Sobre a possibilidade de um mundo outro: políticas da diferença no diálogo entre filosofia e antropologia

Share Embed


Descrição do Produto

Sobre a possibilidade de um mundo outro: políticas da diferença no diálogo entre filosofia e antropologia1

Renato Alves Aleikseivz Mestrando em Filosofia/UFPR [email protected]

RESUMO: Procurando empreender um diálogo entre filosofia e antropologia, nossa intenção neste trabalho é compreender como a aliança entre as duas disciplinas pode se configurar em um importante instrumento de “descolonização permanente do pensamento”. Tal expressão se encontra na obra Metafísicas Caníbales, de Eduardo Viveiros de Castro que, por sua vez, será o livro norteador desse trabalho. Ademais, pretende-se recorrer à obra de Pierre Clastres e Michel Foucault a fim de buscar instrumentos conceituais, com base principalmente em suas noções etnocídio (Clastres) e de mundo outro/vida outra (Foucault), para pensar a resistência e a criação de novos modos de vida no presente.

1

Este texto é o trabalho final da disciplina História da filosofia contemporânea (mestrado em Filosofia/UFPR).

A revolução é desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo à nova terra, ao novo povo. Gilles Deleuze/Félix Guattari

Liberem a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante. Michel Foucault2

I.

Introdução

Aliança demoníaca é a expressão utilizada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, na esteira do filósofo Gilles Deleuze, para designar o diálogo, o entrecruzamento, o encontro da filosofia com a antropologia, e vice-versa. No capítulo 4 de Metafísicas Canibales, Viveiros de Castro nos fala que, se há retorno, ou antes, o “impressionante retorno das coisas” de que evocava Lévi-Strauss, ele se configura como o retorno da filosofia ao centro do cenário. No entanto, não se trata da filosofia entendida como repetição do Mesmo (nossa filosofia tradicional). Trata-se da filosofia da diferença, ou seja, filosofia da relação e da afirmação do Outro, bem como da Multiplicidade. Ora, relação, bem entendido, não é “qualquer” relação. A diferença se dá na forma da proliferação, do contágio, em uma palavra: síntese disjuntiva ou devir, tal como o vocabulário de Deleuze. A seguinte citação de Viveiros de Castro tem, ademais, o mérito de nos esclarecer essa questão:

A multiplicidade é um sistema formado por uma modalidade de síntese relacional diferente de uma conexão ou conjunção de termos. Trata-se da operação que Deleuze chama de síntese disjuntiva ou disjunção inclusiva, modo relacional que não tem a semelhança ou a identidade como causa (formal ou final), mas a divergência ou a distância; um outro nome deste modo relacional é "devir". A síntese disjuntiva ou devir é "o operador principal da filosofia de Deleuze", na medida em que é o movimento da diferença como tal – o movimento centrífugo pelo qual a diferença escapa ao poderoso atrator circular da contradição e sublação dialéticas. 2

Trecho retirado do prefácio à edição americana de O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Diferença positiva antes que opositiva, indiscernibilidade de heterogêneos antes que conciliação de contrários, a síntese disjuntiva faz da disjunção "a natureza mesma da relação", e da relação um movimento de "implicação recíproca assimétrica" entre os termos ou perspectivas ligados pela síntese, a qual não se resolve nem em equivalência nem em identidade superior (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 99-100).

Se nosso interesse por essa filosofia se dá em vista da busca de um pensamento que não submeta ou que não anule o Outro em detrimento do Mesmo, essa aliança demoníaca tem uma função essencial, a saber, a descolonização permanente do pensamento. Pensamento esse nosso sempre comprometido com a Identidade. De fato, o pensamento ocidental sempre esteve comprometido consigo mesmo e com “seu povo”.3 Evidencia-se com isso nossa escolha para a primeira epígrafe desse trabalho. Apostamos no diálogo com a filosofia pós-estruturalista para que o mundo cada vez mais se desterritorialize/reterritorialize, tendo em vista uma abertura para o Outro, para mundo outro4. Sendo assim, não podemos desviar nosso olhar dos outros povos, dos outros modos de vida e mundo, como por exemplo, os povos ameríndios. Ao contrário, como apontam Deleuze e Guattari no volume 4 de Mil platôs, sendo o devir sempre da ordem 3

Poderíamos dar alguns exemplos, mas preferimos citar apenas um: Kant. Para ele e sua filosofia transcendental, só pode haver um pensamento e um Sujeito do conhecimento, necessário e universal. Impossível também se esquecer da figura do “tribunal da Razão” que sua Revolução Copernicana nos legou. Logo no prefácio de sua Crítica da razão pura Kant afirma: “A razão tem que ir à natureza tendo numa das mãos os princípios unicamente segundo os quais fenômenos concordantes entre si podem valer como leis, e na outra o experimento que ela imaginou segundo aqueles princípios, na verdade para ser instruída pela natureza, não porém na qualidade de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas na de um juiz nomeado que obriga as testemunhas a responder às perguntas que lhes propõe” (1991, p. 13). Com efeito, Danowski e Viveiros de Castro escrevem em Há mundo por vir? que, “com Kant perdemos o mundo, em suma, voltando-nos para nós mesmos, no que se poderia chamar de um verdadeiro surto psicótico de nossa metafísica. O sujeito constituinte moderno é uma alucinação narcisista, o Entendimento legislador é um Napoleão de hospício de província” (2014, p. 47). Com sorte, deixaremos de ser kantianos. Nesse sentido, percebemos a importância do elogio de Foucault, no final de As palavras e as coisas, à etnologia, pois essa disciplina, conjuntamente com a psicanálise, apagaria a figura do Sujeito. 4 Gilles Deleuze é uma das figuras centrais para estabelecer esse diálogo comprometido com a instauração de potências libertárias e descolonizantes do pensamento. Afirma Viveiros de Castro: “Elegi a filosofia de Deleuze e, particularmente, os dois volumes de Capitalismo e esquizofrenia, escritos com Guattari, como o instrumento mais apropriado para retransmitir a frequência de onda que eu esperava captar no pensamento ameríndio. O perspectivismo e o multinaturalismo, enquanto objetos ressintetizados pelo discurso antropológico (porque as teorias indígenas não se apresentam pré-embaladas de forma tão prática, permita-me dizer) são resultados do encontro entre certo devir-deleuziano da etnologia americanista e certo devir-índio da filosofia de Deleuze e Guattari – devir-índio que passa em forma decisiva, como veremos, precisamente pelo capítulo de Mil platôs sobre os devires” (2010, p. 80-81). Igualmente, o antropólogo também cita Michel Foucault e Derrida, “cujos trabalhos já foram extensivamente absorvidos (ainda que freqüentemente mal entendidos) pelo que poderíamos chamar de contracorrentes dominantes do pensamento social contemporâneo, na antropologia inclusive; contracorrentes que, note-se, não correm na França” (2007, p. 92).

da aliança, não da filiação, o contato é de contágio, de proliferação, de agenciamento esse “voltar o olhar” é cada vez mais solicitado. O que Viveiros de Castro nos propõem em seu Metafísicas Caníbales, enfim, é menos um estudo da “mentalidade indígena” ou uma análise dos “processos cognitivos” indígenas, do que os objetos desse pensamento e “o mundo possível que seus conceitos projetam” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 200). Outrossim, não se trata de propor uma interpretação do pensamento ameríndio; trata-se, antes de tudo, de “levar a cabo uma experimentação com ele, e por conseguinte com o nosso: „Every understanding of another culture is an experimente with one’s own‟ [Toda compreensão de outra cultura é um experimento com a própria] (Wagner)” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 200). Ora, essas duas afirmações se situam exatamente no horizonte deste trabalho: imaginar um mundo outro e repensar nosso próprio presente5. Sabe-se que foi Deleuze quem caracterizou a filosofia como criação de conceitos. “A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 13), escrevem Deleuze e Guattari em O que é a filosofia? Evidenciar-se-á ao fim do trabalho a importância de Deleuze, quando pretendemos retomar o diálogo com o filósofo. Viveiros de Castro, por sua vez, parece levar, acertadamente, às últimas consequências essa sentença ao se debruçar sobre os outros povos e olhá-los como criadores de conceitos, ou como providos de pensamento rico (a despeito da vulgata que professa o contrário). Em outras palavras, o antropólogo nos convida a levar a sério o pensamento indígena – apenas assim a transformação, em nós e no mundo, pode acontecer. Quando tomamos o pensamento indígena como dotados de conceitos com potências filosóficas, assumimos que eles, os conceitos, projetam um outro mundo possível; do mesmo modo, tomar a sério o seu pensamento significa, talvez mais essencialmente, não neutralizá-lo. Por fim, nossa intenção não é realizar uma análise exaustiva da obra de Viveiros de Castro – não há ademais competência necessária para tanto –, mas, sobretudo, utilizar os conceitos mobilizados pelo autor de uma forma que poderíamos caracterizar como estratégica6: realizar uma leitura que de alguma forma se transforme em um 5

“Toda experiência de outro pensamento é uma experiência sobre o nosso” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 81) 6 Aqui a inspiração vem de Michel Foucault para quem os discursos funcionam como estratégicos nos embates políticos. Para o filósofo francês, com efeito, não há uma substância da resistência em face de uma substância do poder. Para ele, “a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (2012, p. 360). Por fim,

questionamento da nossa realidade e, em última instância, de nós mesmos. Por fim, acreditamos que tal empreendimento tem um fundo político, ou seja, o empreendimento de tal leitura justifica-se tendo em vista uma transformação que é ela também revolucionária – em um sentido deleuzo-guattariano7. Em suma, se pretendemos outra economia do conceito e, sobretudo, recorremos ao pensamento indígena, nossa aposta é a de que o contato com este pensamento pode – e deve – desencadear uma política e uma ética. Terminemos esta introdução, pois, citando Ghassan Hage (trecho que Viveiros de Castro cita em “Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”):

Para a história, a sociologia ou a psicologia enquanto disciplinas críticas, os modernos somos apresentados a forças que têm um papel causal sobre nós. Já no caso da antropologia, somos levados para fora de nós sem que haja um tal nexo causal direto entre esta exterioridade e nós mesmos. Aprender algo sobre a cosmologia dos Aranda nos mostra que há modos de se relacionar com o universo que são radicalmente diferentes daqueles dos modernos, mas não somos de forma alguma convidados a ver qualquer relação causal entre a cosmologia dos Aranda e a nossa. E não obstante, somos ao mesmo tempo instados a considerar que o modo de vida dos Aranda possui uma relevância para nossas vidas. Pois haverá sempre algo em nós que permite que nos tornemos Aranda. O trabalho crítico da antropologia nos expõe à possibilidade de sermos outros do que somos, e faz dessa possibilidade uma força em nossas vidas. A sociologia crítica nos convida a ver como nosso mundo social é constituído e como pode ser feito e refeito por nós. A antropologia crítica assemelha-se antes ao ato xamânico de induzir uma presença obsedante (haunting): ela nos encoraja a nos sentirmos “frequentados” (haunted) a cada momento de nossas vidas pelo que poderíamos ser mas que não somos (HAGE apud VIVEIROS DE CASTRO, 2012, p. 155, grifos no original).

Ora, se há sempre algo em nós que nos permite ser outra coisa – que nos tire da clausura do Mesmo – devemos criar meios para abrir espaço para a alteridade. Devir parece ser o nome mais apropriado. “Devir é um rizoma”, escrevem Deleuze e Guattari, “não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é certamente imitar, nem identificar-se;

nem

regredir-progredir;

nem

corresponder,

instaurar

relações

tomando a licença para falar em primeira pessoa, recorrerei mais vezes ao pensamento de Foucault por conta da familiaridade com o pensamento do autor, principal referência de minha pesquisa no mestrado. 7 Mas transformação, igualmente, em um sentido foucaultiano, tal como pretendemos esboçar na conclusão deste trabalho.

correspondentes, nem produzir, produzir filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a „parecer‟, nem „ser‟, nem „equivaler‟, nem „produzir‟” (DELEUZEU; GUATTARI, 2012, p. 20).

II.

Antropologia e sua transformação: perspectivismo e multinaturalismo

No capítulo “El enemigo en el concepto”, de Metafísicas Caníbales, talvez o capítulo mais importante do livro, Eduardo Viveiros de Castro é acertadamente direto ao falar da antropologia e de nossa relação com a mesma:

Se há algo que corresponde de direito à antropologia não é a tarefa de explicar o mundo dos outros, mas de multiplicar nosso mundo, “povoando-o com todos esses expressados que não existem fora de suas expressões”. Porque nós não podemos pensar como os índios; no máximo, podemos pensar com eles (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 211-212, grifos no original).

Queremos, pois, multiplicar nosso mundo. Nesse sentido, nossa intenção é, como indica Viveiros de Castro, pensar nossa antropologia ocidental por via das antropologias indígenas8. Em outros termos, através da aproximação com as cosmologias indígenas podemos problematizar nossa sociedade contemporânea. Abre-se a possibilidade de, sobretudo, imaginar outro modo de vida. Destarte, apresentaremos nesse momento, de modo bastante introdutório, os conceitos de perspectivismo e multinaturalismo, pois tais conceitos nos permitem exercitar isso que chamamos – e almejamos – descolonização do pensamento. Logo no início de seu artigo Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio, e depois em seu artigo Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena, uma reformulação do primeiro, Eduardo Viveiros de Castro argumenta que há um aspecto do pensamento ameríndio que manifesta sua “qualidade perspectiva”. É a concepção segundo a qual “o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou 8

Cf. Viveiros de Castro, E. “Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”. Mana – Estudos de Antropologia Social; vol. 18 (1), páginas 151-171, 2012, p. 164.

pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 347). As consequências dessa ideia, segundo o autor, não implicam em nada parecido com nosso conceito de relativismo. Sem dúvida, o que parece estar posto em jogo é um questionamento sobre a humanidade. Porém, antes de falarmos sobre essa questão seminal que é a humanidade para os indígenas, citaremos o trecho bastante conhecido de Lévi-Strauss em Race et histoire:

Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para indagar se os indígenas possuíam alma, estes últimos dedicavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para verificarem, através de uma vigilância prolongada, se o cadáver daqueles estava ou não sujeito à putrefação (LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 21).

Ora, mesmo se podemos tirar daí que o etnocentrismo é a coisa melhor compartilhada, as indagações e a procura por respostas eram bem diferentes. Viveiros de Castro em Metafísicas Caníbales, comentando este trecho de Lévi-Strauss afirma que, posto que o outro do Mesmo (do europeu) terminar por ser o mesmo que o Outro (o indígena), “o Mesmo termina por mostrar-se, sem sabê-lo, como o mesmo que Outro” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 27). Em Tristes trópicos, lembra-nos Viveiros de Castro, Lévi-Strauss retoma esta anedota e lhe dá outros contornos. Isto é, em suas indagações sobre a humanidade do outro, os europeus recorriam às ciências sociais, enquanto que os índios confiavam nas ciências naturais. Enquanto os espanhóis proclamavam que os índios eram animais, os últimos suspeitavam que os europeus eram deuses. Com efeito, se havia uma ignorância compartilhada acerca do outro, “o outro do Outro não era exatamente o mesmo que o outro do Mesmo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 28). Talvez, podemos afirmar, fosse o seu oposto completo, haja vista que as relações dos índios com a alteridade é completamente diversa da nossa, herdada do cristianismo. Enfim, é essa relação outra com a alteridade, por parte dos indígenas, que gostaríamos de salientar muito rapidamente. Na etnografia amazônica o antropólogo brasileiro descobre uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos veem os animais e as outras subjetividades que povoam o universo, é muito diferente do modo como esses seres veem os humanos e a si mesmos. Para eles, os humanos, em condições normais, veem os humanos como humanos e os animais como animais. “Os animais predadores e os

espíritos, entretanto, veem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como espíritos ou como animais predadores (...). Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos veem como humanos” (VIEIROS DE CASTRO, 2013, p. 350). Uma palavra sobre a noção de multinuralismo; isso porque “o perspectivismo é um multinaturalismo”. Ora, se todos os seres veem-se ou representam o mundo da mesma maneira, o que irá mudar é o mundo que tais seres veem. Escreve Viveiros de Castro no artigo Perspectivismo e multinaturalismo..., trecho retomado em Metafísicas Caníbales9:

Os animais utilizam as mesmas categorias e valores que os humanos: seus mundos, como o nosso, giram em torno da caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fermentadas, das primas cruzadas e da guerra, dos ritos de iniciação, dos xamãs, chefes, espíritos etc. Se a lua, as cobras e as onças veem os humanos como antas ou porcos selvagens, é porque, como nós, elas comem antas e porcos selvagens, comida própria de gente. Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio departamento, os não-humanos veem as coisas como „a gente‟ vê. Mas as coisas que eles veem são outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para nós é mandioca pubando; o que vemos como um barreiro lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p.379, grifos no original).

Com efeito, o perspectivismo é um multinaturalismo; este último, por sua vez, não tem similaridade alguma com nosso conceito corrente de multiculturalismo. O multiculturalismo ocidental supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais que incidem sobre uma natureza externa (una e total). Em outras palavras, ele supõe uma natureza única e uma diversidade de representações culturais. Contudo, para os povos ameríndios acontece o contrário. Para eles há uma só “cultura” (humana) e múltiplas “naturezas”. Perspectivismo e multinaturalismo, pois, são noções que não se separam10.

9

Viveiros de Castro, E. Metafísicas caníbales. p. 43. Há inúmeras características, interessantíssimas e importantíssimas, que mereciam maior detalhamento. No entanto, nossa intenção não é dar conta exaustivamente da questão. Queremos, sobretudo, fazer um uso estratégico, tal como temos argumentado. Isto é, apresentar o esboço de um outro pensamento; abrir espaço, talvez, para outro modo de socialidade. 10

Existindo uma única e mesma cultura, os povos ameríndios atribuem e estendem o conceito de humano – ou a condição de humanidade a todos os seres11. Para os ameríndios, na condição originária, todos os seres eram pessoas – ou traziam consigo a possibilidade ontológica de serem pessoa. Neste sentido, os animais usam uma “roupa” animal, porém, guardam a humanidade originária. Para encerrar este item queremos apenas indicar que o perspectivismo, isto é, dito mais uma vez, a noção de que cada espécie vê a si mesma como humana, devolvenos uma outra imagem mundo e socialidade. Abre-nos, do mesmo modo, para uma possibilidade de questionamento do nosso mundo. Afinal, há muitos mundos no Mundo. Em Há mundo por vir? Danowski e Viveiros de Castro apontam, com uma deliciosa ironia, as dificuldades que tais noções podem suscitar, mesmo entre os que se enxergam progressistas.

[...] os ameríndios pensam que há muito mais sociedades (e portanto humanos) entre o céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias. O que chamamos de “ambiente” é para eles uma sociedade de sociedades, uma arena internacional, uma cosmopoliteia. Não há portanto diferença absoluta de estatuto entre sociedade e ambiente, como se a primeira fosse o “sujeito”, o segundo o “objeto‟. Todo objeto é sempre um outro sujeito, e é sempre mais que um. Aquela expressão comum na boca dos militantes iniciantes de esquerda, “tudo é político”, adquire no caso ameríndio uma literalidade radical (inclusive na indeterminação desse “tudo” – os jabotis...) que nem o manifestante mais entusiasmado das ruas de Copenhague, Rio ou Madri talvez esteja preparado para admitir (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 94, grifos no original).

Há uma política radical implicada nesse pensamento. A descolonização do pensamento, que tanto almejamos, é já uma política, pois aponta para a possibilidade da transformação12. 11

Importante atentar para o fato de que o multinaturalismo não atribui o caráter de humanidade a todos os seres ao mesmo tempo. O jaguar, por exemplo, é gente. Porém, somente enquanto está com outras onças. Com efeito, o jaguar nos vê como presa, e nós o vemos como predador. 12 Nosso pensamento ocidental, cristão, dominador (pensamento do Mesmo) precisa ser combatido. Suas bases – sejam elas filosóficas (Kant, Descartes...) ou não – precisam ser questionadas. No pequeno trecho em que os autores de Há mundo por vir? falam sobre o perspectivismo e o multinaturalismo, encontramos uma importante referência ao conceito de antropomorfismo (antropomorfismo contra o antropocentrismo). O antropomorfismo evidencia sua importância ao destronar nossa quase sagrada noção de antropocentrismo. De fato, o antropomorfismo inverte completamente o antropocentrismo. “Dizer que tudo é humano”, escrevem Viveiros de Castro e Danowski, “é dizer que os humanos não são uma espécie especial, um evento excepcional que veio interromper magnífica ou tragicamente a trajetória monótona da matéria no universo”. O antropocentrismo, continuam os autores, ao contrário do antropomorfismo, “faz dos humanos uma espécie animal dotada de um suplemento transfigurador; ele os

Queremos encerrar citando Bruno Latour. Para ele, é preferível compreender o perspectivismo como “bomba” (seríamos nós, então, os armadores da bomba?). Como compreender tal indicação? Uma bomba sim, “com o potencial de explodir toda a implícita filosofia tão dominante na maior parte das interpretações dos etnógrafos sobre seus materiais” (LATOUR, 2011, p. 175). De fato, a porta aberta por Viveiros de Castro permite-nos descolonizar o pensamento – e abrir caminho para a ação! Latour parece indicar que, se realmente a “bomba” fosse armada em nosso pensamento, em nossos sonhos, daríamos uma sentença de morte à filosofia ocidental. “Se nós permitíssemos ao nosso pensamento se conectar à alternativa lógica ameríndia, toda a noção dos ideais kantianos, tão difusa nas ciências socais, teria que ser descartada (LATOUR, 2011, p. 176), escreve o autor. Infelizmente essa forma de pensamento e modo de vida está sendo gradativamente exterminada, como queremos apresentar no próximo item em que recorremos ao pensamento de Pierre Clastres. A tarefa é importante: tomar a alteridade e a multiplicidade como forças revolucionárias.

III.

Antropologia contra o Estado13 As sociedades primitivas são sociedades do múltiplo; as não primitivas, com Estado, são sociedades do uno. O Estado é o triunfo do uno. Pierre Clastres

Se nossa luta prática e teórica tem em vista proliferar a multiplicidade, então, nossa tarefa consiste em mapear minimamente o pensamento metafísico ocidental que pretende anular a multiplicidade e a diferença. Tal empresa nos evoca o pensamento de

toma por seres atravessados pela transcendência como se por uma flecha sobrenatural, marcados por um estigma, uma abertura ou uma falta privilegiada (felix culpa) que os distingue indelevelmente no seio – no centro – da Natureza” (2014, p. 97). 13

Aqui nossa inspiração para o título foi a reportagem sobre Viveiros de Castro na Revista Piauí, O antropólogo contra o Estado. Disponível em: http://umaincertaantropologia.org/2014/01/06/oantropologo-contra-o-estado-piaui/

Michel Foucault que, dentre outras contribuições, caracterizou o trabalho da filosofia como diagnóstico do presente. Por meio dessa compreensão da filosofia como diagnóstico, Foucault se vincula a Nietzsche: “Nietzsche descobriu que a atividade particular da filosofia consiste no trabalho de diagnóstico: quem somos nós hoje? Que é este „hoje‟ no qual vivemos?” (FOUCAULT, 2001, p. 641-642), escrevia Foucault já em 1967. Ora, de modo incipiente pretendemos, neste momento, recorrer ao trabalho de Pierre Clastres para fazer este trabalho de mapeamento. Em outras palavras, pretendemos utilizar as análises de Clastres visando uma crítica ao nosso presente sistema de socialidade. Com efeito, se “toda comparação é uma transformação” (VIVEIROS DE CASTRO, 2010, p. 70), mostra-se ser de suma importância olhar para outras culturas de modo que, ao voltarmos para a nossa, algo tenha acontecido. “Algo” aqui pode ser desde um desconforto, até uma vontade de mudança radical – acreditamos e lutamos para que a segunda opção prevaleça. Nossa aposta é que a obra de Clastres – pelo menos os trechos selecionados – nos ajuda a compreender nosso presente, ao modo da noção foucaultiana de diagnóstico. Viveiros de Castro formula com clareza este ponto. Para ele, a contribuição das ciências humanas é indispensável “para se compreenderem as consequências sociopolíticas, se articularem as respostas possíveis e se firmarem os compromissos aceitáveis por parte de uma „humanidade‟ que se apresenta imediatamente como dividida em coletivos dotados de interesses e entendimentos variáveis e conflitantes a respeito de valores vitais” (VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 21, grifo no original). Sendo assim, utilizaremos o texto de Clastres intitulado “Do etnocídio” para mostrar como o pensamento do Mesmo – nosso pensamento Ocidental comprometido com o Mesmo – termina por anular e, em última instância, exterminar a Diferença. Pierre Clastres começa seu texto relembrando que desde o descobrimento da América em 1492, uma máquina de destruição dos índios colocou-se em marcha. Sendo as populações indígenas vítimas de dois tipos de criminalidade, a saber, o genocídio e o etnocídio, mostra-se importante realizar uma distinção entre os dois. Se o termo genocídio remete à ideia de “raça” e à vontade de extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens (caso em que se permaneceria na situação genocida), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em

suma, genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito (CLASTRES, 2011, p. 78-79, grifos nossos).

Partindo dessa definição cristalina entre genocídio e etnocídio, o antropólogo francês aponta para o fato de que, para os dois, há uma visão idêntica do Outro. O Outro, a alteridade, certamente é a diferença, mas o que se salienta, é a “má diferença”. Com efeito, o que os distinguem é a natureza do tratamento reservado à diferença. O espírito genocida pretende, pura e simplesmente, negar e exterminar a diferença. O etnocida, por seu turno, permite-se admitir uma espécie de relatividade do mal na alteridade. Para os etnocidas, “os outros são maus, mas pode-se melhorá-los obrigandoos a se transformar até que se tornem, se possível, idênticos ao modelo que lhes é proposto, que lhes é imposto. A negação etnocida do Outro conduz a uma identificação a si” (CLASTRES, 2011, p. 79). Uma pergunta, fundamental, se impõe: quem são os praticantes do etnocídio? Pierre Clastres nos fala que, principalmente na América do Sul, os missionários (mas não apenas eles). Através do esforço de propagar a fé cristã, eles acabam por substituir as crenças tidas como bárbaras dos selvagens pela religião do Ocidente. O etnocídio é justificado pelo bem do selvagem; a ética do humanismo é a espiritualidade de tal prática, aponta Clastres14. O etnocídio persistente se coloca a missão de suprimir a indianidade do índio para fazer dele um cidadão brasileiro, por exemplo. Por conseguinte, do ponto de vista de seus agentes, tal prática não é considerada destruição. Antes, é considerada tarefa necessária e exigida pelo humanismo ocidental. O Ocidente, por sua vez, é etnocida porque é etnocêntrico: se pensa e se quer a civilização. Nossa cultura não é uma abstração, como querem alguns. Clastres afirma que ela é “o produto lentamente constituído de uma história, ela é passível de uma pesquisa genealógica” (CLASTRES, 2011, p. 82). Portanto, a verdadeira questão é: o que faz com que a civilização ocidental seja etnocida? Em uma formulação bastante foucaultiana – o que auxilia a corroborar nossa leitura de Clastres como pensador do presente –, o antropólogo francês diz que a análise do etnocídio deve ir além da

14

Ainda na década de 1970, o antropólogo francês define o imaginário da política indigenista brasileira que, ademais, vale perfeitamente para o tempo corrente: “Nossos índios, proclamam os responsáveis, são seres humanos como os outros. Mas a vida selvagem que levam nas florestas os condena à miséria e à infelicidade. É nosso dever ajuda-los a libertar-se da escravidão. Eles têm o direito de se elevar à dignidade de cidadãos brasileiros, a fim de participar plenamente do desenvolvimento da sociedade nacional e de usufruir de seus benefícios” (2011, p. 80). Não é difícil constatar como tal visão ainda vigora com incrível força entre leigos e políticos, bastam alguns cliques na internet para constatar.

denúncia dos fatos. A análise deve implicar “uma interrogação sobra a natureza, historicamente determinada, de nosso mundo cultural” (CLASTRES, 2011, p. 82). Encarar pois a história e realizar um diagnóstico do presente.15 Sendo etnocida dentro de suas próprias sociedades, a civilização ocidental não deixaria de sê-lo no exterior. E por quê? Ora, precisamente porque somos sociedades com Estado, responde Clastres. O etnocídio é a redução do Outro ao Mesmo; é a dissolução do múltiplo no Um (o índio suprimido como outro e reduzido ao mesmo, isto é, reduzido a cidadão brasileiro). É exatamente neste ponto que a figura do Estado ganha contornos relevantes para a análise. À resposta para pergunta sobre o que ele, o Estado, é Clastres responde:

Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um (CLASTRES, 2011, 83, grifos nossos).

O Estado e sua política podem ser considerados o retrato dessa vontade de “integração” e, por conseguinte, aniquilação da diferença. O Estado e seu funcionamento maquinal, só pode se manter através de uma relação de uniformização com os indivíduos. Ele, o Estado, só conhece cidadãos iguais perante a Lei, lembra-nos o antropólogo. Desse modo, a reflexão sobre o etnocídio também deve passar por uma análise do Estado. Daí a conclusão contundente de Pierre Clastres:

A violência etnocida, como negação da diferença, pertence claramente à essência do Estado, tanto nos impérios bárbaros quanto nas sociedades civilizadas do Ocidente: toda organização estatal é etnocida, o etnocídio é o modo normal da existência do Estado (CLASTRES, 2011, p.85). 15

Foucault, por sua vez, se dirige a Clastres de um modo muito elogioso em um texto tardio. Diz Foucault em Les mailles du pouvoir, conferência pronunciada no Brasil: “Foi necessário esperar até anos mais recentes para ver brotar novos pontos de vista sobre o poder (...). De toda forma, a partir daqui vemos aparecer, com os trabalhos de Clastres, por exemplo, uma nova concepção do poder como tecnologia que intenta emancipar-se do privilégio da regra e da proibição” (2001, p. 1003).

Uma questão fundamental se impõe: a partir disso concluiremos, enfim, que todos os Estados se equivalem porque são todos etnocidas? Tal conclusão seria reconhecer a abstração que devemos recusar. Com efeito, qual a característica da civilização ocidental que a torna infinitamente mais etnocida do que qualquer outra civilização? A resposta de Pierre Clastres é direta: o que a torna mais etnocida do que qualquer outra civilização é seu regime de produção econômica. O que diferencia o Ocidente das outras civilizações é o capitalismo. Ao mesmo tempo em que nossa sociedade industrial é a mais formidável máquina de produzir, é também a mais formidável máquina de destruir. “Raças, sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade” (CLASTRES, 2011, p. 86). A diferença é anulada ou mesmo exterminada em detrimento da produção de riquezas. Por isso, milhares de “selvagens” valem menos que um pasto para criação de bovinos. Nossa intenção neste item do trabalho foi, em suma, apontar para a lógica, tão próxima de nós, que efetivamente suprime o Outro. A filosofia pós-estruturalista, como intentamos argumentar, nos permite abrir espaço para a diferença. Assim também, a crítica ao capitalismo nos permite imaginar uma outra realidade. Recorrer ao pensamento de Pierre Clastres, por sua vez, permite-nos angariar instrumentos teóricos para uma luta estratégica tendo em vista a transformação. Isso porque, o conceito de Diferença é um conceito anticapitalístico por excelência. Ele é capaz de pensar a produção destrelada do Mesmo que a máquina capitalista pretende encarnar16. A afirmação incondicional da Diferença e da alteridade permite-nos estabelecer uma aliança, uma aliança contra o Estado – ou, se assim desejarmos, uma aliança contra o movimento teórico e prático de supressão do Outro. Por fim, pretendemos apontar para a necessidade de ligar a prática teórica ao exercício político. De fato, acreditamos que o tomar contato com os diversos trabalhos, sejam eles da antropologia ou da filosofia, pode e deve contribuir para uma mudança de nós, de nossa realidade e de nossa relação com os outros. 16

Cf. PELBART, P.P. Capitalismo rizomático In: Vida Capital. São Paulo: Iluminuras, 2011. Neste texto o autor discute o livro de Boltanski e Chiapello, O novo espírito do capitalismo, à luz do conceito de rizoma de Deleuze e Guattari. Bruno Latour, por ocasião da publicação do livro, escreve uma pequena resenha ao jornal francês Libération intitulado “Comment être anticapitaliste”.

IV.

Conclusão

Gostaríamos de começar esta conclusão com um trecho do posfácio escrito por Viveiros de Castro à obra Arqueologia da violência, de Pierre Clastres. Diz o antropólogo:

Alteridade e multiplicidade definem ao mesmo tempo o modo como a antropologia constitui a relação com seu objeto e o modo como seu objeto se autoconstitui. “Sociedade primitiva” ou “contra o Estado” é o nome que Pierre Clastres deu a esse objeto, e ao seu próprio encontro com a multiplicidade. E se o Estado existiu desde sempre, como argumentaram Deleuze e Guattari, então a sociedade primitiva também existirá para sempre: como exterior imanente do Estado, força de antiprodução sempre a ameaçar as forças produtivas, multiplicidade não interiorizável pelas grandes máquinas mundiais. “Sociedade primitiva”, em suma, é uma das muitas encarnações conceituais da perene tese da esquerda de que um outro mundo é possível: de que há vida fora do capitalismo, como há socialidade fora do Estado. Sempre houve, e – é para isso que lutamos – continuará havendo (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 304).

Se nossa luta se configura contra todos estes inimigos – o capitalismo e sua necessidade de produzir cada vez mais, acabando com aquilo que chamamos Natureza e exterminando povos; o pensamento do Mesmo que neutraliza e a anula o Outro e a multiplicidade etc. –, então, nossa luta é, antes de tudo, contra nós mesmos. O inimigo somos nós, os Humanos. Hoje, com a chegada do Antropoceno17 – tema que não nos deteremos aqui – proliferam, segundo Danowski e Viveiros de Castro, as acusações recíprocas entre aqueles que se acreditam os verdadeiros herdeiros do sonho político definidor da esquerda, a saber, o de que “um outro mundo é possível”. Também nós entramos neste jogo, bem como os autores em seu Há mundo por vir? Também nós desejamos abrir espaço para outro modo de imaginação política. Queremos uma outra política, em suma. Talvez nem nossas democracias possam nos salvar, como apontam Gilles Deleuze e Félix Guattari:

17

Antropoceno é uma época, no sentido geológico do termo. Esta nova época teria se iniciado logo após a Revolução Industrial e se intensificado após a Segunda Guerra Mundial. No entanto, se essa nova época se inicia conosco, provavelmente terminará sem nós.

Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos. E a vergonha de ser um homem, nós não a experimentamos somente nas situações extremas descritas por Primo Levi, mas nas condições insignificantes, ante a baixeza e a vulgaridade da existência que impregnam as democracias, ante a propagação desses modos de existência e de pensamento-parao-mercado, ante os valores, os ideais e as opiniões de nossa época. A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas aparecem de dentro. Não nos sentimos fora de nossa época, ao contrário, não cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não há outro meio senão fazer como o animal (rosnar, escavar o chão, nitrir, convulsionar-se) para escapar ao ignóbil: o pensamento mesmo está por vezes mais próximo de um animal que morre do que de um homem vivo, mesmo democrata (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 140, grifos nossos).

Talvez a única saída seja o devir, devir-índio, devir-animal. Nesse sentido, a citação de Hage na introdução deste trabalho ganha toda a força. “Há sempre algo em nós que permite que nos tornemos Aranda”, fala ele. Ora, a força de tal proposição é político-positiva, pois nos dá uma escolha; também nos dá instrumentos para uma crítica de nossa realidade que está cada vez mais debilitada e canhestra. Ou talvez a saída seja revoltar-se, como indica Foucault em um belíssimo texto18. De todo modo, a descolonização permanente do pensamento que Viveiros de Castro evoca, e que apostamos, proporciona-nos a possibilidade de criar um mundo outro e uma vida outra. Sendo assim, encaminhando-nos para o final, recorremos ao pensamento final de Michel Foucault para nos auxiliar. Em seu último curso, A coragem da verdade, Foucault nos convida a olhar para os cínicos e seu modo de vida. O cínico que Foucault nos apresenta se esforça em direção de uma “verdadeira vida”; eles provocam os outros a ouvirem que se enganam, que se extraviam e, sobretudo, pretendem detonar a hipocrisia dos valores recebidos. Ora, para irrupção da verdadeira vida “o cínico faz surgir o horizonte de um „mundo outro‟, cujo advento suporia a transformação do mundo presente. Essa crítica, supondo um trabalho contínuo sobre si e uma intimação insistente dos outros, deve ser interpretada como uma tarefa política” (GROS, 2011, p. 314). Os cínicos de que fala Foucault nos deixaram um modo de vida. Talvez o que nos “falte” é sermos um pouco cínicos (e um pouco índio, e um pouco animal, em uma palavra, ser minoria). Ser de esquerda para Deleuze, é sempre bom lembrar, é saber que 18

Foucault, M. Inutile de se soulever? In: Dits et écrits vol. II, Gallimard, 2001, p. 790.

se é minoria. É saber que há o Outro. Uma das últimas coisas que Foucault escreveu antes de morrer, ainda neste curso citado acima, foi o seguinte: “Não há instauração da verdade sem uma posição essencial da alteridade; a verdade nunca é a mesma; só pode haver verdade na forma do mundo outro e da vida outra” (FOUCAULT, 2011, p. 298)19. Foucault se mostra para nós um pensador essencial para nossa tarefa de construir de uma nova realidade, de uma nova vida. Aliás, para finalizar nosso excurso no pensamento do filósofo queremos lembrar que, em seu prefácio à edição americana de O Anti-Édipo, Foucault diz que o livro poderia ser lido como um manual anti-fascista. Haveria no referido livro toda uma “caça a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos circundam e nos comprimem, até as formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas” (FOUCAULT, 2001, p. 136). Sendo assim, descolonizar o pensamento é implodir a dominação. Enfim, nossa intenção foi, sobretudo, ensaiar um modo de pensar que afirme a Diferença, que não anule a alteridade e os outros povos e que, ao fim, multiplique os lugares de resistência em nossa sociedade, que coloque em marcha uma desterritorialização. Para encerrar, queremos utilizar um trecho da carta de Pier Paolo Pasolini para Ítalo Calvino. Este último criticava Pasolini afirmando que o mesmo era acometido por uma “inocente nostalgia de um mundo pré-burguês”. Dentre tantas respostas, gostaríamos apenas de citar a última:

Enfim, caro Calvino, gostaria de fazer-lhe notar uma coisa. Não como moralista, mas como analista. Na sua apressada resposta às minhas teses, no Messagero (18 junho 1974), escapou a você uma frase duplamente infeliz. Trata-se desta frase: “Os jovens fascistas de hoje não conheço nem espero ter ocasião de conhecê-los”. Todavia: 1) certamente você não terá nunca tal ocasião, também porque se, numa cabine de trem, na fila de uma loja, na rua, em uma sala de visitas você encontrasse jovens fascistas, não os reconheceria; 2) felicitar-se por não encontrar nunca jovens fascistas é uma estupidez, porque, ao contrário, nós devemos fazer de tudo para identificá-los e para encontrá-los. Eles não são os fatais e predestinados representantes do Mal: não nasceram para serem fascistas. Ninguém – quando eles se tornaram adolescentes e ganharam capacidade de escolha, segundo qualquer razão ou necessidade – colocou neles de modo racista a marca dos fascistas. É uma atroz forma de desespero e neurose a que 19

A título de esclarecimento, Foucault contrapõe outro mundo com mundo outro e outra vida com vida outra. „Outro mundo‟ suporia, para o autor, um mundo transcendente, isto é, platônico-cristão. „Outra vida‟ também suporia algo como o Reino dos últimos dias cristão, onde toda diferença seria anulada. Ao contrário, mundo outro/vida outra supõe uma crítica permanente deste mundo; além disso, insta-nos a criar uma vida outra neste mundo.

precipita um jovem a uma escolha como essa; e talvez bastasse uma só experiência diversa na sua vida, um simples e só encontro, para que o seu destino fosse diverso20.

Tal como Pasolini, acreditamos que o encontro, a aliança demoníaca, a Diferença etc., pode, de fato, proporcionar um destino novo. Pode instar uma transformação. Devir, relembremos, não é uma imitação ou uma identificação. “Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouse, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 67). Ora, o subcapítulo do último capítulo do livro de Danowski e Viveiros de Castro não se intitula, precisamente, “Acreditar no mundo”? Acrescentamos: devemos acreditar, sim, mas, sobretudo, devemos lutar pela nova terra e o novo povo.

Bibliografia CLASTRES, P. Do etnocídio. In: Arqueologia da violência – pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2011. _____________ A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. São Paulo. Cosac Naify, 2012. DANOWSKI, D; VIVEIROS DE CASTRO, E. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014. DELEUZE, G. A imanência: uma vida. Educação & Realidade, vol. 27, n. 2, jul/dez 2002, páginas 10-18 (Dossiê Deleuze). DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. __________________________ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 4. São Paulo: Ed. 34, 2012. FOUCAULT, M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011. 20

Publicado em “Paese sera” com o título “Carta aberta a Ítalo Calvino: aquilo de que sinto saudade”. Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/o-desejo-anticapitalista-de-pasolini/

______________ Les mailles du pouvoir. In: Dits et écrits II (1976 – 1988). Paris: Gallimard, 2001. ______________ Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2012. ______________ Prefáce. In: Dits et écrits II (1976 – 1988). Paris: Gallimard, 2001. ______________ Qui êtes-vous, professeur Foucault. In: In Dits et écrits I (1955 – 1975). Paris: Gallimard, 2001. GROS, F. Situação do curso. In: FOUCAULT, M. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011. KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os Pensadores) LATOUR, B. Perspectivismo: tipo ou bomba? Primeiros Estudos, São Paulo, n. 1, p. 173-178, 2011. ____________ Comme être anti-capitaliste. In: Libération, 25 novembre 1999. Disponível em: http://www.liberation.fr/livres/1999/11/25/comment-etre-anticapitalistele-capitalisme-ne-survit-que-grace-a-l-adhesion-voire-a-l-enthousiame-d_288388 LÉVI-STRAUSS, C. Race et histoire. Unesco, 1952. PASOLINI, P.P. Carta aberta a Ítalo Calvino: aquilo de que sinto saudade. Disponível em: http://outraspalavras.net/posts/o-desejo-anticapitalista-de-pasolini/ PETERS, M. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. VIVEIROS DE CASTRO, E. Perspectivismo e multinaturalismo na américa indígena. In: A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac Naify, 5ª ed., 2013. ________________________ Filiação intensiva e aliança demoníaca. Novos Estudos, CEBRAP, 77, março 2007, p. 91-126. ________________________

Metafísicas

Caníbales.

Líneas

de

antropología

postestructural. Katz Editores. Madrid, 2010. ________________________

Os pronomes

cosmológicos

e o perspectivismo

ameríndio. Mana – Estudos de Antropologia Social; vol. 2, nº 2, páginas 115-144. Outubro 1996. _________________________ The politics of ontology: Anthropological positions. Position paper for roundtable discussion, 112th Annual Meeting, Chicago, 20-24, November 2013. _________________________ O antropólogo contra o Estado. In: Revista Piauí, edição

88,

“vultos

das

humanidades”,

janeiro

de

2014.

Disponível

http://umaincertaantropologia.org/2014/01/06/o-antropologo-contra-o-estado-piaui/

em:

_________________________ O intempestivo, ainda. In: CLASTRES, P. Arqueologia da violência – pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2011. _________________________ “Transformação” na antropologia, transformação da “antropologia”. Mana – Estudos de Antropologia Social; vol. 18 (1), páginas 151-171, 2012.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.