquelas que não rompem seus marcos – é uma ideologia burguesa [a rigor totalmente compatível com a crítica hobsoniana do Imperialismo (e, por conseguinte, do capitalismo)].

607

Para os fins que nos propusemos aqui, nos basta a consideração de que, assim como o “economicismo”, as teses sobre a importância da ideologia do “progressismo” no pensamento marxiano encontram um bom número de citações que, deslocadas de seu contexto, as corroboram. Entretanto, assim como as teses sobre o “economicismo”, pensamos que essas teses poderiam ser refutadas no entendimento mais amplo do projeto marxiano de um completo combate às visões de mundo burguesas. 609 P. 121. 608

268

O que procuramos argumentar neste capítulo – por caminhos que esperamos não tenham sido em demasia digressivos e de difícil compreensão – em síntese, é que, em nosso juízo, grande parte da historiografia contemporânea sobre o imperialismo, na tentativa de criticar xs “clássicxs” e tendo supostamente a história dos “insucessos” do “socialismo realmente existente” “ao seu lado”, com efeito resgata justamente a “alma” reformista e fetichizada de Hobson, para quem é possível expurgar o desenvolvimento do capitalismo de seu “lado ruim” por meio de um “pacto social” que atua a partir de um tipo de Estado “mais benevolente”. Que Hobson seja um autor rigorosamente liberal e que as utopias que hoje disputam sua herança estejam contra o que se convencionou chamar de neoliberalismo é apenas mais uma prova de que cada uma dessas visões de mundo pertencem rigorosamente ao mesmo universo: a visão de mundo burguesa. Talvez seja possível atuar pontualmente em determinados aspectos do modo de produção capitalista – e é evidente que isso pode trazer efeitos que melhorem a vida das gentes oprimidas. Mas, ao nosso juízo, a história do modo de produção capitalista ao longo do seu desenvolvimento a partir de 1870 (o Imperialismo) comprova – com base na experiência histórica concreta – que o máximo que se pôde almejar a partir dessa estratégia foram algumas poucas décadas em que o peso da opressão não recaiu especificamente sobre alguns subgrupos (“homens” “brancos” “ocidentais” etc.). Que certas pessoas se contentem com isso, não nos compete julgar. Do nosso lado, nos parece que estamos perdendo muito.

269

Parte IV – O que há de específico no Capitalismo Contemporâneo? Alguns comentários historiográficos sobre os principais avanços do debate contemporâneo sobre o imperialismo dos nossos dias “A onda que vai leva, a onda que vem traz”

(Dorival Caymmi)

Até aqui, procuramos apreciar o debate contemporâneo sobre o imperialismo contemporâneo por meio da reconstituição do problema do imperialismo enquanto um problema da história do tema imperialismo. Sob nosso ponto de vista, a questão mais reveladora sobre a história do problema é a extrema dificuldade do debate contemporâneo em afirmar em quê exatamente o imperialismo contemporâneo difere do imperialismo capitalista descrito pelxs principais autorxs que formularam as assim chamadas “teorias clássicas do imperialismo”, ou, dizendo de um modo mais preciso, por que as mudanças que ocorreram ao longo do último século exigem uma formulação teórica distinta daquela construída por aquelxs referidxs autorxs. A hipótese mais frequente é que os “novos tempos” exigem uma “nova teoria”.

Conforme vimos

alertando desde o princípio, nossa hipótese é que essa dificuldade sugere uma má formulação do problema. Mas esta argumentação será o assunto do final desta tese. Por enquanto, ainda nos cumpre a apreciação de pelo menos duas obras importantes da historiografia contemporânea sobre o imperialismo. Retomando um dos pilares que organizam nosso roteiro, a saber, a relação entre capitalismo e imperialismo, podemos afirmar que as obras analisadas na sequência, O Império do Capital, de Ellen Meiksins Wood, e O Novo Imperialismo, de David Harvey, cada uma a seu modo, são provavelmente as mais importantes obras publicadas desde o período que separa nossos dias da derrubada das torres em setembro de 2001 – o período que escolhemos enfatizar em nossas pesquisas. E isso menos porque essas obras sejam teorizações que se ocupam diretamente dessa relação entre capitalismo e imperialismo do que pelo fato de que Ellen e David são, até onde conhecemos, as pessoas que publicaram especificamente sobre o tema do imperialismo que mais avançaram na tentativa de definição das especificidades do capitalismo nos tempos em que vivemos.

270

Esperamos que a apreciação destes textos exponham os limites do debate contemporâneo e nos permita articular esses limites com determinadas passagens da chamada “teoria clássica” que, ao nosso juízo, não costumam repercutir no debate contemporâneo, no qual é frequente a queixa de que a “teoria clássica” não teria levado em consideração aspectos que – procuraremos mostrar – ela efetivamente encarou. Nossa hipótese de pesquisa é que se consideradas em sua devida estatura, essas “lacunas” podem ajudar a esclarecer o problema do “sumiço” durante os assim chamados Anos Dourados do capitalismo.

271

Capítulo 7. Alguns comentários sobre a especificidade do Imperialismo Capitalista na interpretação de Ellen Meiksins Wood “Não joga, não bebe, não fuma só anda na moda, o Emiliano da Rita Maloca, nêga que está sempre onde tem confusão. Que sabe dar rabo de arraia, provoca chalaça, bebe quase sempre a pior das cachaças, mas dizem que a Rita tem bom coração. O Emiliano tadinho, crioulo franzino, fala com apuro parece um granfino, por falar bonito é o prefeito do morro. Mas no interior do barraco é uma fera enjaulada, dá lições de soco e também cabeçada e já mandou a Rita pro pronto socorro”

(Elton Medeiros)

O próprio fato de que existem grandes divergências interpretativas sobre a relação entre o imperialismo contemporâneo e o modo de produção capitalista – já assumindo que ambos existem –, bem como as diversas referências à existência de um “novo” imperialismo e de uma “nova” configuração (“fase”, “estágio”, “etapa” etc.) capitalista, em nosso juízo, já deveriam ser razões suficientemente fortes para que as pesquisas que se voltam ao tema problematizassem de um modo mais sistemático do que o de costume o quê, afinal de contas, significa afirmar a especificidade de um tempo histórico qualquer. Assim, além da pergunta necessária de saber se existem características distintivas o suficiente para marcar essa especificidade, em tese seria necessário considerar as implicações dessa distinção. Ainda que se procure apresentar razões na morfologia contemporânea do imperialismo que justifiquem o rótulo de “novo”, ao nosso juízo a questão da especificidade não ocupa, nessas obras, a importância teórica que deveria ocupar.

272

A historiadora nova-iorquina Ellen Meiksins Wood610 certamente é uma honrosa exceção. Tendo por objeto de pesquisa de toda a sua carreira a busca pela especificidade do capitalismo, no ano de 2003 – poucos meses antes da invasão executada pelos Estados Unidos no Iraque – a autora publicou um livro instigante, chamado O Império do Capital, recentemente traduzido para o português pela Boitempo Editorial. Conforme discutimos anteriormente, naquele momento, para quem duvidava da sua existência ou dela havia se esquecido, o imperialismo se revelava de tal maneira que se tornou praticamente impossível negá-lo. Isso viria marcar o trabalho de Ellen Wood de duas maneiras. Primeiramente, era preciso entender em quê o imperialismo capitalista em curso apresentava uma novidade em relação ao imperialista capitalista de antanho. Em segundo lugar – para ela mais importante – esse momento oferecia uma ocasião importante para a reflexão sobre em quê o imperialismo capitalista em si mesmo diferia de formas não capitalistas de império. Em outras palavras, era preciso dar conta da dupla tarefa de explicar as mudanças no interior do próprio imperialismo capitalista e as características

específicas

do

próprio

imperialismo

capitalista.

Procuraremos

reconstituir o argumento sem pressa, explicitando que a segunda parte mereceu mais a atenção da autora, e provavelmente é o seu ponto mais forte. 611 Seu ponto de partida consiste em encarar “a dificuldade de caracterizar o ‘novo’ imperialismo”

uma

vez

que

“quem

falar

do

imperialismo

norte-americano

provavelmente será contestado com base no fato de os Estados Unidos não governarem

https://en.wikipedia.org/wiki/Ellen_Meiksins_Wood 611 Não iremos demonstrar a coesão entre seus objetos de pesquisa senão de passagem. Mas gostaríamos de citar que no simpósio de 2006, sobre o qual falaremos mais, a autora, em objeção a uma crítica que a ela direcionaram, explicitou que “[...] se me pedissem para caracterizar meu próprio trabalho, em O Império do capital ou em qualquer outro lugar, eu diria, acima de tudo, que ele visa substituir a tipologia com ênfase no processo histórico – em particular para identificar as especificidades do capitalismo e as transformações sociais que ele promoveu, dando origem a dinâmicas bem distintas, em contraste com todos os outros processos e formas sociais, e produzindo novos tipos de imperialismo, precisamente, com ‘processos econômicos completamente diferentes’.” (O império do capital, pág. 127) 610

273

nem ocuparem diretamente nenhum país em parte alguma do mundo”

. Para ela, a

612

questão do controle direto – ou, para ficarmos mais restritos aos seus próprios termos: o uso de imperativos “não-econômicos” de exploração – é absolutamente central. Seu argumento, que podemos aceitar somente de modo parcial é que “houve um tempo em que não somente o governo colonial, mas também a exploração econômica de colônias por potências imperiais, era um negócio razoável e transparente” e “quem observasse os espanhóis na América do Sul ou, mais tarde, os belgas no Congo não teria dificuldade para entender os meios pelos quais a riqueza do súdito era transferida para o senhor”. Ainda acompanhando suas palavras, “sob esse aspecto, o imperialismo tradicional tinha muito com certas relações internas de classe” e assim como não havia nada particularmente opaco nas relações entre os senhores feudais e camponeses de cujo trabalho ou renda eles apropriavam, ou entre o Estado absolutista e os camponeses cujos impostos ele extorquia, a relação entre os senhores coloniais e seus súditos era razoavelmente clara: o primeiro exercia a força, até o genocídio, e compelia os outros a abrirem mão da sua riqueza. 613

Ainda para ela, no “capitalismo moderno a relação de classe entre o capital e o trabalho é muito mais difícil de decifrar” porque, “nesse caso, não existe transferência direta de trabalho excedente. Os trabalhadores não pagam rendas, nem impostos ou tributos aos seus empregadores” e “não existe nenhum meio óbvio de distinguir entre o que os trabalhadores guardam para si e o que eles cedem ao capital”. Assim, pelo menos ao que parece – e a autora ao nosso juízo não enfatiza tanto quanto deveria que é uma aparência – “de fato, longe de extorquir renda dos trabalhadores, o empregado lhes paga sob a forma de salário, e esse pagamento parece cobrir todo o trabalho executado pelo 612 P. 15. A importância da descolonização para os estudos sobre o imperialismo é um tema importante sobre o qual não nos dedicamos o quanto deveríamos por conta das dificuldades da esparsa e robusta bibliografia que o compõe, que não couberam em nossas condições de tempo para executar a tese. Contudo, como esperamos que fique claro, a existência ou não de colônias em sentido estrito não é condição necessária para a definição do imperialismo capitalista. Provavelmente voltaremos a tratar do tema mais à frente, mas a quem se interessar sobre ele, dedicamos um capítulo de nossa dissertação de mestrado para analisar a centralidade das colônias na definição do imperialismo capitalista do século XIX pela apreciação das diferenças entre império “formal” e império “informal” animadas pelo “debate sobre o imperialismo do livre-comércio”. Não debatemos lá a fundamental bibliografia específica sobre a descolonização, que ultrapassa em muito os problemas com os quais nos ocupamos de modo mais direto. O que procuramos demonstrar ali é que as teses que procuram refutar a existência do imperialismo pela ausência de colônias em seu sentido estrito ignoram as características fundamentais do imperialismo capitalista que opera, na fórmula consagrada de Gallagher e Robinson para o caso inglês – mas extensível para os demais – por meio da estratégia do “controle indireto quando possível e controle direto quando necessário”. Essa questão, ao nosso juízo, não foi levada em consideração por Ellen Wood e complicaria bastante a sua distinção acerca da especificidade do imperialismo capitalista, que procuraremos circunscrever. 613 Todas essas citações são da página 15.

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trabalhador: um salário referente a oito horas, por exemplo, pelo trabalho executado em oito horas614” Para ela – e aqui fica evidente a nossa discordância –, não é tão fácil deslindar como os trabalhadores criam a riqueza do capital por meio do trabalho pelo qual eles não recebem nenhuma recompensa ou, dito de outra forma, como o capital obtém mais benefício sob a forma de lucro, do trabalho dos trabalhadores do que estes recebem sob a forma de salário. Pode ser evidente, para qualquer pessoa sensata, que a acumulação de capital não seria possível sem uma transferência líquida de trabalho excedente dos trabalhadores para os capitalistas. Mas a forma como isso se dá é muito menos clara. A teoria marxista do mais-valor é uma explicação convincente de como ocorre essa transferência, mas o fato de ser necessária uma teoria tão complexa para explicar o que deveria ser uma transação razoavelmente direta atesta a opacidade da relação entre capital e trabalho. A cobrança de renda ou impostos de um camponês – onde é evidente que uma parte do que produz o camponês se destina ao pagamento do senhor ou do Estado, seja em produto, trabalho ou dinheiro – não exige uma teorização tão complexa. Mais particularmente, a ausência de uma força coercitiva direta exercida pelo capital sobre o trabalho, não é imediatamente óbvio o que poderia compelir o trabalhador a ceder o seu excedente de trabalho. A coerção puramente econômica que leva os trabalhadores a vender sua força de trabalho por um salário é muito diferente dos poderes políticos ou militares diretos que permitem aos senhores e Estados em sociedades não capitalistas extorquir renda, impostos ou tributos dos produtores diretos. Evidentemente, o trabalhador sem propriedade tem pouco espaço de manobra quando a venda da força de trabalho em troca de um salário é a única maneira de ter acesso aos meios de subsistência, ou mesmo aos meios de trabalho em si. Mas essa compulsão é impessoal; toda a coerção que opera aqui é, ou parece ser, imposta não por homens, mas por mercados. Diante dessa que ainda parece ser uma questão de escolha, a única relação formalmente reconhecida entre capitalistas e trabalhadores – em nítido contraste, por exemplo, com a relação juridicamente reconhecida de dominação e subordinação entre senhor feudal e servo – é uma transação entre indivíduos legalmente livres e iguais 615

Mesmo que concordemos com as duas questões fundamentais – existe uma relação entre as formas do império e as relações “internas” de classe; e faz diferença a forma da compulsão ao trabalho – não nos parece que a exploração “tradicional” pudesse, naquele momento, ser tão transparente assim. Não somente porque temos que considerar que as justificativas (legais, mas também morais e religiosas) em voga naquele momento se revelam clara somente aos nossos olhos – na época não era assim – , mas também porque os mecanismos pelos quais as riquezas extraídas pelos “espanhóis na América do Sul” e pelos “belgas no Congo” foram acumuladas não somente em cada

614 Páginas 15 e 16. 615 P. 16.

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uma dessas metrópoles, mas também na City londrina, por exemplo, nunca foram evidentes. Aqui Ellen M. Wood provavelmente incorre em anacronismo. É lógico que o capitalismo, ou qualquer outro modo de vida, necessite de ideologias que o justifiquem perante os seus, de modo a garantir-lhe alguma sorte de legitimidade. Todavia, sob nosso ponto de vista, em seu esforço de marcar a especificidade do capitalismo pela compulsão “puramente econômica” – voltaremos ao assunto, que é fundamental para ela –, nossa autora subestima que os outros modos de dominação também encobriam a exploração que hoje – e mesmo assim nem todxs – podemos perceber de modo relativamente claro. O que nos parece mais importante demarcar – e que nos indica seu anacronismo – é que sempre foi preciso criar sistemas ideológicos complexos em torno das supostas vontades dos Deuses [das guerras helênicas ao jihadismo, jamais nos esquecendo das Cruzadas cristãs], da Glória ao Rei [e à Rainha], da missão civilizatória do homem branco [na África e na América, por exemplo] e da catequização dos povos ameríndios [que muitas vezes implicou no extermínio]. Estas, mas também muitas outras, na prática, também encobriram e “tornaram opacas a exploração de umas gentes sobre outras”. E isso para não mencionarmos o fato de que uma das principais razões pelas quais as pessoas permanecem intrincadas em um sistema de dominação qualquer é o fato de que, para elas, “sempre foi assim” e/ou “não dá pra fazer diferente”. Ou seja: ao nosso juízo, nenhum modo de dominação é mais ou menos “transparente” ou “opaco” em relação a outro. Portanto, embora concordemos que existem especificidades capitalistas – a serem definidas – discordamos que seja possível considerá-las mais ou menos “transparentes” que outras relações sociais de dominação. O que nos parece é que, em geral, a percepção sobre o que é mais ou menos opaco depende diretamente do ferramental analítico com o qual se procura decifrá-lo. Se você olhar do ponto de vista da Ciência Econômica, pode ser mais opaca a religião; mas olhando do ponto de vista desta, opaca é a economia. Ainda neste sentido, quando se tem em mente – no seu próprio terreno – o esforço que se precisou dispender para tornar algo minimamente apreensível do ponto de vista analítico – por exemplo a teoria da mais-valia, no caso referido – pode parecer que esse era o ponto mais opaco. Mas nada disso é mais ou menos opaco a priori, e o que é mais opaco para um pode ser menos opaco para o outro. Não há objetividade que dê conta desse problema. É importante que tenhamos em

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mente que a “superação” – naquele sentido marxista-hegeliano que os tradutores gostam de enfatizar – da dominação “tradicional” levou séculos. Isso se deve, inclusive, porque era “tornada opaca” pelas ideologias da época. Mas, não obstante essa nossa discordância, acompanhemos nossa autora até onde seu argumento pode nos levar. Ainda nessa chave de o que é mais ou menos opaco, Ellen Wood – sendo coerente com a colocação de que a forma do império se liga às relações “internas” de classe – desenvolve então um ponto essencial em sua busca pela especificidade do imperialismo capitalista. Para ela, muito se pode dizer, igualmente, e pelas mesmas razões, acerca da natureza do imperialismo capitalista. Hoje é mais difícil que nos antigos impérios coloniais detectar a transferência de riqueza das nações mais fracas para as mais fortes. 616

E prossegue argumentando que mesmo quando é dolorosamente evidente que ela ocorre, a forma como isso é realizado não é menos opaca que a relação entre capital e trabalho, e essa opacidade deixa muito espaço para negativas. Também nesse caso não há, tipicamente, uma relação de coerção direta. Também nesse caso, as compulsões têm maior probabilidade de serem 'econômicas' impostas não pelos senhores (diretamente), mas pelos mercados. Também aqui, a única relação formalmente reconhecida é a que existe entre entidades legalmente livres e iguais, como compradores e vendedores, tomadores de empréstimos e emprestadores, ou até mesmo entre Estados claramente soberanos. 617

E somente a partir daí a autora apresenta a sua tese, segundo a qual o que torna a dominação de classe, ou o imperialismo, especificamente capitalista [grifo dela] é a predominância [grifo nosso] da coerção econômica, que se distingue da coerção 'extraeconômica' – política, militar ou judicial – direta. 618

Aqui a autora fala em “predominância da coerção econômica” mas, como veremos, na maioria das vezes, o núcleo do seu argumento consiste em definir a existência de uma coerção “puramente econômica”. Iremos considerar essa questão de como nos parece que a autora se atrapalha com os próprios termos – e como procura evitar essa confusão com um festival de termos entre aspas – mais à frente, mas, para sermos honestos com ela, não podemos deixar de anotar que a autora confere muito espaço para considerações de que sua tese “não quer dizer, de forma alguma, que o imperialismo capitalista possa abrir mão da força extraeconômica”. A questão, portanto, 616 Mesma página. 617 Páginas 16 e 17. 618 P. 17.

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para ela, é procurar entender a forma eminentemente “nova” de articulação entre o “econômico” e o “não-econômico”. Em seus próprios termos, primeiro, o capitalismo certamente não exclui formas mais tradicionais de colonização coercitiva. Pelo contrário, sua história, desnecessário dizer, é uma história sangrenta e muito longa de conquista e opressão colonial; e, de qualquer maneira, o desenvolvimento de imperativos econômicos suficientemente fortes para substituir [grifo nosso] formas mais antigas de dominação direta se deu em um período muito longo, só chegando à plena realização no século XX. Contudo, mais particularmente, mesmo nessa forma mais madura o imperialismo capitalista exige apoio extraeconômico. A força extraeconômica é claramente essencial para a manutenção da coerção econômica em si. A dificuldade, mais uma vez, é que o papel da força extraeconômica no imperialismo capitalista, bem como na dominação de classe capitalista, é opaco, porque em geral ela opera não pela intervenção direta na relação entre capital e trabalho, ou entre Estados imperiais e subordinados, mas de forma mais indireta pela sustentação do sistema de compulsões econômicas, do sistema de propriedade (e do de não propriedade) e da operação dos mercados. Mesmo quando se aplica a força direta na luta entre as classes – como quando a polícia prende grevistas –, a natureza da transação tende a ser obscurecida pela neutralidade clara do poder coercitivo [?!]. Especialmente nas democracias liberais, com o sufrágio universal e as liberdades civis moderadamente bem estabelecidos, a polícia não é empregada pelo capital, mas representa um Estado que, em princípio, pertence a todos os cidadãos. Hoje, quando governos poderosos lançam ações militares contra outros mais fracos, somos levados a entender que, também nesse caso, a força não opera imperialmente, mas com neutralidade, no interesse da 'comunidade internacional'. Contestar o que está dito aqui não significa dizer que a ação policial, interna ou internacional, só pode operar no interesse de uma classe dominante ou de uma potência imperial. A questão é simplesmente que, mesmo quando o capitalismo opera dessa forma, os objetivos não são transparentes, como foram quando os senhores feudais exerciam sua própria força coercitiva contra os servos, ou quando antigos Estados imperiais se lançavam explicitamente à conquista de território, estabelecimento de colônias e imposição da dominação sobre povos subjugados. Entender o 'novo imperialismo' – na verdade determinar se ele realmente existe – exige que entendamos as especificidades do poder capitalista e a natureza da relação entre a força econômica e extraeconômica no capitalismo. 619(pág. 17)

X eventual leitorx dessa tese familiarizadx com os debates sobre o imperialismo provavelmente perceberá certa semelhança formal – e o formalismo, como iremos argumentar posteriormente, é uma constante no pensamento da autora – entre a maneira como Ellen Wood separa “capitalista” (“econômico”) de “não capitalista” (“político”, “militar” etc.) e a definição schumpeteriana sobre o imperialismo (as formas de violência direta são uma espécie de sobrevivência atávica de valores pré-capitalistas). 619 Mesma página.

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Mas a radical distinção teórica e política entre ambxs e a total ausência de referências ao autor no livro em questão – também não as encontramos noutros que lemos – nos sugere que essa é provavelmente uma pista falsa que preferimos evitar. Parece-nos mais importante e mais frutífero seguir o caminho da autora, que, na própria definição de “capitalista” e “não capitalista”, eleva a importância da distinção entre o “econômico” e o “não econômico” 620. Em seus próprios termos, pode-se argumentar no que se segue que o capitalismo é único na sua capacidade de separar o poder econômico do extraeconômico e que isso, entre outras coisas, implica que o poder econômico do capital é capaz de ir muito além de qualquer poder político ou militar existente ou concebível. Ao mesmo tempo, o poder econômico do capital não pode existir sem o apoio da força extraeconômica; e a força extraeconômica é hoje, tal como antes, oferecida primariamente pelo Estado. Aqui, a alegação não é que o poder do capital em condições de 'globalização' tenha fugido ao controle estatal e tornado o Estado territorial cada vez mais irrelevante. Pelo contrário, meu argumento é que o Estado é hoje mais essencial do que nunca para o capital, mesmo – ou especialmente – na sua forma global. A forma política da globalização não é um Estado global, mas um sistema global de Estados múltiplos, e a forma específica do novo imperialismo vem da relação complexa e contraditória entre o poder econômico expansivo do capital e o alcance mais limitado da força extraeconômica que o sustenta. 621

Para a autora, trata-se de um paradoxo que um império que se sustenta em imperativos puramente “econômicos” precise cada vez mais se valer da força “extraeconômica”. Para nós é uma maneira equivocada de formular o problema. Assim, embora para nós a autora coloque de forma muito precisa – muito mais do que em toda a historiografia sobre o tema – o problema da importância da identificação da especificidade do imperialismo contemporâneo e da maneira como esse problema se relaciona com o próprio capitalismo, existe um conjunto de imbricações no raciocínio dela que consideramos equivocado622. A maneira como a autora equaciona o problema, ao nosso juízo, faz com que não alcance o objetivo principal do seu livro, que é demarcar a especificidade do imperialismo contemporâneo. Embora ela tenha uma clareza incomum sobre a importância dessa questão, a maneira como procede a afasta de seu objetivo e cria uma quantidade imensa de confusões que podem ser apreciadas a partir da repercussão da sua publicação. 620 Adiantando: procuraremos demonstrar que essa porta de entrada é também uma cilada. 621 Páginas 17 e 18. 622 Esta questão, inclusive, aparece noutros diversos textos escritos por ela, em especial na sua relevante – ainda que tardia – participação no assim chamado “debate sobre a transição” [do feudalismo para o capitalismo], no qual a questão fundamental é a indagação sobre o que torna o capitalismo específico.

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O periódico Historical Materialism publicou uma edição completa sobre o Symposium Ellen Wood – como havia feito um ano antes com David Harvey – no qual autores importantes na historiografia contemporânea – Harvey incluso – debateram o livro dela, que ao final fez uma réplica intitulada Resposta aos críticos – cuja tradução a edição brasileira publicou ao final de O Império do Capital. Nesta réplica, Ellen Wood pondera que “é sempre intrigante, para não dizer desanimador, o fato de os críticos lhe atribuírem posições antitéticas com relação àquilo em que você acredita e que diz repetidas vezes623”. Ao que indaga: Então como é possível que minhas intenções tenham sido tão malinterpretadas? Eu poderia, é evidente, descartar essas deturpações como leituras descuidadas, mas a experiência sugere que, quando malentendidos são elementares, costuma haver algo mais sistemático no trabalho do que o descuido do leitor ou a falta de clareza do autor624. O problema, penso eu, é que esses críticos veem minha argumentação através de uma lente distorcida. 625

Ainda que, ao nosso juízo, a esmagadora maioria das críticas a ela endereçadas sejam absurdas – ela enfática e insistentemente afirma o contrário do que é acusada de afirmar – as confusões se devem, em grande parte, pela sua falta de clareza e a sua insistência em termos que nos parecem equivocados. Para nós, contudo, nos parece importante apreciar alguns pormenores da sua argumentação para que, por meio da demonstração dos seus limites, tentemos apontar um caminho alternativo para a formulação deste problema fundamental – ou, por enquanto, ao menos recusar o caminho proposto, o que já nos parece o suficiente tanto em termos “práticos” quanto “científicos”. Para a apreciação da obra da autora e do seu projeto político ancorado na importância da democracia entendida enquanto poder popular autônomo – segundo ela argumenta de modo convincente: o significado original do termo626 – seria importante que analisássemos suas contribuições anteriores. Mas em nossa apreciação de O Império do Capital tomaremos um atalho e iremos diretamente ao núcleo do argumento. Para x leitorx que está acompanhando a leitura, deixemos explícito que

P. 127. 128. 625 Mesma página. 626 Voltaremos ao ponto, mas para adiantar @s apressadxs, fica a dica de que essa é a tarefa à qual Ellen Wood se lançou em seu importante livro Democracia contra Capitalismo, cuja leitura recomendamos vivamente. 623

624 P.

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este livro não é uma história do imperialismo. Apesar de grande parte de sua argumentação ser histórica, o objetivo de suas excursões à história do império é colocar em relevo a especificidade do imperialismo capitalista, observando-o contra o pano de fundo contrastante de outras formas imperiais. (…) Os capítulos históricos se concentram em alguns exemplos importantes que foram marcados por uma ou outra característica comumente associada ao capitalismo – a dominância da propriedade privada ou a centralidade do comércio – para enfatizar as maneiras essenciais em que até mesmo tais casos diferem do império capitalista. Este livro tampouco pretende ser uma história completa do imperialismo capitalista em si. (…) Meu propósito é, pelo contrário, definir a essência do imperialismo capitalista para melhor entender como ele opera hoje. 627

7.1 Os primórdios do Império do Capital: Império Britânico e a origem (agrária) do capitalismo Como em toda a sua obra anterior, Ellen Wood confere particular importância para a transformação nas relações sociais agrárias na Inglaterra. Em O Império do Capital, o decisivo é a compreensão de como essa transformação – que para ela é a origem do capitalismo, não apenas na Inglaterra, mas em todo o mundo – impacta na conformação do Império Britânico. O que nos cumpre observar por hora, contudo, é que o fundamental deste livro já estava claro em sua obra anterior dedicada a A origem do capitalismo. Ali, em 1999, Wood já afirmara que a expansão dos imperativos capitalistas pelo mundo afora reproduziu, sistematicamente, os efeitos que teve no começo, em seu próprio país de origem: desapropriação, extinção dos direitos consuetudinários de propriedade, imposição de imperativos de mercado e destruição ambiental. Esses processos ampliaram seu alcance, saindo das relações entre as classes exploradas para as relações entre países imperialistas e subordinados. Mais recentemente, por exemplo, num novo tipo de imperialismo, a disseminação dos imperativos de mercado (com a ajuda de órgãos capitalistas internacionais como o Banco Mundial e o FMI), obrigou os fazendeiros do Terceiro Mundo a substituírem a autosuficiência agrícola pela especialização em culturas voltadas para o mercado mundial. 628

A direção da expansão (de “dentro” da Inglaterra para todo o mundo) capitalista, para Ellen Wood, é inequívoca, embora os efeitos sejam específicos a cada localidade em que os imperativos do mercado são impostos à partir de “fora”, por que [...] se os efeitos destrutivos do capitalismo tem-se reproduzido constantemente, seus efeitos positivos [T.F.F. quais seriam?] não têm sido nem de longe igualmente sistemáticos desde o momento em que o 627 Páginas 628

18 e 19. Grifos nossos. A origem do capitalismo. P. 126.

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sistema se originou. Uma vez estabelecido o capitalismo num dado país, a partir do momento em que ele começou a impor seus imperativos ao resto da Europa e, por fim, ao mundo inteiro, seu desenvolvimento em outros lugares nunca pôde seguir o mesmo curso que eles tiveram em seu lugar de origem. A partir de então, a existência de uma sociedade capitalista transformou todas as demais, e a expansão posterior dos imperativos capitalistas alterou constantemente as condições do desenvolvimento econômico. 629

O que não quer dizer que essa expansão não tenha exercido um efeito reflexo no aprofundamento das transformações internas da Grã-Bretanha porque “é claro que o imperialismo britânico também contribuiu para o desenvolvimento do primeiro capitalismo industrial do mundo630” Mesmo por que conquanto a industrialização tenha-se alimentado dos recursos do imperialismo, é importante ter em mente que a lógica deste, por si só, Mesma obra, páginas 126 e 127. É importante que pontuemos que, embora siga muitas pistas ao nosso juízo falsas, Ellen Wood tem uma grande capacidade de – no momento de formular “projetos” – acertar os alvos e não se perder em reformismos ingênuos. Na que sequência das citações aqui apresentadas – a conclusão daquele citado livro – argumenta que “Atualmente [o livro é de 1999 – e ela já fala em “novo imperialismo” antes de o tema voltar à moda; e antes da publicação do livro de Hardt e Negri], está mais claro do que nunca que os imperativos do mercado não permitirão que o capital prospere sem deprimir as condições de imensas multidões de pessoas e degradar o meio ambiente no mundo inteiro. Chegamos agora a um ponto em que os efeitos destrutivos do capitalismo estão suplantando seus ganhos materiais. Nenhum país do atual Terceiro Mundo, por exemplo, pode ter esperança de conquistar sequer o desenvolvimento contraditório por que passou a Inglaterra. Com as pressões da competição, da acumulação e da exploração impostas pelas economias capitalistas mais desenvolvidas, e com as crises inevitáveis de capacidade excedente geradas pela competição capitalista, a tentativa de alcançar a prosperidade material de acordo com os princípios capitalistas tende cada vez mais a trazer em seu bojo apenas o lado negativo da contradição capitalista, sua desapropriação e destruição, sem seus benefícios materiais – para a vasta maioria, com certeza.” (págs. 128-9) Já tivemos a ocasião de explicitar que discordamos dessa análise dos lados negativos e positivos do capitalismo, porque, de uma perspectiva crítica nos parece que eles são o mesmo e ainda que a análise seja possível, ela falseia a realidade. A verossimilhança da idéia de que é possível, por meio do conhecimento – especialmente o científico – controlar o efeito da criação humana – separando os “efeitos negativos” dos “efeitos positivos” – não é de se estranhar no século XIX, em uma sociedade – burguesa – animada, por exemplo, pelo Fausto de Göethe e pelo Moderno Prometeu, o Frankenstein de Mary Shelley. Estranho é que se continue a acreditar nesse mito hoje, quando a realidade ultrapassa qualquer ficção na sua capacidade destrutiva movida por um peculiar “transformação do metabolismo humano com a natureza, no suprimento das necessidades básicas da vida.” (mesmo A origem do capitalismo, mesma pág. 129). Ao que concordamos com a conclusão de Ellen Wood em suas investigações sobre a origem do capitalismo: “À medida que o capitalismo se espraia por regiões mais vastas e penetra mais fundo em todos os aspectos da vida social e do meio ambiente natural, suas contradições vão escapando mais e mais a nossos esforços de controlá-las. A esperança de atingir um capitalismo humano, verdadeiramente democrático e ecologicamente sustentável vai-se tornando transparentemente irrealista. Mas, conquanto essa alternativa não esteja disponível, resta ainda a alternativa verdadeira do socialismo” (pág. 129). Noutro lugar, afirma que “creio poder afirmar que todos nós, pelo menos a maioria, consideramos indispensáveis as liberdades civis básicas – liberdade de expressão, de imprensa e outras. Mas se isso é tudo que esperamos não há diferença entre os anticapitalistas e os advogados ‘liberais’ do capitalismo. Este livro parte da premissa de que ‘democracia’ significa o que diz o seu nome: o governo do povo ou pelo poder do povo.” (Prefácio à edição brasileira de Democracia contra Capitalismo, pág. 7). Neste mesmo lugar (pág. 8) afirma que “[Este livro] conclui que ‘um capitalismo humano, ‘social’, verdadeiramente democrático e equitativo é mais irreal e utópico que o socialismo”. Assinamos embaixo. 630 A origem... P. 108. 629

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não acarretou o capitalismo industrial. O poder imperial de outras nações europeias não surtiu os mesmos efeitos e, às vésperas da Revolução Industrial, o mercado interno ainda era mais importante para a economia britânica do que o comércio internacional. O capitalismo agrário foi a raiz do desenvolvimento britânico 631 O comércio e o imperialismo [...] foram fatores essenciais no desenvolvimento do capitalismo industrial, mas não podem ser tratados como causas primárias. Dito de outra maneira, seu efeito específico foi muito variado, de acordo com seu contexto. Temos que nos voltar para o mercado interno inglês e para o capitalismo agrário em que ele cresceu, a fim de descobrir a differentia specifica que atrelou o comércio e o imperialismo à indústria capitalista. 632

Em síntese, “sem a riqueza criada pelo capitalismo agrário, ao lado de motivações inteiramente novas de expansão colonial – motivações diferentes das de antigas formas de aquisição territorial –, o imperialismo britânico teria sido algo muito diferente do motor do capitalismo industrial que ele veio a se transformar”

. Além disso, o que a

633

autora reconhece que “é, sem dúvida, um ponto mais controvertido” sem o capitalismo inglês, possivelmente não haveria nenhum tipo de sistema capitalista: foram as pressões competitivas provenientes da Inglaterra, especialmente de uma Inglaterra industrializada, que compeliram outros países, antes de mais nada, a promoverem seu próprio desenvolvimento econômico em direções capitalistas. Nações que ainda agiam com base em princípios pré-capitalistas de comércio, ou numa rivalidade geopolítica e militar que mal diferia, em princípio, dos antigos conflitos feudais pelo território e pela pilhagem, foram

631 Mesma

página. 109. 633 Mesma página. 632 P.

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guiadas pelas novas vantagens competitivas da Inglaterra a promover seu próprio desenvolvimento econômico em moldes semelhantes. 634 P. 110. Apenas a título de registro, gostaríamos de deixar claro que essa questão acerca da imposição de “dentro” da Inglaterra para “todo o mundo” também está explicita em O império do capital, de 2003 e em “Resposta aos críticos” de 2006. Neste, a autora retoma o argumento central que dá unidade ao seu “projeto de pesquisa” e reafirma que é preciso “considerar como o capitalismo (que surgiu na Inglaterra antes que ela fosse uma grande potência colonial) transformou o imperialismo ao impor imperativos totalmente novos (pág. 136)”. Ainda neste texto, respondendo a François Chesnais – um dos participantes do simpósio – argumenta que “[...] precisamos distinguir entre o surgimento original do capitalismo, que, está claro, não aboliu as relações preexistentes de uma vez, e os casos em que um capitalismo já existente se espalhou pelos territórios dependentes e impôs seus imperativos sobre as relações sociais preexistentes, como tem acontecido no ‘terceiro mundo’ [Ellen Wood acrescenta em nota: “Essa questão tem sido motivo de alguma confusão nas discussões sobre a ‘articulação’ dos modos de produção”]. Ambos os casos também diferem daqueles em que o capitalismo se espalhou por meio do desenvolvimento econômico produzido pelo Estado, assim como as grandes potências não capitalistas reagiram a pressões comerciais e/ou geopolíticas e militares da primeira sociedade capitalista. Em cada um desses casos, o capitalismo convive ou interage com formas não capitalistas, mas de maneiras diferentes. Precisamos considerar com cautela se, ou quando, ao recorrer às formas não capitalistas de apropriação, o capital é impulsionado por imperativos essencialmente capitalistas e, de maneira alternativa, se, ou quando, formas não capitalistas de exploração significam a ausência ou o subdesenvolvimento de relações e imperativos capitalistas.” (pág. 133) Para nós, a questão está mal formulada, porque não acreditamos no recorte nacional. Em vez disso, defendemos que é preciso compreender como o imperialismo capitalista – uma “etapa” [na ausência de palavra melhor] do capitalismo – é necessariamente transnacional desde suas origens, embora suas estruturas de repressão de classe e organização do trabalho apareçam, a partir de determinado momento e até o nosso tempo, como “nacionais”. Uma das principais fundamentações do “recorte nacional” da origem do capitalismo e das especificidades do desenvolvimento deste na Inglaterra se refere ao capítulo de O capital em que Marx procura discutir “A assim chamada acumulação primitiva”, no qual este afirma que “a expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica”. Essa passagem é fundamental para as teses de Ellen Wood sobre a especificidade da Inglaterra e a origem eminentemente inglesa – além de agrária, como a autora insiste – do capitalismo. É digno de nota que o tradutor brasileiro da nova edição de O Capital [Rubens Enderle] acrescente a essa passagem uma observação segundo a qual: “Na edição francesa, no lugar das três últimas frases [que reproduzimos acima], lê-se: ‘Essa expropriação só se realizou de maneira radical na Inglaterra: por isso esse país desempenhará o papel principal em nosso esboço. Mas todos os outros países da Europa ocidental percorreram o mesmo caminho, ainda que, segundo o meio, ele mude de coloração local, ou se restrinja a um círculo mais estreito, ou apresente um caráter menos pronunciado, ou siga uma ordem de sucessão diferente’.” (Marx, O capital, páginas 787-8) A alteração de “forma clássica” para “maneira radical” não nos parece fortuita, nem ao menos diminui a ênfase, em cada uma das duas versões, de que a Inglaterra é um “exemplo” que desempenha o “papel principal” sem que isso obscureça o fato de que ainda que com particularidade, uma ampla gama de países passou por processos semelhantes. Para termos claro: a ênfase de Marx é na semelhança entre os casos exemplares e os casos concretos, não nas diferenças específicas. Para nós, ainda que indiretamente, é importante destacarmos que no posfácio desta referida edição francesa Marx faça a questão de enfatizar que “[...] o sr. J. Roy propôs-se a realizar uma tradução tão exata e mesmo literal quanto possível; ele cumpriu plenamente sua tarefa, mas justamente seu rigor obrigou-me a modificar a redação, com a finalidade de torna-la mais acessível ao leitor. Esses remanejamentos – feitos aos poucos, pois o livro era publicado em fascículos – foram realizados com uma atenção desigual, o que gerou discrepâncias de estilo. Após a conclusão desse trabalho de revisão, fui levado a aplica-lo também no texto original (a segunda edição alemã), simplificando alguns desenvolvimentos, completando outros, apresentando materiais históricos ou estatísticos adicionais, acrescentando observações críticas etc. Sejam quais forem as imperfeições literárias dessa edição francesa, ela possui um valor científico independente do original e deve ser consultada mesmo pelos leitores familiarizados com a língua alemã. [...] Karl Marx, Londres, abril de 1875.” (Marx, O capital, pág. 95). Não temos como ter a certeza de que neste caso específico o autor prefira a segunda formulação em relação à primeira, e se mobilizamos o recurso do “argumento de autoridade” foi apenas para encurtarmos 634

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Portanto, como podemos perceber, Ellen Wood apresenta todos os pressupostos da relação entre o imperialismo e o capitalismo já na sua obra de 1999, o que sem dúvida a torna um caso especial da historiografia contemporânea, profundamente afetada pela questão do “retorno do problema”. O que não quer dizer, evidentemente, que ela não tenha que prestar conta com os debates que se articulam ao problema dos estudos sobre o imperialismo naquele momento, como veremos a seguir. Mas o que queremos argumentar aqui é que a agenda de pesquisa da autora já estava estabelecida naquele momento em torno da compreensão das especificidades do capitalismo com relação a outras formas sociais, de forma muito avançada em relação @s outrxs autorxs contemporânexs se aproxima. Como veremos, isso impactará bastante na profundidade que essa questão ganha em contraste com o restante da historiografia e lhe reserva um local especial em nossa “história do problema”, em que a questão da “especificidade” ocupa o lugar central. Voltando aos argumentos de O império do capital, a autora faz questão de explicitar o fato de que todos os impérios europeus se valeram de colônias em maior ou menor grau, mas aqueles de colonos brancos foram a essência do imperialismo britânico de uma forma que não se aplica a nenhum outro. Os britânicos, e particularmente os ingleses no começo do Império, viam-se como o primeiro império desde Roma a ter sucesso no aumento do poder imperial por meio da colonização635.

O objetivo do argumento que segue essa constatação é defender a tese segundo a qual

o caminho e para que esbocemos uma crítica importante a Ellen Wood que não temos a ocasião de empreender aqui: o recorte nacional extremamente limitado do qual parte em seu ainda assim precioso livro A origem do capitalismo. O superdimensionamento da questão nacional também origina malentendidos desnecessários sobre as diferenças entre o “novo imperialismo inglês” [na “era clássica”] e o “novo imperialismo estadunidense” [pós-Segunda Guerra], como quando afirma que “Como a economia capitalista desenvolveu-se especialmente nos Estados Unidos, esse modo de dominação enfim obteve êxito no século XX, em particular após a Segunda Guerra Mundial, criando um novo mundo imperialista cuja dinâmica ainda tentamos entender.” (O império do capital, pág. 144) 635 P. 65. As diferenças entre as colônias “brancas” e as colônias “coloridas” é um tema fundamental da historiografia sobre o império britânico, tanto no debate do assim chamado “imperialismo de livrecomércio” como, por exemplo, para J.A. Hobson. Embora não esteja problematizado de modo explícito nas “teorias clássicas” sobre o imperialismo não é verdade que aquelxs autorxs não se ocupavam do problema – como acusa a crítica a elxs endereçada segundo a qual eram “economicistas”. O ponto é que essa questão se torna mais manifesta no debate que aquela gente empreendia no que se convencionou classificar como “a questão nacional”, geralmente ausente na historiografia crítica do “debate sobre o imperialismo”. Sob nosso ponto de vista, ainda está por ser feita a apreciação crítica da “teoria clássica do imperialismo” sem a divisão temática (imperialismo, questão nacional, vanguarda e partidos de massa, etc.). O que nos parece é que esse caminho “tradicional” da historiografia do imperialismo distorce a maneira como o problema era encarado, uma vez que de divisão em divisão, as questões vão-se esfumaçando e o projeto antiimperialista perdendo sua força.

285

foi [...] a Inglaterra a primeira a ver o surgimento de um sistema capitalista e a criar uma forma de imperialismo movido pela lógica do capitalismo. A combinação de forças sociais capitalistas de propriedade e a expropriação pela força do território colonial pode parecer [grifo nosso] contradizer a afirmação de que o capitalismo se caracteriza por modos econômicos de apropriação, em comparação com as formas extraeconômicas que dominaram as sociedades não capitalistas. A colonização pode parecer [grifo nosso] uma forma antiga, menos capitalista, de poder imperial do que o imperialismo comercial, cujo principal objetivo não é a apropriação de território, mas simplesmente a supremacia no comércio. Ainda assim, a colonização inglesa, em comparação com o imperialismo comercial veneziano ou holandês, foi aquela que respondeu aos imperativos do capitalismo. 636

A questão, como já dissemos, é a explicitação dos acontecimentos “internos” da Inglaterra que impactam na conformação dos “imperativos do imperialismo capitalista” . Mas o decisivo por hora é a consideração de que a Inglaterra se valeu da colonização

637

Mesma página. Esta tese encontra ressonâncias e resistências em um conjunto muito grande de assuntos que a rigor poderiam nos interessar, em especial a contestação da tese de G. Arrighi sobre as origens do capitalismo nas hegemonias de Gênova e da Holanda (retomadas posteriormente por Harvey, autor com o qual voltaremos a conversar na sequência e que, conforme analisaremos, é um debatedor importante das teses de Ellen Wood). Mas mantenhamos minimamente a coesão do argumento. 637 Para Wood, as principais transformações “internas” são a “radical” transformação dos “direitos de propriedade” (pág. 65) e a implementação de “melhorias” [improve] (pág. 67). As “melhorias”, ou “melhoramentos” são uma parte absolutamente crucial da argumentação da autora sobre a origem do capitalismo, que a isso dedica uma seção do capítulo mais importante da sua obra sobre A origem do capitalismo. Em “A ascensão da propriedade capitalista e a ética do ‘melhoramento’” a autora defende que “vale a pena nos determos por um momento nesse conceito de melhoramento, porque ele nos diz muito sobre a agricultura inglesa e o desenvolvimento do capitalismo. A própria palavra ‘melhorar’ [improve], em sua acepção original, não significava apenas ‘tornar melhor’, num sentido geral, mas sim, literalmente, fazer alguma coisa com vistas ao lucro monetário, especialmente cultivar a terra para fins lucrativos (com base nas antigas formas francesas correspondentes a ‘para’, em, e ‘lucro’ [ou ‘proveito’], pros – ou seu caso oblíquo, preu). No século XVII, a palavra ‘melhorador’ [improver] estava solidamente estabelecida na língua, para se referir àquele que tornava a terra produtiva e lucrativa, especialmente cercando-a ou tornando cultiváveis as terras abandonadas. O melhoramento agrícola, a essa altura, era uma prática bem estabelecida e, no século XVIII, fase áurea do capitalismo agrário, o ‘melhoramento’ em palavras e atos já tinha sua vigência plenamente reconhecida. Ao mesmo tempo, essa palavra foi adquirindo um sentido mais geral, no sentido como a conhecemos hoje (e seria interessante pensar nas implicações de uma cultura em que a palavra correspondente a ‘tornar melhor’ enraíza-se no termo que corresponde a lucro monetário). Mesmo em sua associação com a agricultura, ela acabou perdendo parte de sua antiga especificidade – de tal modo que, por exemplo, alguns pensadores radicais do século XIX puderam acolher melhoramento no sentido de cultivo científico da terra, sem sua conotação de lucro comercial. Mas, no início da era moderna, a produtividade e o lucro estavam inextricavelmente ligados no conceito de melhoramento, que resume bem a ideologia de um capitalismo agrário em ascensão. [...] Todavia, o melhoramento significava um pouco mais do que métodos e técnicas novos ou melhores de cultivo. Significava, em termos ainda mais fundamentais, novas formas e concepções de propriedade” (páginas, 88-9) A tradutora Vera Ribeiro, na página 54, em nota que nos parece dizer muito sobre a visão de capitalismo de Ellen Wood, explica que “o verbo to improve, tem as diversas acepções de melhorar, aprimorar, aperfeiçoar, desenvolver, utilizar, prosperar, aproveitar; introduzir ou realizar melhoramentos ou benfeitorias (em terras ou imóveis); valorizar, beneficiar, tirar partido de; aperfeiçoar-se, desenvolverse, progredir etc. Tem também, sobretudo nos Estados Unidos, o sentido de cultivar (terras). O ‘melhoramento’ a que a autora se refere poderia traduzir-se, com mais exatidão, como ‘beneficiamento’ ou ‘aproveitamento’ (da terra). Esse termo foi preterido em favor de ‘melhoramento’ para facilitar a compreensão das demais articulações de ordem linguística, social e econômicas feitas no texto.” 636

286

da Irlanda para implementar um verdadeiro laboratório de experiências sociais no que toca o regime de propriedades privadas sobre a terra (pág. 68 e seguintes) que segundo a autora demonstram tanto as características principais quanto alguns dos limites do imperialismo capitalista da Inglaterra porque “a história do início do capitalismo agrário – o processo de colonização doméstica, a retirada da terra do uso comunitário, seu desenvolvimento, cercamento e novas concepções de direito de propriedade – foi reproduzido na teoria e prática do Império” 638 sobretudo pelo fato de que a justificativa da propriedade se dava pela defesa das leis do valor enquanto aumento da produtividade639 que caracterizava a concepção da “nova ‘ciência’ capitalista da economia política640”. Para ela – o que ao nosso juízo poderia lhe sinalizar que o recorte nacional para a compreensão das origens do capitalismo é uma pista muito da falsa – os processos de “colonização interna” e “colonização externa” estão profundamente arraigados, embora os primeiros tenham precedido os segundos, que foram uma tentativa frequentemente fracassada de repetição deles. Em suas palavras, a crescente massa despossuída pelo capitalismo agrário ofereceu uma população excedente para a expansão colonial de uma forma que, por exemplo, a sociedade camponesa da França nunca conseguiu. Assim, também o desenvolvimento interno da agricultura alimentou a colonização, o que ajuda a explicar porque, de todas as principais potências europeias, a Inglaterra teve maior sucesso no recrutamento de colonos. (...) As colônias ajudavam a manter a ordem social no país, ao mesmo tempo em que aumentavam a supremacia comercial da Inglaterra ao elevar sua vantagem competitiva. (...) [A Irlanda] foi o primeiro de muitos casos em que as contradições irredutíveis do capitalismo – como a contradição entre a pressão para expandir os imperativos de mercado da concorrência e a necessidade de resistir à concorrência, ou entre a necessidade de aumentar a demanda e a tendência a restringi-la pelo empobrecimento das populações sem posse e exploradas – se fizeram sentir na política colonial. 641

E a autora faz questão de enfatizar a importância da ciência da economia política [gostaríamos de acrescentar: burguesa – toda ela] para a execução das políticas em questão. O que daria o critério seria exatamente a justificação da propriedade privada, enquanto diferença “entre os padrões não capitalistas de imperialismo comercial e a nova concepção de império” por meio da crítica de diversos autores da época como 638 P.

68.

639 Páginas 640 P.

71. 641 P. 73.

71 e seguintes.

287

Petty, Burke e Locke que procuraram defender a justificação da propriedade nas “melhorias” sobre a terra – em oposição ao poder divino, a “tradição” e os monopólios, por exemplo. E isso, a despeito de que “os ingleses [...] nunca mais conseguiram reproduzir em nenhuma outra colônia as relações de propriedade características da Inglaterra, por mais que tentassem universalizar a ‘tríade’ proprietário, locatário e trabalhador assalariado”. Ainda assim, “o novo imperialismo [sic] continuaria a oferecer oportunidades de produção lucrativa nas colônias e insumos para a produção no país, além de uma válvula de segurança para os trabalhadores excedentes criados pelo aumento da produtividade do trabalho”. 642 Para os nossos fins específicos é importante darmos atenção ao fato de que, neste passo do seu argumento, a autora chama já esse imperialismo inglês – que ela apontará como movido pelos imperativos capitalistas – como “novo imperialismo”, sendo que depois chamará também o imperialismo estadunidense do pós-guerra de “novo imperialismo”. É evidente que sempre que houver uma mudança substancial nas características utilizadas para se definir uma coisa ela pode ser chamada, em grande medida, de “nova” em relação às anteriores. Mas nos parece que na tentativa de distinção entre os impérios da Inglaterra e dos Estados Unidos a autora força a mão com o intuito de enfatizar o argumento de que o inglês ainda não foi suficientemente capitalista nos termos que o estadunidense viria a ser. Mas não nos adiantemos tanto. Aqui a autora argumenta que, em relação às formas anteriores de império, o britânico representava um “novo tipo de império” movido por “imperativos econômicos”. Contudo,

642

Mesma página.

288

por mais que se apresentasse como uma busca pacífica por produção e comércio, foi no mínimo tão violento quanto qualquer outro. A Inglaterra evidentemente não abandonou as rivalidades extraeconômicas que determinavam a supremacia comercial entre as potências europeias. Pelo contrário, a Grã-Bretanha passaria a se valer de uma enorme força naval para impor sua dominação sobre as redes internacionais de comércio. A nova lógica de apropriação capitalista por meio da produção competitiva lançou uma base para a competição econômica como alternativa [sic] à rivalidade extraeconômica, e para imperativos econômicos como alternativa [sic] ao governo colonial direto; mas um longo tempo se passaria até que esses imperativos se tornassem suficientemente generalizados e poderosos para reduzir a necessidade de coerção colonial direta e do controle do comércio por meios militares. Ao mesmo tempo, o novo modo de apropriação criou necessidades inteiramente novas de violência militar, inclusive na conquista de estabelecimentos coloniais – e o capitalismo continuou desde então a gerar novas formas de guerra e novas razões para ela. 643

Destacamos o termo “alternativa” por uma razão muito precisa: a autora, tanto neste livro quanto noutras partes da sua obra, faz questão de refutar a hipótese – frequente na historiografia de inspiração liberal – de que o mercado (comumente entendido, distinções formais à parte, como idêntico a “econômico”) é uma possibilidade e insiste em termos como “compulsão” e “imperativos”

. Para nós, a confusão parece

644

derivar daquela forçada de mão, agora expressa na tentativa de apresentar uma distinção entre o imperialismo talvez não completamente capitalista britânico e o imperialismo suposto completamente capitalista estadunidense. Notemos nas passagens seguintes como a autora procura carregar as tintas na distinção tanto entre os impérios capitalistas com relação aos demais como entre si. Novamente gostaríamos de deixar claro que concordamos plenamente com a necessidade de explicitar as especificidades, mas julgamos que a autora não oferece aqui respostas que superem as dificuldades que ela mesma percebe. E isso, inclusive pela maneira como define “capitalismo”. Conforme seus próprios termos,

643 P.

74. O argumento provavelmente mais bem desenvolvido o longo de sua obra pode ser encontrado na seção “Oportunidade ou imperativo?” na Introdução de A Origem do Capitalismo (pág. 15 e seguintes), onde a autora afirma que “No modelo clássico, [...] o capitalismo é uma oportunidade a ser aproveitada, onde e sempre que possível. Essa idéia de oportunidade é absolutamente crucial para a compreensão convencional do sistema capitalista, estando presente até mesmo em nossa linguagem cotidiana. Consideremos o uso corriqueiro da palavra que está no cerne do capitalismo: mercado. Quase todas as definições de ‘mercado’ nos dicionários conotam uma oportunidade: como local ou instituição concreta, o mercado é o lugar onde há oportunidade de comprar e vender; como abstração, o mercado é a possibilidade de venda. [...] Mercado implica oferta e escolha. [...] Na ideologia capitalista, o mercado não implica compulsão, mas liberdade. [...] a característica distintiva dominante do mercado capitalista não é a oportunidade nem a escolha, mas, ao contrário, a compulsão.” Assim, no mínimo a escolha do termo “alternativa” nos parece equivocada nos próprios termos da autora. 644

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o capitalismo é movido exclusivamente [grifo nosso] por imperativos econômicos: de um lado, a falta de propriedade dos produtores, que os leva a vender sua força de trabalho em troca de salário, e, de outro, a sujeição dos apropriadores à compulsão do mercado que os obrigam a competir e acumular. Mas esses imperativos econômicos exigem força extraeconômica para serem implantados e sustentados. 645

Definitivamente não conseguimos compreender a insistência da autora de que os imperativos econômicos são a maneira exclusiva (sic) pela qual o capitalismo é movido ao mesmo tempo em que esses imperativos econômicos exigem (sic) “força extraeconômica” tanto para serem implantados quanto para serem sustentados [acrescentaríamos: em sua condição “normal”]. Preferíamos – ainda que com reservas – que a autora mantivesse a idéia de “preponderância”. Não porque achemos a distinção melhor, mas porque julgamos que seria mais adequada ao que a autora virá afirmar mais à frente, que parece uma formulação ligeiramente distinta, mas muito mais explicativa; a saber: que as relações sociais capitalistas movidas pelo “econômico” ressignificam o “político”. 646 O argumento prossegue com a explicitação da necessidade de o “extraeconômico” implantar e sustentar o “econômico”. Neste momento, a autora disserta sobre as “circunstâncias diferentes” das Colônias na América onde foi executado o “genocídio” “dos povos indígenas”

. Ainda dentro de sua hipótese, junto com várias outras

647

manifestações, como reflexo da “brutalidade genocida da colonização inglesa648” que a autora considera ainda maior que a das outras potências coloniais. Na sequência, reaparece e ganha importância um aspecto fundamental para o argumento da autora: a mudança nas concepções da propriedade. Segundo ela, essa propriedade já assume, então, nas colônias britânicas, ares capitalistas, e com relação às

P. 75. Noutro trecho em que a autora oferece uma definição do tipo “o capitalismo é”, oferece a seguinte definição: “O capitalismo, para começar, é um sistema caótico, em que as classes apropriadoras não exercem diretamente a força ‘extraeconômica’ que sustenta os poderes econômicos de expropriação. No entanto, trata-se de um sistema que precisa, mais do que outras formas sociais, de estabilidade social, jurídica e administrativa, de previsibilidade e de regularidade, a fim de sustentar as condições rigorosas de acumulação de capital. O tipo de regulação minuciosa que o sistema requer tem sido fornecido pelo Estado territorial, e nenhuma forma de ‘governança global’ ainda concebível pode fornecer a ordem jurídica e administrativa necessária ao dia a dia.” (pág. 138) 646 Sob nosso ponto de vista, que defenderemos algumas vezes mais, este argumento que aceita a distinção entre economia e política é mal colocado desde o seu ponto de partida. 647 P. 75. 648 P. 77. 645

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“formas tradicionais de império”, “a divergência é visível não só em suas relações com a população nativa, mas até mesmo em suas concepções diferentes de res nullius” 649. Diante da centralidade das concepções de propriedade, a autora defende que um ponto privilegiado para a observação das formas de pensamento da época é a teoria de John Locke. Segundo sua visão, Locke “[...] imaginou uma teoria da propriedade-trabalho, que poderia justificar não somente a expulsão ou o cercamento no país, mas também a expropriação colonial650”. “Com efeito”, reitera a autora, Locke forneceu uma estrutura teórica para o princípio já enunciado por Sir John Davies na Irlanda: que o critério essencial na justificação da expropriação colonial era o valor, e que esse valor devia ser julgado pelo padrão das ‘melhorias’ inglesas. Para Locke, a América era o estadomodelo da natureza, em que toda terra estava disponível para apropriação, porque, apesar de com certeza ser habitada e até às vezes cultivada, não havia comércio adequado, portanto, nenhuma ‘melhoria’, nenhum uso produtivo nem lucrativo da terra; logo não havia propriedade real. Como Davies havia feito na Irlanda, Locke comparou o valor da terra sem melhorias na América com o valor muito maior da terra na Inglaterra. Essa diferença enorme era determinada não por qualquer variação do valor ‘intrínseco’ da terra nos dois casos – sua fertilidade e qualidade natural –, mas pelo valor de troca criado na produção, que dependia não somente das melhorias na produção, mas da existência de um sistema comercial que estimulasse e gerasse lucros. A criação de valor estabelecia um direito de propriedade onde nunca existira propriedade individual. Essa teoria da propriedade justificava ao mesmo tempo as práticas dos colonizadores nas Américas e de proprietários de terras capitalistas no país. 651

Não é fortuito, para Wood, que se tratava de “interesses perfeitamente combinados na pessoa do mentor de Locke, o primeiro conde de Shaftesbury652” mas a importância das teses lockeanas transcendem em muito esses interesses particulares, e cumpriram papel central na justificativa imperialista. Isso porque, continua nossa autora,

P. 76. A autora havia argumentado que “o princípio legal romano de res nullius [...] decretava que toda ‘coisa vazia’, como terra não ocupada, era propriedade comum até ser posta em uso – no caso da terra, especialmente uso agrícola. Essa seria uma justificação comum da colonização europeia” (pág. 63, do capítulo 3: O império do comércio, quando a autora estava comentando sobre a concepção jurídicopolítica de Hugo Grócio). Ellen Wood acrescenta em nota da mesma página que “Anthony Padgen tem uma discussão útil sobre esse princípio e seu uso, particularmente pelos ingleses e, em menor grau, pelos franceses, e sobre as razões para sua ausência na ideologia imperial espanhola. Ver Lords of All the World, cit., p.77. O princípio foi obviamente mais útil nos casos em que o imperialismo assumia a forma de colônias que deslocavam as populações locais e tiveram pouca utilidade para os espanhóis, com seu império de conquista explícita de territórios em geral densamente habitados e cultivados”. 650 P. 79. 651 Páginas 79 e 80. 652 P. 81. 649

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comentadores indicaram que Locke introduziu uma importante inovação no princípio do res nullius aos justificar a apropriação colonial de terras não usadas sem o consentimento do soberano local e forneceu aos colonizadores um argumento que justificava suas ações com base na lei natural, sem nenhuma referência à autoridade civil. [...] Mas há uma coisa ainda mais característica na argumentação de Locke, que deve menos às tradições legais e filosóficas pan-européias que à experiência específica da Inglaterra e às relações de propriedade no país antes mesmo de suas iniciativas coloniais. [...] A questão é, na verdade, que o direito de propriedade se origina na criação de valor. Sua famosa teoria da propriedade-trabalho no quinto capítulo do seu livro Second Treatise of Government, segundo a qual nós adquirimos propriedade de alguma coisa quando ‘misturamos’ a ela nosso trabalho, é cheia de complexidades (inclusive a questão do trabalho de quem, já que o senhor tem direito à propriedade resultante do trabalho do seu servo), que por razões de espaço não será explorada aqui. Mas isto está enfaticamente claro: a criação de valor é a base da propriedade. O trabalho estabelece um direito de propriedade porque é o trabalho que ‘põe a diferença de valor em tudo’. E o valor em questão não é valor ‘intrínseco’, mas valor de troca. 653

Ao que comenta ser “[...] significativo que essa importante contribuição à justificação imperial seja uma teoria dos direitos de propriedade”, mas uma que “[...] baseia a expansão colonial numa concepção nova, essencialmente capitalista, de propriedade”

. Nos termos de Ellen Wood, na “teoria da propriedade de Locke,

654

podemos observar o imperialismo se tornando uma relação diretamente econômica” – não sem acrescentar, como de costume – “mesmo que essa relação exija força brutal para ser implementada e sustentada. Essa espécie de relação não pode ser justificada pelo direito de governar, nem mesmo simplesmente pelo direito de apropriar, mas sim pelo direito – na verdade a obrigação – de produzir valor de troca655”. Já podemos notar claramente os ecos do “fetichismo jurídico” que denunciamos no capítulo anterior e que permeiam o argumento de Ellen Wood do começo ao fim. Para ela, que faz questão de enfatizar a importância das relações sociais, é a mudança da justificação da propriedade que provoca a expulsão das pessoas de suas terras comunais,

P. 80. P. 81. 655 P. 81. 653 654

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originando tanto o capitalismo quanto o imperialismo capitalista – justificado essencialmente nos mesmos fins656. Em resumo, temos que a Inglaterra do início da modernidade, assim como outras potências comerciais, estava engajada nas mesmas rivalidades internacionais; desnecessário dizer que a expansão do Império Britânico continuaria a exigir enorme força militar e particularmente uma marinha poderosa. Mas já havia algo de novo na teoria e na prática do império, e encontramos sua melhor expressão em Locke. Nele vemos o início de uma concepção de império enraizada em princípios capitalistas, na busca pelo lucro derivado não somente do comércio, mas da criação de valor na produção competitiva. É uma concepção de império que não tem a ver somente com o estabelecimento de domínio imperial ou supremacia comercial, mas com a ampliação da lógica e dos imperativos da economia interna e a atração de outros países para sua órbita. Apesar de o imperialismo capitalista nunca abrir mão das justificativas mais tradicionais para a expansão imperial, ele então acrescentou armas inteiramente novas ao arsenal ideológico, assim como fundou novas relações sociais de propriedade, que geraram efeitos na economia do país e nas estratégias de expansão imperial. 657

Mas nem tudo é “econômico” no império “puramente econômico” – estamos forçando a barra, porque a autora poderia argumentar que a Inglaterra não foi

A título de ilustração do fetichismo do jurídico nas obras da autora, podemos citar, em A origem do capitalismo, a página 97, em que a autora afirma que “já deve estar claro, a esta altura, que o desenvolvimento de formas características de propriedade na agricultura inglesa acarretou [grifo nosso] novas formas de luta de classes. Também nesse caso, podemos destacar a especificidade do capitalismo agrário, contrastando a situação inglesa com a francesa. As diferenças nas formas de propriedade e nos modos de exploração que caracterizaram essas duas grandes potências europeias, como vimos, refletiramse em questões e campos diferentes da luta de classes, bem como em diferentes relações entre a classe e o Estado”. Mas também a página 102, em que afirma que “a transformação das relações sociais de propriedade enraizou-se firmemente no campo, e a transformação do comércio e da indústria ingleses foi mais o resultado do que causa da transição da Inglaterra para o capitalismo”. Ou ainda a página 111, em que afirma que “Somente uma transformação das relações sociais de propriedade que obrigou as pessoas a produzirem competitivamente (e não apenas comprarem barato e venderem caro), uma transformação que fez com que o acesso aos meios de auto reprodução passassem a depender do mercado, é capaz de explicar a drástica revolução das forças produtivas que foi singularmente característica do capitalismo moderno.” Poderíamos, mas não sem nos estendermos em demasia, acrescentar várias outras passagens nas quais nos parece que a autora superdimensiona o jurídico e, mesmo, o coloca como causa das transformações. É verdade que, em defesa da autora, pode-se levantar outras passagens em que ela “relativiza” o problema e coloca que a centralidade é a relação social de propriedade. Sem dúvida, sob nosso ponto de vista, Ellen Wood é uma autora que percebe uma quantidade muito grande de problemas teóricos e procura evita-los relativizando os termos, acrescentando aspas e outros artifícios – legítimos – do tipo. Entretanto, nos parece que, em muitas passagens, essa dificuldade demonstra claramente que os termos estão sendo equilibrados à força e haveria benefícios caso fossem formulados noutros termos. No caso específico do entendimento da esfera jurídica, quando fala da propriedade privada como causa de transformações radicais na história do mundo, a autora dá ênfase de menos no fato evidente de que são essas próprias transformações que transformam a propriedade. Com relação à sua narrativa sobre a relação entre a propriedade privada e as transformações sociais, nos parece que a autora frequentemente vacila ante o problema que ela mesma denuncia com vigor: presume o que deveria ser explicado: as transformações na propriedade privada. 657 P. 82. 656

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suficientemente capitalista, mas não nos parece que o contrário poderia ser dito dos Estados Unidos, como veremos. Para ela, evidentemente, as justificações econômicas do império nunca seriam suficientes. Desde o início, por exemplo, os ingleses representaram os irlandeses ou ameríndios, por uma ou outra razão, como seres inferiores. Mas, mesmo quando tiveram de recorrer a essas ideologias extraeconômicas, as defesas do imperialismo foram profundamente afetadas pelo uso dos imperativos econômicos por parte do capitalismo. 658

Mas aqui haveria uma incongruência fundamental, porque “dado que a exploração pela classe capitalista assume a forma de uma relação de mercado, ela não pode ser facilmente justificada invocando hierarquias de status cívico ou legal, como a relação entre senhores feudais e servos”. “Pelo contrário”, adverte a autora, “a relação entre capital e trabalho é geralmente apresentada como um contrato entre indivíduos legalmente livres e iguais”. Seria então, um “paradoxo”: esse uso de modos puramente econômicos de exploração e a supressão de identidades e hierarquias extraeconômicas tornaram de fato o capitalismo compatível com ideologias de liberdade e igualdade cívicas de tal modo que os sistemas não capitalistas nunca foram. É mesmo possível mobilizar essas ideologias para justificar o sistema capitalista como epítome da liberdade e da igualdade. Ainda assim, ao menos durante algum tempo, quando as ideologias de liberdade e igualdade enfrentaram as realidades do imperialismo e da escravidão, o efeito foi intensificar o racismo como substituto de todas as outras identidades extraeconômicas deslocadas pelo sistema. 659

A questão toda da especificidade desse imperialismo capitalista, assim, parece ocorrer no campo da procura e obtenção de regimes de justificações. Deste modo, “a indisponibilidade de categorias e hierarquias de imputação, como as diferenças de condição legal que definiam as relações feudais, significou que o imperialismo e a escravidão tinham de ser justificados por outros meios660”. “Tudo que sobrou do espectro do trabalho dependente”, “deslocado” pelos cercamentos “foi a escravidão; e, se ideologias hoje esquecidas de hierarquia e de status legal não podiam mais ser invocadas, outra justificação tinha de ser encontrada”. Como resultado, houve a “atribuição de um novo papel ideológico a concepções pseudobiológicas de raça, que

Mesma página. Mesma página. 660 Mesma página. 658 659

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excluíam certos seres humanos não simplesmente por lei, mas pela natureza, do universo normal da liberdade e igualdade661”. Neste momento do texto, na seção “Os britânicos na América”, a autora insiste que está se constituindo naquele momento um “novo imperialismo capitalista662” – aquele dos imperativos “puramente econômicos” – que, contudo – o “paradoxo” tem que marcar presença – convive e intensifica o “infame tráfico de escravos663”– “o maior crime do imperialismo europeu664”. Mas isso não é coisa do capitalismo, ainda que o capitalismo dele se valha. Nas palavras da autora “o aumento da escravidão nas colônias inglesas é um exemplo notável de como o capitalismo, e alguns pontos de seu desenvolvimento, apropriou para si próprio, e chegou mesmo a intensificar, os modos não capitalistas de exploração665”. Em sua definição, tudo o que é do capitalismo precisa ser o “econômico”, o “legalmente” constituído enquanto relação de “propriedade” ou ausência de relação de “propriedade”. E esse arcabouço também serve para explicar o processo de independência dos Estados Unidos em relação à Grã-Bretanha. Como a Grã-Bretanha, apesar de todo o seu esforço lançado a esse objetivo, não conseguiu impor além-mar suas relações “internas” de propriedade, “[...] as ligações políticas e econômicas entre a América colonial e o poder imperial iriam se enfraquecer, e, embora fossem baseadas em princípios derivados do capitalismo agrário inglês, as colônias inevitavelmente desenvolveram suas próprias relações características de propriedade666”. A partir daí, “se a crescente economia capitalista na sede do império ainda não estava suficientemente desenvolvida e poderosa para exercer controle por meio da pressão econômica, a geração de imperativos capitalistas na economia colonial também não era um problema simples, e o processo de desenvolvimento nas colônias seguiu um curso próprio667”. Destarte, como dissemos, a Grã-Bretanha não conseguiu exportar as relações de propriedade e “[...] uma grande proporção de produtores agrícolas na região média do Atlântico permaneceu durante algum tempo fora da órbita dos imperativos capitalistas” ou, “no mínimo, os imperativos econômicos que emanavam do poder imperial eram ainda mais fracos que P. 83. P. 84. 663 Mesma página. 664 A origem... P. 109. 665 O Império do Capital, p. 84. 666 P. 87. 667 Mesma página. 661 662

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antes.” Isso, segundo Ellen Wood, seguindo de perto o argumento de outrem, só iria mudar com a Independência, quando, “ironicamente, a liberdade em relação aos imperativos capitalistas, como afirmou Charles Post, iria mudar de maneira radical”, pois os custos e as rupturas da guerra, as demandas dos governos e as atividades dos comerciantes e especuladores de terras tornaram os pequenos e médios fazendeiros cada vez mais dependentes da produção de mercadorias apenas para manter sua terra diante do aumento de dívidas e impostos. Eles poderiam permanecer como produtores independentes de mercadorias, mas estariam sujeitos aos imperativos de mercado. Ainda assim, evidentemente, o beneficiário desse desenvolvimento não foi o poder imperial. Quem lucrou com ele foram as elites coloniais. Como os produtores independentes se tornaram dependentes do mercado para garantir a posse da terra e sua própria sobrevivência à medida que eram atraídos inexoravelmente pelos imperativos do mercado, pouco se podia fazer para impedir a dominação política e econômica dos comerciantes do norte e dos plantadores do sul, ou o desenvolvimento do novo Estado como um poder imperial em si mesmo. 668

É evidente que o processo de independência de uma de suas mais importantes colônias – que se diga, junto com outras, provavelmente menos importante que a Índia, por exemplo – afetaria os rumos do Império Britânico. Ainda nas palavras de Ellen Wood, foi, então, contra esse pano de fundo que o segundo Império Britânico tomou um curso muito diferente [...]. O poder imperial tinha aprendido algumas lições com suas tentativas de estabelecer um império que dependesse da força dos imperativos econômicos até então nem expansivos nem suficientemente fortes para se impor a economias coloniais distantes. O efeito combinado dessas diferenças foi a instalação de um império na Índia que teve mais em comum com os impérios não capitalistas do que as colônias inglesas anteriores na Irlanda e na América, ou mesmo as colônias de plantation no Caribe. Começando como um império comercial controlado por uma companhia monopolista, a dominação britânica tomou a forma de um império territorial governado pelo Estado imperial. Sob esses dois aspectos, era um império essencialmente não capitalista em sua lógica. Ainda assim, na transição de um para o outro bem como a evolução subsequente do governo imperial britânico, foram modeladas pelo desenvolvimento capitalista na Grã-Bretanha. 669

Tentando simplificar, o argumento é que os imperativos “econômicos” do mercado capitalista compunham a lógica do império britânico, mas não eram suficientemente fortes para que se pudesse confiar neles para exercer o imperialismo. Voltando àquela passagem da “alternativa”, parece que o império, diante da 668 669

P. 88. Mesma página.

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impossibilidade de implementar o império capitalista definitivamente assentado em imperativos “puramente econômicos”, lança mão de recursos “não capitalistas”. Não nos espanta, repetimos, que o debate que seguiu a publicação do livro tenha se constituído em tantos mal-entendidos. A autora parece contrariar o que havia postulado em sua obra sobre A origem do capitalismo e não sabemos precisar se o seu argumento efetivamente versa sobre como os imperativos do mercado a partir do campo inglês se impõe ou se se tratava de uma “alternativa”. Mas o fato é que, para ela, “quando o império na Índia se tornou uma forma mais – e não menos – tradicional de imperialismo não capitalista, baseada na extração extraeconômica de impostos por meio da tributação, ele se tornou também cada vez mais um despotismo militar670” – que não pode ser capitalista, porque não é “econômico”. Então, de acordo com as suas definições, somente pode ser “não capitalista”. Ou seja, em busca dessa forma de riqueza não capitalista, a Companhia usou seu poder econômico e militar para estabelecer relações de propriedade na Índia que lhe garantiriam uma fonte segura de renda. Longe de ‘modernizar’ o país, a Companhia, com a ajuda do Estado britânico, reverteu a formas mais antigas, não capitalistas. Essa estratégia de ‘tradicionalizar’ a sociedade indiana recebeu a culpa pela reversão do desenvolvimento econômico e social da Índia por meio do arraigamento, ou mesmo da criação, de formas arcaicas de relações entre proprietários e camponeses. 671 Assim como as classes proprietárias de terras dependiam da extração de excedentes dos camponeses à maneira não capitalista, o império da Companhia Britânica das Índias Orientais se apoiava sobre a mesma base. Evidentemente, isso significava mais aventuras militares para assegurar sua base territorial. 672

Mas como, para Wood, a essa altura as justificativas para o império se assentavam mais na teoria da propriedade de Locke do que em imperativos não capitalistas, lembra que houve resistência interna na Inglaterra ao recurso a meios extraeconômicos, como por exemplo, por parte de Edmund Burke, “conhecido crítico do império na Índia”, que

P. 89. Mesma página. 672 Páginas 89 e 90. 670 671

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comandou um comitê parlamentar seleto que atacou a Companhia com base no fato de seus princípios econômicos terem sido ‘completamente corrompidos, transformando-a num veículo de impostos’. Ela deveria, segundo argumentou o comitê, ‘fixar seu comércio sobre uma base comercial’. 673

Para nós, parece que para Ellen Wood, o imperialismo britânico poderia ser caracterizado como uma sorte de “transição” – este termo é polêmico, e não é dela, estamos procurando entender seus termos e sugerimos esse acréscimo que ela a nosso juízo não recusaria – entre imperativos “puramente econômicos” que convivem em tensão com imperativos “extraeconômico” – aliás, a própria autora diz que eles nunca deixaram de conviver, nem em nossos dias. Deste modo,

673

P. 90.

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nessa fase do imperialismo britânico, na era Robert Clive674 e Warren Hastings675, quando o Estado imperial afirmava seu controle, houve reformas dirigidas à criação de um clima mais favorável ao lucro comercial. Entre elas, o estabelecimento de direitos de propriedade [T.F.F. sempre eles] capazes de resistir à extração de renda, bem como reformas legais e políticas propostas para transformar o Estado de instrumento de apropriação privada em aparelho de administração pública. Em outras palavras, sem enfraquecer o controle do poder imperial, a intenção era chegar a algum tipo de separação entre o econômico e o político à maneira capitalista. 676 Mas sempre houve pressões contraditórias, que levaram o Estado imperial a uma lógica de governo não capitalista, a um sistema de relações de propriedade [sempre elas] definidas para permitir a extração de rendas pela companhia e pelo Estado, presidido por um poder militar totalmente abrangente. A própria existência de um império territorial, bem como as condições de sua manutenção, geraram seus próprios requisitos, que por vezes contrariavam os imperativos comerciais. Mas as pressões eram econômicas tanto quanto políticas e militares. Eram não somente uma resposta às tensões inevitáveis de governar um enorme território colonial, que sempre ameaçava resistir à dominação imperial, mas, paradoxalmente, também uma consequência do desenvolvimento capitalista na Grã-Bretanha. Como o capitalismo britânico integrava o mercado internacional de forma a sujeitar a produção indiana às pressões da competição capitalista, a depressão de preços dos produtos indianos simplesmente agravou os efeitos imperiais na supressão da indústria indiana. Isso aumentou as atrações relativas da Índia como fonte de renda extraída diretamente da terra, e não as de oportunidade comercial, e fortaleceu a motivação imperial para reverter às formas não capitalistas de exploração coercitiva direta. 677

Assim, ao mesmo tempo em que o Estado britânico se envolvia cada vez mais na Índia como meio de resgatar o império da lógica não capitalista imposta pela Companhia Britânica das Índias Ocidentais, era constantemente atraído para essa lógica não capitalista da Companhia e do Estado militar. As necessidades de um império baseado nos imperativos capitalistas foram substancialmente diferentes das de um império baseado na coerção militar direta e na apropriação de excedentes por meios extraeconômicos. 678

Mas parece que, embora o “novo imperialismo capitalista” britânico estivesse “enraizado” nos imperativos internos de mercado que se originaram nas transformações da propriedade da terra na Grã-Bretanha, ainda não era o momento de o imperialismo capitalista definitivamente implementar suas bases – cremos que a autora refutaria com violência os termos com os quais vimos comentando seu livro, dado ser exatamente o https://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Clive https://en.wikipedia.org/?title=Warren_Hastings 676 P. 90. 677 P. 91. 678 Mesma página. 674 675

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tipo de postura que ela procura combater nos seus trabalhos sobre a origem do capitalismo, mas é o que parece persistir quando empreendemos a reconstituição do argumento, a despeito de essa não ser aparentemente sua intenção. Pode ser que estejamos, como a autora acusa seus comentadores, usando uma “lente distorcida679”. Ou pode ser que a autora insista em termos, não “paradoxais”, como ela preferiria, mas ambíguos. E pode ser que os termos formais com os quais procura apresentar a especificidade

do

imperialismo

capitalista

não

sejam

os

mais

adequados.

Independentemente de nosso juízo, o que a autora afirma é que sem dúvida, além da carnificina convencional da violência militar, os imperativos econômicos geraram suas próprias necessidades de opressão coercitiva e foram responsáveis por atrocidades como a matança e a mutilação em grande escala dos trabalhadores que construíram a ferrovia. Mas o imperialismo capitalista exigia formas de propriedade diferentes das usadas pelo imperialismo não capitalista e condições que permitissem que os imperativos do mercado regulassem a economia. Em geral, essa pode ter sido a direção em que o Estado imperial tentava se mover, mas as condições na Índia e a lógica do próprio império – inclusive o período de rebelião, culminando no motim de 1857 – reafirmaram constantemente a primazia do Estado militar. A evolução do Império Britânico continuaria a exibir essas tendências contraditórias, oscilando entre a ‘modernização’ e a ‘tradicionalização’, enquanto os imperativos do capitalismo eram constantemente compensados pela lógica de um Estado militar imperial, que impunha seus próprios imperativos. 680 Aparentemente, o desvio do império comercial para o territorial parece argumentar contra a proposição de que o capitalismo traz consigo uma tendência a substituir formas extraeconômicas de exploração pelas econômicas e a expansão dos imperativos econômicos para além do alcance do poder extraeconômico. Ainda assim, visto de um ângulo diferente, o desenvolvimento contraditório do Império Britânico na Índia é um reflexo, não uma refutação, daquela primeira premissa fundamental. A tentativa de construir um império territorial sobre imperativos capitalistas estava condenada ao fracasso, ou ao menos à obrigação de enfrentar contradições insuperáveis. 681

No final das passagens sobre o Império Britânico, afirma que “um império de coerção, violência, butim e pilhagem constantes”, ou seja, um império não capitalista, “pode ser autolimitador, talvez por sua manutenção ser muito cara, mas certamente porque mais cedo ou mais tarde ele destrói a própria fonte de sua riqueza; mas, enquanto dura, ele pode gerar grandes lucros.”

P. 128. P. 91. 681 Mesma página. 679 680

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Em comparação, a lucratividade do imperialismo capitalista só se completa quando os imperativos econômicos se tornam suficientemente fortes para se estender além do alcance de qualquer poder extraeconômico imaginável e para se impor sem a administração e coerção diárias de um Estado imperial. A enorme riqueza da Índia e as grandes oportunidades que oferecia para o saque imperialista retardaram o dia do acerto de contas; mas o Império Britânico na Índia acabou ficando, o que era inevitável, entre a cruz e a caldeira. Imperativos econômicos fortes e abrangentes o bastante para serem instrumentos confiáveis de dominação imperial pertencem aos séculos XX, provavelmente apenas após a Segunda Guerra Mundial – que coincide com a independência da Índia. 682

Vamos procurar reconstituir o argumento de maneira cuidadosa, tentando ver como a autora tenta distinguir o império estadunidense – efetivamente capitalista, para ela – do império britânico – capitalista, pero no mucho, ainda para ela. 7.2 Uma “nova fase” do Império do Capital: Império Estadunidense Em seus próprios termos, o Império Britânico levou os imperativos capitalistas até os cantos mais distantes da terra, mas o fez com sucesso limitado e resultados contraditórios. Enquanto a internacionalização do capitalismo dependeu do controle político e militar direto dos territórios subjugados, as demandas do governo colonial entraram inevitavelmente em conflito com os imperativos econômicos. [...] O crescimento do capitalismo até se tornar um poder global universal e a globalização de seus imperativos iriam exigir um conduto diferente da simples força imperial. 683

Não concordamos de modo algum com a caracterização de qualquer força imperial como “simples”, mas para além da implicância com o termo, nos cumpre a reconstituição do argumento para demonstrar nossa hipótese de leitura: por mais que a autora tenha como preocupação central do seu trabalho a procura pelas especificidades do imperialismo capitalista em relação a outras formas de império – especialmente o imperialismo do pós-Segunda Guerra –, ainda assim essa especificidade não é clara. Senão por conta da insistência da “separação do ‘econômico’” – conforme voltaremos – pela insistência de que isso acontece apenas na segunda metade do século XX. Além disso, constitui elemento fundamental para o argumento de Ellen Wood a refutação de que outros impérios que concorreram com a Grã-Bretanha no assim chamado período da “era clássica” do imperialismo poderiam estar sendo movidos pelos “imperativos

682 683

P. 92. P. 93.

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capitalistas”, ainda que, sempre partindo da Grã-Bretanha, esses imperativos estivessem se “expandindo”. Segundo suas palavras, a expansão dos imperativos capitalistas por meios econômicos, e não por dominação imperial direta, começou não nos territórios coloniais, mas muito mais próximo de casa. Paradoxalmente, seu conduto principal não foi a coerção colonial, mas os Estados nacionais soberanos dos principais rivais europeus da Grã-Bretanha. Apesar de os britânicos terem sujeitado seus vizinhos a seus imperativos econômicos, isso não teve o efeito de estabelecer sobre eles a hegemonia britânica. Pelo contrário, os maiores Estados europeus mobilizaram suas economias para fortalecer suas posições nas rivalidades interestatais e interimperialistas. O poder econômico pode ter assumido novas formas sob a influência do capitalismo britânico, mas foi pressionado a se colocar a serviço de velhos objetivos geopolíticos e militares. 684

O recorte nacional da sua explicação – de alcance explicativo bastante limitado – fica evidente, mais uma vez, na comparação do desenvolvimento do capitalismo “na Inglaterra”, “na França” e “na Alemanha”. A autora se esforça por demarcar com cuidado as “especificidades” de cada uma das trajetórias, sempre relacionando a expansão imperial com os imperativos “internos” de cada um desses Estados-nação em processo de “modernização”. Os mecanismos pelos quais é possível estabelecer a “exportação” dos imperativos de mercado a partir da Inglaterra são as guerras e a geopolítica e a autora não emite nem sequer uma palavra sobre a exportação de “capital inglês” para os “rivais” – que constitui o elemento mais importante da explicação “clássica” sobre como os imperativos do imperialismo marcaram a rivalidade entre as potências capitalistas a partir da concentração de capital que sucedeu as crises de 1870. No próximo capítulo teremos a ocasião de reconstruir a explicação de Hilferding sobre a substituição da predominância da exportação de mercadorias e a centralidade da compreensão do processo de exportação de capitais – especialmente no entendimento de como a dinâmica capitalista de competição e “cooperação” que marca os oligopólios desde a sua gênese ajudam a explicar como os capitalistas britânicos acabaram por – evidentemente em aliança com as “elites locais” – fomentar, por meio da conformação do que Hilferding conceituou como capital financeiro, a concentração de capital na Alemanha e nos Estados Unidos; “simplesmente” respondendo à racionalidade capitalista. Em O Império do Capital, diferentemente dessa explicação “clássica”, tudo se passa como se cada um

684

P. 93.

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dos países fosse isolado dos demais – a não ser pela rivalidade geopolítica e pela guerra685. A França, por exemplo, segundo a autora, na época da Revolução de 1789 era “certamente uma sociedade vibrante e próspera, com um florescente setor industrial” e cujo “desenvolvimento tecnológico pode até sob certos aspectos ter superado o inglês”, “ainda assim” não passou pela “chamada Revolução Industrial” “como transformação social, “porque a economia era construída sobre relações sociais de propriedade que não impeliram o desenvolvimento autossustentado, como fez o capitalismo britânico” [grifos nossos] “A Revolução [Francesa] não transformou substancialmente as relações sociais de propriedades e certamente não numa direção capitalista” [grifos nossos] 686. Assim, o estímulo da guerra poderia ter incentivado certos tipos de produção industrial, mas não podia, por si só, impelir o desenvolvimento abrangente e autossustentado movido pelos imperativos capitalistas, enraizado na dependência de mercado dos produtores e apropriadores. [...] O império [francês], na verdade, apoiou-se em atitudes ‘extraeconômicas’, como a pilhagem em grande escala dos territórios conquistados, e a guerra foi paga com ainda mais guerra [...] 687

O argumento, portanto, é que o império francês “apoiou-se em atitudes extraeconômicas”. Mas não era exatamente o que havia dito sobre o britânico? E não será esse “apoio” uma questão absolutamente central – como a própria autora extensivamente argumenta na sequência – para o império estadunidense? Então qual é a especificidade, afinal? Prossigamos. Na sequência, a autora argumenta que, durante a chamada “era clássica do imperialismo” – bom relembrar, que antes tinha sido chamada pela autora de “novo imperialismo” – “os Estados europeus [...] se engajaram em campanhas ainda mais ferozes de expansão colonial e em conflitos em torno da divisão do mundo colonial”. E – bem lembrado – “esse é o momento histórico que produziu a própria idéia do imperialismo e gerou as principais teorias criadas para analisa-lo”. Neste momento do texto – para nossos objetivos específicos da tese é importante sublinhar – Ellen Wood afirma que “as teorias clássicas do imperialismo pertencem a uma era em que o capitalismo, apesar de bem avançado em partes do mundo, estava longe de ser um sistema verdadeiramente global”. Ainda insistindo na mesma nota, reforça que “o poder O raciocínio de Ellen Wood que comentamos pode ser acompanhado nas páginas 93 e seguintes de O império do capital. 686 P. 94. 687 P. 95. 685

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capitalista imperial certamente abraçou grande parte do mundo, mas o fez menos pela universalidade de seus imperativos econômicos do que pela mesma força coercitiva que sempre determinou as relações entre os senhores coloniais e os territórios subjugados688”. Considerando que o principal objetivo da autora é apontar a especificidade do imperialismo capitalista, pensamos que deveria dedicar um pouco mais de atenção aos argumentos daquelas “teses clássicas”, que ajudaram a forjar “a própria idéia de imperialismo” – ou, para sermos mais específicos que ela: que procuraram, como nossa autora, explicar a especificidade do imperialismo capitalista. Depois de dedicar tanto espaço para autores como Grócio, Petty e Locke, por exemplo, consideramos que a autora deveria comentar mais detidamente as teses que ela mesma julga “clássicas” sobre o imperialismo que ela própria está procurando definir. Em todo o seu texto dedica apenas um parágrafo para as teses de Lenin e um para as teses de Rosa 689. Nada mais. Para Ellen Wood, parece bastar o argumento de que os principais teóricos do marxismo se voltaram para a relação entre o capitalismo e “um mundo em grande parte não capitalista690”. Ignorando todo o restante da obra e da vida dxs autorxs “clássicxs” e a extrema importância que cada umx delxs dedicou à análise a ao combate das opressões “locais”, Ellen Wood afirma que “as teorias marxistas clássicas do imperialismo representaram um importante desvio de foco das operações internas das economias capitalista avançadas para as relações externas do capitalismo691”. A autora chega a afirmar que, além do fato de que “esses relatos foram profundamente esclarecedores com relação à época em que foram escritos” defende que até hoje não se demonstrou que eles estavam errados ao presumir que o capitalismo não seria capaz de universalizar seus sucessos e a prosperidade das economias mais avançadas, nem que as potências capitalistas mais importantes sempre dependeriam da exploração das economias subordinadas. 692

Os grifos, contudo, são nossos e em nossa opinião, são razões mais do que suficiente para que se dedique mais atenção a essas teses. Ellen Wood discorda. Para ela, essas teorias não servem para explicar o mundo contemporâneo – não entendemos muito bem por quais razões, mas o argumento parece caminhar no sentido de que P. 97. Cf.: P. 98. 690 Mesma página. 691 Mesma página. 692 P. 99. 688 689

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“tempos novos exigem teorias novas”. Mais quais as novidades que não podem ser explicadas pelas teorias “velhas”? Sua opinião é que “ainda não vimos uma teoria sistemática do imperialismo criada para um mundo em que as relações internacionais sejam internas ao capitalismo e governadas por imperativos capitalistas”, mas por quais razões? “[...] ao menos em parte, [...] porque um mundo de capitalismo mais ou menos universal, em que os imperativos desse sistema sejam um instrumento universal de dominação imperial, é um desenvolvimento muito recente693”. Nenhum esforço é direcionado para argumentar as razões pelas quais aquela teoria “clássica” não poderia explicar o imperialismo capitalista dos nossos dias a não ser o fato de que aquelxs autorxs viveram em um mundo não de todo tomado pelos imperativos “puramente ‘econômicos’” que definiriam para ela nosso tempo. A autora é peremptória em seu diagnóstico: o mundo emergiu da guerra com algumas das maiores potências imperiais em frangalhos. Mas, se a era clássica do imperialismo terminou efetivamente em 1918, e se os Estados Unidos já mostravam sinais de que se tornariam o primeiro império verdadeiramente econômico (não, evidentemente, sem contar com muita força extraeconômica e com uma história de violência imperial direta), várias décadas se passariam antes que surgisse claramente uma nova forma de império, o que não se pode afirmar ter acontecido antes da Segunda Guerra Mundial. Essa pode ter sido a última grande guerra entre potências capitalistas movida pela busca direta de expansão territorial para atingir objetivos econômicos [...]. Foi também o último conflito entre as potências capitalistas em que, apesar de perseguirem interesses econômicos, os principais agressores se valeram completamente da força extraeconômica, e não dos imperativos de mercado, sujeitando suas próprias economias ao controle total por Estados completamente militarizados. Quando as duas potências derrotadas, Alemanha e Japão, surgiram como os principais competidores da economia norteamericana, com grande ajuda dos vencedores, começou verdadeiramente uma nova era. Essa seria uma era em que a competição econômica – associada desconfortavelmente à necessária cooperação entre Estados capitalistas para assegurar seus mercados – superou a rivalidade militar entre as maiores potências capitalistas. O principal eixo do conflito geopolítico e militar teria lugar não entre potências capitalistas, mas entre o mundo capitalista e o não capitalista desenvolvido. 694

Já tivemos a ocasião de refutar o argumento de que a rivalidade entre as potências terminou e as razões pelas quais julgamos que o fato de que nas últimas décadas as potências não entraram em conflito direto em definitivo pode marcar uma 693 694

Mesma página. Mesma página.

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“nova era [...] em que a competição econômica [...] superou a rivalidade militar entre as maiores potências capitalistas”, mas nos cumpre prosseguir para acentuarmos o quanto a distinção feita pela autora entre o império (capitalista) britânico e o império (capitalista) estadunidense depende de uma visão curtoprazista – para não dizermos, talvez com certa dose de exagero, idílica – sobre a situação internacional do pós-guerra. Para ela, sempre procurando demonstrar a exclusividade dos “imperativos econômicos entre aspas”, sem buscar a expansão territorial direta, os Estados Unidos se tornaram a força militar mais poderosa do mundo, com uma economia altamente militarizada. Foi durante essa época que o propósito das potências militares se afastou decisivamente dos objetivos relativamente bem definidos de expansão imperial e rivalidade interimperialista para o objetivo genérico de policiar o mundo no interesse do capital (norteamericano). Esse padrão militar e as necessidades a que atendia não mudariam com o ‘colapso do comunismo’; e a Guerra Fria seria substituída por outros cenários de guerra sem fim. A Doutrina Bush descendeu diretamente das estratégias nascidas durante a Guerra Fria. 695

Para ela – provavelmente estamos próximos de uma definição da especificidade do imperialismo atual – “o novo imperialismo que viria a surgir do naufrágio do anterior não seria uma relação de senhores imperiais e súditos coloniais, mas uma interação complexa entre Estados mais ou menos soberanos”. Procuraremos, demonstrar que essa hipótese sobre o imperialismo “clássico” – não uma “interação complexa entre Estados mais ou menos soberanos”, mas uma relação “simples” entre “senhores imperiais e súditos coloniais” – é absurda, ainda que concordemos que “o imperialismo capitalista certamente absorveu o mundo em sua órbita”696. Isso é o que vimos argumentando desde o princípio. Os próximos passos de nossa autora giram em torno da idéia de que, apesar de seus imperativos serem “puramente ‘econômicos’”, o império do capital depende cada vez mais da força “extraeconômica”, para ela, um “paradoxo”. Ainda para ela, “o novo imperialismo, diferentemente de outras formas de império colonial, depende mais que nunca de um sistema de múltiplos Estados nacionais mais ou menos soberanos697”.

P. 100. P. 107. 697 Mesma página. 695 696

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7.2.1 Imperativos “puramente ‘econômicos’” que dependem a cada dia mais dos imperativos “extraeconômicos”

Caminhamos então para os momentos finais de O Império do Capital, nos quais a autora desenvolverá o argumento da centralidade do Estado para a acumulação do capital por meio de um “paradoxo”. É mister que deixemos anotado que, sob nosso ponto de vista, esse “paradoxo” só existe a partir da tese de que o imperialismo capitalista se distingue pela substituição dos imperativos “extraeconômicos” (que caracterizavam os impérios “tradicionais”) pelos imperativos “puramente ‘econômicos’” (que para Ellen Wood definem o império do capital). Mas segundo Ellen Wood, “pela primeira vez na história do Estado-nação moderno, as maiores potências do mundo não estão engajadas numa rivalidade geopolítica e militar direta. Essa rivalidade foi efetivamente deslocada pela competição à maneira capitalista”698. Precisamos lembrar que já refutamos a hipótese do fim da rivalidade e também ressaltar que a autora não aponta argumentos que provem que “a rivalidade foi efetivamente deslocada pela competição à maneira capitalista”. O argumento dela se passa no plano das justificativas e se sustenta no fato de que os Estados Unidos não possuem colônias em sentido restrito – que ela mesma dirá, conforme discutiremos, à frente que provavelmente já está em processo de mudança. Eis novamente o “paradoxo”, para ela, à medida que a competição econômica foi superando o conflito militar nas relações entre os principais governos, mais os Estados Unidos lutaram para se tornar o poder militar mais esmagadoramente dominante que o mundo já viu. Esse é o paradoxo do novo imperialismo. É o primeiro imperialismo em que o poder militar foi criado não para conquistar território nem para derrotar rivais. É um imperialismo que não busca a expansão territorial nem dominação física de rotas territoriais. Ainda assim ele produziu essa enorme e desproporcional capacidade militar com um alcance global sem precedentes. 699

A explicação para isso é que “talvez seja precisamente por não ter nenhum objetivo claro e finito que o novo imperialismo exija força militar tão pesada” porque “a dominação ilimitada de uma economia global e dos múltiplos Estados que a administram exige ação militar sem fim, em propósito ou tempo”

. A idéia aqui é complexa, e

700

poderia se articular com determinadas passagens que esboçamos lá no início de nossa jornada com apontamentos para trabalhos que não se dedicam essencialmente ao tema do imperialismo, mas que são absolutamente fundamentais para ele – e com os quais P. 109. Mesma página. 700 Mesma página. 698 699

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não teremos condições de dialogar agora: idéias como “estado de emergência”, “conquista de virtualidades” e a já mencionada confusão entre as funções de Estado e de polícia que, dados os instrumentos à mão das “autoridades competentes” torna o problema do totalitarismo o mais urgente entre aqueles a que precisamos nos opor. Aqui o objetivo é mais modesto. Nos basta por hora pontuar a relação entre essa nova doutrina de “guerra sem fim” que se enunciava – e que se aprofundou, a despeito dos governos democratas – e o argumento da especificidade do imperialismo em nossos dias para Ellen Wood – além da explicitação dos limites aos quais essa definição de imperialismo pode nos levar. Aparentemente – ou, como a autora prefere, paradoxalmente – a questão principia com os traços de novidade representada pela Doutrina Bush. Mas seu argumento caminha no sentido oposto, conforme indicado. Para ela, a rejeição da noção de que a intervenção militar deva ter objetivos políticos claros e realizáveis já diz tudo, e articula uma doutrina desenvolvida desde a Guerra Fria. Os Estados Unidos e seus aliados, principalmente a Grã-Bretanha, estavam redefinindo a guerra e os critérios pelos quais julgá-la. A nova doutrina de guerra que parece estar surgindo é o corolário necessário de uma nova forma de império.701

A questão então seria saber qual é essa nova forma de império. Mas deixemos a autora desenvolver o raciocínio. Retomando aquela linha argumentativa que havia dedicado bastante atenção às concepções de Grócio e Locke, Wood atesta que a tradição da guerra justa sempre foi notoriamente flexível e infinitamente capaz de se ajustar às variações de interesses das classes dominantes, absorvendo tudo, inclusive as aventuras imperiais mais agressivas e predatórias. Ao longo das mudanças de caráter da guerra e do imperialismo, as ideologias justificatórias conseguiram se manter dentro de certos limites conceituais e operar com alguns princípios básicos. Até mesmo concepções “positivistas” do direito internacional, que não reconhecem princípios de justiça que emanem de alguma autoridade divina superior, aceitaram certos dogmas básicos associados à ‘guerra justa’. A nova doutrina, apesar de invocar as tradições da guerra justa, pela primeira vez em séculos descobriu serem esses princípios insuficientemente flexíveis e, na verdade, os descartou. Assim como foram feitos ajustes relativos à mudança de contextos e requisitos, o rompimento atual também tem seu contexto histórico específico e indica necessidades imperialistas particulares. 702

O que seria essa “guerra justa”? E quais as especificidades contemporâneas?

701 702

P. 111. P. 112.

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A doutrina da ‘guerra justa’, ao longo de suas transformações, enuncia alguns requisitos essenciais para dar início ao combate: é necessário que haja uma causa justa; a guerra tem de ser declarada por uma autoridade adequada, com a intenção correta e depois de terem se exaurido outros recursos; deve haver uma chance razoável de se chegar ao resultado desejado; e os meios devem ser proporcionais a tal fim. Já encontramos maneiras inteligentes em que esses requisitos aparentemente rigorosos foram compatibilizados com as guerras mais agressivas de rivalidade comercial e expansão imperial. [...] mas a doutrina atual rompe de maneiras inteiramente novas com a tradição da teoria e prática militares europeias. Toda guerra norte-americana alega uma causa justa, uma autoridade apropriada e intenções corretas, insistindo que não há outro meio. Tais alegações são, claro, mais que apenas discutíveis. Mas ao menos essas justificações das campanhas militares norte-americanas, por mais discutíveis que sejam, até então se mantiveram dentro dos limites dos argumentos da guerra justa. A ruptura ocorre mais claramente nas duas outras condições: que deve haver uma chance razoável de se chegar aos objetivos de qualquer ação militar e que os meios devem ser proporcionais. 703

Destarte, “um novo princípio está sendo definido aqui: afinal, ele pode simplesmente estar afirmando que a ação militar pode ser justificada sem nenhuma esperança de alcançar seu objetivo, mas talvez seja mais exato dizer que uma ação militar não exige nenhum objetivo específico704”. Ou seja: “existe um novo princípio de guerra sem fim, em propósito ou tempo705”. Mas, embora “[...] o presidente Bush [II] [tenha enunciado] uma nova doutrina militar, que representava uma declaração ilimitada de guerra perpétua706”, para Wood, a ‘guerra ao terrorismo’ não é o primeiro exemplo dessa nova doutrina. Ela certamente tem raízes na Guerra Fria. Mesmo a ‘guerra contra as drogas’, na medida em que tem sem dúvida um componente militar (seja ela conduzida diretamente pelos Estados Unidos ou, com sua assistência, digamos, pelas forças colombianas), teve um pouco desse sabor. Mas outro passo importante no estabelecimento dessa nova doutrina foi a noção de ‘guerra humanitária’. Foi certamente em relação a esse caso que as restrições da antiga guerra justa foram explicitamente abandonadas. 707

É claro que a mudança de uma estratégia hipócrita para uma estratégia cinicamente assumida não é trivial. Os traços da megalomania são visíveis em vários lugares, como, por exemplo, quando Richard Perle, conselheiro de Bush II declarou que

P. 122. P. 113. 705 Mesma página. 706 P. 114. 707 P. 113. 703 704

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trata-se de uma guerra total. [...] Se deixarmos avançar a nossa visão de mundo e a abraçarmos inteligentemente, e se não tentarmos acrescentar uma diplomacia inteligente, mas simplesmente lutarmos uma guerra total, (...) daqui a muitos anos nossos filhos vão cantar grandes canções sobre nós. 708

Ao que Ellen Wood define: “então é isso: guerra total e infinita – não necessariamente guerra contínua, mas uma guerra indefinida em termos de duração, objetivos, meios e alcance espacial709”. Entretanto, mais importante para o argumento dela sobre a especificidade do imperialismo capitalista em nossos dias é o fato de que “a nova ideologia da guerra se fim responde às necessidade particulares do novo imperialismo”. Para ela, esse imperialismo, que surgiu somente no século XX, ou até mesmo após a Segunda Guerra Mundial, pertence a um mundo capitalista. Pode parecer estranho situar esse mundo capitalista tão recentemente na história, e inclusive tão tarde no desenvolvimento do próprio capitalismo. Mas as últimas décadas se distinguiram pela universalidade do capitalismo, e mesmo quando a URSS ainda existia os imperativos capitalistas deixaram sua marca em todo o mundo. 710

O projeto de estabelecer uma teoria que dê conta do imperialismo capitalista e do próprio capitalismo volta mais uma vez à pergunta: qual é a especificidade? Novamente, a autora mobiliza o argumento segundo o qual as teorias marxistas do imperialismo, [...] pertencem a uma época diferente do imperialismo, em que não se podia admitir, nem sequer tão tarde no desenvolvimento do capitalismo, que este seria universal como é hoje. [...] Contudo, assim como ainda não vimos uma teoria sistemática do imperialismo num mundo de capitalismo universal, não temos nenhuma teoria do capitalismo que compreenda adequadamente um mundo composto não de senhores imperiais e súditos coloniais, mas de um sistema internacional em que tanto os poderes imperiais quanto os subordinados são Estados mais ou menos soberanos. 711

Mas e se encontrássemos nas teorias “clássicas” do imperialismo a idéia cristalina de que o desenvolvimento do imperialismo exige o fortalecimento dos “Estados locais” e a implementação de um “sistema internacional em que tanto os poderes imperiais quanto os subordinados são Estados mais ou menos soberanos”? Em que pesem quaisquer argumentos de que antes esse sistema não era tão “complexo”, “desenvolvido” e “universal”, ou que os Estados não eram “tão soberanos”, como poderíamos explicar que essa “teoria do capitalismo” nos termos que Ellen Wood afirma que ainda não P. 114. Mesma página. 710 Mesma página. 711 P. 115. 708 709

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existem foram formuladas um século atrás, por exemplo, por Rudolf Hilferding [que apresentaremos na sequência]? Será que o problema para o entendimento do imperialismo contemporâneo é a falta de uma teoria? Como vimos argumentando desde o começo, não é o que nos parece. Quando acompanhamos o argumento desenvolvido por Ellen Wood, mais uma vez nos parece que surgem diversos problemas (como compreender o período em que o imperialismo não era tão explícito? ; por que apesar do discurso do fim das fronteiras e da diminuição do papel dos Estados estes se mostram a cada dia mais fortes? etc.) que não necessariamente surgiriam do próprio debate do imperialismo, muito menos de sua confrontação com a realidade dos fatos. Os problemas principais parecem surgir na medida em que as pessoas que se dedicam ao estudo do imperialismo precisam prestar contas com outros debates de suas respectivas épocas. E no caso dos debates ao final do século XX e princípio do XXI, nenhum problema parece mais importante desse ponto de vista do que a apreciação das condições específicas em que se deu a montagem do Estado de bem-estar social nos assim chamados Anos Dourados e o desmonte dessa estrutura de assistência social no assim chamado período da globalização. A questão do Estado se “expandindo” e se “enfraquecendo” é uma ideologia em torno da qual o debate continua gravitando, embora de há muito já esteja claro que o problema nunca passou de uma ideologia. Ellen Wood, em certo sentido, percebe a cilada. E dizer isso não é pouca coisa. Mas nosso problema com relação aos seus argumentos, mais uma vez, se refere às saídas teóricas que ela propõe. Neste sentido, nos parece que ela percebe a cilada e procura escapar dela. Mas não consegue. Para ela, é possível que ouçamos falar mais sobre o imperialismo hoje do que ouvimos durante um longo tempo, e a teorias da globalização como forma de imperialismo não andam em falta. Mas caracterizar a globalização de maneira convencional, como o declínio do Estado territorial, é perder o que talvez haja de mais original e distintivo no novo imperialismo: seu modo único de dominação econômica, administrada por um sistema de Estados múltiplos. As especificidades desse modo imperialista só estão começando a emergir agora, e, particularmente, o papel específico desempenhado pela força militar

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nesse novo contexto só agora está encontrando expressão numa ideologia sistemática de guerra. 712

É evidente que não devemos aceitar a tese usual sobre a globalização e que, neste período, os Estados se tornaram mais “fortes” – militarmente mais potentes e muito mais opressivos, para dizermos o mínimo. Se entendermos que o capital e o Estado fortalecem-se mutuamente – é o que vimos argumentando desde o começo – o problema de explicar esse “paradoxo” simplesmente não existe. O problema aparece somente quando se aceita que existe uma tendência à substituição dos imperativos (do “nãoeconômico” para o “econômico”) porque, se há essa tendência, supostamente o Estado deveria utilizar menos os meios “não-econômicos” enquanto na realidade, ele recorre ainda mais a esses expedientes. Ou seja, o problema existe somente se concordarmos com a maneira como Ellen Wood se lança à tarefa de explicar a especificidade do imperialismo capitalista contemporâneo. Na realidade, esse paradoxo não existe. Sob nosso ponto de vista, o problema se torna ainda mais cristalino quando a autora procura marcar a especificidade do imperialismo no pós-guerra. Porque até então, a dificuldade era explicar como o imperialismo capitalista inglês seria um “misto” de imperativos capitalistas (“econômicos”) e “não-capitalistas” (“não-‘econômicos’”) e “antes que a hegemonia econômica do capital viesse a dominar o mundo, o capitalismo passou pela era clássica do imperialismo, com todas as suas rivalidades geopolíticas e P. 115. Ellen Wood já havia afirmado antes que “a globalização foi certamente marcada pela retirada do Estado das suas funções de bem-estar social e melhoria social; para muitos observadores, isso, mais do que qualquer outra coisa, criou uma impressão do declínio do Estado. Mas, apesar de todos os ataques ao Estado de bem-estar lançados por sucessivos governos neoliberais, não se pode nem mesmo argumentar que o capital global tenha tido condições de operar sem as funções sociais executadas pelos Estados-nação desde os primeiros dias do capitalismo.” (pág. 107). Do nosso lado, gostaríamos de deixar manifesto que o ataque aos “Estados de bem-estar social” não são nem poderiam, sob uma perspectiva minimamente imune a fetiches estatistas, ser considerados ataques aos Estados. São ataques às classes trabalhadoras que por meio de muita resistência conquistaram determinados direitos. Contudo, na medida em que esses direitos não revolucionarizam as condições concretas da exploração, funcionam para os capitalistas de modo ambíguo. Se por um lado exigem um dispêndio público, por outro podem vir a funcionar como alívio da pressão das lutas pelo aumento dos salários, porque os Estados acabam, nesse tipo de arranjo, arcando com parte dos custos necessários para a reprodução das classes trabalhadoras. Assim, em determinado momento, pode ser conveniente para esse arranjo que as pressões das classes trabalhadoras sejam transformadas em direitos. Noutros, que sirvam como novos locais de absorção de capitais por meio das privatizações – voltaremos ao assunto quando comentarmos as teses de Harvey que versam sobre isso. É evidente que essa afirmação não tem por objetivo dizer que as conquistas são desimportantes, mas apenas apontar seus limites e a maneira como o capital perversamente lida com elas. Antes de indicar motivos de desânimo com relação às conquistas, esse reconhecimento deve servir para a consciência dos limites de uma luta pautada em direitos e a importância da Revolução. Somente uma visão completamente iludida sobre o que significa o Estado pode enxergar no desmonte das funções de bem-estar social uma crise do próprio Estado. Essa é a ilusão desenvolvimentista – uma “romântica senhora tentação”. Sobre a relação ambígua entre o Estado de bem-estar e a desapropriação dos direitos, sugerimos a leitura de Michael Perelman: The invention of capitalism – classical political economy and the secret of the primitive accumulation, infelizmente sem tradução disponível para o português. 712

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militares”. A questão agora reside em explicar em quê o imperialismo estadunidense seria “mais capitalista” e mais “não-‘econômico’”. Aparentemente, o argumento caminha nesse sentido. Para ela, essa era terminou há muito. O imperialismo capitalista se tornou quase inteiramente [grifos nossos] uma questão de dominação econômica, em que os imperativos de mercado, manipulados pelas potências capitalistas dominantes, são levados a fazer o trabalho que já não é feito pelos Estados imperiais nem pelos colonizadores. 713

Então o imperialismo atual é menos “não-‘econômico’”? Não. Conforme a própria autora afirma, “estamos descobrindo que a universalidade dos imperativos capitalistas não removeu a necessidade de força militar. Na verdade, ocorre o contrário”. Mais do que isso, “o novo imperialismo não pode abrir mão, como fazia a teoria de Locke, da expropriação colonial, de uma teoria da guerra”. 714 Mas isso, por “paradoxal” que possa parecer, não faz com que a autora perceba a armadilha que criou para si mesma com relação à sua periodização a partir da insistência da separação entre o “econômico” e o “extraeconômico”. Do contrário, embora na – sua – teoria os imperativos econômicos estariam substituindo os imperativos “não-‘econômicos’”, “a imposição de imperativos econômicos pode ser um negócio muito sangrento”. Mas, uma vez que as potências subordinadas se tornam vulneráveis a esses imperativos e às ‘leis’ do mercado, o domínio direto pelos Estados imperiais deixa de ser necessário para impor a vontade do capital. Ainda assim, mais uma vez, encontramos o paradoxo de que, apesar de os imperativos de mercado poderem chegar além do poder de qualquer Estado, eles têm de ser impostos pelo poder extraeconômico. Nem a imposição da ordem social diária exigida pela acumulação de capital e pelas operações do mercado podem ser atingidas sem a ajuda dos poderes administrativos e coercitivos, muito mais local e territorialmente limitados que o alcance econômico do capital. É por isso que, paradoxalmente, o império se tornou tanto mais puramente econômico quanto mais proliferou o Estado-nação. Não somente os poderes imperiais mas também os Estados subordinados se mostraram necessários para o domínio do capital global. Foi mesmo, como já vimos, uma importante estratégia do imperialismo capitalista criar Estados locais pra agirem como condutos para os imperativos capitalistas. A globalização também não transcendeu essa necessidade imperial de um sistema de Estados. O mundo ‘globalizado’ é, mais do que nunca, um mundo de Estados-nação. O novo imperialismo – a que chamamos globalização exatamente pode depender de uma hegemonia econômica de longo alcance, capaz de atingir muito além das fronteiras de qualquer 713 714

Mesma página. P. 115.

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Estado territorial ou dominação política – é uma forma de imperialismo mais dependente que qualquer outra de um sistema de Estados múltiplos. 715

Em nenhum momento, é evidente, a autora questiona se esse excesso de paradoxos – e o excesso de aspas – a que precisa recorrer para equacionar o seu problema possam vir a indicar uma formulação equivocada. Do contrário, continua se escorando nesse esquema para procurar demonstrar que o que parece – para seus debatedores – uma “novidade” datada de 2002, com a “Doutrina Bush”, com efeito é uma “novidade” datada do pós-Guerra. Não temos nenhuma oposição a essa formulação e pensamos que – caso se aceite que o recorte nacional é o mais adequado para a compreensão do imperialismo, com o que não concordamos – a análise da política externa estadunidense e de sua fundamentação teórico-filosófica seria o caminho argumentativo mais frutífero. Mas vejamos onde esse percurso nos leva. Analisando as origens um pouco mais remotas da “Doutrina Bush”, Ellen Wood recorda o vazamento, em 1992, do documento Defense Planning Guidance, produzido pelo Pentágono e publicado pelo New York Times. Esse documento foi escrito por Paul Wolfowitz, que era então um assessor de Bush I e viria a ser Secretário de Defesa de Bush II – além de, posteriormente, presidente do Banco Mundial716. Segundo Ellen Wood, apesar da lógica “bastante tortuosa” deste documento,

715 716

P. 116. https://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_Wolfowitz

314

seu significado é claro: o objetivo de manter a posição militar dos Estados Unidos, no Oriente Médio e em outras partes, tem menos a ver com, por exemplo, proteger o fornecimento de petróleo aos Estados Unidos do que com desencorajar ‘as nações industriais avançadas a desafiar nossa liderança’. Em particular, potências aspirantes na Ásia e na Europa devem ser enfrentadas com uma dominância capaz de ‘dissuadir competidores potenciais até mesmo de aspirar a um maior papel regional ou global. O objetivo é o que foi chamado de ‘dominância de amplo espectro’, que se estende até o espaço. Este documento demonstra claramente que a guerra ‘total’ defendida por Richard Perle não é apenas uma resposta ao 11 de Setembro. Pelo contrário, aquele evento foi usado como pretexto para ativar uma agenda havia muito ativa. Até mesmo um hidrófobo dos falcões, Colin Powell717, concorda com o objetivo de, como diz um analista718, ‘dominação mundial unilateral’, insistindo já em 1992 que os Estados Unidos devem ter poder suficiente ‘para dissuadir qualquer desafiante até de sonhar em nos desafiar no palco mundial’. 719

Então, para ela, a novidade do imperialismo capitalista estadunidense são as novas justificativas para a guerra, que datam do fim das guerras do século XX, ainda que tenham passado por diversas reformulações, de modo que

https://pt.wikipedia.org/wiki/Colin_Powell Anatol Lieven, em “The Push for War”. 719 P. 120. 717 718

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a doutrina esboçada em Defense Planning Guidance recebeu status oficial na nova Estratégia de Segurança Nacional, de George W. Bush, publicada em setembro de 2002. A Doutrina Bush exige o direito exclusivo e unilateral de ataque preventivo, a qualquer tempo, em qualquer lugar, sem as peias de nenhum acordo internacional. [...] sem as continuidades entre aquela época [as décadas imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial] e hoje, o aventureirismo irresponsável do governo Bush seria completamente inexplicável. Não se pode, é claro, desconsiderar as irracionalidades idiossincráticas ou as políticas extremistas das personalidades em torno de Bush, ou, de fato, seus interesses muito particulares na indústria petrolífera. Mas as bases da estratégia foram lançadas há muito tempo. Não há dúvidas de que o desprezo de Bush pelos acordos internacionais levou o unilateralismo norte-americano a novos extremos. Ainda assim, não houve nada de novo na convicção da equipe de Bush de que o principal objetivo da política externa norte-americana é estabelecer a hegemonia sobre um sistema global de Estados mais ou menos soberanos, e que a esmagadora superioridade militar está no núcleo desse projeto. O lendário secretário de Estado da Guerra Fria, John Foster Dulles, já tinha muita clareza quanto a isso na década de 1950; e, apesar de a nova doutrina de ataques preventivos ser encarada, não sem certa razão, como um rompimento com as doutrinas anteriores da dissuasão, não há uma grande distância entre a ‘retaliação maciça (ou seja, desproporcional)’ e a ‘retaliação preventiva’ de Bush. 720

Então, em certo sentido, a Doutrina Bush é um rompimento. Mas por outro lado, deita raízes na estratégia estadunidense do pós-guerra. Como diria o poeta: até aí tudo bem. Estamos perfeitamente dispostos – na verdade empenhados – em uma formulação que ateste que a questão da continuidade e da ruptura dependem exclusivamente dos critérios utilizados em sua abordagem. Mas essa estratégia, conforme a autora a aponta, consiste em uma especificidade do imperialismo estadunidense do pós-Guerra? É uma novidade do imperialismo capitalista? O argumento de Ellen Wood é que sim – e provavelmente essa justificação seja a principal razão pela qual ela destaca essa especificidade. Isso por que as antigas formas de imperialismo colonial exigiam a conquista completa de povos subjugados e derrota militar de rivais recalcitrantes, além de teorias adequadas de guerra e paz. O antigo imperialismo capitalista, apesar de não depender menos da força coercitiva para assumir o controle do território colonial, parecia capaz de abrir mão de uma defesa política da colonização e de incorporar a justificação da colônia numa teoria da propriedade. A globalização, o imperialismo econômico do capital levado à sua conclusão lógica, paradoxalmente exigiu uma nova doutrina de coerção extraeconômica, especificamente militar. É impossível que o poder de um único Estado, até mesmo a maciça força militar dos Estados Unidos, imponha-se diariamente, em toda parte, a todo o sistema global. Nenhuma força imaginável é capaz 720

Páginas 120 e 121.

316

de impor a vontade do capital global o tempo todo sobre uma multidão de Estados subordinados, ou manter a ordem previsível exigida pelas transações diárias do capital. Na verdade, a força militar é um instrumento cego demais e completamente inadequado para oferecer as condições diárias legais e políticas de acumulação do capital. Portanto, o poder militar talvez tenha de ser mobilizado menos para alcançar objetivos específicos, contra alvos e adversários específicos, do que para dar a conhecer sua presença e afirmar sua supremacia incontestável. 721

E então Ellen Wood procura considerar a importância de “exibições frequentes de força militar”

, “terror exemplar” ou “efeito demonstração” com o objetivo de

722

“espalhar o medo” 723. Desta maneira, a ‘Operação Guerra Infinita’ aparentemente pretende produzir [, não um cenário de guerra constante, “que seria muito destrutivo para a ordem econômica”, mas] algo mais parecido com o ‘estado de Guerra’ de Hobbes: ‘a disposição conhecida para tanto durante todo o tempo em que não existe garantia do contrário’. É dessa possibilidade de guerra sem fim que o capital tem necessidade para sustentar sua hegemonia sobre o sistema global de múltiplos Estados. 724

Então, para além da justificativa, a “novidade” é a tentativa de produzir um sistema internacional que se parece com o “estado de guerra” Hobbesiano? Não nos parece novo. Nem tampouco nos parece nova a percepção de que o clima de medo alimentado pelo governo Bush foi usado não somente para justificar programas militares e a erosão das liberdades civis, mas também um programa doméstico de longo alcance, que parecia inalcançável antes do 11 de Setembro. Mesmo a ameaça da guerra do Iraque foi programada para influenciar as eleições no Congresso. Não há nada igual a um estado de guerra para consolidar a dominação interna, principalmente nos Estados Unidos. 725

A necessária relação entre concentração de poder por parte do Estado e acumulação do capital é um pilar fundamental das “teorias clássicas” do imperialismo com as quais Ellen Wood se furtou a conversar, contra todas as evidências de que isso seria importante – e, sejamos justos, foi explicitada mais de uma vez ao longo de uma importante historiografia “não-marxista” sobre o Imperialismo, como, por exemplo, Hannah

Arendt,

cuja

influência

para

outro

livro

publicado

quase

que

Páginas 122 e 123. P. 123. 723 “Isso não significa necessariamente que os Estados Unidos vão fazer guerra sem nenhuma razão, apenas com o objetivo de se exibir. O controle das fontes de petróleo é hoje, como antes, uma motivação importante de aventuras imperiais. [...] Ainda assim, independentemente dos objetivos que os Estados Unidos possam vir a ter, há sempre algo mais.” (Pág. 124) 724 Mesma página. 725 Mesma página. 721 722

317

concomitantemente a O Império do Capital, infelizmente vamos poder comentar apenas de passagem. Como podemos explicar que Hobbes e Arendt tenham formulado teoricamente um imperialismo capitalista que somente viria a aparecer muito depois de eles já terem morrido? Sob nosso ponto de vista, podemos aceitar – e na verdade seria muita burrice não o fazer – que estamos vivenciando uma nova morfologia do imperialismo mas isso não implica necessariamente que precisamos de uma nova teoria simplesmente porque a morfologia se alterou. O que exigiria uma nova teoria seria a demonstração de que aquelas que temos à mão não dão mais conta de explicar os fundamentos dessa morfologia atual. Dito de outo modo: para a exigência de uma nova teoria as mudanças morfológicas precisam ser suficientemente radicais a ponto de invalidar as teorias antigas. Mas independente disso, caso uma teoria qualquer se mostre explicativa, é necessário que se a leve em consideração – podendo substituir a anterior ou exigir reformulações em seu corpo teórico. Mas será o caso da teoria de Ellen Wood sobre o império do capital? Será possível que apreendamos sua especificidade por meio da distinção entre imperativos “econômicos” e “extraeconômicos”? Qual é a utilidade dessa distinção? Ela encontra fundamento na análise concreta para além de um desdobramento conceitual? Essa distinção consegue determinar, então, afinal, o que há de novo no novo imperialismo? Pensamos que não.  Conforme dissemos anteriormente, o livro de Ellen Wood motivou um simpósio no qual diversos estudiosos do imperialismo e de temas correlatos apreciaram a sua obra. Posteriormente, esse debate foi publicado pelo periódico Historical Materialism. Independentemente de todas as críticas que fizemos a O império do capital cumpre que consideremos que ele é extremamente superior ao que foi apontado naquele simpósio. Muitas das críticas ali levantadas, quando confrontadas com os argumentos publicados no livro simplesmente não fazem o menor sentido. Para nós, o livro de Ellen Wood é absolutamente indispensável em qualquer apreciação contemporânea sobre o imperialismo. O fato de levantar a questão da especificidade, e mais um conjunto bastante grande de idéias instigantes – apresentadas aqui em caráter bastante insuficiente – não são pouca coisa, e quem se aventurar na leitura fluida e fértil do texto

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certamente aprenderá muito. Esperamos que a tradução recente da Boitempo Editorial sirva para que a historiografia brasileira sobre o imperialismo dedique mais atenção às suas idéias, geralmente negligenciadas.  Já expusemos até aqui o principal de sua argumentação, mas nos restam algumas considerações a fazer sobre pontos específicos. O primeiro deles é o da periodização. Como vimos, Ellen Wood afirma que esse novo imperialismo capitalista é específico desde o final da Segunda Guerra. Isso significa, para ela, que a partir de então o imperialismo pode ser explicado pelos imperativos puramente econômicos – que não podem existir senão a partir da imposição extraeconômica. Mas esse imperialismo pode já estar se esgotando e podemos, seguindo as teses de nossa autora, estar vivenciando o surgimento de um tipo ainda mais “novo” de imperialismo. Ou a volta ao “velho”. Isso porque – lembrando que o livro é de 2003, poucos meses antes da invasão do Iraque – no Oriente Médio, já estamos vendo algo como o retorno a um imperialismo anterior, com a intenção mais ou menos explícita de reestruturar ainda mais diretamente a região no interesse do capital norte-americano. O novo imperialismo pode estar, neste caso, fechando um círculo [grifo nosso]. [Isso porque] tal como os britânicos na Índia, quando o império comercial cedeu espaço para a dominação direta, os Estados Unidos podem estar descobrindo que o império cria seu próprio imperativo territorial. 726

Para Wood, essa guerra sem fim em propósito e tempo pertence a um império sem fim, sem fronteiras nem mesmo território. Ainda assim ele é um império que precisa ser administrado por instituições e poderes que têm de fato fronteiras territoriais. A consequência de uma economia globalizada foi o capital depender mais, e não menos, de um sistema de Estados locais para administrarem, e Estados terem se tornado mais, e não menos, envolvidos na organização dos circuitos econômicos. Isso significa que a velha divisão capitalista do trabalho entre capital e Estado, entre o poder econômico e o político, foi rompida. Ao mesmo tempo, existe um abismo crescente entre o alcance econômico e global do capital e os poderes locais de que ele necessita para sustentar-se – e a doutrina militar do regime Bush foi uma tentativa de cobrir essa lacuna. 727

Assim, pode ser que o “novo imperialismo”, movido “exclusivamente” pelos imperativos “econômicos” tenha durado apenas poucas décadas. Mas sobre a questão da periodização, ainda temos que considerar uma questão essencial, geralmente negligenciada, da qual Ellen Wood nos lembra – em sua “Resposta 726 727

P. 125. P. 125.

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aos críticos” –: qualquer julgamento sobre continuidades ou rupturas exige o estabelecimento de critérios para a periodização, que por sua vez implicam na definição dos fundamentos do “período” em questão. Sobre a origem do capitalismo, nos diz a autora: Não tenho nada contra considerar o ano de 1492, de um modo ou de outro, relevante para o desenvolvimento do capitalismo. Podemos ir ainda mais longe. O feudalismo, afinal, também é relevante para o desenvolvimento do capitalismo. Na verdade, estou muito feliz em fazer recuar as fronteiras da investigação histórica, em particular para traçar, até suas fontes, os muitos fatores relevantes para a ascensão do capitalismo – eu, felizmente, já voltei até mesmo à Antiguidade grecoromana para acompanhar certos desenvolvimentos peculiares das formas de propriedade ocidentais e dos processos de formação do Estado728. Mas, mesmo que eu queira argumentar que alguns desses desenvolvimentos foram de algum modo relevantes para o surgimento posterior do capitalismo, isso não significa que a Antiguidade grecoromana era capitalista, ou que o capitalismo seguiu, inevitavelmente, suas formas de propriedade e de Estado. Tampouco significa que o feudalismo europeu, inevitavelmente, deu origem ao capitalismo. Ainda precisamos identificar o que distingue o capitalismo e suas regras específicas de reprodução dos outros sistemas de relações sociais de propriedade729 (pág. 141).

Esse recurso poderia voltar retrospectivamente até tempos imemoriais e certamente o capitalismo não existiria sem que x primeirx macacx que tenha fabricado uma ferramenta e em algum tempo e em algum lugar uma hipotética pessoa tenha convencido as demais que aquele pedaço de terra cercada era direito dela. Quem as procurar, sempre vai encontrar continuidades na história. Isso significa absolutamente nada. Do outro lado, a depender dos critérios, duas coisas quaisquer sempre poderão ser consideradas “completamente distintas” das outras e não é pouco significativo que um dos problemas mais importantes da história da filosofia ainda repouse na eterna polêmica de saber se aquele rio era ou não era o mesmo, sem a qual as discussões sobre os períodos não fazem sentido algum. Desta maneira, a questão decisiva para determinar – com precisão menor ou maior – as origens do capitalismo, ou do Apesar da insistência na “separação entre o ‘econômico’ e o ‘político’” e muitas recaídas nos fetiches cientificistas burgueses manifestos sobretudo no superdimensionamento da importância das relações jurídicas, sugerimos fortemente a leitura pelo menos de dois locais nos quais as pesquisas de Ellen Wood sobre a Antiguidade assumem uma importância fundamental para as resistências anticapitalistas contemporâneas, os ensaios O trabalho e a democracia antiga e modernas e – uma espécie de desdobramento lógico do outro – O demos versus ‘nós, o povo’: das antigas às modernas concepções de cidadania, ambos constituintes de sua obra – ao nosso juízo – mais interessante: Democracia contra Capitalismo: a renovação do materialismo histórico, no qual a autora defende a importância do resgate da democracia enquanto autogoverno do demos (“poder popular”) contra a “domesticação liberal da democracia”. 729 P. 141. 728

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imperialismo capitalista, dependem de maneira fundamental de como se os define. A questão da definição e a questão da origem são, em grande medida, a mesma – ainda que seja possível, de um modo equivocado, formularem-se separadamente. Quanto à “nossa definição de imperialismo capitalista”, concordamos com Ellen Wood, “depende de como definimos o capitalismo730”. E assim, “[...] a questão aqui é saber se, ou como, um imperialismo impelido pela acumulação capitalista difere de outras formas, ou quando e como a dominação imperialista passou a ser associada ao capitalismo como uma forma específica de aquisição”, ou seja, “reconhecer os processos de transformação que produziram um imperialismo especificamente capitalista”, o que, por seu turno, “[...] é fundamental não apenas para a compreensão de como o capitalismo opera, mas também para caracterizar as diferentes formas de imperialismo que ele tem criado”

731

. Desta maneira, a autora procura enfatizar que

o imperialismo, como exploração de classe, pode assumir formas econômicas ou ‘extraeconômicas’, e a apropriação imperial imposta por meios extraeconômicos precisa ser diferenciada da dominação imperial imposta por meio de imperativos de mercado. Também é importante fazer a distinção entre os casos em que a apropriação extraeconômica responde às necessidades de um capitalismo bem desenvolvido e os casos em que a presença da apropriação não capitalista sinaliza ausência ou fraqueza de imperativos capitalistas. Uma vez que tenhamos caracterizado a nova lógica econômica do capitalismo, ainda poderemos reconhecer que o capital pode se beneficiar de modos de apropriação de excedentes por meios, em essência, similares aos da exploração não capitalista. Mas continua sendo importante registrar as diferenças entre a exploração capitalista com seus imperativos particulares, e outras formas de exploração. Também se deve reconhecer como as relações capitalistas de propriedade afetaram a apropriação não capitalista mobilizada a serviço do capital. 732 7.2.2 A distinção do capitalismo a partir da separação do “econômico” e do “político”

O que gostaríamos de destacar aqui é que, conforme indicamos, o argumento de Ellen Wood em O império do capital depende de uma distinção entre o imperialismo levado a cabo por imperativos “econômicos” e “extraeconômicos” que, contudo, não é bem trabalhada ali. Não obstante, ao nosso juízo este fato não deve ser usado como crítica ao livro. Com efeito, conforme também já indicamos, O império do capital está plenamente concatenado no projeto de pesquisa da autora que tem por intuito fundamental o estabelecimento da especificidade do capitalismo em relação a outras Mesma página. P. 136. 732 P. 134. 730 731

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formas sociais, e se não podemos dizer que a publicação dessa obra independe dos acontecimentos pós-2001, também devemos levar em consideração o fato de que o fundamental de suas teses já estava perfeitamente desenvolvido em A origem do capitalismo, de 1999. Entretanto, ao nosso juízo, para uma compreensão minimamente precisa da interpretação de Ellen Wood sobre o imperialismo capitalista e, mais que isso, para entendermos de que maneira ela procura definir a especificidade deste tipo de imperialismo em relação aos demais, precisamos fazer um recuo em sua obra e nos dedicarmos com atenção a “A separação entre o ‘econômico’ e o ‘político’ no capitalismo”, um artigo absolutamente crucial para o argumento da autora. Escrito em 1981 [!] e republicado em 1995 no já citado Democracia contra Capitalismo – a renovação do materialismo histórico, que foi traduzido para o português somente em 2003, este texto em suas próprias palavras, é “o capítulo [que] estabelece o programa de todo o volume”. E isso porque “é uma tentativa tanto de identificar o que é característico do capitalismo e do processo histórico que o produziu, quanto de examinar as categoriais conceituais associadas a esse padrão histórico específico” e foi escrito para combater teses que segundo a autora extrapolam essa distinção para outras formas sociais. Em seus termos, trata-se de uma incorreta interpretação das teses do materialismo histórico, uma vez que a “separação conceitual dessas categorias específicas [‘político’ e ‘econômico’] [é distintiva] do capitalismo – e apenas dele”

.

733

Extrapolar essa idéia para outros modos de produção, em que supostamente a economia seria a “base” e o “político” a “superestrutura” – temas do segundo capítulo do referido livro – seria um fragoroso “economicismo”, contra o qual a autora lança seus argumentos. Segundo Ellen Wood, o objetivo [da teoria marxista] era oferecer um modo de análise especialmente preparado para se explorar o terreno em que ocorre a ação política. Depois de Marx, muitas vezes o marxismo perdeu de vista esse projeto teórico e seu caráter essencialmente político. Houve, em particular, uma tendência a perpetuar a rígida separação conceitual entre o ‘econômico’ e o ‘político’ que tão bem atendeu à ideologia capitalista desde que os economistas clássicos descobriram a ‘economia’ na teoria e começaram a esvaziar o capitalismo de conteúdo político e social. Esses artifícios históricos conceituais refletem, ainda que como um espelho distorcido, uma realidade histórica específica do capitalismo, uma diferenciação real da ‘economia’; e talvez seja possível reformulá-los, para que se tornem mais esclarecedores, pelo reexame 733

Democracia contra capitalismo, p. 21.

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das condições históricas que tornaram possíveis e plausíveis essas concepções. O objetivo desse reexame não seria explicar a ‘fragmentação’ da vida social no capitalismo, mas entender exatamente o que aparece, na sua natureza histórica, como uma diferenciação das ‘esferas’, principalmente a ‘econômica’ e a ‘política’. 734

Portanto, para ela, a questão é explicar como e em que sentido o capitalismo enfiou uma cunha entre o econômico e o político – como e em que sentido questões eminentemente políticas, como a disposição do poder de controlar a produção e a apropriação, ou a alocação do trabalho e dos recursos sociais, foram afastadas da arena política e deslocadas para uma outra esfera. 735

Ainda segundo os argumentos de Ellen Wood, diferentemente do que propõem aqueles a que ela chama economicistas, a “própria estrutura do argumento [do volume I d’O capital] sugere que, para Marx, o segredo último da produção capitalista é político736”, ao que a autora, seguindo a tradição de Robert Brenner, defende o que compreendem por “marxismo político” 737 (pág. 32). Segundo ela, o ‘marxismo político’, [...] não apresenta as relações entre base e superestrutura como uma oposição, uma separação ‘regional’, entre uma superestrutura econômica básica, ‘objetiva’, de um lado, e formas sociais, jurídicas e políticas, de outro, mas, ao contrário, como uma estrutura contínua de relações e formas sociais com graus variáveis de afastamento do processo imediato de produção e apropriação, a começar das relações e formas que constituem o próprio sistema de produção. As ligações entre ‘base’ e ‘superestrutura’ podem então ser identificadas sem grandes saltos conceituais porque não representam duas ordens de realidade essencialmente diferentes e descontínuas. 738

Aqui nos parece que Ellen Wood perde bastante a mão. Salvo caricaturas do marxismo de cartilha, sabemos que o debate entre base e superestrutura, quaisquer que sejam seus equívocos – a serem demonstrados – nunca se tratam de “saltos conceituais” ou “duas ordens de realidade essencialmente diferentes e descontínuas”. Aqui é a ocasião de citarmos a apreciação do Professor Eduardo Mariutti em suas “Notas sobre o pensamento de Ellen Meiksins Wood”, onde afirma que quem tem alguma familiaridade com o debate marxista sobre a transição deve ter percebido que a base da interpretação de Ellen Wood é de terceira mão: o horizonte geral fica dentro dos marcos estabelecidos originalmente por Perry Anderson em Passages from P. 27. P. 28. 736 Mesma página. 737 P. 32. 738 Mesma página. 734 735

323

Antiquity to Feudalism e, de forma mais direta e elegante em Lineages of the Absolutist State. Robert Brenner, um de seus mais célebres epígonos, sistematizou – e empobreceu – a discussão, condensando o sofisticado argumento básico de Anderson no conceito de “acumulação política” que, a seu ver, conduziu à formação do Estado Feudal. Na sequência, para explicar as diferentes trajetórias trilhadas durante a crise do feudalismo, Brenner desenvolveu uma espécie de tipologia das relações sociais de propriedade em disputa na era moderna, dando ênfase à contraposição entre a França e Inglaterra, em contraste com o “capitalismo comercial” holandês. Posteriormente, Brenner sistematizou ainda mais esse traço do seu pensamento, reforçando a tendência anterior, isto é, de propor uma extravagante análise combinatória centrada na variação das social property relations. O argumento básico é o seguinte: as diferentes relações sociais de propriedade geram os limites e as possibilidades dentre os quais os atores econômicos (indivíduos e famílias) interagem. Isto gera regras de reprodução, isto é, as possíveis estratégias econômicas seguidas pelos atores que, por sua vez, produzem certos padrões de desenvolvimento. É a partir daí – sem questionar ou tentar ultrapassar esses marcos – que, com alguma entonação própria, Ellen Wood adentra na discussão, justapondo ao modelo básico desenhado por Brenner outras temáticas739.

Segundo Mariutti, inclusive, a filiação de Ellen Wood ao “marxismo político” inspirado por Brenner é responsável pelos equívocos em torno da distinção entre “econômico” e “político”. Em seu julgamento sumário, Mariutti afirma que “essa distinção crua e quase dicotômica entre a dimensão “política” e a “econômica” é, infelizmente, um efeito colateral nocivo da filiação ao “marxismo político” inspirado por Brenner”. “Mas”, segue Mariutti, “a despeito dessas trapalhadas, a meu ver, a direção inicialmente divisada por Ellen Wood é bastante frutífera” 740. Mariutti segue afirmando que, para ele, a obra de Ellen Wood é uma referência obrigatória para se repensar o materialismo histórico e, essencialmente, refletir sobre a prática política da esquerda em um período marcado por crescentes tensões sociais. No entanto, a despeito da sofisticação, amplitude e qualidade do seu pensamento, nele ressoam ecos de um formalismo despropositado, que gera fricções e ruídos desnecessários. A raiz do problema deriva da sua obsessão pela tese da centralidade da Inglaterra na formação do capitalismo. 741 Contudo, não é difícil eliminar esses ruídos. O primeiro passo envolve abandonar de vez a tipologia das “relações sociais de propriedade” como um meio de tentar preencher o hiato entre a esfera econômica e a política. Com isso é possível retornar à rota mais promissora, isto é, o

Mariutti, Notas sobre o pensamento de Ellen Meiksins Wood, Unicamp, Textos para Discussão 248, 2014, pág. 2. 740 P. 5. 741 P. 6. 739

324

esforço de recentrar o problema na dinâmica da luta de classes que se manifesta em todas as dimensões da vida social. 742

O que Mariutti deixa passar batido, entretanto, é uma segunda influência decisiva para a maneira como Ellen Wood constrói seu esquema interpretativo e que é outra avenida pela qual o formalismo penetra forçosamente a despeito de quaisquer intenções em contrário: a tese do “desenraizamento do econômico”, de Karl Polanyi, citado ostensivamente ao longo dos trabalhos de Ellen Wood. Tanto em A origem do capitalismo

quanto em Democracia contra Capitalismo (no capítulo História ou

743

Teleologia? Marx versus Weber), apontado no “debate sobre a transição” como “uma exceção digna de nota”. Neste segundo, a título de exemplo, Wood afirma que “o historiador econômico Karl Polanyi (cujas afinidades com o marxismo sempre pareceram maiores do que ele se dispunha a reconhecer)” é uma “notável exceção” 744 . A simpatia por ele é visível, e sobrevive amplamente às críticas eventualmente sobrepostas à incorporação de sua tese, como fica claro quando Wood afirma que

P. 7. A origem, páginas 29 e seguintes. 744 Democracia contra Capitalismo, p. 134. 742 743

325

somente na sociedade de mercado, segundo Polanyi, é que há uma motivação econômica distinta, instituições econômicas distintas e relações separadas das relações não-econômicas. Visto que os seres humanos e a natureza – sob a forma do trabalho e da terra – são tratados, ainda que de maneira fictícia, como mercadorias, num sistema de mercados auto-regulados e movidos pelo mecanismo dos preços, a própria sociedade torna-se um apêndice do mercado. A economia de mercado só pode existir numa sociedade de mercado, isto é, numa sociedade em que, em vez de uma economia inserida nas relações sociais, as relações sociais é que se inserem na economia. Polanyi não é o único, claro, a assinalar o papel secundário do mercado nas sociedades pré-capitalistas. [...] Mas a descrição de Polanyi é particularmente notável por sua clara demarcação da ruptura entre a sociedade de mercado e as sociedades não mercadológicas que a precederam, inclusive as sociedades com mercado – não apenas as diferenças entre as respectivas lógicas econômicas, mas também as mudanças sociais que essa transformação acarretou. O sistema dos mercados autoreguladores, insiste Polanyi, foi tão perturbador não apenas para as relações sociais, mas também para a psique humana, e tão terríveis foram seus efeitos sobre a vida humana, que a história de sua implantação teve que ser, ao mesmo tempo, a história sobre a proteção contra suas devastações. 745

Ellen Wood apresenta pelo menos duas críticas importantes a Polanyi são importantes: sua crença de que o “progresso espontâneo” parece inevitável

; e, ao

746

contrário do que ele afirma, “a transformação radical das relações sociais precedeu a industrialização”

. E sob nosso ponto de vista, ainda temos que demarcar a diferença

747

primordial: enquanto Polanyi aposta no Estado como entidade capaz de controlar o ritmo das mudanças, a posta teórica de Wood coloca a autonomia do povo no centro da questão. Mas não pensamos estar exagerando quando afirmamos que a influência de Polanyi sobre Wood, parafraseando-a ao contrário, é muito maior do que ela parece disposta a reconhecer. E isso não apenas com relação à autonomia do mercado supostamente auto-regulador e “desenraizado” como também sobre a questão da “distribuição” e “redistribuição” – que aparece esparsamente em sua obra. Mas, sobretudo, e aqui vemos a entrada forçosa do formalismo, na própria distinção entre “economia formal” e “economia substantiva” que, a despeito dessa aparentemente sagaz percepção inicial, não consegue superar o desafio a que se propõe, gerando um semnúmero de confusões que a distinção formal jamais poderia dar conta de resolver.

Páginas 31 e 32. P. 33. 747 P. 34. 745 746

326

Voltando à maneira como a autora estava formulando a sua distinção entre o “econômico” e o “político”, “o que significa então dizer que o capitalismo é marcado por uma diferenciação única da esfera econômica?” Significa muitas coisas: que a produção e a distribuição assumem uma forma completamente ‘econômica’, deixam (como disse Karl Polanyi) de estar envoltas em relações sociais extra-econômicas, num sistema em que a produção é geralmente produção para a troca; que a alocação do trabalho social e a distribuição dos recursos são realizadas por meio do mecanismo ‘econômico’ da troca de mercadorias; que as forças ‘econômicas’ dos mercados de mercadorias e de trabalho adquirem vida própria; que, citando Marx, a propriedade ‘recebe a forma puramente econômica pelo abandono de todos os ornamentos e associações políticos e sociais anteriores’. Significa, acima de tudo, que a apropriação do excedente de trabalho ocorre na esfera ‘econômica’ por meios ‘econômicos’. Em outras palavras, obtém-se a apropriação de mais-valia por meios determinados pela separação completa do produtor das condições de trabalho e pela propriedade absoluta dos meios de produção pelo apropriador. Em princípio, não há necessidade de pressão ‘extra-econômica’ ou de coação explícita para forçar o operário expropriado a abrir mão de sua mais-valia. Embora a força de coação da esfera política seja necessária para manter a propriedade privada e o poder de apropriação, a necessidade econômica oferece a compulsão imediata que força o trabalhador a transferir sua mais-valia para o capitalista a fim de ter acesso aos meios de produção. O trabalhador é ‘livre’, não está numa relação de dependência ou servidão; a transferência de mais-valia e a apropriação dela por outra pessoa não são condicionadas por nenhuma extração não-econômica. A perda da mais-valia é uma condição imediata da própria produção. Sob esse aspecto o capitalismo difere das formas pré-capitalistas porque estas se caracterizam por modos extra-econômicos de extração da mais-valia, a coação política, legal ou militar, obrigações ou deveres tradicionais etc., que determinam a transferência de excedentes para um senhor ou para o Estado por meio de serviços prestados, aluguéis, impostos e outros. A diferenciação da esfera econômica no capitalismo pode, portanto, ser assim resumida: as funções sociais de produção e distribuição, extração e apropriação de excedentes, e a alocação do trabalho social são, de certa forma, privatizadas e obtidas por meios não-autoritários e nãopolíticos. Em outras palavras, a alocação social de recursos e de trabalho não ocorre por comando político, por determinação comunitária, por hereditariedade, costumes, nem por obrigação religiosa, mas pelos mecanismos de intercâmbio de mercadorias. Os poderes de apropriação de mais-valia e de exploração não se baseiam diretamente nas relações de dependência jurídica ou política, mas sim numa relação contratual entre produtores ‘livres’ – juridicamente livres e livres dos meios de produção – e um apropriador que tem a propriedade privada absoluta dos meios de produção. 748

Mas como dar prosseguimento a essa distinção formal se, na realidade, as coisas não são tão separadas assim – conforme tanto Polanyi quanto a própria autora? Para ela, 748

Páginas 34 e 35.

327

falar da diferenciação da esfera econômica nesses sentidos não é sugerir que a dimensão política seja, de certa forma, estranha às relações capitalistas de produção. A esfera política no capitalismo tem um caráter especial porque o poder de coação que apóia a exploração capitalista não é acionado diretamente pelo apropriador nem se baseia na subordinação política ou jurídica do produtor a um senhor apropriador. Mas são essenciais um poder e uma estrutura de dominação, mesmo que a liberdade ostensiva e a igualdade de intercâmbio entre capital e trabalho signifiquem a separação entre o ‘momento’ da coação e o ‘momento’ da apropriação. A propriedade privada absoluta, a relação contratual que prende o produtor ao apropriador, o processo de troca de mercadorias exigem formas legais, aparato de coação e as funções policiais do Estado. Historicamente, o Estado tem sido essencial para o processo de expropriação que está na base do capitalismo. Em todos esses sentidos, apesar de sua diferenciação, a esfera econômica se apóia firmemente na política. Ademais, a esfera econômica tem em si uma dimensão jurídica e política. Num sentido, a diferenciação da esfera econômica propriamente dita quer dizer apenas que a economia tem suas próprias formas jurídicas e políticas, cujo propósito é puramente ‘econômico’. Propriedade absoluta, relações contratuais e o aparelho jurídico que as sustenta são condições jurídicas das relações de produção capitalista; e constituem a base de uma nova relação de autoridade, dominação e subjugação entre apropriador e produtor. 749

Aqui, parece que a questão se torna mais interessante e mais sofisticada do que a existência de uma coerção “puramente econômica”, e vemos que, da maneira como ela vem argumentando, a questão é a transformação do “político”, por que o correlato dessas formas econômicas e jurídico-políticas privadas é uma esfera política pública especializada. A autonomia do Estado capitalista está inseparavelmente ligada à liberdade jurídica e à igualdade entre seres livres, à troca puramente econômica ente produtores expropriados livres e apropriadores privados que têm propriedade absoluta dos meios de produção e, portanto, uma nova forma de autoridade sobre os produtores. É esse o significado da divisão do trabalho em que dois momentos da exploração capitalista – apropriação e coação – são alocados separadamente à classe apropriadora privada e a uma instituição coercitiva pública, o Estado: de um lado, o Estado ‘relativamente autônomo’ tem o monopólio da força coercitiva; do outro, essa força sustenta o poder ‘econômico’ privado que investe a propriedade capitalista da autoridade de organizar a produção – uma autoridade provavelmente sem precedentes no grau de controle sobre a atividade produtiva e os seres humanos nela engajados. 750

Diferentemente de uma separação entre o “político” e o “econômico”, “há no capitalismo uma separação completa entre a apropriação privada e os deveres públicos;

749 750

P. 35. P. 36.

328

isso implica o desenvolvimento de uma nova esfera de poder inteiramente dedicada aos fins privados, e não aos sociais”. Sob esse aspecto, o capitalismo diferiria de formas pré-capitalistas, nas quais a fusão dos poderes econômico e político significava não apenas que a extração da mais-valia era uma transação ‘extra-econômica’ separada do processo de produção em si, mas também que o poder de apropriação da mais-valia – pertencesse ele ao Estado ou a algum senhor privado – implicava o cumprimento de funções militares jurídicas e administrativas. Em certo sentido, então, a diferenciação entre o econômico e o político no capitalismo é mais precisamente a diferenciação das funções políticas e sua alocação separada para a esfera econômica privada e para a esfera pública do Estado. [...] Essa formulação, que sugere ser a diferenciação do econômico na verdade uma diferenciação dentro da esfera política, é sob certos aspectos mais adequada para explicar o processo único de desenvolvimento ocidental e o caráter especial do capitalismo. 751

Ao nosso juízo, essa explicação ainda teria que dar conta de uma série de questões, mas a questão descamba totalmente quando a autora precisa argumentar que “a organização capitalista de produção pode ser considerada o resultado de um longo processo em que certos poderes políticos se transformaram gradualmente em poderes econômicos e foram transferidos para uma esfera independente752”. Toda a argumentação anterior implicava na dupla relação entre os dois. Então de onde vem essa insistente separação? Talvez porque, para ela, o capitalismo tem a capacidade única de manter a propriedade privada e o poder de extração de excedentes sem que o proprietário seja obrigado a brandir o poder político direto no sentido convencional. O Estado – que é separado da economia, embora intervenha nela – pode aparentemente pertencer (por meio do sufrágio universal) a todos, apropriador e produtor, sem que se usurpe o poder de exploração do apropriador. A expropriação do produtor direto simplesmente torna menos necessário o uso de certos poderes políticos diretos para a extração de excedentes, e isso é exatamente o que significa dizer que o capitalista tem poderes econômicos, e não extra-econômicos, de exploração. 753

Desta maneira, poder-se-ia argumentar que a coação política direta foi excluída do processo de extração de excedentes e removida para um Estado que em geral intervém apenas indiretamente nas relações de produção, e a extração de excedentes deixa de ser uma coação política imediata. Isso quer dizer que se muda necessariamente o foco da luta de classes. Como sempre, dispor do trabalho excedente continua a ser a questão central do conflito de Mesma página. P. 40. 753 P. 43. 751 752

329

classes; mas agora essa questão não se distingue da organização de produção. A luta pela apropriação aparece não como uma luta política, mas como uma batalha em torno dos termos e das condições de trabalho. 754

O destaque para a dimensão “política” nas obras de Ellen Wood é destacada por Darlan Montenegro, professor de teoria política da UFRRJ, em artigo chamado “A separação entre o econômico e o politico e a questão da democracia no pensamento de Ellen M. Wood”, publicado na revista Crítica Marxista número 34. Nele, Darlan argumenta que a obra de Ellen Wood é atravessada por uma preocupação fundamental, que se repete em diversos de seu trabalho. Trata-se do tema da relevância da política como instrumento de dominação social e do lugar dos conflitos especificamente políticos nos processos de transição entre os diferentes modos de produção e de dominação de classe, e, eventualmente, na superação dessa dominação. 755

Segundo a interpretação de Darlan, que nos parece correta, embora a ênfase seja mais dele do que dela, com efeito, a tentativa de Wood é a crítica de uma forma específica de separação entre econômico e político que opera simultaneamente no plano da teoria (e nas justificações) e no plano concreto. Em suas próprias palavras, para Wood, “trata-se, em primeiro lugar, de contrarrestar, do ponto de vista teórico e ideológico, a aparente/real separação das esferas econômica e política que se encontra no núcleo da dominação burguesa e da ideologia liberal que lhe dá sustentação756”. Aqui faríamos uma ressalva importante ao argumento de Darlan, uma vez que nos parece que a separação entre valores capitalistas e valores burgueses e o combate à “tendência permanente a fazer de ‘burguês’ um sinônimo de capitalista”

757

é uma

questão fundamental para a autora em várias de suas obras e inclusive seu roteiro de pesquisa dedica bastante espaço para a demonstração de que, diferentemente do que afirma a historiografia “tradicional”, a burguesia – “classe urbana” – não cumpriu qualquer papel revolucionário. Até preferimos a maneira como Darlan explica o problema, mas desconfiamos que é um desvio considerável dos termos de Ellen Wood. Inclusive, se na versão original de 1981 citada por Darlan o termo utilizado pela autora é “bourgeois ideology”, na edição revisada de 1995 Wood alterou para “capitalist ideology”. Inclusive pela sua insistência na crítica à origem agrária do capitalismo a – necessária – P. 47. P. 111. 756 P. 112. 757 A origem, P. 63. 754 755

330

crítica ao pensamento burguês, inclusive o fato de que ele tende a tomar por verdade as representações teóricas não está no horizonte de pesquisas de Ellen Wood – em cujas teses nem sempre é claro quando se trata de uma realidade e quando se trata de uma representação teórica. Caso estivessem, dado o que discutimos no capítulo anterior, acreditamos que boa parte dos problemas em que Wood incorre poderiam ser evitados. Sob nosso ponto de vista, diferentemente do que Darlan sugere, a crítica de Ellen Wood sobre a separação das esferas – salvo uma ou outra indicação em contrário – predominantemente segue bem mais a linha de Polanyi do que a de Marx. Vejamos como essa separação analítica polaniniana cria problemas práticos. Para Wood, [...] as lutas no plano da produção, mesmo quando encaradas pelos seus aspectos econômicos como lutas em torno dos termos de venda da força de trabalho ou das condições de trabalho, permanecem incompletas, pois não se estendem até a sede do poder sobre a qual se apóia a propriedade capitalista, que detém o controle da produção e da apropriação. Ao mesmo tempo, batalhas puramente ‘políticas’ em torno do poder de governar e dominar continuarão sem solução enquanto não implicarem, além das instituições do Estado, os poderes políticos que foram privatizados e transferidos para a esfera econômica. Nesse sentido, a própria diferenciação entre o econômico e o político no capitalismo – a divisão simbiótica de trabalho entre classe e Estado – é precisamente o que torna essencial a unidade das lutas econômicas e políticas, e que é capaz de tornar sinônimos socialismo e democracia. 758

No fim das contas, as lutas políticas precisam incluir os aspectos econômicos e as lutas econômicas devem incluir os aspectos políticos. Mesmo porque, retomando os argumentos posteriores, para a imposição dos imperativos “puramente ‘econômicos’” a cada dia se precisa mais dos imperativos “não-econômicos”. Analisando as duas obras separadamente, temos que a formulação de 1981, republicada em 1995 é bastante mais clara do que aquela publicada em 2003. Poder-se-ia argumentar que isto se deve ao fato de que aquela obra era escrita diretamente com este propósito e que a obra posterior, por versar sobre outros assuntos, não poderia dedicar a este a mesma atenção. Ainda que verossímil, nos parece pouco convincente. Dada a coerência interna de sua agenda de pesquisa e a precocidade com que as questões fundamentais de 2003 já aparecem anteriormente em seus textos, poderíamos esperar que a autora fosse menos confusa quando colocasse o seu “esquema” à prova. Poderíamos acrescentar, se necessário, que a discussão sobre as formas da produção serem “econômicas” (e não “políticas”) e sobre 758

P. 49.

331

as formas de governar serem “políticas” (e não “econômicas”) já é uma forma bastante fetichizada de apresentar as propostas. Mas o fato de que a própria autora não consegue desdobrar seu esquema sobre as especificidades do capitalismo para as especificidades do imperialismo capitalista – mesmo fazendo as considerações lógicas necessárias e se ocupando corretamente de um grande conjunto de questões – é prova mais do que suficiente que aquele esquema não pode dar conta do desafio a que se propõem. Do nosso lado, existem problemas analíticos importantes, como o fetichismo das formas jurídicas que, por sua vez, repousa no fetichismo das classificações “científicas” (“política”, “economia”, “direito”) elas mesmas. Mas, ainda mais importante, é o fato de que, concretamente, as coisas são ao mesmo tempo políticas, jurídicas, econômicas, religiosas, etc. Em si mesmas, concretamente, todas as coisas são totais. Vamos voltar ao assunto mais à frente, no desfecho da tese. Por hora, precisamos apreciar os argumentos de David Harvey sobre o imperialismo contemporâneo. Conforme veremos, e aquela gente que estiver lendo essa tese provavelmente já o conheça, Harvey apresenta uma hipótese de compreensão da realidade que reside justamente na impossibilidade de classificar o capitalismo somente a partir da extração “econômica” da mais-valia. Para ele, em tese já bastante debatida, a acumulação se dá tanto pela via “econômica” da “reprodução ampliada” quanto pela via “extra-econômica” da “acumulação por espoliação” (despossession). Adiantamos que consideramos a proposição de Harvey bastante instigante. Mas ela também gera um importante conjunto de problemas que procuraremos

explicitar.

333

Capítulo 8. Alguns comentários sobre a especificidade do “Novo Imperialismo Capitalista” na interpretação de David Harvey “Tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim”

(Paulinho da Viola)

Sob nosso ponto e vista, independentemente de qual for o método empregado para a compreensão de um período histórico, a principal dificuldade reside em estabelecer as conexões de sentido entre os acontecimentos mais imediatos e suas causas, tanto aquelas mais próximas desses acontecimentos quanto aquelas mais remotas. De alguma maneira, cada um dos trabalhos de história – ou que tenham a preocupação com a história dentre suas tarefas – precisa lidar com este problema. Quanto às soluções, nem sempre podem ser encontradas a priori dentro de um método específico. Agora, enquanto esforço teórico – como vimos insistindo desde o princípio – essa já nada simples tarefa, ainda precisa enfrentar uma dificuldade adicional: como se posicionar diante da tradição historiográfica anterior sobre o assunto e seu conjunto de arcabouços explicativos. Existe uma posição bastante consolidada segundo a qual se deve procurar erigir um conjunto explicativo perfeitamente coerente com o corpo teórico escolhido, de forma “pura”, geralmente associando “pureza” com “rigor”. As dificuldades decorrem exatamente que, qualquer que seja o desenvolver-se dessa teoria, as divergência inevitavelmente aparecem e, assim, a disputa sobre qual das posições é mais ou menos “pura”, que por seu turno conduz invariavelmente a lutas fratricidas nem sempre compreensíveis senão sob a ótica da disputa interna do poder, que transforma aliados em antagonistas e a resolução do problema a um plano completamente inferior. Sob o nosso ponto de vista, para que fique registrado, discordamos frontalmente dessa posição. Ainda que o rigor seja crucial para o desenvolvimento de qualquer idéia que se pretenda inserida em qualquer tipo de diálogo – sob o risco de, não cumprindo com o rigor, a própria comunicação dissolver-se em subjetivismos infinitos – a identificação entre “rigor” e “pureza teórica” nos parece amplamente discutível. E

334

dizemos isso por uma razão mais simples do que a tarefa que enunciamos: defendemos o ponto de vista de que os argumentos devem ser avaliados pela sua consistência e sua capacidade de fazer o que se propõe, bem como com pelas consequências desses argumentos a partir dos diálogos em que eles se apresentam em termos de projetos políticos concretos. Em síntese: “ecletismo” – a postura de procurar referências em diversos métodos e tentar alinhavá-las em um todo coerente759 – pode ser um rótulo conveniente para detratar argumentos, mas por si só, não é crítica. O que importa é se esse ecletismo implica em problemas para explicar o que se propõe; problemas com a tradição historiográfica anterior; e/ ou problemas com relação aos projetos políticos que ele implica. É a partir disso que apreciaremos o desenvolvimento dos argumentos de David Harvey, no mais famoso livro contemporâneo sobre o imperialismo. Anteriormente nosso percurso já exigiu que antecipássemos

algumas

considerações sobre o projeto político que decorre de sua análise sobre o imperialismo e não repetiremos esses argumentos aqui. Nossa ênfase, neste trecho, será, especialmente, sobre as implicações teóricas e a maneira como dialoga com a historiografia específica sobre o imperialismo, além de como podemos nos apropriar das ferramentas teóricas que ele se esforça por oferecer. 760 Dada a maneira com que Harvey organiza o seu argumento não é de se espantar que sua obra seja apreciada de modo muito seletivo. Com efeito, cada uma das partes parece à primeira vista razoavelmente independente e a articulação entre elas não necessariamente oferece um todo coerente. Já tivemos a ocasião de apresentar a parte inicial do livro, da importância do petróleo e da dialética interna da sociedade civil norte-americana e chegaremos à apreciação da parte mais comentada do livro, seu Para ficarmos na definição do dicionário Houaiss: “Ecletismo: substantivo masculino 1 Rubrica: filosofia. diretriz teórica originada na Antigüidade grega, e retomada ocasionalmente na história do pensamento, que se caracteriza pela justaposição de teses e argumentos oriundos de doutrinas filosóficas diversas, formando uma visão de mundo pluralista e multifacetada Obs.: cf. sincretismo. 2 Derivação: por extensão de sentido. qualquer teoria, prática ou disposição de espírito que se caracteriza pela escolha do que parece melhor entre várias doutrinas, métodos ou estilos.” 760 Mas gostaríamos de deixar manifesto que a obra de Harvey é mais ampla do que o livro em questão, que entra em suas preocupações de modo apenas marginal. Quanto aos projetos políticos, pensamos que a linha seguida por Harvey a partir da crítica dos problemas urbanos e da questão da cidade são muito mais interessantes do que a agenda que se desdobra a partir dos problemas do novo imperialismo. Para sermos ainda mais precisos – ainda que somente de passagem, porque a demonstração exigiria uma digressão a qual não podemos nos permitir a essa altura do campeonato – a percepção da importância das lutas locais – onde os problemas da cidade e os conflitos agrários assumem um protagonismo fundamental a análise de Harvey se mostra muito mais potente do que quando vai discutir as questões gerais, pautadas em sua crítica ao neoliberalismo que vêm doutras obras para demonstrar, aqui mais que lá, os seus limites. 759

335

capítulo sobre “A acumulação por espoliação” [Accumulation by Dispossession]. Mas antes procuraremos estruturar um pouco melhor nossa apresentação sobre o conjunto dessa obra.  A questão inicial a ser destacada é a profunda influência do pensamento de Giovanni Arrighi para a constituição dos argumentos de Harvey sobre O Novo Imperialismo. Nas palavras de Harvey, “A idéia inicial de algum tipo de intervenção nas linhas que aqui elaborei ocorreu, de início em termos muito vagos, num seminário conjunto que coordenei com Giovanni Arrighi na John Hopkins University. Contraí com Giovanni Arrighi uma dívida especial761”. Sob nosso ponto de vista – que não poderemos explicitar aqui por necessitar de uma demonstração sistemática de O longo século XX, que teremos que deixar para outra ocasião – bastante acima de todas as demais, essa é a principal referência teórica do livro de Harvey, muito mais importante do que as sempre lembradas influências de Hannah Arendt e Rosa Luxemburg – que de fato são relevantes, mas de uma forma muito específica, como veremos. Ao nosso juízo, essa influência de Arrighi ultrapassa, inclusive, as obras citadas por Harvey – O longo século XX762 e Caos e governabilidade [este, em parceria com Beverly Silver]

763

– e também se dá por ecos no trabalho de Harvey de uma forma de

pensar que pode ser encontrada de forma mais sistematizada em um trabalho anterior de Arrighi: Geometry of Imperialism, de 1973 – não citada por Harvey. A influência de Geometry of Imperialism764 em Harvey pode ser notada em pelo menos quatro questões que nos interessa destacar: 1) a consideração – legítima – sobre as incongruências teóricas entre cada um dxs autorxs que se costuma chamar de clássicxs do imperialismo; 2) o questionamento – legítimo – de que essas teorias não necessariamente explicam o que elas se pretendem, mas que isso deve ser demonstrado; 3) a consideração – sob nosso ponto de vista completamente equivocada – de que “o corpo clássico das teorias do imperialismo como um todo, independente dos méritos científicos e os deméritos de P. 8. ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. Rio de Janeiro/são Paulo: Contraponto/editora Unesp, 1996[1994]. 408 p. Tradução de Vera Ribeiro; Revisão de tradução: César Benjamin. 763 ARRIGHI, Giovanni; SILVER, Beverly. Caos e governabilidade: no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: Contraponto/editora UFRJ, 2001[1999]. 336 p. Tradução de Vera Ribeiro; Revisão de tradução: César Benjamin. 764 ARRIGHI, Giovanni. The Geometry of Imperialism: the limits of Hobson’s Paradigm. London: Verso, 1983[1978]. 761 762

336

qualquer um deles, tinha se tornado irrelevante como esboço para interpretação de eventos histórico-mundiais” pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial765; 4) a sustentação da interpretação – de forma declarada, em Arrighi, velada, em Harvey – segundo a qual as interpretações sobre o imperialismo devem passar pela reconstituição de um conceito a partir das teses de John Hobson766. A questão da imprecisão do conceito se manifesta na primeira definição de imperialismo que Harvey oferece. Segundo ele, “Imperialismo é uma palavra que sai facilmente da boca. Mas tem sentidos tão diferentes que seu uso é difícil sem que se dê dele uma explicação como termo antes analítico que polêmico”

. Mas qual é então a

767

definição de Harvey? Para ele, o imperialismo é uma “fusão contraditória” entre um “projeto distintivamente político” de império e os “processos político-econômicos difusos no espaço e no tempo” 768. Em suas próprias palavras, Defino aqui a variedade especial dele chamada ‘imperialismo capitalista’ como uma fusão contraditória entre a ‘política do Estado e do império’ (o imperialismo como projeto distintivamente político [grifos nossos] da parte de atores cujo poder se baseia no domínio de um território e numa capacidade de mobilizar os recursos naturais e humanos desse território para fins políticos, econômicos e militares) 769 [...] e ‘os processos moleculares de acumulação do capital no espaço e no tempo’ (o imperialismo como um processo político-econômico difuso no espaço

ARRIGHI, Geometry... p. 160. Discutimos, com nosso querido amigo Fabio Pádua dos Santos, essas questões com mais profundidade em “Diálogos Indispensáveis: uma tentativa de aproximação entre as teorias clássicas do imperialismo e a perspectiva dos Sistemas-Mundo: anotações sobre o conceito de hegemonia”, publicada nos anais do VII Colóquio Brasileiro em Economia Política dos Sistemas-mundo (2013), disponível em http://www.gpepsm.ufsc.br/html/arquivos/vii_coloquio_ANAIS_09-12-2013.pdf 767 Mariutti chama a atenção para a semelhança dessa passagem com o parágrafo de abertura de Imperialism: a study, de John A. Hobson, para quem: “A confusão de vagas abstrações políticas é tal que parece impossível apontar de modo acurado os contornos de um ‘ismo’ qualquer para poder formular uma definição que sirva para identifica-lo e distingui-lo dos demais. Em um campo em que as acepções das palavras mudam com tanta rapidez e com tanta sutileza, e não apenas em consequência das mudanças de pensamento, mas frequentemente por conta da ação dos profissionais da política, que manipulam artificialmente e tratam de obscurecer, ampliar ou distorcer o significado das palavras, é perda de tempo demandar o mesmo rigor que é esperado nas ciências exatas. Uma certa consistência geral em sua relação com outros termos do mesmo tipo é a abordagem mais próxima de uma definição que um termo como Imperialismo admite.” P. 3. Enquanto escrevemos nossa tese o professor Eduardo Mariutti está preparando um texto no qual procura recolocar algumas questões que nos são caras a partir da obra de Hobson, mas neste momento este estudo ainda está em sua fase preliminar. 768 P. 31. 769 “Com [essa] expressão desejo acentuar as estratégias políticas, diplomáticas e militares invocadas e usadas por um Estado (ou por um conjunto de Estados que funcionam como bloco de poder político) em sua luta para afirmar seus interesses e realizar suas metas no mundo mais amplo” P. 31. 765 766

337

e no tempo no qual o domínio e o uso do capital assumem a primazia) 770. 771

O enquadramento é claramente hobsoniano, e é fácil perceber porque foi assim reconhecido por Chibber no texto citado, onde ele descreve Harvey como uma espécie de avatar de Hobson (sic), de quem Harvey encarnaria “as duas almas” (sic) uma análise “simultaneamente” “estrutural” (“econômica”) e “conjuntural” (“política”) (sic). Não será aqui que discutiremos profundamente as teses de Hobson, freqüentemente caricaturadas no debate sobre o Imperialismo, que merecem um estudo mais aprofundado e mais tempo para a colocação dos termos em que concebia os problemas de sua época. Mas cumpre-nos anotar aqui que Hobson é citado explicitamente por Harvey apenas duas vezes. Na primeira delas, está posicionado junto com Hilferding, Lenin e Rosa Luxemburgo como um conjunto de “teóricos da virada do século” que Harvey insiste, devem ser superados772. À frente, aparece como um exemplo de alguém que percebeu o problema de que a conversão a uma forma liberal de imperialismo (forma que agregava a si uma ideologia do progresso e de uma missão civilizatória) não resultou de imperativos econômicos absolutos, mas da resistência política da burguesia à renúncia de quaisquer de seus privilégios e, por conseguinte, da recusa em absorver a sobreacumulação internamente por meio de reformas sociais domésticas, mesmo diante de crescentes clamores dos movimentos da classe trabalhadora. 773

Assim, nesta passagem, Harvey parece concordar com Hobson – que segundo ele, “empenhou-se numa política socialdemocrata que se contrapusesse a [essa forma liberal de imperialismo”] – na tese segundo a qual, caso essa burguesia aceitasse as reformas sociais que absorvessem o capital excedente “internamente”, o imperialismo seria evitável. É a posição estritamente antagônica às de Lenin, Hilferding, Luxemburgo e Bukharin, por exemplo. Parece-nos, inclusive, digno de nota que, em artigo posterior no qual retoma as teses deste livro, Harvey viria a argumentar que “nós não podemos [...]

“Com esta última expressão, concentro-me nas maneiras pelas quais o fluxo do poder econômico atravessa e percorre um espaço contínuo, na direção de entidades territoriais (tais como Estados ou blocos regionais de poder) ou em afastamento delas mediante as práticas cotidianas da produção, da troca, do comércio, dos fluxos de capitais, das transferências monetárias, da migração do trabalho, da transferência de tecnologia, da especulação com moedas, dos fluxos de informação, dos impulsos culturais e assim por diante.” P. 31. 771 P. 31 e 32. 772 P. 16. 773 P. 107. 770

338

encontrar em Lenin, Luxemburg, Bukharin, Kautsky e assim por diante, uma teoria do imperialismo coerente e apropriada para os nossos tempos” 774 ao que acrescenta: [...] os teóricos clássicos do imperialismo não completaram o projeto teórico de Marx. Eles estavam – compreensivelmente – desesperadamente ansiosos para construir um aparato conceitual para confrontar a rápida deterioração das condições nacionais e internacionais que eram de importância imediata para eles. O resultado, foi um corpo teórico (ou, no caso de Lenin, panfletário) profundamente marcado pelas condições daquele próprio tempo. Mas, eu iria mais longe ainda que Wood e argumentaria que as teorias que eles produziram não eram adequadas nem mesmo para o tempo deles, e as picuinhas [bickering] entre os participantes (como Lenin, Luxemburg, Bukharin e Kautsky) reflete não apenas as posições políticas fundamentalmente distintas sobre o que poderia ser feito, mas também uma falência teórica em encontrar um meio de lidar com as dinâmicas espaço-temporais que vinham há muito tempo construindo um sistema imperialista global que viriam, ao longo do século XX, a produzir as condições que Wood descreveu. Os insights produzidos no debate clássico não estão, contudo, totalmente desprovidos de importâncias contemporâneas [...] Mas as soluções propostas a essas questões eram invariavelmente ad hoc. 775

A questão é bastante controversa, e em certo sentido, procuraremos mais à frente refutar alguns pontos aqui levantados. Por hora, nos basta seguir a pista da “herança” Harvey recebe de Arrighi, explícita do começo ao fim776. A partir dessa definição que acabamos de apresentar, Harvey passa a considerar conceitualmente as tais “duas lógicas” do sistema conceitual de Arrighi. Seu primeiro passo é a constatação de que “aquilo que Arrighi denomina lógica ‘territorial’ do poder e lógica ‘capitalista’ do poder são lógicas que diferem muito entre si” uma vez que as “motivações e interesses dos respectivos agentes divergem”

. Enquanto “o capitalista

777

procura vantagens individuais”; “o homem de Estado procura vantagens coletivas”

.

778

Além disso, “o capitalista opera no espaço e no tempo contínuos, enquanto o político opera num espaço territorializado e, ao menos nas democracias, no âmbito de uma temporalidade ditada por um ciclo eleitoral” e que “as empresas capitalistas vêm e vão, mudam de localização, se fundem entre si ou encerram as operações, mas os Estados são entidades de vida longa, não podem migrar e, exceto em circunstâncias excepcionais de

In what way is “The New Imperialism” really new? Em Historical Materialism 15 (2007), p. 58. P. 59. 776 A título de curiosidade, conforme o “Índice de nomes” da edição brasileira, Arrighi é citado por Harvey em 11 ocasiões. Lenin e Marx, 12 vezes cada. Luxemburgo, em 10. Hilferding, 4. Kautsky, 3. Bukharin, 0. Arendt, a campeã, é citada em 14 ocasiões. 777 P. 32. 778 Mesma página. 774 775

339

conquista geográfica, estão confinados a fronteiras territoriais fixas” 779. Além disso, “há outros contrastes entre essas duas lógicas”

780

. Parecem-nos um bom tanto idealizadas,

mas vamos lá: “as políticas do Estado e do Império do tipo por que ora passamos se acham abertas à discussão e ao debate” e “é necessário tomar decisões claras que exibem todo tipo de ramificação” 781, enquanto “os processos geográficos de acumulação do capital, por outro lado, são bem mais difusos e menos suscetíveis de decisões políticas explícitas [...]” 782. Contudo, independente de quaisquer ponderações sobre um ou outro ponto, Harvey defende que o fundamental é ver que as lógicas territorial e capitalista do poder diferem entre si. Porém é igualmente inegável que essas duas lógicas se entrelaçam de formas complexas e por vezes contraditórias. A literatura sobre o imperialismo e o império supõe com demasiada frequências um fácil acorde entre elas: que os processos político-econômicos são guiados pelas estratégias do Estado e do império e que os Estados e os impérios sempre agem a partir de motivações capitalistas. Na prática, é muito comum que essas duas lógicas vivam em confronto em algumas ocasiões a ponto de um total antagonismo. 783

Não concordamos, mais uma vez, com a leitura segundo a qual “a literatura sobre o imperialismo e o império supõe com demasiada frequência um fácil acordo entre elas”. Nem ao menos nos parece tão claro que essa “literatura” aborde o problema principalmente a partir dessa separação entre “economia” e “política” (que estão por trás dessas “lógicas”, como procuramos demonstrar). Embora à primeira vista essa seja uma leitura verossímil, outras também o são – trataremos disso na sequência – e nos parece que seria justo que essa hipótese de leitura fosse demonstrada com mais cuidado do que é feito, que já parte do suposto de que, no máximo, ali se encontram boas intuições e curiosidades históricas sobre aquele período. Mas voltando a Harvey, naquilo que constitui um dos passos fundamentais do seu arcabouço explicativo, ele argumenta que “a relação entre essas duas lógicas deveria, pois, ser vista como problemática e muitas vezes contraditória (ou seja, dialética) em vez de cooperativa ou unilateral”

. Não nos parece uma definição muito proveitosa do

784

método dialético, que a nosso juízo não pode ser reduzido a uma relação “problemática” ou, nem mesmo “contraditória”, mas já tivemos a ocasião de argumentar sobre isso. Mesma página. Mesma página. 781 Mesma página. 782 P. 33. 783 P. 34. 784 Mesma página. 779 780

340

Sublinhamos esse fato aqui, porque dessa definição Harvey deriva diversas outras, sob a mesma concepção. Por hora deve-se reter que, para ele essa relação dialética cria o arcabouço para um análise do imperialismo capitalista em termos da interseção dessas duas lógicas diferentes mas interligadas. A dificuldade que afeta análises concretas de situações reais é manter os dois lados dessa dialética em movimento simultâneo sem cair no modo de argumentação puramente político ou predominantemente econômico. 785

Conforme esperamos já tenha ficado claro, temos razões para defender que a própria formulação do problema de modo a separar a “lógica territorial” (política) e a “lógica da acumulação” (econômica) necessariamente acaba por implicar em problemas na manutenção do “movimento simultâneo”

786

. Implícita ou explicitamente sempre se

acaba recorrendo ao ardiloso argumento da “última instância” – que, “no limite”, reduz tudo o mais a ele próprio. Com Harvey não é diferente, como veremos. Mas sigamos o argumento passo a passo, lembrando que o próprio autor reconhece que “nem sempre é fácil determinar a importância relativa dessas duas lógicas na geração da mudança social e política” 787, quando ele próprio reconhecer que o seu recorte [porque nacional?] é problemático, na medida em que há naturalmente boa parcela de desenvolvimentos geográficos desiguais fundados em parte em relações assimétricas de troca no interior dos Estados. Entidades políticas subnacionais, como governos metropolitanos ou regionais, envolvem-se de modo crucial nesse processo. Mas de modo geral não se chama isso de imperialismo. Embora alguns gostem de falar, com alguma justificação, de neocolonialismo interno ou mesmo de imperialismo metropolitano (da parte de Nova York ou de São Francisco), prefiro deixar o exame do papel que entidades regionais ou subnacionais podem ter no tocante ao imperialismo para uma teoria mais geral dos desenvolvimentos geográficos desiguais. O efeito disso é reservar o termo ‘imperialismo’, ao menos pro tem [por enquanto], a uma propriedade das relações e dos fluxos de poder entre Estados no âmbito de um sistema global de acumulação do capital. Do ponto de vista da acumulação do capital, a política imperialista envolve, no mínimo, a manutenção da exploração de quaisquer vantagens em termos de dotação de recursos e de assimetrias que se possa adquirir mediante o poder do Estado. 788

Então temos outro ponto, que é crucial para Harvey e que vai se mostrar a base do seu argumento. Para ele, ainda seguindo Arrighi, mais importante do que a constatação de que essas duas “lógicas” coexistem e se inter-relacionam é preciso Mesma página. Mesma página. 787 Mesma página. 788 Páginas 35 e 36. 785 786

341

considerar a questão do ponto de vista do tempo, uma vez que “em todo momento histórico-geográfico dado, uma ou outra dessas lógicas pode predominar”

. Então

789

avançamos um posto na definição da especificidade do imperialismo capitalista, uma vez que “o que distingue o imperialismo capitalista de outras concepções do império é que nele predomina tipicamente a lógica capitalista”; ainda que, “como veremos, [há] momentos em que a lógica territorial venha para o primeiro plano (p. 36)”. Em absoluto nos parece uma definição consistente. Se o imperialismo é capitalista, nada mais óbvio do que o fato de que nele predomina a lógica capitalista [!]. E se em alguns momentos predomina a lógica territorial, qual é a especificidade, afinal? Assim, voltamos para o mesmo problema de Ellen Wood: a insistência na importância de argumentar em favor da especificidade formal é desmentida pela análise concreta. Mas enquanto para Wood a questão da “predominância” ainda não era suficiente, e era preciso argumentar em favor da “pureza”; para Harvey a questão é que essa “predominância” não vale durante todo o período do imperialismo capitalista. Tendo isso em mente, para nós, que estamos procurando responder à questão: “quais são as relações específicas deste período histórico?”, a “predominância da lógica capitalista” é um péssimo critério de demarcação da especificidade do período, porque, como o próprio autor afirma, ela nem sempre é predominante mesmo durante este período. Sob nosso ponto de vista, precisamos rejeitar esse procedimento, em busca de uma formulação “predominantemente” histórica, muito diferente da definição tanto de Ellen quanto de David. Tanto uma quanto outro apresentam uma definição eminentemente analítica (“economia-política” / “lógica territorial” – “lógica da acumulação”), diante do que pouco importa quantos causos “históricos” sejam usados para ilustrar o argumento. E desta perspectiva, não parece ser um problema para nenhum delxs que o específico do momento histórico não é específico de todo o momento histórico. Wood explica isso recorrendo à idéia de “paradoxos” e Harvey, recorre às “contradições”. Assim, supostamente a equação deveria fechar. Mas a questão não é tão simples, como eles mesmos percebem. Diante do impasse, recorrem a diversos raciocínios circulares que buscam afirmar e relativizar a especificidade790.

789 790

P. 36.

342

Nos debates que seguiram as publicações de ambos os livros (Império do Capital e O Novo Imperialismo) pode-se perceber nitidamente como nem um nem outra conseguiram resolver de forma clara o problema que elxs próprixs se colocaram: a especificidade do “império do capital” (Wood) e a especificidade da “forma atual do imperialismo capitalista” (Harvey). No simpósio sobre o livro de Wood, Harvey apresenta uma comunicação perguntando, afinal, “Em que sentido ‘o novo imperialismo’ é realmente novo?”. Prasenjit Bose pergunta: “‘Novo’ Imperialismo?” e acrescenta, “Sobre a globalização e os Estados-nação”. Já o simpósio sobre o livro de Harvey, é marcado por intervenções como “Imperialismo Velho e Novo” de Bob Sutcliffe; “O que é, e o que não, é imperialismo?” de Bob Brenner e “Debatendo o ‘novo’ imperialismo”, de Ben Fine791. Nenhuma das explicações é convincente. No máximo, se levanta ao final as mesmas perguntas do começo. A questão, sobre nosso ponto de vista, entretanto, pode ser sintetizada pelo fato de que não é possível resolver a questão da especificidade de um período de uma perspectiva analítica (com a separação de cada uma das “esferas da existência” – “economia”, “política”, etc.). Talvez seja possível resolvê-la de outra perspectiva (“nãoanalítica”, ou, por conseguinte: “sintética”) – com o que esperamos contribuir com esse trabalho. Mas voltemos à maneira como o problema aparece para Harvey, porque ainda temos que cumprir determinados trechos do percurso do seu argumento, que nos interessam diretamente. Para ele, a principal manifestação do problema se dá a partir da seguinte “dúvida crucial” (sic): como pode a lógica territorial do poder, que tende a estar desajeitadamente fixada no espaço, reagir a essa dinâmica espacial aberta da acumulação interminável do capital? E que implicações tem esta última para a lógica territorial do poder? Inversamente, se a hegemonia no sistema mundial é uma propriedade de um Estado ou de um conjunto de Estados, como pode a lógica capitalista ser administrada de modo a sustentar o hegemon? 792

O problema, portanto foi deslocado. Não se trata do imperialismo – uma discussão sobre o capitalismo – mas da transição de hegemonias entre os Estados dominantes do Sistema Internacional. É digno de nota que este é exatamente o problema de Giovanni Arrighi, que refuta o problema do imperialismo e tenta resumi-lo – ao nosso 791 792

Historical Materialism. P. 36.

343

juízo sem sucesso – neste problema da transição hegemônica. Aqui aparecem diversas dificuldades, e para tentar dar conta delas, Harvey lança mão de uma autora controversa, geralmente tornada menor no debate sobre o imperialismo, no qual ela tem contribuições preciosas: Hannah Arendt793. Harvey vai diretamente ao ponto sem considerar que o problema da autora – “as origens do totalitarismo” – e os problemas de Arrighi – a transição das hegemonias do Sistema Internacional – não são necessariamente os mesmos794. Mesmo assim, considera que “Arendt lança luz sobre esse problema por uma arguta observação”, porque segundo ela, uma acumulação interminável de propriedade [...] tem de basear-se numa acumulação interminável de poder... O processo ilimitado de acumulação do capital requer a estrutura política de um ‘Poder ilimitado’, em tal grau que seja capaz de proteger o aumento da propriedade pelo aumento constante de seu poder’. 795

O problema de Arendt é que esses processos – que são constitutivos do capitalismo – não podem ocorrer senão a partir de uma mudança radical na visão de mundo daquelas sociedades, sob a recém-conquistada hegemonia burguesa, que se sustentam em bases de acumulação que exigem o “progresso/acúmulo” infinito de poder e riquezas – ao mesmo tempo em que precisa recriar brutais mecanismos de opressão – que geram o imperialismo – e que posteriormente iriam gerar o totalitarismo796. Em Arendt, portanto, o problema é a compreensão de um sistema de dominação e de acumulação extremamente complexo e opressor. Para Harvey, seguindo Arrighi, a questão é que “se a acumulação do poder tem de acompanhar necessariamente a acumulação do capital, a história burguesa tem de ser uma história de hegemonias que exprimem um poder sempre mais amplo e continuamente mais expansivo797” Nós voltaremos a tratar a questão da hegemonia burguesa no capítulo seguinte, quando formos discutir as teses de Hilferding, onde, sob nosso ponto de vista, a questão está discutida de forma muito mais robusta. Mas por enquanto é preciso dar andamento ao argumento de Harvey, mesmo porque aqui na questão da hegemonia – um problema Contribuições essas que também precisaremos deixar para um eventual “depois”. Longa é a tese, curta é a vida. 794 Sob nosso ponto de vista as traduções deveriam ser feitas com mais “mediações”. Neste caso específico, Harvey passa longe do importantíssimo problema do aumento do totalitarismo em nossos dias. Com boa vontade, podemos dizer que alguns ecos dessa prosa aparecem quando ele discute a ascensão neoconservadora e os Atos Patrióticos nos Estados Unidos. Mas haja boa vontade!. 795 Arendt, Origens, citada por Harvey, nas páginas 36 e 37. 796 Cf.: “Imperialismo”, em Origens do totalitarismo. Quando Arendt prefacia seu livro, em 1967(!), já prenuncia um retorno a essa violência opressiva ilimitada que hoje encaramos. P. 181 e seguintes. 797 P. 37. 793

344

arrighiano – aparece um ponto que lhe é muito caro, tanto no plano “internacional” quanto no plano “interno”: a ênfase nas mudanças no interior do imperialismo capitalista. Por hora vamos anotar que para Harvey, o imperialismo capitalista pode ser dividido em três subperíodos: Ascensão dos imperialismos burgueses: 1870-1945 798; O histórico de pós-guerra da hegemonia norte-americana: 1945-1970 neoliberal: 1970-2000

; Hegemonia

799

. Mas por enquanto não vamos nos deter nos pormenores

800

desses ciclos, porque esse argumento retornará em breve. Passemos – ainda que de forma um tanto abrupta – para a análise que Harvey faz de suas [de Arrighi] “lógicas”. 8.1 “Opressão via capital” Buscando dar conta daquele “duplo movimento” das “lógicas de acumulação” e “lógica do poder”, Harvey apresenta dois capítulos centrais ao seu livro. O primeiro, “Opressão via capital” [Capital Bondage] é dedicado prioritariamente aos “processos moleculares” da acumulação capitalista. A grande questão deste ponto de vista, para ele, é como a lógica capitalista atua sobre a lógica territorial na busca por “‘ordenações espaço-temporais’ para o problema do capital excedente” 801. Em seus termos, os processos moleculares de acumulação do capital podem criar, e efetivamente criam, suas próprias redes e estruturas de operação no espaço de inúmeras maneiras, incluindo o parentesco, as diásporas, os vínculos religiosos e étnicos e os códigos linguísticos como formas de produzir intricadas redes espaciais de atividades capitalistas independentes das estruturas do poder do Estado. Não obstante, a condição preferida para a atividade capitalista é um Estado burguês em que instituições de mercado e regras contratuais (incluindo as do contrato de trabalho) sejam legalmente garantidas e em que se criem estruturas de regulação para conter conflitos de classes e arbitrar entre as reivindicações de diferentes facções do capital (por exemplo, entre interesses mercantis, financeiros, manufatureiros, agrários e rentistas). Políticas relativas à segurança da oferta de dinheiro e aos negócios e relações comerciais externos também têm de ser estruturadas para beneficiar a atividade de negócios. 802

O modo como o Estado exerce um papel central na acumulação, na adoção de arranjos, na taxação e na execução ativa de políticas de acumulação é o assunto do

Páginas 43 e seguintes. Páginas 48 e seguintes. 800 Páginas 58 e seguintes. 801 P. 78. 802 P. 80. 798 799

345

próximo capítulo803. Mas aqui cumpre anotar que cada uma das formações estatais interage com o capital de maneiras particulares, proporcionando diferenças dentro dos tipos de imperialismo 804, dando forma à “importante questão” – sempre segundo Harvey – lançada por Arrighi: “como a relativa fixidez e a lógica peculiar do poder territorial se compatibilizam com a fluida dinâmica da acumulação do capital no espaço e no tempo” .

805

Aqui, Harvey chega mesmo a reconhecer que Lenin e Hilferding estavam certos ao constatar a relação entre monopolização e imperialismo806, uma vez que as mudanças principais do sistema do imperialismo capitalista “advém da lógica molecular”, com a criação de monopólios que proporcionam o surgimento de uma “lógica expansionista geral de um sistema capitalista”

. Em síntese: o capital aparece aqui como o eixo

807

dinâmico da mudança; ou, nas palavras outrora utilizadas – de uma obviedade chocante –: a lógica capitalista “predomina” no imperialismo capitalista. Aqui o Estado parece estar sempre “atrasado” em relação ao capital. Em suas palavras, [...] o capital busca perpetuamente criar uma paisagem geográfica para facilitar suas atividades num dado ponto do tempo simplesmente para ter de destruí-la e construir uma paisagem totalmente diferente num ponto ulterior do tempo a fim de adaptar sua sede perpétua de acumulação interminável do capital. Esta é a história da destruição criativa inscrita na paisagem da geografia histórica completa da acumulação do capital. 808

Além disso, “os processos moleculares de acumulação do capital que operam no tempo e no espaço geram revoluções passivas no padrão geográfico da acumulação do capital. [...] os processos moleculares convergem, por assim dizer, na produção da ‘regionalidade’” 809. Mas o aspecto fundamental a considerar é contudo que uma lógica territorial do poder – uma ‘regionalidade’ –, informal, porosa, mas mesmo assim identificável, advém necessária e inevitavelmente dos processos moleculares de acumulação do capital no tempo e no espaço, e que a competição e a especialização inter-regionais nessas e entre essas

Comprovando que não é nada simples a tarefa de manter um monte de coisas arbitrariamente separadas em constante e simultâneo movimento. 804 P. 80. 805 P. 82. 806 P. 85. 807 Páginas 85 a 88. Esse “reconhecimento”, como vimos, é inconsistente com o que ele viria a afirmar em texto subsequente, no qual esculacha esses autores. 808 P. 88. 809 P. 88. 803

346

economias regionais se tornam por conseguinte um aspecto fundamental do funcionamento do capitalismo. 810 O princípio geral é claro: a regionalidade se cristaliza segundo sua própria lógica a partir de processos moleculares de acumulação do capital que ocorrem no tempo e no espaço. No devido tempo, as regiões assim formadas vêm a desempenhar um papel crucial na maneira como se posiciona o corpo político do Estado como um todo, definido tãosomente de acordo com alguma lógica territorial. 811

Mas como sempre acontece quando parece haver algum tipo de definição, a “contradição” ressurge. E antes que se acuse Harvey de “economicismo” ou algo assim, ele se defende afirmando que o Estado, no entanto, não é inocente, nem necessariamente passivo, em relação a esses processos. Uma vez que reconheça a importância de promover e capturar a dinâmica regional como fonte de seu próprio poder, ele procura influenciar essa dinâmica por meio de suas políticas e ações. Pode em primeira instância fazê-lo ao acaso. [...] O Estado pode, entretanto, usar seus poderes para orquestrar a diferenciação e a dinâmica regionais não só por meio de seu domínio dos investimentos infraestruturais (particularmente nos transportes e comunicação, na educação e na pesquisa), mas também mediante sua própria imposição de leis e de planejamento e aparatos administrativos. Suas capacidades de reforma das instituições básicas necessárias à acumulação do capital também podem ter profundo efeitos (tanto positivos como negativos). 812

Mas, apesar da ressalva, parece que o elemento de mudança são mesmo os processos moleculares de acumulação de capital – e o Estado, diferentemente do que ele acabou de afirmar, é o elemento reativo. O que podemos notar a seguir, quando Harvey afirma que “o cerne do problema que gera pressões em favor de práticas imperialistas813” é “quando os processos moleculares de construção regional ultrapassam as fronteiras do Estado político ou exigem por algum motivo um abrigo para além dessas fronteiras814”. Até aqui, nenhuma novidade. Apesar do raciocínio tortuoso que não pode simplesmente render tributo às teses “clássicas” (de Hilferding, sobre a monopolização do capital financeiro e a exportação de capitais; de Rosa sobre a necessidade de infinita expansão do modo de produção capitalista e assim sucessivamente), o esforço de Harvey é apenas uma tentativa de reatualizar – com linguajar mais típico da Geografia – o arcabouço que Arrighi toma de Lenin e Bukharin – P. 89. P. 91. 812 Páginas 91 e 92. 813 P. 92. 814 Mesma página. 810 811

347

não sem antes dizer que eles não servem pra explicar a atualidade – procedimento padrão de diversas interpretações marxistas contemporâneas sobre o imperialismo. Fica a pergunta, que não quer calar: o que significa tanto esforço por parte da historiografia dos nossos tempos para afirmar que aquelas teses caducaram para em seguida, como se não fosse nada, requentar aquelas mesmas “velhas” e “surradas” idéias? Para nós, essa questão é bem mais difícil de responder do que a constatação evidente

de

que

diversas

“novidades”

teóricas

apresentadas

pelas

gentes

contemporâneas aparecem na historiografia “clássica”, e só são tomadas como “novas” a partir de uma forma muito peculiar e seletiva de leitura. Assim, Harvey enfatiza que esses descompassos entre os processos moleculares e as pressões em favor de práticas imperialistas, além de crises, são responsáveis por diversos ajustes e desajustes na “ordenação espaço-temporal” 815. Sobre elas, argumenta que “embora possam ser registradas em termos de relações entre territórios, essas ordenações espaço-temporais em cascata são na verdade relações materiais e sociais entre regionalidades construídas por meio de processos moleculares de acumulação do capital no espaço e no tempo816”. Para Harvey, “há dois desfechos possíveis para esse processo817” sendo que “no primeiro deles, novas ordenações espaço-temporais abremse sucessivamente e capitais excedentes são absorvidos em base episódica818”. Já “um possível segundo resultado é todavia”, uma competição internacional crescentemente acirrada na medida em que múltiplos centros dinâmicos de acumulação do capital competem no cenário mundial devido a fortes correntes de sobreacumulação. Como não é possível que todos tenham sucesso a longo prazo, ou o mais fraco sucumbe, caindo em sérias crises de desvalorização localizada, ou então eclodem lutas geopolíticas entre regiões. Essas lutas podem ser convertidas, por meio da lógica territorial do poder, em confrontos entre os Estados na forma de guerras comerciais e guerras de divisas, com o risco sempre presente de confrontos militares a espreitar nos bastidores (do tipo que deu duas guerras mundiais entre potências capitalistas no século XX). Nesse caso, a ordenação espaço-temporal assume uma forma bem mais sinistra ao se transmutar na exportação de localizadas e regionais desvalorizações e destruição de capital (do gênero que ocorreu em ampla escala no Leste e no Sudeste asiáticos e na Rússia em 1997-1998). Como e quando isso acontece depende, contudo, tanto das formas explícitas de ação política da parte dos poderes de Estado como dos processos moleculares de acumulação do capital no Páginas 98 e seguintes. P. 103. 817 Mesma página. 818 P. 104. 815 816

348

tempo e no espaço. A dialética entre a lógica territorial e a lógica capitalista realiza-se assim plenamente. 819

Assim, Harvey – pensa que – explica a “dialética entre a lógica territorial e a lógica capitalista”. Mas é evidente que nesse plano – um conjunto de variáveis analíticas – em que tanto um pode influenciar o outro quanto o outro pode influenciar o um – e viceversa – não é possível encontrar nenhum tipo de possibilidade de projeto, de discurso, de ação. Por isso, neste momento, mais uma vez, Harvey desloca o problema para as “contradições internas”

, em trecho no qual cita a Filosofia do Direito de Hegel para,

820

logo a seguir, tomar mais uma vez de Lenin a sagaz observação de que Cecil Rhodes, um dos mais nefastos executores do imperialismo britânico, dentre muitos outros, àquele tempo, expressava o problema do imperialismo com toda a clareza: o imperialismo capitalista é a única forma possível de existência do capital “alternativa” à guerra civil. Este também é um ponto extremamente importante da argumentação de Arendt, que sublinhou a importância da mentalidade imperialista expressa em Rhodes e no seu desejo de “anexar os planetas” enquanto uma das origens do totalitarismo. Mas Arendt aparece nessa parte do texto821 somente para refutar a tese de que o imperialismo seria o estágio final do capitalismo, ainda que Harvey, aqui, faça nada mais do que elencar uma série de episódios que seguem esse diapasão denunciado originalmente por Lenin: o imperialismo era entendido cristalinamente como uma alternativa à guerra civil. E aqui, antecipando o próximo movimento do texto, Harvey chama a atenção para o fato de que ao mesmo tempo em que o Estado constitu [a] a entidade política, o corpo político, mais capaz de orquestrar arranjos institucionais e manipular as forças moleculares de acumulação do capital para preservar os padrões de assimetrias nas trocas mais vantajoso para os interesses capitalistas dominantes que trabalham nesse âmbito 822 [;] É politicamente muito mais fácil pilhar e degradar populações distantes (em particular as que são diferentes em termos raciais, étnicos ou culturais) do que enfrentar no plano doméstico o avassalador poder da classe capitalista. O lado sinistro e destrutivo da ordenação espaçotemporal como remédio para o problema da sobreacumulação torna-se um elemento tão crucial na geografia histórica do capitalismo quanto sua contraparte criativa na construção de uma nova paisagem para P. 105. Páginas 105 a 107. 821 P. 107. 822 P. 111. 819 820

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acomodar tanto a acumulação interminável do capital como a acumulação interminável do poder. 823

Assim Harvey finaliza seu capítulo sobre os processos moleculares do capital que forçam os Estados a adotarem práticas imperialistas e que, por outro lado, também são dependentes do Estado, tanto para os arranjos internos quanto para a expansão. O grosso do capítulo é dedicado a comentários que variam sobre uma ideia fundamental, que também está presente no próximo capítulo, e que posteriormente o autor viria a reconhecer que era o eixo fundamental do seu trabalho: a absorção do “capital excedente” 824. 8.2 “Acumulação via espoliação” Este é sem dúvidas o capítulo mais importante do livro O Novo Imperialismo e a principal razão pela qual ele se tornou tão comentado. Em nosso entendimento, existe um conjunto de fatores que explicam a notoriedade dessa idéia de Harvey e a sua relativa autonomia com relação ao conjunto do argumento. Dentre esses motivos, por exemplo, figura o fato de Harvey tê-lo destacado no título do artigo de divulgação que publicou na coletânea bastante influente do supracitado número 40 da revista Socialist Register 2004 – que apesar do nome, foi publicada em 2003 – sobre “O novo desafio imperial”. A este artigo, no qual sintetiza várias seções esparsas ao longo do seu livro, Harvey acrescentou um subtítulo que muito provavelmente foi considerado para a versão completa: O ‘novo’ imperialismo: acumulação por espoliação. Ambas as versões do texto – a da revista e a do livro – apresentam algumas mudanças bastante importantes, como as próprias aspas na palavra “novo”, que aparecem na revista, mas não no livro. Foram publicadas quase simultaneamente, no mesmo ano da graça de 2003, mas há várias evidências de que o texto da revista foi escrito antes. Por exemplo, quando, a revista, Harvey procura explicitar “a marca do que alguns chamam ‘o novo imperialismo’”, destaca que “a incapacidade de acumular através da reprodução ampliada sobre uma base sustentável foi acompanhada por crescentes tentativas de acumular mediante a espoliação”

. Em

825

seguida, acrescenta, em nota de rodapé, que “como este assunto é complexo demais para

P. 113. Parece-nos bastante significativo que o autor posteriormente reconheça que isso não estava tão claro quando escreveu este texto, mas voltaremos a esse ponto. 825 P. 96 da revista. 823 824

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ser argüido em um artigo, prosseguirei de modo esquemático e simplificado, deixando as elaborações mais detalhadas para uma publicação posterior”, ao que indica precisamente “D. Harvey, The New Imperialism, Oxford: Oxford University Press, a ser publicado” 826. Se for verdade que este argumento aparece no livro, não nos parece haver dúvida de que o artigo é mais enfático na defesa da tese segundo a qual “as sucessivas ondas de acumulação por espoliação [são] a marca distintiva do novo imperialismo centrado nos EUA827”. E é também mais explícito o marco no qual o autor sustenta seu raciocínio: depois de uma primeira fase – idêntica à adotada por Hannah Arendt – de ascensão do poder da burguesia – de 1884 a 1945 – para Harvey teria ocorrido uma “segunda fase do domínio global burguês”, que “foi possível em grande medida pela contingência da guerra fria828”. O que é bastante importante de ser destacado é que, para ele, nesta segunda fase – que durou desde 1945 até o início da fase “neoliberal”, na década de 1970 – a acumulação por espoliação esteve relativamente silenciada, ainda que países com capital excedente, como Japão e Alemanha Ocidental, tivessem uma crescente necessidade de buscar mercados externos, incluindo a competição pelo controle dos mercados em desenvolvimento pós-coloniais. 829

Temos amplas razões para argumentar que não é verdade que a acumulação por espoliação estivesse silenciada durante o pós-guerra [e o “relativamente” é aqui um mero recurso retórico sem maiores efeitos]. Mas ainda não será aqui que refutaremos a interpretação de Harvey que, ao nosso juízo, acaba por idealizar os tão afamados Anos Dourados, em que aparentemente o capitalismo funcionava “mais” com base na reprodução ampliada. O que queremos registrar de imediato é que neste artigo as subdivisões de Harvey sobre os períodos do imperialismo durante o século XX são ainda mais claras do que no livro e o estabelecimento do critério de mudança entre um subperíodo e outro é evidenciado: ora a reprodução ampliada ganha “predominância”, no outro período já seria a acumulação via espoliação a mais “preponderante”. Supostamente este seria o critério da especificidade, mas aqui também está confuso o que ele chama de “novo”. Se P. 121 da revista. P. 116 da revista. 828 P. 113 da revista. 829 Mesma página. 826 827

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por vezes ele usa “novo” para esta terceira fase “neoliberal” e “espoliativa”, é também verdade, para ele, que talvez estivéssemos – em 2003 – ingressando em uma fase ainda mais nova do imperialismo, como quando ele afirma que pelo visto, a forma que tomará um novo imperialismo está por se definir. A única coisa certa é que estamos no meio de uma transição fundamental do funcionamento do sistema global e que há uma variedade de forças em movimento que poderiam facilmente inclinar a balança em uma ou outra direção. O equilíbrio entre acumulação por espoliação e reprodução ampliada já se voltou a favor da primeira e é difícil imaginar que esta tendência faça outra coisa que se aprofundar, transformando-se no emblema daquilo que é o novo imperialismo (incluindo postulados abertos de grande significado ideológico sobre o novo imperialismo e a necessidade do império). 830

Seguindo o percurso da comparação do livro com o artigo, antecipamos um ponto do que viremos a conversar posteriormente: com sua grande ênfase nas mudanças dentro do imperialismo [seus subperíodos] nos parece irrefutável que a principal preocupação de David Harvey é diagnosticar a configuração atualíssima do imperialismo e, caso ela mude, identificar a forma ainda mais atual e com uma nova mudança, um novo diagnóstico, e assim sucessivamente. Ninguém jamais poderá negar que a identificação das novas configurações do imperialismo capitalista seja crucial. Mas o que essa questão nos parece indicar é que caso qualquer mudança implique na necessidade de se reinventar toda a teoria, é melhor abandonar a própria tentativa de teorizar, uma vez que a consolidação de um conjunto de idéias para a composição de uma interpretação é uma tarefa que necessariamente demora certo tempo – com frequência, de décadas – e não raro só pode ser definida a posteriori. Se assumirmos que quando ela estiver pronta já for caduca, de que serve? Parece-nos ser o caso de todas as “teorias” que procuram explicar as conjunturas do capitalismo. Nesta chave de Harvey, a título de exemplo, cremos que quem se aventurasse nessa missão identificaria que as teorias sobre os tais Anos Dourados se conformaram somente depois de seu colapso, assim como as teorias sobre a “financeirização” demoraram décadas para sedimentar de forma coerente entre as primeiras percepções e o estabelecimento de seus principais paradigmas. Da perspectiva do longo prazo que procuramos assumir, não nos espanta, entretanto, que ambos os períodos sejam perfeitamente explicáveis a partir das teorias “clássicas” do imperialismo sem nenhum tipo de retoque teórico. Como já tivemos a ocasião de 830

P. 119.

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comentar, a rivalidade da “Guerra Fria” não é menos rivalidade que o “equilíbrio de poder” do século XIX ou da corrida armamentista em curso. Por outro lado, a questão que mais chama a atenção dessa historiografia sobre as mudanças da década de 1970 – o “controle de capitais” e a “liberalização das finanças” – é tanto “capital financeiro” quanto seu oposto. Conforme essa mesma historiografia ilustra muito bem, a monopolização cresceu amplamente neste período, bem como o entrelaçamento do “capital bancário” com o “capital industrial” se tornou ainda mais profundo e irreversível. Por fim, mas provavelmente mais importante: o capitalismo se expandiu em extensão e em profundidade, e durante os anos chamados de dourados – industrialistas e sustentados pela amplificação até então inimaginável das “sociedades de consumo de massas” – o capital assumiu ainda mais o controle sobre o “metabolismo” dos humanos e da natureza. Em síntese: o que os Golden Age têm de não imperialistas? O que a teoria “clássica” não dá conta de explicar sobre aqueles anos e sobre os nossos, em que essa expansão é ainda maior?  Mas ainda precisamos destacar outra razão pela qual o capítulo de Harvey sobre a Acumulação via espoliação se autonomizou em relação ao livro: o fato de que ele surge por meio de uma sorte de “revitalização” – ou melhor seria “ressurreição” – de uma tese que parecia relegada a uma discussão de segunda categoria sobre o imperialismo: a amplamente malhada acumulação do capital de Rosa Luxemburg. Fazendo coro com as useiras críticas, sempre com muitas ressalvas e se apropriando de modo bastante seletivo, não concordaremos com quem disser que a perspectiva de Harvey é “luxemburguista” – o que quer que isso signifique. O distanciamento das teses dele das dela são grandes, mas nem sempre evidenciadas pelxs comentaristas – mesmo porque, as teses dela raras vezes são tratadas com seriedade, conforme discutiremos a seguir. Mas o próprio fato de Harvey ter se apoiado nessas interpretações toca num ponto nervoso da tradição marxista. Este ponto é nervoso por duas dimensões inexoravelmente relacionadas: a potência explicativa das teses de Rosa e a consequente violência que sempre se levanta contra essas mesmas idéias. Sob nosso ponto de vista, não há nada de “contraditório” ou “paradoxal” nisso, mas como iremos comentar as teses de Rosa com mais cuidado na sequência do texto, aqui se trata de reconstituir o argumento de Harvey, para o que nos parece crucial

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conferir destaque à maneira pela qual ele se apropria daquelas idéias. Acompanhemos nosso autor, que já abre o referido capítulo invocando: Rosa Luxemburgo alega que a acumulação do capital apresenta um duplo aspecto: ‘Um deles concerne ao mercado de bens e ao lugar em que é produzida a mais-valia – a fábrica, a mina, a propriedade agrícola. Vista desta ótica, a acumulação é um processo econômico puro, tendo como fase mais importante uma transação entre o capitalista e o trabalhador assalariado... Aqui, ao menos formalmente, a paz, a propriedade e a igualdade prevalecem, e foi necessária a aguda dialética da análise científica para revelar que o direito de propriedade se transforma, no curso da acumulação, em apropriação da propriedade alheia, que a troca de mercadorias se torna exploração e a igualdades vem a ser regime de classe. O outro aspecto da acumulação do capital se refere às relações entre o capitalismo e modos de produção nãocapitalistas, que começam a surgir no cenário internacional. Seus métodos predominantes são a política colonial, um sistema internacional de empréstimos – uma política de esferas de interesse – e a guerra. Exibem-se abertamente a força, a fraude, a opressão, a pilhagem, sem nenhum esforço para ocultá-las, e é preciso esforço para discernir nesse emaranhado de violência política e lutas pelo poder as leis férreas do processo econômico. 831

Na sequência, Harvey passa para o procedimento profilático padrão: a monótona crítica ao “subconsumismo”, sobre a qual falaremos em local adequado. A questão toda aqui, para Harvey – seguindo uma tradição enfaticamente refutada por Rosa enquanto reformista e pequeno-burguesa, completamente encaixada com os preceitos da “economia vulgar”

832

– é restabelecer a importância das teorias das crises sob a

perspectiva da “sobreacumulação” – em oposição ao suposto “subconsumo”. Harvey se apropria seletivamente de diversos pontos do argumento de Luxemburg, mas sempre como se eles fossem completamente desconectados do robusto desenvolvimento teórico de A acumulação do capital. Como se o pensamento de Rosa não fosse consistente e coerente – no que faz coro com a maior parte da historiografia sobre o imperialismo – Harvey, depois de classificá-la de “subconsumista” e ratificar que “poucos aceitariam hoje a teoria do subconsumo de Luxemburgo como explicação das crises”, lança um

831 832

P. 115. Também voltaremos a esse assunto.

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“todavia, há muita coisa interessante no argumento de Luxemburgo833”. Segundo ele, se valendo inclusive de um “argumento de autoridade” completamente desnecessário em primeiro lugar, a idéia de que o capitalismo tem de dispor perpetuamente de algo ‘fora de si mesmo’ para estabilizar-se merece exame, em particular por fazer eco à concepção de Hegel, que vimos no capítulo 3, de uma dialética interna do capitalismo forçando-o a buscar soluções externas a si. 834

Tentando “simplificar” o problema por meio de outro equívoco – agora tomando como “linguagem da teoria política pós-moderna” um problema da Antropologia Clássica que lhe é anterior (em todos os sentidos) – afirma que “poderíamos dizer que o capitalismo cria, necessariamente e sempre, o seu próprio ‘outro’835” e na sequência, se apropriando de modo seletivo e equivocado da noção de Rosa de que o capitalismo não pode se reproduzir senão se expandindo para além de seus limites pré-estabelecidos, Harvey argumenta que a idéia de que algum tipo de ‘exterior’ é necessário à estabilização do capitalismo tem por conseguinte relevância. Mas o capitalismo pode tanto usar algum exterior preexistente (formações sociais nãocapitalistas ou algum setor do capitalismo – como a educação – que ainda não tenha sido proletarizado) como produzi-lo ativamente. 836

Harvey passa, então, a examinar de que maneira a ‘relação orgânica’ entre reprodução ampliada837, de um lado, e os processos muitas vezes violentos de espoliação, do outro, tem moldado a geografia histórica do capitalismo. Isso nos ajuda a melhor entender o que é a forma capitalista de imperialismo. 838

Nesta trilha, constata, examinando seletivamente mais uma vez as teses de Hannah Arendt, que o cenário que ela descreve no fim do século XIX “nos parece demasiado familiar, dada a experiência dos anos 1980 e 1990839”. E assim, Harvey, Conforme já insinuamos para explorarmos no próximo capítulo, Rosa Luxemburg refuta radical e enfaticamente o “problema” científico das crises, inclusive dizendo que essa é uma perspectiva típica de “economistas vulgares”. Harvey criticá-la com base no fato de que os “economistas vulgares” contemporâneos não aceitam a interpretação de Rosa – que é sobre o problema da reprodução social, não das crises! – nos parece engrandecer os méritos dela. 834 P. 118. 835 Mesma página. 836 Mesma página. 837 Conforme já dissemos, a tradução da Editora Loyola ignora a bibliografia especializada da área e chama de “reprodução expandida”. Não vamos ficar marcando posição; vamos simplesmente utilizar o termo consagrado: “reprodução ampliada”. Pelo mesmo motivo, trocaremos o termo “financialização”, utilizado na tradução da Editora Loyola, por “financeirização”. 838 Mesma página. 839 P. 119. 833

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impressionado (sic) com a “a descrição arendtiana da reação burguesa” coloca uma peça fundamental no seu “arcabouço explicativo” ao afirmar que ‘os burgueses perceberam’, alega ela, ‘pela primeira vez, que o pecado original do simples roubo, que séculos antes tornara possível a ‘acumulação do capital’ (Marx) e dera início a toda a acumulação ulterior, tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulação não morresse de repente’. 840

Aqui, Harvey, críticas à parte, nos parece oferecer uma contribuição deveras relevante ao problema do imperialismo capitalista. A maneira como se apercebe do problema é bastante sagaz. Primeiramente, – e isso nos parece um grande acerto – pondera que “os processos que Marx, seguindo Adam Smith, chamou de acumulação ‘primitiva’, ou ‘original’ constituem, ao ver de Arendt, uma importante e contínua força na geografia histórica da acumulação do capital por meio do imperialismo841”. Nos termos de Harvey, “a teoria geral da acumulação do capital de Marx é construída com base em certos pressupostos iniciais cruciais correspondentes em termos amplos aos da economia política clássica” 842. São eles, mercados competitivos de livre funcionamento com arranjos institucionais de propriedade privada, individualismo jurídico, liberdade de contrato e estruturas legais e governamentais apropriadas, garantidas por um Estado ‘facilitador’ que também garante a integridade da moeda como estoque de valor e meio de circulação. 843

Neste momento, o papel do capitalista como produtor e comerciante de mercadorias já está bem estabelecido, e a força de trabalho tornou-se uma mercadoria em geral trocada por seu valor apropriado. A acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’ já ocorreu, e seu processo agora tem a forma de reprodução ampliada (embora mediante a exploração do trabalho vivo na produção) em condições de ‘paz, propriedade e igualdade’. 844

E aqui temos um movimento importante, no qual Harvey reconhece a contribuição de Marx para depois criticá-lo. Em seus próprios termos, o brilho do método dialético de Marx, reconhecido, por exemplo, por Arendt, consiste em mostrar que a liberalização do mercado – o credo dos liberais e neoliberais – não produz uma situação harmoniosa em que a condição de todos é melhor. Produz, em vez disso, níveis ainda Mesma página. Mesma página. A princípio não nos parece evidente porque Harvey chega a essa conclusão via Arendt, e não via Luxemburg, mas essa questão é menor. Chegamos ao ponto alto da construção de Harvey e convém que deixemos argumentar sem maiores interrupções. 842 P. 120. 843 Mesma página. 844 Mesma página. 840 841

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mais elevados de desigualdade social (como de fato tem sido a tendência nos últimos trinta anos de liberalismo, particularmente em países como a Inglaterra e os Estados Unidos, que seguiram mais estritamente essa política). E também produz, como Marx prevê, sérias e crescentes instabilidades que culminam em crises crônicas de sobreacumulação (do tipo que ora testemunhamos). 845

Segundo essa leitura de Harvey, “a desvantagem desses pressupostos é que relegam a acumulação baseada na atividade predatória e fraudulenta e na violência a uma ‘etapa original’ tida como não mais relevante846”. E ainda na leitura dele: “ou, como no caso de Luxemburgo, como de alguma forma ‘exterior’ ao capitalismo como sistema fechado847”. Sob nosso ponto de vista é exatamente o oposto do que Rosa Luxemburg está argumentando, mas deixemos isso para mais tarde. Por hora permitiremos Harvey concluir. Para ele, uma reavaliação geral do papel contínuo e da persistência das práticas predatórias da acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’ no âmbito da longa geografia histórica da acumulação do capital é, por conseguinte, muito necessária, como observaram recentemente vários comentadores. Como parece estranho qualificar de ‘primitivo’ ou ‘original’ um processo em andamento, substituirei a seguir esses termos pelo conceito de ‘acumulação por espoliação’ [Accumulation by Dispossession, no original]. 848

Aqui, em nosso juízo, estamos no ponto mais importante de toda a contribuição de Harvey: a idéia de que a “acumulação primitiva” é constituinte do capitalismo, e não uma etapa pretérita de sua “pré-história”, implica que é inteligente mudar seu nome para outro mais adequado. Como já dissemos, nos parece uma saída muito sagaz, baseada em uma leitura da história pertinente, e que – ao nosso juízo – deveria ser adotada pela historiografia contemporânea. Há quem discorde de que “dispossession” [no original] seja um nome adequado para o que Harvey quer descrever, e na tradução para o português podemos encontrar tanto “despossessão” quanto “espoliação” ou “expropriação”. Do nosso ponto de vista, essa questão é importante, mas menor. Existem diversos modos de equacionar o problema e o debate está aberto. Contudo, o decisivo é que esta “coisa” é um elemento constituinte fundamental do capitalismo e, portanto, é tão capitalista quanto a reprodução ampliada. E isso é tanto mais importante porque, para além de qualquer método historiográfico, a grande força dessa percepção é o fato

P. 120. Mesma página. 847 Mesma página. 848 Páginas 120 e 121. 845 846

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de que ela surge da observação das relações concretas. O veredicto aqui deveria ser peremptório – como era para Luxemburg: não existe nem nunca existiu concretamente capitalismo algum que pudesse ser entendido somente pelo modelo da reprodução ampliada. Do contrário, toda e qualquer forma social capitalista inevitavelmente depende de níveis de violência “extra-econômica”, “não-capitalista” ou como queriam melhor formular. Que para Luxemburg isso também signifique que nunca poderá existir capitalismo sem esse expediente já é outra questão, para mais tarde. Como vínhamos dizendo, a idéia de que não se pode definir o capitalismo exclusivamente pelas “leis gerais da acumulação do capital” (coerção “econômica”?), mas que se deve entender que, efetivamente não é isso o que ocorre, é uma observação que independe de forma radical das considerações de Marx ou Luxemburg. É uma idéia que advém da observação histórica. Mas uma vez que Harvey faz referências a elxs, julgamos importante entender como se dá a transposição de idéias. O argumento de Harvey, que nos parece bem colocado, é que não devemos ser formalistas. Aquilo que Marx descreveu enquanto “acumulação primitiva”, com efeito, consiste numa “ampla gama de processos”, como por exemplo, a privatização da terra e a transformação da mesma em mercadoria; a expulsão violenta de populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de propriedade em direitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns; a transformação da força de trabalho em mercadoria e a supressão de formas alternativas (autóctones) de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos (inclusive recursos naturais); a monetização da troca e a taxação (particularmente da terra); o comércio de escravos; a usura; a dívida nacional; e em última análise o sistema de crédito, destacando que “o Estado, com seu monopólio da violência e suas definições de legalidade, tem papel crucial no apoio e na promoção desses processos”

.

849

O pulo do gato, entretanto, consiste em perceber que “todas as características da acumulação primitiva que Marx menciona permanecem fortemente presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias” 850. Assim, a expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra tem se acelerado em países como o México e a Índia nas últimas décadas; muitos recursos antes partilhados, como a água, têm 849 850

P. 121. Mesma página. Grifos nossos.

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sido privatizados (com frequência por insistência do Banco Mundial) e inseridos na lógica capitalista de acumulação; formas alternativas (autóctones e mesmo, no caso dos Estados Unidos mercadorias de fabricação caseira) de produção e consumo têm sido suprimidas. Indústrias nacionalizadas têm sido privatizadas. O agronegócio substitui a agropecuária familiar. E a escravidão não desapareceu (particularmente no comércio sexual). 851

Deste modo, para Harvey – com o que também concordamos, “a aceitação crítica, ao longo dos anos, do relato que fez Marx da acumulação primitiva – que de qualquer maneira foi antes um esboço que uma exploração sistemática – sugere ser preciso preencher algumas lacunas852”. Mas como se dá essa “aceitação crítica” e esse “preenchimento de lacunas”? O procedimento de Harvey passa pela consideração de que [...] a acumulação primitiva envolve a apropriação e a cooptação de realizações culturais e sociais preexistentes, bem como o confronto e a supressão. As condições de luta e de formação da classe trabalhadora variam amplamente [...]. O resultado é muitas vezes deixar vestígios de relações sociais pré-capitalistas na formação da classe trabalhadora, assim como criar diferenciações geográficas, históricas e antropológicas no modo de definir a classe trabalhadora. Por mais universal que seja o processo de proletarização, o resultado não é a criação de um proletariado homogêneo. 853

Nem tampouco era isso o que Marx vinha defendendo. Como já tivemos a ocasião de discutir, ele afirma categoricamente que sua análise sobre as formas concretas (na Inglaterra) deve ser entendido como uma ilustração de um processo geral – o que evidentemente não significa que ele cria um “proletariado homogêneo” no sentido que sugere Harvey, mas que determinadas características gerais submetem a todos – que é o que significa dizer que todos estão progressivamente vivendo subordinados ao capital. Mas a questão principal para Harvey – com o que também concordamos – é que “alguns dos mecanismos de acumulação primitiva que Marx enfatizou foram aprimorados para desempenhar hoje um papel bem mais forte do que no passado854”. Como por exemplo – novamente demonstrando a força, e não a fraqueza daquelas teses – “o sistema de crédito e o capital financeiro se tornaram, como Lenin, Hilferding e Luxemburgo observaram no começo do século XX, grandes trampolins de predação, fraude e roubo855”. Inclusive – não há para que discordar do efeito, ainda que discordemos da teoria, que Harvey desenvolve noutras obras, e da periodização – “a forte onda de Mesma página. P. 122. 853 Mesma página. 854 Mesma página. 855 Mesma página. 851 852

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financeirização, domínio pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir de 1973 foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatório856”. Este período – somente para recordar, que ele chama de terceira fase do imperialismo capitalista, novo imperialismo e/ou neoliberalismo, em que a acumulação por espoliação assume protagonismo depois de “relativamente silenciada” – seria marcado por valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição estruturada de ativos por meio da inflação, a dilapidação de ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis de encargos de dívida que reduzem populações inteiras, mesmo nos países capitalistas avançados, a prisioneiros da dívida, para não dizer nada de fraudes corporativas e do desvio de fundos (a dilapidação de recursos de fundos de pensão e sua dizimação por colapsos de ações e corporações) decorrente de manipulações do crédito e das ações – tudo isso são características centrais da face do capitalismo contemporâneo. O colapso da Enron privou muitos de seus meios de vida e de seus direitos de pensão. Mas temos de examinar sobretudo os ataques especulativos feitos por fundos derivativos e outras grandes instituições do capital financeiro como a vanguarda da acumulação por espoliação em épocas recentes. 857

Aqui já aparece uma “inovação” na teoria. Usualmente, na descrição das “acumulações primitivas” não apareciam essas expropriações, e é bem possível argumentar que a maior parte delas nem ao menos existia no período anterior a essa (sub) fase do capitalismo. A princípio, não vemos motivos para discordar dessa proposta, quando consideramos que, cada uma delas, não pode ser chamada de “reprodução ampliada” em sentido estrito – e a grande questão não é afirmar que exista a espoliação, mas argumentar que não existe capitalismo que se mova apenas com a “reprodução ampliada”. Mas sigamos os passos de Harvey, porque aqui tem muitas coisas importantes para a compreensão do imperialismo em nossos dias. A grande questão para ele, além da constatação comentada de que velhas formas de acumulação por espoliação foram ressignificadas e se aprofundaram bastante, cumpre destacar que “foram criados também mecanismos inteiramente novos de acumulação por espoliação858”. É uma proposta instigante. Segundo ele, a ênfase nos direitos de propriedade intelectual nas negociações da OMC (o chamado Acordo TRIPS) aponta para maneiras pelas quais o patenteamento e licenciamento de material genético, do plasma de P. 122. P. 123. 858 Mesma página. 856 857

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sementes e de todo tipo de outros produtos podem ser usados agora contra populações inteiras cujas práticas tiveram um papel vital no desenvolvimento desses materiais. A biopirataria campeia e a pilhagem do estoque mundial de recursos genéticos caminha muito bem em benefício de umas poucas grandes companhias farmacêuticas. A escalada da destruição dos recursos ambientais globais (terra, ar, água) e degradações proliferantes de hábitats, que impedem tudo exceto formas capital-intensivas de produção agrícola, também resultaram na mercadificação por atacado da natureza em todas as suas formas. A transformação em mercadoria de formas culturais, históricas e da criatividade intelectual envolve espoliações em larga escala (a indústria da música é notória pela apropriação e exploração da cultura e da criatividade das comunidades). A corporativização e privatização de bens até agora públicos (como as universidades), para não mencionar a onda de privatizações (da água e de utilidades públicas de todo gênero) que tem varrido o mundo, indicam uma nova onda de ‘expropriação de terras comuns’. Tal como no passado, o poder do Estado é com frequência usado para impor esses processes mesmo contrariando a vontade popular. A regressão dos estatutos regulatórios destinados a proteger o trabalho e o ambiente da degradação tem envolvido a perda de direitos. A devolução dos direitos comuns de propriedade obtido graças a anos de dura luta de classes (o direito a uma aposentadoria paga pelo Estado, ao bem-estar social, a um sistema nacional de cuidados médicos) ao domínio privado tem sido uma das mais flagrantes políticas de espoliação implantadas em nome da ortodoxia neoliberal. 859

Em suma, o capitalismo internaliza práticas tanto canibais como predatórias e fraudulentas. Mas, como observa certeiramente Luxemburgo, ‘é preciso esforço para discernir nesse emaranhado de violência política e lutas pelo poder as leis férreas do processo econômico’. A acumulação por espoliação pode ocorrer de uma variedade de maneiras, havendo em seu modus operandi muitos aspectos fortuitos e casuais. 860

Neste momento, Harvey não faz uma diferenciação conceitual importante entre esses “mecanismos inteiramente novos” e o aprofundamento das formas já descritas por Marx – o que tem implicações práticas importantes, conforme destaca Virgínia Fontes em trabalho que comentaremos depois. Com efeito, nos parece importante que se marque que faz muita diferença as lutas contra as espoliações de necessidades básicas (terra, água, comida, moradia, etc.) e lutas contra as espoliações de direitos criados a partir do aprofundamento do imperialismo capitalista ocorrido na formação de

859 860

Mesma página. P. 124.

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sociedades de consumo de massa e suposto bem-estar social (aposentadoria paga pelo Estado, e propriedade intelectual, por exemplo). 861 É importante que notemos que a ocupação de Harvey neste momento era demarcar o que há de comum entre essas formas distintas de espoliação e isso é de fato fundamental. Contudo, a maneira como ele procede, mais uma vez, nos parece uma redução bastante problemática. Primeiramente, porque para ele o conceito de “acumulação por espoliação” enquanto algo que “ajuda a resolver o problema da sobreacumulação862”. Em termos gerais, defende que a sobreacumulação, lembremos, é uma condição em que excedentes de capital (por vezes acompanhados de excedentes de trabalho) estão ociosos sem ter em vista escoadouros lucrativos. O termo-chave aqui é, no entanto, excedentes de capital. O que a acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo. No caso da acumulação primitiva que Marx descreveu, isso significava tomar, digamos, a terra, cercá-la e expulsar a população residente para criar um proletariado sem terra, transferindo então a terra para a corrente principal privatizada da acumulação do capital. A privatização (da habitação social, das telecomunicações, do transporte, da água etc., na Inglaterra, por exemplo) tem aberto em anos recentes amplos campos a ser apropriados pelo capital sobreacumulado. O colapso da União Soviética e depois a abertura da China envolveram uma imensa liberação de ativos até então não disponíveis na corrente principal da acumulação do capital. 863

A questão principal, para ele, portanto – muito diferente do problema de Rosa Luxemburg, como veremos – é um problema de “demanda efetiva” para realizar o capital sobreacumulado, ou seja, mais uma vez: uma interpretação hobsoniana. Em suas palavras: “o que teria acontecido com o capital sobreacumulado nos últimos 30 anos sem a abertura de novos terrenos de acumulação?864”. Harvey dá destaque a três modos de resolução deste problema de “sobreacumulação de capital”. A primeira delas é o “projeto neoliberal de privatização de tudo” – em curso. Outra, seria “injetar matérias-primas baratas (como o petróleo) no

Agradecemos a Lucas Salvador Andrietta pela reflexão sobre a importância da diferenciação entre os momentos e os conteúdos em que se deram essas espoliações, embora ele nos advirta que sente desconforto com o termo “necessidades”. Como não há outras propostas, mantivemos o uso. 862 P. 124. 863 Mesma página. 864 Mesma página. 861

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sistema. O custo de insumos seriam reduzidos e os lucros, por esse meio, aumentado865”. Por fim, destaca que o mesmo objetivo pode no entanto ser alcançado pela desvalorização dos ativos de capital e da força de trabalho existentes. Esses ativos desvalorizados podem ser vendidos a preço de banana e reciclados com lucro no circuito de circulação do capital pelo capital sobreacumulado. Mas isso requer uma onda anterior de desvalorização, o que significa uma crise de algum tipo. As crises podem ser orquestradas, administradas e controladas para racionalizar o sistema. A isso com frequência se resumem os programas de austeridades administrados pelo Estado, que recorrem às alavancas vitais das taxas de juros e do sistema de crédito. Pode-se impor pela força externa crises limitadas a um setor, a um território ou a todo um complexo territorial de atividade capitalista. É nisso que é grande especialista o sistema financeiro internacional (sob a liderança do FMI), com o apoio do poder estatal superior (como o dos Estados Unidos). O resultado é a criação periódica de um estoque de ativos desvalorizados, e em muitos casos subvalorizados, em alguma parte do mundo, estoque que pode receber um impulso lucrativo da parte de excedentes de capital a que faltam oportunidades em outros lugares. 866

Desta maneira, para ele, “surgem crises regionais e desvalorizações baseadas no lugar altamente localizadas como recurso primário de criação perpétua pelo capitalismo de seu próprio ‘outro’ a partir do qual se alimentar867”. Além disso, a analogia com a criação de um exército industrial de reserva mediante a expulsão das pessoas de seu emprego é perfeita. Valiosos ativos são tirados de circulação e desvalorizados. Ficam esvaziados e adormecidos até que o capital excedente faça uso deles a fim de dar nova vida à acumulação do capital. 868

A questão principal se trata de como “orquestrar” a “recuperação” dos ativos “encalhados”. Mas isso também impacta decisivamente na agenda de pesquisa de Arrighi (a transição de hegemonias do Sistema Internacional), por que a mistura de coerção e consentimento no âmbito dessas atividades de barganha varia consideravelmente, sendo contudo possível ver agora com mais clareza como a hegemonia é construída por meio de mecanismos financeiros de modo a beneficiar o hegemon e ao mesmo tempo deixar os Estados subalternos na via supostamente régia do desenvolvimento capitalista. 869

O sistema capitalista, assim se torna mais inteligível na medida em que se percebe que “o cordão umbilical que une acumulação por espoliação e reprodução Mesma página. P. 125. 867 Mesma página. 868 Páginas 125 e 126. 869 P. 126. 865 866

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ampliada é o que lhe dão o capital financeiro e as instituições de crédito, como sempre com o apoio dos poderes do Estado870”. Embora discordemos de sua definição de “capital financeiro”,

essa

nos

parece

uma

formulação

inteligente

sobre

nossa

“contemporaneidade” – nestes termos desde pelo menos 1870. A seguir, Harvey faz considerações interessantes sobre as relações ambíguas entre legalidade e ilegalidade871 e sobre a relação entre privatização e espoliação872. Ao nosso juízo, essas observações poderiam sustentar uma definição menos “formalista” de capitalismo, na qual se levasse às últimas consequências o fato de que, concretamente, não se consegue discernir com clareza dos limites entre o “econômico” e o “nãoeconômico”, entre o “legal” e o “ilegal”, ou seja, entre o que se convenciona chamar de “capitalista” e o que se convenciona chamar de “não-capitalista”. Não é o caminho de Harvey, contudo. Para ele, como já conversamos e voltaremos a conversar quando ele nos trouxer de volta ao problema, trata-se de características que “predominam” mais ou menos ao longo do tempo e do espaço. Mas vejamos como ele concebe a questão das lutas e das resistências a partir deste problema, porque isso também, ao nosso juízo, expõe certas idéias que precisamos combater. 8.2.1 Resistências, lutas e as diferenças entre “acumulação primitiva” e “acumulação via espoliação”

Se no primeiro momento a questão decisiva para Harvey é demarcar a perenidade de formas análogas à acumulação primitiva – considerando tanto as permanências e aprofundamentos de algumas formas assim classificadas por Marx; quanto a criação de mecanismo inteiramente novos – num segundo momento as diferenciações são decisivas. A partir desse postulado, Harvey passa a explorar as relações entre cada uma das formas de resistência contra a acumulação capitalista e a tal “esquerda tradicional”, “socialista”. O ponto de partida é a lembrança de que, para Marx, existe um lado “progressista” embora o surgimento do capital tenha sido caracterizado pela violência e

Mesma página. Páginas 126 e seguintes. 872 Páginas 130 e seguintes. Cf: PINHEIRO-MACHADO, Rosana. China-Paraguai-Brasil: uma rota para pensar a economia informal. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 67, p.117-133, 2008. FapUNIFESP (SciELO). DOI: 10.1590/s0102-69092008000200009. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2015. 870 871

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sua história tenha sido cravada “em letras de sangue e de fogo”. Ao que Harvey complementa que não é possível fazer omeletes sem quebrar ovos, diz o velho ditado, e o nascimento do capitalismo implicou episódios ferozes, e com frequência violentos, de destruição criativa. Embora a violência de classe tenha sido tenebrosa, o lado positivo foi a abolição das relações feudais, a liberação de energias criadoras, a abertura da sociedade a fortes correntes de mudança tecnológica e organizacional e a superação de um mundo fundado na superstição e na ignorância, substituído por um mundo de ilustração científica potencialmente capaz de libertar as pessoas dos anseios e necessidades materiais. É possível afirmar, desse ponto de vista, que a acumulação primitiva foi uma etapa necessária, ainda que tenebrosa, pela qual teve de passar a ordem social para chegar a uma condição na qual se tornassem possíveis tanto o capitalismo como algum socialismo alternativo. 873

Aqui, é mais importante permanecer no campo de Harvey do que debater o controverso tema do progressismo na visão de Marx. O etnocentrismo é cristalino; e a defesa de argumentos bastante controvertidos, como a oposição entre “um mundo fundado na superstição na ignorância” e “um mundo de ilustração científica potencialmente capaz de libertar as pessoas dos anseios e necessidades materiais” nos parece muito frágil. Melhor seria ponderar se e em quais circunstâncias esse mundo supostamente fundado na ilustração efetivamente realizou esse potencial. A destruição de modos de vida muitas vezes milenares – frequentemente por meio do genocídio e do etnocídio – com a justificação de que isso libertaria um “potencial” e que se tratava de uma “etapa necessária” é de um cinismo que completamente inaceitável; em quaisquer termos874. O argumento de Harvey é que em alguns casos (sic) a acumulação via espoliação é mais nociva do que a reprodução ampliada que a precedeu. O argumento está colocados nos seguintes termos: embora os níveis de exploração da força de trabalho em países em desenvolvimento sejam sem dúvida altos, podendo-se identificar abundantes casos de práticas abusivas, os relatos etnográficos das transformações sociais promovidas pelos investimentos externos diretos, pelo desenvolvimento industrial e pelos sistemas de produção ‘exportados’ em muitas partes do mundo formam um enredo bem mais complexo. Em alguns casos, a posição das mulheres, que proporcionam a maior parcela da força de trabalho, tem tido ponderáveis modificações, ou mesmo tem sido aprimoradas. Diante da opção entre a mão-de-obra industrial e a volta ao empobrecimento rural, muitas pessoas no âmbito 873 874

P. 134. Cf.: Clastres: “Do Etnocídio”, em Arqueologia da Violência.

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do novo proletariado parecem exprimir forte preferência por aquela. Noutros casos, obteve-se um poder de classe suficiente para obter ganhos reais em termos de padrão de vida bem superior às circunstâncias degradadas de uma existência rural precedente. 875

Novamente é importante saber quais foram as situações concretas em que a promessa se justificou, para muito além do falacioso dilema de “o que as pessoas escolheriam” – a rigor, uma forma liberal [e, insistimos: falaciosa] de equacionar o problema. Vejamos um exemplo concreto de que Harvey se vale para explicitar o “enredo complexo”. Na sequência da citação acima, afirma que é portanto difícil dizer se o problema da Indonésia, por exemplo, foi o impacto da rápida industrialização capitalista sobre as oportunidades de vida durante as décadas de 1980 e 1990 ou a desvalorização e a desindustrialização provocadas pelas crises financeiras de 1997-1998, que fizeram ruir boa parte das realizações da industrialização. Qual foi, à luz disso, a maior dificuldade: a importação e a inserção da acumulação do capital por meio da reprodução ampliada na economia indonésia ou a total demolição dessa atividade por meio da acumulação por espoliação? Embora seja óbvio que esta última foi um corolário lógico daquelas, e que a verdadeira tragédia se traduz em atrair com grande rapidez (por vezes à força) populações para o proletariado e logo depois as descartar como mão-de-obra redundante, julgo igualmente plausível que o segundo movimento prejudicou bem mais as esperanças, aspirações e possibilidades de longo prazo das massas empobrecidas do que o primeiro. 876

O próprio autor oferece todas as ferramentas para invalidar esse falacioso dilema: a acumulação por espoliação foi um “corolário lógico” da reprodução ampliada e questionar qual das duas “prejudicou” mais ou menos do que a outra é absurdo. Mais ainda quando o critério estabelecido é julgar com base nas “esperanças, aspirações e possibilidades de longo prazo das massas empobrecidas”, esperanças, aspirações e possibilidades essas que nunca existiram senão no engodo “desenvolvimentista”, que ressoa o tempo todo na forma como Harvey formula seus enunciados dos quais conclui que “a acumulação primitiva que abre caminho à reprodução ampliada é bem diferente da acumulação por espoliação, que faz ruir e destrói um caminho já aberto877”. Nenhuma objeção, obviamente, pode ser levantada contra a diferenciação em si mesma. Mas, como sempre, é preciso dizer em quê elas se diferenciam e tirar daí as consequências. Para Harvey, a questão principal reside na admissão – que ele diz tomar de Marx – de que “a acumulação primitiva pode ser um precursor necessário de mudanças mais P. 135. Mesma página. 877 P. 135. 875 876

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positivas”, o que “levanta toda a questão da política de expropriação sob o socialismo” . O problema que Harvey coloca é pertinente:

878

julgou-se com frequência necessário, na tradição revolucionária marxista/comunista, organizar o sucedâneo da acumulação primitiva a fim de implementar programas de modernização de países que não houvessem passado pela iniciação do desenvolvimento capitalista. 879

Desta forma, sempre nos termos dele, “níveis de tenebrosa violência semelhantes aos da acumulação primitiva” marcaram, sob o auspício dos “socialistas” a “modernização” (sic) de governos socialistas ao longo do século XX como por exemplo na União Soviética, na China e em países do “leste europeu”. Ainda de acordo com Harvey, “dificilmente se pode considerar essas políticas grandes histórias de sucesso, tendo elas desencadeado uma resistência política em alguns casos impiedosamente esmagados” e “em todos os lugares em que foi implantada essa abordagem criou problemas peculiares”

. E o que não é menos importante para o nosso problema, é que muitas

880

vezes os socialistas não combateram o imperialismo capitalista em nome da tradição, mas em nome da modernidade alternativa

. O que acaba por acarretar que

881

“movimentos insurgentes contra a acumulação por espoliação não têm particular predileção por ser cooptados pelo desenvolvimentismo socialista [...] e têm seguido em geral outro caminho, em alguns casos deveras hostil à política socialista882”, com o objetivo de afastar “o terreno da organização política da organização partidária e operária tradicional883”. Harvey tem uma posição ambivalente com relação a essa postura, e acaba por concluir que “o que o movimento perdeu em foco ganhou em termos de relevância e de inserção na política da vida cotidiana884”. A identificação do problema da relação entre o “socialismo” tradicional e os movimentos contra a acumulação por espoliação – que muitas vezes se situam nas periferias e são muitas vezes herdeiros de tradições antiimperialistas e anticolonialistas – é precisa. Mas como se posicionar frente a ele? Para Harvey, “o perigo é [...] ver todas

Páginas 135 e 136. P. 136. 880 Mesma página. 881 Mesma página. 882 Mesma página. 883 P. 138. 884 Mesma página. 878 879

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essas lutas contra a espoliação como ‘progressistas’ por definição885”. Ainda em seus termos, creio ser esse o ponto em que reside a real dificuldade política. Porque, caso Marx esteja ao menos parcialmente certo ao afirmar que em certas circunstâncias pode haver algo progressista na acumulação primitiva, e que é preciso quebrar alguns ovos para fazer a omelete, temos de enfrentar frontalmente difíceis escolhas. 886

Se assumirmos que há algo de progressista e que é preciso quebrar alguns ovos para fazer as omeletes, precisamos enfrentar o problema que Harvey coloca. Mas coloquemos em outros termos, mais próximos da nossa realidade. Quem serão os ovos que serão escolhidos para serem quebrados, e quem é que vai comer essa omelete? Podemos, por exemplo, quebrar os “ovos” (?) das tribos Guarani-Kaiowás que precisam se “removidas” (sic) para a expansão do sistema elétrico brasileiro que garante essa “acumulação primitiva” e junto deles todas as populações ribeirinhas e quilombolas que também precisam ser “removidas” para dar lugar às represas. Mas será que esses “ovos” serão suficientes? Dado o caráter necessariamente expansivo do capital, é lógico supor que não. E depois? Quem será que podem ser os próximos “ovos”? Por exemplo, comunidades de pesca tradicional que precisam ser “removidas” para a construção de portos? Mas e depois, quem serão os “ovos” que serão quebrados para que o “motor da acumulação” não cesse de funcionar?887 Com efeito, em que circunstâncias, e a partir de

Aqui também aproveita para deixar o pé na dividida mais quente do começo do século XX: “ou, o que é pior, colocá-las sob algum estandarte homogeneizante como o é a ‘multidão’ de Hardt e Negri, que há de se levantar magicamente para herdar a terra”. (mesma página). Por motivos vários – muitos já apresentados – nosso recorte – a resposta dos EUA aos atentados de 2001 – exclui o livro de Hardt e Negri, que é de 2000. Todo o mundo da esquerda se levantou contra eles e, portanto, a cuidadosa reconstituição desse debate – inclusive do texto deles, que somente é apresentado como um “boneco de Judas” a ser malhado no “Sábado de Aleluia” – é necessária para a historiografia do imperialismo capitalista contemporâneo, mas não coube nesta tese. 886 P. 139. 887 A propósito, gostaríamos de lembrar o poema: “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro/ /Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/Eu também não era operário/ /Depois prenderam os miseráveis/Mas não me importei com isso/Porque eu não sou miserável/ /Depois agarraram uns desempregados/Mas como tenho meu emprego/Também não me importei/ /Agora estão me levando/Mas já é tarde./Como eu não me importei com ninguém/Ninguém se importa comigo.” Bertolt Brecht: Intertexto. 885

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quais mecanismos mentais é possível tratar pessoas como “ovos”? 888 E por que será que Harvey não problematiza quem é que vai comer essa “omelete” e por que é mesmo que a acumulação primitiva é necessária? Sob nosso ponto de vista, que vimos tentando denunciar desde o princípio, a partir de uma ideologia imperialista que se faz marcar, mesmo travestida, inclusive entre aquelxs que se opõe contra o imperialismo. Como já dissemos lá no princípio, essa hierarquização social que estabelece que determinados grupos são legitimamente passíveis de sofrerem a violência [que virarão a omelete dos outros] é um elemento constitutivo imprescindível para a conformação da ideologia imperialista – o que inclusive é um passo absolutamente central para o argumento arendtiano, mas que de forma nada espantosa é solenemente ignorado por Harvey. Mas ainda precisamos descrever o argumento de Harvey sobre o “mundo” que já passou pela “acumulação primitiva” original. Neste caso, como fica a situação? E o que o encadeamento argumentativo de Harvey implica e que visão de mundo a sustenta? Iremos por partes, acompanhando a maneira como desdobra a análise de que “a concepção clássica da esquerda marxista/socialista era a de que o proletariado, definido como o conjunto de trabalhadores assalariados privados do acesso aos meios de produção ou de sua propriedade, era o agente privilegiado da mudança histórica” e “a

Daqui do Brasil, flertando com Brecht e com Maiakóvski, o poeta niteroiense Eduardo Alves Costa escreveu: “Assim como a criança/humildemente afaga/a imagem do herói,/assim me aproximo de ti, Maiakóvski./Não importa o que me possa acontecer/por andar ombro a ombro/com um poeta soviético./Lendo teus versos,/aprendi a ter coragem./ /Tu sabes/conheces melhor do que eu/a velha história./Na primeira noite eles se aproximam/e roubam uma flor/do nosso jardim./E não dizemos nada./Na segunda noite, já não se escondem:/pisam as flores,/matam nosso cão,/e não dizemos nada./Até que um dia,/o mais frágil deles/entra sozinho e nossa casa,/rouba-nos a luz e,/conhecendo nosso medo,/arranca-nos a voz da garganta./E já não podemos dizer nada./ /Nos dias que correm/a ninguém é dado/repousar a cabeça/alheia ao terror./Os humildes baixam a cerviz:/e nós, que não temos pacto algum/com os senhores do mundo,/por temor nos calamos./No silêncio de meu quarto/a ousadia me afogueia as faces/e eu fantasio um levante;/mas amanhã,/diante do juiz,/talvez meus lábios/calem a verdade/como um foco de germes/capaz de me destruir./ /Olho ao redor/e o que vejo/e acabo por repetir/são mentiras./Mal sabe a criança dizer mãe/e a propaganda lhe destrói a consciência./A mim, quase me arrastam/pela gola do paletó/à porta do templo/e me pedem que aguarde/até que a Democracia/se digne aparecer no balcão./Mas eu sei,/porque não estou amedrontado/a ponto de cegar, que ela tem uma espada/a lhe espetar as costelas/e o riso que nos mostra/é uma tênue cortina/lançada sobre os arsenais./ /Vamos ao campo/e não os vemos ao nosso lado,/no plantio./Mas no tempo da colheita/lá estão/e acabam por nos roubar/até o último grão de trigo./Dizem-nos que de nós emana o poder/mas sempre o temos contra nós./Dizem-nos que é preciso/defender nossos lares,/mas se nos rebelamos contra a opressão/é sobre nós que marcham os soldados./ /E por temor eu me calo./Por temor, aceito a condição/de falso democrata/e rotulo meus gestos/com a palavra liberdade,/procurando, num sorriso,/esconder minha dor/diante de meus superiores./Mas dentro de mim,/com a potência de um milhão de vozes,/o coração grita - MENTIRA!” Eduardo Alves da Costa: No caminho, com Maiakóvski. 888

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contradição central separava capital e trabalho no e em torno do eixo da produção”

.

889

Assim, os instrumentos primordiais da organização da classe trabalhadora eram os sindicatos operários e os partidos políticos cujo fim era buscar a conquista do poder do Estado a fim de regular ou suplantar o domínio de classe capitalista. O foco eram, por conseguinte, as relações de classe e as lutas de classes no campo da acumulação do capital, entendida como reprodução ampliada. Consideravam-se subsidiárias, secundárias ou mesmo inúteis, por periféricas ou irrelevantes, todas as outras formas de luta. Havia naturalmente inúmeras nuanças e variações desse tema, mas no cerne de tudo prevalecia a idéia do proletariado como o agente privilegiado da transformação histórica. 890

Diante deste diagnóstico, que nos parece correto, poderíamos encaminhar a prosa, por exemplo, para a consideração dos limites de qualquer sociedade nos termos capitalista, seu caráter opressivo, sua necessária hierarquização imperialista, ou sobre os equívocos de se tornar invisíveis determinados tipos de luta contra formas de violência outras que não o trabalho. Mas pra onde segue o argumento de Harvey? Para ele, as lutas travadas nos termos dessa prescrição geraram notáveis frutos durante boa parcela do século XX, particularmente nos países capitalistas avançados. Apesar de não ter havido transformações revolucionárias, o crescente poder das organizações e dos partidos políticos da classe trabalhadora obtiveram ponderáveis melhorias dos padrões materiais de vida associados com a institucionalização de uma ampla gama de proteções sociais. Os Estados democráticos do bem-estar social que surgiram, principalmente na Europa Ocidental e na Escandinávia, puderam ser considerados, apesar de seus problemas e dificuldades inerentes, modelos de desenvolvimento progressista. E eles não teriam vindo a existir sem a organização proletária razoavelmente restrita no âmbito da reprodução ampliada tal como vivida no Estadonação. Julgo importante reconhecer a relevância dessa conquista. 891

Ninguém precisa deixar de reconhecer a relevância dessa conquista para perceber que esses “problemas e dificuldades inerentes” são nada fortuitos. Essas conquistas, como uma resposta, ou como uma resistência, a um processo de aprofundamento do capitalismo devem mesmo ser reconhecidas, mas considerar essas sociedades “modelos de desenvolvimento progressistas” não decorre logicamente do reconhecimento das conquistas, mas de uma visão de mundo por meio da qual se justifica os ovos quebrados em nome da omelete. Inclusive, Harvey delimita P. 139. Mesma página. 891 P. 140. 889 890

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precisamente quem é que comeu essa omelete: “países capitalistas avançados”; “os Estados democráticos de bem-estar social que surgiram, principalmente, na Europa Ocidental e na Escandinávia”. Pois bem, como pode perceber qualquer pessoa que se ligue minimamente no que está acontecendo no mundo em nossos dias, a omelete [que foi servida na Europa Ocidental e na Escandinávia] acabou, e a briga agora é pra saber quem serão os próximos ovos a serem quebrados. Há uma vaga promessa de que eles serão mais bem repartidos, mas torna-se a cada dia mais claro que acreditar nisso é uma completa ingenuidade – inclusive porque uma das mais poderosas – porque relativamente invisíveis [para quem não é “ovo”] trincheiras do imperialismo é justamente a ideologia que hierarquiza quem são os ovos e quem come as omeletes. Não se pode dizer que Harvey desconheça o problema. Na sequência mesma do argumento, critica a “esquerda tradicional” por “numerosas exclusões”, ao que cita o “feminismo” e o “ambientalismo”. É aqui também que Harvey discorre sobre um problema que vínhamos colocando desde o princípio: a relação entre os privilégios domésticos e o imperialismo que, em suas próprias palavras, “levou grande parte do movimento operário nos países capitalistas avançados a cair na armadilha de agir como a aristocracia do trabalho para preservar seus próprios privilégios, se necessário mediante o imperialismo”

. Aqui Harvey teria mais uma ocasião para denunciar o

892

cinismo do discurso das omeletes e dos ovos e posicionar o problema na crítica radical de toda e qualquer forma de sociedade capitalista. Mas para ele, esse não é o problema de considerar que as “lutas contra a acumulação por espoliação eram consideradas irrelevantes”. E qual é o problema? Em suas palavras, essa concentração obstinada de boa parcela da esquerda de inspiração marxista e comunista nas lutas proletárias, com a exclusão de tudo o mais, provou ser um erro fatal. Porque, se as duas formas de luta se acham organicamente ligadas no âmbito da geografia histórica do capitalismo, a esquerda não apenas se privava de poder como também prejudicava suas capacidades analíticas e programáticas ao ignorar por completo um dos lados dessa dualidade. 893

A posição do discurso de Harvey é muito clara, a despeito de suas intenções, que não temos nenhum motivo para questionar: com o processo de ignorar e silenciar as lutas de pessoas oprimidas, quem perdeu foi a esquerda. Não nos parece difícil de imaginar que qualquer pessoa que fosse “ovo” consideraria esse problema 892 893

P. 140. Mesma página.

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extremamente grave e a conclusão lógica seria equacionado teoricamente de modo simples: não posso lutar por um sistema que, mesmo em suas melhores condições concretas, é opressor, e vai acabar sobrando pra mim e para os meus. O problema de Harvey é que a não-percepção da importância da luta não-especificamente operária “privava a esquerda de poder” e “prejudicava suas capacidades analíticas e programáticas”. Esse erro foi fatal; para “a esquerda de inspiração marxista e comunista”. É mesmo estranho que os movimentos contra a espoliação, conforme ele vinha comentando anteriormente, procurem a todo custo se afastar da “organização partidária” e da “esquerda tradicional”? Não nos parece. Neste momento, nos parece adequado fazer uma ponderação que julgamos importante. Conforme dissemos há pouco, não temos nenhum tipo de razão para desconfiar das boas intenções de David Harvey. Aliás, muito pelo contrário. Seu posicionamento na luta contra o capitalismo e sua orientação acadêmica nos parecem sinceros. Com efeito, nada nos interessa o julgamento das intenções de Harvey. O único motivo pelo qual nos interessa sublinhar essa questão é que existem mecanismos da “visão de mundo” que penetram forçosamente por brechas que nem imaginamos. Na verdade, a questão toda depende provavelmente de estruturas que nos são imperceptíveis e que têm que ver com os valores pelos quais apreendemos a realidade. David Harvey, como todos os demais seres humanos, é uma figura complexa. O que nos interessa é apenas anotar seu argumento que vimos analisando, sobre O novo Imperialismo. E em particular nos interessa destacar que sua visão de mundo e seu projeto político refletem um horizonte muito específico, conforme fica evidente nas passagens que seguem imediatamente aquelas que vínhamos comentando, sobre as acumulações por espoliação. Conforme já dissemos, ao nosso juízo, a importante constatação de que não existe capitalismo sem acumulação espoliativa, além de desmentir postulados sobre as possibilidades de desenvolvimento capitalista que não a própria barbárie – em síntese: capitalismo é barbárie – exige, do ponto de vista dos historiadores, ou qualquer um que se ocupe da narrativa do século XX, um exame sobre a principal miragem que inebriou os coevos: o suposto capitalismo dourado que supostamente degenerou por conta de decisões individuais orquestradas por uma ideologia “neoliberal”. Voltando ao ponto específico em que estávamos, o “erro fatal” da esquerda, para Harvey, consiste em não

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ter compreendido as peculiaridades da “dinâmica da luta de classes depois da crise de 1973894”. Mas o que isso significa? Para Harvey, a ascensão do capital financeiro, do comércio mais livre e do disciplinamento do Estado por fluxos suprafronteiras em mercados de capital liberalizados tornaram as formas tradicionais de organização do trabalho menos apropriadas e, em consequência, menos bem-sucedidas. Movimentos revolucionários e mesmo reformistas (como no Chile de Allende) foram violentamente reprimidos pelo poder militar. 895

Em síntese, seu argumento amplamente conhecido de que o “pacto fordista”, naquele momento, teria sido rompido em favor de uma ordem (neo) liberal menos regulamentada e mais “financeirizada”. Em O novo Imperialismo, a ênfase é no fato de que, as respostas a essa crise levaram os defensores do capitalismo ao entendimento de que “a intensa dificuldade de manter a reprodução ampliada também gerava uma ênfase muito maior numa política de acumulação por espoliação896”. Por outro lado, “as formas de organização desenvolvidas para combater a reprodução ampliada não se transpuseram bem quando se tratava de combater a acumulação por espoliação897”. Numa “generalização esquemática” (sic) que nos parece extremamente ilustrativa da crítica que vimos encadeando, as formas de organização política esquerdista instauradas no período 1945-1973, quando a reprodução ampliada estava na ascendente, eram impróprias ao mundo pós-1973, quando a acumulação por espoliação passou a ocupar o primeiro plano como a contradição primária no âmbito da organização imperialista da acumulação do capital. 898

Para ele, diferentemente do que parece sugerir em primeiro momento, quando definia tanto as formas “tradicionais” quanto as formas mais atuais de exploração capitalista sob a rubrica de “acumulação por espoliação”, é crucial a distinção entre dois momentos distintos da periodização do imperialismo: para ele, houve um momento em que a reprodução ampliada predominou, e que nada coincidentemente, foi o momento em que se conseguiram aquelas “conquistas” e aqueles “Estados democráticos e de bemestar social”, “modelos de desenvolvimento progressista”. Este momento – infelizmente? – foi sucedido por outro momento em que, porque havia uma “intensa dificuldade de manter a reprodução ampliada”, a acumulação por espoliação “passou a ocupar o

P. 120. P. 141. 896 Mesma página. 897 Mesma página. 898 Mesma página. 894 895

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primeiro plano”. Logicamente, para ele – conforme já adiantamos – o horizonte de lutas deve ser a recuperação dos marcos de “desenvolvimento progressista” e o restabelecimento de um novo (em que termos?) New Deal. Harvey não enfatiza a extrema opressão que ocorreu neste período (para qualquer um que não tivesse a nacionalidade, a cor, o gênero e a religião “certos” – para dizermos pouco); seu necessário vínculo com o imperialismo (o capitalismo não existe senão destruindo o mundo), nem quaisquer determinantes capitalistas do imperialismo. E faz parecer que se os povos oprimidos fossem todos “progressistas”

899

e percebessem

que a libertação popular deve vir junto com a modernização900; e se a esquerda entendesse que neste momento precisa dar importância para as pautas de gentes que antes eram completamente silenciadas – uma vez que hoje “todo o campo da luta anticapitalista, anti-imperialista e antiglobalização foi reconfigurado, tendo-se acionado uma dinâmica política totalmente diferente”

; aí sim seria possível combater o

901

capitalismo e integrar uma pauta de lutas mais coesa. Aí sim o mundo seria melhor, ainda que Harvey continue não problematizando para quem. Que a última parte de seu livro seja dedicada, conforme já dissemos, ao argumento de que a única luta relevante contra o imperialismo deve ser travada no interior da sociedade civil estadunidense, nos parece um excelente sintoma de até onde esse discurso pode nos levar. E isso mesmo que Harvey saiba desses riscos. A questão é que saber não é o suficiente. A luta pela conformação de novas visões de mundo é constante. Acompanhemos, a título de ênfase em nosso argumento, a conclusão do capítulo sobre a Acumulação via espoliação. Ali, Harvey destaca que, no plano analítico, “a formulação de Luxemburgo tem extrema atualidade”. Isso porque, a acumulação do capital tem de fato caráter dual. Mas os dois aspectos, o da reprodução ampliada e o da acumulação por espoliação, se acham organicamente ligados, entrelaçados dialeticamente. Segue-se pois que as lutas no plano da reprodução ampliada (que recebeu tanta ênfase da esquerda tradicional) têm de ser vistas em relação dialética com os combates à acumulação por espoliação, que constitui o foco primordial dos movimentos sociais que se abrigam no âmbito dos movimentos antiglobalização e pela globalização alternativa. Se o atual período tem visto a mudança de ênfase passar da acumulação mediante a reprodução ampliada para a acumulação por espoliação, e se esta última está no P. 144 e seguintes. Cf.: P.142. 901 P. 142. 899 900

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cerne das práticas imperialistas, conclui-se que o balanço de interesses no interior do movimento anti-globalização e pró-globalização alternativa tem de reconhecer na acumulação por espoliação a contradição primária a ser enfrentada. Não deve ele porém jamais fazêlo ignorando a relação dialética com as lutas no plano da reprodução ampliada. 902 [...] minha concepção pessoal, valha o que valer, é que os movimentos políticos, para ter algum impacto macro e de longo prazo, têm de sair da nostalgia com relação ao que se perdeu e, do mesmo modo, preparar-se para reconhecer os ganhos positivos a ser obtidos da transferência de ativos que se pode conseguir por meio de formas limitadas de expropriação (como, por exemplo, a reforma agrária ou a implantação de novas estruturas decisórias como a administração conjunta de florestas). Outra tarefa desses movimentos é a busca da discriminação entre os aspectos progressistas e regressivos da acumulação por espoliação, empenhando-se em dirigir os primeiros rumo a uma meta política mais generalizada dotada de maior valência universal do que os muitos movimentos locais, que o mais das vezes se recusam a abandonar sua própria particularidade. Para tal, tem-se no entanto de encontrar maneiras de reconhecer a relevância das múltiplas identificações (baseadas na classe, no gênero, no local, na cultura etc.) existentes no seio das populações, os vestígios da história e da tradição que advêm das formas pelas quais essas identificações se constituíram em resposta a incursões capitalistas na medida em que as pessoas se vêem como seres sociais dotados de qualidades e aspirações distintivas e muitas vezes contraditórias. Se isso não acontecer, corre-se o risco de recriar as lacunas do relato que Marx fez da acumulação primitiva e deixar de perceber o potencial criativo que reside naquilo que alguns consideram desdenhosamente relações sociais e sistemas de produção ‘tradicionais’ e não-capitalistas. Tem-se de encontrar uma maneira, tanto teórica quanto politicamente, de ir além do amorfo conceito de ‘multidão’ sem cair na armadilha do ‘minha comunidade, meu local, ou meu grupo social acima de tudo’. Tem-se principalmente de cultivar assiduamente a conectividade entre lutas no interior da acumulação ampliada e contra a acumulação por espoliação. Felizmente, no tocante a isso, o cordão umbilical entre as duas formas de luta que está nos arranjos institucionais e financeiros apoiados pelos poderes do Estado (intrinsecamente integrados no FMI e na OMC e por eles simbolizados) tem sido reconhecido com clareza. Esses arranjos se tornaram muito acertadamente o principal foco dos movimentos de protesto. Estando o núcleo do problema político reconhecido com tanta nitidez, deve ser possível iniciar um movimento centrífugo quanto às particularidades e centrípeto rumo a uma política mais ampla de destruição criativa mobilizada contra o regime dominante de imperialismo neoliberal imposto ao mundo pelas potências capitalistas hegemônicas. 903

Não nos parece ser necessário enfatizar os diversos pontos em que Harvey acerta a mão – sempre sob nosso ponto de vista – mas destaquemos a possibilidade – que ele não aproveita – de, a partir do reconhecimento do “caráter dual” e da “ligação orgânica 902 903

P. 144. Páginas 145 e 146.

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entre reprodução ampliada e acumulação por espoliação” refutar as duas e repensar tanto as lutas anticapitalistas como o capitalismo em geral em outros termos, mais condizentes com a história e as relações concretas. Ao contrário, a partir de uma perspectiva etnocêntrica que, vista “da periferia”, é rigorosamente inverossímil, Harvey equaciona suas percepções periodizando o capitalismo a partir do ponto de suposta ruptura de um padrão civilizacional “progressista” que supostamente valeu de 1945 até 1973 [ou seja, menos de trinta anos, na perspectiva mais otimista; muito menos do que a “vida útil” de um trabalhador]. Diante disso, define que a espoliação está no cerne das práticas imperialistas, o que coloca um problema fundamental: o imperialismo no qual a acumulação por espoliação estava “silenciada” é um imperialismo “silencioso”? É menos imperialista? É menos violento? Para quem? Para quem conquistou seus privilégios no topo de uma pirâmide imperialista? Além disso, quando insiste nos aspectos progressistas da acumulação por espoliação, não faz mais do que (re) afirmar abstratamente quais – ou quem – seriam os “ovos” que precisariam ser quebrados. Além disso, mesmo descrevendo que muitas comunidades “tradicionais” lutam ferozmente contra a modernização, ele parece não perceber que isso não parte de uma "recusa em abandonar a particularidade", ou da "armadilha da minha comunidade, meu local, meu grupo social acima de tudo". É uma questão de sobrevivência. 904 “Ainda que em alguns grupos possam acontecer determinadas melhorias” – como a relação de gênero, que ele cita – não nos parece um argumento melhor do que a evidência concreta de que diversos grupos tem a mais perfeita consciência de que a “modernização”, se não é boa nem mesmo para os que já foram integrados, para quem são os ovos a serem quebrados não é uma “escolha”. Se a “destruição criativa” para Harvey é uma meta, ela não pode ser uma meta para quem vai ser destruído nesta criação.  Por fim, o que podemos concluir por hora é que a crítica erigida por Harvey contra o “imperialismo neoliberal” não é uma crítica contra o “imperialismo capitalista” todo ele, mas contra suas formas “mais espoliativas” e “mais neoliberais”. O cinismo desse tipo de discurso, segundo o qual os povos “tradicionais” devem abandonar a 904

Cf.: Do Um sem o Múltiplo, Clastres.

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nostalgia do que se perdeu é que esse mesmo discurso não o percebe próprio nostálgico. Com duas diferenças: 1) o discurso da “nostalgia sobre a tradição” tem por objeto modos de vida milenares, enquanto o discurso sobre o “desenvolvimento progressista” tem por objeto algo que não durou nem três décadas; 2) enquanto um discurso procura evitar o genocídio, outro procura defender o bem-estar social que nunca foi senão restritivo e uma sociedade liberal de consumo de massas. Como já dissemos, ninguém precisa nem deve ser contra os direitos conquistados como resposta à barbárie que chamam de desenvolvimento – mas não nos parece adequado que se formulem discursos contra as formas de vida não-capitalistas como se essas se “recusassem” a aceitar melhorias “progressistas”. Nem tampouco propagandear como discurso anti-capitalista um discurso que com efeito reflete tão-somente a nostalgia de um arranjo "menos acumulação por espoliação" e "mais reprodução ampliada", mais "desenvolvimentista" e menos "neoliberal", e, nesta formulação, menos “imperialista”. 8.3 Imperialismo como acumulação por espoliação: é novo o novo imperialismo? Conforme procuramos demonstrar ao longo das últimas páginas, em nosso juízo Harvey comunga de determinados pontos de vista que não nos parecem adequados para o objetivo a que ele se propõe, ainda que traga à tona percepções importantes sobre a morfologia contemporânea, e ao menos uma contribuição teórica relevante – o conceito de acumulação por espoliação – que, embora não esteja perfeitamente acabado e embora do ponto de vista teórico não seja senão uma reedição de idéias desenvolvidas por outras pessoas, ainda assim poderia ser uma trincheira importante da historiografia contemporânea sobre o imperialismo. Mas vimos também que aquela visão de mundo da qual parte, que procuramos refutar, é possivelmente a principal responsável por Harvey não levar sua idéia às últimas consequências. Neste caminho, também apresentamos o argumento segundo o qual esta visão de mundo se faz notar sobretudo na sua periodização, que por sua vez demonstra uma série de problemas que procuramos criticar. O que talvez não tenha ficado claro, mas, dados nossos objetivos, devemos explicitar, é que essa periodização do capitalismo, se já parte de problemas graves desde o seu local de origem – radicalmente etnocêntrico – quando transposta para os estudos sobre o imperialismo, encontra dificuldades insuperáveis. Vamos insistir, porque nos parece um argumento importante em favor de outros tipos de periodização, e porque

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pode vir a reforçar nossa própria tese de que – salvo disposição em contrário – quaisquer que sejam as mudanças que nos separam do momento de concepção das “teorias clássicas sobre o imperialismo”, ainda estamos naquela estrutura temporal, razão pela qual as principais teses que procuraram definir o que aquele momento tinham de específico são atuais; não porque aquelas pessoas eram profetas, loucas e inconsistentes, mas porque – transformações à parte – a realidade continua passível de explicação teórica quando as ferramentas que essas pessoas nos ofereceram são tratadas com cuidado. Aqui vamos expor alguns limites de Harvey no que toca a essa empreitada de redefinição teórica do conceito imperialismo. O critério central é a comparação entre o imperialismo atualíssimo e o imperialismo “clássico”.  No final do penúltimo capítulo, quando já encaminha o próximo, Harvey narra dois episódios, procurando traçar paralelos entre eles: a participação inglesa na Guerra dos Bôeres, no começo do século XX; e as intervenções estadunidenses no Oriente Médio no começo do século XXI. Ambas as motivações tinham objetivos concretos nos locais a que se lançaram (reservas de ouro e diamantes no primeiro caso; reservas de petróleo no segundo); e em ambos os casos também estava claro para as principais lideranças que o expansionismo era fundamental para resolver problemas internos. Como já dissemos Harvey – de uma perspectiva hobsoniana – superestima as potenciais reformas “internas” que supostamente poderiam resolver as crises de realização do capital “sobreacumulado”. E isso tanto em um quanto noutro caso. Em suas palavras, tal como sucedeu com a Inglaterra ao final do século XIX, o bloqueio das reformas internas e dos investimentos infra-estruturais pela configuração dos interesses de classe nesses anos também teve um papel crucial na conversão da política norte-americana a uma adoção cada vez mais declarada do imperialismo. É portanto tentador ver a invasão norte-americana do Iraque como o equivalente ao envolvimento britânico na Guerra dos Bôeres, ambos os eventos ocorridos no começo do fim da hegemonia. Contudo, as intervenções militares são a ponta do iceberg imperialista. O poder hegemônico do Estado costuma ser empregado para garantir e promover arranjos institucionais internacionais e externos por meio dos quais as assimetrias das relações de troca possam funcionar em favor do poder hegemônico. É por meio desses recursos que, na prática, se extrai um tributo do resto do mundo. O livre-mercado e os mercados de capital aberto tornaram-se o meio primário de criar vantagens para os poderes monopolistas com sede nos países capitalistas avançados que já dominam o comércio, a produção, os serviços e as finanças no mundo capitalista. O veículo primário da acumulação por espoliação tem sido por conseguinte a abertura forçada de mercados em todo o mundo mediante pressões institucionais

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exercidas por meio do FMI e da OMC, apoiados pelo poder dos Estados Unidos (e, em menor grau, pela Europa) de negar acesso ao seu próprio mercado interno aos países que se recusam a desmantelar suas proteções. 905

Mas além disso, Harvey parece ter encontrado uma espécie de fórmula do imperialismo capitalista que serviria para explicar tanto um quanto outro imperialismos (a ser demonstrado no que divergem entre si). Antes de qualquer outra coisa, nada disso teria entretanto assumido a importância que hoje tem caso não tivessem surgido problemas crônicos de sobreacumulação de capital por meio da reprodução ampliada, a que se associou uma recusa política de tentar uma solução para esses problemas por meio da reforma interna. 906

Portanto, embora Harvey reconheça que a acumulação por espoliação seja constitutiva do capitalismo, ainda assim ela teria sido “silenciada” (sic) em determinados momentos dos imperialismos britânico e estadunidense, o que, por sua vez, teria gerado “crises de sobreacumulação”. A maneira de superar essas “crises de sobreacumulação” – quando se impede a “reforma interna” – seria recorrer à “solução externa” – ou seja, o “imperialismo”, que no caso contemporâneo seria efetivado predominantemente por uma combinação de espoliação, neoliberalismo e privatizações. Em suas palavras, o aumento da importância da acumulação por espoliação como resposta a isso, simbolizado pela ascensão de uma política internacionalista de neoliberalismo e privatização, se acha vinculado com a visitação de surtos periódicos de desvalorização predatória de ativos numa ou noutra parte do mundo. E esse parece ser o cerne da natureza da prática imperialista contemporânea. 907

Como sabemos, mais uma vez Harvey está se escorando na explicação que Arrighi supostamente teria tomado de empréstimo de Braudel para explicar os ciclos hegemônicos e isso poderia implicar, num primeiro momento, que

P. 147. P. 148. 907 Mesma página. 905 906

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em suma, a burguesia norte-americana redescobriu aquilo que a burguesia britânica descobriu nas três últimas décadas do século XIX, redescobriu que na formulação de Arendt, ‘o pecado original do simples roubo’, que possibilitara a acumulação original do capital, ‘tinha eventualmente de se repetir para que o motor da acumulação não morresse de repente’. 908

A conclusão disso é péssima para quem quer apresentar a especificidade do momento presente, porque “Se assim é o ‘novo imperialismo’ mostra não passar da revisitação do antigo. Se bem que num tempo e num lugar distintos909”. Ao exame dessa conclusão provisória, Harvey dedica os próximos movimentos de seu texto: o capítulo 5: A coerção consentida. Este capítulo começa com mais uma definição de imperialismo. Segundo ela, que não deixa de ser uma tentativa de síntese dos argumentos até então elencados de forma desorganizada, o imperialismo do tipo capitalista surge de uma relação dialética entre as lógicas territorial e capitalista do poder. Essas duas lógicas se distinguem por inteiro, não podendo de modo algum reduzir-se uma à outra, mas se acham estreitamente entrelaçadas. Podem ser concebidas como relações internas uma da outra. Mas os resultados podem variar substancialmente no espaço e no tempo. Cada lógica faz surgir contradições que têm de ser contidas pela outra. A acumulação interminável do capital, por exemplo, produz crises periódicas no âmbito da lógica territorial devido à necessidade de criar uma acumulação paralela de poder político/militar. Quando o controle político se altera no âmbito da lógica territorial, os fluxos de capital também têm de se alterar para adaptar-se a isso. Os Estados regulam seus negócios segundo suas próprias regras e tradições peculiares, produzindo assim estilos específicos de governo. Cria-se aqui uma base para desenvolvimentos geográficos desiguais, lutas geopolíticas e diferentes formas de política imperialista. 910

Mas a compreensão dessa realidade complexa, segundo Harvey, pode ser estabelecida segundo uma hierarquização de prioridades. A primeira delas – crítica comum à historiografia clássica sobre o imperialismo, que parte ao nosso juízo de uma má formulação do problema que já discutimos – define que “o imperialismo não pode assim ser entendido sem que primeiro lutemos com a teoria do Estado capitalista em toda a sua diversidade911”. A base dessa “exigência” teórica é simples, contudo. O pressuposto é o de que “Estados diferentes produzem imperialismos diferentes” e os exemplos “óbvios” (sic) são os “imperialismos britânico, francês, holandês, belga etc. Mesma página. Mesma página. 910 P. 149. 911 Mesma página. 908 909

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entre 1870 e 1945”

912

. Aqui, poderíamos cobrar que Harvey levasse à sério a idéia de

que cada mudança no objeto implica numa mudança teórica, mas deixemo-lo prosseguir. Segundo sua fórmula, os imperialismos tal como os impérios, apresentam diferentes contornos e formas. Embora possa haver muito de contingente e acidental – e na verdade não poderia ser de outra forma, dadas as lutas políticas contidas na lógica territorial do poder –, creio que podemos avançar muito no estabelecimento de um sólido arcabouço interpretativo das formas distintivamente capitalistas de imperialismo recorrendo a uma dupla dialética, primeiro a das lógicas territorial e capitalista do poder e, em segundo lugar, a das relações interiores e exteriores do Estado capitalista. 913

E aqui Harvey dará um salto decisivo, cuja direção ele já apontou: as relações internas. Sua sugestão: “pensemos, dessa ótica, no caso da recente mudança de forma do imperialismo nos Estados Unidos, da modalidade neoliberal para a modalidade neoconservadora914”. E, depois de tantas reviravoltas, mais uma vez a complexidade do imperialismo se reduz a uma disputa interna aos Estados Unidos, neste caso, a como a elite estadunidense respondeu aos imperativos globais a partir das respostas às suas ações:

Mesma página. Páginas 149 e 150. 914 P. 150. 912 913

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a economia global do capitalismo sofreu uma radical reconfiguração para reagir à crise de sobreacumulação de 1973-1975. Os fluxos financeiros tornaram-se os meios primários de articulação da lógica capitalista do poder. Mas, uma vez aberta a caixa de Pandora do capital financeiro, incrementou-se igualmente a pressão por transformações adaptativas nos aparelhos de Estado. Passo a passo, muitos Estados, liderados pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, vieram a adotar políticas neoliberais. Outros Estados ou buscaram emular as potências capitalistas líderes ou foram obrigados a fazê-lo mediante as políticas de ajuste estrutural impostas pelo Fundo Monetário Internacional. O Estado neoliberal buscou tipicamente expropriar as propriedades coletivas, privatizar e instaurar uma estrutura de mercados abertos tanto de mercadorias como de capitais. Era-lhe necessário manter a disciplina no trabalho e promover ‘um bom clima de negócios’. Um Estado específico que fracassasse nisso ou se recusasse a fazê-lo corria o risco de ser classificado como Estado ‘fracassado’ ou ‘delinquente’. Disso resultou a ascensão de formas distintivamente neoliberais de imperialismo. 915

O que não fica claro, aqui, embora seja um importante argumento no arcabouço de Harvey, é como se poderia evitar isso por meio das tais “reformas internas”. Mas o fato é que, sempre seguindo os argumentos dele, a acumulação por espoliação ressurgiu de sua posição secundária anterior a 1970 e veio a ser um aspecto maior da lógica capitalista. De um lado, a liberação de ativos de baixo custo oferecia vastos campos para a absorção de capitais excedentes. De outro, proporcionou recursos para impor os custos da desvalorização dos capitais excedentes aos territórios e populações mais fracos e mais vulneráveis. Para que a volatilidade e as inúmeras crises de crédito e liquidez se tornassem uma característica da economia global, o imperialismo tinha que orquestralas mediante instituições como o FMI para proteger da desvalorização os principais centros de acumulação do capital. E foi exatamente nisso que o complexo Wall-Street-Tesouro-FMI se empenhou com sucesso, em aliança com as autoridades europeias e japonesas, durante mais de duas décadas.916

As razões pelas quais a acumulação por espoliação se tornaram proeminentes não estão claras aqui, mas isso é porque ele já havia argumentado insistentemente que, para ele, elas tem por objetivo a realização do capital sobreacumulado. O que lhe parece mais importante insistir é no fato de que “a virada para a financeirização envolveu muitos custos internos, como a desindustrialização, as fases de rápida inflação seguida pelo esmagamento do crédito e o desemprego estrutural crônico917”. Na sequência Harvey cita uma série de processos que seriam mudanças nessa mesma linha, procurando alinhavar elementos que giram em torno da transferência dos parques Mesma página. Mesma página. 917 Mesma página. 915 916

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produtivos para regiões outrora subdesenvolvidas e a suposta ascensão de uma classe supostamente transnacional

. Mas tudo isso para chegar ao ponto que mais lhe

918

interessa: “o imperialismo neoliberal no exterior tendeu a produzir inseguranças crônicas no plano doméstico919”. A partir daí – lá vem o “regressismo” – muitos elementos das classes médias puseram-se a defender o território, a nação e a tradição como forma de armar-se contra um capitalismo neoliberal predatório. Buscaram mobilizar a lógica territorial do poder para se proteger dos efeitos do capital predatório. O racismo e o nacionalismo que um dia criaram a coesão da nação-Estado e do império ressurgiram no nível da pequena burguesia e da classe trabalhadora como arma de organização contra o cosmopolitismo do capital financeiro. Como culpar os imigrantes pelos problemas era uma manobra diversionista conveniente para os interesses da elite, floresceu uma política excludente fundada na raça, na etnia e na religião, particularmente na Europa, em que movimentos neofacistas começaram a angariar considerável apoio popular. As elites corporativas e financeiras reunidas em Davos em 1996 preocuparam-se então com a possibilidade de que ‘uma crescente reação contrária’ à globalização nas democracias industriais pudesse ter um ‘impacto destrutivo sobre a atividade econômica e a estabilidade social em muitos países’. O estado de espírito prevalecente, marcado por ‘impotência e ansiedade’, era propício ao ‘surgimento de um novo tipo de política populista, o que poderia ‘facilmente transformar-se em revolta’. 920

É desnecessário dizer quem viria a ser esse “líder populista” 921. A questão é que, desta perspectiva, “a instalação de práticas neoliberais imperialistas orquestradas pelo capital financeiro e pelos Estados neoliberais” e a “volatilidade inerente ao neoliberalismo acabou por voltar para assombrar o coração dos próprios Estados Unidos”, franco “colapso econômico” 922. Para Harvey, portanto mesmo antes dos eventos de 11 de setembro, estava claro que o imperialismo neoliberal enfraquecia por dentro, que nem os valores dos ativos em Wall Street podiam ser protegidos e que os dias do neoliberalismo e de suas formas específicas de imperialismo estava contados. 923

Mas, voltando aos termos do seu esquema conceitual, para ele, “a grande questão era que relação poderia surgir entre as lógicas territorial e capitalista de poder e que tipo de imperialismo isso iria produzir924”. A questão naquele momento – sempre para Cf.: páginas 150 a 152. P. 152. 920 Páginas 152 e 153. 921 Para quem fizer questão de conferir, está na página 154. 922 P. 154. 923 Mesma página. 924 Mesma página. 918 919

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ele – estava aberta. O que viria a acontecer, contudo, foi “a eleição fortuita (fortuitous) de [...] um cristão reconverso para a presidência dos Estados Unidos”, que “deixou um grupo neoconservador de pensadores próximos ao poder925”. O que segue do argumento de Harvey em grande medida já apresentamos na seção que dedicamos ao problema da “sociedade civil” dos Estados Unidos. Em termos sintéticos, é retomado o esquema arendtiano: imperialismo “externo” implica em tirania “interna” 926. No caso específico, o 11 de setembro proporcionou-lhes a oportunidade de ouro, e houve a apropriação de um momento de solidariedade social e de patriotismo para construir um nacionalismo norte-americano capaz de oferecer a base para uma forma diferente de empreendimento imperialista e de controle interno. 927

A chave, contudo, é o entendimento de que “a maioria dos liberals928, mesmo aqueles que antes criticavam as práticas imperialistas dos Estados Unidos apoiou o governo em sua guerra ao terror e aceitou sacrificar parte de suas liberdades civis pela causa da segurança nacional”, sendo que “a acusação de antipatriotismo foi usada para suprimir a participação crítica ou a dissensão fundada 929” e foi colocado “em operação o estilo paranoide da política norte-americana930”. Delineava-se, assim, um “projeto imperial neoconservador931”. Harvey escrevia em 2003, e hoje, com o segundo governo Obama chegando ao fim, sabemos que a troca do partido no poder não colocou fim ao imperialismo estadunidense, embora não tenhamos conhecimento das opiniões que Harvey defenderia sobre a aparência mais neoliberal ou mais neoconservadora 932. Do ponto de vista da periodização, contudo, a questão complica. E isso ainda nos governos de Bush, que sob muitos aspectos é tão “neoliberal” quanto os governos Clinton, senão mais. Para Harvey, o neoconservadorismo se sobrepõe ao neoliberalismo na crença de que os livres mercados de mercadorias e de capital contêm tudo o que é preciso para proporcionar a todos liberdade, bem-estar, sombra e água P. 154. Cf.: P. 156. 927 Mesma página. 928 O que os hablantes de língua inglesa chamam de liberals constitui um espectro muito amplo, que não pode ser identificado com o que chamamos em português de “liberais”. 929 Mesma página. 930 P. 157. 931 P. 159. 932 Até onde sabemos, em seus livros ele se dedicou mais às questões teóricas do marxismo, mas é bem provável que se encontre entrevistas nas quais é possível verificar seu ponto de vista. Isso nos interessa menos, uma vez que se trata aqui de comentar a historiografia específica sobre o imperialismo. 925 926

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fresca. Na medida em que ficou demonstrado que isso é demonstravelmente falso, tudo o que os neoconservadores fizeram foi transformar a guerra limitada travada sob o neoliberalismo em todo o globo num dramático confronto que supostamente há de resolver os problemas de uma vez por todas. O neoconservadorismo vai dar prosseguimento a uma economia política fundada na acumulação por espoliação (sendo a expropriação do petróleo iraquiano o ponto de partida mais flagrante) e não fará absolutamente nada para conter a espiral de desigualdades que vem sendo produzida pelas formas contemporâneas de capitalismo. Na verdade, a julgar por suas políticas fiscais, os neoconservadores tudo farão para acentuar essas desigualdades, presumivelmente com a justificativa de que, a longo prazo, recompensar dessa maneira a iniciativa e o talento vai melhorar a vida de todos.933

Ao fim do percurso, cumpre que nos questionemos se Harvey efetivamente é capaz de apresentar com clareza as especificidades do Imperialismo Capitalista contemporâneo. Sob nosso juízo, se o critério é a predominância da acumulação via espoliação, dois problemas se colocam de imediato. Primeiramente, qual seria a diferença entre o “imperialismo neoliberal” [pós1973] e o “imperialismo neoconservador” [a partir da eleição de Bush II]? Apesar de a parte final do seu livro ser dedicada a este problema, não nos parche que Harvey responda a contento. Mas é evidente que grande parte disso se deve ao próprio fato de que o texto foi publicado ainda nos primeiros anos deste “imperialismo”, e o próprio autor apresenta esta como uma possível mudança, naquele momento em curso. Então nos perguntamos se, passado o tempo que nos separa daquela publicação, no qual pudemos assistir a dois governos republicanos e dois governos democratas, quais são as diferenças e semelhanças entre eles? Quaisquer que sejam elas, contudo, não nos parece verossímil que a acumulação por espoliação tenha diminuído, mas caso essas mudanças não tenham implicado em mudanças substantivas, e caso se demonstre – como nos parece – que o imperialismo neoconservador é neoliberal, coloca-se em grande dificuldade a determinação “interna” do imperialismo, que lhe é tão cara, bem como se mostra ainda mais difícil acreditar em sua aposta de apoio aos setores mais “progressistas” da sociedade civil estadunidense, porque, salvo disposição em contrário, foram eles que elegeram Obama – o imperador em exercício. E este “bloco” que elegeu Obama, contudo, não parece ter sido capaz de imprimir aos Estados Unidos uma dinâmica “mais pautada na reprodução ampliada do que na acumulação por espoliação”. A não ser que se recorra, como costuma acontecer, ao argumento inexoravelmente 933

P. 163.

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arbitrário, da “predominância”. Como medi-la? É evidente que não se trataria de quantificar, matematizar e “modelar”, mas se esse é o critério central da explicação, é preciso minimamente demonstrar sua validade. É exatamente aí que reside o outro problema com o argumento segundo o qual durante a “segunda hegemonia”, que teria vigido entre o fim da Segunda Guerra e a crise de 1973, o capitalismo se valeu “menos” da “acumulação via espoliação”, ou que esta estivesse mais “silenciada”. Pode ser, que de um recorte “nacional”, a depender de qual nação se esteja falando, este argumento seja verossímil. Harvey não deixa dúvidas de que o que ele tem em mente são os “Estados democráticos de desenvolvimento mais progressista”, conforme já indicamos. Mas como é possível justificar essa distinção considerando que durante boa parte deste período vários desses países ainda eram colonialistas (a Índia, por exemplo, somente se tornou formalmente independente em 1967, a Argélia em 1962), para ficarmos apenas no plano o mais formalista possível? E mesmo nessa perspectiva ela mesma limitada, ainda assim o argumento de que a acumulação via espoliação estava silenciada é de extremo mau gosto. Para dizer o mínimo. A pilhagem da América Latina pela potência “local” corria solta, capitaneada por incontáveis golpes de Estado, censura, tortura e toda sorte de mecanismos que jamais poderiam ser classificados como “reprodução ampliada”. A “grilagem” de terra, a expulsão de pessoas do campo, as grandes obras que exigiram a “remoção” de populações várias, a destruição de recursos naturais e mais sabe-se lá quantos processos de acumulação via espoliação comeram soltos neste período, e nunca foram “silenciosos”. Que algumas pessoas, de uma perspectiva completamente etnocêntrica, não a tenham “ouvido” é outra questão, profundamente diferente. E se assim o é, o critério de Harvey para diferenciar o tal “novo” imperialismo se mostra

um

grande

equívoco,

um

tanto

quanto

perigoso.

387

Parte V – A “teoria clássica sobre o imperialismo capitalista” caducou? – Alguns comentários historiográficos sobre teorias “clássicas” “Saber envelhecer é uma arte, e isso eu sei, modéstia à parte”

(Adoniran Barbosa)

No capítulo anterior, procuramos apresentar cuidadosamente duas das mais importantes contribuições que, ao nosso juízo, podem ilustrar com bastante propriedade o “estado da arte” das teorias contemporâneas sobre o imperialismo, sobretudo no que toca um problema que nos parece teoricamente fundamental: demarcar, caso ela(s) exista(m), a especificidade do momento atual do imperialismo. Em nossa avaliação, Ellen Wood e David Harvey são as duas pessoas que mais importância deram a essa tarefa, e a exposição dos limites de suas teses nos parece corroborar nosso argumento de que não se conseguiu a contento marcar essa especificidade. David Harvey – “[...] da perspectiva da longa durée e pelas lentes daquilo que cham [a] de materialismo histórico-geográfico” – procurava “examinar a atual condição do capitalismo global e o papel que um ‘novo’ imperialismo poderia estar desempenhando em seu âmbito”

. A questão principal na qual ele se empenhou foi

934

“desvelar algumas das transformações mais profundas que ocorrem sob toda a turbulência e volatilidade da superfície e, dessa maneira, em abrir um terreno de debate acerca de como melhor interpretar nossa atual situação e reagir a ela935”. Ellen Wood, por outro lado, tinha por objetivo “colocar em relevo a especificidade do imperialismo capitalista, observando-o contra o pano de fundo contrastante de outras formas imperiais936” com o propósito de “definir a essência do imperialismo capitalista para melhor entender como ele opera hoje937”. Ou, noutros termos, dar conta da tarefa que advém da constatação de que “[...] precisamos reconhecer que essa relação [entre o capital e o Estado] é complexa e contraditória de um modo único938”. P. 11. Mesma página. 936 P. 18. 937 P. 19. 938 P. 139. 934 935

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As semelhanças são evidentes. A principal delas é que partem de uma perspectiva anti-capitalista ocupada com a situação atual do imperialismo capitalista – que assumia, naqueles primeiros anos do século XXI, uma aparência mais grave do que o que vinha ocorrendo. Inclusive porque a década de 1990 – por questões a que caberia investigar – a despeito da realidade flagrante, conseguiu passar a impressão de que era um momento de paz e estabilidade internacionais: a tal “nova ordem mundial”. Além disso, tanto Harvey quanto Wood assumem para si a tarefa de observar a realidade de uma perspectiva de longo prazo. Sobre isso, consideramos, conforme procuramos argumentar, que nenhum delxs foi bem sucedidx. Isso porque, apesar de ambxs recorrerem a exemplos que ocorreram há bastante tempo (o objeto é, em certo sentido, “de longo prazo”), por conta das ferramentas teóricas que utilizaram, não deram conta de erigir uma perspectiva de longo prazo, problema este cuja maior manifestação é justamente a impossibilidade de marcar a especificidade do período em questão – tarefa que tanto um quanto outra assumiram para si. Isso evidentemente não significa afirmar que uma perspectiva de longo prazo – ou qualquer outra – precise demarcar com rigor cronométrico quando cada um dos momentos principiou. Mas a afirmação de que o novo é igual ao velho derruba completamente a hipótese de que uma nova teoria tornou-se necessária porque as coisas mudaram. Isso fica nítido também quando observamos a maneira como encaram a historiografia “clássica”. Ainda que Harvey tenha ido além e anotado que elas não serviam nem mesmo para a análise do tempo em que foram escritas, tanto ele quanto Wood consideram as “teorias clássicas” inadequadas para a compreensão do imperialismo contemporâneo. Nas palavras dele, eu não discordo em linhas gerais das mudanças descritas por Wood e eu estou, do fundo do coração [wholeheartedly], de acordo que por mais inspiradores que eles possam ser, os teóricos clássicos não nos oferecem uma estrutura analítica [framework] adequada para confrontar nossas condições contemporâneas. 939

Há, contudo, uma notável divergência sobre a centralidade do Estado, que se manifestou nos debates que seguiram a publicação de ambos os livros. De forma sintética, Harvey argumentou que “Wood insiste na continuidade da importância do Estado na compreensão dos mecanismos do imperialismo capitalista” o que, para ele, gera muitas ambiguidades e problemas no entendimento de questões contemporâneas 939

Historical Materialism, p. 58.

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relevantes940. Ainda sobre a teoria do Estado a constatação póstuma de Harvey é curiosa. Segundo ele mesmo, “nem Wood e nem eu fizemos um trabalho muito bom (eu o abordei apenas nos termos genéricos de uma lógica do poder)”, deixando explícito que, ao fim e ao cabo, sua “teoria sobre o imperialismo” não é uma teoria sobre o imperialismo, mas outra coisa. Em suas palavras, “nós não apenas precisamos de uma nova teoria do imperialismo para enfrentar as condições de nosso tempo, como também precisamos de uma nova teoria do Estado capitalista. E nós precisamos urgentemente dessa teoria” 941. Por outro lado, as diferenças também se fazem claras no modo como constituem seus respectivos trabalhos. Enquanto Ellen Wood tem por tarefa principal a marcação da diferença entre o imperialismo capitalista e outras formas de império; David Harvey está empenhado em destacar mudanças no interior do imperialismo capitalista, procurando estabelecer suas subfases – conforme Ellen percebe muito bem942. Conforme procuramos argumentar, a definição de Ellen Wood a partir da insistência na diferença formal baseada na dominação puramente econômica que exige cada vez mais a dominação extraeconômica não coaduna nem mesmo com a sua periodização, uma vez que não dá conta da mudança, para ela fundamental, entre o momento da hegemonia britânica em relação à hegemonia estadunidense. A consequência da insistência de Harvey na obsessão com as mudanças no interior do imperialismo podemos aferir no artigo que oferece ao simpósio com o objetivo de comentar o livro de Ellen, onde chega à conclusão de que não existe, portanto, um único imperialismo o qual nós estamos encarando agora, mas uma série de diferentes práticas imperiais dispersas através da geografia desigual da distribuição do excedente do capital. Isso me leva a insistir em uma simples regra de ouro se queremos identificar o que há de ‘novo’ sobre o novo imperialismo: siga o excedente do capital e procure por prática baseadas na geografia e no território que levam à sua absorção ou desvalorização. 943

Ao nosso juízo, recolocar o problema do Imperialismo como um problema de práticas imperiais com o objetivo de absorver capital excedente é uma formulação a rigor pré-hobsoniana. Quaisquer que sejam as limitações das “teorias clássicas”, transformar o problema do imperialismo em um não-problema nos parece contribuir em nada e recuar em muito. HM, p. 65. HM, p. 67. 942 Império do Capital, p. 142 e seguintes. 943 HM, p. 70. 940 941

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 Com o objetivo de confirmar a atualidade das “teses clássicas” e procurando demonstrar que nem sempre as leituras usuais se justificam quando contrastadas aos textos que elas prometem comentar, neste capítulo examinaremos duas contribuições que nos parecem importantes. O primeiro motivo dessa seleção é que – se não podemos tomar cada uma das contribuições – esses dois exemplos já nos parecem o suficiente para demonstrar nossa hipótese de que aquelas teses não caducaram. O segundo motivo é que, a despeito de uma vasta historiografia anterior versar sobre xs autorxs a quem iremos nos dedicar, estes aspectos que procuraremos explicitar nos parecem bastante negligenciados nas interpretações contemporâneas

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Capítulo 9. Alguns comentários sobre as interpretações de Rosa Luxemburg sobre o Imperialismo “Eu tenho a minha verdade/Fruto de tanta maldade que já conheci/Me deixa caminhar a minha vida livremente/O que desejo é pouco/Pois não duro eternamente/Nada poderá me afastar do que eu sou/Amor, é o meu ambiente/Nada poderá me afastar do que eu souMe deixa, por favor”

(Ivone Lara Carvalho)

e

Délcio

A historiografia crítica sobre A acumulação do capital (1913), de Rosa Luxemburg, costuma girar em torno de um eixo explicativo segundo o qual se trata de uma grande obra, criativa, instigante, original, que, no entanto, se assenta em diversos erros por parte da autora944. A título de ilustração do argumento, para ficarmos inicialmente na repercussão sobre as teses de nossa autora no Brasil, poderíamos lançar mão da Apresentação que Paul Singer escreveu para a tradução da coleção Os Economistas945. Neste texto, Singer afirma que “A acumulação do capital é não somente a principal obra teórica de Rosa Luxemburg, mas também uma das mais significativas no campo da Economia Política marxista946”. Chama a sua atenção que “em menos de um ano, Rosa Luxemburg realizou uma análise da acumulação do capital admirável pela sua extensão, profundidade, consistência, erudição e originalidade” (mesma página). Ainda para Singer, a “[...] seção

Uma versão preliminar e reduzida deste capítulo foi submetida ao NIEP-MARX da Universidade Federal Fluminense (UFF) com o intuito de ser apresentada na mesa A favor de Rosa no Colóquio Internacional Marx e o Marxismo 2015: Insurreições, passado e presente sob o título Reprodução Social Total e Imperialismo n’A acumulação do capital de Rosa Luxemburg. 945 A primeira edição é de 1984, em dois volumes. Aqui citamos a segunda, do ano seguinte, que foi publicada em volume único. O fato de que essa obra foi publicada no Brasil somente em uma coleção sobre economistas – que em geral atrai a atenção apenas de economistas – em nossa opinião impactou de forma significativa a maneira como ela repercutiu cá entre nós. Voltaremos ao ponto. 946 P. XXXVI. 944

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III, ‘As condições históricas da acumulação’ [...] constitui a contribuição mais importante de Rosa Luxemburg à Economia Política” (mesmo texto, p. XLI), quando mostra que o capital não se limita a entrar em relações comerciais com o seu entorno não capitalista. À luz de rico material histórico, ela demonstra que o capital vai solapando as bases da economia natural, onde esta ainda sobrevive, de modo a quebrar sua autossuficiência, fazendo surgir em seu lugar uma economia de mercado; nas regiões em que predomina a produção simples de mercadoria, o grande capital se apodera de parte do solo para abrir espaço à sua crescente acumulação, até arruinar os pequenos produtores. Em suma, além de condicionar e explorar o entorno não capitalista, o capital na verdade o destrói, para tomar o seu lugar, tendendo assim a expandir incessantemente o modo de produção capitalista, até moldar todo o mundo à sua imagem. (mesma página).

Em síntese, segundo a leitura de Singer, “esta é a base econômica do imperialismo, que não é uma fase específica da história do capitalismo, mas o acompanha, como força expansiva, desde a origem” (mesma página). Mostraremos a seguir motivos pelos quais discordamos parcialmente da afirmação de que para Rosa o imperialismo não é uma fase específica da história do capitalismo ou, para sermos mais rigorosos, como, na obra em questão, essa relação não se resolve de forma tão conclusiva. Por hora nos cumpre também ressaltar que, ainda segundo a leitura de Paul Singer,

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é interessante notar que logo [na] primeira abordagem, Rosa Luxemburg sustenta que, nos modos de produção não capitalistas, ‘o momento determinante da reprodução são as necessidades de consumo da sociedade’, como quer que essas sejam determinadas. [...] Em outras palavras, Rosa Luxemburg não considera a marcha da reprodução determinada pelas limitações da capacidade de produção da sociedade, mas pelas suas necessidades de consumo. [...] em suas linhas gerais, o ritmo da reprodução global é determinado pelas necessidades de consumo da sociedade e/ou pelas possibilidades concretas que a sociedade tem de satisfazer essas necessidades. Em determinadas condições, pode ser que o ritmo da reprodução, ou seja, a velocidade de crescimento da produção, seja inferior às potencialidades produtivas, sendo nesse caso limitado pelas necessidades de consumo, socialmente determinadas. Haveria então força de trabalho não aproveitada e capacidade de produção ociosa. Em outras condições, no entanto, o ritmo da reprodução pode coincidir com o máximo permitido pelo potencial produtivo. Nesse caso, possivelmente nem todas as necessidades de consumo social serão satisfeitas, o que significa que estas não constituem o fator determinante da reprodução. Como o mostra o próprio levantamento histórico de Rosa Luxemburg, na Seção II da obra, essas alternativas dividiram os autores, praticamente desde o nascimento da Economia Política. (mesma obra, p. XXXVII)

A leitura de que para Rosa Luxemburg o problema fundamental que determina a acumulação é o consumo é amplamente dominante na historiografia crítica sobre a sua obra, e praticamente unânime na historiografia sobre o imperialismo, ao que geralmente nossa autora é rotulada como “subconsumista”. Procuraremos demonstrar mais à frente os motivos pelos quais entendemos que essa hipótese também não procede e pelos quais discordamos da maneira como Paul Singer circunscreve a problemática principal do livro, quando afirma que “o problema que interessa a Rosa Luxemburg [...] trata-se de saber ‘para quem produzem os capitalistas, quando e na medida em que eles mesmos não consomem, mas ‘renunciam’, isto é, acumulam?’” (mesma obra, p.XXXVIII). Evidentemente não é o caso de afirmar que a autora não disse o que Singer demonstra que ela disse. O que nós procuraremos fazer é enunciar, a partir da apresentação de outros elementos que a autora também coloca, os problemas da redução de A acumulação do capital a esse enunciado. Então, esperamos fiquem evidentes as razões pelas quais discordamos frontalmente da hipótese de leitura segundo a qual Rosa “desloca [...] inconscientemente a questão do plano do equilíbrio macroeconômico para o plano da motivação microeconômica” (obra citada, p. XXXIX). Outra questão que também nos parece particularmente importante de considerar é que Singer reitera o argumento – igualmente frequente na historiografia especializada – contra o método pelo qual Rosa discute a questão da acumulação. Ainda na citada

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Apresentação, Singer lamenta que ela tenha escolhido como método a análise dos esquemas marxistas de reprodução (mesmo texto, p. XXXIX e segs.). O que essa interpretação sugere é que as intuições de Rosa são corretas, mas a maneira como a autora se apercebeu delas e escolheu expô-las é equivocada. Para ele, a forma de Rosa Luxemburg colocar seu problema, em função dos esquemas de reprodução, deu lugar a enorme confusão, pois induziu numerosos estudiosos marxistas a tentar mostrar que, uma vez em crescimento, a economia capitalista não tem dificuldade em encontrar dentro dela a demanda pela mais-valia acumulada. Não obstante, o problema de Rosa Luxemburg é real, podendo ser muito melhor colocado fora dos esquemas da reprodução. (mesma obra, páginas XXXIX e XL).

Sob nosso ponto de vista, para Luxemburg, os esquemas da reprodução não são apenas uma “forma de colocar o problema”. Ainda que problema da acumulação em si mesmo pudesse, sim, ser apresentado de diversas outras maneiras, conforme procuraremos demonstrar, Rosa Luxemburg considerava a crítica à forma como esse problema havia sido colocado na historiografia que a precedeu um problema absolutamente fundamental. Não lhe bastava fazer uma apreciação do problema, mas cumpria que se fizesse, ao mesmo tempo, a crítica à forma como esse problema vinha sendo trabalhado. Concordamos com ela. Agora, se na tentativa de refutar a construção teórica de Rosa os “numerosos estudiosos marxistas” geraram uma “enorme confusão” é uma crítica que deve ser endereçada a eles; não a ela. O que nos parece muito estranho, por outro lado, é a própria ideia segundo a qual por métodos completamente equivocados Rosa possa ter alcançado resultados tão corretos. Ao nosso juízo, este é um problema das leituras estritamente “econômicas” do livro A acumulação do capital e das teses de Rosa em geral, conforme procuraremos demonstrar na sequência.  Mas como vínhamos dizendo, Singer não está sozinho nessas considerações. Mudando um pouco o recorte e procurando representar sintomaticamente a maneira como Rosa é lida por estudiosos contemporâneos sobre o imperialismo, gostaríamos de mostrar, a título de exemplo, os paralelos entre a leitura de Singer e a de Alex Callinicos. À primeira vista, a leitura de Callinicos diverge da leitura de Singer no que toca a relação entre imperialismo e capitalismo. Se para Singer a interpretação de Rosa repousa no fato de que o imperialismo não é uma fase do capitalismo, Callinicos destaca

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que ela foi “a primeira grande figura do marxismo a considerar o imperialismo como uma consequência necessária do desenvolvimento capitalista”, chegando inclusive a antecipar “a proposição posteriormente desenvolvida por Lenin e Bukharin segundo a qual o imperialismo é inescapável uma vez que o capitalismo atinja a maturidade” (CALLINICOS, 2009, p. 36), que é a leitura de que o imperialismo é uma fase. Na sequência, o de sempre. Além de ratificar a hipótese do “subconsumo” (obra citada, p. 40), Callinicos também coloca Rosa como uma espécie de precursora do que ele chama de “teoria marxista da demanda efetiva” (obra citada, p. 37) – que geralmente se refere a Kalecki, apontado por Singer como “discípulo de Rosa” (LUXEMBURG, 1985, p. XLII) e comumente idolatrado pelos que se consideram “economistas heterodoxos”. 947 Com aquele característico espanto com o qual se concebe a hipótese de que Rosa acertava apesar de empregar um método completamente furado, Callinicos observa inclusive que, apesar do reconhecimento geral dos equívocos cometidos em A acumulação do capital, a teoria nele contida ainda é bastante influente hoje, por exemplo, nos trabalhos de Ellen Wood e David Harvey (obra citada, p. 36)

. O

948

zimbabuano949, muito menos simpático à nossa autora que Harvey e Singer, no entanto, concede à Rosa “um tipo de argumentação particularmente radical e algumas vezes até sofisticado”, e uma análise sobre o imperialismo “realmente poderosa”. Ainda sob seu ponto de vista, a teoria luxemburguista consiste em uma “pesquisa bem fundamentada, e pode ser considerada em muitos aspectos uma eloquente amostra das tendências do seu tempo” e “em vários sentidos bem-sucedida”. Não bastasse, Callinicos reconhece que “ela integrou a conquista colonial, os empréstimos, tarifas e o militarismo em uma Deixemos anotado que nessa mesma obra, Callinicos também considera Lenin um “subconsumista” (CALLINICOS, obra citada, p. 52). 948 Ao nosso juízo, embora o argumento da influência de Rosa nos trabalhos de Ellen seja em certo sentido verossímil, ainda assim nos parece um tanto forçado. A demonstração desta hipótese de leitura demandaria um espaço com o qual não contamos, ao que nos pareceu desnecessário comentá-la na seção dedicada a Ellen Wood. Já Harvey, por sua vez, como dissemos, explicitamente embasa sua interpretação sobre a ‘acumulação por espoliação/despossessão’ em A acumulação do capital, e é com este, inclusive, que inaugura o capítulo principal de O Novo Imperialismo (HARVEY, 2004). Emblematicamente, na sequência, Harvey faz coro com a monótona hipótese segundo a qual Rosa seria “subconsumista”. Não parece haver dúvidas de que o influente trabalho de Harvey é em grande medida responsável por grande parte da historiografia crítica sobre o imperialismo contemporâneo ter percebido que as teses de A acumulação do capital podem contribuir para o entendimento das relações capitalistas em nossos dias, embora a leitura que ele faz deste livro não nos pareça de todo adequada. Esperamos que a essa altura esteja clara a nossa interpretação de que Harvey defende idéias muitas vezes opostas às de Rosa e as razões pelas quais acreditamos que a releitura das obras de Rosa deve evitar o campo minado que Harvey montou em seu entorno. 949 Callinicos desenvolveu toda a sua carreira na Inglaterra, mas nasceu no Zimbabwe, quando ainda Rodésia do Sul. 947

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totalidade analítica” (mesma página) e, em 1913, ou seja, com quase cem anos de antecipação (!), “pint [ou] um poderoso e original retrato do imperialismo fin-de-sciècle” (mesma obra, p. 38). Como ela poderia fazer isso? Deve ser algum tipo de bruxaria, porque “a teoria econômica [de Luxemburg] é ao mesmo tempo completamente brilhante e completamente equivocada” (mesma obra, p. 39) . Ainda que dominante, essa não é uma interpretação unânime. A feminista alemã Frigga Haug, estudiosa das teses de Rosa Luxemburg que contraria grande parte da historiografia crítica de sua obra, por exemplo, considerava que “pelo menos tão importante quanto o conteúdo, que em muitos artigos de Luxemburgo tem apenas interesse histórico, é seu método” 950. Outra figura importante da historiografia marxista que defende a forma de estruturação do argumento de Rosa foi Lukács, que em História e Consciência de Classe (LUKÁCS, 2003) afirmou que a reformulação teórica de Rosa era, inclusive, uma exigência das mudanças em curso. Em seus termos, que já antecipamos, o desenvolvimento econômico da época imperialista tornou cada vez mais difícil acreditar nos simulacros de ataque contra o sistema capitalista e a análise 'científica' dos seus fenômenos considerados isoladamente, no interesse da 'ciência exata e objetiva'. Seria preciso tomar partido, não apenas politicamente, a favor ou contra o capitalismo. Quanto à teoria, também seria preciso fazer uma escolha: ou considerar toda a evolução da sociedade de um ponto de vista marxista e então dominar o fenômeno do imperialismo de modo teórico e prático, ou furtar-se a esse encontro, limitando-se ao estudo de aspectos isolados de alguma ciência específica (P. 109).

Para ele, não bastava analisar somente “as categorias econômicas”, que “são apenas as expressões teóricas, as abstrações das relações sociais de produção" (citando Marx, à p.115). Conforme procede “o método dos epígonos de Marx” que “se esclerosa numa ciência específica e mecanicista, em economia vulgar” (p. 117) o entendimento da economia como totalidade, como realidade social, por outro lado, exige que seja qual for o tema em discussão, o método dialético trata sempre do mesmo problema: o conhecimento da totalidade do processo histórico. Sendo assim, os problemas 'ideológicos' e 'econômicos' perdem para ele sua estranheza mútua e inflexível e se confundem um com o outro. A história de um determinado problema torna-se efetivamente uma história dos problemas. A expressão literária ou científica de um Citada por Gerhard Dilger, “Em nome da Rosa” (em SCHÜTRUMPF, 2015, p. 10). Para um comentário sobre as interpretações de Frigga Haug, sugerimos a resenha um livro dela que Isabel Loureiro publicou na Crítica Marxista. 950

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problema aparece como expressão de uma totalidade social, como expressão de suas possibilidades, de seus limites e de seus problemas. O estudo histórico-literário do problema acaba sendo o mais apto a exprimir a problemática do processo histórico. A história da filosofia torna-se filosofia da história” (p. 121).

Conforme essa interpretação, no caso de Rosa Luxemburg, conforme ela demonstra exaustivamente, cumpria anotar que o problema da acumulação era um problema perene da Economia Política – tanto burguesa quanto em Marx – cuja “expressão literária” e “científica” era justamente a reprodução social total. Que ela tenha encarado essa questão como um imperativo de demonstração da “história deste problema”, seguindo essa interpretação de Lukács, não é um ponto fraco, que ela poderia ter evitado, mas o oposto.  Não obstante essas minoritárias exceções, com mais ou menos tintas, com mais ou menos simpatia, o espanto com a capacidade de Rosa errar o tempo todo e ainda assim oferecer uma análise “brilhante” – bruxaria? – é um tema constante da historiografia que se dedica aos seus trabalhos. Assim, cumpre que a examinemos ainda que em seus traços fundamentais. Do nosso ponto de vista, nos parece provável que essa hipótese de leitura se consolida em 1922, Lenin – um provável admirador sincero de nossa autora – emitiu um juízo que funciona como um verdadeiro pontificado sobre a maneira pela qual Rosa deve ser lida. Segundo ele, “Rosa Luxemburgo errou [...]; ela errou [...]; ela errou [...]; ela errou [...]; ela errou [...]. Mas, apesar de todos os seus erros, ela foi e continua sendo uma águia” (citado em SCHÜTRUMPF, 2015, pág. 50) 951. Esse duplo movimento – admiração e necessidade de refutação – que Rosa sintetizava como poucas pessoas é uma marca importante da historiografia sobre ela, em diversos textos. Para o que nos interessa mais imediatamente – sua compreensão sobre o problema do imperialismo – A acumulação do capital certamente ocupa o papel central. Mas para além da apreciação do famigerado e – reiteramos – monótono debate A despeito das polêmicas travadas entre Rosa e Lênin que duraram muitos anos e percorreram muitos assuntos, tudo leva a crer que o respeito era mútuo e sincero. Um pitoresco exemplo pode ser apreciado na carta que Rosa enviou, em 2 de abril de 1911, para Costia Zektin, então seu companheiro, na qual descreve a cena: “[...] Ontem Lênin chegou e até agora já esteve aqui quatro vezes. Gosto de conversar com ele, é inteligente e culto e tem uma cara muito feia que eu gosto de ver. [...] Aqui está de novo quente e ameno, uma completa primavera. A pobre Mimi faz ‘curu!’. Ela impressionou muito Lênin, ele disse que só na Sibéria tinha visto animais tão imponentes, e que ela é uma gata senhorial. Ela também coqueteou com ele, rolou de costas e o chamou, mas quando ele tentava se aproximar, ela lhe batia com a patinha e rosnava como um tigre. [...]” (LOUREIRO, 2011b, p. 172-3) 951

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sobre o suposto subconsumismo e para além da infinita miríade de debates – ao nosso juízo, muitas vezes estéreis – em torno dessa obra – que exigiriam movimentos grandes como a apreciação crítica que a autora recebeu durante o stalinismo e a crítica que Bukharin lhe dirigiu quando já não poderia mais responder – nos interessa apreciar, como de costume, o que esses debates indicam. Tendo isso em mente, parece-nos que a compreensão das possíveis contribuições de Rosa para o entendimento sobre o imperialismo contemporâneo passa pelo reexame de pelo menos dois pontos: 1) como a autora entendia o imperialismo em relação com o capitalismo, e 2) por que ela considerava a acumulação do capital a questão mais importante para a compreensão da história do capitalismo. Estes dois pontos constituirão o eixo de nossa exposição nas próximas páginas. 9.1 As primeiras percepções sobre a importância do tema imperialismo Uma das figuras de maior relevo mundial entre os quadros marxistas do seu tempo, Rosa Luxemburg – o que raramente é destacado pela historiografia crítica deste tema – já vinha versando sobre o imperialismo em diversos textos. Em um importante artigo sobre a crise do Marrocos, publicado em 1911, por exemplo, Rosa, com a sua famosa elegância quanto à arte das palavras, pontua da seguinte maneira: Uma tempestade imperialista avançou pelo mundo capitalista. Quatro potências da Europa – França, Alemanha, Inglaterra e Espanha – estão diretamente envolvidas em uma negociação que trata, primeiro, do destino do Marrocos, e, em seguida, de diversos grandes domínios da 'parte negra da terra', que volta e meia foi considerada como 'compensações'. Cada dia traz novidades sobre a situação dessa negociação – e, com elas, esperanças e preocupações surgem e desaparecem aos saltos. Será que a tempestade vai produzir o raio de uma guerra homicida entre os dois continentes? Ou será que tal temporal iminente vai se recolher, revelando-se 'apenas' como a pacífica barganha que transmite alguns retalhos do mundo de um punho blindado do militarismo europeu ao outro? Esta é a pergunta que, agora, movimenta milhões de pessoas. Para encontrar uma resposta, todos os olhares se voltam, em uma espera angustiante, para a porta trancada de um quarto onde dois ‘homens de Estado’ conferenciam entre si – o embaixador francês Cambon e o secretário de Estado alemão Kiderlen-Wächter. Em todo esse vasto mundo não há nenhum ser humano para o qual seria segredo que esses dois ‘homens de Estado’ são apenas duas pobres marionetes, cujos braços e cabeças de cartolina podem ser movidos de forma automática por cordinhas controladas pelas mãos de alguns grupos do grande capital, já que nem mesmo o melhor amigo deles poderia atribuir-lhes poderes espirituais mágicos. Guerra ou paz? Marrocos pelo Congo ou o Togo pelo Taiti? São perguntas que colocam em jogo a vida ou a morte de milhares, bem como o bem-estar ou o sofrimento de

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povos inteiros. Por essas respostas, uma dúzia de cavaleiros industriais gananciosos barganha e mede seus comentários políticos, assim como no mercado barganha-se pela carne de cabra ou por cebolas, e os povos civilizados [Kulturvölker] aguardam numa inquietação espantosa, como rebanhos, por uma decisão. Essa é uma imagem de brutalidade tão revoltante e de tão tosca mesquinhez que despertaria o ódio de qualquer um que não estivesse diretamente interessado na negociata. Mas a indignação moral não é o parâmetro nem a arma com a qual se poderia interferir em fenômenos como os da política mundial capitalista. Para o proletariado com consciência de classe, trata-se sobretudo, de compreender a negociação marroquina em seu significado sintomático, honrá-la em seus nexos abrangentes e em suas consequências. Mas a mais nova aventura da política mundial está rica de lições para o esclarecimento político do proletariado. 952

De imediato chama atenção uma questão absolutamente central: a clareza de que a guerra imperialista era inevitável. Que ela pudesse o não pudesse ser evitada ali, que ela pudesse ou não ser adiada, era uma questão – deste ponto de vista – secundária. Ou seja, a questão exata de saber quando ocorreria o ponto de ruptura das negociações e negociatas e chegaria a “hora do pagamento à vista” era menos importante do que a preparação para o fato de que, dada a inevitabilidade do conflito que se aproximava, era preciso estabelecer uma estratégia para os partidos operários que tivesse a guerra como horizonte. Essa percepção, que Rosa compartilhava com as alas mais radicais da Internacional Socialista, deixou marcas em diversos de seus trabalhos. Com efeito, todo e qualquer esforço dos líderes radicais – o desenvolvimento de textos teóricos, cursos de formação, discursos públicos, artigos de jornais, panfletos etc. – estava animado por esse espírito. Do ponto de vista dos partidos operários, contudo, essa percepção não era suficiente. Igualmente fundamental era a tarefa de desvelar o caráter capitalista da corrida imperialista que a despeito de quaisquer acordos provisórios não tardaria a estourar. Essa era a posição defendida por Rosa (e por Lenin, dentre outros) que foi referendada no “Manifesto da Basiléia de 1912” 953. Neste sentido, naquele mesmo texto, Rosa segue argumentando que

Páginas 411 e 412. Grifos nossos. “Manifesto sobre a guerra aprovado no Congresso socialista internacional extraordinário realizado em Basileia (Suíça) de 24 a 25 de Novembro de 1912. O manifesto advertia os povos sobre a ameaça da guerra mundial imperialista que se aproximava, revelava os objetivos de pilhagem desta guerra e apelava para os operários de todos os países para travarem uma luta decidida pela paz, opondo «ao imperialismo capitalista a força da solidariedade internacional do proletariado». No manifesto de Basileia foi incluído o ponto, formulado por Lenin, da resolução do congresso de Estugarda de 1907 de que caso fosse desencadeada a guerra imperialista, os socialistas deveriam aproveitar-se da crise económica e política provocada pela guerra a fim de conduzirem a luta pela revolução socialista.” https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/m/manifesto_basileia.htm 952 953

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a crise marroquina é, sobretudo, uma sátira implacável da farsa do desarmamento encenada há poucos meses pelos Estados capitalistas e sua burguesia. Na Inglaterra e na França, ainda em janeiro, os homens de Estado e os parlamentos falavam, através de chavões, acerca da necessidade de limitar as despesas com as ferramentas homicidas, em substituir a guerra bárbara por formas civilizadas de procedimentos de arbitração. Na Alemanha, o coro dos livre-pensadores juntou-se de maneira entusiasmada aos tons dessas canções de paz. Hoje, esses mesmos homens de Estado e parlamentos apoiam uma aventura político-colonial que leva os povos para muito perto da beira do abismo de uma guerra mundial, e o coro dos livre-pensadores na Alemanha se entusiasma igualmente por essa aventura bélica como antes [entusiasmara-se] pelas declamações de paz. Essa mudança repentina de cena mostra, mais uma vez, que as propostas de desarmamento e os anúncios de paz do mundo capitalista nada mais são que pintados panos de fundo – que de tempos em tempos podem até caber nos assuntos da comédia política, mas que são cinicamente deixados de lado quando o negócio torna-se sério. Esperar quaisquer tendências pacíficas dessa sociedade capitalista e apoiar-se seriamente sobre elas seria, para o proletariado, a autoenganação mais ingênua à qual ele poderia sucumbir. (p. 412-3, grifos nossos)

Como se pode aperceber, a refutação da tese – que posteriormente seria defendida pelas alas “centristas” – segundo a qual as lideranças envolvidas nas contendas poderiam efetivamente “escolher” entre “reformas internas” e o “imperialismo” e, a partir disso fazer acordos anti-imperialistas – era estratégica, mesmo que alguns acordos provisórios fossem estabelecidos. Mas ainda mais importante, uma vez que o imperialismo e a guerra [sua manifestação mais trágica] ligam-se inexoravelmente aos imperativos do próprio capitalismo, era estabelecer de forma cristalina que a luta contra o imperialismo precisa ser a luta contra o capitalismo e viceversa. 954

Conforme já sugerimos, consideramos com grande preocupação a hipótese de que vivemos hoje um cenário bastante semelhante . A análise do “sistema internacional” bem como das respectivas “situações internas”, tanto na periferia quanto no centro, nos parece indicar este cenário sombrio. Se por um lado vemos o imperialismo se aprofundando de modo avassalador, nos “planos internos” vemos a ascensão do racismo, da xenofobia e de outras formas de ódio e intolerância que – conforme vimos pontuando aqui e ali – são as principais características daquele estado no qual a guerra explodiu. Sob nosso juízo, as pessoas que levantam essa hipótese de que podemos estar vivendo no barril de pólvora que antecede a catástrofe – geralmente taxadas de “loucas” ou coisas assim – deveriam ser mais ouvidas por quem quer que se interesse por combater essa tendência dos processos em curso. Acreditar que a Guerra pode ser evitada pela dissuasão nuclear é, hoje, um conto da carochinha no qual nenhum especialista sobre o assunto acredita. Mas há uma diferença importante quanto ao pré-guerra: não contamos com nenhuma organização minimamente comparável à Internacional Socialista e aos grandes partidos que a compunham. Há quem pense nisso com temor e nostalgia, mas quanto a isso há que se lembrar de que, a despeito da grande organização, cada um daqueles partidos – à exceção dos bolcheviques – traiu a causa e se enfileirou ao lado dos imperialistas. Pode ser que a ausência de uma grande organização seja algo a se lamentar, ou não. Evidentemente, isso não significa que devemos lutar contra a organização. 954

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Além disso, nos interessa destacar aqui o fato de que, já em 1911, Rosa conferia atenção especial para as consequências dessa expansão do capitalismo, tanto para a periferia quanto ao seu reflexo no centro, uma vez que “na questão marroquina expressam-se nitidamente, outra vez, o nexo íntimo entre a política mundial e as condições políticas internas dos Estados (p. 414)”. Para ela, justamente pelo fato de a mais recente tomada de curso da política mundial, assim como sua nova aventura, ser apenas uma consequência lógica de desenvolvimentos políticos e econômicos internos da sociedade burguesa de classes, esse curso, como todo o desenvolvimento, tem um lado revolucionário, que leva para além das lástimas imediatas e de seu fluxo momentâneo condenável. O sentido histórico do conflito marroquino, remetido à sua expressão mais simples e mais tosca, é a luta concorrencial pela decisão sobre qual dos representantes do capitalismo europeu será o primeiro a poder jogar-se sobre o canto noroeste do continente africano, para engoli-lo ao modo capitalista – o que, afinal, é o sentido de cada fragmento do desenvolvimento da política mundial. Mas a Nêmeses do capitalismo exige que quanto mais ela engula do mundo para prolongar sua vida, tanto mais ela enterre sua própria raiz vital. No momento em que se digna a introduzir a ‘ordem’ capitalista nas relações primitivas das tribos de pastores dos lugares mais remotos e nas vilas de pescadores do Marrocos, a ordem por ela criada já está ruindo em todas as esquinas e pontas de outras partes do mundo, e as labaredas da revolução incendeiam-se na Turquia, na Pérsia, no México, no Haiti; silenciosamente, avançam em Portugal, na Espanha, na Rússia. Em todo lugar há anarquia, em todo lugar os interesses vitais dos povos, as forças do progresso e do desenvolvimento se rebelam contra a enganação mais desordenada da ordem capitalista. E, assim, também o mais recente ataque do capital por novas conquistas torna-se apenas um avanço rumo ao domínio em que o próprio capital será alcançado pela morte. Por fim, a aventura marroquina será, como qualquer avanço da política mundial, apenas um passo rumo à aceleração do colapso capitalista (p. 415).

Mas ao mesmo tempo, em que denunciava o vínculo entre a guerra e os imperativos da concorrência capitalista, Rosa – ainda seguindo posição compartilhada pelas alas mais combativas da Internacional – ao explicitar a importância das questões internas, apontava para o potencial [ou seja, algo que pode ou não se realizar] revolucionário desses conflitos no que toca a possibilidade de aproveitá-los como meio geral no qual poderia florescer o socialismo – ainda que percebesse que em cada um dos países as condições da revolução fossem particulares. A dificuldade estava no fato de que, sendo a classe trabalhadora com consciência de classe uma classe eminentemente internacionalista, e considerando o fato de que, numa guerra, a classe trabalhadora é particularmente afetada, não era viável a estratégia de apoiar a guerra como meio de

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promover o socialismo. Assim, mesmo sendo mais provável uma revolução em contexto de guerra mundial, a classe trabalhadora precisava se opor a essa guerra, que ela própria sabia inevitável. Portanto, era preciso manter a lucidez e atuar mesmo em um contexto completamente indesejado e catastrófico, no qual não se poderia esperar qualquer tipo de controle sobre os rumos que seriam tomados. 955 Como hoje sabemos – mas até então ninguém tinha sabe-lo – por diversas razões ainda não de todo esclarecidas, os bolcheviques, liderados por Lenin e Trotsky, entre outros, lograriam êxito durante a Guerra, mas a social-democracia alemã (e da Polônia e da Lituânia, as quais nossa autora também representava), na qual Rosa Luxemburg militava, jamais alcançaria o mesmo resultado. Nosso objetivo em mostrar a – geralmente refutada – similitude entre as análises abstratas sobre esse ponto específico é que nos parece que não se trata de colocar a responsabilidade pelos fracassos ou sucessos da revolução simplesmente na existência de um tipo específico de projeto político. Caso seja demonstrado que o projeto é uma condição necessária para a revolução – do que não estamos de todo convencidos – ainda assim seria, no máximo, uma “condição necessária ainda que insuficiente”. A relação entre as condições concretas nas quais seria possível realizar a revolução socialista e a guerra são temas constantes do pensamento de Rosa com especial destaque para sua avaliação sobre a Revolução Russa, amplamente comentada e debatida. Dedicaremos outros textos para a prosa sobre essas questões, que aqui podem aparecer de modo apenas insinuado. Mas é necessário “marcar posição”. O que nos parece importante anotar aqui é que a narrativa das críticas de Rosa à Revolução Russa muitas vezes influencia o juízo sobre outras obras dela, e, portanto, a consideração deste ponto ajuda a explicar porque Rosa Luxemburg foi e é tão combatida mesmo pelos marxistas. O que nos cumpre ressaltar é que este texto, ao nosso juízo, deve ser entendido ao mesmo tempo como uma crítica “fraterna” aos bolcheviques e, mais ainda, como um exemplo do proceder luxemburguista: como uma crítica à experiência concreta – em todas as suas esperadas dificuldades e problemas – na Rússia atua como uma autocrítica à social-democracia alemã. Noutros termos: o que podemos aprender com nossos “irmãos” para aplicarmos à nossa situação concreta; e o que podemos dizer, olhando daqui, que pode ajuda-los, uma vez que somos todos aliados em uma mesma “missão”. Ainda que não nos alonguemos, vamos dedicar um espaço para reproduzir as primeiras páginas desta grande obra, que nos diz também muito sobre como a relação entre imperialismo e socialismo se processava para Rosa Luxemburg, lembrando que essa aqui já é uma formulação bastante posterior aos textos que vínhamos apresentando. Para nós, a importância da questão justifica a digressão e a longa nota. E certamente a qualidade do texto tornará a (re) leitura agradável: “A Revolução Russa é o fato mais marcante da guerra mundial. Sua explosão, seu radicalismo sem igual, seu efeito duradouro desmentem à perfeição o palavreado com que a social-democracia alemã oficial, no seu zelo servil, encobriu ideologicamente no início a campanha de conquistas do imperialismo alemão: nesse palavreado, as baionetas alemãs tinham por missão derrubar o tsarismo e libertar os povos por ele oprimidos. O alcance prodigioso obtido pela revolução na Rússia, seu efeito profundo, que abala todas as relações de classe, que revela o conjunto dos problemas econômicos e sociais, que a fez avançar, com a fatalidade de sua lógica interna, do primeiro estágio da república burguesa para fases novas – não tendo sido a queda do tsarismo senão um pequeno episódio, quase uma ninharia –, tudo isso mostra claramente que a libertação da Rússia não foi obra da guerra nem da derrota militar do tsarismo, não foi mérito das ‘baionetas alemãs em punhos alemães’, como prometia o editorial da Neue Zeit dirigida por Kautsky, mas que ela possuía raízes profundas no próprio país e atingira a plena maturidade interna. [...] O desenrolar da guerra e da Revolução Russa mostraram não a falta de maturidade da Rússia, mas sim a falta de maturidade do proletariado alemão para cumprir sua missão histórica. Enfatizar isso com toda a clareza é a primeira tarefa de uma análise crítica da Revolução Russa. O destino da revolução na Rússia dependia inteiramente dos [acontecimentos] internacionais. Assentando inteiramente a sua política na revolução mundial do proletariado, os bolcheviques deram a prova mais brilhante de sua perspicácia política, de sua fidelidade aos princípios, da força audaciosa de sua política. Aí torna-se visível o salto colossal dado pelo desenvolvimento capitalista nos últimos dez anos. A revolução de 1905-1907 suscitou apenas um fraco eco na Europa. Por isso, tinha de permanecer um capítulo introdutório. A continuação e o desfecho estavam ligados ao desenvolvimento europeu. É claro que só uma crítica aprofundada e refletida, não uma apologia acrítica, será capaz de recolher esses tesouros de experiências e ensinamentos. De fato, seria loucura imaginar que o primeiro experimento histórico mundial de ditadura da classe operária, realizado nas mais difíceis condições – em plena conflagração mundial e em pleno caos provocado pelo genocídio 955

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 Um fato difícil de explicar a partir das considerações mais toscas sobre as teses que defendia acerca da “espontânea” organização das massas, é que Rosa Luxemburg foi, durante toda a sua vida, uma militante partidária resoluta e extremamente dedicada. Sob nosso ponto de vista, este fato deve ser levado em consideração também quando da apreciação de suas obras “teóricas”, as quais não raras vezes são taxadas como “deterministas”, uma vez que supostamente Rosa apostaria no colapso automático do capitalismo. Do contrário, como prova a dedicação de sua vida à militância operária imperialista, preso na armadilha de ferro da potência militar mais reacionária da Europa, em face da completa omissão do proletariado internacional –, que num experimento de ditadura operária em condições tão anormais, tudo o que se fez ou deixou de fazer na Rússia alcançasse o cúmulo da perfeição. Ao contrário, os conceitos elementares da política socialista e a compreensão dos pressupostos históricos necessários à realização dessa política obrigam a reconhecer que, em condições tão fatais, nem o mais gigantesco idealismo, nem a mais inabalável energia revolucionária seriam capazes de realizar a democracia e o socialismo, mas apenas rudimentos frágeis e caricaturais de ambos. Encarar isso com clareza, em todas as suas implicações e consequências profundas, é, incontestavelmente, o dever elementar dos socialistas de todos os países; pois somente a partir dessa compreensão amarga é que se poderá medir toda a extensão da responsabilidade específica do proletariado internacional no que se refere ao destino da Revolução Russa. Aliás, é apenas por esse meio que se verá a importância decisiva de uma ação internacional conjunta na revolução proletária – condição fundamental, sem a qual a maior habilidade e os mais sublimes sacrifícios do proletariado de um único país enredam-se inevitavelmente numa confusão de contradições e erros” Também não há dúvida de que as cabeças inteligentes que dirigem a Revolução Russa, Lenin e Trotsky, só deram alguns passos decisivos em seu caminho espinhoso, semeado de armadilhas de todos os tipos, dominados por grandes dúvidas e pelas mais violentas hesitações interiores; nada pode estar mais longe deles do que ver a Internacional aceitar tudo o que fizeram, sob dura pressão, no fervilhante turbilhão dos acontecimentos, como modelo sublime de política socialista, digno da admiração acrítica e da imitação fervorosa. Seria igualmente errado temer que um exame crítico dos caminhos seguidos até aqui pela Revolução Russa possa abalar perigosamente o prestígio e o exemplo fascinante do proletariado russo, o único capaz de vencer a inércia fatal das massas alemãs. Nada mais falso. O despertar da combatividade revolucionária da classe operária alemã não pode provir, como que por encanto, de qualquer operação de sugestão praticada segundo o espírito dos métodos de tutela da social-democracia alemã – que Deus a tenha –, que incitaria a massa a crer cegamente numa autoridade imaculada, quer a de suas próprias ‘instâncias’, quer a do ‘exemplo russo’. A capacidade de o proletariado alemão realizar ações históricas não pode nascer da fabricação de um entusiasmo revolucionário acrítico; ao contrário, só nascerá da compreensão da terrível gravidade, de toda a complexidade das tarefas a cumprir, da maturidade política e da autonomia intelectual, da capacidade de julgamento crítico das massas, sistematicamente abafadas ao longo de décadas, sob os mais diversos pretextos, pela social-democracia alemã. Analisar criticamente a Revolução Russa em todo o seu contexto histórico é o melhor meio de educar os trabalhadores alemães e de outros países para as tarefas resultantes da situação atual.” (páginas 151 e seguintes). Trocando em miúdos, completando com outras idéias luxemburguistas que podem ser encontradas por toda a sua extensa obra: ainda que a Revolução Russa seja a coisa mais importante que ocorreu em favor do movimento operário e que a capacidade de seus líderes seja incontestável, mesmo isso não pode impedir que façamos sua crítica, porque crítico é, ele próprio, o pensamento que se pretende revolucionário. Neste sentido específico, pensamos que Rosa Luxemburg encarna de uma maneira única o espírito revolucionário do pensamento dialético que mostramos alhures explicado por Mikhail Bakunin. Independentemente de quaisquer outras razões pelas quais as teses de Rosa são combatidas – preconceitos vários inclusos – nossa interpretação é que a razão principal pela qual tanto a esquerda quanto a direita – que a assassinou brutalmente – não aceitam de bom grado as suas “intromissões” tem muito a ver com essa radicalidade de idéias que dificilmente pode ser encontrada noutras pessoas. Para a esquerda, pensamos que valeria fazer a autocrítica constante sobre se, de fato, ela está disposta a aceitar que suas idéias precisam ser perpetuamente revistas e suas “verdades” reexaminadas constantemente.

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(inclusive partidária), defendia veementemente a importância do papel ativo do proletariado com consciência de classe e a oposição radical à guerra. Esse ponto é absolutamente crucial, sobretudo para que esclareçamos os debates que seguiram à publicação, em 1913, de A acumulação do capital que apresentaremos na sequência. Com efeito, sobretudo depois do Congresso da Basiléia de 1912956, Rosa manteve-se crente de que, a despeito da inevitabilidade da guerra – uma tragédia em si mesma – os socialdemocratas continuariam defendendo a posição internacionalista. Mas isso não aconteceu, e diante da aprovação dos créditos de guerra (em agosto de 1914) com o apoio maciço da Social-Democracia Alemã, Luxemburg ficou profundamente decepcionada – quando contam que supostamente teria pensado em suicidar-se. Os textos de Rosa Luxemburg neste período ilustram a sua decepção e a maneira pela qual os assuntos específicos deste tema imperialismo, que se sedimentava com o passar do tempo e dos debates acalorados, iam se revelando a cada dia mais fundamentais. Em texto publicado em 18 de julho de 1914, pelo Sozialdemokratische Korrespondenz, por exemplo, Rosa reforça mais uma vez os vínculos entre a guerra que se conflagrava e a dinâmica capitalista. O que observamos claramente, mais uma vez, era a insistência na inevitabilidade do conflito, que independia das “vontades” dos “comandantes em chefe”, e exigia uma postura ativa e resolutamente revolucionária por parte das classes trabalhadoras. Neste texto, que pode ser lido como uma continuação do Marrocos, Rosa afirma que os acontecimentos forneceram resultados brilhantes à política internacional da social-democracia. Hoje até o cego vê que as corridas “1912: Congresso de Basileia: congresso socialista internacional extraordinário realizado em Basileia em 24 e 25 de Novembro de 1912. O congresso foi convocado para solucionar a questão da luta contra o perigo da guerra mundial imperialista, perigo que aumentou ainda mais depois do início da primeira guerra balcânica. No congresso participaram 555 delegados. No dia da abertura do congresso realizou-se uma concorrida manifestação antimilitarista e um comício internacional de protesto contra a guerra. Em 25 de Novembro foi aprovado no congresso, por unanimidade, o manifesto sobre a guerra. O manifesto prevenia os povos sobre o perigo da guerra mundial que se avizinhava. Mostrava os objectivos espoliadores da guerra que os imperialistas preparavam e exortava os operários de todos os países a travar uma luta decidida pela paz, contra o perigo da guerra, a «contrapor ao imperialismo capitalista a força da solidariedade internacional do proletariado». Caso surgisse a guerra imperialista, o manifesto recomendava aos socialistas que utilizassem as crises económica e política provocadas pela guerra para lutar pela revolução socialista. Os dirigentes da II Internacional (Kautsky, Vandervelde e outros) votaram no congresso pela aprovação do manifesto contra a guerra. Porém, uma vez iniciada a guerra mundial imperialista, eles deixaram no esquecimento o Manifesto de Basileia, assim como outras resoluções dos congressos socialistas internacionais sobre a luta contra a guerra, e passaram-se para o lado dos seus governos imperialistas.” https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/c/congresso_basileia.htm 956

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armamentistas incessantes e as apostas imperialistas levaram, com necessidade inexorável, ao resultado acerca do qual o partido do proletariado com consciência de classe havia alertado insistente e incansavelmente: à beira do abismo de uma terrível guerra europeia. Hoje até as camadas do povo que se haviam deixado capturar pela propaganda chauvinista do militarismo reconhecem, consternadas, que o processo incessante de armamento não era uma garantia de paz, mas uma semente da guerra, com todo o seu horror. Justamente o grotesco motivo imediato que amanhã talvez faça as chamas da guerra inflamarem-se em toda a Europa mostra, da maneira mais nítida, como os Estados imperialistas, em sua deriva cega, provocaram a reação de poderes que, num dado momento, crescerão mais que eles e os arrastarão para o turbilhão. Mostra-se, além disso, com toda a nitidez palpável, o quanto as alianças militaristas – que, de acordo com a mentirosa exposição oficial em que caíam os espíritos ingênuos, deveriam ser os pilares do equilíbrio europeu e da paz – comprovaram ser, pelo contrário, meios mecânicos de arrasar todas as outras potências para um conflito local de dois Estados, e, assim, provocar uma guerra mundial. Desta vez a Tríplice Aliança mostrou-se tão inócua para impedir uma investida bélica austríaca como há três anos fora incapaz de deter a Itália diante de sua sangrenta aventura em Trípoli. As obrigações mútuas dos companheiros da aliança não se estendiam suficientemente de modo a conseguir ao menos a participação e o apoio do governo alemão para o ultimato austríaco que deu origem à guerra, o que dizer de alcançar a representação popular. Mas após a provocação arbitrária da guerra por parte da Áustria, transformaram-se numa ‘obrigação’ para a Alemanha de também cair de cabeça no mar de sangue assim que o movimento criminoso austríaco tiver atraído o urso russo para o campo de batalha. E, do mesmo modo, o povo francês deve ser arrastado para o matadouro, assim que e pelo fato de o tsarismo russo, açoitado internamente pelas Erínias da revolução e pelas fúrias do imperialismo em sua política externa, procurar a salvação ou a derrocada entre as lanças. Quando se pergunta, no entanto, se o governo alemão estaria pronto para a guerra, pode-se decerto responder negativamente. Pode-se ainda tranquilamente conceder aos líderes desmiolados da política alemã que neste momento qualquer outra perspectiva lhes aparece sob uma luz mais atraente do que aquela de, em prol da barba dos Habsburgos, assumir todo o horror e todos os riscos da guerra com a Rússia e com a França ou, em última instância, com a Inglaterra. Esse desinteresse pela guerra, porém, longe de ser um elemento apaziguador e venerável aos olhos das massas populares, é antes um motivo a mais para levar o movimento desses dirigentes irresponsáveis do destino alemão perante o mais rigoroso tribunal das massas populares. Pois o que contribui em maior medida para a atual situação de guerra do que o armamentismo descontrolado, os incomensuráveis preparativos militares que, durante os últimos anos na Alemanha, seguiram de imediato uns aos outros? O que, em sua maior parte, desencadeou os apetites imperialistas no sul da Europa, amontoou o material de combustão, acirrou as oposições do que a intervenção frívola da Alemanha no conflito do Marrocos, que foi o que primeiro motivou a pilhagem italiana e, por conseguinte, desencadeou as guerras balcânicas e, por fim, ajudou a preparar a guerra atual? Se aqueles que há anos brincam descuidadamente com o sangue e os bens de milhões sob o fragor bélico dos sabres e mantiveram acesa a fogueira

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são agora surpreendidos pelas consequências das próprias ações, os milhões de proletários em vigília pela paz mundial não têm nenhum sentimento de solidariedade nem de respeito por esses ‘desejos de paz’ do governo alemão, mas apenas um sentimento de raivosa ironia e de profunda frieza. Afinal, na política o que importa não são os sentimentos e os desejos, mas as ações e suas consequências. Entretanto, no que diz respeito à ação efetiva para a preservação da paz na Europa, a tática dos círculos governantes e a tática do proletariado com consciência de classe dividem-se em direções diametralmente opostas. (páginas 497 a 499) A paz, a Tríplice Aliança e nós [jul.1914]

Entretanto, conforme vínhamos argumentando, ainda assim era preciso estabelecer uma estratégia firme e revolucionária para a classe trabalhadora, porque ao discurso “pacifista” oficial – da Realpolitik – era necessário lutar pelas condições de realizar a revolução “interna” contra a guerra imperialista, com efeito, um método “muito mais efetivo e mais correspondente à sua posição de classe internacional957”. Em suas palavras, se agora ainda resta esperança de que o urso russo possa, apesar de tudo, recuar no último momento perante os perigos da aventura bélica, então é única e exclusivamente o belo incêndio da revolução que se inicia na própria casa e que pode exercer esse efeito mágico sobre a camarilha dominante junto ao Neva. Se dessa vez ainda for possível preservar a paz na Europa, o continente não deve agradecer à Tríplice Aliança, mas ao heroico proletariado russo e a sua incessante energia revolucionária. E, da mesma forma, a única verdadeira garantia de paz para a Alemanha como para a França consiste em pôr em movimento, sem delongas, o poder latente do proletariado com toda a energia, e organizar uma ação de massas tão enfática contra a guerra que os mornos ‘desejos de paz’ dos governos sejam transformados num violento pavor diante das consequências imprevisíveis de uma guerra. Aos governos e às classes dominantes precisa ser mostrado que, hoje em dia, não é mais possível fazer guerras sem o povo e contra o povo. A eles precisa ser mostrado que os que ousarem promover uma guerra mundial contra o desejo pronunciado das massas populares, seja lá sob qual motivação, arriscam tudo. (p. 499)

Poucos tempo depois, entretanto, a história confirmava aqueles prognósticos – que ela, junto com as alas radicais da Internacional – vinha traçando desde – pelo menos – 1911. É o que fica evidente, por exemplo, com a publicação de Escombros, de setembro de 1914, no qual a relação entre a guerra imperialista e o desenvolvimento do capitalismo – que já estava presente em várias obras anteriores, incluindo A acumulação do capital – se transformara em tragédia: por todo lado o cortejo arrasador desta guerra mundial nada deixa atrás de si, em vastas extensões de terra e mar, senão escombros. Escombros 957

P. 499.

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de cidades e aldeias, escombros de fortificações, escombros de canhões e fuzis despedaçados, escombros de gigantescos navios de guerra e de pequenos torpedeiros. E, de permeio, escombros de felicidade humana aniquilada. Pilhas de corpos humanos dilacerados, misturados com horrendos cadáveres de cavalos, cães, de gado em decomposição, morto de fome ou carbonizado. Guerras estendem-se como um fio vermelho por todos os milênios da antiga história da sociedade de classes. Enquanto houver propriedade privada, exploração, riqueza e pobreza, as guerras são inevitáveis e cada uma espalha à sua volta morte e pestilência, extermínio e miséria. Contudo, a atual guerra mundial supera todas as que existiram até agora em dimensão, furor e profundidade de suas consequências. (p. 1) Nunca tantos países e continente foram abrangidos de uma só vez pelas chamas da guerra, nunca tão poderosos meios técnicos foram postos a serviço do extermínio, nunca tão ricos tesouros de civilização material foram vítimas da tempestade infernal. O capitalismo moderno uiva sua satânica canção do triunfo: somente ele pôde, em poucas décadas acumular riquezas brilhantes e obras de civilização fulgurantes para, em poucos meses, com os meios mais refinados, transformá-las num campo de escombros. Somente conseguiu fazer do homem príncipe das terras, dos mares e dos ares, um ridículo semideus senhor de todos os elementos, para então deixá-lo morrer miseravelmente, como mendigo, num tormento que ele mesmo criou, sob os escombros de sua própria magnificência. As gritantes contradições internas desse sistema social, sua força estimulante e transformadora, as alucinantes idas e vindas de seu ritmo nunca puderam ser sentidas de forma tão nítida, tão impressionante quanto nesta guerra mundial – a maior obra de extermínio do capitalismo em dois séculos (p. 2). Mas cada guerra não extermina somente bens físicos, obras materiais da civilização. Ela é ao mesmo tempo uma tempestade que não respeita conceitos adquiridos. Antigas coisas sagradas, instituições veneradas, fórmulas credulamente repetidas são varridas de maneira implacável para o mesmo monturo onde são depositados restos de canhões, fuzis, mochilas e demais despojos de guerra. E também desse ponto de vista a guerra atual supera todas as precedentes em brutalidade e furor de suas consequências (p. 2).

Contavam-se os primeiros momentos da Grande Guerra, que é bom que se destaque, surpreendeu todo o mundo dadas as suas originalidades em termos de intensidade e poder de destruição. Como podemos observar, a percepção sobre os vínculos entre o capital e o imperialismo se tornavam a cada dia mais evidentes, tanto quanto a importância de travar um combate duplo. Além da luta contra os interesses do capitalismo, era preciso lutar contra a “sua” social-democracia que – segundo essa perspectiva que ela passou a sustentar – havia traído o socialismo para defender as posições imperialistas mais abjetas, o que por sua vez significava que deveria se empenhar ainda mais na disputa “interna” pelo apoio das classes trabalhadoras alemãs que aderiam ao chauvinismo. Portanto, era preciso reconstruir uma estratégia proletária que resistisse durante a

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guerra e se apresentasse como uma alternativa depois que ela enfim terminasse. É bom que se diga que Rosa foi uma das primeiras pessoas a defender abertamente a posição de que o desafio agora era outro, porque “nossos amigos, assim como nossos inimigos de hoje, não são de modo algum os de ontem; o bem e o mal, tal como vigoravam oficialmente na sociedade, trocaram de lugar várias vezes” (p. 3). Neste texto, a decepção com relação aos seus ex-companheiros se mostrava cristalina, quando afirmava que depois da guerra, o mundo se apresentará profundamente mudado. É certo que mãos diligentes procurarão reconstruir os escombros. Mas é bem mais fácil reparar a ruína material que a moral. Podem-se substituir canhões destroçados por outros melhores, mas não se pode colar novamente conceitos feitos em farrapos e crenças aniquiladas. Portanto, os trabalhadores e as trabalhadoras socialistas de todos os países devem ficar atentos para não deixar que, em meio aos escombros da sociedade burguesa, seus ideais sagrados também se arruínem. Eles devem conservar no coração, fiel e cuidadosamente, as antigas doutrinas, as antigas crenças como a única coisa que deve ser salva. O ideário socialista já sofreu bastante na tormenta da guerra. (p. 3)

Para Rosa – e para seus partidários spartakistas – a tarefa de reconstrução das bases do socialismo internacional não deveria esperar o término da guerra, conforme podemos ver em Pela solidariedade internacional!, de dezembro de 1914, no qual denunciou a “clara traição do socialismo” que constituem o terrível massacre recíproco de milhões de proletários a que assistimos atualmente com horror, essas orgias do imperialismo assassino que ocorrem sob os rótulos hipócritas de ‘pátria’, ‘civilização’, ‘liberdade’, ‘direito dos povos’ e arrasam países e cidades, violentam a civilização, espezinham a liberdade e o direito dos povos (p. 6).

Para os spartakistas, portanto, a luta, desde 1914, já deveria ser dirigida ao mundo a ser construído no pós-guerra, porque, segundo sua hipótese dessa guerra as massas populares retornarão, com ímpeto ainda mais tempestuoso, à nossa velha bandeira da Internacional socialista, não para traí-la novamente na próxima orgia imperialista, mas para defendê-la em uníssono contra todo o mundo capitalista, contra suas intrigas criminosas, suas mentiras infames e suas lamentáveis frases sobre a ‘pátria’ e a ‘liberdade’, e para fincá-la vitoriosamente sobre as ruínas do imperialismo sanguinário. (p. 7)

Hoje sabemos que isso não ocorreu. Mas – novamente jogando água na hipótese do “espontaneísmo” em sua visão mais tosca – é importante que deixemos claro que para Rosa a questão crucial da estratégia socialista no pós-guerra deveria voltar-se para a criação de uma nova instituição partidária por meio da atuação da Liga Spartakus – que não tinha a pretensão de ser um partido.

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No entanto, o que nos interessa levantar aqui com relação a esse ponto é que, a despeito da tese de que o aprofundamento e a expansão do capitalismo contribuíam contraditoriamente para a sua ruína, era preciso empenho na luta pelo socialismo. Assim, no famoso panfleto “O que quer a Liga Spartakus?”, de dezembro de 1918, no qual defende que o socialismo é a única forma de superação da barbárie (p. 289) e critica o “parlamentarismo” no qual teria se entorpecido a social-democracia alemã, Rosa articula de forma impressionante esse duplo combate, hierarquizando-os com propriedade. Em seus termos: os capitalistas de todos os países são os verdadeiros instigadores da matança dos povos. O capital internacional é o baal958 insaciável a cujos dentes sangrentos foram atirados milhões e milhões de vítimas humanas exaustas. A guerra mundial pôs a humanidade diante da seguinte alternativa: ou a manutenção do capitalismo, novas guerras e a rápida queda no caos e na anarquia, ou a abolição da exploração capitalista. (p. 288, grifos nossos) Não passa de delírio extravagante acreditar que os capitalistas se renderiam de bom grado ao veredito socialista de um parlamento, de uma Assembléia Nacional, que renunciariam tranquilamente à propriedade, ao lucro, ao privilégio da exploração. Todas as classes dominantes, com a mais tenaz energia, lutaram até o fim por seus privilégios. [...] Último rebento da classe dos exploradores, a classe capitalista imperialista ultrapassa em brutalidade, em cinismo nu e cru, em abjeção todas as suas antecessoras. Ela defenderá com unhas e dentes que tem de mais sagrado: o lucro e o privilégio da exploração. Utilizará os métodos sádicos revelados em toda a história da política colonial e no decorrer da última guerra. Moverá céu e terra contra o proletariado. Mobilizará o campesinato contra as cidades, açulará camadas operárias retrógradas contra a vanguarda socialista, utilizará oficiais para organizar massacres, tentará paralisar toda medida socialista com milhares de meios de resistência passiva, [...] pedirá socorro ao inimigo externo [...] preferindo transformar a Alemanha em um monte de escombros a renunciar de bom grado à escravidão do salário. Será preciso quebrar todas essas resistências passo a passo, com mão de ferro e uma brutal energia. (p. 292)

Assim, o que nos chama a atenção quando analisamos esses textos supostamente “políticos” – para não mencionarmos o fato de que não são “teóricos”, mas “jornalísticos” – nos parece claro que, mesmo que não peremptoriamente resolvida do ponto de vista conceitual – sendo que o imperialismo às vezes é chamado de política, às vezes de fase – a relação entre as contradições da acumulação do capital e o imperialismo é defendida por Rosa com bastante clareza, sendo que podemos notar que, ao longo dos anos – a partir da posição da social-democracia – vai-se enfatizando a idéia de que a rivalidade https://pt.wikipedia.org/wiki/Baal. Ou, mais provavelmente, dado o contexto, https://pt.wikipedia.org/wiki/Baal_(dem%C3%B3nio), desde que se faça lembrar que Rosa Luxemburg era judia. 958

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imperialista não é uma questão de “escolha”, mas responde a imperativos capitalistas que tem relação direta com os processos que vinham ocorrendo naquele momento. Independentemente de como aparecia no discurso a relação entre capital e imperialismo, o desafio já estava posto de modo irresoluto: o combate a “o colosso triunfante do imperialismo” 959. Voltaremos ao assunto do combate ao imperialismo mais à frente, nos comentários sobre a Anticrítica, mas não podemos deixar de dar espaço a um pequeno panfleto bastante conhecido pelos analistas da política, da história da social-democracia alemã e da história do socialismo europeu, mas que não aparece na bibliografia sobre o imperialismo: o assim chamado “Rascunho das Teses de Junius”. Segundo a edição recente da Editora Unesp, no volume II, essas teses foram aprovadas com algumas mudanças propostas por Karl Liebknecht, na Conferência do Grupo Internationale em 1° de janeiro de 1916 e, depois de revistas, divulgadas ilegalmente como panfleto com o título de ‘Teses sobre as tarefas da social-democracia internacional’ nas Cartas Políticas n.14, de 3 de fev. de 1916, e como apêndice de ‘A crise da social-democracia’

O que interessa mais imediatamente para a historiografia sobre o imperialismo é anotar que este texto é anterior ao Imperialismo de Lenin; escrito em 1916 e publicado em 1917. Sob nosso ponto de vista, a brochura de Lenin pode com razão ser considerada o marco para a incorporação definitiva do conceito imperialismo ao arcabouço teórico do marxismo – imperialismo deixa de ser associado a uma escolha e passa a significar uma temporalidade. Mas, como o próprio autor destaca em mais de uma ocasião, a maior parte das idéias que vieram a compor o conceito já estavam circulando entre os movimentos socialistas pelo menos uma década antes da publicação deste livro. O que queremos explicitar aqui é que, diferentemente do que sugere parte da historiografia sobre o imperialismo, Rosa também defendia a idéia de que o imperialismo deveria ser entendido enquanto uma fase do capitalismo, mesmo antes da publicação do livro que viria a arrematar a questão, como podemos verificar no Rascunho das Teses de Junius, dos quais reproduziremos as principais passagens em que trata da questão específica do imperialismo. Em suas teses:

Expressão que aparece no discurso “A conferência nacional da Liga Spartakus” de dezembro de 1918 (p. 331). 959

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1. A guerra mundial reduziu a pó os resultados de quarenta anos de trabalho do socialismo europeu, aniquilando a importância da classe trabalhadora revolucionária como fator de poder político e o prestígio moral do socialismo, fazendo explodir a Internacional proletária, conduzindo as suas seções a um fratricídio mútuo e acorrentado ao barco do imperialismo os desejos e as esperanças das massas populares nos países capitalistas mais importantes. (p. 9) 2. Com a aprovação dos créditos de guerra e a proclamação da união nacional [Burgfrieden], os dirigentes oficiais dos Partidos Socialistas na Alemanha, França e Inglaterra reforçaram o imperialismo na retaguarda, levaram as massas populares a suportar pacientemente a miséria e o horror da guerra, contribuindo assim para o desencadeamento desenfreado da fúria imperialista, para o prolongamento do massacre e para o aumento de suas vítimas – partilham, portanto, a responsabilidade pela guerra e suas consequências. (p. 9 e 10) [...] 5. A guerra mundial não serve nem à defesa nacional nem aos interesses econômicos ou políticos das massas populares, quaisquer que sejam; ela é simplesmente fruto das rivalidades interimperialistas entre as classes capitalistas de diferentes países pela dominação do mundo e pelo monopólio da exploração e do empobrecimento dos últimos restos do mundo que o capital ainda não dominou. Nesta época de imperialismo desenfreado já não podem haver guerras nacionais. Os interesses nacionais servem apenas de mistificação para pôr as massas populares trabalhadoras a serviço do seu inimigo mortal, o imperialismo. (p. 10, grifo nosso) 6. A liberdade e a independência, para qualquer nação oprimida, não podem brotar da política dos Estados imperialistas, nem da guerra imperialista. As pequenas nações não passam de peças no jogo de xadrez das potências imperialistas e, assim como as massas populares trabalhadoras de todos os países beligerantes, são usadas como instrumento durante a guerra para serem, depois da guerra, sacrificadas no altar dos interesses capitalistas. P. 10 7. Nessas circunstâncias, qualquer que seja o derrotado ou qualquer que seja o vitorioso, a atual guerra mundial significa uma derrota do socialismo e da democracia. Qualquer que seja a saída – exceto se houver a intervenção revolucionária do proletariado internacional –, ela só conduz ao reforço do militarismo e do marinismo, dos apetites imperialistas, dos conflitos internacionais, das rivalidades econômicomundiais e da reação no plano interno (dos proprietários de terra, dos provocadores, do cartel da indústria, do clericalismo, do chauvinismo, do monarquismo); em contrapartida, leva ao enfraquecimento do controle público, da oposição, assim como reduz os parlamentos a instrumentos obedientes do militarismo em todos os países. Portanto, em última instância, essa guerra mundial trabalha apenas para que, depois de maior ou menor intervalo de paz, uma nova guerra seja deflagrada. (p. 10-11) 8. A paz mundial não pode ser garantida por tribunais de diplomatas capitalistas, nem por acordos diplomáticos sobre o ‘desarmamento’, sobre a pretensa ‘liberdade marítima’, nem por ‘alianças dos estados europeus’, ‘uniões alfandegárias na Europa central’, ‘Estados-tampões’ e

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semelhantes projetos utópicos ou no fundo reacionários. O imperialismo, o militarismo e a guerra não podem ser eliminados nem contidos, enquanto as classes capitalistas exercerem sua dominação de modo incontestado. A única garantia e o único apoio da paz mundial são a vontade revolucionária e a capacidade da ação política do proletariado internacional. (p. 11) 9. O imperialismo como última fase e apogeu do domínio político mundial do capital é o inimigo mortal comum do proletariado de todos os países e é contra ele que deve concentrar-se, em primeiro lugar, a luta da classe proletária, tanto na paz quanto na guerra. Para o proletariado internacional a luta contra o imperialismo é, ao mesmo tempo, a luta pelo poder político estatal, o conflito decisivo entre socialismo e capitalismo. O destino do objetivo final socialista depende de que o proletariado internacional recobre ânimo e enfrente o imperialismo em toda linha e faça da palavra de ordem ‘guerra à guerra!’, com toda a força e com extrema coragem para o sacrifício, a norma de sua prática política. (p. 11, grifos nossos) [...]

A proximidade com as teses de Lenin é evidente para quem as conhece, e não cabe a nós apresenta-las aqui. Mas cumpre que aproveitemos a ocasião para precisar um ponto importante do que vimos argumentando: conforme fica evidente na tese 9 Rosa não expressa apenas a idéia de que o imperialismo é uma constante da reprodução capitalista desde a sua gênese – o que ela sem dúvida privilegia – mas também aponta para a possibilidade/necessidade, de entender o imperialismo como ‘última fase e apogeu do domínio político mundial do capital’ e como ‘prenúncio’ do socialismo. Nossa intenção não é, evidentemente, precisar quem formulou o conceito, mas explicitar que ele já se fazia notar em diversas publicações das alas mais radicais deste período – o que só nos cumpre insistir porque a ala anti luxemburguista e pró-leninista deste

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desnecessário Flaflu historiográfico sobre o imperialismo pesa a mão contra a capacidade analítica de Rosa em defesa da genialidade de Lenin960.  Aqui nos parece importante frisarmos que a maioria da crítica contemporânea das teses de Rosa – que é praticamente uníssona em apontar suas “falhas”, “erros” e outros “pecados” – nem sequer menciona os textos que procuramos comentar acima. Sob nosso ponto de vista, um dos principais motivos pelos quais a historiografia contemporânea crítica sobre o imperialismo insiste na tese de que as “teses clássicas” são limitadas é exatamente a concentração exclusiva nas “obras clássicas”. Assim, encontramos críticas bisonhas como o “economicismo” de Lenin, que supostamente ignoraria as questões relativas ao Estado – só pra lembrar: Lenin é autor de um livro sobre o Estado lançado de modo praticamente simultâneo a Imperialismo – e o excessivo apego de Rosa aos esquemas de reprodução, que ignora completamente a intensa participação – inclusive enquanto jornalista – em todas as principais questões da época. Essas abordagens fragmentárias das obras de cada um dessxs autorxs nos parece um dos principais problemas da historiografia contemporânea sobre o imperialismo. Como nosso foco aqui são as teses de Rosa, seguiremos investigando o problema por meio dos seus textos, mas gostaríamos de deixar claro que esta posição adotada pela historiografia é apenas mais grave no caso dela que nos demais.  Para além do imenso volume – afinal, ela era uma das mais ativas e importantes jornalistas da social-democracia mundial – e do fato de que frequentemente os textos de O que nossas pesquisas preliminares sobre o assunto sugerem é que bastante antes de Lenin, Rosa já vinha publicando textos relativamente avançados sobre isso, como por exemplo Marrocos, de 1911. O que queremos ressaltar, é que enquanto Rosa já definia as guerras do período como “imperialistas”, mesmo com o eclodir da Grande Guerra, em 1914, o líder bolchevique a ela se referia, não como guerra “imperialista”, mas como “Guerra Européia” (cf: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1914/aug/x02.htm). Ainda que os termos “imperialismo germânico” e “imperialismo russo” estivessem lá, o que nos parece, contudo, é que neste texto, de 1914, imperialismo aparece para Lenin não como uma fase do capitalismo, mas como uma política. Exatamente a postura que, posteriormente, tanto Lenin quanto Rosa viriam a combater. Tudo leva a crer que a questão que motiva a virada tanto para Lenin quanto para Rosa é a mesma: a traição da social-democracia alemã com a votação dos créditos de guerra (que Rosa acompanhou de dentro e Lenin não, por razões óbvias). Ali ficou claro para ambos – como para toda a ala radical do marxismo internacional – que era absolutamente necessário combater a tese segundo a qual o imperialismo era uma política. Os argumentos para a confirmação dessa hipótese, ao nosso juízo, podem ser encontrados em Imperialismo a partir da página 219 da edição citada e em todo o Anticrítica de Rosa, escrito em 1915, mas publicado somente em 1921. Em nossas pesquisas ainda em fase preliminar sobre a inflexão dessa percepção a partir dos textos de ambxs autorxs, a primeira vez que encontramos Lenin se referindo à Guerra como “imperialista” é em julho de 2015 (cf: https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1915/jul/26.htm). 960

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Rosa estão disponíveis apenas em línguas que soam hostis para nós latinohablantes, a forma como os textos são organizados é também um grande empecilho para a abordagem desses problemas – e isso é uma questão que tem problemas teóricos e políticos que precisam ser encarados. É o que denuncia, por exemplo, Michael Krätke em um texto bastante pertinente recentemente publicado na nova edição de Rosa Luxemburg ou o preço da liberdade. Neste artigo Krätke defende que Rosa Luxemburg “não foi compreendida como economista, o que era por formação, por inclinação e por atividade, e sua herança teórica, hoje quase esquecida, permanece inexplorada”, sendo que, como indica no título, Rosa possui um’ A herança econômica recalcada. Acrescenta o autor: no entanto, uma Rosa Luxemburgo dividida ao meio, da qual a economia política foi expulsa, serve apenas à lenda. Sua tese de doutorado, aprovada com louvor e imediatamente publicada, versava sobre o desenvolvimento industrial da Polônia no contexto do Império Russo. Uma investigação estatística, empírica e ao mesmo tempo analítica da industrialização de uma economia anteriormente regional e agrária, um argumento econômico contra o nacionalismo polonês. Ela escreveu sua obra-prima, A acumulação do capital, de 1913, como ‘contribuição à explicação econômica do imperialismo’. Seu trabalho principal como jornalista, professora e intelectual pública consistia no esclarecimento e na crítica: esclarecimento das condições econômicas e crítica da economia abertamente política ou aparentemente apolítica do seu tempo – esclarecimento e crítica do desenvolvimento do capitalismo atual, na Europa e no mundo inteiro. (p. 75) Os escritos aos quais a belicosa e nobre pena de Rosa Luxemburgo deve sua fama são incompreensíveis se nos esquecermos da economista política. (p. 76)

Para nós, que nos interessamos pela consideração crítica sobre a herança de Luxemburg para a “teoria clássica do imperialismo”, a interpretação de Krätke implica numa dupla mudança de postura com relação à historiografia sobre Rosa Luxemburg. Por um lado, com a (re) consideração – por parte dos leitores em geral, não somente economistas – das obras ditas econômicas – como A acumulação do capital e Introdução à economia política. Mas por outro lado, seria também preciso encarar as obras ditas “políticas”, que não são tão “políticas” assim. A título de exemplo, para confirmar sua hipótese de leitura, apresenta três textos “políticos”. Para ele, é preciso considerar que no anti-Bernstein (Reforma social ou revolução?), de 1899, não se trata de preferências políticas, de estratégia e tática. Trata-se centralmente e em primeiro lugar da questão de se devem ser e como devem ser julgadas as modificações estruturais do capitalismo mais recente, ou seja, desde o início da primeira Grande Depressão em 1873 – e o que essas modificações estruturais significam para o futuro do capitalismo. Bernstein é despachado por Rosa Luxemburgo como mau economista

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político que desconhece os fatos, ou seja, interpreta-os erroneamente, cria confusão teórica em vez de clareza, não compreendendo absolutamente o desenvolvimento recente do capitalismo. O revisionismo e o oportunismo baseavam-se em teorias econômicas errôneas, a crítica do revisionismo era a crítica da economia política no estágio do desenvolvimento capitalista atual, e a polêmica revisionista somente podia ser conduzida e decidida com argumentos econômicos. Segundo a crítica de Rosa Luxemburgo, Bernstein não entendia o que de fato tinha mudado no decorrer da Grande Depressão e durante os primeiros anos da longa prosperidade – nem o desenvolvimento mais recente das grandes empresas capitalistas, nem o desenvolvimento do sistema de crédito e dos mercados financeiros, nem as enormes mudanças no mercado mundial que levaram à corrida imperialista dos principais países capitalistas. (p. 76)

Já “seu escrito sobre a greve de massas foi um trabalho pioneiro. Uma questão aparentemente apenas tática do movimento operário é tratada aí de modo exemplar, a saber, em termos econômicos e políticos” (P. 77). Por fim, que foi por onde começamos, por uma decisão relativa à estruturação do nosso próprio texto, também a Brochura de Junius, publicada em 1916 com o título de A crise da social-democracia, trata de economia política. Para entender o desenvolvimento que levou à catástrofe de agosto de 1914, à I Guerra Mundial, Rosa Luxemburgo analisou a constelação completa do capitalismo europeu nos seus países principais. Ela examinou sucessivamente as particularidades do desenvolvimento capitalista nesses países, que, na Europa e no mercado mundial, se encontram como grandes potências concorrentes e rivais – começando pela já contestada força hegemônica do mercado mundial, pelo capitalismo britânico e a versão britânica de imperialismo, passando pelos capitalismos francês e alemão e suas políticas coloniais, até o capitalismo austríaco, italiano e russo e suas respectivas variantes de imperialismo. (p. 77)

Como dissemos, o que a leitura de Krätke sugere, ao nosso juízo, não deixa de ser uma espécie de reviravolta na maneira como se lê a bibliografia luxemburguista desde muito tempo, na qual se costumou dividir os trabalhos entre politólogos e economistas, seguindo a pista do biógrafo John Peter Nettl, para quem nas obras de Rosa Luxemburg “economia e política se dissociam completamente”. Essa é, por exemplo, a forma pela qual são editadas as obras completas em inglês, sendo que os dois volumes já publicados são assim chamados “economic wrigtings”. A partir de sua leitura, Krätke denuncia que, neste procedimento usual, “análises políticas, escritos de combate e estudos econômicos andam lado a lado, sem nenhuma relação entre si”. Para ele, contudo, isto não procede de forma alguma. Rosa Luxemburgo não se enquadra em esquemas: ela não se submete à divisão de trabalho finamente

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depurada e academicamente estabelecida entre, de um lado, “teóricos do Estado”, “teóricos da revolução” e, do outro, “teóricos das crises e do capitalismo”. Desde o início, ela considera o processo mundial e histórico da acumulação do capital como sendo ao mesmo tempo econômico e político. Tomadas como um todo, como um processo de desenvolvimento histórico, a acumulação capitalista e sua dinâmica específica somente podem ser compreendidas quando se tem em vista a relação do processo econômico com a violência política, da “concorrência pacífica” com a “violência ruidosa” do Estado capitalista. Apenas juntos, “interligados organicamente”, o processo econômico e a violência do Estado resultam no processo histórico da “trajetória do capital”. Sem formação de Estados, sem Estados territoriais centralizados, burocratizados, sem o absolutismo, seria impensável o desenvolvimento do capitalismo moderno na Europa. A formação do Estado e o desenvolvimento capitalista se condicionavam e promoviam reciprocamente; dependendo do meio histórico, a ligação dos processos econômicos com os políticos era diferente e gerava formas históricas distintas de capitalismo. (p. 78)

Para ele, portanto, Rosa Luxemburg entendia a economia política como uma ciência social, particular e histórica que só pôde se desenvolver com o capitalismo moderno. Essa nova ciência foi inventada porque a realidade econômica cotidiana do capitalismo parecia, e deveria parecer, impenetrável, enigmática aos que dela participavam. Pelo fato de no capitalismo a economia ‘ter-se tornado um fenômeno estranho, alienado, independente de nós’, era necessário um esforço científico, eram necessárias pesquisa e formação teórica para sondar ‘o sentido e a regra’ dessa economia social. Sem o ‘fetichismo’, sem o mundo de ponta-cabeça das relações de produção capitalistas, não há economia política. No caos dos acontecimentos do mercado já os economistas clássicos encontravam conexões, leis. Por detrás da confusão perturbadora das oscilações do mercado, das conjunturas e crises, era possível encontrar uma ordem dominante carregada de conflitos: o domínio do capital, uma forma característica de economia, historicamente específica, baseada na anarquia do mercado e na livre concorrência, na atomização da reprodução social, baseada em numerosos empreendimentos e domicílios privados. Todas as categorias da economia teórica são ao mesmo tempo históricas, com alcance e validade diferentes. A crítica da economia política, a obra de Marx, rompe o fetichismo, a falsa aparência das relações econômicas ‘naturais’, sem validade temporal, e mostra por toda a parte o sentido e o caráter históricos das categorias que, como valor, mercadoria, dinheiro, mercado, circulação, capital, e assim por diante, são os elementos da teoria econômica. Na crítica, esses elementos foram ligados pela primeira vez na ‘teoria do desenvolvimento capitalista’, tal como se exprime na curta e adequada fórmula de Rosa Luxemburgo. Essa teoria não está de modo algum acabada, ela contém um programa de investigação que Rosa Luxemburgo seguia de maneira consequente: se o capitalismo fosse também uma forma econômica histórica como as anteriores, ou seja, apenas ‘uma fase histórica passageira’ do desenvolvimento social, a economia política tinha que explicar as ‘leis da origem, do desenvolvimento e da expansão’ do capitalismo e, consequentemente, descobrir também ‘as leis da decadência do

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capitalismo’. À sua investigação relativa às condições de possibilidade de desenvolvimento do capitalismo segue-se a investigação das condições nas quais ele se torna impossível, insustentável, tendo assim que sucumbir. Para a socialista Rosa Luxemburgo este é o ponto decisivo: a crítica da economia política precisa fundamentar a ‘necessidade histórica objetiva do socialismo’ e esta resultaria forçosamente ‘da impossibilidade econômica objetiva do capitalismo a certa altura do seu desenvolvimento’. Para Rosa Luxemburgo, economia crítica significava determinar justamente esse limite extremo da vitalidade do capitalismo, bem como as tendências objetivas do desenvolvimento capitalista que se dirigiam para aquele limite. (p. 7980)

Concordamos plenamente com o diagnóstico: Rosa Luxemburg não cabe nesse tipo de esquema acadêmico. A solução, contudo, já não nos parece a contento, uma vez que sugere a construção de um novo campo teórico, a “Economia Política Crítica”, enquanto nos parece que este é um projeto bastante diferente da “crítica da Economia Política”. 9.2 Imperialismo em A acumulação do capital Que em 1913, com a publicação do seu livro, Rosa Luxemburg estava interessada na compreensão dos fenômenos relativos ao imperialismo está expresso desde logo, uma vez que o subtítulo de A acumulação do capital é Contribuição ao estudo econômico do imperialismo. Além disso, Rosa corrobora essa preocupação quando justifica seus esforços no livro diante de uma provável “importância para a luta prática na qual nos empenhamos contra o imperialismo” (LUXEMBURG, obra citada, p. 3) em seu curto e significativo prefácio. O que a primeira vista nos parece curioso – a nós que estudamos as teorias do imperialismo a partir do século XXI – é que, embora o objetivo do livro fosse oferecer uma “contribuição econômica ao estudo do imperialismo”, “imperialismo” é uma palavra que a autora utiliza pouquíssimas vezes ao longo do texto. Para sermos precisos, além do subtítulo e do prefácio, apenas quatro vezes. Embora a questão numérica por si mesma não comprove argumento algum, procuraremos discutir o que este número tão baixo pode vir a nos indicar. Mais especificamente, por meio da análise dessas passagens, procuraremos abrir outras possibilidades de leitura que divergem da maneira usual pela qual a historiografia encara o problema. 

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Depois de enunciar-se – no subtítulo e no prefácio – como uma provável protagonista do livro, a palavra volta a dar as caras somente no capítulo XXIII, na Seção II, que versa sobre A ‘Desproporcionalidade’ do Sr. Tugan-Baranovski. Não precisamos dedicar muita energia nessa parte, mesmo porque se trata de uma nota de rodapé (mesma obra, p. 216) na qual Rosa apresenta a crítica de Boudin a Tugan-Baranovski. Trata-se de uma nota extensa, mas a única coisa que nos interessa reter é o simples registro da palavra. Para não deixarmos no vazio: segundo ela, um grande mérito da análise de Boudin é que ele “chega logicamente à questão do imperialismo”. Mas antes que x leitorx desanime e pense que não encontraremos nada a partir da apresentação sistemática do termo, passemos às próximas, que são mais elucidativas. Estamos agora no capítulo XXXI, já na Seção III (aquela sobre As condições históricas da acumulação, na qual a autora “oferece suas mais geniais contribuições”). Neste capítulo XXXI (Tarifas protecionistas e acumulação) estão todas as outras três vezes em que Rosa emprega a palavra imperialismo. Na primeira delas, a mais citada e que dá o fundamento de muitas interpretações sobre a teoria luxemburguista – provavelmente é aqui que Singer pauta sua hipótese de leitura – “O imperialismo é a expressão política do processo de acumulação do capital, em sua competição pelo domínio de áreas do globo ainda não conquistadas pelo capital” (mesma obra, p. 305). Como até então a autora vinha argumentando que não existe capitalismo sem expansão sobre áreas não-capitalistas, aparentemente não parece haver espaço para dúvidas, e a leitura segundo a qual o imperialismo não é uma fase do capitalismo se sustentaria plenamente. Essa hipótese de leitura, inclusive, encontra ressonância no restante do capítulo, que, como dissemos, é o único lugar do texto em que a autora utiliza o termo imperialismo. Na sequência, quando analisa as contradições em que se baseia a sua interpretação sobre a luta anti-imperialista, Rosa afirma que dado o grande desenvolvimento e a concorrência cada vez mais violenta entre os países capitalistas na conquista de regiões não-capitalistas, o imperialismo tanto aumenta em violência e energia seu comportamento agressivo em relação ao mundo não capitalista, como agrava as contradições entre os países capitalistas concorrentes (mesma página).

Ao que conclui que quanto mais violento, enérgico e exaustivo é o esforço imperialista na destruição das culturas não-capitalistas, mais rapidamente ele destrói a base para a acumulação do capital. O imperialismo é tanto um método

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histórico de prolongar a existência do capital, quanto o meio mais seguro de pôr objetivamente um ponto final em sua existência. Isso não quer dizer que esse ponto terá de ser alcançado obrigatoriamente. A própria tendência de atingir essa meta do desenvolvimento capitalista reveste-se de formas que caracterizam a fase final do capitalismo como período de catástrofes. (mesma página) [todos os grifos na palavra imperialismo nesses trechos são nossos]

A primeira frase é peremptória e tem todas as características de uma “definição definitiva”. Segundo esta definição, “o imperialismo é a expressão política do processo de acumulação do capital” e está ligado, sobretudo, à “competição pelo domínio de áreas do globo ainda não conquistadas pelo capital”. Ainda seguindo essa mesma linha, o imperialismo aparece como algo – por enquanto podemos aceitar: uma “política” – que “aumenta em violência e energia seu comportamento agressivo em relação ao mundo não-capitalista” e “agrava as contradições entre os países capitalistas concorrentes”. Na terceira vez que entra em cena, o imperialismo é um “método histórico” e ainda podemos, com alguma dificuldade, fazer a equação “método histórico = política”, mas note que para isso já tivemos que eliminar a idéia de “expressão”. Contudo, nessa última aparição, aparece um problema que até então não tinha aparecido. Se o imperialismo é uma política que acompanha universalmente a acumulação do capital quais são essas “formas que caracterizam a fase final do capitalismo”? Seria um “período de catástrofes”? Mas ela havia enunciado insistentemente que todo o desenvolvimento do capitalismo é catastrófico e violento. Como compreender essa passagem? Para procurar elucidar a charada, seguiremos uma pista que já apareceu aqui, meio que a contrabando: o adjetivo imperialista, com o qual acabamos de nos deparar associado à idéia de “esforço”. À primeira vista, “esforço imperialista” ainda pode ser reduzido à “política imperialista”, embora “esforço” já seja substancialmente diferente de “expressão”. Mas vejamos como a questão se complica com o desenrolar do argumento. O adjetivo imperialista aparece pela primeira vez no prefácio, onde a autora afirma que o livro versa sobre um “problema teoricamente ligado ao conteúdo do volume II de Das Kapital de Marx, ao mesmo tempo extensivo à práxis da política imperialista atual e às raízes econômicas da mesma.” (mesma obra, pág. 3) [todos os grifos em imperialista serão nossos, este incluso].

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Para que nosso texto não fique mais cansativo que o necessário, vamos tentar acelerar onde for possível. A próxima aparição está no capítulo XXI (As ‘terceiras pessoas’ e os Três Reinos de Struve), quando Rosa denuncia o “programa liberal de expansionismo imperialista do capitalismo russo” (mesma obra, p. 199) e para depois associar o termo aos “apetites imperialistas dos três grandes malvados” – a título de curiosidade: GrãBretanha, Rússia e Estados Unidos – ironicamente chamados de “novos mercantilistas” (mesma obra, p. 200). Lá no capítulo XXX (Os empréstimos internacionais) aparecerá também como a “profissão de fé imperialista” de um “extraordinário agente da civilização capitalista em países primitivos” (mesma obra, nota de rodapé da p. 299), de um modo próximo do que aparece no capítulo XXIX (A luta contra a economia camponesa): o “programa imperialista de Cecil Rhodes” (mesma obra, p. 284). Mas aqui neste mesmo vigésimo nono capítulo ocorre uma mudança de significado bastante importante: diferentemente do que supunha a hipótese que vínhamos tentando refutar, imperialista aqui não é usado apenas como um adjetivo de uma política, mas também para demarcar uma temporalidade específica – caracterizada

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pela maneira específica pela qual se articulava o militarismo e a acumulação do capital961. Neste momento, quando já caminha para os finalmentes de seu livro, Rosa chama a atenção para o fato de que caso não seja mais possível acumular com a destruição de formas-sociais não-capitalistas, ou seja, se o mundo algum dia chegar a ser constituído apenas de capitalistas e trabalhadores assalariados – como pressupõe o esquema de reprodução de Marx que ela critica –, a impossibilidade de haver acumulação significa, em termos capitalistas, a impossibilidade de um desenvolvimento posterior das forças produtivas, e, com isso, a necessidade objetiva, histórica, do declínio do capitalismo. Daí resulta o movimento contraditório da última fase, Este ponto é bastante enfatizado por Mariutti, que vem estudando a questão para a sua livre-docência. Na versão mais recente do seu argumento, aponta que “A maioria das críticas à interpretação do imperialismo proposta por Rosa Luxemburgo não levam em conta o modo como esta questão se liga ao núcleo central que articula e singulariza o seu pensamento: o esforço de pensar o Modo de Produção Capitalista como uma forma peculiar de reorganizar violentamente o conjunto da vida social pautado pela acumulação incessante de capitais. Definido desta forma, longe de ser o portador do progresso ou da civilização, o capital tem um ímpeto intrinsecamente expansionista, em um duplo sentido. O mais evidente fica patente na sua rápida e vigorosa capacidade de se alastrar geograficamente por todo o globo terrestre. Mas o segundo sentido é mais importante e, na realidade, conduz o primeiro: a acumulação capitalista está fadada a colonizar e ajustar à sua lógica todas as dimensões da vida social. É nesta acepção peculiar que o capitalismo se impõe progressiva e contraditoriamente como uma forma universal, que dissolve e se alimenta das relações sociais estranhas a ele. E, depois que a concorrência dos capitais se desloca para o plano mundial, o imperialismo capitalista se converte no principal instrumento de expansão e valorização do capital (p. 1)”. Ainda no mesmo texto, defende que “ela tentou levar às últimas consequências a ideia de que o capital é uma relação social de exploração do trabalho e da natureza que não encontra limites além do seu próprio movimento de expansão (p. 6), ao que concluiu que “exatamente por querer incorporar o conjunto da vida social e da natureza, o capital é forçado a destruir todas as formas de vida que ofereçam resistência à mercadorização. É neste sentido preciso que ele é uma forma universal, fundada intrinsecamente na violência de cunho totalitário. Este é, a meu ver, um ponto de entrada privilegiado na reflexão proposta por Rosa Luxemburgo, pois possibilita dar coerência e alguma unidade ao seu pensamento, especialmente no que diz respeito à sua interpretação sobre o imperialismo, tema central desta reflexão (P. 7)”. Assim, “uma das grandes peculiaridades do pensamento de Rosa Luxemburgo é o estabelecimento de um vínculo indissolúvel entre o militarismo e a acumulação capitalista, que se manifesta desde a formação do capitalismo até o período em que ela vivia. O papel do militarismo, embora tenha variado bastante, foi sempre um recurso do capital para apoiá-lo em sua luta incessante contra a economia natural e a todas as formas sociais estranhas a ele, ampliando pela violência o estoque de fatores de produção e força de trabalho ao seu dispor. Mas, a despeito desta continuidade, Rosa Luxemburgo distingue o imperialismo das formas anteriores de militarismo. E esta distinção – embora sem usar o termo imperialismo – já transparece em Reforma ou Revolução?, escrito originalmente em 1989, mas publicado em 1900 (p. 7)” Portanto, segundo Mariutti, a chave para a interpretação de Luxemburgo está na “noção de que o militarismo – ao ser absorvido e efetivamente integrado ao movimento do capital – adquire uma força motriz própria. É exatamente esta última ideia – o traço novo do imperialismo (‘fenômeno completamente desconhecido a algumas décadas’) que será aprofundado e reformulado em A Acumulação de Capital. Não resta dúvida que é nesta obra que Rosa explicita com mais radicalidade o caráter ubíquo da força militar nas diversas fases da acumulação e, especialmente, o papel crescente da violência como suporte e veículo das formas capitalistas de sociabilidade. Mas é neste livro que ela marca com mais clareza a transformação da dinâmica e do papel do militarismo na fase imperialista da acumulação de capital. Para tanto, ela deu um passo importante: a ‘endogeneização’ do militarismo é vista como uma decorrência da articulação entre a centralização de capitais e a transformação do Estado como suporte da acumulação de capital que, a partir de então, só pode se realizar no plano mundial. (p. 8)” Textos para Discussão 250. Militarismo e imperialismo no pensamento de Rosa Luxemburgo: uma síntese; Eduardo Barros Mariutti (Janeiro 2015). 961

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imperialista, como período final da trajetória histórica do capital. (mesma obra, p. 285)

Quem tem alguma familiaridade com o assunto associa essas teses – publicadas em 1913 – imediatamente à interpretação leninista – que, como dissemos seria publicada somente em 1917, ou seja, quatro anos depois de A acumulação do capital. Emblematicamente, essa não é a única vez que imperialista aparece associado à idéia de estágio último do capitalismo. Isso volta a acontecer no capítulo XXX (Os empréstimos internacionais), no qual encontramos a idéia de que a fase imperialista da acumulação de capital ou a fase da concorrência capitalista internacional compreende a industrialização e a emancipação capitalista das antigas zonas interioranas do capital em que se processava a realização de sua mais-valia. Os métodos operacionais específicos dessa fase são representados pelos empréstimos estrangeiros, pela construção de ferrovias, por revoluções e guerras. A primeira década do século XX caracteriza de modo todo especial o movimento mundial imperialista do capital, particularmente na Ásia e nas regiões limítrofes desta com a Europa: Rússia, Turquia, Pérsia, Índia, Japão, China, bem como o norte da África. (mesma obra, p. 287, grifos nossos).

Além disso, Rosa afirma também que no período imperialista, os empréstimos externos desempenham papel extraordinário como meio de emancipação dos novos Estados capitalistas. O que existe de contraditório na fase imperialista se revela claramente nas oposições características do moderno sistema de empréstimos externos. Eles são imprescindíveis para a emancipação das nações capitalistas recém-formadas e, ao mesmo tempo, constituem para as velhas nações capitalistas o meio mais seguro de tutelar os novos Estados, de exercer controle sobre suas finanças e pressão sobre sua política externa, alfandegária e comercial. Os empréstimos são um meio extraordinário para abrir novas áreas de investimento para o capital acumulado dos países antigos e pra criar-lhes, ao mesmo tempo, novos concorrentes; são o meio de ampliar, no geral, o raio de ação do capital e de reduzi-lo concomitantemente. (mesma obra, p. 288, grifos nossos).

Aqui, não nos parece haver dúvida de que, além de uma “expressão política” do expansionismo que caracteriza o capitalismo do primeiro ao último dos seus dias, em A acumulação do capital também podemos encontrar a associação entre imperialismo e imperialista a um “período” marcado pela “concorrência capitalista internacional”.  Terminamos aqui a tarefa da exposição sistemática dos conceitos. Não existe mais nenhuma menção aos termos imperialismo ou imperialista em A acumulação do capital. Como dissemos, à primeira vista, é espantoso que a palavra apareça tão pouco. Mas o

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que interessa é a que conclusão podemos chegar diante do exposto. Antes de qualquer coisa, temos que, diferentemente do que costumamos encontrar na historiografia crítica sobre as teses luxemburguistas, esses termos significam tanto uma “expressão política” quanto um “período” ou uma “fase” do capitalismo. Visto retrospectivamente a partir de como a questão se desdobrou em um século que nos separa dessa publicação, pode parecer uma confusão por conta dos famosos equívocos da autora, mas isso não condiz com o fato de que, em 1912, nenhum dos grandes intérpretes do imperialismo geralmente alçados ao panteão dos clássicos havia apresentado a questão sem qualquer “confusão”. Como dissemos, o livro de Lenin é geralmente considerado como o grande organizador da questão. Desde o título, Lenin defendeu extensivamente que a melhor (a única) maneira de compreender o imperialismo é enquanto uma fase do capitalismo. Mas muita coisa aconteceu neste intervalo entre as duas obras para que se sedimentasse a percepção de que o capitalismo havia se transformado em imperialismo (cf: LENIN, 2011 [1917], p. 127). O interessante é que essa percepção foi assumida somente pela ala mais radical do marxismo internacionalista, da qual tanto Lenin quanto Rosa sempre fizeram parte, e em grande parte justamente por conta das atitudes das alas mais conservadoras do socialismo – para quem o imperialismo era uma escolha política. Por enquanto, o que temos que reter é que, ao contrário do que sugere a linha hegemônica das interpretações sobre o imperialismo que canoniza Lenin e imbeciliza Rosa, a idéia de que o imperialismo é uma fase (terminal) do capitalismo e prenúncio do socialismo, mesmo que de forma aparentemente confusa – se tomada retrospectivamente – já se fazia visível para Rosa em 1912. Rosa não resolveu a contento de quem gosta de definições formais a questão da periodização do capitalismo. Se a idéia de que o imperialismo acompanha o capitalismo desde o nascimento tem o mérito de ressaltar o fato de que este modo de produção é inexoravelmente violento e expropriativo, ainda assim aparece em seus textos a necessidade de compreensão – tanto teórica quanto prática – de características que ele vinha assumindo nas últimas décadas. Não temos como demonstrar aqui que isso se deu, para ela, com a “endogeinização do militarismo” – conforme o Professor Mariutti vem tentando mostrar em seus trabalhos. Devemos seguir as investigações. Diante do fato de que o conceito de imperialismo aparecia de modo “confuso” em A acumulação do capital, será que Rosa foi bem sucedida na sua intenção de oferecer uma “contribuição ao estudo econômico do

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imperialismo”? Procuraremos demonstrar que essa é a questão principal que permite articular o problema da “confusão” sobre o significado de imperialismo. 9.3 Reprodução social total em A acumulação do capital O livro A acumulação do capital (LUXEMBURG, 1985) foi concebido por Rosa Luxemburg, a princípio, tanto como um instrumento de auxílio “à práxis da política imperialista atual e às raízes econômicas da mesma” quanto, principalmente, como uma contribuição teórica para o desenvolvimento da “economia política marxista”

.

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Levando em consideração tratar-se de uma obra principalmente teórica, não é de se estranhar que a própria idéia de imperialismo apareça de forma bastante indireta, uma vez que, não obstante todxs xs grandes teóricxs do marxismo estivessem empenhadxs na compreensão do problema, o conceito ainda não estava plenamente incorporado e assumia diversos sentidos de acordo não apenas com a pessoa que o empregava, mas também com a ocasião. Tendo isso em mente, vejamos como a autora circunscreveu o objeto de sua investigação teórica na tentativa de ver, sob este prisma, como ela entendia essa relação entre capitalismo e imperialismo – e de tabela, aproveitarmos para tentar refutar a hipótese do “subconsumismo”.  A primeira e essencial consideração, à qual a autora dedica o primeiro capítulo “O objeto da investigação” é sobre “a colocação marxista do problema da reprodução do capital social total”, que “constitui uma das contribuições perenes do autor à Economia Política teórica”. Mas em que consiste o problema da reprodução do capital total? A explanação de Luxemburg começa pela base. Para ela, antes de qualquer coisa, é preciso considerar que “reprodução, tomada literalmente, é simplesmente reiteração, repetição, renovação do processo de produção” e ainda que “à primeira vista, não se perceba em que se diferenciaria realmente o conceito de reprodução do conceito de produção universalmente entendido como tal, e por que motivo seria necessária aqui uma expressão nova e estranha” existe um aspecto importante que se coloca exatamente quando se considera essa repetição, que é, inclusive, “o pressuposto geral e fundamental de um consumo regular [e] com isso, constitui a condição prévia para a existência Em suas próprias palavras, no prefácio, “caso eu tenha êxito na tentativa de abordar esse problema com a devida exatidão científica, quer parecer-me que este trabalho, além de apresentar um interesse puramente teórico, também adquire importância para a luta prática na qual nos empenhamos contra o imperialismo" (mesma obra, p. 3). 962

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cultural da sociedade humana sob todas as formas históricas”. Portanto – a autora não deixa espaço para dúvida – “o conceito de reprodução inclui um aspecto históricocultural” – e, portanto, não pode ser reduzida à variável econômica consumo. Noutros termos, ainda dela, “a produção não pode ser retomada se a reprodução não pode ocorrer, se não existirem condições prévias resultantes de período produtivo anterior; ferramentas, matérias-primas e mão-de-obra” – todas, muito mais abrangentes que o tal consumo. (todas as citações desse trecho estão na mesma obra, p. 7) Mas vejamos o cuidado com o qual a autora procura atingir simultaneamente duas dimensões: 1) o que toda e qualquer sociedade precisa realizar para perpetuar-se. 2) a maneira específica pela qual a sociedade capitalista dá conta da realização dessas tarefas necessárias à reprodução. Segue a autora: mas nos estágios mais primitivos do desenvolvimento cultural, quando o domínio da Natureza pelo homem mal se iniciava, as possibilidades dessa retomada da produção dependiam mais ou menos do acaso. Enquanto a caça e a pesca constituíam a base principal da existência social, a regularidade na repetição da produção era frequentemente interrompida por períodos de fome generalizada. A necessidade de reprodução como processo repetitivo regular expressou-se, desde muito cedo, tradicional e socialmente, em diversos povos primitivos, por meio de certas cerimônias religiosas. Assim, conforme as pesquisas em profundidade realizadas por Spencer e Gillen, o culto totêmico entre os negros do sul não seria nada mais do que a tradição cristalizada em cerimônia religiosa de determinadas medidas comuns àqueles grupos sociais. Essas medidas, que visavam a provisão e manutenção de sua alimentação animal e vegetal, eram repetidas regularmente desde tempos imemoriais. Mas é somente com a agricultura, com a domesticação de animais e com o pastoreio visando o suprimento de carne que se torna possível o ciclo regular de consumo e produção, característico da reprodução. Nesse sentido, o conceito de reprodução significa algo mais do que a simples repetição: ele já pressupõe determinado grau de domínio da Natureza pela sociedade ou, em termos econômicos, determinado grau de produtividade do trabalho. (mesma obra, p. 7-8)

Embora os trabalhos antropológicos que estavam disponíveis em 1912 sejam hoje bastante questionáveis, nos chama a atenção, desde o princípio, o nível de preocupação de Rosa com a distinção das sociedades capitalistas com relação a outras formas sociais, em especial no que toca à forma como elas se perpetuam ao passar das gerações, sendo que essa forma é tomada em um sentido bastante amplo, que pode e deve ser analisado a

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partir de diversos prismas, tanto “materiais” quanto “culturais” ou “sociais”

. Porque

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para ela, em todos os estágios do desenvolvimento humano, o processo produtivo consiste na unidade de dois elementos diferentes, ainda que estreitamente interligados: as condições técnicas e as condições sociais, ou seja, a configuração específica da relação dos homens com a Natureza e a configuração das relações dos homens entre si. A reprodução depende igualmente de ambas. (mesma obra, p.8)

Os grifos são nossos e tem por objetivo ressaltar aos olhos de quem porventura esteja nos lendo que desde os primeiros passos a autora estabelece seu pensamento para muito além do que a Ciência Econômica posteriormente iria chamar de demanda efetiva964. Ainda sobre essa dupla relação entre o “material” e o “social”, entre as “condições técnicas de trabalho humano” e as “formas sociais de reprodução”, e contra uma visão reducionista, economicista ou “subconsumista”, a autora prossegue: as respectivas formas sociais de produção não são menos determinantes. Em uma comunidade agrícola básica do tipo comunista, a reprodução bem como o plano econômico geral são determinados pelo conjunto dos que trabalham e por seus órgãos democráticos. A decisão sobre o reinício do trabalho, sua organização, o cuidado com os prérequisitos necessários, como matérias-primas, ferramentas, mão-deobra, e, finalmente, a determinação das proporções e da distribuição da reprodução são resultado da ação conjunta planificada de todos os membros pertencentes à comunidade. Em uma economia escravista ou em um feudo, a reprodução é imposta e regulada em todos os detalhes pelas relações pessoais do domínio senhorial. As proporções dessa reprodução têm seus limites traçados pela maior ou menor quantidade de mão-de-obra estranha que se encontra à disposição do centro dominante. (mesma página)

O passo fundamental, contudo, consiste em entender que “na sociedade baseada na produção capitalista, a reprodução se molda de maneira bem característica como nos mostra a simples observação de certos aspectos mais marcantes”. Isso porque, “historicamente, em qualquer outra sociedade conhecida, a reprodução se inicia uma vez que as condições prévias seguintes o permitam: os meios de produção, e a mão-de-obra existentes” (mesma página). Desta maneira,

A importância que Rosa conferia à compreensão e muitas vezes à defesa das formas de vida “tradicionais” – especialmente em Introdução à Economia Política – é um aspecto ressaltado por Michel Löwy em Imperialismo ocidental versus comunismo primitivo (publicado em SCHÜTRUMPF, 2015). Infelizmente, Introdução à Economia Politica – que conta apenas com uma tradução feita a partir do francês pela Editora Martins Fontes – está fora de catálogo em língua portuguesa há muito tempo. 964 A autora, em umas poucas ocasiões utiliza o termo, mas, ao nosso juízo, somente a partir de uma leitura extremamente limitada é possível reduzir condições necessárias à reprodução do capital social total da sociedade a demanda efetiva. 963

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nas culturas primitivas, somente circunstâncias exógenas, como uma guerra devastadora ou uma grande peste, ocasionando o extermínio da população e, com isso, uma destruição em massa da mão-de-obra e dos meios de produção estocados, costumam levar a uma interrupção da reprodução, ou da retomada em diminuta proporção, durante períodos mais ou menos longos. (mesma página)

Já “na sociedade capitalista, observamos algo diferente”. Em certos períodos, verificamos que, apesar de não se apresentarem os meios de produção materiais, bem como a mão-de-obra necessária para o início da produção, e, não obstante, existirem exigências sociais insatisfeitas de consumo, mesmo assim parte da reprodução se interrompe totalmente e parte só se efetua de forma atrofiada. Contudo, nenhuma intervenção despótica é responsável, nesse caso, pelas dificuldades do processo de produção. O início da reprodução, nesse caso, não depende somente de condições técnicas, nem simplesmente de condições sociais. Depende, sobretudo, do fato de se fabricarem tãosomente produtos cuja perspectiva de realização seja certa, isto é, que possam ser trocados por dinheiro; que não só possam ser realizados, mas que o sejam com lucro de magnitude habitual no país. O lucro como meta e fator determinante, não domina, nesse caso, tão-só e simplesmente a produção simples, mas igualmente a reprodução. Assim, preside não só o método e alvo dos respectivos processos de trabalho (bem como da distribuição referente do produto), como também estabelece a proporção e o sentido que tomará o processo de trabalho quando novamente retomado, após a conclusão de um período de trabalho anterior. (mesma obra, p. 9)

Assim, todo o raciocínio se assenta no fato de procurar identificar, de uma perspectiva também “antropológica”, qual é a especificidade da sociedade capitalista no que toca a maneira pela qual ela dá conta de reproduzir-se ao longo do tempo, procurando abarcar os aspectos “puramente histórico-sociais” (mesma página) pelos quais os processos de reprodução de sociedades capitalistas apresentam uma “particularidade histórica específica” (mesma página) – o que em si mesmo reflete uma preocupação de Rosa em desdobrar uma idéia de Marx segundo a qual “se a produção tiver forma capitalista, a reprodução também terá” (citado em LUXEMBURG, 1985, p. 9). Ao que aparece novamente a questão de que, diferentemente de sociedades despóticas ou de comunidades pequenas que organizam elas mesmas todas as condições de sobrevivência, em uma sociedade capitalista as decisões de produção se dão por meio de decisões anárquicas. Então Rosa passa a se perguntar por que mecanismos essa sociedade, a despeito dessa “anarquia”, mantém sua coesão. É notável que a autora descarte, de antemão, a ilusão liberal sobre a “harmonia de interesses” e que perceba que esse caos não pode ser senão uma aparência. Conforme hoje sabemos, todas as pessoas que estudaram sociedades aparentemente “sem normas” – ou seja, sem normas

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explícitas, declaradas e/ou registradas por escrito – se aperceberam de que essas sociedades não são “caóticas”. Com efeito, não é possível conceber uma sociedade sem normas que a regulem e confiram a ela determinados graus de coesão – axioma sobre o qual a Sociologia e a Antropologia encontraram durante muito tempo sua razão de ser. Sendo assim, é lógico que se coloque o problema de como essa sociedade capitalista na qual não existe uma regulamentação específica sobre a normatização das condições necessárias à organização da vida pode perpetuar-se, uma vez que as decisões necessárias para a reprodução elementar da vida nestas formas sociais – que ao nosso juízo não podem ser reduzidas “ao plano das motivações microeconômicas”, como sugere Singer – não estão voltadas às necessidades humanas, mas estão subordinadas ao lucro. A primeira questão que se mostra evidente para Rosa é que essa reprodução, feita desta forma, não poderia deixar de ser um tanto errática. Assim, chega a um problema importante, que também atrai – de uma perspectiva oposta – muitos analistas da dinâmica específica de sociedades capitalistas: o problema dos ciclos e das crises. Para ela, a alternância periódica de expansões maiores de reprodução e suas contrações até a interrupção parcial, ou o que se denomina ciclo periódico de conjuntura recessiva, auge de conjuntura e crise, é a particularidade mais marcante da reprodução capitalista. É necessário, contudo, esclarecer, de antemão, que a alternância periódica das conjunturas e das crises, mesmo constituindo aspectos essenciais da reprodução, não representa o problema real, ou seja, o problema da acumulação capitalista. A alternância conjuntural periódica e as crises constituem a forma específica do movimento no modo de produção capitalista, mas não o movimento em si. Ao contrário, para representar o problema da reprodução capitalista em sua forma pura, devemos fazer abstração dessas alternâncias conjunturais periódicas e das crises. Por estranho que possa parecer, esse é um método absolutamente racional, na verdade o único método científico utilizável para a investigação. (mesma obra, p. 10)

Para corroborar o argumento de que, embora isso pareça estranho, a abstração dos ciclos e das crises é o único método científico utilizável para a investigação sobre a acumulação do capital, Rosa se vale justamente do método de Marx n’O capital, que para descobrir o valor, abstraiu as variações de oferta, demanda e preço. Nas palavras de Rosa, para expor e solucionar de forma clara o problema do valor é preciso fazer abstração das oscilações de preço. A concepção econômica vulgar tenta sempre resolver o problema do valor fazendo referência às

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oscilações entre a oferta e a demanda. A Economia clássica, de Smith até Marx, abordou o problema de forma inversa, afirmando que as oscilações, na relação recíproca entre a oferta e a demanda, podem somente explicar as discrepâncias dos preços com relação ao valor, porém não podem explicar o próprio valor. Para averiguar o que é o valor da mercadoria, precisamos analisar o problema partindo do pressuposto de que a demanda e a oferta estão em equilíbrio, ou seja, que o preço e o valor das mercadorias coincidem um com o outro. O problema científico do valor começa exatamente onde cessam os efeitos da oferta e da demanda. Vale exatamente o mesmo para o problema da reprodução do capital social total. A alternância conjuntural periódica e as crises fazem com que a reprodução capitalista, como regra, oscile em torno do total das necessidades sociais solventes, ora subindo acima dessas necessidades, ora descendo abaixo delas, quase à interrupção total. Entretanto, se considerarmos um período maior de tempo, um ciclo completo com as respectivas alternâncias conjunturais, contrabalançam-se os períodos exponenciais da conjuntura e as crises, ou seja, os momentos de superexpansão da reprodução e os da depressão e interrupção. Daí obtermos como média do ciclo em seu conjunto uma grandeza média da reprodução. Essa média não é somente um conceito teórico, mas constitui também um fato real e objetivo. Pois, apesar dos altos e baixos conjunturais, apesar das crises, as necessidades sociais são, bem ou mal, satisfeitas; a reprodução segue adiante em sua marcha complicada e as forças de produção se desenvolvem sempre mais. Como então pode isso ocorrer, se desconsiderarmos as crises e alternâncias de conjuntura? Aqui começa o problema propriamente dito. A tentativa de resolver o problema da reprodução a partir da periodicidade das crises é, no fundo, tão próprio da Economia vulgar quanto a tentativa de resolver o problema do valor a partir das oscilações entre oferta e demanda. (mesma obra, páginas 10 e 11) 965.

O problema, para ela, se coloca da seguinte forma: “como surgirá, então, a partir desses incontáveis movimentos desvinculados uns dos outros, uma produção total efetiva?” (mesma obra, p. 11)

. Como incorporar a essa reflexão o fato de que “os

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produtores privados não são simplesmente produtores simples de mercadorias, mas produtores capitalistas”? Pela consideração do fato de que “a produção total da sociedade não é nenhuma produção voltada simplesmente para a satisfação das necessidades de consumo, nem tampouco se trata de simples produção mercantil, mas sim de produção capitalista” (mesma página) na qual “a mais-valia é a meta final e mola propulsora” (mesma página) e “a fabricação de mercadorias não é o objetivo do produtor capitalista; é apenas um meio para a apropriação de mais-valia” (mesma obra, Não é de se espantar, portanto, que paradigmas que se sustentam na análise de ciclos e crises precisem rejeitar a explicação luxemburguista com violência veemência. 966 Não podemos perder de mente que, embora a linguagem aqui se expresse em termos que a ciência econômica sequestrou para si, o problema de Rosa não é em si mesmo “econômico”, mas um problema, como o próprio nome diz, de “reprodução social”. 965

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p.12). Isso implica em que “enquanto se apresentar sob a forma de mercadoria, a maisvalia será inútil para o capitalista” porque “depois de produzida, ela precisa ser realizada ou transformada em sua forma pura de valor, ou seja, em dinheiro” (mesma página) 967. Até então não parece haver espaço para as polêmicas. Mas por enquanto ainda estamos no terreno de como essa sociedade iria se manter, ou seja, de simplesmente se reproduzir. São os passos iniciais do raciocínio, que se propõe, como podemos perceber, a pegar o problema pela raiz. Este problema começa precisamente quando se procura entender a expansão, ou seja, a reprodução ampliada e acelerada, ou seja, a acumulação, que é a questão que Rosa está procurando entender. E aí reside uma questão importante, por que essa transformação do capital, partindo da forma original, em meios inanimados e animados de produção (isto é, em matérias-primas, instrumentos e mão-de-obra), transformação que representa o ponto de partida de toda e qualquer produção capitalista; essa conversão dos primeiros em mercadorias por meio de um processo vivo de trabalho e novamente em dinheiro mediante um processo de trocas, precisamente em mais dinheiro do que o existente no início do processo, essa rotação do capital não é necessária apenas para a produção e apropriação da mais-valia. O objetivo e mola propulsora da produção capitalista não é simplesmente a mais-valia, em qualquer quantidade, em uma única apropriação, mas a obtenção ilimitada de mais-valia, em um crescimento incessante, em quantidades sempre maiores. [Segundo a explicação “tradicional”] Isso só pode ser alcançado pelo mesmo recurso mágico: pela produção capitalista, isto é, mediante a apropriação de trabalho assalariado não-pago em meio ao processo de fabricação de mercadorias e mediante a realização dessas mercadorias assim produzidas. Com isso, produção sempre reiniciada, a reprodução como fenômeno regular adquire na sociedade capitalista motivação totalmente nova e desconhecida em qualquer outra forma de produção. (mesma página)

Noutros termos, Rosa afirma que, com efeito, “nem a reprodução ampliada nem a reprodução simples são exclusividade das sociedades capitalistas” (mesma obra, páginas 14 e 5). O que constitui, de fato uma “inovação” capitalista é que independentemente de qualquer necessidade social, a “realização efetiva das mercadorias fabricadas no período anterior de produção é a condição primeira da reprodução para os produtores capitalistas” (mesma obra, p. 13).

A autora acrescenta em nota da página 12 que “nessa exposição, consideramos a mais-valia idêntica ao lucro, o que é verdadeiro para a produção total, da qual aqui trataremos exclusivamente. Desconsideramos a divisão da mais-valia em seus componentes, lucro de empresa, juros de capital e renda fundiária, já que para o problema da reprodução, essa divisão não tem, por ora, maior significado”. 967

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Deste modo, “a reprodução ampliada, no sentido capitalista, se expressa, portanto, especificamente como crescimento do capital por meio da capitalização progressiva da mais-valia, ou, na expressão de Marx, como acumulação de capital.” (mesma obra, p. 15). A questão que chama a atenção de Rosa aqui é que, para além da questão formal, é preciso que se considere que existem “condições concretas necessárias para a acumulação do capital” (mesma página). Aqui, mais uma vez – dada a barafunda historiográfica que se sustenta nessa hipótese de leitura – é preciso demarcar que “as condições concretas necessárias para a acumulação do capital” por maior que seja o esforço cientificista, somente podem ser reduzidas a conceitos da ciência econômica com uma dificuldade gigantesca; mas por certo não podem em nenhuma hipótese ser reduzidas na categoria consumo. Iremos grifar, a título de ênfase: depois de a mais-valia apropriada abandonar finalmente a forma de mercadoria, revestida no mercado, ela se apresenta sob a forma de determinada soma de dinheiro. Dessa maneira, assume a forma absoluta do valor, sob a qual pode iniciar sua carreira como capital. Mas, sob essa forma, ela também se encontra apenas no limiar de sua carreira. Com dinheiro não se consegue criar nenhuma mais-valia. Para que a parte da mais-valia se destine à acumulação e seja realmente capitalizada, é preciso, em primeiro lugar, que assuma a forma concreta que lhe permita viabilizar-se como capital produtivo, isto é, como capital gerador de nova mais-valia. [...] Mas para tal não basta a simples vontade do acumulador capitalista, nem tampouco sua ‘parcimônia’ e ‘abstinência’, destinando a maior parte de sua mais-valia à produção, em vez de desperdiça-la com luxos pessoais. Para que sua mais-valia se capitalize, é necessário que ele encontre no mercado as formas concretas que pretende dar a seu capital acrescido. Primeiro, precisa dos meios materiais de produção – matérias-primas, máquinas etc. – para dar forma produtiva a sua fração de capital constante, recursos que são necessários ao tipo de produção planejado e escolhido por ele. Em segundo lugar, é preciso ainda que a fração de capital destinada a converter-se em capital variável possa empreender também a respectiva transformação. Para tal, antes de tudo, duas coisas são necessárias: que se encontre no mercado de trabalho a mão-de-obra adicional em quantidade suficiente de acordo com as necessidades do novo capital acrescido; além disso, já que os trabalhadores não podem viver de dinheiro, que no mercado também se encontrem os meios adicionais de consumo pessoal passíveis de troca pela fração do capital variável que os novos trabalhadores receberão do capitalista. Dadas todas essas précondições, pode, então, o capitalista movimentar sua mais-valia capitalizada, deixar que ela, como capital em processo, produza nova mais-valia. Com isso, no entanto, o problema ainda não se encontra resolvido em definitivo. [...] Para que o novo capital preencha sua razão de ser, é necessário que, com a mais-valia produzida, abandone a forma de mercadoria e retorne às mãos do capitalista sob a forma pura de valor, isto é, de dinheiro. Caso isso não ocorra, perdem-se totalmente, ou em parte, o novo capital e a nova mais-valia; a capitalização da mais-

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valia fracassa e a acumulação não se efetiva. Para que a acumulação se concretize é imprescindível que a massa adicional de mercadorias, produzida pelo novo capital, conquiste para si um lugar no mercado, a fim de poder realizar-se. (mesma obra, p. 15-6)

A essa necessidade de realização da mercadoria, procurando ilustrar toda a sua dificuldade, Marx dera o nome de “salto mortal”. Lembrando que a questão para Rosa está colocada não apenas na perspectiva do capitalista individual em busca de lucro, mas da sociedade que procura se perpetuar ao longo das gerações, oferecendo – ainda que de modo insuficiente – comida, vestimentas e demais víveres – para ficarmos apenas na subsistência e deixando pra outra hora questões fundamentais que se referem aos “bens culturais” – o problema da reprodução – que se confunde agora com a acumulação do capital, ou seja, a reprodução em condições capitalistas e está subordinada aos imperativos do lucro – assume ares muito mais graves. Como em qualquer outra forma de sociedade, as decisões sobre a produção e a reprodução (“simples” e “ampliada”) da sociedade se referem à própria sobrevivência da sociedade sob sua forma específica. Tomada essa questão da perspectiva do longo prazo, por uma questão de lógica, dado que essa sociedade está se reproduzindo a despeito da identificação de qualquer mecanismo de coesão, torna-se concebível que, a despeito das (in) consciências individuais dos agentes sobre elas, existam normas que funcionam sobre essa reprodução, e essas normas são cientificamente passíveis de serem desveladas968. E foi aí que a questão da reprodução social total se mostrou imprescindível, a despeito de qualquer desejo ou atuação individual. Nas palavras de nossa autora, assim, a produção e a reprodução capitalistas se desenrolam continuamente entre o lugar de produção e o mercado de produtos, entre as fábricas e escritórios privados (onde é ‘estritamente proibida a entrada de estranhos’ e onde a vontade soberana do capitalista individual é a lei máxima) e o mercado, onde ninguém dita as leis e não se fazem valer nem a vontade, nem a razão. Mas são exatamente a arbitrariedade e a anarquia dominantes no mercado que fazem o capitalista individual sentir sua dependência com relação à sociedade, sua dependência com relação ao conjunto dos elementos produtores e consumidores. Para ampliar sua reprodução, ele necessita de meios de produção e mão-de-obra adicionais, além de meios de subsistência destinados à mão-de-obra; porém a existência desses fatores depende de aspectos, de circunstâncias e de processos que se consumam atrás de No caso da sociedade capitalista, toda a tradição da Economia Política – neste caso específico, mas também, sob outros assuntos, as outras disciplinas do que se convenciona chamar de Ciências Sociais – vinha procurando apreender essas “normas ocultas”, que funcionam sob a aparência de caos que aparece quando se analisa a sociedade sob o ponto de vista dos indivíduos. 968

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suas costas, totalmente independentes dele. Para poder realizar sua massa aumentada de produtos, o capitalista necessita de um mercado mais amplo. Mas uma ampliação efetiva da demanda em geral, especialmente de uma que se refira ao gênero de produto que ele fabrica, constitui um problema que ele é totalmente incapaz de resolver. (mesa obra, páginas 16 e 17)

Assim, “as condições enumeradas, que exprimem todas elas a contradição interna existente entre a produção privada e o consumo, de um lado, e o nexo social de ambos, de outro, não são aspectos novos que apenas surgem no momento da reprodução. São contradições gerais da produção capitalista” (mesma página).  Procuramos até aqui apresentar a maneira como a autora circunscreve o “objeto da investigação” – que corresponde ao seu primeiro capítulo – no qual apresenta a importância da assunção de uma perspectiva para além dos indivíduos que se ocupe com os problemas das peculiaridades da “reprodução social total” em sociedades capitalistas, ou seja, de como os imperativos (capitalistas) que atuam sobre as decisões de produção (capitalista) estão condicionados ao mesmo tempo em que atuam sobre as condições de perpetuação daquela forma social (capitalista). Depois de apresentar o “objeto da investigação”, A acumulação do capital se desdobra em três momentos principais969: Seção I, sobre “O Problema da Reprodução” (em que aparecem as massacradas críticas aos esquemas marxistas da reprodução simples e ampliada); Seção II, com “A Exposição Histórica do Problema” (em que desenvolve a reconstituição crítica cuidadosa da forma como o problema apareceu para Economistas Políticos); e Seção III: “As Condições Históricas da Acumulação” (na qual estabeleces os traços fundamentais de sua explicação sobre a necessidade de expansão do capital e o imperialismo e na qual se costuma reconhecer que é onde oferece suas mais brilhantes contribuições). Não nos debruçaremos sobre a importante questão sobre as críticas de Rosa ao pressuposto de Marx no que toca seus esquemas de reprodução – que discutimos em nossa dissertação de mestrado – mas tem uma questão que é importante indicarmos por hora. A partir da análise histórica concreta, por conta de o imperativo principal do capital ser a valorização crescente e incessante, Rosa considera que é preciso conceber o Para uma exposição sucinta sobre o movimento geral do texto, sugerimos a leitura de PEREIRA, Leandro Ramos. A construção lógica e as manifestações históricas do capital financeiro de Hilferding. Em: MARX E O MARXISMO 2013: MARX HOJE, 130 ANOS DEPOIS, 3., 2013, Niterói. Anais... . Niterói: NIEP-Marx UFF, 2013. p. 1 24. Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2014. 969

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capitalismo como um modo de produção em necessária expansão. Até aí, é consensual. A questão toda começa no ponto de determinar como o modo de produção capitalista irá se expandir. A maneira como ela expôs – que pode ser acompanhada pela forma como organiza o livro – é a partir da história de como o problema da acumulação foi trabalhado pelos mais diversos autores da Economia Política, e por Marx. É por este procedimento específico e por conclusões que ela tira daí, que se levanta grande parte das acusações contra. Tendo isso em mente, muitas pessoas que com ela simpatizam consideram que ela deveria ter procedido de outra maneira. Discordamos, por três motivos principais, que se relacionam. O primeiro, é que, sendo um livro que surgiu – como a autora o expõe no prefácio – a partir dos cursos sobre História Econômica e Economia Política, tornou-se fundamental para a Professora Rosa Luxemburg apresentar o que ela considerava uma crítica importante tanto à teoria marxista quanto à práxis da luta anti-imperialista. O segundo motivo – que aprendemos a partir da hipótese de leitura de Lukács que apresentamos anteriormente, mas que não temos como expor com o rigor necessário aqui – é que somente assim ela consegue apresentar o problema em toda a sua potência970. Por fim o terceiro, que é o mais importante: independentemente de como ela poderia ter feito, nos parece que a partir da maneira como encararmos os debates que se seguiram ao livro que ela efetivamente publicou,

Conforme procuramos explicitar anteriormente, Lukács defende que para o que ele chama de “método dialético”, para apreender a “totalidade do processo histórico”, faz-se necessário que se encare o problema a partir da história deste problema, de sua “expressão literária e científica” por meio do estudo histórico. No caso de Rosa, como já dissemos, como a história do problema da acumulação se expressava por meio das várias maneiras como o problema da reprodução social total aparecia na Economia Política, e porque esses esquemas foram a maneira como Marx tentou lidar com a questão, não era possível encará-lo de outra forma. O grande mérito de Rosa – que para ele só poderia ser alcançado com esse procedimento – é que, assim, como Marx criticava Proudhon, dentre outras coisas, pelo fato de que este separava o "lado ruim" e "lado bom" da evolução capitalista. O que Rosa explica é que “reconhecer a questão da acumulação significa reconhecer que esse 'lado ruim' está inseparavelmente ligado à essência mais íntima do capitalismo. Significa, por conseguinte, que o imperialismo, a guerra e a revolução mundiais devem ser entendidas como necessidades da evolução. Contudo, como se sublinhou, isso contradiz o interesse imediato daquelas camadas que tiveram nos marxistas do centro seus porta-vozes ideológicos, camadas que desejam um capitalismo altamente desenvolvido, sem 'excrecências' imperialistas, uma produção 'bem regrada', sem as 'perturbações' da guerra etc. 'Essa concepção', diz Rosa Luxemburg, 'visa persuadir a burguesia de que o imperialismo e o militarismo seriam prejudiciais do ponto de vista dos seus próprios interesses capitalistas. Espera-se, com isso, poder isolar o punhado de aproveitadores, por assim dizer, desse imperialismo e formar um bloco com o proletariado e as largas camadas da burguesia para 'atenuar' o imperialismo, [...] para 'retirar dele o seu espinho'. Do mesmo modo como, na época de sua decadência, o liberalismo transferiu seu apelo da monarquia mal-informada àquela que precisava de mais informação, o 'centro-marxista' transfere seu apelo da burguesia mal aconselhada à burguesia que precisa ser instruída." (LUKÁCS, obra citada, p. 121) Identificar que as soluções apresentadas pela social-democracia, quando muito, se assemelhava à ideologia burguesa era, portanto, fundamental. 970

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podemos compreender tanto as questões que motivaram politicamente seus detratores quanto às mudanças históricas concretas que se deram justamente naquele período que – hoje sabemos – antecedeu a Grande Guerra. O que nos importa anotar aqui é que essas diferentes interpretações sobre a questão implicam em estratégias distintas, ainda em nossos dias. Mas há um ponto que não podemos ignorar, e que se apreende do que vimos expondo: a crítica que Rosa Luxemburgo estabelece em A acumulação do capital, com efeito, tem duas frentes. A primeira delas é a constatação histórica e concreta de que o capital tem se expandido “aumentando sua base”, ou seja, destruindo formas de vida pautadas em outros imperativos de duas maneiras (alternativas ou relativamente concomitantes): 1) pelos genocídios da população local e pilhagem pura e simples de recursos naturais e da mão-de-obra forçada (escravidão, por exemplo); e 2) pela imposição das relações capitalistas por meio da destruição das bases nas quais aquelas sociedades baseavam sua socialidade autarquicamente971. Deste modo, Rosa conclui que histórica e concretamente, independentemente de qualquer elaboração teórica, o capitalismo até o seu tempo somente se expandiu em relação a formas não-capitalistas porque “na realidade, não existe, nem existiu jamais, nenhuma sociedade capitalista que estivesse submetida ao domínio exclusivo da produção capitalista” (mesma obra, p. 239). Saber se essa é a única forma possível de existência do capital é que são elas. É procurando este sentido que Rosa estabelece a segunda frente de sua crítica. Para procurar resolver essa questão teórica – que tinha implicações práticas na agenda política mais urgente do período [e ainda tem hoje] – Rosa busca auxílio nas teorias que Marx havia formulado em O capital. E é aí que, segundo ela – no prefácio – se deparou com uma “dificuldade inesperada”. Examinando cuidadosamente a questão – tudo isso segundo ela própria, no texto – se deu conta de que a forma como Marx lidou com o problema da acumulação do capital e da expansão do capitalismo nos fragmentados cadernos de rascunhos que Engels transformou no livro II de O capital não poderia responder a questões que se faziam, então, fundamentais – e que não necessariamente haviam chamado a atenção de Marx quando ele escreveu, mesmo porque o capitalismo

A primeira se liga ao que Clastres entendia por “genocídio”, a segunda, por “etnocídio”. O pior é que, geralmente, são processos que coexistem. Cf: Clastres, citado. 971

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se expandira muito nos anos que separam seus textos e os dela 972. Em alguma medida, Rosa encontrou suporte no fato de que o próprio Marx considerava aquele material ainda muito preliminar, que deveria servir de base para o volume II que ele viria a escrever – mas nunca o fez, como sabemos. Em suas próprias palavras, confidenciadas à filha Leonor pouco antes de morrer, Marx dizia que “esse é o material destinado ao Livro Segundo; com esse material eu deveria fazer alguma coisa” (citado em LUXEMBURG, 1985, p. 103) 973. Nas palavras de Rosa, a Seção III, que trata da reprodução do capital total, só apresenta uma coleção de fragmentos, que pareciam ‘necessitar de uma reelaboração urgente’, segundo o próprio Marx. O último capítulo dessa seção, o capítulo XXI, que se refere ao que nos interessa, à acumulação e à reprodução ampliada, é o que ficou mais incompleto de todo o livro. Ele abrange tudo em apenas 35 páginas impressas, sendo interrompido em meio à análise (mesma obra, páginas 103 e 104).

Diante de todas essas considerações, Rosa se sentiu amplamente legitimada para reelaborar o problema, e somente a partir de uma visão completamente cega e canônica dos rascunhos – que o próprio autor não considerava suficientemente bons – se pode atacá-la pela iniciativa em si mesma. A crítica àqueles rascunhos não era somente possível quanto, mais ainda, necessária. Quanto às conclusões tiradas pela autora, evidentemente, há que se analisar o que ela conseguiu explicar, e quais os seus problemas.

É importante notar que, a conclusão de Rosa não é que porque o capitalismo havia mudado automaticamente as teses de Marx não ofereceriam as respostas de que ela precisava. Do contrário, para entender os problemas contemporâneos, ela procurou auxílio nos textos “clássicos” esperando lá encontrar as respostas. Somente diante da constatação de que a maneira como aqueles textos foram formulados não daria conta das exigências que ela tinha é que se viu na necessidade de reelaborar o problema, o que exigiu uma crítica cuidadosa e um livro inteiro para demonstrar “cientificamente” seu ponto de vista. O contraste com a bibliografia contemporânea sobre o imperialismo é gritante. O procedimento mais comum em nossos tempos é a argumentação de que porque o imperialismo mudou aquelas teorias já não servem mais; ao que essxs autorxs contemporânexs não se dão ao trabalho de expor a crítica cuidadosamente, se limitando a julgamentos sumários e passando por cima de diversas nuances daquele debate. Assim, não é de se espantar que geralmente apresentem como “novidades” argumentos que, com efeito, já estavam postos um século atrás. Evidentemente não pode existir qualquer objeção a quem tentar construir um arcabouço argumentativo novo a partir de questões novas. Mas o método para a formulação dessas idéias “novas” não pode consistir na crítica aos textos anteriores a não ser que seja demonstrado em quê, exatamente, aqueles textos não dão conta dos desafios “novos”. Do mais a “crítica” é pura leviandade. 973 Nas palavras de Engels no Prefácio à segunda edição, temos que “esse manuscrito é apenas uma análise prévia do objeto, análise em que sobretudo se pretendia determinar e desenvolver, em relação ao Manuscrito II, os novos pontos de vista adquiridos, deixando de lado aqueles sobre os quais não havia nada de novo a dizer. Parte apreciável do capítulo XVIII da Seção II, extensiva de certa maneira à Seção III, também é novamente incluída e ampliada. A sequência lógica é várias vezes interrompida; o tratamento apresenta lacunas em algumas partes, e o final em particular, é totalmente fragmentário. Mas o que Marx quis dizer aí se encontra dito de uma ou de outra maneira.” (citado em LUXEMBURG, 1985, p. 103) 972

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 Em síntese, quanto à primeira frente da crítica de Rosa (baseada na observação do fato de que historicamente o capitalismo sempre se expandiu sobre formas sociais não-capitalistas), não havia então muito o que se refutar. No princípio do século XX era consensual que ainda existiam muitos lugares no mundo que não podiam ser considerados “capitalistas” e a disputa por colônias era uma questão absolutamente central na política internacional. Mas como hoje a questão se mostra distinta, e há quem diga que a teoria de Rosa sobre o imperialismo não serve mais para analisá-lo porque, para essas pessoas, já vivemos em um mundo inteiramente capitalista, vale a pena expor o argumento com mais detalhes974. Mas para que não percamos muito tempo, podemos ir direto ao ponto. Do ponto de vista dos Estados-nação – o que em termos do materialismo histórico já é integralmente despropositado – talvez seja possível dizer que cada um deles está submetido aos imperativos capitalistas. Mas se pensarmos, por exemplo, a partir de uma perspectiva “regional” – que não nos parece condizente tampouco com o materialismo histórico – nos parece muito óbvio que muitos territórios ainda não foram “integrados” – Harvey, como vimos, aponta o problema e refuga. Somente este argumento já refutaria a hipótese de que a teoria luxemburguista sobre o imperialismo teria caducado porque o capitalismo teria eliminado todas as outras formas de vida 975. Do ponto de vista “ambiental”, por outro lado, a exploração extraterrestre – uma fronteira “geográfica” que atrai a cada dia mais dinheiro – cresce exorbitantemente. Já é um “jogo jogado” por todas

Comentando Rosa – em dois parágrafos – e distorcendo substancialmente os argumentos, Ellen Wood julga que “esses relatos foram profundamente esclarecedores com relação à época em que foram escritos; e até hoje não se demonstrou que eles estavam errados ao presumir que o capitalismo não seria capaz de universalizar seus sucessos e a prosperidade das economias mais avançadas, nem que as potências capitalistas mais importantes sempre dependeriam a exploração das economias subordinadas. Mas ainda não vimos uma teoria sistemática do imperialismo criada para um mundo em que as relações internacionais sejam internas ao capitalismo e governadas por imperativos capitalistas. Isso, ao menos em partes, é porque um mundo de capitalismo mais ou menos universal, em que os imperativos desse sistema sejam um instrumento universal de dominação imperial, é um desenvolvimento muito recente.” (WOOD, 2014, p. 99) 975 Neste ponto, nos parece que o livro de Harvey sobre o “novo” imperialismo é particularmente feliz em demonstrar que ainda existem muitas formas “não-capitalistas” de apropriação. 974

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as potências e por diversos grandes grupos econômicos. Ao mesmo tempo, “aqui na Terra”, imensas regiões estão em franco processo de (re) colonização976. Mas tudo isso ainda desconsideraria que, para Rosa, essas expressões são incompletas e parciais, porque, como ela deixa totalmente explicitado em A acumulação do capital, a questão não é de “espaço”. Segundo Rosa, inclusive, essa é a maneira pela qual a Economia Política não conseguiu resolver o problema. Em suas palavras: a solução do problema, em torno do qual gira a controvérsia da Economia Política há mais de um século, encontra-se, portanto, entre dois extremos: entre o ceticismo pequeno-burguês de Sismondi, Von Kirschmann, Vorontsov e Nikolai-on, que definiam a acumulação como algo impossível, e o otimismo rudimentar de Ricardo, Say e TuganBaranovski, para os quais o capital poderia prosperar ilimitadamente – o que significa dizer, como consequência lógica, que o capitalismo é eterno. Segundo a doutrina marxista, a solução encontra-se na contradição dialética do movimento de acumulação capitalista, que exige um meio ambiente de formações sociais não-capitalistas; essa acumulação se faz acompanhar de um intercâmbio material constante com as mesmas e só se processa enquanto dispõe deste meio. A partir daí podem ser revisados os conceitos de mercado interno e externo, que tiveram papel exponencial na polêmica em torno do problema teórico da acumulação. O mercado interno e o mercado externo desempenham, sem dúvida, papel importante e inconfundível na evolução do desenvolvimento capitalista, não como conceitos de Geografia Política, mas como conceitos de Economia Social. Do ponto de vista da produção capitalista o mercado interno é mercado capitalista, uma vez que essa produção é consumidora de seus próprios produtos e fonte geradora de seus próprios elementos de produção. Mercado externo é para o capital o meio social não-capitalista que absorve seus produtos e lhe fornece elementos produtivos e força de trabalho. Do ponto de vista econômico, a Alemanha e a Inglaterra constituem, em sua troca recíproca, uma para a outra, mercados capitalistas internos, enquanto as trocas entre as indústrias alemãs e seus consumidores e produtores camponeses alemães representam, para o capital alemão, relações de mercado externo. [...] No intercâmbio capitalista interno pode-se, no melhor dos casos, realizar apenas partes determinadas do produto social total: o capital constante utilizado, o capital variável e a parte consumida da mais-valia. Em contrapartida, a parte da mais-valia que é destinada à capitalização tem de ser realizada “externamente”. Apesar de a capitalização da mais-valia ser o objeto específico e a mola propulsora da produção, a renovação dos capitais constante e variável (assim como da parte consumível da mais-valia) constitui, por outro lado, a base ampla e pré-condição da produção. E se com o desenvolvimento internacional do capital a capitalização da mais-valia se torna a cada instante mais urgente e precária, de modo absoluto enquanto massa, bem como em relação à Sobre o patrocínio a iniciativas privadas de exploração da Lua (feito pela empresa Google): http://lunar.xprize.org/, especificamente http://lunar.xprize.org/about/overview. Para um breve ilustrativo – desatualizado, mas didático – de diversas agências espaciais estatais: http://www.terra.com.br/noticias/ciencia/infograficos/mapa-espacial/. Sobre a (re) colonização, num bom compilado de notícias: http://diplo.org.br/+-Recolonizacao-da-Africa-+. 976

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mais-valia, essa base de capital constante e variável, por sua vez, também se torna cada vez maior. Daí o fato contraditório de os antigos países capitalistas representarem, um para o outro, mercados cada vez maiores e imprescindíveis, e se digladiarem ao mesmo tempo mais intempestivamente na qualidade de concorrentes em função de suas relações com os países não-capitalistas – são típicas, nesse sentido, as relações entre Alemanha e Inglaterra. As condições de capitalização da mais-valia e as condições de renovação do capital total cada vez mais entram em contradição (mesma obra, páginas 251 e 252).

Do ponto de vista da imensa quantidade de pessoas que ainda não foi “integrada ao mercado” é gritante que o capital ainda tem muito campo para o qual ele pode avançar – e isso não implica em promessas de melhorias, ou de “desenvolvimento”, mas de catástrofes e de violências, como nos ensina muito bem a perspectiva resolutamente anticapitalista de Luxemburg. Já a segunda frente crítica de Rosa (que se dirige à forma como Marx lidou com o problema da acumulação do capital) é uma questão bastante mais controversa. Primeiro, e mais desinteressante, é porque se tratava da crítica de um texto canonizado. Existe esse elemento nos ataques a ela endereçados. Mas ele é bem menos importante e não merece nossa atenção. O que de fato interessa é que, diferentemente do ponto sobre o fato de que o que chamamos de capitalismo até então havia se expandido com a incorporação de formas sociais “não-capitalistas” – que é uma mera observação histórica objetiva inegável – a crítica aos esquemas, para Rosa, levava à conclusão lógica de que o que chamamos de capitalismo nunca poderá se expandir – ou seja, nunca poderá haver acumulação de capital social total – sem a destruição de novas formas sociais e, portanto, é impossível conceber que o que chamamos de capitalismo possa se desenvolver sem a ocorrência de guerras imperialistas. Pior ainda: como a questão não era de “Geografia Política”, mas de “Economia Social”, não é possível que o que chamamos de capitalismo seja pacífico – nem “externa” e nem “internamente” – e, portanto, o problema do que chamamos de capitalismo, de imperialismo e de militarismo tornaram-se os mesmos e não existe nenhuma possibilidade de “desenvolvimento” que não seja inerentemente violenta e opressiva. Era essa a conclusão que a social-democracia não poderia mais aceitar e é essa a razão da violência dos ataques que A acumulação do capital recebeu.

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9.4 Anticrítica Rosa Luxemburg foi uma figura de muito destaque público. Foi durante muito tempo representante do partido socialdemocrata da Polônia e Lituânia na Internacional Socialista e participante de muito destaque no Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), na qual militou durante quase toda a vida adulta. Estava entre xs mais destacadxs e importantes oradorxs e entre xs jornalistas mais produtivxs, tendo redigido e editado os principais veículos da imprensa do partido. Por conta desse destaque, chamou a atenção de órgãos de repressão por diversas vezes e sofreu longos períodos na prisão antes de ser assassinada brutalmente como parte de uma estratégia que tinha por objetivo desmobilizar os setores mais à esquerda das classes trabalhadoras. Seu doutorado, realizado na Suíça, sobre O desenvolvimento industrial da Polônia foi de imediato reconhecido como uma grande obra. Foi publicado por uma grande editora de Leipzig e aclamado pelos mais diversos especialistas na matéria. Seu prestígio intelectual era inegável, tanto nos assuntos gerais de interesse das classes trabalhadoras quanto especificamente no concernente à História Econômica e à Economia Política, disciplinas as quais lecionou entre 1907 e 1914 (com algumas interrupções devido a prisões e outras coisas mais) na escola de quadros do SPD, tendo sido escolhida a substituta de Rudolf Hilferding – outro eminente teórico da economia, que fora obrigado a se afastar por não possuir cidadania alemã em um dos diversos períodos de repressão contra as partidos proletários no começo do século XX977. Além disso – o que foi destacado pela feminista Frigga Haug – Rosa foi considerada por muita gente gabaritada (por exemplo, Lenin, Mehring e Lukács) como a melhor continuadora da obra de Marx em termos metodológicos; ao mesmo tempo em que possuía notável capacidade de unir a política cotidiana com uma perspectiva teórica abrangente – tanto em seus textos quanto em seus discursos978. Ao longo de sua extensa vida pública, Rosa entrou em polêmicas com diversos figurões como Bernstein, Kautsky, Bauer e Lenin (por mais de uma vez, desde 1904, pelo menos) e contava com o respeito dos mais altos intelectuais da Internacional Socialista sem jamais ser submissa a

Segundo Isabel Loureiro, na página xvi da “Apresentação ao terceiro volume”, o emprego de professora do partido era um “trabalho bem remunerado que lhe permite viver sem preocupações financeiras”, sendo que “ela era ótima professora, querida pelos alunos”. 978 Cf. Loureiro, Crítica Marxista, 2008, p. 172. 977

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nenhum deles. Nas palavras de um dos mais notáveis luxemburguistas brasileiros – e um dos grandes críticos de arte deste país –, Rosa era no Ocidente a única figura capaz de se medir com aqueles dois gigantes [Lenin e Trotsky] e de enfrenta-los com independência, num plano de igualdade. Sobrava-lhe, para isso, em valor moral e intelectual, em autoridade e em espírito revolucionário. 979

O nosso juízo, essas coisas devem ser destacadas por uma dupla de motivos. O primeiro, é que essa dimensão geralmente é negligenciada na literatura crítica que versa sobre o imperialismo, que tende a estupidificar Rosa Luxemburgo, reproduzindo mecanicamente as críticas levantadas contra ela por alguma “autoridade”. O segundo interessa mais: o que a detratação diz sobre as idéias dela? Chegaremos lá, mas ainda precisamos reconstituir alguns passos do raciocínio.  É fato que Rosa Luxemburg ao longo de toda a sua vida recebeu “acusações” que visavam atingir suas características pessoais, como o fato de ser mulher, judia e polonesa. A maneira como ela encarava as polêmicas e as “acusações” diz muito sobre o debate que seguiu a publicação de A acumulação do capital. Teria sido Rosa “perseguida”? Era uma “coitadinha”? “Injustiçada”?980 Jörn Schütrumpf, por exemplo, em “Entre o amor e a cólera”, publicado em Rosa Luxemburg ou o preço da liberdade tece uma hipótese sobre o comportamento de Rosa que, críticas à parte, oferece um panorama que deve ser levado em consideração. Segundo ele, à distância de cem anos, pode-se dizer que Rosa Luxemburgo entrou na literatura mundial como uma de suas mais brilhantes polemistas. Na sua época, praticamente ninguém lhe chegava aos pés. 981

Sendo assim – essa parte é interessante – não é de surpreender que muitos de seus adversários a considerassem insuportável e, consequentemente, a acusassem; sobretudo aqueles que não eram capazes de suportar sua pena afiada e, especialmente nos congressos do SPD, sua língua mordaz. Alguns, no entanto, não

(p. 119-120) Mário Pedrosa, A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo, Civilização Brasileira, 1979; citado por “Rosa Luxemburgo: No princípio era a ação”. Isabel Loureiro, em O pensamento alemão no século XX – grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil, Volume II Jorge de Almeida e Wolfgang Bader (org.) 1ª edição Cosac Naify Portátil. São Paulo: Cosac Naify, 2013. 980 Sobre isso: http://leolama.blogspot.com.br/2007/11/meu-pai-morreu.html. Recebemos a recomendação desse texto de João da Silva. 981 Páginas 30 e 31. 979

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limitavam sua vingança às acusações de mulher briguenta, e procuravam humilhá-la abertamente.982

Segundo a descrição tosca de Jörn Schütrumpf – que não deixa de refletir o tipo de mentalidade contra o qual Rosa se levantava sempre – é verdade que a natureza não foi generosa com Rosa Luxemburgo: um metro e cinquenta de altura, cabeça desproporcionalmente grande, nariz volumoso e um problema no quadril, que quase sempre conseguia disfarçar, ofereciam aos espíritos simples, que nunca faltaram na socialdemocracia, a possibilidade de compensar a própria inferioridade com caçoadas baratas.983

Mas segundo ele, “Rosa Luxemburgo, que sem dúvida sofria com tudo isso, se protegia na medida do possível com a auto ironia984”. O “feminismo” de Rosa Luxemburg era o de um tipo muito peculiar, que contava com o respeito das líderes feministas mais importantes do período e comungava da amizade próxima e fraterna de pelo menos uma delas (Clara Zektin, sua amizade mais duradoura). Contudo, sempre que instada à tarefa, se recusava a escrever sobre a questão da mulher, não por considerá-la menos importante, mas porque, ao seu juízo, essa era uma maneira que os homens do partido tinham de fazer com que as mulheres não participassem dos “assuntos mais importantes” – os “de homem”. Sua maneira de combater o machismo era recusando qualquer tipo de “privilégio” que a tornasse “inferior”. 985 Foi alcunhada de vários adjetivos depreciativos (“Rosa sangrenta”, “Rosa assassina” etc.) mas sempre se recusou a se defender desse tipo de “acusação”. Elzibieta Ettinger, organizadora de Camarada e amante, contudo, oferece uma visão bastante diferente daquela traçada por Schütrumpf. Segundo ela, nos anos que precederam a revolução russa de 1905, Rosa Luxemburgo se tornou uma figura nacional no SPD. Política marxista radical, ela cada vez mais entrava em atrito com a ala mais conservadora do SPD. Não que fosse um revés. Impenetrável à ofensa pessoal – seja como uma “política de anáguas”, ou como uma “mulher intratável”, ou uma “judia desenraizada” –, ela travou suas batalhas, algumas vezes sozinha, imperturbada. “É melhor você se acostumar com essas coisas definitivamente”, ela confortava o enraivecido Jogiches; “[...] nada pode fazer responder agora ou jamais [...] a tal sordidez [...]; seria degradante P. 31. Mesma página. 984 Mesma página. 985 Essa passagem de sua biografia está registrada, por exemplo, em Rosa Luxemburg, filme de Margarethe Von Trotta (1986), o qual recomendamos e está disponível, dentre vários outros sítios, em https://www.youtube.com/watch?v=wLAURi-Zx2c 982 983

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e me recuso a responder, mesmo se isto for um capricho meu. E, por favor, meu amor, nunca me aconselhe a escrever volumes em autodefesa. Pode-se fazer isso com três palavras, ou melhor, não fazer” (dezembro de 1899) 986

Sobre isso, há ainda outro ponto que ao nosso juízo merece destaque. Escritora de ofício, a partir de um determinado momento procurou adotar o comportamento de escolher a dedo as brigas que travava e a energia depositada em cada atividade. Consta em suas correspondências com Leo Jogiches, por exemplo, missivas nas quais narra episódios que refletem um tanto de suas intenções987: Nos últimos tempos tenho trabalhado com coragem. Arranjei da melhor maneira possível meu relacionamento com Parvus988; escrevo para ele notas como as que você tem sobre a Polônia, França e Bélgica. Eles me reembolsaram a assinatura da revista – 30M por trimestre! Naturalmente é um acréscimo ao salário. Amanhã farei assinaturas do P[etit] R[épublique] e Peuple. Gasto uma hora para escrever uma nota, e planejo ler os jornais e escrever regularmente durante uma hora certa pela manhã. Escrevo muito rápido, sem rascunho, e envio de imediato (se você estivesse aqui, teria um ataque apoplético três vezes por dia). 989

Em outra oportunidade, diz assim: Acabei de receber sua carta e sua segunda correção das três primeiras folhas. Por pouco não tenho uma crise. Não quero mais falar sobre isto, não adiantaria nada. Devolvo tudo tal como está; corrigi somente a linguagem. É uma pena que as primeiras provas não tenham vindo diretamente para mim; Humbolt está esperando mesmo e ele teria esperado mais um dia. Em minha opinião, alguns trechos estão parecendo leite desnatado, e eu me pergunto então porque já não foram suprimidos de vez. Chega disto. Sei que você vê as coisas de um ponto de vista diferente: mais de duas semanas de trabalho insano, muitas cifras inexatas, etc. Espero que jamais tenhamos que fazer novamente este tipo de trabalho! Detesto esta minha tese de doutorado só porque investimos nela tanto trabalho e esforço. A simples lembrança me põe em crise. Eis porque quero expor-lhe as conclusões a que cheguei quanto aos métodos de trabalho. Até o momento, nosso sistema de trabalho consiste num desperdício de saúde e esforço, é uma loucura completa. Esforços que não produzem resultados visíveis merecem o ridículo e não o respeito. Atingir o máximo de resultado com um mínimo de esforço – este é o princípio correto. Eu já o coloquei em prática. Trabalhar com calma e despreocupação, sem se irritar, sem devotar muito tempo a um assunto – este é o meu sistema. Foi assim que escrevi minha palestra e é assim que escreverei o artigo para o Leipz[iger Volkszeitung]. Há casos em que nenhuma quantidade de trabalho e Camarada e Amante, Páginas 129 e 130. Não sabemos se ela cumpria com essas resoluções, mas nos parece uma hipótese interessante, no mínimo como mais um aprendizado que a professora nos oferece. 988 https://pt.wikipedia.org/wiki/Aleksandr_Parvus 989 (P. 83) carta a Jogiches, desde Berlim, 10 de julho de 1898 – carta 15. 986 987

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esforço é demasiada. Foi o caso de “Passo a passo”, assim como do artigo contra Bernstein. Entretanto, em tais casos, o trabalho não é em vão. Ele aparece no acabamento, na coerência e harmonia da forma. Mas fazer esse tipo de esforço no artigo “KP” para Sächsische [Arbeiterzeitung] ou na dissertação é pura loucura. Ninguém notará nem mesmo apreciará. Não pense nos erros de cifra que tinham de ser corrigidos, mas nos milhares de outros erros insignificantes que foram exagerados pelo microscópio do seu pedantismo literário. No todo, quando comparo nossos esforços passados com os resultados, sinto-me envergonhada. Isto acabou. De agora em diante frisch, froh, frei – trabalho fácil e alegre, reflexão séria, mas breve, o que está feito está feito, é decidir, executar e pronto, seguir adiante. É assim que tenho trabalhado sem cometer um único erro. 990

Esses comentários, ao nosso juízo, colocados em contraste com o esforço para defender-se das acusações lançadas contra A acumulação do capital podem ser bastante elucidativos. Por alguma razão, que a autora deixa explícita em Anticrítica, não se tratava somente nem de qualquer posição meramente teórica nem tampouco de defesas contra os ataques pessoais muitas vezes covardes que ela recebeu. Ela jamais desprenderia tanta atenção às críticas não fosse o que isso implicava para as posições em questão. Por outro lado, o que nos chama a atenção quanto ao nosso objeto imediato é que pelo próprio vocabulário – mas não somente – vê-se claramente, conforme já discutimos, que em 1915 a teorização sobre o imperialismo havia assumido um protagonismo importante, e a defesa da idéia de que se tratava de um período ia se tornando a cada dia mais necessária. Com o avançar da guerra – e com a traição da social-democracia que passara a apoiá-la com argumentos patrioteiros – tornou-se ainda mais importante ressaltar que, embora a expansão imperialista fosse constituinte de toda e qualquer forma de capital – com “grande guerra” ou sem “grande guerra” – e que a crítica precisava ser dirigida tanto ao capitalismo quanto ao imperialismo, ainda assim havia algo de “novo” na “fase mais recente do imperialismo” que implicava em desafios diferentes – e é notório como essa postura também aproxima as interpretações de Lenin e Rosa a despeito de a bibliografia canônica insistir nos erros de Rosa e nos acertos de Lenin. No começo de Anticrítica, Rosa “confessa” que enquanto redigia a Acumulação, “receava, vez ou outra, que todos os marxistas interessados na teoria fossem dizer depois que eu tentara detalhar e fundamentar cuidadosamente o óbvio”; “mas não foi

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P. 74. Carta 12, para Jogiches, desde Berlim, 24 de junho de 1898.

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isso que aconteceu: diversos críticos da imprensa socialdemocrata consideravam o livro totalmente fora de propósito no referente à abordagem, já que o problema a resolver nem mesmo existia nesse domínio”. Mais do que isso, “achavam que eu teria sido vítima de um mal-entendido lamentável”. Rosa sagaz e ironicamente reconstitui “alguns acontecimentos que mereceriam ser classificados pelo menos como incomuns” que “associaram-se à publicação do livro”. Em suas palavras, a resenha de Acumulação que o periódico Vorwärts publicou em 16 de fevereiro de 1913 apresenta um tom de linguagem e um conteúdo capazes de intrigar qualquer leitor, mesmo o pouco familiarizado com a matéria, principalmente em se levando em conta que o livro criticado é de caráter puramente teórico e rigorosamente objetivo, não criticando nenhum marxista vivo. E não é só. Contra os que haviam publicado resenhas favoráveis ao livro, moveu-se uma espécie de campanha oficial, levada a efeito sobretudo pelo órgão central, com um empenho deveras ardoroso. Procedimento ímpar e esquisito: entra em ação a redação inteira de um jornal político diário – de cujos membros apenas um ou dois, no máximo, terão eventualmente lido o livro – para julgar em bloco um trabalho puramente teórico sobre um problema científico abstrato e complicado, desconsiderando a opinião abalizada de homens como Franz Mehring e J. Karski em matéria de economia política e promovendo a ‘peritos’ os que se pronunciaram contra a validade do meu trabalho. 991

Segundo Rosa, não lhe “consta que jamais outra publicação nova da literatura do partido tivesse destino semelhante desde que essa literatura existe”; e acrescenta “e devemos conceder que nem tudo o que as editoras socialdemocratas têm publicado nestes últimos decênios tem sido de excepcional valor”

. Conforme a própria autora

992

percebe de imediato, “o que há de realmente extraordinário nesse episódio todo é revelar que o livro deve ter tocado em paixões outras além das ‘puramente científicas’993”. Neste momento, passa a reconstituir a síntese do argumento principal de modo detalhado. A questão crucial, mais uma vez era a relação entre o modo de produção capitalista e formas sociais “não-capitalistas”: o funcionamento normal e cotidiano, do princípio ao fim do capitalismo. Em suas palavras, como todo mundo sabe e o próprio Marx insiste em realçar em Das Kapital, a produção capitalista não é, na verdade, a forma única e exclusiva existente de se produzir. Em todos os países capitalistas, e mesmo nos altamente industrializados [grifo nosso] existem, além dos P. 325. Mesma página. 993 Mesma página. 991 992

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empreendimentos industriais e agrícolas de cunho capitalista, numerosos estabelecimentos congêneres mantendo uma linha simples de produção mercantil. Na realidade existem, ao lado das nações capitalistas da Europa, outros países em que ainda predominam a produção artesanal e a pequena lavoura, fato que principalmente se observa na Rússia, nos Bálcãs, na Escandinávia e na Espanha. Para finalizar, existem, além da Europa capitalista e dos Estados Unidos, enormes continentes em que a produção capitalista apenas acaba de criar raízes em pontos esparsos, enquanto no demais as populações desses continentes apresentam as mesmas diversas formas de economia paralelas, desde as comunidades primitivas até as feudais, agrícolas ou artesanais. Essas formas todas de sociedade ou de produção não só existem ou coexistem em perfeita harmonia com o capitalismo como também desenvolveu-se entre elas o capital europeu um processo intenso e sui generis de trocas desde o início da era capitalista. Como verdadeira produção em massa, a produção capitalista depende de compradores que integram os meios agrícolas e artesanais das nações antigas, bem como dos consumidores de outras nações; por outro lado, e no concernente a ela mesma, tecnicamente a produção capitalista não pode existir sem o concurso da produção das mencionadas faixas populacionais, dos meios de produção ou subsistência fornecidos pelos respectivos países. Teve assim de estabelecer-se, desde o início, uma relação de troca entre a produção capitalista e o meio não-capitalista, relação mediante a qual o capital encontraria a possibilidade de transformar sua mais-valia em ouro necessário à capitalização subsequente, bem como de providenciar as mercadorias necessárias à expansão da própria produção, de garantir, enfim, o crescimento da força de trabalho proletarizada pela decomposição das formas nãocapitalistas de produção. Isso quanto ao simples conteúdo econômico da relação. Sua configuração material constitui, na realidade, o processo histórico da evolução do capitalismo no cenário universal, em toda a sua diversidade dinâmica e multifacial. 994

Mas isso, com efeito, para Rosa, implica que “por meio desse processo o capital prepara a própria cova”, não de modo automático, mas porque “muito antes mesmo de atingida a consequência última do desenvolvimento econômico – o domínio absoluto e indiviso da produção capitalista nesse mundo –, o mesmo processo irá acarretar necessariamente a revolta do proletariado internacional contra a existência do domínio do capital995”. A grande questão contudo, que, conforme já indicamos, diferencia os textos de 1912 do de 1915 é o aumento da importância do imperialismo no argumento luxemburguista – o que não fica explicado, se pensarmos que para a autora o imperialismo é um fenômeno igualmente importante tanto no primeiro quanto no último dia do capitalismo. Porque um problema que “à primeira vista, pode parecer 994 995

Páginas 334 e 335. Páginas 335 e 336.

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tratar-se de pura sutileza de ordem teórica. Mesmo assim, no entanto, a importância prática do problema é evidente. Ele é importante em conexão com o fenômeno exponencial da vida pública moderna, em conexão com o imperialismo”. Em Anticrítica – insistimos: como em Imperialismo, de Lenin996 –, o período [grifo nosso] imperialista apresenta os seguintes sintomas: competição entre os Estados capitalistas, visando a apropriação de colônias e ao domínio de certas áreas de interesse, encontro de novas opções para a aplicação do capital europeu, sistema de empréstimos internacionais, militarismo, medidas protecionistas alfandegárias, supervalorização do papel desempenhado pelo capital bancário e pelos cartéis na política mundial, sinais que hoje são perfeitamente conhecidos como manifestações típicas do período [grifo nosso] em consideração. 997

Mais do que isso, as conexões que esses sintomas apresentam com a fase final do desenvolvimento capitalista e a importância que eles têm para a acumulação do capital são tão aparentes que tanto os defensores do imperialismo como seus inimigos claramente reconhecem e aceitam como tais. 998

E em que isso implica para os partidos proletários? Para ela, “a social-democracia não pode, no entanto, dar-se por satisfeita com esse reconhecimento empírico999”. Além disso, “sua missão é descobrir e descrever corretamente a lei econômica que existe no bojo desse contexto; deve pegar pela raiz o variado complexo de fenômenos por meio dos quais esse imperialismo se manifesta1000”, por que como sempre acontece em tais casos, apenas a conceituação teórica e exata do problema (indo à raiz do mesmo) e a concepção teórica correta de nossa práxis na luta contra o imperialismo, somente elas podem conferir-nos a certeza, a finalidade clara e a energia necessária que são indispensáveis à política do proletariado. 1001

Aqui voltamos ao centro da polêmica: a questão não é sobre as divergências teóricas; mas sobre o posicionamento dos partidos proletários frente ao desafio prático e concreto do imperialismo em toda a sua complexidade. Todos os debates do período se ocuparam simultaneamente de guerra, paz, revolução, autodeterminação dos povos, representatividade, vanguarda, violência,

Rosa foi assassinada antes da publicação de Anticrítica, que foi levada a cabo por Paul Levi. P. 336. 998 Mesma página. 999 Mesma página. 1000 Mesma página. 1001 Mesma página. 996 997

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parlamentarismo, etc. O momento é extremamente tenso e essas tensões se manifestam em cada um dos textos publicados. A raiz da crítica às posições luxemburguistas, por parte dos socialdemocratas de centro (sobre a possibilidade de desenvolvimento pacífico do capitalismo), tanto quanto por parte dos bolcheviques (sobre os problemas da defesa do pacifismo internacionalista para a revolução armada proletária) é a mesma raiz das críticas que ela levantou contra a social-democracia que apoiou a guerra ou ao “autoritarismo” da vanguarda armada bolchevique. Qual é essa raiz? O posicionamento dos partidos proletários frente a uma nova fase capitalista que impunha questões totalmente novas, embora fossem nada mais do que desdobramentos históricoconcretos pautados na mesma lógica estrutural do capital. A divisão temática (“problemas econômicos” ou “políticos”, “a questão nacional”, “reforma ou revolução”, “vanguarda-espontaneísmo” etc.) é uma divisão acadêmica arbitrária e anacrônica. Para nenhumx daquelxs autorxs o problema se apresentava exclusivamente nestes termos e não é nem um pouco fortuito que cada umx delxs tenha se engajado ferozmente em cada um destes “debates”. É neste sentido específico – porque pontua de forma definitiva desde o seu princípio que o imperialismo é uma fase/etapa/estágio/momento, ou seja, uma temporalidade, não uma questão “política”, ou “econômica” – que consideramos que o trabalho de Lenin sintetiza e eleva a discussão para outro patamar. E esta é a sua principal e inequívoca contribuição para as interpretações sobre o imperialismo. 1002 É interessante que notemos que em seu livro Lenin não cita o trabalho de Rosa Luxemburg, que não aparece também nos “Cadernos” nos quais Lenin preparava seus textos. Quem destaca a leitura que Lenin fez de A acumulação do capital são os professores colombianos Manuel Quiroga e Daniel Gaido, que mencionam duas curiosas cartas de Lenin comentando o livro de Rosa, ambas citadas à página 126. Na primeira delas, que nos diz muito sobre a recepção do desta obra, Lenin escreve para Pannekoek: “Ainda não li o livro de Rosa Luxemburg, mas a observação que você fez a ela é totalmente correta do ponto de vista teórico”. Na segunda, para Kamenev, conta assim: “Li o livro novo de Rosa, A acumulação do capital. Ela se meteu em uma confusão espantosa. Distorceu Marx. Estou muito contente que Pannekoek e Eckstein e Otto Bauer a tenham condenado todos unanimemente e dito contra ela o que eu disse em 1899 contra os populistas”. Quiroga e Gaido chamam a atenção para o fato de que a repercussão negativa entre a ala centrista da social-democracia era esperada, mas as críticas à esquerda (como Lenin – para quem o debate de Rosa era o mesmo dos populistas – e Pannekoek – para quem o problema teórico dela nem mesmo existia) surpreenderam Rosa. Ainda sobre Lenin, Quiroga e Gaido, retomando aquela mesma carta a Kamenev, citam que ele tinha vontade de escrever um texto sobre A acumulação do capital, mas que nunca passou dos esboços, que podem ser conferidos em https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1913/apr/rl-acc-capital-notes.htm. Por fim, toda a ala radical acabou considerando que a obra mais importante para a compreensão marxista sobre o imperialismo era O capital financeiro, publicada por Hilferding – um autêntico representante da ala centrista liderada por Kautsky – em 1910, ou seja, no exato ano em que se deu o racha na socialdemocracia alemã no qual Rosa romperia definitivamente com esse grupo. Sob nosso ponto de vista, essas observações também jogam em favor de Rosa, que, participante ativa daquele grupo, tinha mais condições de perceber a importância de se opor às teses centristas bem antes de Lenin tê-lo percebido. 1002

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Para Rosa, naquele momento, tratava-se de vincular as raízes do imperialismo não na maldade da burguesia ou em qualquer outra variável passível de ser disputada na “esfera pública” ou no parlamento, mas em um pensamento que deve ter por base as leis da acumulação do capital e também deva ser posta em sintonia com essas leis, visto que em seu conjunto o imperialismo não passa, empiricamente, de um método específico de acumulação. (...) Qualquer que seja a maneira de estabelecer as molas propulsoras intrínsecas do imperialismo, uma coisa é, de qualquer forma, clara e notória: sua natureza consiste na expansão do domínio do capital (proveniente dos países capitalistas mais antigos) por novas regiões, bem como na competição econômica e política desses países, objetivando o domínio das referidas regiões. 1003

Do ponto de vista daquele debate específico – que ela não imaginava em 1912 que assumiria a forma que veio a assumir nos anos imediatamente posteriores – trava-se de perceber que, como Marx “admite (no volume II de Das Kapital) que o mundo inteiro já constitui

‘uma só nação capitalista’ e que as demais formas econômicas e sociais

desapareceram”,

“como explicar então o imperialismo existente dentro de uma

sociedade dessas em que já não há espaço para ele?” 1004. Nas palavras de Luxemburg: “foi nesse ponto que eu me vi compelida a apresentar minha crítica1005”. Nossa hipótese de leitura, portanto, é que a “polêmica” não se pauta por malentendidos fundados na incapacidade de Rosa em se aperceber que os esquemas eram apenas esquemas – e que não deveriam ser “superdimensionados”. Isso estava claro desde A acumulação, e se torna ainda mais explícito em Anticrítica. Para ela, a hipótese da existência teórica de uma sociedade constituída de capitalistas e trabalhadores exclusivamente, hipótese que, em si mesma, é oportuna e se justifica plenamente para fins específicos de análise – fato que ocorre com referência à análise do capital individual e dos métodos de espoliação no volume I de Das Kapital –, quis parecer-me inoportuna e injustificada no caso da acumulação do capital social total. Como essa acumulação representa o processo histórico, a acumulação do capital progride do princípio ao fim em um meio constituído de formas pré-capitalistas várias, em confronto político constante, mantendo intercâmbio econômico interminável com as mesmas. Como captar então esse processo e as leis de sua dinâmica interna corretamente no âmbito de uma ficção teórica exangue que afirma não existirem todo esse meio, toda essa luta e todos esses efeitos recíprocos. É exatamente nesse particular que me parece coadunar-se perfeitamente com o espírito da teoria marxista a necessidade de abandonar-se, então, o pressuposto de que parte Marx no volume I de Mesma página. Páginas 336 e 337. 1005 P. 337. 1003 1004

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Das Kapital e de abordar a acumulação como processo total, partindo da base concreta da troca material realizada entre o capital e seu ambiente histórico. Procedendo dessa maneira, quer parecer-me que obteremos, sem maior esforço, a explicação direta do processo a partir das teorias básicas de Marx, em harmonia completa com as partes restantes de sua obra principal referente à Economia. 1006

Do ponto de vista teórico, não existe justificativa para a intensidade da contestação de suas propostas, uma vez que “Marx colocou, de fato, a questão da acumulação do capital total, mas não chegou a respondê-la1007”. Para Rosa, inclusive, parecia um ponto pacífico que “o encontro da solução desse problema, como a de muitos outros, iria caber obviamente a seus discípulos1008”. Assim, em sua autoanálise, minha obra Acumulação constitui uma dessas tentativas feitas nesse sentido. A solução por mim apresentada poderia ser considerada correta, ou errada, ser criticada, contestada, completada, ou conduzida a outra, mas nada disso aconteceu. Aconteceu o totalmente inesperado: os ‘especialistas’ declararam simplesmente não haver problema alguma a resolver! Entenderam que a exposição feita por Marx no volume II de Das Kapital constituía, por si só, a explicação suficiente que esgotaria o problema da acumulação. Segundo eles, Marx provava, claramente (pelas fórmulas apresentadas) que o capital tem excelentes condições de crescimento, de expansão da produção, desde que no mundo não exista outra forma de produção além da capitalista; que essa produção constitui seu próprio mercado, e que somente minha total incapacidade de compreender o abecê do modelo marxista poderia levar-me a descobrir a existência de um problema com referência ao assunto. 1009

Deste modo, de uma maneira completamente tosca e contrária inclusive a outros textos do mesmo grupo citados em Anticrítica, um problema que intrigou toda a Economia Política desde seus primórdios até sua crítica marxiana, é considerado “inexistente” pelos críticos de Rosa (que apresenta toda essa discussão na Seção II de A acumulação). Além disso, a afirmação de que esse problema não existe ignora completamente (...) a grande atração que a produção capitalista sente pelos países nãocapitalistas, desde que ela surgiu pela primeira vez no cenário histórico mundial, pode ser acompanhada qual fio indicador em toda a sua evolução e vem aumentando significativamente até que, de 25 anos para cá, em plena fase do imperialismo [grifo nosso], praticamente converteuse no fator determinante e dominante da vida social. De fato, igualmente, todo mundo sabe que jamais houve, nem mesmo existe hoje, país algum em que só haja produção capitalista, ou só existam capitalistas e trabalhadores assalariados. Essa sociedade hipotética Mesma página. Mesma página. 1008 Mesma página. 1009 Mesma página. 1006 1007

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ajustada às necessidades de argumentação apresentada no volume II de Das Kapital na realidade não existe em lugar algum. Mesmo assim os ‘especialistas’ oficiais do marxismo declaram que o problema da acumulação não existe, que Marx já resolveu tudo imediatamente. 1010

E assim como argumentamos que não nos parece fazer sentido que Rosa empreendesse tanto esforço apenas para refutar posições pessoais e questões “puramente teóricas”, é importante que acompanhemos o que a autora afirma da prática da social-democracia que deriva, segundo ela, da recusa da tese de que o capitalismo é um eterno relacionar-se com formas não-capitalistas. A primeira questão é a dificuldade de orientação quanto ao fato de que o capitalismo é uma sucessão de crises periódicas. Além disso, não consegue estabelecer os limites da ordem econômica capitalista que fazem do socialismo não apenas uma “opção” das classes trabalhadoras, mas uma “necessidade histórica”. Por fim, a partir da consideração de que a produção capitalista poderia vir a assumir um “mercado autoconsumidor suficientemente

amplo” e

também permitir “uma

expansão

correspondente ao valor integralmente acumulado”, “torna-se difícil entender outro fenômeno que acompanha o desenvolvimento moderno: a pressa observada na caça aos mercados mais longínquos e a exportação de capitais, os dois fenômenos mais marcantes do imperialismo de hoje [grifo nosso]”. A realidade capitalista é eivada por completo de relações com as formas sociais não-capitalistas – mesmo em nossos dias, conforme demonstram Harvey e Loureiro, por exemplo – e independentemente de qualquer modelo teórico, “todo mundo sabe que o intercâmbio com os camponeses e com os artesãos, ou seja, com produtores não-capitalistas, constitui, na própria Europa e em qualquer país, um desses fenômenos banais que ocorrem diariamente a um palmo de nosso nariz; que este fenômeno constitui mesmo uma das condições inevitáveis da existência da indústria capitalista”. Assim, “seria absurdo considerar que o desenvolvimento capitalista fosse historicamente possível a partir de um capital exclusivamente dependente de seus próprios meios de produção e de consumo”. 1011 Que se faça notar: não é que o capitalismo não fosse historicamente possível, mas que essa formulação de capitalismo é equivocada, porque o capitalismo não se comporta como a formulação diz que ele se comporta. 

1010 1011

P. 338. P. 368.

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Outra questão que se mostra muito importante para os debates sobre o imperialismo está no estreito vínculo entre o que Rosa entende (em 1915, no Anticrítica) por “necessidade histórica” do socialismo enquanto um enfrentamento tanto do imperialismo quanto do capitalismo. Em seus próprios termos, que soam estranhos quando se parte da hipótese segundo a qual a autora supostamente defenderia que o imperialismo é apenas um fenômeno universal da história do capitalismo e não apresentaria nada de novo enquanto realidade concreta a ser superada: Somente para os ‘especialistas’ é que o socialismo (como fim) e o imperialismo (como estágio preparatório para o socialismo) deixam de constituir uma necessidade histórica. Assim, o primeiro transforma-se em louvável decisão da classe operária e o segundo em simples obsessão da burguesia. 1012

Ainda para ela, essa visão do centro encarnado no SPD seria, inclusive, uma “verdadeira jóia em termos de concepção marxista da História”, que ignora que a relação das sociedades capitalistas com formas sociais não-capitalistas “[...] é a realidade diária desde o início, do primeiro até o dia final da história do capitalismo1013”. Para ela, não se trata apenas de retificar tal ou qual elemento da doutrina marxista ou de seu espírito, mas reafirmar que, com ou sem guerra, com o imperialismo mais ou menos desmascarado, o combate ao capitalismo e à violência que lhe é eminentemente constitutiva é a tarefa histórica do socialismo que, por sua vez, ganha força justamente por conta da inevitabilidade lógica do fracasso do capital em dar conta, no longo prazo, das condições de reprodução social total. Já o projeto da social-democracia encarnado por Bauer, por seu turno, segundo Rosa, consistiria em “[...] provar que a produção capitalista e a acumulação também florescem e se desenvolvem em condições que nenhum mortal jamais encontrou na realidade. E é com essa base que ele pretende enfrentar o problema do imperialismo1014”. Insistimos: a questão de Rosa não é apenas, ou não é predominantemente sobre a crítica aos esquemas marxistas da reprodução, pois ela sabe perfeitamente – e isso é muito claro em diversas passagens de A acumulação que a análise de Marx não visa a nenhuma ‘sociedade capitalista isolada’ e coexistente ao lado de outra não-capitalista, preexistente e totalmente P. 347. P. 368. 1014 P. 394. 1012 1013

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diferente; e é igualmente certo que nem mesmo cheguei a mencionar nenhuma sociedade desse tipo onde quer que seja. Essa idéia tola é fruto da fantasia teórica de Otto Bauer; nasceu como a estátua de Vênus, como produto da espuma do mar. Basta lembrar a formulação que é dada por Marx na apresentação de seus princípios básicos. [...] Parece tudo perfeitamente claro. O que Marx pressupõe não é, pois, a concepção infantil de uma sociedade capitalista, estabelecida na ilha de Robinson Crusoé, florescendo ‘isoladamente’, oculta, longe dos continentes nãocapitalistas. Não é a concepção de uma sociedade em que o desenvolvimento capitalista chegou a atingir o grau máximo de sua evolução (visto sua população ser constituída apenas de capitalistas e de proletários assalariados) e que desconhece o artesanato e a classe camponesa, ou que não apresenta nenhuma ligação com o mundo nãocapitalista circundante. A hipótese marxista não constitui nenhum produto absurdo da imaginação, mas é uma ficção teórica. Marx pressupõe a existência de uma tendência real do desenvolvimento capitalista. Ele pressupõe já alcançado o estágio do domínio geral e absoluto do capitalismo no mundo inteiro, que já se tenha chegado ao ponto extremo de desenvolvimento do mercado mundial e da economia universal, ao ponto em que o capital e o desenvolvimento (tanto econômico como político) vêm, de fato, perseguindo. Marx orienta, isso sim, sua análise em conformidade com a real tendência do desenvolvimento histórico do capitalismo cuja meta final já pressupõe previamente alcançada. Do ponto de vista científico e no tocante à análise da acumulação do capital individual, esse método é perfeitamente aceitável e adequado (conforme já fiz constar de meu trabalho), não obstante o fato de o mesmo fracassar e conduzir, em minha opinião, ao erro com referência ao problema central da análise, ou seja, no tocante à acumulação do capital social total. (p. 394) Se a exemplo de Marx admitimos igualmente a hipótese de constituir fato consumado ‘o domínio geral e exclusivo no mundo inteiro da produção capitalista’, isso exclui, de fato, a existência do imperialismo, deixando de haver qualquer possibilidade de encontrar-se para ele uma explicação, visto que por hipótese ele encontra-se historicamente superado, liquidado, encerrado. Essa hipótese tampouco nos permite descrever e explicar o processo imperialista, como seria impossível descrever ou explicar o processo de decadência do Império Romano, por exemplo, partindo da hipótese de que já se instalou na Europa o domínio geral do feudalismo. Se os epígonos ‘especialistas’ de Marx se confrontassem, por exemplo, com o problema de colocar em sintonia, estabelecendo uma relação causal entre o imperialismo hodierno e a teoria da acumulação, da maneira como essa se encontra esboçada no fragmento pertinente ao volume II de Das Kapital, forçosamente teriam de optar por uma destas duas saídas. Teriam de negar a necessidade histórica do imperialismo, ou teriam de imitar meu exemplo, seguido em meu trabalho – abandonar a hipótese de Marx como equívoca, passando a analisar o processo da acumulação sob o prisma das condições históricas reais existentes: na condição de desenvolvimento capitalista em interação constante e recíproca com o meio não-capitalista. 1015

1015

P. 395.

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Para Rosa, essa forma de pensar é em grande medida responsável pelo “fiasco irreparável da social-democracia, ao qual assistimos hoje com referência á Guerra Mundial1016”, ainda que não de modo completamente imediato, uma vez que é certo que nem a tática de combate, nem mesmo a atitude assumida perante a guerra tem qualquer relação direta com o fato de encararmos o volume II de Das Kapital de Marx como obra fechada e completa, ou de vermos nele um simples fragmento de sua obra; pouco importa igualmente se acreditamos ou se deixamos de acreditar na possibilidade de verificar-se a acumulação em uma sociedade capitalista ‘isolada’, ou não, se concebermos, de uma ou de outra forma, os esquemas marxistas da reprodução. Milhares de proletários são bons e valentes defensores das metas do socialismo, mesmo não tendo nenhum conhecimento dos problemas que acabamos de citar; eles o são porque conhecem os princípios básicos da luta de classes, ou em função de um instinto incorruptível de classe, por força da tradição revolucionária do movimento. Contudo, existe sempre, ou pelo menos em boa parte, uma correlação estreita entre a concepção ou abordagem dos problemas teóricos e a práxis dos partidos políticos. Durante a década precedente à Guerra Mundial, a social-democracia alemã, metrópole internacional da vida espiritual proletária e modelo perfeito da harmonia entre os domínios teórico e prático, já apresentava sinais de perplexidade e de cristalização de ambos os domínios. Esse mesmo imperialismo que sobremaneira dominava a vida pública também pôs em cheque o estado-maior teórico, bem como o político, da social-democracia. Assim como o majestoso e fechado conjunto arquitetônico da socialdemocracia oficial da Alemanha acabou por revelar-se uma perfeita aldeia potemkiniana ao enfrentar sua primeira prova histórica de âmbito universal, o conhecimento teórico ‘especializado’, apenas aparente, e a infantilidade do marxismo oficial (que abençoavam, a qualquer preço, qualquer que fosse a práxis adotada pelo movimento) mostraram ser simples cenário que, com toda a sua pompa, apenas servia de escudo para um rigor dogmático intolerável e arrogante para cobrir sua incerteza intrínseca e sua total incapacidade de atuação. Com essa árida rotina que nada mais sabia fazer senão insistir na ‘velha tática aprovada’, ou seja, na atuação de cunho exclusivamente parlamentar, combinavam perfeitamente os epígonos teóricos que tanto se apegam às fórmulas do mestre, mas negam o espírito que anima sua doutrina. 1017

Sua análise, sob nosso ponto de vista, diz muito sobre as interpretações contemporâneas do imperialismo, e, neste sentido, concordamos que “a correlação que se estabelece com a práxis se nos apresenta bem mais tangível, em nosso caso, do que à primeira vista possa parecer” porque, em síntese: tratam-se de “dois modelos diversos de combate ao imperialismo”.

1016 1017

P. 398. P. 399.

455

Primeiro vejamos como seria o “modelo” que ela defende. Baseado na hipótese de leitura segundo a qual “a análise marxista da acumulação fora projetada em uma época na qual o imperialismo ainda não se apresentava no cenário mundial”. Assim, a hipótese fundamental e ponto de partida para a análise de Marx é o pressuposto segundo o qual o domínio definitivo e absoluto do capital no mundo exclui, de antemão, a existência de qualquer processo imperialista. Mas é precisamente nisso que consiste a diferença entre o engano cometido por Marx e um erro grosseiro da lavra de um de seus epígonos – o erro do mestre pode revelar-se frutificante e heurístico. O problema que foi plantado no volume II de Das Kapital e deixado em aberto – a tentativa de verificar como se processa a acumulação sob o domínio exclusivo do capitalismo – revela ser insolúvel. É que sob essas condições a acumulação é impossível. Basta traduzir essa contradição teórica e aparentemente irremovível em termos de uma dialética histórica (como convém ao espírito da doutrina marxista e ao modo de pensar de seu autor), para descobrir como essa contradição do esquema de Marx reflete bem a trajetória do capital, seu destino e seu fim. Em meio exclusivamente capitalista a acumulação torna-se completamente impraticável. É por essa razão que desde o início de seu desenvolvimento o capital apresenta essa tendência de expansão exercida sobre as camadas e os países não-capitalistas, de arruinar o artesanato e a classe agrícola, de proletarizar as classes médias, de estruturar sua política colonialista e a ‘conquista de novos mercados’, de disciplinar a exportação do capital. A existência e o desenvolvimento do capitalismo só foram possíveis, desde o início, graças a uma expansão constante em novos domínios da produção, ou em novos países. Essa expansão conduz, no entanto, a uma colisão de interesses entre o capital e formas pré-capitalistas de sociedade, por força da referida tendência universal do capital. Daí resultam a violência, a guerra, as revoluções. Em resumo: o capitalismo alimenta-se, do princípio ao fim, apenas de catástrofes. 1018

Ainda de acordo com este modelo, “a acumulação do capital prossegue e se expande à custa das camadas ou dos países não-capitalistas; ela os corrói e os destrói em ritmo cada vez mais acelerado”. a tendência geral e a finalidade desse processo é alcançar o domínio mundial e exclusivo da produção capitalista. Uma vez alcançada essa meta, entra em ação o esquema de Marx. A acumulação, ou seja, a expansão subsequente do capital, torna-se impossível, o capitalismo entra em um beco sem saída. Deixando de funcionar como veículo histórico para o desenvolvimento das forças produtivas, o capitalismo chega, dessa maneira, a atingir seu limite econômico objetivo. Concebida em termos dialéticos, a contradição do esquema marxista da acumulação é apenas a contradição real que se estabelece entre a tendência de expansão ilimitada do capital e a barreira que ele estabelece, contra si mesmo, pela destruição de todas as outras formas de produção; é a contradição que se estabelece entre as poderosas 1018

Mesma página.

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forças de produção que o capital desperta, no mundo inteiro, por meio de seu processo de acumulação, e a estreita base que ele estabelece por si mesmo por meio das leis da acumulação. O esquema marxista da acumulação constitui, pois, a bem dizer, em sua insolubilidade, o prognóstico perfeito do inevitável ocaso econômico do capitalismo, e tudo isso como resultado final do processo imperialista de expansão, desse processo que, segundo a hipótese de Marx, tem como meta específica concretizar a hegemonia geral e indivisa do capital. 1019

E novamente se enuncia a tese segundo a qual o imperialismo hodierno não representa, como em Bauer, um simples prelúdio da expansão do capital, mas constitui a última fase de um processo histórico de desenvolvimento: é o período da concorrência geral e mundial mais acirrada dos Estados capitalistas, da luta pela conquista do que sobrou das regiões não-capitalistas ainda existentes neste mundo. 1020

Assim, portanto, para ela, o imperialismo – “a catástrofe econômica e financeira” – é uma forma especial da organização capitalista que “constitui, portanto o elemento final dessa fase final, a forma normal de ser do capital” “da mesma maneira que já o fora em sua fase de formação, durante a ‘acumulação primitiva’”. Esse salto, contudo, é um tanto mais complicado, inclusive porque, como dissemos, nos parece que a questão somente ficaria significativamente mais clara com Lenin dois anos depois, mas o exemplo que segue essa formulação pode nos ajudar a compreender o que Rosa está propondo. Para ela, assim como a descoberta da América e das rotas marítimas para a Índia não representou apenas um esforço titânico do espírito humano e da civilização (como descreve a saga liberal), mas se associa inseparavelmente a um genocídio igual ao praticado por Herodes, a um assassinato em massa dos povos primitivos do Novo Mundo, e a um comércio enorme de escravos com os povos africanos e asiáticos, é impossível separar a fase imperialista [grifo nosso] da expansão econômica do capital, de toda aquela série de conquistas de colônias e das guerras mundiais às quais assistimos. O que melhor caracteriza o imperialismo enquanto luta final de concorrência pela hegemonia capitalista não é apenas a energia e a versatilidade da expansão – sinal específico de que começa a fechar-se o círculo do desenvolvimento –, mas também o contragolpe sofrido pelo capital nessa luta decisiva pela expansão, com a consequente volta das zonas pretendidas a seus países de origem. O imperialismo leva, assim, a catástrofe (ou seja, sua forma de existência) da região periférica de seu desenvolvimento de volta para o respectivo ponto de partida. Depois de a expansão do capital ter submetido, durante quatro séculos, a existência e a cultura de todos os povos não-capitalistas da Ásia, África, América e Austrália a convulsões ininterruptas e abandonado os mesmos à sua destruição em massa, 1019 1020

P. 400. Mesma página, grifos nossos.

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passou agora a criar, para os próprios povos civilizados da Europa, uma série de situações catastróficas cujo resultado final só poderá significar o fim da cultura europeia, ou a transição para o modo de produção socialista. À luz dessa concepção a posição do proletariado em face do imperialismo assume a forma de confronto com o domínio do capital. A linha tática das atitudes que ele deve assumir é dada pela alternativa histórica oferecida. 1021

Mas, como o outro “modelo”, Rosa denuncia que “São bem diversas, no entanto, as diretrizes vistas sob o prisma do marxismo ‘especializado’”. A crença de que existe a possibilidade de verificar-se a acumulação em uma ‘sociedade capitalista isolada’, de que ‘o capitalismo também é concebível sem expansão alguma’, é uma formulação teórica que se refere a uma tendência tática bem definida. Essa concepção procura caracterizar a fase do imperialismo não como necessidade histórica nem como elemento explicativo do socialismo, mas como invenção maldosa de um punhado de interessados. Essa concepção procura levar a burguesia a crer que o imperialismo e o militarismo lhes sejam prejudiciais do ponto de vista de seus próprios interesses capitalistas, de modo a isolar, assim, o suposto punhado de aproveitadores desse imperialismo, e de entender a conveniência de se formar um bloco de proletários reforçado por larga faixa de burgueses com a finalidade de ‘abafar’ o imperialismo, de mata-lo de fome por meio de um ‘desarmamento parcial’, para ‘arrancar-lhe o ferrão’! Assim como o liberalismo decadente vale-se da monarquia mal-informada para invocar a outra, passível de uma glorificação maior, o ‘marxismo de centro’ procura partir da burguesia mal-informada e comunicar-lhe o que não sabe; ignorará as catástrofes provocadas pelo imperialismo e a luta das grandes potências pela ditadura universal da espada, para aderir de preferência aos tratados de desarmamento, ou dedicar-se à pacífica federação das nações democráticas. Assim, a discussão geral com referência à resolução da contradição histórica que existe entre o proletariado e o capitalismo transforma-se na utopia de um compromisso histórico entre o proletariado e a burguesia, visando ao ‘abrandamento’ dos contrastes imperialistas existentes entre os Estados capitalistas. 1022

E foi assim, sempre para ela, que a

1021 1022

Páginas 400 e 401. P. 401.

458

[...] atitude assumida por esse grupo de teóricos por ocasião da Grande Guerra [...] a indignação crescente da classe operária tão bem organizada e treinada transformou-se, de repente, em uma política de ‘abstenção do voto’ nas decisões históricas que marcara época, ou numa política de ‘silêncio’, até o momento de soarem os sinos anunciando a paz. 1023

Sendo assim, seu julgamento final é o de que “a clara compreensão do nexo causal implicado é, pois, um dos pressupostos mais importantes para a reintrodução de uma política proletária à altura de sua responsabilidade em um período imperialista1024”. 

Não deixa de ser tentador conjecturar sobre se, procedendo da maneira como principia, partindo das questões mais simples e gerais (todas as sociedades) para as questões mais complexas e específicas (ao capitalismo) com todas as dificuldades imagináveis – especialmente se seguirmos a linha interpretativa que credita a ela uma péssima leitura sobre Marx e diversas intuições geniais [a tese da bruxaria] – seria possível que Rosa alcançasse as mesmas questões pelas quais é valorizada na historiografia sobre o imperialismo. Parece-nos que não. Do contrário, nos parece muito mais razoável supor que ela não fosse assim tão “genial e trapalhona” – uma espécie de heroína de filmes da seção da tarde – mas, do contrário, uma pesquisadora extremamente

séria e

competente,

como,

aliás,

era considerada

por seus

contemporâneos – desde a população proletária menos estudada até os altos escalões da social-democracia internacional que a tinham por uma delegada entre as mais destacadas; passando evidentemente pelo SPD que concedeu a ela o trabalho como professora na Escola do Partido e como redatora e editora de importantes jornais; sem deixarmos de mencionar o reconhecimento que tinha por parte dxs estudantes e a atenção policial que despertava constantemente e que a levou diversas vezes para a prisão antes de ser assassinada brutalmente como estratégia de ataque contra as organizações da classe trabalhadora. Para nós cumpre destacar que essa senhora que a historiografia trata geralmente com certo desdém e raras vezes é tomada para além dos erros e das “intuições” figurava certamente entre as intelectuais – homem ou mulher – mais importantes de sua época e a autoridade que tinha sobre os assuntos do marxismo – a despeito de divergências por ela ser “excessivamente radical” – era reconhecida unanimemente. 1023 1024

P. 402. Mesma página.

459

Mas o fato é que, como a autora começa a Anticrítica: os livros têm sua história. A história do A acumulação do capital começa, como indica no prefácio, de sua tentativa de explicar Marx para estudantes e ganha força em sua tentativa de contribuir para a compreensão e a luta contra o imperialismo – que ela vinha procurando abordar e entender em diversos outros textos, discursos, panfletos, teses etc. Ali se tratava de procurar compreender as dificuldades de explicar “a atual conjuntura” a partir de um arcabouço teórico sustentado na premissa teórica de que o mundo poderia ser analiticamente dividido somente entre capitalistas e trabalhadores. Não tivesse ela se metido a criticar o cânone sagrado – profanado cotidianamente – é provável que não tivesse recebido a enxurrada de críticas que recebeu. Mas nos interessa compreender – para além da heresia – em que calo ela pisou – ou, para sermos mais precisos, porque entre 1912 (A acumulação do capital) e 1915 (Anticrítica) muita coisa ia mudar – quais posições o livro dela viria a atingir. Esperamos ter deixado alguma contribuição para a reconstituição dessa etapa da historiografia sobre o imperialismo, que julgamos de fundamental

importância.

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Capítulo 10. Alguns comentários sobre a interpretação de Rudolf Hilferding sobre o Imperialismo “Eu também, um dia fui uma brasa e acendi muita lenha no fogão”

(Adoniran Barbosa)

Um ano após a publicação de O Capital Financeiro, dois dos mais influentes e respeitados intelectuais do marxismo internacional à época – Otto Bauer e Karl Kautsky – haviam apontado o livro de Hilferding como uma das mais importantes obras marxistas desde Marx e Engels. Mais do que isso, ambos os autores apontaram O Capital Financeiro como um tipo de continuação d'O Capital – a mais importante contribuição marxista para a compreensão do capitalismo1025. Hoje, restam poucas dúvidas acerca da enorme influência que esta obra provocou na historiografia do imperialismo – e na história do marxismo em geral. Mesmo à época, seu reconhecimento foi praticamente unânime – sobretudo nas alas mais “radicais”, empenhadas que estavam na luta contra o “reformismo”1026. Não nos restam dúvidas de que a análise cuidadosa das contribuições de Hilferding sobre o entendimento das relações sociais capitalistas ainda pode trazer muita luz sobre as formas que o imperialismo assume em nossos dias, e certamente, mesmo diante de uma historiografia já centenária sobre O Capital Financeiro, ainda há Uma versão preliminar deste capítulo foi apresentada no Colóquio Internacional Marx e o Marxismo 2013: Marx 130 anos depois, organizado pelo NIEP-Marx na Universidade Federal Fluminense (UFF), na mesa “A economia política de Rudolf Hilferding”, sob o título Estado e luta de classes n’O Capital Financeiro de Rudolf Hilferding. 1026SMALDONE, p. 40. Não deixa de ser notável a afirmação do biógrafo de que, mesmo sendo resultado do trabalho de um representante solidamente postado na facção centrista da social democracia “Indo além da análise reformista do imperialismo desenvolvida pelo economista político liberal reformista John A. Hobson, e levando à frente os trabalhos marxistas contemporâneos, o estudo de Hilferding sobre o capitalismo representou o ponto de partida para todas as futuras análises radicais do imperialismo e do desenvolvimento capitalista”. A nós, nos parece que mesmo em nossos dias a interpretação das teses de Hilferding é decisiva para o posicionamento político frente às questões centrais do capitalismo. Aqueles que tendem a enfatizar a dominância, a preponderância ou a supremacia do elemento monetário do capital financeiro – e que, portanto, tendem a destacar o caráter “especulativo” do capitalismo contemporâneo como se estivesse separado ou “autonomizado” da “produção” – tendem a apresentar visões hobsonianas acerca do parasitismo dos financistas; ao passo que aqueles que compreendem o capital financeiro enquanto síntese entre as formas parciais – corroborados pelos principais exemplos históricos elencados pelo autor, quais sejam as ferrovias e demais grandes obras infraestruturais; além de outras formas de monopólios – tendem a rejeitar as possibilidades de reforma do sistema financeiro enquanto projeto político, e se aproximar da leitura leninista acerca do caráter parasitário do capital em geral e da necessidade da revolução socialista. 1025

462

muito a ser dito, sobretudo quando nos colocamos diante desse “clássico” com as perguntas de nosso próprio tempo, procurando lançar luz a elementos não de todo esgotados nesta vasta historiografia que nos precede. De nosso lado, pensamos que um bom ponto de partida para repensar as teses de Hilferding passa pela reflexão sobre a própria “natureza” da obra, com o intuito de posicioná-la nos marcos das discussões sobre o imperialismo capitalista em geral, ou seja, o imperialismo capitalista em qualquer lugar e em qualquer época. Para tanto, pensamos que convém partir do fato – em geral negligenciado – de que O Capital Financeiro, cuja potência teórica é inconteste, não é somente um texto de estudo, mas uma obra de intervenção e diálogo direto com aqueles que se colocavam então na luta anticapitalista. Partindo de método semelhante à estruturação da obra O capital, Hilferding escreveu, inequivocamente, para a luta anticapitalista daquele momento, uma vez que – como o próprio autor aponta desde o subtítulo – tinha por objetivo principal a apresentação de “uma análise da etapa mais recente do capitalismo”. Mas o que também nos parece importante destacar é que, enquanto a obra de Marx se pretendeu uma “crítica da economia política” e, portanto, teve por objetivo primário desmascarar as ideologias do modo de pensamento burguês – com as quais dialoga diretamente – para – a partir dessa crítica – procurar desvelar os movimentos contidos nas leis gerais de reprodução total do modo de produção capitalista; o livro de Hilferding dialoga diretamente com as categorias marxianas e tem como objetivo direto uma “atualização” destas de acordo com as características “mais recentes”, ou, como o autor se refere no prefácio, mais “modernas”1027. Em Hilferding, portanto, o diálogo com os “economistas vulgares”, ou “pequeno-burgueses” se dá de forma indireta, via Marx. Além disso, temos que considerar que, diferentemente de Marx, Hilferding pôde – inclusive porque escreveu num momento posterior – partindo da análise marxiana, analisar o modo de produção capitalista em seu desenvolvimento histórico, no qual algumas das tendências já apontadas por Marx haviam se tornado mais cristalinas – ou “maduras”, como se costuma preferir – e “novas” contradições se faziam notar. Mas é importante – principalmente porque O Capital Financeiro, assim como A acumulação do capital, foi publicado no Brasil em uma coleção para economistas – que destaquemos o fato de que, embora nas palavras do próprio Hilferding, sua obra tenha 1027HILFERDING,

p. 9. Todas as citações de O Capital Financeiro são traduções a partir da tradução para o espanhol citada na bibliografia. Procuramos sempre que necessário cotejá-la com a tradução inglesa disponível no sítio marxists.org e com a tradução brasileira da coleção Os Economistas.

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por objetivo “compreender cientificamente as manifestações econômicas da evolução recente do capitalismo”1028, entendemos que essa ênfase nessas manifestações ditas “econômicas” não se deve a um suposto “economicismo” – conforme já abordamos anteriormente. Do contrário, o que nos parece importante sublinhar, é que, inclusive a acusação de “economicista” que recai sobre O Capital Financeiro se deve em grande medida à própria semelhança metodológica com O Capital – considerado muitas vezes como um livro de economia. Essa nos parece, contudo, uma leitura superficial de ambos os textos. Assim como O Capital não é, estrito senso, um livro de Economia mas, pelo contrário, um livro contra a Economia Política, nos parece que o mesmo pode ser afirmado quanto a O Capital Financeiro. Tanto numa quanto noutra, a predominância de conceitos que posteriormente foram engolidos por uma ciência até então apenas incipiente, e que posteriormente espraiou-se para outras “disciplinas” correlatas, não se deve à predileção destes autores, ou à sua visão de mundo inerentemente “economicista”. Do contrário, uma vez que o método de ambos os autores – diretamente em Marx, indiretamente em Hilferding – consiste na “crítica da economia política” – ou seja, a crítica de uma ideologia burguesa segundo a qual as categorias econômicas subsistem com autonomia frente às demais – não é de se espantar que as categorias “econômicas” tenham grande relevo ao logo do argumento. Mas como já tentamos defender anteriormente, o método do materialismo histórico não pode corroborar com esse fetiche, posto que busca uma análise totalizante e dialética dos fenômenos históricos. Em resumo: para nós, nem é economicista O Capital, nem tampouco é economicista O Capital Financeiro. 

Quanto ao trabalho de Hilferding, ainda há uma dimensão adicional, diferente da metodologia d’O Capital, que nos interessa destacar aqui: o próprio recorte temporal – “a etapa mais recente”. Se estivermos corretos, isso pode vir a ser importante por duas questões principais. A primeira delas, metodológica, é que o recorte temporal oferece uma vantagem em relação ao recorte teórico. Isso porque, se no recorte teórico é possível – ainda que indesejável – que se recorra a explicações “mecânicas” (“economia”, “política”, etc.), o recorte temporal exige, de partida, que se assuma a perspectiva da reconstituição dos fenômenos em suas várias dimensões ou, para sermos mais rigorosos, em sua totalidade – o que não quer dizer que todo aquele que disser que vai 1028Mesma

página 9

464

assumir uma perspectiva temporal assim o faça. Mas além dessa questão metodológica, nos parece que a maneira como Hilferding enquadra suas questões nos permite ultrapassar a esfera “econômica” em busca de outros elementos que se transformaram simultaneamente à concentração e à centralização do capital nesses processos de monopolização – tidos por “econômicos” – descritos pelo autor naquela virada do século XIX para o XX. Assim, podemos observar amplas transformações que se assumem “jurídicas”1029 ou “políticas”1030; para ficarmos em apenas mais dois exemplos de como se apresentam – reiteramos, a partir de uma concepção não-dialética de conhecimento – aparentemente separadas as transformações que podem ser entendidas como expressões das mesmas forças. Porque, a partir dessa concepção não-positivista – que sob nosso ponto de vista, é assumida por Hilferding – para muito além da “esfera econômica”, naquele período se gestaram mudanças estruturais, “profundas”, que afetaram o destino de grande parte do planeta na constituição histórica de um modo de produção, outrora restrito, que, desde então, se expandiu a uma velocidade espantosa, alterando radical e violentamente a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. Para além de muitas outras possibilidades de leitura dessa rica obra, o que procuraremos aqui é apontar para alguns dos elementos dessas transformações que podem ser encontrados – mesmo que de forma latente – no livro O Capital Financeiro e tentar extrair delas as implicações que nos ajudem a reconstituir a narrativa histórica desses pouco mais de cem anos que nos separam da sua publicação. Nosso objetivo principal aqui será reconstituir brevemente os elementos que Hilferding comenta sobre o desenvolvimento do Estado e das Lutas de Classes naquela então “mais recente etapa” do capitalismo com a hipótese de que aquelas alterações tiveram uma grande participação nessa expansão do modo de produção capitalista ao longo desse século ao qual nos referimos. A reconstituição da narrativa histórica do capitalismo que procure articular essas diversas esferas da existência – “econômica”; “jurídica”; “política” etc. – por seu turno, exige outro tipo de procedimento, que deve ser empreendido noutro momento.

1029Por

exemplo as transformações das leis que regulamentam e garantem a propriedade privada dos meios de produção nas sociedades por ações. 1030 Por exemplo na conformação de Estados imperialistas (interna e externamente).

465

10.1 O capital financeiro enquanto síntese das formas parciais do capital A tese de Hilferding é suficientemente conhecida, mas ainda assim nos parece que precisamos reconstituí-la em seus traços mais marcantes. Ainda no prefácio, Hilferding – levando a questão para onde pensamos que ela deve estar: as transformações históricas gerais – enuncia que as mais aparentes características do ‘moderno’ capitalismo são aqueles processos de concentração os quais, por um lado, ‘eliminam a livre concorrência’ por meio da formação de cartéis e trustes; e, por outro, trazem o capital bancário e o capital industrial a uma relação ainda mais íntima. Por meio desse relacionamento – como será demonstrado depois – o capital assume a forma de capital financeiro, sua expressão mais suprema e abstrata.1031

Conforme ele viria a demonstrar posteriormente, essa “eliminação da livre concorrência” é apenas aparente – é daí que advém a rivalidade interimperialista, afinal. Mas o que nos cumpre sublinhar é que, neste momento, para ele, “o mistério que sempre cerca a posição do capital se torna, neste caso, mais enigmática que nunca” e, deste modo, “o distinto movimento do capital financeiro, [...] parece ser independente, enquanto, na realidade, é um reflexo”. Conforme chamaremos a atenção mais à frente, esse jogo conceitual entre o que é o aparente “reflexo” e o que são os movimentos concretos – “as diversas formas que esse movimento assume” – é absolutamente central para a tese de Hilferding, e compõe o núcleo do seu método. A questão principal é o entendimento entre as formas mais gerais e suas manifestações atuais, diante do que Hilferding conclui que “na relação do capital bancário com o capital industrial, nós somente observamos, nas suas formas mais maduras, a mesma relação que pode ser encontrada nas mais elementares formas de dinheiro e capital produtivo1032”. Para que tenhamos em mente o essencial, cumpre que reconstituamos as passagens centrais dos dois capítulos nos quais Hilferding apresenta sua tese propriamente dita: os capítulos XIV e XV. No capítulo XIV – “Os monopólios capitalistas e os bancos: transformação do capital em capital financeiro” – aparece a dinâmica entre as formas parciais em processo de síntese, de modo que “a expansão da indústria capitalista desenvolve a concentração dos bancos” ao mesmo tempo em que “o sistema bancário concentrado é também um

1031 1032

Capital financeiro, p. 9 Mesma página.

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importante motor para a consecução do grau superior de concentração dos cartéis e dos trustes1033”. O que motiva esses processos em que “a cartelização dos bancos promove a cartelização das indústrias1034” é a mesma lógica: a acumulação, mas também, é claro, uma “maior segurança e regularidade dos rendimentos para as empresas cartelizadas1035” uma vez que “foram suprimidos os riscos da competição que, com frequência, anteriormente eram muito perigosos para a empresa individual 1036”. Além disso, como Hilferding destaca bem, “dessa forma aumenta a cotização das ações dessas empresas, o que significa maiores ganhos de fundador nas novas emissões” – que o autor viria a demonstrar que, no fim, a despeito das aparências, faz com que o capital seja ainda mais concentrado e a concorrência, portanto, ainda mais elevada. O que viria a modificar a dinâmica da sociedade como um todo a partir dessa síntese, no entanto, reside no fato de que esses “cartéis e trustes são empresas de grande potência de capital1037”, sendo que, neste processo de síntese, sempre aquela que tiver a maior potência de capital subordina as demais. Essa é uma explicação importante dos porquês de essa síntese, mesmo partindo da destruição dos elementos sintetizados, assumir como característica preferencial os traços do capital com maior potência (de valorização), ou seja, as formas menos amarradas pela produção. Mas como a questão principal do capital financeiro não é simplesmente a especulação, como se costuma ressaltar, mas a acumulação indiferente aos meios de acumulação, para a história da destruição das formas não capitalistas de vida é mais importante ressaltar que a partir dessa fusão, a “indústria atua com um capital muito maior do que aquele possuído pelos capitalistas industriais”, mas acaba por se tornar dependente de uma lógica de valorização mais parecida com a bancária, uma vez que “uma parte cada vez maior do capital da indústria não pertence aos industriais que o empregam”. Desta fora, os capitalistas – mesmo os que decidirem pela Mesma obra, p. 251. Mesma página. 1035 P. 252. 1036Mesma página. 1037 Na tradução que utilizamos, em espanhol, o termo aqui aparece como o apresentamos, “potência de capital”. Em inglês, o termo é capacity, enquanto em português é poder. Como não sabemos alemão, deixemos indicado que a tradução para cara um desses termos não nos parece significar exatamente a mesma coisa. Inclusive, essa não é a única vez em que as traduções parecem conotar significados distintos. Assim, procuramos cotejar essas três traduções (espanhol, português e inglês) no intuito de minimizar a dificuldade que reside no fato de não podermos ler no original, cientes de que isso ainda é muito insuficiente. Mas como diria aquele outro: “é o que tem pra hoje”. 1033 1034

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“produção”, “não podem dispor deste capital senão através dos bancos, que frente a eles representam o proprietário”. Mas “por outro lado”, devido a razões que carecem de ser explicadas, mas que não caberão aqui, a produção estrito senso, em uma corrida de expansão imperialista é extremamente lucrativo e, deste modo, cada vez mais “os banqueiros têm que fixar na indústria uma parte cada vez maior de seus capitais e assim, se convertem em um capitalista industrial em proporções cada vez maiores1038”. De onde vem a síntese, tão citada de Hilferding, chamo capital financeiro o capital bancário, isto é, o capital em forma de dinheiro, que deste modo se transforma realmente em capital industrial. Frente aos proprietários mantém sempre a forma de dinheiro, é investido por eles em forma de capital monetário, de capital produtor de juros (interesses), e podem retira-lo sempre em forma de dinheiro. Mas, na realidade, a maior parte do capital invertido assim nos bancos havia se transformado em capital industrial, produtivo (meios de produção e força de trabalho), e havia se imobilizado no processo de produção. Uma parte cada vez maior de capital empregado na indústria é capital financeiro, capital a disposição dos bancos e utilizado pelos industriais. [grifos dele] O capital financeiro se desenvolve com o auge da sociedade por ações e alcança seu apogeu com a monopolização da indústria. O rendimento industrial adquire um caráter seguro e contínuo, e, com ele, a possibilidade de inversão do capital bancário na indústria adquire uma extensão cada vez maior. Mas são os bancos que dispõem do capital bancário e quem o domina são os proprietários da maioria das ações bancárias. É evidente que, com a crescente concentração da propriedade, estas se identificam cada vez mais com os proprietários do capital fictício, que dá o poder sobre os bancos, e os do capital, que dá poder sobre a indústria. 1039

Assim, porque a forma mais potente subordina as demais e imprime a dinâmica dessa nova forma de capital, “à medida em que o capital mesmo, em seu grau superior, se converte em capital financeiro, o magnata do capital, o capitalista financeiro, vai reunindo em si mesmo a disposição de todo o capital nacional, em forma de domínio do capital bancário1040”, de modo que “o capital financeiro é a síntese do capital usurário e do capital bancário e, como estes, se apropria dos frutos da produção industrial, ainda que em um grau infinitamente superior1041”. Sob nosso ponto de vista – que não é unânime – isso implica em que, assim, conforme vimos dizendo sempre que esbarramos neste assunto, o capital em geral, nesta síntese, passa a ser o capital financeiro, de modo P. 252 e 253. P. 254. 1040 Mesma página. 1041 P. 255. 1038 1039

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que este se apropria do metabolismo total, inclusive em seus elementos industriais, que, sintetizados neste capital financeiro, passam a ser propriedade – nos dois sentidos – dele. Sob nosso ponto de vista, essa leitura fica mais clara com o desenvolver do capítulo XV – “A determinação dos preços de monopólios capitalistas: Tendências históricas do capital financeiro” – no qual Hilferding argumenta que no capital financeiro aparecem unidas em sua totalidade todas as formas parciais de capital. O capital financeiro aparece como capital monetário e possui, efetivamente, sua forma de movimento D-D’, dinheiro produtor de dinheiro, a forma mais geral e mais absurda de movimento de capital. Como capital monetário, é posto à disposição dos capitalistas produtivos nas duas formas de capital (portador de juros e fictício). Os bancos procuram gerir, ao mesmo tempo em que procuram transformar em capital próprio uma parte cada vez maior e dar-lhe assim ao capital financeiro a forma de capital bancário. O capital bancário se converte cada vez mais na simples forma – forma de dinheiro – do capital realmente ativo, isto é, de capital industrial. Ao mesmo tempo, a independência do capital comercial se elimina cada vez mais, uma vez que a separação entre capital bancário e capital industrial se elimina no capital financeiro. Dentro do mesmo capital industrial se suprimem os limites dos setores individuais mediante a associação progressiva de ramos da produção antes separados e independentes. A dizer, se reduz a divisão social do trabalho. A divisão dos distintos setores da produção, que só estão unidos pela ação da troca como partes de todo o organismo social – ainda que, por outro lado, a divisão técnica do trabalho dentro das empresas unidas se acentue cada vez mais. Assim, se extingue no capital financeiro o caráter específico do capital. O capital aparece como poder unitário que domina soberano o processo vital da sociedade, como poder que nasce diretamente da propriedade dos meios de produção, das riquezas naturais e todo o trabalho morto acumulado, e a disposição do trabalho vivo aparece como diretamente nascida das relações de propriedade. Ao mesmo tempo, se apresenta a propriedade, concentrada e centralizada nas mãos de algumas grandes associações de capital, contraposta diretamente à enorme massa de despossuídos. A questão da propriedade privada recebe aqui a sua expressão mais clara, inequívoca e agudizada, uma vez que a questão da organização da economia social se soluciona cada vez melhor com o próprio desenvolvimento do capital financeiro.1042 [grifos nossos]

Para nós, aqui, a questão é inequívoca: “no capital financeiro aparecem unidas em sua totalidade todas as formas parciais de capital” e, “assim, se extingue no capital financeiro o caráter específico do capital. O capital aparece como poder unitário que domina soberano o processo vital da sociedade”. Resta investigar, desta perspectiva, o que essas afirmações implicam em termos concretos, em especial a relação entre este capital financeiro e as novas formas de propriedade dos meios de produção. 1042

Mesma obra, p. 264-5.

469

10.2 O Estado e as Lutas de Classes em O Capital Financeiro É relativamente consensual que, em 1910, as concepções sobre o Estado no campo teórico do marxismo – que já contava com trabalhos importantes como “A origem da família da propriedade privada e do Estado”, de Engels; e “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, de Marx – ainda eram muito incipientes. Trabalhos importantes propostos por marxistas do gabarito de Lenin, Gramsci, Miliband, Poulantzas e Jessop – hoje “clássicos”, ainda que, uma vez mais, heterogêneos – ainda tardariam muito para fazer avançar as interpretações que Engels e Marx haviam formulado de maneira relativamente esparsa até então. Certamente O Capital Financeiro não está fora desse panorama. Do contrário, como já sugerimos, Hilferding empreendeu sua teoria a partir dos passos metodológicos que Marx havia desenvolvido em O Capital, relativamente atrelado – pelo próprio método, que visa desvelá-los – aos fetiches de um modo de ver o mundo burguês no qual supostamente se autonomizaria a esfera da “economia”. Hilferding, portanto, não desenvolveu uma “teoria marxista do Estado” – o que quer que isso signifique1043. Contudo, como também sugerimos na introdução, inclusive pelo corte temporal – “a etapa mais recente do capitalismo” – de O Capital Financeiro, este não se restringe à análise de uma esfera da existência – a “economia” – mas procura reconstituir os elementos de um período em que o modo de produção capitalista se transformou para muito além das formas de capital. Nesta tentativa de reconstituição do período, sobretudo na seção final, consagrada diretamente à análise da conjuntura, pensamos que Hilferding, mesmo sem desenvolvê-la teoricamente, apresenta ideias que podem ser muito frutíferas para o entendimento do Estado no modo de produção capitalista. Aqui, procuraremos reconstituir alguns dos elementos apontados por ele que julgamos pertinentes para essa compreensão. Para tanto, na contramão de uma grande parte das interpretações sobre este autor que julgam essas passagens “históricas” datadas e circunscritas ao caso alemão, procuraremos concentrar nossas atenções na parte V, que contém os capítulos de XXI a XXV1044. Nosso objetivo é demonstrar que,

Não pretendemos aqui argumentar em favor da visão de Hilferding sobre o Estado, mas apontar os elementos presentes no livro O Capital Financeiro. Temos razões, inclusive, para considerar que Hilferding comungou em determinados momentos com uma visão tosca acerca do Estado, conforme nos parece evidente no texto “State Capitalism or Totalitarian State Economy”, de 1940. 1044 Para uma refutação dessa hipótese de leitura segundo a qual Hilferding está preso ao caso alemão sugerimos a leitura de Pereira, 2013. 1043

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assim como a sua tese geral sobre o capital financeiro pode, em suas linhas gerais – enquanto modelo abstrato a ser dialeticamente contrastado com os casos concretos – fornecer elementos explicativos da dinâmica capitalista em geral – e não somente para o caso alemão – algumas das idéias contidas nessa última e fundamental parte do livro – que é precisamente aquela na qual o autor vai realizar a sua “análise da etapa mais recente do capitalismo” – podem nos ajudar no entendimento sobre a relação entre as diversas esferas da realidade – “economia”, “direito”, “política”, “sociedade” – no modo de produção capitalista desde então. Depois de empreender um cuidadoso – ainda que possivelmente equivocado1045 – estudo sobre o dinheiro e o crédito (primeira parte); sobre a mobilização do capital e do capital fictício (segunda parte); sobre a definição de capital financeiro que limita [ainda mais] a livre concorrência (terceira parte); e sobre a relação entre o capital financeiro e as crises (quarta parte); Hilferding se dedicou à política econômica do capital financeiro (quinta parte). Como sugerimos, nessa parte podemos encontrar aquelas que julgamos algumas das suas potencialmente mais interessantes contribuições para a compreensão do capitalismo em seu desenvolvimento histórico a partir da constituição da preponderância do capital financeiro enquanto nexo de articulação das relações humanas na expansão do capitalismo pelo mundo1046. A começar pela observação de que o capital financeiro significa a unificação [uniformização] do capital. Os setores do capital (industrial, comercial e bancário) antes separados, agora se encontram sob a direção comum da alta finança, na qual estão vinculados pessoalmente os senhores da indústria e dos Bancos. A base dessa associação é a eliminação da livre-concorrência do capitalista individual pelas grandes uniões monopolísticas. Isso implica, naturalmente, inclusive em uma mudança da natureza da relação da classe capitalista com o poder do Estado. 1047 [grifos nossos]

Gostaríamos de ressaltar, primeiramente, o impacto que a unificação1048 – que é também a uniformização, ou seja, a assunção de uma mesma forma – entre as formas Ele sofre essa acusação de muitos lados. Cf: Pereira 2013. como foi necessária uma longuíssima repressão aos trabalhadores com o intuito de compeli-los ao trabalho fabril (conforme Marx explana no supracitado capítulo XXIV de O Capital); não fossem as armas dos Estados Imperialistas o modo de produção capitalista jamais – por livre e espontânea vontade das partes envolvidas – teria atravessado o Canal da Mancha em direção ao continente para, daí, dominar os mais diversos modos de produção da vida submetendo-os à sua lógica de valorização, conforme narra a fábula. Não passa de uma ideologia liberal a crença de que o capitalismo faz-se a si mesmo por meio da racionalidade com fins ao lucro por parte de seus agentes. A história do capitalismo é uma história de imposição e violência; na qual o Estado cumpre uma função primordial. 1047 P. 337. 1048As traduções para espanhol adotam “unificación”, bem como as inglesas adotam “unification”; a brasileira adota “uniformização”. 1045

1046Assim

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parciais do capital. Mais do que isso, Hilferding aponta para a união pessoal dos “senhores de indústria” com os “senhores dos bancos” indicando, a nosso ver, a possibilidade de conformação de outra classe social, cuja expressão advém dessa síntese entre as anteriores – conforme defendemos em nossa dissertação de mestrado. Neste parágrafo, Hilferding destaca especificamente o vínculo entre indústria e banco, mas em diversas outras passagens ele aponta para a unificação também com a aristocracia agrária e militar1049. O que nos interessa aqui sobremaneira é a afirmação de que essas mudanças todas que ele descreve ao longo do livro implicam, “naturalmente, inclusive em uma mudança da natureza da relação da classe capitalista com o poder do Estado” [grifos nossos]. Ou seja, tanto as classes capitalistas elas mesmas, quanto em sua relação com o Estado, segundo Hilferding, modificaram-se substantivamente ao longo desse período. Do nosso ponto de vista, cremos ter razões para argumentar que o Estado ele mesmo também se modificou, conforme procuraremos argumentar. Porque para Hilferding – na sequência do capítulo XXI – contra a concepção mercantilista de Estado baseado nos monopólios reais que caracterizava o período anterior à ascensão (enquanto classe social dominante) da burguesia, esta constituiu uma visão de mundo (Weltanschauung) liberal segundo a qual os grandes monopólios comerciais que permaneciam atrelados ao prestígio da nobreza deveriam ser substituídos por uma nova forma – consolidada por novas concepções jurídicas – capaz de garantir a competição e a igualdade de oportunidades, conforme desenvolvido por filósofos ligados a essa visão de mundo – como John Locke e David Hume – que refletiam os interesses incipientes da manufatura e das fábricas capitalistas contra o poder centralizado do Estado. O nascimento social da burguesia, portanto, se deu com o objetivo de garantir a liberdade no plano individual tanto quanto na livre-competição econômica. No plano das idéias, aparece a Economia Política – e é por isso que na crítica da dominação burguesa Marx parte da crítica a esse modo de apreensão da realidade – como se fosse antagônica ao Mercantilismo que a precedeu enquanto visão de mundo predominante entre os homens de Estado e os principais capitalistas. É importante que notemos que a burguesia – termo que tem origem nos burgos, ou seja, nas cidades, ligadas às pequenas produções e ao comércio de curta distância – é uma classe social não imediatamente idêntica aos “capitalistas” – que são os “proprietários dos meios sociais de produção”. Do ponto de vista histórico, inclusive, o 1049Com

o que também trabalhamos em nossa dissertação de mestrado.

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termo capitalista é muito mais ligado aos grandes comerciantes de longa distância e grandes proprietários de capital – em sua maioria nobre [portanto, não burguesa]. É com a constituição do capital financeiro enquanto força dominante que se ligam ao mesmo tempo as formas parciais abstratas de associação do capital – “capital industrial”, “capital bancário” – com as associações de classes que Hilferding indica nesse parágrafo que citamos. E aqui, de maneira contrária ao argumento segundo o qual Hilferding se atém em demasia ao caso alemão, as páginas que seguem do texto nos dão uma interessante amostra das especificidades das teorias do livre comércio na Inglaterra em relação íntima com a dinâmica específica da sociedade britânica. onde, como na Inglaterra, a luta pela liberdade econômica triunfou em um tempo em que ainda não se havia consolidado a concepção moderna de ciência, o liberalismo não a incorpora à sua concepção de mundo; a transformação revolucionária de todas as concepções morais e religiosas, tal como se desenvolveram no liberalismo francês, jamais fizeram parte da consciência coletiva do povo da Inglaterra, ainda que, do contrário, o liberalismo econômico tenha se imposto na Inglaterra com maior força do que em qualquer outra parte do continente. 1050

Mas – e este ponto nos interessa mais – ainda que tenha sido na Inglaterra onde foram mais longe as concepções liberais sobre o comércio, mesmo ali não se deu a vitória completa do laissez-faire1051. Mesmo os liberais britânicos tidos como “os mais descompromissados advogados da liberdade comercial1052” não conseguiram e/ou não quiseram implementar uma ordem “puramente” liberal – uma visão radical e extrema raramente defendida a fundo para além da hipocrisia, uma vez que implicaria abrir mão do conservadorismo ao qual o liberalismo se atrelou inexoravelmente neste exato processo em que a aristocracia fundiu-se à burguesia em função do capital financeiro. Mesmo no auge do liberalismo britânico, foram criadas diversas formas de manter o setor bancário enquanto exceção; e uma série de medidas protecionistas foi estabelecida tão logo quanto necessário, a despeito de todo o discurso em seu contrário. Antes de significar apenas contradições de um discurso hipócrita, ao nosso juízo, essas questões representam contradições importantes da própria sociedade britânica, em que a City jamais perdeu poder e mesmo a nobreza conseguiu manter um prestígio e um poder tão elevados que ainda hoje a monarquia se mantém por lá. 1050

P. 338.

1051Mesma

página. feliz expressão é apresentada e desmentida por Michael Perelman em The invention of capitalism: Classical Political Economy and the secret history of primitive accumulation. 1052Essa

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E porque percebe que o capitalismo enquanto ideologia de um modo de vida se expandiu a partir do Império Britânico para o continente europeu e depois para o resto do mundo – em sua constituição concreta ele sempre foi “transnacional” – Hilferding empreende uma sofisticada argumentação sobre a questão das solidariedades de interesse das classes sociais e do Estado na Inglaterra e nos demais países no continente1053. Portanto, precisamos entender como se deram essas alterações do Estado apontadas por Hilferding tendo em mente a dinâmica da luta de classes britânica, também pelo plano discursivo-ideológico, mas, sobretudo, pautando-nos nos interesses materiais em jogo – com efeito, o desafio é explicar o impacto dum noutro. Para nós, é a partir deste contexto que devemos compreender a ascensão da burguesia por meio da supremacia industrial que está por detrás da assim chamada Escola de Manchester, que reclamava pela liberalização do comércio de produtos industriais. As alterações do discurso político dos britânicos nesse momento, não se devem senão aos desequilíbrios causados por toda uma série de mudanças ligadas a essa supremacia industrial, como, por exemplo, a concentração geográfica e a urbanização. O fato é que, do ponto de vista retrospectivo, e global, podemos perceber claramente que “a vantagem industrial da Inglaterra aumentou seu interesse pelo livre-comércio, como antes a vantagem do desenvolvimento capitalista da Holanda havia permitido a esse país adotar uma política de livre-comércio1054”. O sistema de protecionismo baseado nos monopólios da nobreza junto ao Estado acabava por encarecer a importação de cereais. Quando ocorriam boas colheitas – que tornavam as importações desnecessárias – não se manifestava um grande problema. Mas as boas colheitas eram muito raras. No geral, as constantes más colheitas aumentavam muito o preço dos alimentos e impunham periodicamente “preços de fome”. E como os preços dos cereais eram o componente mais importante do “preço do 1053Essa

análise nos parece fazer ainda mais sentido quando pensamos em termos do conceito de hegemonia posteriormente desenvolvido pelos marxistas. Não poderemos explorar aqui todas as implicações dessa abordagem, mas indicamos que desejamos fazê-lo em trabalhos posteriores. Por hora, gostaríamos de deixar anotado que não se trata meramente de afinidades ideológicas. Como Marx e Engels insistiram desde a Ideologia Alemã, não existe idéia que se sustente socialmente sem uma base material correspondente a ela. 1054P. 338. Nas palavras de Hilferding, “no interior, o desdobramento da indústria e o aumento da população e da concentração nas cidades criaram problemas para o abastecimento da produção agrícola. Em consequência, o preço dos cereais estava comprometido pelos custos muito elevados dos transportes antes da revolução pela qual o setor iria posteriormente passar, bem como o aumento de eficácia que ocorreria no sistema de tributação”. Mesma página.

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trabalho”, os industriais também eram muito prejudicados, porque o custo do trabalho vivo – devido à baixa composição orgânica do capital – era um componente muito importante dos custos industriais totais1055. Por outro lado, mesmo os latifundiários não eram de todo beneficiados com o protecionismo, porque embora mantivessem suas “reservas de mercado”, esse processo estreitava muito a base monetária britânica, o que lhes era amplamente desfavorável, de modo que, para eles, havia vantagens e desvantagens na manutenção dessa situação. Assim, a ascensão da burguesia industrial – motivada pelos ganhos de produtividade evidentemente atrelados a alterações profundas na base social – provocou uma nova situação, que exigia uma nova postura do Estado. Fazia-se necessário para isso, tanto uma nova forma de articulação de interesses quanto uma nova mentalidade que desse conta de contemplar minimamente os interesses mais gerais. Em palavras contemporâneas, era preciso estabelecer uma nova hegemonia. Nesse momento, a função caberia aos industriais (burgueses) – e esse é o contexto em que se impõe a visão de mundo liberal. Como os industriais ingleses não temiam a competição externa contra seus produtos – posto que eram muito superiores tanto técnica quanto economicamente – eles lideraram – por meio da Câmara dos Comuns, na qual se instalavam grande parte dos seus representantes – um vasto processo de constituição de um sistema de promoção do livre-comércio, calcado nessa concepção burguesa de Estado a que Hilferding se refere (proteção dos negócios e proteção do indivíduo contra o Estado absolutista e os grande monopólios concedidos pelos monarcas), ao que se aliaram a eles as classes trabalhadoras. Mas restava ainda a força da aristocracia agrária, que não por acaso, durante este período, passaria a arrendar sistematicamente suas terras e viver pautada num sistema para longe de liberalizado que era o setor bancário comandado fortemente pelo Banco da Inglaterra. A City, portanto, que já era crucial para a articulação dos interesses britânicos, neste período assumiu uma força ainda maior enquanto um refúgio para uma classe que perdia dinamismo econômico, mas ainda tinha muito patrimônio e muitas ligações com o Estado, tanto em sua face civil quanto militar. Além disso, é preciso que lembremos que todo esse arranjo foi feito ainda num momento colonial, em que o capital mercantil era fortíssimo e os serviços financeiros – sobretudo seguro e frete – eram a cada dia mais importantes. A própria empreitada desse “imperialismo do livre-comércio” seria extremamente carente de um conjunto de 1055

Cf.: Mesma página.

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novas monopolizações que seriam então empreendidas pela própria dinâmica do capital financeiro e o prestígio e o poder político-econômico dessa elite enclausurada na City são alguns dos principais motivos pelos quais por tanto tempo grande parte dos cronistas desse momento afirmaram que os interesses do império correspondiam quase que exclusivamente aos interesses dessa elite – este é um dos eixos da interpretação de John A. Hobson, por exemplo. Por outro lado, esta mesma estrutura se beneficiaria do fato de que, do ponto de vista dos países do continente, a dinâmica era invertida. Enquanto ali os industriais – ainda muito incipientes – eram o setor contrário ao livre-comércio, os produtores de matérias primas – latifundiários ligados às nobrezas e, portanto, muito influentes em seus respectivos Estados – eram favoráveis, gerando uma espécie de complementaridade que fundamentou grande parte daquilo que se convencionou chamar de Pax Britannica. Mas em seu desenvolvimento dialético, quanto mais avançava, mais essa dinâmica se transformava em seu oposto. O componente decisivo neste momento seria, sem dúvida, o aumento da exportação de capitais – que Hilferding procura explicar nos capítulos XXI e XXII. As exportações de capitais britânicos para outros países então periféricos – naquele momento, sobretudo os Estados Unidos e a Alemanha – iriam modificar radicalmente este pacto. Exportado por meio de associações – em que os setores de infraestrutura mais uma vez assumiram preponderância devido, entre outras coisas, à escala e à necessária participação do Estado – “o capital” começou a criar tensões entre os nativos desses países receptores. Com o forte apoio das elites desses países receptores, que tinham por objetivo menos ou mais consciente “desenvolver” suas próprias “forças produtivas”, foi-se dando, por meio da concorrência capitalista e por meio de amplo apoio estatal, um agigantamento da monopolização do capital de modo a criar corporações que passaram a ter destaque tanto na economia quanto na política desses países. Assim, essas empresas que se formam na periferia pelo prisma do liberalismo – reiteramos: neste momento, sobretudo nos Estados Unidos e na Alemanha – passam a pressionar seus respectivos Estados contra o livre-comércio que, neste momento, passava a ser um estorvo à sua própria acumulação. É importante que destaquemos que os capitalistas desses países – mais na Alemanha, mas também nos Estados Unidos, de modo seletivo – diferentemente daquela “hegemonia burguesa” que se formou na Inglaterra em torno da exportação de mercadorias, não comungavam

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daquele liberalismo ante estatal que havia se formado ali. Na periferia, a conversa já era outra. Mas acontece que o grau de solidariedade (interesses concretos, mais do que “ideologia”) entre os capitalistas quando o padrão predominante de articulação internacional é substituído da exportação de mercadorias para a exportação de capitais é muito mais elevado. Enquanto o vínculo de um vendedor de mercadorias se encerra ao final da transação – por maior que seja o interesse em manter a “parceria” – na exportação de capital o sucesso desse empreendimento passa a ser fundamental, não apenas para o tomador do empréstimo, mas também para o emprestador, porque, nos termos de Hilferding, “o fiador se liga ao credor de modo muito mais profundo que o vendedor se liga ao comprador”. Sendo assim, começa a haver uma alteração substantiva do jogo político de modo a que aos capitalistas britânicos que exportaram seu capital para a Alemanha e para os Estados Unidos, o livre-comércio deixa de ser tão interessante. Do contrário, passa a ser muito mais interessante a defesa do mercado da indústria que contraiu o empréstimo, de modo que, não mais pautado pelo lucro comercial, este capital exportado em forma de investimento passa a se interessar por outras formas de remuneração do capital, como remessas de lucro e juros. Em ambos os casos, o que hoje se convenciona chamar de “saúde” da empresa que contraiu o empréstimo – bem como a do país no qual ela se imobilizou – é fundamental e a solidariedade passa a ser estabelecida entre o exportador de capital e a elite do país receptor, pois ambos passam a se beneficiar do protecionismo, em que o Estado receptor, evidentemente interessado no “desenvolvimento”, expressa e materializa esses interesses, porque, nas palavras de Hilferding,

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ante a dificuldade de comércio (de mercadorias) expande-se a exportação de capital em forma de implantação de fábricas no exterior. A área industrial ameaçada pelo protecionismo dos países estrangeiros explora agora este mesmo protecionismo, ao assentar uma parte da produção no exterior. Ainda que, dessa forma, se torne impossível a expansão da empresa matriz e se perca o aumento da taxa de lucro devido à redução dos custos de produção, mesmo assim isso volta a se compensar pelo aumento do lucro que lhe assegura a alta dos preços dos produtos fabricados agora pelos próprios capitalistas no exterior. Dessa forma, a exportação de capital, poderosamente estimulada de outro modo pelo protecionismo do próprio país, é fomentada igualmente pelo país estrangeiro e, ao mesmo tempo, contribui para a difusão do capitalismo em escala mundial e para a internacionalização do capital. […] Dessa forma, o livre-comércio resulta nocivo e supérfluo para o capital. 1056

Cumpre anotar que, para Hilferding, conforme podemos observar nessa passagem, não se trata somente de uma exportação de capital que acaba por aumentar o lucro dos capitalistas e da “internacionalização do capital”, mas da “difusão do capitalismo em escala mundial” [grifos nossos]. Disso decorre uma série de características fundamentais para a história do modo de produção capitalista que somente foram possíveis graças à “união estreita entre o capital bancário e o capital industrial”, “que fomenta rapidamente esse desenvolvimento da exportação de capital”, “modificando sua natureza” porque atuam “independentemente da vontade do empresário” 1057. Essa tendência à “difusão do capitalismo em escala mundial” – que é o Imperialismo Capitalista – precisa ser empreendida não mais enquanto troca de mercadorias, como se dava em tempos de colonialismo, com entrepostos comerciais costeiros, mas precisa, como vimos no capítulo anterior, de uma alteração radical do modo de vida tradicional, de modo a estabelecer nessa região que recebe o capital, também uma sociedade capaz de consumir – não apenas comprar – os produtos produzidos pelos capitalistas. Para tanto, as grandes obras infraestruturais representam papel absolutamente fundamental, porque além de serem necessariamente executadas em grande escala, o que já exige uma concentração e uma centralização prévias do capital, realizam de uma só tacada, uma quantidade imensa de capital acumulado. Ao mesmo tempo, passam a ser do interesse do Estado que as recebe – que, em nome do “progresso” garante o investimento, praticamente como um monopólio natural – e se aliam às potências globais mais importantes e aumentam o potencial de controle de sua população com 1056 1057

P. 352. Páginas 353 e 354.

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novos meios de violência – parte importante dessa articulação, como também já discutimos. Portanto, as grandes obras infraestruturais são a linha de frente do modo de produção capitalista na constituição de uma nova hegemonia, não mais burguesa, mas do capital financeiro, que não defende o livre-comércio, mas o protecionismo. Nas palavras de Hilferding, desta forma, a exportação de capital amplia a barreira que brota da capacidade de consumo dos novos mercados. Mas, ao mesmo tempo, a transferência de métodos capitalistas de transporte e produção ao país estrangeiro favorece um rápido desenvolvimento econômico e o nascimento de um mercado interior mais amplo devido à dissolução das interconexões econômicas naturais e a expansão da produção para o mercado e, com isso, o aumento daqueles produtos que são exportados e que podem servir outra vez para pagar os juros do capital novamente importado. [grifos nossos] 1058

Portanto, como vimos destacando, a criação da infraestrutura (neste momento, ferrovias, portos e hidrelétricas acima das demais1059) é também uma condição essencial para a expansão do modo de produção capitalista pelo menos em dois sentidos. O primeiro deles, mais óbvio, é que essa será a base da qual se beneficiarão as demais indústrias que se dirigem a este local (extrativista, agrícola ou de transformação). Sem o “pioneirismo” desses setores – levados a cabo pelos Estados locais em associação direta com o grande capital [financeiro] já monopolizado nos centros mais “desenvolvidos” – não há difusão possível do modo de produção capitalista, tanto na produção quanto no escoamento dos produtos adquiridos nas colônias. Mas existe outro elemento absolutamente crucial – geralmente negligenciado em análises “econômicas” – que é o fato de que essas grandes obras necessariamente impactam de um modo muito acentuado nos modos de vida locais. As grandes ferrovias, os alagamentos das hidrelétricas e as demais grandes obras de infraestrutura alteram radicalmente o padrão de organização dessas localidades na medida em que i) atraem mão-de-obra para a sua P. 357. história da exportação de capital a revolução dos meios de transporte marcou época. As estradas de ferro e os barcos a vapor têm em si uma importância colossal para o capitalismo devido à redução do tempo de circulação das mercadorias. Desta forma, se libera primeiramente capital circulante e logo se aumenta a taxa de lucro. O barateamento da matéria-prima reduz o preço de custo e amplia o consumo. Ademais, as estradas de ferro e os barcos a vapor criam aqueles grandes espaços econômicos que tornam possível os modernos estabelecimentos gigantes com sua produção em massa. Mas, sobretudo, foram as estradas de ferro o meio mais importante para que se pudesse explorar os mercados estrangeiros. Somente através delas é que foi possível em proporções tão colossais a utilização pela Europa dos produtos desses países e a ampliação do mercado em um mercado mundial tão rapidamente. Sem embargo, foi ainda mais importante o fato de que a exportação de capital se fazia agora necessária para a construção dessas ferrovias, que se construíram exclusivamente com capital europeu, especialmente inglês.” (p. 363) 1058

1059“Na

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realização e ii) precisam expulsar vilas inteiras dos lugares em que se situam há séculos. Em síntese, como vínhamos conversando anteriormente, a história da expansão do modo de produção capitalista pelo mundo é a história da violência contra os modos de vida “milenares” pelos quais se organizavam socialmente a vida das pessoas ao redor do mundo. Essa questão, necessária para a expansão do modo de produção capitalista – que se confunde com aquilo que Marx denominou “acumulação primitiva” – é fundamental pelas suas duas dimensões, sendo a primeira delas a concentração do capital – sob a forma de fraudes, pilhagens e acumulação ampliada do capital – e a segunda delas a produção constante de homens-livres que não mais subsistem sem que precisem do mercado – tanto para obter salários quanto para obter os artigos básicos de sobrevivência – uma vez que foram expulsos da terra e dos demais meios de produção da vida. A colonização gerida pelos interesses do capital mercantil produzia bens e, em certo sentido, acumulava capital. O imperialismo capitalista, o imperialismo do capital financeiro, por sua vez, amplia o modo de produção capitalista e, assim, acaba por potencializar ainda mais a acumulação capitalista no centro, que, por seu turno, impulsiona a sua própria expansão pelo globo e, assim, “a poderosa força motriz do modo de produção capitalista, que entra num novo período de impetuosa e irresistível atividade (Sturm und Drang), atenua as crises e aumenta os ciclos de prosperidade”. Do ponto de vista “interno”, esses processos acabam por “aumentar a demanda por mão de obra, o que favorece os sindicatos” e “a tendência à depauperação inerente ao capitalismo parece ultrapassada”. “Finalmente, a rápida ascensão da produção impede a tomada de consciência dos danos da sociedade capitalista e cria um juízo otimista sobre sua força vital”. 1060 Na outra ponta, acontece que, pelo contraste com a situação temporária dos países avançados, as sociedades dos países receptores do capital – tanto a sua elite quanto as classes que têm alguma participação política relevante na determinação dos rumos do Estado senão pela simples resistência – acabam por acreditar nos mitos da “modernidade”, do “progresso”, do “desenvolvimento” e, em grande medida agem obstinadamente com o objetivo de alcançar essa situação mentirosa à qual invejam. E, evidentemente, dada a desproporção de poder militar entre as partes envolvidas, sempre

1060

P. 357.

480

existe uma grande coerção pela ameaça da imposição por meio de guerras e/ou anexações. E, deste modo, se estabelece uma nova articulação entre o “interno” e o “externo”. A partir deste momento de intensa concentração de capital nos centros, o problema da periferia não é – resta dúvida se já o foi – a falta de capitais, mas o problema é oferecer condições de lucratividade vantajosas para o capital que se acumulou no centro 1061. Primeiramente, faz-se necessário ceder às condições de exploração do espaço, da terra e dos minérios, tanto do ponto de vista físico quanto político-jurídico. Mas uma questão igualmente importante – senão mais – é a oferta constante desses homens livres1062 que não pode ser executada de outro modo senão pela expropriação violenta (política, policial, jurídica) por meio dos Estados locais, criando mais uma “comunidade de interesses” entre todos aqueles que de algum modo se beneficiam da exploração – elites dos países de capitalismo mais avançado e dos países de capitalismo menos avançado; bem como dos Estados de capitalismo mais avançado e dos Estados de capitalismo menos avançado, por que como sempre que o capital se enfrenta pela primeira vez com relações que contradizem sua necessidade de exploração e cuja superação não sucederia senão lenta e gradualmente, o capital apela para a força do Estado e o coloca a serviço da expropriação violenta que cria o necessário proletariado livre, quer se trate, como em seu princípio, de camponeses europeus, dos índios mexicanos ou peruanos, ou, como na atualidade, com os negros africanos.1063

Em síntese, de extrema importância para o argumento que vimos alinhavando desde o princípio – o que não aparece nas leituras “econômicas” de sua obra –, Hilferding defende – em 1906, quando escrevia seu livro – que “os métodos violentos pertencem à essência da política colonial, que sem eles perderia seu sentido, porque a existência de um proletariado livre é uma conditio sine qua non do capitalismo1064”. O que significa além disso que, já desde a gênese do modo de produção capitalista, se apresenta uma relação fundamental entre a supostamente pacífica concorrência econômica – que se expressa política e juridicamente pela liberdade de contrato entre empresas e entre empregadores e empregados – e um violentíssimo 1061Em

grande parte pela pilhagem colonial, confirme ilustra elegante e brilhantemente Eduardo Galeano, em As veias abertas da América Latina que pode, evidentemente, ser estendido sem prejuízo dos argumentos centrais para muitas outras regiões englobadas pelas relações de poder imperiais. 1062 P. 358. 1063 Mesma página. 1064 Mesma página.

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aparato estatal repressor que tem por função garantir as condições do jogo tanto em termos da concorrência entre as empresas quanto, principalmente, eliminar quaisquer possibilidades de os trabalhadores obterem os bens necessários à sua sobrevivência senão se entregando ao mercado. Assim, a tendência de conformação de Estado totalitários no momento em que se estabelece o Capital Financeiro, não é, portanto, uma coincidência entre elementos da “esfera civil” com elementos da “esfera econômica”, mas uma relação que – mesmo sob a mentira da democracia burguesa – se estabelece independentemente de fatores aleatórios. Nas palavras de Hilferding, “tão logo os novos mercados deixam de ser simples áreas de venda para se converterem em zonas de inversão de capital se registra uma mudança de atitude política dos países exportadores de capital1065”. Enquanto se contentava com as relações mercantis no momento da exportação de mercadorias; quando da mudança do padrão para a predominância da exportação de capitais, faz-se necessária uma modificação profunda na estrutura social e política bem como, evidentemente, nos aparelhos de repressão locais, porque “o risco é muito maior quando se constroem ferrovias em um país estrangeiro, se adquire terras, se constroem instalações portuárias, se descobrem minas e as exploram do que quando simplesmente se compram e vendem mercadorias”

. E isso se expressa das mais variadas formas,

1066

desde a imposição de ordenamentos jurídicos alinhavados de acordo com os interesses do capital financeiro até amplas medidas com o objetivo de impor de cima para baixo os modelos de Estado-nação; mesmo em localidades onde isso não fazia o menor sentido .

1067

Daí o clamor de todos os capitalistas interessados em países coloniais exigindo um poder estatal forte, cuja autoridade proteja também seus interesses nos rincões mais afastados da Terra; dali o prestígio da bandeira e da guerra, que tem que se ver em todas as partes para que se possa plantar em todos os lugares a bandeira comercial. Mas quanto mais se sente à vontade a exportação de capitais é onde existe o domínio completo da nova região mediante o poder estatal de seu país. […] a exportação de capital, especialmente desde que tem lugar em forma de capital industrial e financeiro, tem acelerado enormemente a subversão de todas as velhas relações sociais e a difusão do capitalismo por todo o globo. O desenvolvimento capitalista não ocorreu de um modo autóctone em cada país individual; com o capital se importaram, ao

P. 361. Cf.: p. 362. 1067 Cf.: mesma página. 1065 1066

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mesmo tempo, a produção capitalista e as relações de exploração, sempre no mesmo grau já alcançado no país mais avançado. 1068

Mas este “equilíbrio” – garantido pela hegemonia do capital financeiro que articulava a elite local com os grandes capitalistas e os Estados exportadores e receptores de capital – por sua vez, também estava fadado a ser superado. Tão logo essa exportação de capital fomentou o “desenvolvimento” das empresas na periferia (Estados Unidos e Alemanha) se rompeu o monopólio da Inglaterra, “ao capitalismo inglês insuficientemente organizado e pouco eficaz devido ao livre-comércio, se mostraram competidores superiores os capitalismos americano e alemão” 1069. Como vemos, essas transformações pelas quais o modo de produção capitalista passou na transição do século XIX para o XX – que Hilferding chamou de “a etapa mais recente do capitalismo” – são de uma extrema complexidade e estão para muito além da relação entre as formas parciais de capitais e uma luta pela hegemonia da forma industrialista de organização social – conforme debate a historiografia tradicionalmente dedicada aos seus estudos, predominantemente formada por economistas. Do contrário, sob nosso ponto de vista, temos que entendê-las como algumas das passagens mais importantes para a reconstituição da narrativa histórica do modo de produção capitalista. No movimento articulado por Hilferding, notamos que aos poucos se foi transformando a ideologia das burguesias em torno da concepção de Estado, inicialmente pautada na Economia Política (liberal) que havia sido decisiva, por sua vez, para a superação da concepção de Estado mercantilista ligada aos valores da nobreza. Essa concepção liberal-burguesa de Estado teve sua expressão máxima, do ponto de vista das questões analisadas por Hilferding, na defesa da liberdade do ponto de vista pessoal e da defesa do livre-comércio. Mas, em seu próprio desenvolvimento histórico, ela também engendrou contradições – por meio da articulação entre os Estados e as elites dos países “mais desenvolvidos” e dos “menos desenvolvidos”. O que se deu com o surgimento de um capitalismo “mais organizado”, em que o capital financeiro atingiu patamares de concentração e centralização – portanto, de monopólio – muito superiores aos da Inglaterra. Em grande parte isso se deveu ao modo de articulação específico assumido em cada um desses países, sendo que na Inglaterra o setor da nobreza “encastelada” na City assumiu uma preponderância que conferiu ao capital financeiro 1068 1069

Páginas 362 e 363. P. 363.

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britânico uma feição mais ligada aos serviços das finanças enquanto nos Estados Unidos e na Alemanha se gestaram formas de administração das grandes corporações ao mesmo tempo potentes em termos de finança e de produção (inclusive com o desenvolvimento das principais tecnologias daquela que viria a ser chamada de “segunda revolução industrial”) 1070. Mas isso não se deveu a qualquer sorte de “traição” dos interesses britânicos, ou qualquer sorte de particular “patriotismo” dos capitalistas estadunidenses e alemães1071, mas, sim, à própria contradição interna ao sistema, em que a exportação de capitais, como vimos, sustenta a defesa do protecionismo que acaba por, contraditoriamente, colocar ao mesmo lado os capitalistas britânicos – exportadores de capital – e capitalistas estadunidenses e alemães – receptores de capital. Evidentemente, isso engendraria respostas do ponto de vista dos Estados e, como sabemos, o desenvolvimento posterior desse sistema contraditório faria com que as rivalidades interimperialistas ganhassem atingissem o paroxismo e eclodissem nas guerras nas quais se decidiria a superação da Hegemonia Britânica e – dadas as duas derrotas alemãs – o estabelecimento da Hegemonia Estadunidense, cuja dinâmica capitalista – por conta da articulação das classes sociais que configuram o “seu” capital financeiro – é muito “superior”. Sendo um livro escrito cerca de dez anos depois – e, claro, dado o que ocorreu nessa década – é lógico que o trabalho de Lenin teve muito mais condições de apreender essas relações, que se se desenvolveram muito neste período. Mas, a título de reconstituição da historiografia do imperialismo, cumpre ressaltar que Hilferding diversas vezes ao longo do seu trabalho apontou para as mesmas tendências que o líder dos bolcheviques. Como quando, depois de dedicar algumas páginas à constituição de um raciocínio cristalino e surpreendentemente precoce, conclui que “É natural que, em princípio, o liberalismo tenha conseguido sua realização primeiramente na Inglaterra, onde era impulsionado por uma burguesia livre-cambista e uma burguesia que, inclusive nos períodos mais agudos de conflito com o proletariado, resistiu a solicitar a intervenção do Estado e, quando teve que fazê-lo, o fez somente em breves períodos. Mas também na Inglaterra a sua realização se chocou com a resistência, não somente da velha aristocracia – que apoiava uma política protecionista, isto é, que resistia ao princípio liberal – mas também do capital comercial e do capital bancário, que aspiravam às inversões exteriores e que exigiam, sobretudo, a manutenção do domínio marítimo – uma exigência que era sustentada ao máximo pelos setores interessados nas colônias” (p. 376-7). Procuramos desenvolver esse tema – a preponderância da City no capital financeiro – na nossa dissertação de mestrado. Em seguida, a título de registro, gostaríamos de ressaltar que Hilferding passa a comentar sobre o liberalismo continental, especialmente o francês, o que, ao nosso juízo, corrobora, mais uma vez, nossa hipótese de leitura que recusa frontalmente a interpretação segundo a qual o autor estivesse limitado à análise do capitalismo monopolista alemão, como alegam muitos dos seus comentadores. 1071 Qualquer semelhança com a relação do capital supostamente estadunidense com o desenvolvimento capitalista na China não é mera coincidência. 1070

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a violência da concorrência desperta, sem embargo, a tendência à sua eliminação. A forma mais fácil de isso ocorrer é incluir no mercado nacional parte do mercado mundial, isto é, anexar-se regiões estrangeiras mediante a política colonial. Se ao livre comércio eram indiferentes as colônias, o protecionismo leva diretamente a uma atividade maior na zona da política colonial. Aqui se enfrentam diretamente de forma antagônica os interesses dos Estados. […] Os Estados Unidos são em si um grande espaço econômico suficiente inclusive para a era do imperialismo, cujo campo de expansão está dado, ademais, geograficamente. O movimento panamericano, que encontrou sua primeira expressão política na Doutrina Monroe, está em seus estágios iniciais e tem grandes perspectivas devido à enorme supremacia dos Estados Unidos. A situação é distinta na Europa, onde a fragmentação política criou interesses econômicos contrapostos, que opõem obstáculos muito difíceis à supressão econômica mediante a possível união aduaneira da Europa Central. Aqui não se trata, como no Império Britânico, de partes complementares, mas de unidades mais ou menos similares e, por isso, reciprocamente hostis e em competição. [...] Assim, o desejo de possessão colonial conduz a uma oposição sempre crescente entre os grandes espaços econômicos e repercute na Europa decisivamente nas relações de cada um dos Estados. [...] O poder político é, assim, decisivo na luta econômica pela concorrência, e para o capital financeiro a posição do poder estatal é vital do ponto de vista do lucro. [...] Assim, pois, o capital financeiro se converte com todos os seus meios em suporte da idéia de fortalecimento do poder estatal. Mas quanto maiores forem as diferenças históricas entre o poder estatal, maiores serão as condições da concorrência e mais inflamadas as lutas pelos domínios do mercado universal. Esta luta será tanto mais encarniçada quanto mais desenvolvido esteja o capital financeiro e quanto mais forte for o seu desejo de monopolização, mais inflamada será a luta pelo resto. 1072

Portanto, diferentemente do que aponta parte dos seus comentadores, já para Hilferding, em 1906!, podemos notar de modo claro o vínculo entre o desenvolvimento do capital financeiro e o imperialismo1073. Seguindo na mesma toada, e retomando o ponto anterior, Hilferding apresenta de forma bastante sofisticada um intrincado problema, que ilustra muito bem a tese principal que está procurando defender: uma transformação radical do capitalismo, que se liga, ao mesmo tempo, com a rivalidade internacional que supera a Pax Britannica, com a mudança da ideologia das burguesias “nacionais” e com a compreensão da

Páginas 366 a 374. Conforme atesta, inclusive, o último capítulo de O Capital Financeiro, intitulado “O proletariado e o imperialismo”. 1072 1073

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superioridade da hegemonia do capital financeiro em relação à hegemonia burguesa dos livre-cambistas de Manchester1074. A grande questão dessa interessantíssima e desprezada quinta parte do livro O Capital Financeiro é exatamente o acompanhamento em sua dinâmica de uma série de contradições que percorrem esse período e vão se “resolvendo” de maneira complexa; uma vez que, nessa dinâmica entre a expansão de capital (“interesses privados”) e as transformações do Estado (“interesse público”) é exatamente o sucesso de um arranjo anterior que engendra o seu próprio fim, corroborando com a hipótese de que em sociedade concorrenciais, nenhum tipo de arranjo pode estabelecer, por exemplo, a paz1075. Em suas palavras, a desigualdade do desenvolvimento industrial motiva certa diferenciação nas formas de exportação de capital. A participação direta na abertura dos países industrialmente atrasados ou que se desenvolvem mais vagarosamente cabe àqueles países em que o desenvolvimento industrial alcançou a sua forma mais elevada tanto no que se refere ao lado técnico quanto organizacional. A este grupo pertencem sobretudo a Alemanha e os Estados Unidos e, em segunda ordem, a Inglaterra e a Bélgica. Os outros países de desenvolvimento capitalista antigo tomam parte na exportação de capitais mais na forma de empréstimo que na instalação de fábricas. Isto implica que, por exemplo, o capital francês, holandês e, em grande medida, também inglês, se converta em capital de empréstimo para as indústrias sob a direção americana ou alemã. Desta forma, nascem tendências a uma solidariedade dos interesses capitalistas internacionais. O capital francês estará interessado como capital de empréstimo nos progressos da indústria alemã na América do Sul, por exemplo. Ao mesmo tempo, semelhante união – que aumenta extraordinariamente o poder Comungamos da hipótese segundo a qual a reconstituição dessa tão comentada “nova dinâmica” desse “novo capitalismo”, do momento de transição entre os séculos XIX e XX, pode ganhar potência se entendida a partir da compreensão do entrelaçamento complexo dessas duas formas de hegemonias (dos Estados e das classes sociais). O ponto forte de Hilferding é que ele consegue explicitar esse movimento sem cair em esquematismos. 1075 Sobre a nitidez da análise de Hilferding, gostaríamos de destacar, inclusive, que, para ele, tendo em mente os desdobramentos das contradições da expansão colonialista que se transformava em imperialismo capitalista, caberia à Alemanha um papel de destaque, porque “a contradição entre o desenvolvimento do capitalismo alemão e a pequenez relativa de seu espaço econômico aumenta então extraordinariamente. Enquanto a Alemanha avança rapidamente o seu desenvolvimento industrial, se reduz subitamente a sua área econômica. E isso tanto mais quanto a Alemanha, que por razões históricas e casuais para o capitalismo atual (…), não tem nenhuma possessão colonial relevante. Enquanto isso, não apenas os seus competidores mais fortes, Inglaterra e Estados Unidos – para os quais todo o continente tem economicamente o caráter de colônia – mas também as potências menores, França, Bélgica e Holanda, dispõem de possessões coloniais consideráveis e seu futuro competidor, a Rússia, possui igualmente um espaço econômico imensamente maior que o seu. (p. 375)”. E é importante que reiteremos que ele escreveu entre 1906 e 1910 (segundo indica no prefácio), quando grande parte dessas tendências ainda não se apresentava a todos os observadores com a clareza das “profecias do acontecido”, ao que espanta a cristalinidade com que afirma que essa “é uma situação que vai agravar extraordinariamente o contraste entre a Alemanha e a Inglaterra e seus satélites, uma situação que tenderá a desembocar em uma solução violenta” (p. 375). 1074

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capitalista – permite uma exploração ainda mais rápida de regiões estrangeiras, que são facilitadas ainda mais pela pressão reforçada dos grandes Estados. As perspectivas de êxito de cada uma dessas tendências [solidariedade e rivalidade] são diferentes em cada caso concreto e dependerão, sobretudo, das possibilidades de lucro que ofereça a declaração da luta armada. 1076

E assim – conforme Hilferding apresenta de maneira brilhante no capítulo XXII de O Capital Financeiro – vão se desenvolvendo contraditoriamente diversas tendências inerentes aos processos de monopolização de poder (“econômico” e “político”?) em que a rivalidade e a solidariedade se fazem presentes ao mesmo tempo; ao que a tendência aos acordos – nas quais Kautsky apostou como forma de um ultraimperialismo – não suplanta a necessidade da resolução armada dos conflitos – conforme afirmavam as idéias mais radicais, como Lenin e Luxemburg1077. Conforme vimos defendendo ao longo desse capítulo, Hilferding não se ocupa somente das expressões abstratas e das articulações das frações do capital – que são as razões pela qual ele é destacado na historiografia crítica sobre o seu trabalho – mas é também extremamente cuidadoso com as formas concretas e com a complexidade das relações (internas e externas) das classes sociais e dos Estados, mediadas pela “visão de mundo” – o eixo fundamental da crítica marxiana em O Capital. E assim, é por meio do destaque dessa complexidade que o autor nos oferece uma possibilidade da percepção da dialética entre esses elementos de um modo extremamente rico, possibilitando uma visão não-mecanicista do fenômeno do Imperialismo Capitalista levado a cabo pelo desenvolvimento do capital financeiro. Em termos gerais, Hilferding percebe que se o poder político do Estado no mercado mundial se converte em um meio de competição para o capital financeiro, isto significa, naturalmente, uma mudança completa da conduta da burguesia frente ao Estado. A burguesia se proclamava contrária ao Estado na luta contra o mercantilismo econômico e o absolutismo político. O liberalismo era realmente destrutivo e significava, efetivamente, a “revolução” do poder do Estado e a dissolução das antigas amarras. Todo o sistema, penosamente construído, das relações nacionais de dependência e das uniões corporativas urbanas, com sua complicada estrutura de privilégios e monopólios, foi superado. Sua vitória significava, em princípio, uma poderosa diminuição da força do Estado. A vida econômica, ao menos teoricamente, ficava totalmente alheia à regulação P. 375. Chama a atenção aqui também a afirmação de Hilferding de que existe outro importante fator de limitação do cálculo da guerra internacional por parte das potências européias nos movimentos comunistas locais – o “espectro que ronda a Europa” – porque a participação em guerras internacionais pode acabar favorecendo levantes internos (p. 376), apontando para o que ocorreria na Rússia somente uma década à frente. 1076 1077

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do Estado, o qual devia limitar-se à vigilância, à garantia da segurança e à criação da igualdade burguesa. Assim, pois, o liberalismo era puramente negativo ao Estado do capitalismo inicialmente mercantilista, que em princípio queria regular tudo [...]. 1078

Contudo, ainda que esta seja a forma mais “pura” da visão de mundo burguesa, Hilferding anota que esse modo de conceber o liberalismo em comprometimento ativo na luta contra o absolutismo ocorreu dessa maneira na Inglaterra – “imperialista acima das demais”. “No continente”, a dinâmica era um tanto diferente. Inclusive porque, ali, como poderia se satisfazer com o princípio liberal de redução do poder estatal uma burguesia que necessitava economicamente do Estado como a alavanca mais potente do seu desenvolvimento e à qual se interessava, não por destruir o Estado, mas em transformá-lo de um obstáculo a um veículo do seu próprio desenvolvimento? (…) A criação de um Estado nacional teve que fazer conservadora, desde o princípio a burguesia [no continente]. 1079

A diferença entre o liberalismo inglês e o liberalismo continental (com as nuances francesa e alemã – sem falar nos Estados Unidos, que cumpriam função similar) certamente merece um estudo mais aprofundado do que este a que nos propusemos a executar aqui, e certamente inúmeras outras contribuições teóricas foram feitas sobre esse assunto a partir das linhas gerais estabelecidas n’ O Capital Financeiro. E, independentemente das suas variações “regionais”, é importante que entendamos que essa concepção burguesa de liberdade contra o Estado – que é, em grande medida, uma das razões pelas quais Engels e Marx conferiam a ela um caráter inicialmente “revolucionário” – é um arranjo muitíssimo precário. Em seu próprio desenvolvimento contraditório “a vitória das defesas do protecionismo contra o livre-comércio criou as condições para o desenvolvimento mais rápido do capital financeiro no continente” de modo que “assim, a adaptação da ideologia e da concepção de Estado da burguesia encontrou, desde o princípio, na Europa, poucos obstáculos” uma vez que “as necessidades do capital financeiro encontraram vários elementos ideológicos que puderam facilmente ser utilizados para a criação de uma nova ideologia em harmonia com os seus próprios interesses”

. Uma

1080

ideologia imperialista, expansionista, e calcada em um Estado forte – fortíssimas tendências autoritárias, conforme nos demonstra a história do modo de produção capitalista – em conformidade com a hegemonia do capital financeiro, por que P. 376. P. 377. 1080 Mesma página. 1078 1079

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o capital financeiro não quer liberdade, mas dominação; não tem interesse pela autonomia do capital industrial, mas exige seu atrelamento; detesta a anarquia da concorrência, e quer a organização, certamente para reavivar a competição num nível mais alto. Mas para impor isso, para manter e ampliar sua superioridade, precisa do Estado que lhe assegure o mercado interno mediante a política aduaneira e de tarifa, que deve facilitar a conquista de mercados estrangeiros. Precisa de um Estado politicamente poderoso que, na sua política comercial, não tenha a necessidade de respeitar os interesses opostos de outros Estados. Necessita, em definitivo, de um Estado forte que faça valer seus interesses financeiros no exterior, que entregue seu poder político para extorquir dos Estados menores vantajosos contratos de fornecimento e tratados comerciais. Um Estado que possa intervir em toda parte do mundo para converter o mundo inteiro em área de investimento para seu capital financeiro. O capital financeiro, finalmente, precisa incorporar novas colônias. Se o liberalismo era um adversário do imperialismo estatal e queria reservar-se a dominação própria em relação ao antigo poder da aristocracia e da burocracia, ao restringir os meios de poder estatal a áreas as mais reduzidas possíveis, então a política do poder ilimitado tornou-se uma exigência do capitalismo financeiro: este seria o caso, mesmo quando os gastos com o Exército e a Marinha não garantissem diretamente às camadas capitalistas mais poderosas um mercado importante com lucros na sua maioria monopolistas. 1081

Desta maneira, Hilferding demonstra como ocorrem mudanças profundas na visão de mundo burguesa que – no plano formal, das idéias, mas também, evidentemente com descompassos, em termos de constituição de políticas – vão tornando essa classe a cada dia “menos revolucionária” e mais comprometida com a conquista e a manutenção do poder. E para isso – como para qualquer projeto de exercício de poder – fez-se necessária a tensa combinação entre os elementos “progressistas” – que se note: em uma sentido bastante diferente do que lhe atribui Harvey – como a liberdade radical e a defesa do indivíduo frente ao Estado Absolutista, e aqueles que conformariam esse Estado sob a hegemonia do capital financeiro. Essa visão de mundo, assim, vai afastando progressivamente para escanteio o pacifismo e uma tendência inerente ao humanitarismo para colocar em seu lugar o racismo imperialista sob a aparência de uma ideologia cosmopolita – fundamental para se apresentar como interesse geral e, portanto, hegemonia1082. Nas palavras de Hilferding,

P. 378. o fato de que ainda hoje a filantropia, a caridade, o pacifismo e os direitos “humanos” e “dos povos” compõem grande parte do discurso propagandístico das potências não altera em nada o argumento, senão o reforça. É uma máscara sob a qual se esconde a crueza da dominação capitalista internacional. 1081

1082E

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É sublime e arrebatador quando revela seu próprio ideal. O imperialista não quer nada para si: tampouco é um ilusionista ou sonhador que dissipa o contraste irremediável das raças em todas as etapas da civilização. Com toda possibilidade para desenvolver uma noção sanguinária de humanidade, com os olhos duros e claros, contempla a multiplicidade de povos e percebe sobre todos eles a sua própria nação. [...] vive no Estado poderoso que não cessa de ser cada vez maior e mais poderoso, e sua glorificação justifica todos os esforços. A renúncia do interesse individual em favor do interesse geral superior, que constitui a condição de toda ideologia social vital, se logra deste modo: o Estado – que é estranho ao povo – e a nação se confundem em uma unidade; e do ideal nacional nasce a força que impulsiona a política. Os antagonismos de classe são abolidos em prol da totalidade. A ação coletiva da nação, unida para os fins da grandeza nacional, substitui a luta de classes, que para a classe proprietária é tão estéril quanto perigosa. 1083

O que não parecia evidente, então, para os trabalhadores europeus – e aí reside uma fronteira de luta extremamente importante para os marxistas do começo do século passado – é que essa ideologia da superioridade racial ou cosmopolita, contudo, funcionava como uma máscara contra a sublevação das “massas”, contra a guerra civil e contra as aspirações socialistas tanto quanto às meras reivindicações pela melhoria das condições de vida das classes trabalhadoras. Todo o esforço de constituição dessa ideologia de guerra e a conformação de uma economia de guerra acabavam por acobertar o que, de fato, se travava de uma luta atroz entre os capitalistas e os proletários 1084. Deste modo, a ideologia do imperialismo se levanta sobre a tumba dos velhos ideais liberais. Caçoa da ingenuidade do liberalismo. Que ilusão a de se crer na harmonia de interesses, em um mundo de luta capitalista que somente pode se decidir pela superioridade das armas! Que ilusão a de esperar o reino da paz eterna e pregar a lei internacional onde somente a força decide o destino dos povos! Que loucura a de querer estender as relações legais existentes dentro de um Estado para além de suas fronteiras! Que interferências irresponsáveis nos negócios provoca este disparate humanitário que faz dos operários um problema; descobre a forma social em casa, e na colônia quer abolir a escravidão contratual, a única possibilidade de exploração! Como podemos conquistar o mundo se queremos que a concorrência se submeta a esses ideais? 1085

Aos poucos, por meio de um raciocínio extremamente sofisticado, Hilferding nos apresenta

com

um

elevado

grau

de

complexidade

como

se

constitui



contraditoriamente, como não poderia deixar de ser – a hegemonia do capital financeiro. Não simplesmente uma liderança, ou um engodo às demais classes sociais, mas num arranjo político em que, efetivamente, os interesses “materiais” e “ideológicos” das P. 380. Cf.: p. 379. 1085 P. 380. 1083 1084

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demais frações da sociedade vão se solidarizando aos interesses dos grandes proprietários em favor da constituição de um Estado cada vez mais autoritário internamente e cada vez mais agressivo quanto à sua política externa, porque com “a formação dos monopólios capitalistas desperta o interesse do capital pelo fortalecimento do poder do Estado” ao mesmo tempo em que “o capital vai adquirindo a força para dominar o aparato estatal, seja diretamente – através da própria força econômica – seja indiretamente, ao subordinar o interesse das outras classes aos seus próprios” 1086. E quem pode negar que estes são os nossos tempos? Para além da visão mecanicista e reducionista do pensamento burguês, temos que compreender o Estado enquanto relações sociais inevitavelmente atadas às dinâmicas das classes sociais. Assim, neste processo, tanto as formas de propriedade dos meios de produção quanto as relações de produção transformam-se ao mesmo tempo em que o Estado burguês – imperialista – vai se consolidando. Como apontado por Hilferding, o desenvolvimento do capital financeiro modifica totalmente a estrutura econômica e política da sociedade. Os capitalistas individuais do capitalismo primitivo confrontavam-se entre si em virtude da luta concorrencial; e esta rivalidade os impedia de atuar conjuntamente, não apenas no terreno político, mas também em outros campos. 1087

Já indicamos de passagem, ainda sem desenvolver, que discordamos da caracterização de uma “fase concorrencial” do capitalismo. Não nos parece fazer jus à realidade, mas comprovar esse argumento, é evidente, nos levaria para muito além de nossos limites deste trabalho. Por hora, mais importante que a definição da época anterior, o que interessa é que Hilferding está descrevendo, no calor do momento, transformações radicais pelas quais vinha passando o mundo. E o seu trabalho ainda mantém, cem anos depois, extrema atualidade. Não é pouca coisa. Visto deste prisma, torna-se menor o fato de que Hilferding não consegue, naquele momento, dar a efetiva dimensão à diferença de potência entre a hegemonia do capital industrial daquela burguesia livre-cambista em relação à hegemonia do capital financeiro. Mas, já ali escreve que, por questões intrínsecas às próprias relações que definem essas formas de capital, devemos acrescentar ainda que os interesses desta classe [os capitalistas individuais do capitalismo primitivo] não podiam ainda ser 1086 1087

P. 381. Mesma página.

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apresentados enquanto gerais, uma vez que a atitude negativa frente ao Estado não permitia que o capital industrial pudesse se apresentar como representação do interesse de todos os capitalistas […] Pois as grandes questões que moveram a burguesia eram inicialmente questões constitucionais, como o estabelecimento do Estado constitucional moderno, isto é, questões que interessavam igualmente a todos os burgueses e os uniram na luta comum contra a reação, contra os resíduos da forma de governo feudal e absolutista-burocrática. 1088

Do nosso ponto de vista – que motiva a tessitura destas linhas – defendemos que a compreensão dessa diferença de potencial entre as hegemonias capitalistas é fundamental para que desfaçamos definitivamente as ilusões acerca das possibilidades de “civilização” do capital em que as supostamente nefastas finanças poderiam ser (re)enquadradas no seu devido lugar – do ponto de vista dessa visão ingênua: o de auxiliar o capital bonzinho (“industrial”, ou “capital em função”). Em nossa dissertação já argumentamos como o capital financeiro foi – lógica e historicamente – se constituindo enquanto síntese das formas parciais de capital e, portanto, se caracteriza pela crescente indiferenciação entre elas, a cada dia de modo mais radical, apenas manifestações do capital. O que nos importa aqui neste momento é a compreensão de que – como não poderia deixar de ser – essa dinâmica entre as classes afeta decisivamente os rumos da luta política no interior do modo de produção capitalista (e contra ele). Com a vitória definitiva do capital financeiro – síntese de todas as demais formas parciais – enquanto nexo estruturante das relações sociais (classes e Estados) se constitui uma poderosíssima hegemonia capitalista, muito mais forte do que a hegemonia burguesa industrial e livre-cambista que a precedeu. Mas primeiro, vejamos como isso aconteceu, sempre seguindo Hilferding. Como vimos, a princípio, a burguesia constituiu sua visão de mundo paramentada numa forma radical de liberalismo contra o Estado Absolutista, instituindo uma hegemonia em torno dos interesses da produção industrial e da exportação de mercadoria, implicando na hegemonia das idéias livre-cambistas que, neste momento, deram a tônica da coesão social. Mas com a vitória sobre as forças da reação, fizeram-se nítidas as imensas contradições existentes no interior da burguesia, que jamais foi uma classe coesa. A primeira reação contra a hegemonia do capital financeiro e do livre-

1088

Mesma página.

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comércio partiu da pequena-burguesia e dos “trabalhadores”1089. Certamente entre os trabalhadores encontra-se a ala mais radical das revoluções burguesas e suas reivindicações não cessam com a derrubada dos poderes monárquicos. Convencidos da importância da igualdade para a constituição dessa nova ordem, as classes oprimidas procuram levar adiante as pautas que poderiam vir a revolucionarizar as relações de produção e, por isso, precisam ser caladas nem que pela violência. Em seguida, ganha espaço nessa precária ordem burguesa fortíssimas oposições por parte dos latifundiários e da burocracia do exército de origem aristocrática, assentadas na tradição e no poder do capital comercial e creditício que, por muito tempo foram as formas preferidas de enriquecimento e empoderamento do alto escalão das decisões políticas. Já a monopolização, unifica o poder econômico e eleva assim diretamente sua eficácia política. Como Hilferding apresenta ao longo do capítulo XXIII, esses processos de

concentração

e

centralização

analisados

anteriormente

uniformizam

simultaneamente os interesses políticos do capital e fazem com que todo o peso da força econômica atue diretamente sobre o poder estatal. Ela une os interesses de todo o capital e se apresenta assim, perante o poder do Estado, de forma muito mais coesa do que o capital industrial disperso da época da livre-concorrência. Ao mesmo tempo, o capital (financeiro) encontra – ainda que isso não nos pareça lógico – uma grande disposição de apoio em outras classes – é isso que significa hegemonia. Especialmente porque foi por meio dessa associação que se “resolveram” – “acomodaram”? – os conflitos entre as classes dominantes e a população sobre a qual pesa a coerção do trabalho menos ou mais compulsório. Porque a hegemonia não suprime o conflito. Com efeito, a hegemonia de certas formas de capital, do ponto de vista das classes oprimidas não faz mais do que acirrar o conflito conferindo um imenso poder aos aparelhos de repressão. Conforme vimos insistindo por meio de várixs autorxs comentadxs, um dos traços mais importantes desse processo de expansão do capitalismo (tanto “dentro” quanto “fora” das “fronteiras nacionais”) que constitui a hegemonia do capital financeiro se dá

1089O

mais adequado seria “não detentores dos meios de produção”, porque, assim, não excluiríamos aquela imensa camada da população que vive à margem, inclusive, das condições de aspirar a um trabalho. Esta imensa camada da população certamente participou de maneira muito radical e ativa nos principais momentos das revoluções e continuam, como sempre, lutando a despeito de que por muitas vezes essa luta constante (por terra, por teto, por comida, por água etc.) é tornada invisível. Para fins de simplificação e para seguir de perto a nomenclatura de nosso autor, permaneceremos nos valendo do conceito de “trabalhadores”.

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no campo. A questão essencial é a destruição das formas tradicionais de vida para a constituição de uma economia voltada para o mercado capitalista1090. O que Hilferding descreve muito bem, é que, a princípio, essa expansão das relações de mercado para o campo, dominado pela aristocracia fundiária, extremamente influente no Estado Absolutista, precisa enfrentar a resistência dessa poderosa classe. Mas a evolução do capital financeiro [que é resultado da dinâmica contraditória dos interesses de classe – centralização e concentração] vence o antagonismo pela mudança funcional do protecionismo e cria uma nova comunidade de interesses do latifúndio e das indústrias pesadas cartelizadas [acesso a mercado: matérias-primas; homens livres; consumo; atração de investimentos pesados]. A preocupação principal dos proprietários rurais, então, não é mais a indústria, mas a questão operária, que ameaça a tão prezada ordem. Dessa forma, a hostilidade comum contra o movimento operário une essas duas poderosas classes ao mesmo tempo em que diminuem os conflitos no campo, com a abolição dos impostos rurais e a mudança dos interesses dos grandes latifundiários, que com a queda dos preços dos cereais, deixa de competir com os pequenos agricultores, produzindo um excedente de renda nas mãos dos latifundiários que passa a afluir para os investimentos lucrativos na indústria [principalmente indústrias tradicionalmente ligadas aos gêneros agrícolas, como, por exemplo, as destilarias e cervejarias]. Além do fato de que tanto os latifundiários como os pequenos agricultores lutavam juntos pelas tarifas protecionistas. Portanto, a luta comum pela política comercial uniu todas as camadas da propriedade rural nos países que precisavam da importação agrícola e, dessa forma, concedeu ao capital financeiro o apoio do campo. 1091 Por outro lado, o desenvolvimento dessa forma de capitalismo levou a que os interesses da propriedade se unificassem cada vez mais, porque as fontes de rendimento tornaram-se cada vez mais variadas. Tudo isso transformou a classe latifundiária de uma classe cuja renda afluía dos bens de raízes numa classe cujos rendimentos afluem [de forma crescente] do lucro industrial e da participação do lucro no “capital móvel” [juros], enquanto o capital financeiro aumentou o interesse imobiliário [terra; arrendamentos] e nas indústrias agrícolas [equipamentos, grande volume de capital]. Esta aproximação [fusão de interesses materiais?] dos capitalistas burgueses com a

1090 1091

P. 383. Páginas 383 a 385.

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aristocracia rural [em que os casamentos são parte fundamental1092] leva a profundas mudanças no sistema de reconhecimento social e no regime de propriedades [capitalismo gentleman1093], e mobiliza muito o Estado [nas mãos das aristocracias tradicionais] em prol da política imperialista.1094 Por outro lado, nas cidades, em princípio, o capital financeiro apresenta-se em contradição com o pequeno e médio capitais. Não com todas as empresas; somente com aquelas que tinham pretensão de exportar [que é onde predominantemente atuam as indústrias cartelizadas]. As pequenas e médias empresas que atuavam nos mercados locais apoiaram o protecionismo, que tem no capital financeiro seu mais poderoso defensor. Mas a cartelização tem como resposta ainda mais cartelização, na medida em que ela é a resposta necessária contra a competição dos outros cartéis. Além do fato de que, consolidada a lógica monopolista, há a tendência de complementaridade subordinada dos pequenos em relação aos grandes [“dependência indireta do capital”, ou, noutros termos, a constituição de empresas “servas”]. E aqui é interessante notar que depois de haver sido combatida por décadas, a doutrina marxista da concentração se tornou, hoje, lugar-comum1095. Se reconhece que o retrocesso da classe média industrial não pode ser contido. Mas o que nos interessa aqui é menos o retrocesso quantitativo que nasce da destruição dos pequenos estabelecimentos que a mudança estrutural que se produziu nos pequenos estabelecimentos da indústria e do comércio com o desenvolvimento do capitalismo moderno. Grande parte dos estabelecimentos pequenos se tornaram auxiliares da indústria e, por isso, estão interessados na sua expansão. 1096

Sobretudo, porque toda a renda que sobra das mais diversas frações do capital, por meio das sociedades por ações, afluem para as indústrias pesadas, que têm as taxas de lucro mais altas. Diante disso, aos poucos, o que aparecia como antagonismo, acaba por se transformar em solidarização dos interesses das pequenas e médias em relação

Cf.: p. 387. sobre o qual comentamos em nossa dissertação de mestrado. 1094 Páginas 382 a 387. 1095É possível que Hilferding esteja se referindo a visões de capitalismo que hoje se costuma confundir com todo o qualquer tipo de concorrência “schumpeteriana”. Parece-nos que esse autor merece estudos mais aprofundados, dada a profundidade de suas observações e a largueza de seus horizontes de preocupações políticas e teóricas. Mas não deixa de ser digno de nota que do alto de seu cinismo, podemos notar nas suas formulações sobre a concorrência elementos típicos do materialismo histórico, ainda que com objetivos políticos muito distintos. Falando como a tradição marxista, “mesmo um autor burguês” como Schumpeter não deixa de anotar as contradições internas do modo de produção capitalista em toda a sua crueza. 1096 P. 389. 1092

1093Debate

495

às grandes. E aqui, novamente ganha relevo a importância da questão operária. Enquanto os trabalhadores de modo mais ou menos generalizado pleiteiam melhores condições de trabalho e melhores salários, ocorre uma quase imediata solidarização entre os pequenos capitalistas (inclusive relativamente mais sensíveis às pressões salariais, posto que possuem uma composição orgânica de capital menor) e os grandes proprietários. Com efeito, são os pequenos proprietários (para Hilferding a classe mais reacionária) os maiores defensores das políticas contra os operários. Ainda para ele, essas frações intermediárias (exploradoras da mão de obra, mas subordinadas ao grande capital) serão, inclusive, as mais ferrenhas defensoras do imperialismo e as mais racistas, em que pese o agravante de que têm grande abertura aos organismos de formação da opinião pública. 1097 Não é de se espantar, portanto, analisando a partir da maneira pela qual se dá a dinâmica de classes sob a hegemonia do capital financeiro, que as políticas estatais se acirrem nesse momento com o duplo objetivo de oprimir as classes trabalhadoras – expulsas do campo, resistentes à exploração industrial – e expandir – econômica e militarmente – as fronteiras da acumulação capitalista, porque “o interesse comum pela ofensiva contra a classe operária une cada vez mais todas as camadas da burguesia. Mas a liderança dessa luta, há muito, já está nas mãos do grande capital financeiro” 1098. 10.3 O Estado na hegemonia do capital financeiro e no fetichismo do direito burguês Pudemos observar como se formou a hegemonia capitalista imperialista levada à frente pelos interesses do capital financeiro que é de potência superior à hegemonia do capital industrial (livre-cambista) e do capital comercial autônomo (mercantilista). Pudemos também tangenciar o problema de que a solução histórica para os problemas de ascensão de novas formas sociais se deu, sobretudo, com a conformação de uma complexa trama em que se sintetizaram as classes dominantes em uma “nova” classe social [inclusive com uma “nova” “visão de mundo”] proprietária dos meios de produção que exerce de maneira ainda mais elevada a exploração capitalista. Mas, afinal, a que se deve, em termos abstratos, essa potência superior que Hilferding afirma haver na hegemonia do capital financeiro às outras formas de capital?

1097 1098

Cf.: páginas 387 e seguintes. P. 396.

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Sem entrarmos nos importantes debates teóricos sobre este conceito com o qual vimos trabalhando até aqui, temos que compreender, sobretudo, como o capital financeiro consegue solidarizar os interesses das demais classes aos seus, de modo que a todos pareça que estão sendo em alguma medida beneficiados pela “ordem” vigente, a despeito das assimetrias de poder. Conforme vimos argumentando, o capital financeiro acirra imensamente os conflitos entre as classes capitalistas e as classes oprimidas1099. Procuramos também entender as razões pelas quais o capital financeiro consegue ser o representante dos interesses comuns da classe capitalista. Como vimos, a maneira pela qual Hilferding procura demonstrar essa superioridade por meio de exemplos históricos – mais uma vez seguindo o método marxiano – é por meio da apresentação das contradições entre os diversos interesses materiais e as diversas visões de mundo que surgem em cada um dos elementos e em cada um dos momentos decisivos dos rumos da dinâmica de classes. O cruzamento entre os interesses materiais e a visão de mundo é fundamental, porque não existe visão de mundo sem a correspondência “material”, nem tampouco uma condição material que não produza impactos nas visões de mundo. Devemos sempre ter em mente as palavras de Marx e Engels segundo as quais as idéias das classes dominantes são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As idéias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal (variante do manuscrito: ideológica) das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como idéias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as idéias da sua dominação. 1100

Mas existe ainda outra questão seguindo essa pista da Ideologia Alemã que nos parece extremamente pertinente para o entendimento da hegemonia do capital financeiro frente às demais. Historicamente, vimos que houve uma poderosa associação Não é um fenômeno “novo”, portanto, o fato de que essas classes oprimidas se identificam com as classes dominantes e participam “ativamente” na manutenção dessa hegemonia – e daí que, muitas vezes, vê-se que pessoas extremamente oprimidas mantêm-se no campo da conservação e reproduzem valores opressivos dos mais variados tipos. Em nosso caso específico, é importante notar que este não é um fenômeno “brasileiro”, fruto do “lulismo” ou da inserção das classes dominadas em circuitos de consumo a cada dia mais amplos. Tratam-se de manifestações específicas de uma lógica geral – a acumulação do capital – que está presente há muito e intensifica-se – sempre e progressivamente – em “extensão” e “profundidade”. 1100 (Marx e Engels, Ideologia Alemã, p. 47) 1099

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entre os interesses da antiga aristocracia com a burguesia ascendente, bem como uma profunda complementaridade – precedida de um momento de competição extremada – entre o grande capital financeiro e os pequenos capitais1101, constituindo uma nova “classe dominante”, com uma visão de mundo (ideologia) imperialista. Devemos anotar, contudo, as considerações de Marx e Engels sobre uma peculiaridade das idéias das classes dominantes, vistas de uma perspectiva de longo prazo1102. Segundo estes autores, (...) se na concepção do curso da história separarmos as idéias da classe dominante da própria classe dominante e as tornarmos autônomas, se permanecermos no plano da afirmação de que numa época dominaram estas ou aquelas idéias, sem nos preocuparmos com as condições da produção nem com os produtores daquelas idéias, se, portanto, desconsiderarmos os indivíduos e as condições mundiais que constituem o fundamento dessas idéias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra, fidelidade etc., enquanto durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc. A própria classe dominante geralmente imagina isso. Essa concepção de história, comum a todos os historiadores principalmente desde o século XVIII, deparar-se-á necessariamente com o fenômeno de que as idéias que dominam são cada vez mais abstratas, isto é, idéias que assumem cada vez mais a forma da universalidade (...). [grifos nossos] [...] Realmente, toda nova classe que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer, expresso da forma ideal: é obrigada a dar às suas idéias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. 1103

Portanto, não é de se espantar que a forma de hegemonia mais potente, a forma de hegemonia superior, seja exatamente aquela expressa pela forma mais “elevada” e “abstrata”, a forma mais “absurda” e “suprema” do capital, a síntese das demais formas parciais. 1104

1101Aqui

é importante lembrar que o capital é tanto maior quanto mais avançado for o seu processo de concentração e centralização, portanto quanto maior o seu poder de monopólio e sua condição de operar em vários tabuleiros. Portanto, o grande capital é já o capital financeiro: síntese entre as demais formas parciais do capital. 1102 Como a de Hilferding, que discute a hegemonia do mercantilismo absolutista, o livre-cambismo e o imperialismo. 1103 P. 48. 1104 Mesmo o linguajar da dialética de Hegel não nos parece fortuito. Hilferding chega a afirmar, em passagem decisiva do capítulo XIV, que “um hegeliano poderia dizer da negação da negação: o capital bancário foi a negação do capital usurário e é negado, por sua vez, pelo capital financeiro. O capital financeiro é a síntese do capital usurário e do capital bancário, e, como estes, ainda que em um grau infinitamente superior de desenvolvimento econômico, se apropria dos frutos da produção social (p.255).”

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Aqui consideramos que existe um debate essencial com as interpretações que procuram supostamente “salvar” O capital financeiro dos “excessos” de Lenin com relação ao caráter parasitário do capitalismo e da necessidade histórica do Imperialismo enquanto fase última da socialização da produção e concentração da propriedade que precede o capitalismo – e isso independentemente de quaisquer posturas que Hilferding tenha tomado posteriormente, pois aqui tratamos de avaliar as posições das idéias, não das pessoas. Conforme o próprio Hilferding aponta, este capital financeiro “síntese” é o capital que, “em um grau infinitamente superior de desenvolvimento econômico”, “se apropria dos frutos da produção social”. Para a nossa interpretação, ainda que não possamos defender isso aqui de forma adequada, as teses de Hilferding são completamente coerentes com as interpretações leninistas tidas por “radicais” na medida em que apresentam uma forma de compreensão – baseada na conformação concreta – do capital financeiro enquanto síntese de toda e qualquer forma do capital. Assim, como não existe algo maior do que essa totalidade, não é possível teoricamente algo “superior” ao capital financeiro – o que justifica que as teses contemporâneas, quando procuram contrastar a situação atual daquela descrita no começo do século, se vejam diante da necessidade de recorrer a recursos como “aprofundamento”, “intensificação” e similares. Assim, Hilferding – como o próprio Lenin admite mais de uma vez – apresenta todos os elementos teóricos para a organização da tese que denunciam o parasitismo do capital sobre o metabolismo social total global, razão última pela qual este modo de produção deve ser extirpado. Se posteriormente Hilferding se tornou “companheiro de armas” de Karl Kautsky – conforme acusa Lenin – é uma questão importante para a narrativa da história do marxismo durante a segunda Internacional Socialista, mas não interessa imediatamente para a apreciação das teses que ele apresentou no seu livro. O que interessa de modo mais imediato é que essa síntese das formas parciais se deu justamente pelo modo como se articulam as questões essenciais do capital financeiro. E aqui reside um ponto que gostaríamos de ressaltar, que é exatamente a maneira pela qual encontra expressão essa “idéia” abstrata do poder da classe dominante em se apresentar como fosse interesse geral: a forma absurda do fetiche jurídico, por meio da “concretização de uma solidarização dos interesses da propriedade”, atestada pela forma de Estado específica do capitalismo. Com a constituição do capital financeiro enquanto nexo estrutural dominante, “a 'riqueza' não é

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mais diferenciada segundo suas fontes de rendimento e segundo sua origem no lucro ou no rendimento, mas aflui agora da participação em todas as porções em que se divide a mais-valia produzida pela classe operária” 1105, por que no capital financeiro, se extingue o caráter específico do capital. O capital aparece como poder unitário que domina soberano o processo vital da sociedade, como poder que nasce diretamente da propriedade dos meios de produção, das riquezas naturais e de todo o trabalho passado acumulado, e a disposição do trabalho vivo aparece como diretamente nascida das relações de propriedade. Ao mesmo tempo, se apresenta a propriedade, concentrada e centralizada nas mãos de algumas grandes associações de capital, contraposta diretamente à enorme massa de despossuídos. A questão das relações de propriedade recebe assim sua expressão mais clara, inequívoca e aguda, ao passo que a questão da organização da economia social é solucionada cada vez melhor com o desenvolvimento do próprio capital financeiro. 1106

E aí – dessa situação segundo a qual a propriedade é consequência do trabalho exteriorizado para depois se transformar em causa de trabalho exteriorizado – reside um mistério do modo burguês e fetichizado de pensar as relações sociais sob o capitalismo. Eis o “discreto charme do direito burguês”, segundo o Professor Márcio Naves, que se esforça por denunciar veementemente esse fetiche ao desmascarar a mentira da propriedade privada capitalista uma vez que, como já discutimos, as relações produtivas capitalistas são “indiferentes a quaisquer medidas de natureza jurídica” e não podem ser suprimidas ou alteradas radicalmente por meio de arranjos jurídicos; no que resulta que não podemos substituir as categorias marxistas pelas figuras do direito, notadamente a figura da propriedade1107 – que é uma relação social por excelência justamente posto que a dominação burguesa “se verifica fora do campo de intervenção do direito burguês, em um terreno que é, rigorosamente, não-jurídico”1108. Assim, não podemos cair no erro de nos enganarmos com a idéia ilusória de propriedade privada, mas – como o faz Hilferding, conforme procuramos demonstrar – entender as relações sociais que a fundamentam. O que interessa, muito mais do que a forma em que aparecem os títulos de propriedade, é a “disponibilidade efetiva dos meios de produção”. É a capacidade de acumular riquezas infinitamente ao mesmo tempo em que se “comanda trabalho”,

O capital financeiro, p. 387. P. 265. 1107 “Stalinismo e Capitalismo”, págs. 57 e seguintes. 1108 Mesma obra, pág. 59. 1105 1106

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fomentando as condições materiais objetivas que impedem que a classe trabalhadora acumule riquezas e constitua capital, passando, assim, de explorada a exploradora. 1109 Ao que voltamos a um ponto absolutamente fundamental: precisamos, para a compreensão do capitalismo desde os tempos de Hilferding até os nossos dias, de uma cuidadosa análise de como se apresentam as visões de mundo e as expressões fetichizadas das categorias científicas do pensamento burguês, mas também empreendermos a análise concreta das relações entre as classes [em sociedades capitalistas, por meio das mercadorias e, portanto, do capital], e entre as classes e o Estado, porque é o Estado a entidade responsável por plasmar por meio de suas ações (“jurídicas”, “políticas”, “econômicas”, “policiais” etc.) essa hegemonia para além das afinidades de interesses. Por fim, novamente nas palavras de Marx e Engels em Ideologia Alemã – que bem podem ser aplicadas para toda a ideologia imperialista do capital como um todo – é precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse coletivo que o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade ilusória, mas sempre fundada sobre a base real [realen] dos laços existentes em cada conglomerado familiar e tribal, tais como os laços de sangue, a linguagem, a divisão do trabalho em escala ampliada e demais interesses – e em especial [...] fundada sobre as classes já condicionadas pela divisão do trabalho, que se isolam em cada um desses aglomerados humanos e em meio aos quais há uma classe que domina todas as outras. Daí se segue que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., não são mais do que formas ilusórias – em geral, a forma ilusória da comunidade – nas quais são travadas as lutas reais entre as diferentes classes [...] É justamente porque os indivíduos buscam apenas seu interesse particular, que para eles não guarda conexão com seu interesse coletivo, que este último é imposto a eles como um interesse que lhes é ‘estranho’ e que deles ‘independe’, por sua vez, como um interesse ‘geral’ especial, peculiar [...] Por outro lado, a luta prática desses interesses particulares, que se contrapõem constantemente e de modo real aos interesses coletivos ou ilusoriamente coletivos, também torna necessária a ingerência e a contenção práticas por meio do ilusório interesse ‘geral’ como Estado.” [grifos de Marx] 1110

É aí que reside a importância de um aparato a cada dia mais sofisticado – e totalitário – dedicado à coerção das classes trabalhadoras cuja solidariedade com os interesses do capital, a despeito de qualquer ideologia, é enganosa. Assim, para a acumulação do capital, o uso da violência (“jurídicas”, “políticas”, “econômicas”, 1109Cf.:

1110

Turchetto, p. 30. P. 37.

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“policiais” etc.) se faz cada vez mais necessário, seja por meio de controles “econômicos” (leis trabalhistas, fisco), “ideológicos” (controle dos veículos de informação, da educação e da internet) ou “políticos” (polícia, exército). E como o capital não pode aceitar passivamente quaisquer limites para a acumulação, o expansionismo é regra fundamental de sua existência e, portanto, as guerras gerais nunca estarão excluídas do horizonte. Isso – o imperialismo – é capitalismo, o demais – “coerção puramente econômica”, “reprodução puramente ampliada”, “pacifismo internacional” etc. – é história da carochinha.  Observando retrospectivamente, à distância de um século da sua publicação, percebemos que O capital financeiro fez por merecer a fama instantânea que o colocou como um dos livros mais importantes da história do marxismo – tendo animado as posições mais radicais da Internacional. O que procuramos esboçar aqui são ideias que consideramos negligenciadas na bibliografia crítica que se dedicou à análise dessa obra. Do nosso ponto de vista, O capital financeiro não deve ser resumido a uma análise econômica de um período histórico específico, de uma região geográfica determinada. Mais do que isso, pensamos que pode contribuir enormemente para a análise de uma série de características do desenvolvimento histórico do capitalismo ao longo dos séculos XIX, XX e XXI. Mas para tanto, precisamos ultrapassar o modo compartimentado e fetichizado das ciências burguesas em nome de um conhecimento mais fundamentado nas raízes do materialismo histórico. Quanto a este capítulo específico, procuramos resgatar os elementos dinâmicos das classes sociais e a relação entre a constituição do capital financeiro e uma série de fenômenos que se desenvolveram a partir de então, dentre os quais procuramos abrir as possibilidades de entendimento da relação umbilical entre capital financeiro e Estados fortes – que ao longo do século XX e mesmo em nossos dias – tende a formas extremamente autoritárias. Nosso objetivo aqui é contribuir para uma ampla pesquisa – ainda em aberto – que continue a tarefa de Hilferding nesta pista. Se o capital financeiro é o nexo estruturante da sociedade capitalista ao longo desse desenvolvimento histórico de expansão “em extensão e profundidade”, pensamos que a relação com os Estados totalitários e imperialistas é um ponto nevrálgico, que nos permite desnudar características essenciais do modo de produção capitalista. Porque,

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ainda mais nesse modo de produção em que a hegemonia social supostamente passa pela ideia de uma autonomia do “econômico”, nunca é demais lembrar que poder econômico significa, ao mesmo tempo, poder político. O domínio da economia concede simultaneamente a disposição dos meios de poder do Estado. Quanto mais forte for a concentração na esfera econômica, tanto mais ilimitada será a dominação do Estado. 1111

Mas para encerramos com necessário otimismo que continua a nos motivar na luta anticapitalista, resgatemos o último parágrafo do O Capital Financeiro, em que Hilferding apresenta mais uma e derradeira síntese – novamente, uma influência importante para a tese de Lenin: o capital financeiro em sua perfeição significa o grau mais elevado de poder econômico e político nas mãos das oligarquias capitalistas. Ao mesmo tempo, a ditadura dos dominadores capitalistas nacionais de um país faz com que a situação seja cada vez mais insustentável com respeito aos interesses capitalistas do outro, e a dominação do capital dentro do país é cada vez mais incompatível com os interesses dos explorados pelo capital financeiro, e também com as massas populares chamadas à luta. 1112

Hilferding, em 1910, aponta que a superação dessa ditadura dos magnatas capitalista havia de se converter na “ditadura do proletariado”. Um século depois, ainda tentando assimilar as experiências, chinesa, cubana e tantas outras, nos parece que a tarefa do materialismo histórico deve ser a constituição de um pensamento ainda mais radical. A ditadura do proletariado é pouco. Precisamos voltar a pensar na emancipação. 10.4 Alguns comentários sobre o capital financeiro e a propriedade privada capitalista A abolição do ouro enquanto lastro oficial para a moeda e o conseqüente fim do acordo de Bretton Woods, bem como os acelerados processos de fusões e aquisições das grandes corporações e, principalmente, a multiplicação praticamente incontrolável das assim chamadas “inovações financeiras” são algumas das razões inequívocas para apontar mudanças consideráveis nas configurações das relações capitalistas a partir das últimas décadas do século XX – é, por exemplo, a periodização do “novo imperialismo” de Harvey, como vimos. Mais ou menos a partir do derradeiro quartel daquele século, os crescentes mercados internacionais das moedas; o aprofundamento dos mercados secundários, 1111 1112

(Hilferding, p. 419). P. 420.

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terciários etc.; os bonds; os derivativos; os hedge funds e uma infindável lista de outros jargões econômicos chamam – não de todo sem razão – a atenção dos especialistas para o lugar em que se operam algumas das principais mudanças da estruturação social contemporânea: a assim chamada “esfera financeira”. E não à toa, os processos inscritos nessa lógica são com freqüência abrigados sob arcabouços explicativos direta ou indiretamente derivados do conceito de “financeirização”. Entretanto, para além das infrutíferas tentativas de acompanhar online as frenéticas “inovações financeiras” que pautam as decisões de investimento – daqueles que têm com o que investir e levam a reboque os que não o têm – entendemos por fundamental o paciencioso exame da história, e sobretudo da genealogia dos elementos hoje encontrados neste estado de excitação constante e na incessante busca por novos e exorbitantemente lucrativos meios de aplicar, reaplicar, comprar e vender numa velocidade cibernética os “ativos”, outrora mais corretamente denominados capital. Essa relação social de exploração de classes, de constante produção de homens livres e de acúmulo de riqueza abstrata, desde há muito, traz em si elementos que, ao longo dos séculos, contraditoriamente, foram-se conformando de modo a assumir hoje essa forma que aparece como se fosse meramente “financeira”. • Entre os que hoje se interessam pela aventura de entender e explicar as atualíssimas configurações desse “capital financeirizado”, não são poucos os que pautam – com maior ou menor rigor e respeito pela tradição anticapitalista – suas reflexões por posições apresentadas de modo mais ou menos original pelo marxista austríaco Rudolf Hilferding em O capital financeiro – fase mais recente do desenvolvimento do capitalismo, desde sua publicação uma referência praticamente obrigatória para os marxistas interessados na análise histórica do capitalismo ao longo dos séculos XIX e XX, em especial do ponto de vista “econômico”. Contudo, nesta obra, Hilferding apresenta ambigüidades importantes cujas implicações geralmente são negligenciadas. Referimo-nos ao próprio conceito de “capital financeiro”, a “expressão mais suprema e mais abstrata do capital”. Sob o nosso ponto de vista, o “capital financeiro” de Rudolf Hilferding pode ser lido de duas maneiras distintas. Na primeira delas, a mais freqüentemente empregada, o capital financeiro seria uma extensão do capital bancário, ou melhor dizendo, do capital portador de juros, que passa a subordinar o capital industrial de modo a imprimir uma lógica

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crescentemente “financeira” ao sistema capitalista como um todo. Na segunda forma de interpretar, o capital financeiro seria a “síntese” entre o capital bancário e o capital industrial e, portanto, configura outro tipo de relação social de produção capitalista, ou, noutros termos, uma nova forma, uma nova aparência que, enquanto forma e aparência, não pode negar aquilo que o capital sempre fora – nunca é demais insistir – uma relação social de exploração de classes, de constante produção de homens livres e de acúmulo de riqueza abstrata. • Parece-nos evidente a influência de um modo de pensar hegeliano na teoria de Hilferding – inclusive o próprio autor explicita isso em uma ou outra passagem no seu texto – ainda que não sejamos capazes de extrair daí todas as conseqüências que disto decorre. Temos por projeto algum dia estabelecer um roteiro de pesquisa especificamente com o intuito de desenvolver este tema, que para além do interesse meramente teórico – retomando a reflexão de Bakunin que apresentamos lá atrás, nos parece crucial para que consigamos praticar outras formas de pensamento para além da lógica formal que nos aprisiona como camisa de força. Pra agora, devemos ter em mente que o “capital financeiro” pode ser lido como um desdobramento concreto, uma espécie de “realização”, das contradições daquela relação social de produção que Marx e Engels descreveram como “capital” (capital que gera capital de modo abstratamente indiferente ao meio de valorização). Nesta hipótese, Marx e Engels teriam identificado, ainda no caráter embrionário do capital, aquilo que este somente viria a ser em sua plenitude a partir da consumação da “síntese” do capital portador de juros (grosso modo, bancário) e do capital extrator de mais-valia (grosso modo, industrial). E, neste sentido, podemos ler o capital financeiro de Hilferding como a “superação/suprassunção” (Aufhebung) do capital1113. Ainda na terminologia hegeliana, pode-se falar de uma espécie de reencontro do capital consigo mesmo1114. O tradutor Jesus Ranieri, em edição dos Manuscritos econômico-filosóficos, apresenta o problema da seguinte forma: “outro obstáculo foi encontrar uma tradução adequada para o verbo aufheben que, em alemão, significa a um só tempo [grifo nosso], o ato de erguer (algo do chão), o de guardar (um objeto para que se conserve) e o de suspender (por exemplo, a vigência de um ato jurídico) (...) o significado contido em aufheben e desdobramentos é muito maior, mais rico e variado [do que os supostos correspondentes em língua portuguesa]. [A grande dificuldade é encontrar um] termo adequado que contenha, ao mesmo tempo [grifo nosso], a unidade e a diversidade do original. O que se quer reter é a dinâmica do movimento dialético que carrega consigo, no momento qualitativamente novo, elementos da etapa que está sendo ou foi superada, suprimida, ou seja, a um só tempo, a eliminação, a conservação e a sustentação qualitativa do ser que suprassume [grifo nosso]”. 1114 Um dos temas principais da Odisséia, de Homero. 1113

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• Transpondo as conclusões da “filosofia” para a “economia”: do ponto de vista do capitalista que diversifica seu portfólio em empresas de “capital aberto” – hoje, qual não o faz? – não existe oposição entre a acumulação “produtiva” e a acumulação “financeira”, visto que “juros” e “lucro”, do ponto de vista deste tipo de capitalista, são formas complementares de aumentar a “renda” após a “superação” que o capital financeiro realizou em relação aos capitais “industrial” e “bancário”. Não seria, então, o caso de perguntarmos se – após a conformação daquela que Hilferding defende como a “fase mais recente do desenvolvimento do capitalismo”, ou seja, após a concretização do capital financeiro – o mecanismo de identificação do “capital financeiro” com o “capital portador de juros” e, portanto, da separação efetiva entre juros e lucro, entre indústria e finança, entre burguesia industrial e burguesia financeira não seria o mesmo mecanismo de separação entre “forças produtivas” e “relações de produção”1115? Identificar a separação entre “economia real” e “economia financeira” não seria incorrer no mesmo equívoco (no mesmo fetiche) de tomar a relação de produção pela forma mais imediatamente evidente das forças produtivas? Não seria tomar a aparência pela essência? Não seria o mesmo “fetichismo dos economistas”, o mesmo “economicismo” desde há muito já denunciado no seio do pensamento anticapitalista? Não seria anacrônico o pensamento segundo o qual ainda hoje se pode falar em “capital financeiro” [em termos “líquidos”] e “capital industrial”? Pensamos que sim. Mas antes de tirar daí as conseqüências teóricas desta proposição, precisamos (re)definir cuidadosamente no que consiste a relação “capital”. Do ponto de vista do apoio a projetos políticos e da atuação direta por meio de políticas econômicas, a percepção de que se pode encontrar “capital financeiro” (e, portanto, “burguesia financeira”) separado de “capital industrial” (e, portanto, burguesia industrial) é o fundamento de alianças de partidos supostamente anticapitalistas com a burguesia supostamente nacional motivada pela crença de que o desenvolvimento do setor industrial implica na melhoria das condições objetivas de vida das classes exploradas – crença esta que permanece no bojo da ideologia do “desenvolvimento nacional capitalista”, por sua vez inscrito na ideologia do “progresso” – mesmo quando formalmente desmentida, o que não passa de um discurso “da boca pra fora”. Do nosso Sobre os problemas da separação entre relações de produção e forças produtivas ver Maria Turchetto As características específicas da transição ao comunismo e Charles Bettelheim A luta de classes na União Soviética, especialmente a partir da página 470 do volume II. 1115

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ponto de vista, esta concepção de capitalismo, além de ilusória – porque acredita na absurda idéia segundo a qual o aprofundamento das relações capitalistas pode trazer algum tipo de melhoria para as classes exploradas – é anacrônica, porque a configuração do capital na qual ela se sustenta – a separação entre “indústria” e “banco” – efetivamente não existe mais: há mais de um século1116. Mais do que nunca – ou tanto quanto sempre – a única possibilidade de superação das condições de exploração das classes trabalhadoras é a revolução anticapitalista e as ilusões acerca do “desenvolvimento nacional” não passam de uma fraseologia que, transposta em projetos políticos, acaba por aprofundar a reprodução do modo de produção capitalista em suas feições mais violentas: a exploração ilimitada das pessoas e da natureza. Gostaríamos aqui de ressaltar um ponto crucial da consolidação do capital financeiro ao longo dos séculos XIX e XX, e que, por sua vez, também pode facilmente levar a um enfoque fetichista das relações capitalistas, se bem que por outra razão: a consolidação das modernas sociedades por ações1117. Como vimos, para a conformação dessa nova configuração capitalista assentada na relação social de produção denominada por Hilferding de “capital financeiro”, fizeram-se necessários amplos processos de “síntese” entre os capitais portadores de juros e os capitais extratores de mais-valia. Essa “estreita relação” – concreta – entre o antigo capital bancário e o antigo capital industrial se deu por meio de processos

A quem objetar que o mundo “industrializou-se”, durante este período, cumpre, mais uma vez, esclarecer: produção industrial não implica em capital industrial. A industrialização do mundo – que não é um bem em si mesmo, muito pelo contrário – ocorreu somente porque o capital já era financeiro, no sentido preciso do termo que Hilferding o desenvolve: grandes monopólios no qual é indistinta a parcela “bancária” da parcela “industrial”. 1117 Como lembra o professor Nelson Prado Alves Pinto, no texto “A Institucionalidade financeira”, embora o processo de formação das sociedades por ações tenha se generalizado e se intensificado muito no século XIX, “Já desde o século XVI, e em particular nos empreendimentos mercantis que marcaram a expansão comercial européia, o recurso à associação de numerosos homens de negócios vinha sendo uma prática bastante difundida.” O Professor marca a diferença entre as sociedades por ações mercantis e as modernas sociedades por ações num suposto “objetivo público determinado (colonização de uma região, transporte de mercadorias e passageiros etc.)” que foi “gradualmente abandonado para assumir uma feição genérica de instrumento acelerador do processo de acumulação privada de capitais.” (mesmo texto, página 55). Não concordamos de todo com o Professor, ainda que percebamos a sua clara ênfase no termo “gradualmente”. Do nosso ponto de vista, a expansão das ferrovias, a implementação de hidrelétricas e, mesmo, o fortalecimento das indústrias de manufaturados em contextos de guerras (internas e externas) obedeceu a um evidente interesse geoestratégico-militar que é tanto um “objetivo público determinado” quanto a “colonização” e o “transporte de mercadorias e passageiros”. Para explicar de modo mais substancial as diferenças entre as sociedades por ações da época mercantil para a sociedade por ações modernas seria necessária uma comparação acurada entre as diferenças entre as relações sociais de produção do “capital mercantil” e as relações sociais de produção do “capital financeiro”, assunto que tocamos neste texto de modo muito tangencial, mas que merece uma investigação aprofundada. 1116

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extremamente complexos de associação de estratégias de investimento, mas também de valores e hábitos que forjaram a “visão de mundo” imperialista. 1118 Uma das mais importantes expressões dessa nova configuração social é o novo modo como se articula a propriedade privada dos grandes capitalistas financeiros por meio das modernas sociedades por ações1119. Este complexo e contraditório processo de reconfiguração das relações de exploração capitalistas (que é também resultado da luta de classes, embora, neste primeiro momento, apareça como uma reconfiguração somente entre a classe dos capitalistas) teve como elemento mais evidente aquilo que analistas como Chandler, Berle, Means e Galbraith interpretaram como a “revolução gerencial” ou “burocratização”, em que as classes gestoras do capital supostamente ganharam uma importante autonomia em relação aos proprietários capitalistas. Na sintética expressão de Berle, “O capital estava presente, assim como o capitalismo, o fator que desaparecia era o capitalista”1120. Do nosso ponto de vista, nos parece que esta posição somente pode ser sustentada a partir de uma ideologia que nega a própria exploração de classe. Como fosse possível capitalismo sem capitalistas. • O professor Nelson Prado, desde a sua tese de doutorado1121, retomada em textos na revista Crítica Marxista1122, procura demonstrar alguns dos absurdos que sustentam Essa “fusão” das classes sociais da antiga aristocracia agrária, da burguesia crescentemente industrial e dos grandes comerciantes (em especial no caso britânico) é o objeto do terceiro capítulo da nossa referida dissertação, e ainda que não estejamos de todo satisfeitos com o modo como lá apresentamos essa discussão, indicamos que ali o argumento se encontra bastante mais desenvolvido do que podemos apresentar neste trabalho. 1119 Neste trabalho não abordaremos o complexo processo de incorporação de partes da renda das classes exploradas e a sua forçada solidarização com os interesses financeiros por meio de fundos de pensão e outras formas de expropriação financeira da classe trabalhadora, a partir de então duplamente explorada (por meio da extração da mais-valia e por meio do engodo que é a participação no jogo especulativo por quem não tem acúmulo de capital o suficiente para gozar dessa prerrogativa), como se pode observar na atual crise capitalista. Este processo de dupla exploração da classe trabalhadora ocorre num momento posterior à formação dessa concentração e centralização de capital que tratamos aqui por capital financeiro e, embora esteja umbilicalmente ligada a ela, exige que se façam algumas mediações muito importantes que não nos propomos a apresentar aqui. Este é um tipo de tarefa imprescindível que cabe às gentes do nosso tempo. O que mais uma vez corrobora nosso argumento: não se trata de reafirmar que tudo permanece da maneira descrita pelxs clássicxs, mas de saber que as mudanças atuais estão inscritas nos mesmos marcos – e portanto, neste sentido, na mesma temporalidade – do começo do século XX. 1120 Citado por Nelson Prado em O capitalismo financeiro. 1121 PINTO, Nelson Prado Alves. O capital financeiro na economia contemporânea: uma revisão teórica e histórica de seu papel no desenvolvimento recente dos Estados Unidos. 1994. 172 f. Tese (Doutorado) - Curso de Economia, Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994. Disponível em: . Acesso em: 3 ago. 2015. 1122 O mesmo O capitalismo financeiro e A institucionalidade financeira. 1118

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essa concepção de capitalismo. O primeiro deles é a crença de que, com a expansão das modernas sociedades por ações, e, portanto, com o agigantamento da diversificação de investimento por parte dos capitalistas tomados individualmente, houve uma perda de controle destes capitalistas sobre seu “capital”, como pareceu aos autores citados. A participação ativa dos capitalistas (proprietários dos meios de produção) nos conselhos deliberativos das corporações e as freqüentes mudanças nos quadros gerenciais dessas corporações nos parecem provas muito convincentes do argumento do professor Nelson Prado – que, diga-se de passagem, de um ponto de vista não-deslumbrado com o sistema de exploração capitalista, é bastante óbvio – de que a mudança na forma de propriedade não altera o caráter fundamental do capitalismo, que continua sendo um sistema de expropriação das classes trabalhadoras por parte de uma classe detentora dos meios de produção levado a cabo por substratos de classe que intermedeiam essa relação e “gerenciam” o “capital” dos capitalistas trabalhando arduamente para aumentar o patrimônio da classe exploradora, executando diretamente a exploração em benefício dos exploradores e fazendo parecer possível um capitalismo sem capitalistas. Pois assim como em todos os outros modos de produção fundados na exploração de classe, no capitalismo, entre a classe exploradora e a classe explorada proliferam-se inúmeros serviços ocupados pelas assim chamadas “classes médias”. Nada disso é alterado a partir da multiplicação das modernas sociedades por ações. Os capitalistas continuam se valendo de seus “gerentes” para expropriar os “trabalhadores”, cuidando de mantê-los, ambos os gerentes e os “trabalhadores” cada vez mais “livres”, cada vez mais distantes do controle sobre os meios de produção em que se funda a exploração. E como, no sistema capitalista, o controle dos meios de produção assume a forma de propriedade privada expressa num contrato que tem por fim esconder a exploração efetiva por meio de uma suposta igualdade jurídica formal; é por meio da associação da propriedade (ações) que se reconfigura esse momento “financeiro” do capitalismo, provocando – e não sendo provocada por elas – inúmeras alterações no ordenamento jurídico de modo a modificar a morfologia do capitalismo. É o que nos ilustram os próximos três parágrafos nos quais o Professor Nelson Prado nos conta como se deu uma importante mudança jurídica no ordenamento estadunidense para “permitir” a proliferação das megacorporações: O arraigado temor de um poder político centralizador associado ao ideal da propriedade privada que marcavam a tradição jurídico-institucional

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norte-americana compunha uma trajetória contraditória cuja síntese apontava para a expansão do capital financeiro. Assim foi na questão que envolveu as grandes ferrovias que, desde os primeiros anos da década de 1870, vinham sendo acusadas de práticas discriminatórias prejudiciais aos pequenos e médios empresários e, principalmente, aos agricultores. Tarifas monopolistas, descontos discriminatórios e taxas de armazenagem abusivas constituíam algumas das freqüentes queixas contra o poder dessas companhias gigantescas. Em 1877, a Suprema Corte (Munn vs. Illinois) reconheceu aos Estados o direito de disciplinar a atividade de transporte a despeito de sua óbvia interferência no âmbito da propriedade privada. As linhas interestaduais, no entanto, escapavam ao controle local e sua regulamentação exigiu uma manifestação do Congresso federal mediante o Interstate Commerce Act e a criação da Interstate Commerce Comission (ICC) em 1887. Embora superficialmente [grifo nosso] contrárias aos interesses privados, tais medidas reforçavam a jurisdição da União sobre o que antes constituía um privilégio estadual. Além disso, analogamente ao que acontecera com o transporte ferroviário, as grandes empresas dos setores industrial e de distribuição acabaram sendo atingidas pela proibição de promover quaisquer acordos que visassem restringir a concorrência comercial, sob a forma do Sherman Anti-Trust Act de 1890. Ao mesmo tempo que se admitia que a amplitude desses grandes empreendimentos requeria uma regulamentação centralizada de abrangência nacional, a Suprema Corte estendia sua proteção à sociedade por ações, ao reconhecê-la como titular dos direitos expressos pela 14ª Emenda Constitucional de 1868. Ou seja, as companhias privadas passaram a ser incluídas entre as pessoas às quais se garantia o direito à vida, à propriedade e à liberdade contra quaisquer limitações impostas pela União ou pelos estados federados, sem processo judicial competente. Essa curiosa interpretação de um instrumento jurídico que visava fundamentalmente à proteção das minorias raciais após o término da Guerra Civil foi oficialmente consagrada através de uma decisão da Suprema Corte (Santa Clara County vs. Southern Pacific Railroad Co.) de 1886. Nessa sentença, a sociedade por ações foi definitivamente entronizada como uma pessoa. Dessa maneira, ao se iniciar o século XX, a grande empresa tinha adquirido uma vida legal/institucional autônoma que a tornava desvinculada dos indivíduos que a constituíam, fossem eles seus proprietários ou seus administradores. Seus haveres e suas receitas ganharam a proteção de uma jurisprudência cujo objeto era o complexo de recursos produtivos integrados sob a forma de uma instituição que independia dos beneficiários desse empreendimento. No mesmo sentido, essa evolução se fez acompanhar, como não poderia deixar de ser, de uma transformação do significado jurídico da noção de propriedade. Onde antes – numa sociedade fundamentalmente rural – esse conceito exprimia a posse de bens produtivos ou de desfrute pessoal, agora era necessário garantir os benefícios derivados de um título sobre rendimentos futuros. 1123

Na prática, o que essas alterações no ordenamento jurídico expressam – e, assim, ao mesmo tempo facilitam – é a formação de uma “nova” classe social – com efeito, uma 1123

A Institucionalidade Financeira.

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nova forma de configuração das classes dominantes – representada pela figura do “capitalista financeiro” que, por dominar uma relação social que funde objetivamente o capital portador de juros com o capital extrator de mais-valia por meio da propriedade privada dos meios de produção, é superior em sua capacidade de exploração de classe e acumulação de riqueza abstrata – no final, a que importa no modo capitalista de produção – e justifica a reprodução da ideologia burguesa de dominação – que passa, conforme já discutimos, pela ilusão do direito burguês.  Sobre a forma atual na qual aparece o domínio da classe capitalista, a “moderníssima sociedade por ações” – supostamente uma grande novidade desde a longínqua e inescapável crise de 1973 – deixemos anotado que, para nós, do mesmo modo como a extinção “por meio de uma canetada” – por uma operação meramente jurídica – da propriedade privada burguesa na União Soviética não implicou na automática abolição da exploração de classe capitalista – conforme discutimos anteriormente – a mudança na propriedade privada – passando do proprietário individual para o proprietário de ações aplicadas de modo diversificado por inúmeros veículos de reprodução ampliada do capital – nas sociedades capitalistas do “Ocidente” – em especial na Alemanha e nos Estados Unidos – não implica na absurda “alienação do capitalista” em relação ao controle sobre os meios de produção, quanto menos sobre o produto do trabalho dos operários ou dos juros obtidos nos processos “especulativos” de remuneração do “capital”. E portanto – nos parece importante, ainda que ridículo, afirmá-lo, dada a obviedade do caso – os capitalistas continuam sendo a classe dominante do capitalismo, ainda que a forma da sua dominação tenha se modificado. Assim, nesse caso específico, não se trata apenas de descrever como se dá a separação entre a “propriedade” e a “gestão”, ou quais foram as ultimíssimas “inovações financeiras”, mas é preciso entender em profundidade – e de uma perspectiva menos imediatista – como se deu a dinâmica de classes e o movimento do “capital” (uma das expressões dessa dinâmica de classes) de modo a alterar a relação social de produção capitalista para que a expropriação das classes trabalhadoras continuasse e se reproduzisse – ainda por cima de forma ampliada – “em ‘extensão’ e em ‘profundidade’” 1124,

1124

ou seja:

Turchetto, obra citada, pág. 10.

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a crescente concentração e centralização do capital não representa simplesmente [...] um aspecto da concorrência intercapitalista, do movimento dos capitais individuais na esfera da circulação. A concorrência entre os capitais individuais é um processo no qual atua – na condição de ‘lei coercitiva externa’ – a lei imanente que rege o movimento do capital enquanto tal: aquele da sua crescente valorização1125

O capital – da qual o “capital” enquanto propriedade dos meios de produção é apenas uma expressão – é uma relação social de concorrência intercapitalista (acumulação) e exploração de classe (expropriação). Noutras palavras, “a troca mercantil [TFF: que intermedeia tanto as relações de concorrência quanto as de exploração] é a manifestação fenomênica (e fetichista) [TFF: aparente] da relação específica que subordina o trabalho ao capital: e isto, de fato, é o que se trata de identificar”1126, ou seja: ‘propriedade’ significa disposição efetiva, independentemente da forma jurídica na qual esta última é sancionada pelo direito burguês, e que podem ser muito diferentes da ‘propriedade privada’ – individual – em sentido estrito, como demonstra a forma da propriedade acionária, da propriedade ‘pública’ das empresas estatizadas, etc. 1127

Simplificando os termos, podemos afirmar que “propriedade” não é uma relação meramente jurídica, é a expropriação “objetiva” (“do produto”) e “subjetiva” (“dos meios de trabalho, do conhecimento do processo e da potência mental”)1128. Trocando em miúdos, propriedade é a manifestação fetichista da relação social de produção de acumulação e expropriação. Por isso mesmo, o que comanda a transformação das forças produtivas materiais não é a ‘propriedade capitalista’ enquanto relação jurídica (ao contrário, a ‘sanção jurídica’ completa da relação de produção capitalista intervém com um certo ‘atraso’ em relação ao início do funcionamento efetivo das formas produtivas burguesas1129), porém a disponibilidade efetiva dos meios de produção por parte da classe dos capitalistas, contraposta à expropriação – objetiva – dos produtores. O que faz a diferença não é a forma em que aparecem os títulos de propriedade, mas a “disponibilidade efetiva dos meios de produção”. É a capacidade de acumular riquezas infinitamente ao mesmo tempo em que se reproduzem as condições materiais objetivas que impedem que a

1125 Turchetto, obra citada, págs. 18 e 19 1126 Turchetto, obra citada, pág. 33. 1127 Turchetto, obra citada, pág. 26. 1128 Turchetto, obra citada, págs. 34 e 35 1129Os textos do professor Nelson Prado que citamos apresentam exemplos bastante evidentes deste “atraso” no caso específico das modernas sociedades por ações.

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classe trabalhadora acumule riquezas e constitua capital, passando, assim, de explorada a exploradora1130. A relação de produção capitalista [TFF: da qual uma de suas expressões assume a forma fetichizada de propriedade privada] está, de fato, inscrita na estrutura mesma das forças produtivas materiais, na organização do processo de trabalho, na divisão técnica do trabalho e na divisão social do trabalho dela derivada, na autonomização da ciência e da técnica em relação aos produtores diretos, no conseqüente ‘esvaziamento’ da capacidade laborativa humana, etc. (...) Enquanto a estrutura material da produção não for transformada (nisso consiste, precisamente, a transição ao comunismo), é sempre possível que também se forme outra vez uma nova burguesia, uma nova classe de ‘agentes do capital’, sobre a base da permanência da relação de produção capitalista (isto é, da subordinação real dos trabalhadores aos elementos materiais e à organização do processo produtivo) e da presença dessa última em uma divisão do trabalho (e, portanto, na esfera das relações de distribuição e de circulação) que reproduz as divisões, os papéis, a ‘estratificação social’ próprias da sociedade burguesa1131

Do que temos que destacar dois pontos fundamentais. O primeiro deles, é que a propriedade privada capitalista não é uma relação social descontextualizada e universal, mas uma relação social típica do modo capitalista de produção e representa uma peça importante na reprodução da ideologia burguesa, prometendo uma igualdade formal cotidianamente negada por meio da própria reprodução das condições objetivas no modo de produção capitalista. E não é demais ressaltar que modo de produção também não é um conceito “econômico” referente aos caracteres mais imediatamente observáveis – embora este seja um grande fetiche para os economistas – mas um complexo e específico modo de organizar a produção das coisas – tanto as “supérfluas” quanto as “necessárias” à sobrevivência da espécie humana – dispostas de tal maneira e marcadas por relações sociais específicas que constituem o jeito essencial a partir do qual os homens se organizam para dar conta de suas necessidades materiais e espirituais, como descrito na passagem da Ideologia Alemã na qual Marx e Engels afirmam que os homens têm de estar em condições de viver para poder ‘fazer a história’. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, E é claro que se alguns trabalhadores, individualmente, superam essa divisão e trocam de lado, este fato não invalida a lógica geral do sistema capitalista que mantém a esmagadora maioria da população mundial submissa aos desígnios dos grandes capitalistas, que podem dispor de seus capitais conforme seus caprichos e outras peculiaridades que momentaneamente fazem deste ou daquele negócio – “produtivo” ou “financeiro”, em Detroit, São Bernardo do Campo ou Xangai – o mais interessante para ele. O fato de que alguns trabalhadores passam a capitalistas, inclusive, é uma das principais fontes de legitimação da ideologia burguesa supostamente meritocrática. 1131 Turchetto, obra citada, págs. 24, 30,31 1130

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moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. 1132

Do que decorre o segundo ponto: o modo capitalista de produzir as condições essenciais da vida se caracteriza por uma justificação essencialmente “econômica” da estratificação social, porque é “econômico” o seu mecanismo constante de acumulação e expropriação. Por meio da disposição objetiva dos meios de produção por sua parte, uma classe (capitalistas) aparece como estivesse oferecendo às outras as condições de se reproduzirem quando, na verdade, não faz mais que expropriá-las. É extremamente decisivo para a reprodução da ideologia capitalista que a expropriação seja velada através de mecanismos como a “propriedade privada” que representa esse duplo papel de justificar ideologicamente a dominação e impedir objetivamente que as classes expropriadas consigam combater a exploração. Desse modo, “a classe capitalista é diferente das anteriores classes exploradoras porque a sua ‘despersonificação’ faz com que se apresente mais como ‘agente da produção’ (da valorização) do que como classe ostensiva de ‘exploradores’”1133 e essa “despersonificação” é também o ponto em que é possível “separar” (de modo fetichizado) o capital “produtivo” do “especulativo”, a “indústria” da “finança” e os “proprietários” (que parecem não controlar o capital) dos “gestores” (responsáveis por operar diretamente a exploração). Ou seja, é típico do modo de produção capitalista que as classes dominantes sejam “despersonalizadas” e pareçam não participar da relação direta de exploração – mediada, dentre outros fatores, pelas formas jurídicas e pelo papel ativo dos gestores; sendo que, quando os capitalistas aparecem, essa aparição é considerada um favor aos trabalhadores – como oferta de “emprego” – seja no setor de produção; seja no assim chamado –

Marx e Engels, Ideologia Alemã, página 33. Sobre o conceito “modo de produção”, pretendemos voltar a ele noutras ocasiões. 1133 Turchetto, mesma obra pág. 40. 1132

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sintomaticamente – setor de serviços (não por acaso, os trabalhadores servem aos capitalistas e todos servem ao soberano Deus-Capital1134). O fato é que, como não deixará de ser enquanto o modo de produção capitalista continuar capitalista, “a formação social burguesa é, na aparência, um conjunto de diversas formas produtivas ligadas entre si através do ‘capital mercantil’; na realidade profunda, é um complexo de diversos níveis de penetração da lei de valorização (portanto, de diversos níveis de ‘desenvolvimento capitalista’)” 1135. É parte fundamental da lei de valorização a concorrência intercapitalista, tanto quanto a expropriação das classes trabalhadoras. Não é parte fundamental da lei de valorização a forma específica por meio da qual se configura a propriedade dos meios de produção. O capital – relação social de acumulação de riqueza, produção de homens livre e exploração de pessoas – continua se valorizando – ou seja, continua ampliando constantemente o fosso existente entre as classes trabalhadoras e as classes capitalistas – tanto na propriedade unitária quanto nas modernas sociedades por ações. Esta é somente a forma preferida dos capitalistas a partir da constituição do capital financeiro – síntese entre capital portador de juros e capital extrator de mais-valia – ao longo dos séculos XIX e XX. E é preferida somente porque superior às demais na sua capacidade de valorização.

“Sou o Capital, o senhor do universo, o capitalista é meu representante: perante ele os homens são iguais, todos igualmente curvados sob a sua exploração. O diarista que aluga a sua força, o engenheiro que oferece a sua inteligência, o caixeiro que vende a sua honestidade, o deputado que trafica com a sua consciência, a prostituta que empresta o seu sexo, todas são para o capitalista assalariados a explorar” (P. 90). Sobre a origem desta relação, temos a seguinte fábula: “Nos negros tempos da Idade Média, quando o Capital, nosso Senhor, semelhante à criança que palpita surdamente no ventre da mulher, se elaborava misteriosamente no fundo das coisas econômicas, quando nenhuma boca profetizava o seu nascimento, quando a alma humana, ignorante da vinda de um Deus, não estremecia de alegria, então apesar de tudo o Capital começava a dirigir as ações dos homens. Soprou no espírito dos cristãos da Europa o selvagem impulso que os precipitou para as rotas da Ásia em bandos mais unidos do que os batalhões de formigas. Nesses tempos, os chefes dos homens eram grosseiros senhores feudais, que viviam dentro das couraças como lagostas dentro de sua carapaça, que se alimentavam de carnes pesadas e de bebidas espessas, que não consideravam outros prazeres senão os golpes de lança nem conheciam outro luxo que não fosse uma espada bem temperada. Para mover esses brutos, o nosso Deus teve de descer ao nível da sua Inteligência mais densa do que o chumbo: sugeriu-lhes a idéia de serem cruzados, de correrem à Palestina para libertar as pedras de um túmulo que nunca existiu. Deus queria leva-los aos pés das cortesãs do Oriente, inebriá-los de luxo e de prazeres, implantar no seu coração a paixão divina, o amor pelo ouro. Quando regressavam aos seus sombrios solares, onde os mochos ululavam, com os sentidos ainda perturbados pelo ouro e pela púrpura das festas, pelos perfumes da Arábia e pelas moles carícias das cortesãs depiladas, desgostavam-se das suas fêmeas desajeitadas e peludas, que fiavam e concebiam e não sabiam mais nada; coraram da sua barbárie e, tal como uma jovem mãe prepara o berço do filho que vai nascer, eles construíram as cidades do Mediterrâneo, criaram as cortes ducais e reais da Europa para a vinda do Deus-Capital. (p. 76 e 77)”. Como x leitorx pode verificar por si mesmx, é mais verossímil do que o costume. 1135 Turchetto, mesma obra, pág. 54. 1134

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Diferentemente do que se pode pensar quando se atenta somente para os aspectos imediatamente aparentes da realidade contemporânea, em que a propriedade está pulverizada por meio de mercados de ações e outras “inovações financeiras” e os gigantescos fundos de investimento parecem refletir mais o poder dos gestores e CEO’s do que o dos capitalistas, a forma com que aparece o capital financeiro no século XXI não passa de um produto da luta de classes (capitalistas versus trabalhadores, intermediada pelas classes gestoras) capitalista e a afirmação de que é possível existir um capitalismo sem capitalistas não passa de fraseologia vazia. Na língua-mãe dos formuladores de tal epístola: bullshit. Uma sociedade sem capitalistas só é possível por meio da luta revolucionária de massa, a qual rompe as relações sociais e ideológicas antigas e permite a edificação de relações novas. Tal luta não é uma ‘luta de idéias’, mas uma luta de classes que destrói as antigas práticas e as antigas relações sociais 1136

e abre caminho para uma “nova construção econômica, do estabelecimento de relações sociais novas, de uma nova disciplina do trabalho, de uma nova organização do trabalho”1137. •

Por fim, a título de contraponto, nos interessa destacar a opinião emitida por Lenin acerca de um projeto autonomamente executado pelos trabalhadores russos. Em suas palavras, ... a organização dos sábados comunistas pelos operários, por sua própria iniciativa, tem uma importância verdadeiramente gigantesca. Sem dúvida, é apenas um começo, mas um começo de importância infinita. É o início de uma revolução mais difícil, mais essencial, mais radical, mais decisiva do que a derrubada da burguesia, pois é uma vitória sobre a nossa própria rotina, nosso relaxamento, nosso egoísmo pequenoburguês, sobre esses hábitos que o capitalismo maldito legou ao operário e ao camponês. Quando essa vitória estiver consolidada, então, e somente então, a nova disciplina social, a disciplina socialista terá sido criada; então, e somente então, a volta ao passado, a volta ao capitalismo, tornar-se-á impossível, e o comunismo verdadeiramente invencível.1138

Parece-nos um exemplo ilustrativo de que não se deve esperar que a mudança social ocorra por meio de decretos, por “canetadas”, por medidas “jurídicas” ou “econômicas”. O buraco é muito mais embaixo, e a “revolução”, muito mais difícil do que Bettelheim, pág. 478 do vol. II Bettelheim pág. 182 do vol. I. 1138 Lênin citado por Bettelheim na página 180 do volume I. 1136 1137

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parecia antes da experiência soviética. Mas que o exemplo dos russos não pese sobre nós como uma ducha de água fria, como pesou nas gerações que nos precederam. Esta é uma análise pessoalizada e inevitavelmente atinge as pessoas que vivenciaram aquela experiência e acreditaram que o fim da exploração de classes estava próximo. A nossa geração, que não passou pela ilusão ou pela desilusão da experiência russa, deve absorver dela o que uma experiência do passado pode fornecer de melhor: o exemplo, de modo a que os equívocos cometidos não sejam repetidos no futuro1139.

Por exemplo, é necessário que repensemos de modo radical essa ética do trabalho – como sugerem autores como Lafargue, Black e o Grupo Krisis – e o produtivismo, que nada poderá realizar da promessa que ele contém, mas está fatalmente tornando a vida neste planeta a cada dia mais inviável. 1139

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Parte VI – Considerações sobre a periodização do Imperialismo Capitalista: o “novo” imperialismo e o imperialismo velho de guerra

“Eu não vivo no passado, o passado é que vive em mim” (Paulinho da Viola)

No capítulo anterior tivemos a ocasião de comentar duas teses bastante trabalhadas na historiografia do imperialismo, sem que, contudo, nos pareçam igualmente bem trabalhados os aspectos específicos que procuramos ressaltar aqui. Do nosso ponto de vista, tanto a idéia de reprodução social total quanto o capital financeiro se oferecem como as balizas principais pelas quais devemos pautar as estratégias revolucionárias hoje. Por outro lado, esperamos ter ficado um pouco mais clara a nossa posição segundo a qual ainda há muito que ser investigado nas teorias “clássicas”, que muito distante de terem caducado, apresentam uma atualidade que, ao nosso juízo, só pode ser explicada pelo fato de que, em alguma medida, ainda vivemos num tempo passível de ser definido pelas características fundamentais que marcam o imperialismo capitalista desde o final do século XIX. O próximo capítulo tem por objeto a tentativa da Professora Virgínia Fontes de oferecer uma proposta de periodização do imperialismo capitalista. Procuraremos julgar seus

limites

e

destacar

seus

méritos.

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Capítulo 11. Alguns comentários sobre a periodização de Virgínia Fontes sobre o (capital)imperialismo “400 anos de favela, sem água, com mágoa, 400 anos de favela, sonhando com ela, 400 anos de favela e eu só levando a pior” (Zé Keti)

O livro O Brasil e o capital-imperialismo, de autoria da Professora Virgínia Fontes, é uma obra grandiosa. Animada pelo ambicioso projeto de “fundamentar o desafio de compreender a forma específica do capitalismo e do imperialismo contemporâneos e, nele, o papel desempenhado pelo Brasil” (p. 11), segundo a própria autora, o livro resulta de vários anos de pesquisa e docência profissional a partir do exercício crítico mergulhado na atuação junto a movimentos sociais que teimosamente resistem – necessárias críticas à parte – de maneira anticapitalista, em busca da emancipação da humanidade para além dos desígnios do capitalismo. Ao que se destacam, desde o início, alguns dos principais méritos da autora: a) o posicionamento inequívoco ao lado dos explorados; b) o exercício crítico radical que não sacraliza autores consagrados pela sua importância teórica e política; c) a preocupação com a necessidade de compreensão do tempo presente; d) a impossibilidade de quaisquer concessões ao pensamento outrora conhecido como reformismo pequenoburguês; hoje travestido das mais variadas fantasias tidas como “desenvolvimentistas”. A partir de sua postura crítica firmemente solidarizada com os explorados e atenta ao tempo presente, a Professora Virgínia forjou uma obra cujo ponto alto consiste em sua complexidade. Síntese de décadas de estudo e militância, O Brasil e o capitalimperialismo: teoria e história é, ao mesmo tempo, uma tentativa de (re)abertura de pesquisas com vistas à luta concreta e atual contra o capitalismo a partir da condição periférica especificamente brasileira. Examinemos de perto, a título de aproximação, esta complexidade, para tentarmos colaborar com essas pesquisas. Primeiramente, a autora se ocupa com o tratamento simultâneo dos diversos níveis de realidade. Enquanto a primeira parte (capítulos I; II e III) se dedica ao enfrentamento da compreensão do nível estrutural, ou seja, à tarefa de entender como podemos caracterizar, a partir da atualização dos conceitos clássicos, o capitalismo (contemporâneo) em geral – “o eixo estrutural das condições de reprodução do capital”

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(p. 40); a segunda parte (capítulos IV; V e VI) se dedica à apreensão das conjunturas e acontecimentos por meio de um recorte ao mesmo tempo geográfico (Brasil) e temporal (a partir da década de 1970); complementada por um capítulo (VII) dedicado ao tributo em forma de polêmica – “fruto do debate de aprendiz com o mestre, do qual ousa discordar, porém sem perder a ternura” (p.15) – com Ruy Mauro Marini – marginalizado intelectual da vertente marxista da Teoria da Dependência, cuja importância acadêmica vem crescendo muito nos últimos anos, abrindo espaço para variados estudos que procuram incorporá-lo criticamente aos estudos anticapitalistas. Ao mesmo tempo, a professora Virgínia se lança à manjada, difícil e importantíssima tarefa de dialogar para além das camisas de força impostas pela separação das disciplinas. Inequívoca quanto à importância do marxismo (tentativa de síntese entre teoria e história?) e ciente que “Marx jamais perde de vista os múltiplos níveis da realidade social, associando-os e expondo os nervos centrais, determinantes, do processo histórico sob o capitalismo” (p.39), a Professora Virgínia recorre em seu texto a três momentos absolutamente fundamentais da herança socialista: a) as formulações iniciais de Marx e Engels; b) o debate sobre o Imperialismo (no texto, representado, sobretudo, por Lenin) e c) as tentativas de compreensão dos problemas específicos da política em geral e do Estado em particular (representadas, no texto dela, sobretudo, por Gramsci). Aqui, a autora recorre à Economia Política, às leis econômicas da concorrência intercapitalistas (economia?) e às dinâmicas de classe e hegemonia no âmbito do Estado (política?), sempre atenta aos impactos socioculturais (sociologia? antropologia?) analisados histórica e geograficamente. Por fim, Virgínia aborda o seriíssimo problema historiográfico da periodização, ou seja, da explicitação da dupla dimensão do capital enquanto uma relação ao mesmo tempo duradoura (o que o capital sempre é; ou o que o define enquanto tal: “as imposições lógicas da acumulação de capital, às quais está submetido o conjunto do sistema capitalista” p.40) e suas mais variadas formas históricas (as formas pelas quais aparece sem deixar de ser o que sempre foi – “seu sentido histórico, dinâmico, uma vez que essa estrutura existe e se organiza através da luta de classes e da concorrência (conflito intercapitalista)” p.40). É neste ponto que se situa a dificílima tarefa de compreender analiticamente as semelhanças e diferenças entre o capital em geral e o capital no tempo presente, ao que se impõe a tripla necessidade de a) definir a essência do capital; b) definir suas formas

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aparentes; e c) explicar a mudança de uma forma aparente para outra forma aparente – posto que o capital “modifica-se ao mesmo tempo em que perpetua suas clivagens fundamentais” (p. 145). Esta jornada exige, evidentemente, o tratamento crítico dos autores clássicos para “identificar algumas das modificações cruciais que [o capitalismo] experimentou nos quase cem anos que nos separam de Lenin” (p.154-5), posto que “não parece mais suficiente, embora ainda seja necessário, enfrentar o imperialismo no seu formato clássico, na luta pela independência nacional” (p.206), uma vez que, da perspectiva anticapitalista, a tarefa fundamental é, sempre, a compreensão do tempo presente, recorrendo à herança analítica dos grandes autores, mas cientes de que existem outros problemas a serem enfrentados. Em termos gerais, estas são algumas das características essenciais da gigantesca empreitada à qual a Professora Virgínia se lançou ao tentar dar corpo ao conceito de capital-imperialismo enquanto mais uma etapa do capitalismo levada a cabo por um “novo salto no patamar de acumulação de capital, impulsionado por um salto escalar no processo de expropriações sociais, primárias e secundárias, que altera quantitativa e qualitativamente, mais uma vez, seu teor ao longo dessa expansão” (p.146). Uma obra dessa grandeza, com este nível de complexidade e com os propósitos que a motivam, deve ser julgada, sobretudo pelos seus méritos. Entretanto, ciente de que não há maior elogio ao pensamento crítico que a própria crítica, arriscamos aqui alguns comentários com o intuito de aceitar a provocação – que a autora nos fez a nós, anticapitalistas – de “procurar sacudir interpretações, evitar sacralizações e socializar esboços de interpretação em construção” (p. 145).  Da complexidade de O Brasil e o capital-imperialismo selecionamos apenas algumas observações sobre as leituras clássicas do imperialismo e o critério de periodização proposto pela Professora – deixando para outra ocasião a importantíssima parte do livro dedicada aos problemas específicos do Brasil. Procuramos, com isso, a partir de pontos abordados de modo menos ou mais nucleares ao longo do livro, apontar para alguns caminhos possíveis nesta grande pesquisa coletiva em andamento – cujas teses a própria autora reconhece, talvez com exagerada modéstia, “hesitantes” e “provisórias” (p.145) – com a qual procuramos também contribuir com esta tese. 

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Para a Professora Virgínia, o período do capital-imperialismo apresenta três características: a) “predomínio do capital monetário”; b) “a dominação da pura propriedade capitalista”; e c) um “impulso avassaladoramente expropriador” que resultaram em “modificações profundas do conjunto da vida social” – “universo das empresas, mundo do trabalho, forma de organização política, dinâmica da produção científica, a cultura, enfim, o conjunto da sociabilidade” (p. 146). Este salto, por sua vez, seria o resultado das expansões do capital na virada do século XIX para o XX, objeto de intensos estudos marxistas dos quais a autora destaca o lapidar opúsculo Imperialismo, fase superior do capitalismo. Já este capital monopolizado teria resultado da própria dinâmica concorrencial inerente ao modo capitalista de produção, jamais superada, senão reforçada pela tendência à monopolização, conforme explicado por Marx quando da escrita de O Capital. Sob nosso ponto de vista, que vimos defendendo desde o princípio, não basta indicar que esses processos resultaram em “modificações profundas do conjunto da vida social” – “universo das empresas, mundo do trabalho, forma de organização política, dinâmica da produção científica, a cultura, enfim, o conjunto da sociabilidade”. Além disso, é preciso explicar como esse período de “predomínio do capital monetário”; “a dominação da pura propriedade capitalista”; e um “impulso avassaladoramente expropriador” não pode ser explicado com os conceitos “clássicos”. Ainda sob nosso ponto de vista, por mais que o período denominado – voltaremos à questão do nome – pela Professora Virgínia de capital-imperialismo apresente formas diferentes de manifestação do capital, estas formas estão ainda em sintonia com as características analisadas por Marx até a década de 1880; posteriormente pelas “teorias clássicas do imperialismo” entre 1873 e 1914 e não poderia – sob o risco de invalidar a filosofia marxista da ciência – deixar de explicar o desenvolvimento do capital ao longo do século XX e primórdios do XXI. Nada disso ainda implica, por si só, em um novo período imperialista. Mas nossa hipótese precisa ser demonstrada. Mas antes, tratemos de procurar entender o que a Professora compreende por capital-imperialismo e o período que ele define, dentro do escopo de análise por ela proposto. O primeiro fator a ser destacado é que, para a Professora Virgínia, o capitalimperialismo não é uma escolha política e tampouco pode ser reduzido à atuação de algum país (“nem mesmo se for o país dominante”; e isso ainda quando países

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dominantes formulam explicitamente políticas de predomínio” (p.154)) Apoiada nas teses de Lenin sobre o imperialismo, define que a etapa que está designando por capitalimperialismo seja entendida como a “expansão de uma forma de capitalismo, já impregnada de imperialismo, mas nascida sob o fantasma atômico da Guerra Fria” (p. 149) porque “ao final da Segunda Guerra Mundial, o imperialismo iniciava sua conversão contraditória para capital-imperialismo” (p.151). O recorte temporal, portanto, é claro, e sua definição está declaradamente contra autores que procuram demarcar mudanças estruturais no capitalismo somente a partir da “financeirização” supostamente iniciada na década de 1970 (cf.: p.153-4). Assim, a autora de imediato refuta possibilidades de compreensão da dinâmica contemporânea do capitalismo pelas lentes de termos como “globalização”, “nova ordem mundial”, “neoliberalismo” ou “mundialização do capital”. Ao mesmo tempo, reforça o “conteúdo similarmente capitalista e imperialista” que liga dois períodos não raramente apresentados como opostos (p. 154): o imediato pós-guerra supostamente caracterizado pelo controle do lado tido como mais destrutivo do capitalismo via instituições internacionais intimamente ligadas ao acordo de Bretton-Woods – e não é à toa que essa miragem tenha sido identificada como El Dorado da Golden Age – e a dita ascensão de um “neoliberalismo” que teria deitado por terra aquele capitalismo supostamente domesticado e idílico. Do contrário, o uso do termo capital-imperialismo pretende deixar claro que, tendo se modificado na virada do século XIX para o XX, o capitalismo passou a expandir-se sob a forma de imperialismo e, ao fazê-lo, agregou novas determinações. Seu prolongamento no tempo não significou seu congelamento. Bem ao contrário, sua expansão envolveu modificações substantivas na sua forma de atuação. É, pois, do percurso, expansão e transformações do imperialismo que trataremos a seguir, sendo o capital-imperialismo sua forma atual (p.154, grifo nosso).

Concordamos integralmente com a proposta de entender o pós-guerra e a “desregulamentação” a partir do seu “conteúdo similarmente capitalista e imperialista”. Assim, é necessário, pois, para o entendimento do capitalismo atual, trabalhar com dois níveis distintos de temporalidade: o longo prazo, estrutural, que dá conta das permanências da natureza do capitalismo (em si); e o conjuntural, em que se apreendem as mudanças nas formas aparentes que vão muito lentamente modificando as relações estruturais (e que dão, portanto, o caráter contemporâneo do capitalismo).

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A partir disso, para a professora, existem dois momentos da história do capitalismo que marcaram modificações profundas: a) do último quartel do século XIX até o final da Segunda Guerra (o período clássico dos estudos sobre o imperialismo) e b) o período do capital-imperialismo que o sucedeu. Mas, ainda para a autora, existe uma questão fundamental a ser entendida na década de 1970 – que chama tanta atenção aos autores ligados à leitura idílica do capitalismo domesticado do imediato pós-Guerra – pois seria este o momento em que, em sua avaliação, “o imperialismo dissolvia-se no capital-imperialismo que gerara e nutrira” (p. 194). É, portanto, necessário apreender dois processos com temporalidades distintas que vão se sobrepondo até o momento em que um se dissolve no outro e, assim, não pode ser espantoso o fato de que existem inúmeras semelhanças e permanências – além do fato óbvio por si mesmo que, em seus caracteres essenciais, as relações fundamentais do capitalismo permanecem em grande medida as mesmas. Com efeito, capitalismo – como imperialismo – é um nome, e como um nome é utilizado para definir uma coisa que possui determinadas características. Quaisquer mudanças nessas características que mudarem os fundamentos dessa coisa exigem a mudança do nome, por uma questão de lógica. E pela mesma lógica, quaisquer mudanças em características que não forem fundamentais à coisa não implicam a mudança do seu nome. É evidente, no entanto, que a mudança pode ser no adjetivo que qualifica esse nome. Essas mudanças, em geral, transpondo para o problema da periodização, são mudanças de “subfases”, dentro de uma mesma temporalidade mais ampla. Mas cada uma das “subfases”, evidentemente, partilharão as características fundamentais da “fase”. Assim, para quem estiver ocupado com a tarefa de determinar as “subfases”, é igualmente importante marcar as diferenças que conferem a especificidade de cada uma delas sob o risco de não conseguir definir “subfase” alguma. Neste sentido, “imperialismo”,

“neoliberalismo”,

“globalização”,

“financeirização”

ou

“capital-

imperialismo” podem ser entendidos como “fases” do capitalismo – e, por sua vez, podem ou não ter “subfases” – a depender da explicitação de quais caraterísticas mudaram e quais permaneceram inalteradas Isso tudo é simplesmente um recurso lógico, e, sob nosso ponto de vista, nem sempre vale a pena levar à frente essas classificações. Mas como a questão é avaliar a validade da categoria “capitalimperialismo”, é preciso, com essas questões em mente, analisar detidamente o que a autora apresenta como as diferenças entre o imperialismo e o capital-imperialismo.

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Antes de qualquer outra, temos uma alteração em favor de uma “nova escala de acumulação e de concentração, capaz de atuar em diferentes países” (p. 164). Essa nova escala, por sua vez, teria a) aprofundado a divisão internacional do trabalho; b) modificado a inserção mundial dos países imperialistas, e seu alcance nos demais; c) alterado profundamente a relação entre o campo e a cidade; e d) introduzido inovações comportamentais e culturais em todo o mundo sob seu raio de ação (p. 164-5) criando, assim, “formatos originais de organização política e econômica” e “modalidades de interconexão interimperialistas até então desconhecidas” (p. 172). E tudo isso, evidentemente, sendo causa e efeito de “mudanças comportamentais, nas elites, nas instituições internacionais, nas empresas, nas pessoas” que levariam a inúmeras pressões sociais que teriam sido expressas, em grande medida, ainda que de modo difuso, nos protestos de 1968, nos quais que ganharam força reivindicações de causas particulares aparentemente desprovidas de potencial universalizante como o racismo, o ambientalismo e o feminismo – gerando respostas por um lado violentas e por outro acomodatícias por parte dos Estados nacionais – no que me parece pontos altos da análise da Professora Virgínia para a reconstituição de uma agenda anticapitalista contemporânea. Em síntese, para a autora, no momento que denomina capital-imperialismo, “o formato da vida social parece tornar-se ditado pela centralidade do capital portador de juros” (p. 202), porque “o capital-imperialismo tentacular e totalitário aprofundou a generalização das relações capitalistas” (p. 209) e os imperativos do capital transborda[m] para todas as atividades da vida social e, onde não existem, precisa criá-las, como, por exemplo, através da expropriação de formas coletivas de existência para convertê-las em produção de valor (saúde, educação); da expropriação da própria condição biológica humana para convertê-la em mercadoria, já dominantes nos transgênicos e nas patentes de vida, mas apenas iniciando-se na própria genética humana. (p. 203; grifos da autora).

A idéia é extremamente poderosa, mas ainda é preciso, portanto, entender o vínculo entre o “capital portador de juros” e a “generalização das relações capitalistas”. Como se pode inferir – procuramos fornecer elementos a essa reflexão ao longo da tese – essa discussão é também a discussão sobre a história da expansão do modo de produção da vida capitalista [e também do industrialismo – que não são idênticos] para vastíssimas regiões – durante séculos – pouco ou nada afetadas em seu modo de vida – e

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que, progressivamente, foram tragadas por esse modo de produção que destruiu ou alterou radicalmente formas milenares de vida. No campo do marxismo, essa discussão remete de modo quase automático ao debate sobre o imperialismo, “etapa superior do capitalismo” sob o “capital financeiro”, e aqui residem algumas reservas que temos em relação ao argumento da Professora Virgínia acerca das especificidades do capitalismo contemporâneo. Vejamos como a autora expõe a sua tese. Para ela, o capital-imperialismo seria específico porque, na segunda metade do século XX ocorreria uma efetiva ‘união íntima’ entre capitais de quaisquer origem, embora de outro tipo [em relação à descrita por Lenin] que, progressivamente perderia o formato de uma união evidente entre ‘espécies’ diversas de capitalistas, aproximando-se mais a formulação marxiana de concentração do capital sob pura forma monetária, do capital portador de juros ou, ainda, do processo da pura propriedade de recursos sociais de produção. Com isso, a concentração da propriedade superaria de fato a propriedade dos meios de produção, indo muito além de uma junção entre capitalistas industriais e bancários. O novo patamar de concentração deriva do impulso monopólico propiciado pelo estreitamento da relação entre dois tipos específicos de grandes capitalistas (o capitão de indústria e o banqueiro) característico do início (e de boa parte) do século XX, porém desembocou na constituição de imensos conglomerados multinacionais para, finalmente, se encaminhar em direção a uma propriedade quase descarnada do capital, transformando-se num capital-imperialismo tentacular e abrangendo alguns países ate então periféricos. (p.155, grifos dela)

Desta forma, “a propriedade de tais conglomerados extrapolava a união íntima entre capitalistas e banqueiros” e “tornava-se cada vez mais fusional e abstrata, incorporando doravante não apenas bancos e indústrias, mas qualquer forma de capital, como os grandes circuitos de distribuição” (p. 165); ao que conclui que na nova forma de concentração capital-imperialista, não ocorre uma oposição entre capital financeiro ou bancário e capital industrial ou de serviços, ou ainda meramente especulativo: ela decorre de e impulsiona o crescimento de todas as formas de capital, pornograficamente entrelaçadas (p.198, grifos da autora).

Portanto, podemos verificar a importância para o seu argumento de uma forma de interpretação acerca dos autores do imperialismo. Para ela, na época de formulação das teses clássicas (as décadas de 1910 e 1920), tratava-se de uma “união íntima” entre formas distintas de capital, ao passo que ela estaria identificando, ao longo do século XX, uma transformação desta “união íntima” em um “entrelaçamento pornográfico”. Essa interpretação se torna explícita quando a Professora afirma que “o parasitismo apontado por Lenin no século XX traduzia-se nas famílias riquíssimas, nominalmente

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proprietárias das empresas, mas distanciadas dos processos produtivos de suas empresas”, ao passo que, “na atualidade, a pressão competitiva entre grandes fortunas e sua volatilidade significou uma luta acirrada no interior das formas de gestão do capital” (p. 201) e, assim, para ela, o capital-imperialismo demonstra o parasitismo do conjunto das classes dominantes diante da totalidade da população, característica de todas as formas de dominação de classes. Não é a atividade pessoal do proprietário que caracteriza ou descaracteriza a propriedade do capital, mas a relação social que o envolve. Jamais o parasitismo de uma classe inteira foi tão evidente e provavelmente jamais uma classe inteira devotou-se de maneira tão sistemática e científica a aprofundar formas de extração de mais-valor (p. 201, grifos dela)

Cumpre destacar que não discordamos da autora acerca do fato de que “o que era um anúncio precoce do capital monopolista, em 1914, se concretizaria de fato no imediato pós-Segunda Guerra Mundial (p. 157)”; nem, tampouco, que “jamais o parasitismo de uma classe inteira foi tão evidente” (grifos nossos); mas, ao nosso juízo, é possível compreender, conforme apresentamos no último capítulo, a partir dos próprixs autorxs clássicxs do imperialismo, a ideia segundo a qual o que elxs definem por “capital financeiro” já era a síntese entre todas as formas parciais do capital; e essa síntese é muito mais que uma “união íntima”. Talvez um “entrelaçamento pornográfico”, que é um nome interessante, proposto por Virgínia. Em nosso entendimento – que apresentamos em nossa dissertação de mestrado – a questão do parasitismo, por exemplo, é um dos pontos-chaves do debate de Lenin com o liberal John Atkinson Hobson. Lenin tem uma dívida teórica exaustivamente declarada com Hobson, ao mesmo tempo em que dele discorda frontalmente. Enquanto Hobson diagnostica que o imperialismo decorre de distorções da dinâmica concorrencial do capitalismo, mas que seria possível reforma-lo por meio do apoio a setores neoimperialistas contra o parasitismo dos rentistas da City, Lenin é taxativo quanto ao caráter parasitário do modo de produção capitalista como um todo sobre o metabolismo social global oriundo do trabalho das classes exploradas – daí decorre que somente a revolução socialista poderia extinguir o parasita!. O que queremos enfatizar aqui, é que é preciso reconhecer que as interpretações das teses dxs clássicxs do imperialismo são controversas e a defesa da tese segundo a qual aquelas teorias não dão conta da realidade em que vivemos exige um tratamento menos generalista. Aqui, a ainda a título de sugestão, gostaríamos de destacar alguns

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pontos sobre xs clássicxs, sobretudo, neste caso específico, Rudolf Hilferding – outro autor de quem Lenin se aproxima e se afasta de modo seletivo. Parece-nos importante enfatizar – porque sob nosso ponto de vista é uma lacuna no trabalho de Virgínia Fontes – que a leitura de Imperialismo, de Lenin não pode substituir a contento a leitura de O Capital Financeiro. Neste caso específico, pensamos que ainda que no próprio Imperialismo: fase superior do capitalismo, Lenin afirme que “o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundido com o capital das associações monopolistas de industriais” (cap. VII; grifo nosso), entendemos que em Hilferding, conforme procuramos demonstrar, se torna ainda mais claro que já naquele momento não se tratava de uma “união íntima” – termos que tanto ele quanto Lenin utilizaram muitas vezes, mas que não entendemos como a sua tese principal. Conforme dissemos, no capítulo “Tendências históricas do Capital Financeiro”, Hilferding é categórico ao afirmar que “no capital financeiro aparecem unidas em sua totalidade todas as formas parciais de capital”, uma vez que “a separação entre capital bancário e capital industrial se elimina no capital financeiro” ou, ainda, que “dentro do mesmo capital industrial se suprimem os limites dos setores individuais mediante a associação progressiva de ramos da produção antes separados e independentes”. Em síntese, afirma que “se extingue no Capital Financeiro o caráter específico do capital” (p. 265) A partir dessa leitura, entendemos que as teses de Hilferding, nos termos da Professora Virgínia, podem ser lidas mais como “entrelaçamento pornográfico” que como “união íntima”, e as diferenças no plano teórico entre as teses do “capital financeiro”, (ou do “imperialismo”) e as do “capital-imperialismo” se tornam esfumaçadas, na medida em que não se pode apresentar como específico ao capitalismo contemporâneo uma relação que já se coloca desde o final do século XIX – e que implica tanto o “predomínio do capital monetário”; quanto “[n]a dominação da pura propriedade capitalista”; e num “impulso avassaladoramente expropriador” que resulta em “modificações profundas do conjunto da vida social”. Assim, sob nosso ponto de vista, as análises do capital-imperialismo parecem confundir os níveis de realidade (conjuntura e estrutura) e a conclusão da Professora Virgínia, que pretende definir a especificidade do “capital-imperialismo”, poderia perfeitamente compor o texto de Hilferding sem alterar em nada a sua substância. Segundo ela,

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os primórdios do imperialismo revelavam contradições entre empresas de tipos diferentes; na atualidade, em que pese estas contradições não tenham desaparecido, elas perdem centralidade. De fato, modifica-se o que outrora se definiu como ‘interesse da empresa’, uma vez que em todas tende a prevalecer a mesma lógica – a lucratividade, medida em tempo de retorno e em taxa, de seus proprietários-controladores. A contradição fundamental se torna cada vez mais imediata entre a propriedade capitalista, quer seja exercida pelo proprietário da empresa, pelo proprietário financiador, pelo gestor coproprietário ou pelo Estado, e o conjunto da humanidade. (p. 199)

 E quais são as implicações desse esfumaçamento das especificidades para as teses da Professora Virgínia? Para a sua arguta análise concreta do capitalismo contemporâneo – o ponto forte de O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história – não modifica muito. Mas, do ponto de vista teórico, é preciso explicar como Hilferding, Lenin e Marx [dentre outrxs] conseguiram antecipar relações que se definiriam com mais clareza somente muito tempo depois de suas mortes. A resposta é dada pela Professora: o que ocorre ao longo do século XX é a efetivação de tendências vistas pelos autores clássicos em seu estágio inicial. Mas a questão da sua periodização – que não é uma simples marcação de datas, mas, sobretudo, de definição do que constitui a singularidade de cada período e, portanto, um critério de entendimento das “mudanças qualitativas” – se mostra mais problemática. De modo que parece mais plausível demarcar o que a Professora denomina capital-imperialismo (do pós-guerra aos dias de hoje), não como um novo período em relação ao imperialismo, mas como uma conjuntura em que as características mais fortes do imperialismo (estrutura) se agudizaram. Mas se o que ocorreu foi um aprofundamento, o que há de novo? Certamente, inúmeros exemplos de relações sociais novas, mas se elas não decorrem de mudanças na especificidade da relação central nem invalidam as teses centenárias, como afirmar que se trata de um novo período? Quantas mudanças “de aprofundamento” são necessárias para definir um novo período? Para nos valermos dos jargões consagrados: quantas mudanças quantitativas são necessárias para produzir mudanças qualitativas? Sob nosso ponto de vista, a própria Professora Virgínia oferece avanços muito importantes para a resposta a esse problema, que pode ser explicitado em termos morfológicos: o que ocorre desde os primórdios do capitalismo até os nossos dias, muito mais do que uma alteração substantiva das características essenciais, ou mesmo nas

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formas aparentes, é o aprofundamento de um modo de produção que passa, cada vez mais, a condicionar a existência das pessoas e submetê-las a relações capitalistas para garantir a sua sobrevivência, uma vez que “o capital-imperialismo tentacular e totalitário aprofundou a generalização das relações capitalistas” (p. 209) até que “o formato da vida social parece tornar-se ditado pela centralidade do capital portador de juros” (p. 202), como ela demonstra em incontáveis passagens. Tendo em vista – como a Professora Virgínia demonstra de forma muito elucidativa por meio das discussões sobre as expropriações – que a) a história do capitalismo é a história da luta de classes constantemente pautada pela coerção “econômica” alinhavada (permitida e reforçada) por relações que não são “especificamente capitalistas” – como a violência “política”; e que b) aparentemente, não é possível imaginar algum dia o capitalismo enquanto um modo de produção da vida prescindindo de meios “não especificamente capitalistas” para a sua reprodução, como definir o que é “especificamente capitalista” e, noutros termos, como definir o próprio capitalismo, se ele nunca pôde ou poderá existir em sua forma “pura”? Será que podemos nos contentar com as definições que temos de “capitalismo” – que nunca foram vistas em tempo ou lugar algum? Não nos parece. Talvez seja tarefa teórica e concretamente necessária a elaboração de uma concepção de capitalismo que ultrapasse o que se entende por “especificamente capitalista” e avance a partir do entendimento que o capitalismo é uma relação permanentemente

dialética

entre

reprodução

ampliada

e

acumulação

primitiva/espoliativa/expropriativa ou qualquer outro nome que melhor denomine o que se convenciona chamar por “não especificamente capitalista”; conforme tentou elaborar aquela revolucionária judia polonesa tão maldita. Certamente, o desafio de delimitar os contornos contemporâneos do capitalismo tendo em mente que essas especificidades devem ser vistas como manifestações das relações estruturais deste modo de produção ao longo de sua história constitui atualmente um dos núcleos da agenda de pesquisas anticapitalistas com a qual pretendemos colaborar com nossos esforços nesta tese. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história, a despeito de nossas divergências para com a autora, ao nosso juízo, tem muito a contribuir nesse esforço coletivo. Para isso, esperamos que nosso esforço não tenha sido de todo infrutífero.

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Parte VII. Mais alguns comentários a título de considerações finais

“No dia em que o morro descer e não for carnaval, ninguém vai ficar pra assistir o desfile final na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (é a guerra civil) No dia em que o morro descer e não for carnaval, não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral e cada uma ala da escola será uma quadrilha a evolução já vai ser de guerrilha e a alegoria um tremendo arsenal o tema do enredo vai ser a cidade partida no dia em que o couro comer na avenida se o morro descer e não for carnaval O povo virá de cortiço, alagado e favela mostrando a miséria sobre a passarela sem a fantasia que sai no jornal vai ser uma única escola, uma só bateria quem vai ser jurado? Ninguém gostaria que desfile assim não vai ter nada igual Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga nem autoridade que compre essa briga ninguém sabe a força desse pessoal melhor é o Poder devolver a esse povo a alegria senão todo mundo vai sambar no dia em que o morro descer e não for carnaval.” (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro)

Ao nosso juízo, que esperamos ter conseguido demonstrar, as tentativas recentes de novas teorias sobre o imperialismo – executadas por pessoas do mais alto gabarito –

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não superam teoricamente as centenárias teses “clássicas” sobre o imperialismo, embora quase sempre cumpram, de um modo ou de outro, o fundamental papel de lançar luz sobre determinados aspectos da contemporaneidade. Sob nosso ponto de vista isso deriva de diversas razões, dentre as quais a menos interessante é justamente a comparação da estatura dxs autorxs. As teses de Hobson, Hilferding, Rosa e Lenin – dentre tantxs outrxs que viveram naquele momento – continuam atuais, mas não porque eram profetas. O que nos parece mais sugestivo é a hipótese que vimos defendendo desde o princípio: desta perspectiva, uma das principais razões pelas quais aqueles textos mantém a atualidade é que em alguma medida – a ser definida – aquelas idéias continuam descrevendo as características fundamentais dos nossos tempos ou, dito de outra forma, as características fundamentais dos nossos tempos são as mesmas características fundamentais dos tempos idos. Isso não implica, obviamente, que nada do que vivemos hoje seja novo, mas que quaisquer que tenham sido as mudanças – a serem descritas – elas não implicaram na superação dessas características fundamentais e é por isso que podemos continuar afirmando que vivemos em um mundo capitalista e imperialista. Este nos parece o único modo de resolver o problema de termos idéias “velhas” que explicam as relações sociais “novas” sem que precisemos recorrer às profecias daquela gente. A quem conjecturar que ao assentar as características principais da estrutura do imperialismo estaríamos esfumaçando as questões conjunturais, objetamos que não é disso que se trata. Em nenhum momento foi intenção nossa dizer que não há nada de novo a ser dito sobre o imperialismo. Apenas reafirmamos insistentemente que não é qualquer mudança que implica numa mudança teórica. Se não enfatizamos as mudanças na conjuntura, pelo contraste com as tentativas contemporâneas de estabelecer as inovações, acreditamos que tenhamos colocado, ainda que indiretamente, um painel sobre essas teses que pode vir a ser útil para quem estiver com a intenção de reconstituir essas novidades, o que não era o nosso objetivo. Como dissemos, esperamos ter oferecido contribuições a quem estiver conosco nesta tarefa, para a qual essa reconstituição certamente é um momento fundamental. A idéia era oferecer um mapa, onde estivesse particularmente destacado onde grandes autorxs – sempre sob nosso juízo – se perderam, e quais foram as sereias que não puderam deixar de ouvir cantar. Certamente cometemos erros semelhantes, os quais gostaríamos de ver apontados por quem tiver a ocasião de percorrer pelo menos

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algumas dessas infindáveis páginas. Preferiríamos ter sido mais breves, mas não tivemos tempo de escrever menos.

Smac

“ – Afinal: é diferente ou é igual? É diferente. Mas é igual. É igual. Mas é diferente. É diferente. E é igual.”

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