Sobre a possibilidade de uma cartografia das redes sociais: o caso das Jornadas de Junho de 2013

June 19, 2017 | Autor: Carolina Figueiredo | Categoria: Cyberactivism, Digital cartography, Ciberativismo
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Sobre a possibilidade de uma cartografia das redes sociais: o caso das Jornadas de Junho de 2013 Resumo: Embora não haja modelos definitivos para a análise das redes, a cartografia parece um caminho de análise viável. No que se refere às mobilizações sociais contemporâneas, as redes sociais têm um importante papel em relação à esfera pública. O presente artigo pretende discutir estas questões usando dados das Jornadas de Junho brasileiras de 2013 a partir de mapas desenvolvidas pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (LABIC). Palavras-chave: Cartografia, Redes sociais, Esfera pública, Jornadas de Junho. Resumen: Aunque no haya modelos definitivos para el análisis de las redes la cartografía parece un camino viable del análisis, Con respecto a las movilizaciones sociales contemporánea, las redes sociales tienen un importante papel con relación a la esfera pública. Este artículo pretende discutir estas cuestiones utilizando datos de las “Jornadas de Junho” brasileñas de 2013 a partir de mapas desarrollado por el Laboratorio de Estudios acerca de Imagen y Cibercultura (LABIC). Palabras clave: Cartografía, Redes sociales, Esfera pública, “Jornadas de Junho”. Abstract: Although there are no conclusive models for network analysis, cartography seems to be a viable analytical path for such intent. Considering the contemporary social mobilizations, social networks play an important role concerning the public sphere. This article aims to discuss such questions using data collected during the events of “Jornadas de Junho” in Brazil, 2013, using as a starting point maps developed by the Laboratory of Studies on Image and Cyberculture (LABIC). Key worlds: Cartography, Social networks, Public sphere, “Jornadas de Junho”. Palavras-chave: redes sociais, cartografia, primaveras, esfera pública. Introdução Metáforas espaciais são aplicadas aos ambientes digitais desde o seu surgimento. Efetivamente, organizar o ciberespaço a partir de parâmetros físicos ajuda a orientar desenvolvedores, usuários e mesmo a análise teórica dos fenômenos desencadeados nos espaços virtuais. É neste sentido que se aplica o termo navegação às formas de circulação na internet. A noção geral de fluxo multidirecional é, talvez, uma das suas características mais consolidadas. Considerando-se a metáfora espacial como válida, é possível então traçar mapas, indicações dos fluxo, que apontem os locais por onde os usuários individualmente ou conjuntamente circulem. Estes locais são, na verdade, conteúdos digitais aos quais os usuários têm acesso – em outras palavras, nós (no sentido de pontos nodais) da rede. Castells (1999, p. 26), ao conceituar sociedade em rede, compara a estruturação da

internet às táticas maoístas de dispersão das forças de guerrilha por um vasto território. A arquitetura em rede faz com que conteúdos sejam distribuídos por diferentes dispositivos, sem centralização ou orientação dos fluxos. Isso não significa, contudo, que não haja nós na rede que sejam mais relevantes do que outros, isto é, pontos de onde mais fluxos de informação partem e para onde confluem em determinado(s) sistema(s) de rede(s). As geografias físicas, os mapas físicos de países e continentes, perdem relevância ou são ressignificados diante destes fluxos. Identidades e interesses se reestruturam na lógica da rede. A este respeito o autor indica que uma revolução tecnológica centrada nas tecnologias da informação está remodelando a base material (Ibidem, p. 20). Mais de dez anos depois do texto de Castells, esta revolução pode ser percebida tanto no âmbito da produção material, quanto no da produção simbólica e nos arranjos das sociedades contemporâneas conectadas por dispositivos digitais, por assim dizer. Nas palavras do autor: “A comunicação simbólica entre os seres humanos e o relacionamento entre esses e a natureza com base na produção (e o seu complemento, o consumo), experiência e poder, cristalizam-se ao longo da história em territórios específicos, e assim geram culturas e identidades coletivas” (Ibidem, p. 33). Castells não se aprofunda nestes territórios, contudo, com a expansão das redes digitais eles parecem se tornar menos físicos. Produção, experiência e poder se dão em espaços cada vez mais virtuais, de modo que culturas e identidades coletivas pertencem e se relacionam a esses territórios. Mais a diante, ele afirma que as novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes globais instrumentalizadas (Ibidem, p. 38): “A comunicação mediada por computadores gera uma gama enorme de comunidades virtuais. Mas a tendência social e política, característica da década de 90 é a construção da ação social e das políticas em torno das identidades primárias”. Note-se bem que, quando isto é escrito, as relações sociais via internet ainda estavam distantes da forma que tomariam com as redes sociais digitais. De fato, a vocação para o debate público aparece desde os primórdios da fase comercial da web. Primeiro isto acontece através de fóruns e listas de e-mails e, posteriormente, nas redes sociais. Sendo identidade entendida como o processo através do qual o ator social se reconhece e constrói significado com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos (Ibidem). Neste sentido, as identidades culturais deixam de se relacionar a características específicas dos locais físicos, como por exemplo a nacionalidade, e passa a se relacionar a pertencimento. Em função disso, aquilo que Habermas (1984) chama de esfera pública se desloca dos espaços físicos para os virtuais. O termo físico ou material é muito importante aqui, uma vez que é relativamente comum ver o virtual ser contraposto ao real, como se houvesse irrealidade

no virtual. Pelo contrário, o virtual é real para os sujeitos que o operam, as informações que nele circulam e as relações nele estabelecidas existem efetivamente dentro e fora dos suportes digitais, com consequências na vida íntima dos sujeitos, nas dinâmicas sociais, produtivas e políticas das sociedades contemporâneas. A esfera pública conforme Habermas define faz parte de uma construção históricosocial na qual público e privado são tratados em termos de oposição, sendo o primeiro o que requer publicidade, que necessita de um público para se constituir, e o segundo o que é íntimo, secreto. Para o autor, na Grécia antiga, esfera privada (oikos) e esfera pública (polis) se distinguem. Note-se que, tomada em termos literais, esta distinção é espacial. A esfera pública é onde se ganha notoriedade ou visibilidade através da conversação ou antes conversações. Nas palavras do autor são públicos “certos eventos quando eles, em contraposição às sociedades fechadas, são acessíveis a qualquer um” (Ibidem, p. 14). Ora, não é a internet espaço onde certos eventos se tornam acessíveis a qualquer um? Segundo Habermas, a partir do século XVIII a esfera pública se torna central no âmbito da política, contribuindo com a organização dos Estados de direito burgueses. Na sequência, os processos eleitorais ampliam a noção de participação e esfera pública. Contudo, não há uma superação das bases da sociedade de classes: A expansão dos direitos de igualdade politica para todas as classes sociais ocorreu no ambito desta mesma sociedade de classes. A esfera publica “ampliada” não levou fundamentalmente a superacão daquela base, sobre a qual o publico das pessoas privadas tinha inicialmente tencionado algo como a soberania da opinião publica (Ibidem, p. 155).

O público cresce através da imprensa e os conflitos, antes presentes na esfera privada, passam à pública, sendo mediados pelo Estado. Em adição, a camada culta perde a sensação de “que ela tinha uma missão a cumprir na sociedade” (Ibidem, p. 206). Com isso, a minoria de especialistas ou bem formados que a camada culta representa passa a se sentir “isolada entre as camadas incultas da burguesia que dela não mais necessitava” (Ibidem, p. 158). Não cabe aqui entrar com profundidade no argumento habermasiano, mas apenas tentar compreender como esta lógica se estende à internet. Em primeiro lugar há, na fase atual da web, uma indistinção entre público e privado. Em segundo, lugar os especialistas perdem gradualmente (tanto em função desta indistinção, quanto da circulação de informações) seu espaço tradicional e, grande surpresa, as “camadas incultas” ganham voz de uma forma que nunca tiveram. Outra crítica do autor que parece se aplicar à internet contemporânea, por assim dizer, é a despolitização da esfera pública na cultura de consumo:

No ambito da assim chamada cultura do consumo e que a ideologia se ajeita e preenche, ao mesmo tempo, nos niveis mais profundos da consciencia, a sua antiga funcão, ou seja, a coercão ao conformismo com as relacoes vigentes. Essa falta de consciencia não consiste mais, como ideologia politica do seculo XIX, num sistema em si coerente de concepcoes, mas um sistema de modos de comportamento (Ibidem, p. 252).

A opinião pública, neste argumento tornada acrítica, configura-se como reacão desforme da massa, eventualmente, conduzida por interesses que não se pautem ou atendam ao bem comum. A sensação geral de despolitização de que trata Habermas aparece num discurso recorrente sobre a despolitização dos usuários da web, em especial das redes sociais. O senso comum sobre os usuários das redes parece reverberar a noção habermasiana de que a esfera pública burguesa se fragiliza diante da economia capitalista e dos meios de comunicação de massa. A despolitização percebida nas redes sociais seria então reflexo do esfacelamento gradual da esfera pública. Sintoma e, pensando-se em termos de comunicação, causa deste mesmo fenômeno. Primavera, origens e cartografia geral dos acontecimentos Real e virtual nos processos políticos se completam. Nestas primeiras décadas do século XXI tem havido uma ubiquação entre estes espaços antes considerados antagônicos. Quando as mídias digitais começam a ser utilizados em larga escala entre finais dos anos 80 e ao longo dos anos 90, elas são apropriadas pelos sujeitos como um “outro”, dispositivos alienígenas recém chegados ao cotidiano, o que inaugura o discurso do antagonismo. Em pouco tempo, contudo, estes dispositivos se naturalizam e os sujeitos que nasceram da última década em diante, pelo menos nas metrópoles do mundo ocidental, não terão vivido sem alguma forma de acesso a dispositivos digitais e, por extensão à web. Não há então como separar estas mídias das experiências dos sujeitos, de modo que a vivência política passa cada vez mais pelo digital, estando ou não estruturada por ações de ciberativismo, termo que implica em ação consciente e sistemática. As dimensões desta articulação são novas e no mundo inteiro acontecem fenômenos semelhantes, pelo menos desde a o início do movimento “Marcha das Vadias” e “Occupy Wall Street”, depois generalizado como “Occupy”, que saem às ruas pela primeira vez respectivamente em 11 de abril de 2011, em Toronto, e em 17 de Setembro de 2011, em Nova Iorque. Em comum entre estes movimentos está a articulação via redes sociais, levada às ruas

por organizadores independentes e não necessariamente vinculados a partidos políticos (este ponto aparece nas Jornadas de Junho no Brasil1). Em termos de temática, o descontentamento com o regime sócio-econômico aparece em ambos: no primeiro como oposição à heteronormatividade, misoginia e opressão contra as mulheres; no segundo como oposição ao poder econômico do capital. Nos dois casos aparece o apelo à cidadania e às liberdades civis individuais (o que remonta os movimentos de direitos civis nas décadas de 60 e 70, evocados em termos de discurso e iconografia tanto na rede quanto nas ruas) e à reordenação de um sistema político econômico que provoca exclusão e que parece insustentável. Em função das redes sociais, diversas Marchas das Vadias e Occupy tem sido organizadas ao redor do mundo, especialmente via Facebook, plataforma que apresenta mais funcionalidades em relação a troca de conteúdos, discussão e agendamento de eventos. A Primavera Árabe2 se refere diretamente às liberdades individuais e ao direto à comunicação, mais especificamente ao direito de uso da internet. Foi a proibição de acesso aos meios de comunicação em 28 de janeiro de 2011 e a necessidade de buscar informações vis a vis (conforme Habermas) que levou muitos egípcios às ruas e mobilizou pessoas dentro e fora do país. Posteriormente, em Damasco, situação semelhante aconteceu em 03 junho de 2011 quando o governo Sírio proibiu acesso à internet por 24h, na tentativa de coibir as manifestações me massa. Especificamente em relação ao Egito, Wael Ghonim, executivo do Google preso por um breve período durante as manifestações, proferiu a seguinte frase: “se você quer uma sociedade livre, basta lhe dar acesso à internet”3. Neste país, parte do levante ou sua exacerbação ocorreu em função da proibição do então presidente Hosni Mubarak de interromper as comunicações via internet e redes de telefonia móvel. A mobilização popular ganhou vulto e a comunidade internacional, entendida aqui como governos e pessoas isoladamente, reagiu demonstrando solidariedade e criando estratégias de disseminação dos 1Prevere-se aqui este termo à “Primavera Brasileira” para se referir às menifestações sociais ocorridas em junho de 2013 no Brasi, isso porque, o direito às liberdades individuais e à comunicação não foram pautas dominantes durante o período citado. 2 O nome Primavera Árabe evoca a Primavera de Praga em 1968 e se refere ao conjunto de mobilizações populares ocorridos no Oriente Médio e Norte da África a partir de Dezembro de 2010, quando um jovem tunisiano ateou fogo ao próprio corpo como forma de protesto contra às condições de vida em seu país. Em função deste ato, manifestações ocorreram na Tunísia, culminando com a fuga do presidente Zine El-Abdine Ben Ali, para a Arábia Saudita. Com o sucesso da empreitada tunisiana, revoltas eclodiram na Argélia, Jordânia, Egito, Iêmen, Líbia e Síria, entre outros países. Como resultados parciais, além da fuga do presidente tunisiano, houve a renúncia do presidente do Egito, Hosni Mubarak em fevereiro de 2011 após 18 dias de protesto, renúncia do governo da Jordância e a morte do presidente da líbia, Muammar alGaddafi, além de indicações do presidente do Iêmem, Ali Abdullah Saleh, Sudão, Omar al-Bashir, e do premiê iraquiano, Nouri al-Maliki, de que não concorreriam a reeleições. Em comum entre todas as manifestações está o papel da internet e, mais especificamente, das redes sociais, em viabilizar as mobilizações e permitir a circulação de informações dentro e fora destes países. 3Esta frase aparece em artigo de Navid Hassanpour para o Le Monde Diplomatique. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1114

conteúdos produzidos no Egito e fora dele. Neste momento fica claro que a internet começa a ser percebida, pelo menos no senso comum, como plataforma privilegiada de disseminação da informação. Se antes o ciberativismo era acusado de ineficiência, agora as ações via web ganham ares de relevância e catalização de mudanças sociais, trazendo à tona conteúdos que estavam sendo mantidos ocultos em função de interesses particulares ou escusos. Houve, em relação à Primavera Árabe, o estabelecimento de um senso de identidade, como se sujeitos e grupos ao redor do mundo – leia-se centros urbanos, com algum degrau de ocidentalização, conectados via web – compartilhassem as pautas e objetivos dos movimentos de cada país. Essa noção geral de interesses comuns, ou antes de uma luta em comum, antecede as manifestações desta segunda década do século XXI. Ao convocar os operários do mundo à união, Marx, sugere que há objetivos comuns nas lutas operárias de finais do século XIX. Esta noção de união, em última instância perpassada por uma ideia de humanismo que remonta o iluminismo (outro movimento, a seu tempo, de caráter global), permeia, grosso modo, os movimentos minoritários ou de esquerda. Sem entrar em detalhes sobre como este senso de identidade chega aos dias de hoje, podemos afirmar que na rede ele tem velocidade e proporções inéditas, reforçado pela noção de Aldeia Global e esta, por sua vez, embastada na crença que ganha notoriedade a partir dos anos 90 com as discussões sobre meio ambiente, de que somos responsáveis uns pelos outros e pelos sistemas em que habitamos. De 2012 até os protestos acontecidos em julho de 2013, houve uma série de acontecimentos, ainda no âmbito digital, significativos para se perceber formas mais engajadas de uso das redes sociais pelos brasileiros. Muito espontaneamente os usuários passam a explorar um espaço de comunicação privado para tratar de questões públicas, antes pertencentes à polis. Estabelecendo um recorte, de certa forma arbitrário para os eventos sócio-políticos que ganharam relevância nas redes sociais, temos que em maio 2011, um agendamento via Facabook levou às ruas o “Churrasco de Gente Diferenciada”, uma ironia à oposição de um grupo de moradoras do bairro de Higienópolis em São Paulo à construção de uma estação de metrô na avenida Angélica, uma das regiões mais valorizadas da capital. Em Janeiro de 2012 circulara no Facebook e Twitter (sob a hashtag #somostodospinheirinho) manifestações de apoio e cobranças de posicionamento do governo de São Paulo sobre o despejo violento de moradores da favela Pinheirinho, localizada na capital paulistana. Em novembro do mesmo ano, surge no Facebook um movimento de apoio ao povo Guarani-Kaiowá, ocasião em que, para mostrar adesão e identidade (termo que insistiremos em utilizar aqui), usuários da rede adicionam o nome do povo indígena ao seu próprio sobrenome no perfil desta rede. Em abril de 2013 as redes sociais brasileiras são

invadidas por memes ironizando o elevado preço do tomate, indício do aumento da inflação no país. Isso sem contar com o movimento “Feliciano não me representa”, iniciado em março de 2013 quando o deputado Marco Feliciano (PSC-SP), conhecido por declarações homofóbicas, racistas e contra religiões de origem africana, foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, processo que culmina (embora não se encerre) com a saída do Deputado da Comissão em agosto de 2013. Logo no início de 2013, o recém-empossado prefeito de São Paulo, Fernando Haddad anunciou o aumento das tarifas de ônibus na cidade. Em maio, o Governo Federal publicou uma medida provisória que isentava o transporte público de PIS e COFINS como forma de segurar a inflação provocada pelo reajuste das tarifas no país. Mesmo assim, Haddad manteve o aumento, o que gerou protestos por parte do Movimento Passe Livre paulistano nos dias seis, sete e onze de junho. A cada dia, a causa ganhava mais adeptos dentro e fora das redes sociais em função da notoriedade que alcançou por conta das críticas uso do termo “vandalismo” feito pela grande mídia, com o qual os usuários das redes sociais tendiam a discordar, e da repressão policial violenta contra os manifestantes e membros da imprensa. Pode-se dizer que a tensão social que explode após a repressão policial violenta começa a se traçar – embora ganhe outros rumos ao ser disseminada em massa e ganhar as ruas – especialmente com estes dois últimos movimentos. A sensação de distanciamento dos políticos, não representação e o descontentamento geral com a inflação são temas retomados nos conteúdos compartilhados por usuários da rede durante as manifestações do Passe Livre, em especial as provocadas pelas agressões a manifestantes e jornalistas e, como decorrência delas, a polêmica instaurada ao porte de vinagre. Além disso, o silêncio sobre os acontecimentos nas ruas e emprego do termo vândalo pelas mídias tradicionais, considerado inadequado pelos usuários das redes sociais, provocaram inquietação. Neste contexto, Twitter e Facebook passam a ser utilizados explicitamente para falar de questões que por motivos ideológicos estavam sendo ignoradas pelos veículos de massa. Além dessas funções o Facebook passa a ser utilizado para organizar as passeatas que ocorreram em todo o país. Quando da eclosão do movimentos de São Paulo, o evento criado no Facebook para a cidade contou com mais de 270 mil adesões. No Rio foram mais de 70 mil confirmações. O mesmo padrão se repetiu nas demais capitais brasileiras. Além disso, o registro de imagens e vídeos postados na web foi fundamental para o acompanhamento das manifestações assim como para o monitoramento da segurança dos participantes e controle dos abusos policiais.

Cartografia como metodologia possível na rede A metáfora do mapa tem sido aplicada para a compreensão dos fenômenos do ciberespaço. Para melhor abordá-la, tratamos da noção de rizoma de Deleuze e Guatarri. O rizoma opõe-se à compartimentalização do conhecimento, conforme foi estabelecido no ocidente desde a antiguidade clássica, e, como decorrência a uma estruturação do pensamento em forma de árvore, isto é, à organização do saber em que há uma hierarquização do conteúdo que se origina em raízes, sobe pelo tronco e se esgalha. Esta forma se pensar o conhecimento é mecânica e, de certo modo arbitrária, uma vez que pressupõe a predominância de certos saberes, ou temas, sobre outros. Para os autores não há um tronco que sustente o conhecimento, mas uma estrutura rizomática, horizontal em que os pontos se originam em qualquer parte e se dirigem para qualquer parte. Segundo eles: Falamos exclusivamente disto: multiplicidade, linhas, estratos e segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos maquínicos e seus diferentes tipos, os corpos sem órgãos e sua construção, sua seleção, o plano de consistência, as unidades de medida em cada caso. Os Estratômetros, os deleômetros, as unidades CsQ4 de densidade, as unidades CsQ de convergência não formam somente uma quantificação da escrita, mas a definem como sendo sempre a medida de outra coisa. Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.12-3).

Deleuze (1980) esclarece ainda mais sua proposição com Guattari ao afirmar que o rizoma é “precisamente um caso de sistema aberto” e que um sistema é aberto “quando os conceitos são relacionados a circunstâncias e não mais a essências”. A partir destas noções é possível nos apropriarmos do conceito de rizoma metodologicamente. A forma como a apropriação do rizoma se dará será cartográfica, a imagem construída, no modelo de análise que aqui propomos, é criada pelo estabelecimento de vetores entre um conceito e outro – ou entre conjuntos de conceitos. Isso porque, segundo os autores, diferentemente da árvore ou da raiz “que fixa um ponto, uma ordem”, “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.15). A utilização da cartografia tem sido muito recorrente nos estudos sobre o ciberespaço. Este apresenta por definição (a própria arquitetura das redes) uma estrutura rizomática. Tal noção se amplia com a teoria ator-rede de Callon e Latour usada amplamente nos últimos anos para tratar dos fenômenos de interação social e/ou interação homem-máquina no escopo da digitalização. Latour argumenta que as redes não são amorfas, mas altamente diferenciadas. A ciência definida através do conceito de rede não se caracteriza por 4 CsQ, é a abreviatura de Corpos sem Órgãos, termo utilizado pelos autores.

racionalidade, objetividade e veracidade dos fatos, como no paradigma tradicional, mas são efeitos, atingidos através das tensões – e não de parâmetros externos – próprias à rede. Sendo nela as conexões entre os atores performativas, de modo que suas propriedades mudam conforme novos atores sejam implicados ou outros deixem de atuar. Em texto proferido num seminário sobre a teoria das redes, Latour (2011, p. 796) admite que a noção de redes é imensa e tem uma extensão hegemônica. Ele continua afirmando que, no sentido mais simples e mais profundo, a noção de rede é útil sempre que a ação é redistribuída e que a habilidade do conceito de rede está em seguir o estranho movimento que vai das substâncias aos atributos e retorna num movimento contínuo. São justamente os vetores desenhados em um mapa que indicam este movimento contínuo (Ibidem, p. 797). As teorias de Deleuze e Guatarri e Latour tem sido utilizadas naquilo que se chama de análise da controvérsia. A lógica do rizoma condiz com conhecimentos que não são passíveis de hierarquização. Sguiglia e Toret (2010) compreendem a cartografia como um protótipo abstrato para a análise de um problema na forma de mapa ou, como preferimos pensar, diagramar problemas por meio de estruturas vetoriais. Sendo que o termo problema deve ser entendido aqui como questão pontuada pelos usuários de determinado sistema. A cartografia, prosseguem os autores, permite a construção de mapas abertos de orientação, conectáveis em todas as suas dimensões, destacáveis, reversíveis e suscetíveis a modificações constantes (Ibidem, p. 2). Imagens de uma cartografia: desenho de fluxos nos protestos brasileiros Explorada a possibilidade de uso da cartografia para a análise do ciberespaço, em especial das redes sociais, tomaremos como ilustração o caso das Jornadas de Junho. Os mapas aqui utilizados foram retirados do site do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) que estuda “o impacto da cultura digital nos processos e práticas de comunicação contemporânea”. Um dos motivos de termos escolhido utilizar os mapas do Labic é que a coleta foi feita praticamente em tempo real. Tomamos então dados do artigo “A Batalha do Vinagre: por que o #protestoSP não teve uma, mas muitas hashtags” de Fabio Malini sobre os acontecimentos do dia 13 de junho em São Paulo, publicado no site do Labic já no dia seguinte. Embora reconheça o papel mobilizador do Facebook através da ferramenta eventos (28 mil usuários confirmaram presença no evento intitulado “Terceiro Grande Ato Contra o Aumento da Passagem”) a ênfase do autor recaí sobre o uso de hashtags e palavras-

chave que circularam no twitter nesta data. As principais foram: #passelivre #contraoaumento #vemprarua #changebrazil #tarifazero #indignação #occupySP #protestoSP #13jSP. O que segundo Malini (2013) indica uma multiplicidade de movimentos dentro do movimento. Analisando-se o uso de termos sem hashtag, tem-se que “tarifa” dominou o Twitter na ocasião, sendo que entre 17h e 23h50, mais de 17 mil tweets contendo a palavra eclodiram na rede. Outras palavras recorrentes foram: protesto, jornalista, ônibus, rua, manifestantes, vinagre, bomba. Termos (com e sem hashtag) que foram replicados pelos usuários.

Figura 1: Rede de Rts contendo a palavra “tarifa” no Twitter, coletados entre 17h às 23h50 (MALINI, 2013)5.

Considerando-se a lógica da rede percebida na figura, temos que os termos emanam de focos do centro (nós mais visitados), para a periferia. No caso das manifestações de São Paulo (padrão percebido em muitas outras circunstâncias), temos que os nós de onde emanam a maioria dos fluxos (o que não significa, contudo que eles tenham os iniciado) se relacionam a formadores de opinião, daí que haja uma assimetria no volume de informações que circula entre os nós. 5 No original todas as imagens estão coloridas indicando-se o fluxo de informações.

Figura 2: Fluxo de retweets de perfis mais centrais para os periféricos (MALINI, 2013).

Embora a lógica das redes seja notadamente horizontal, isso não evita que perfis de grupos e pessoas públicas se tornem pontos nodais da rede. Na figura acima, temos que são os perfis do Estadão (@estadao), da jornalista Silvana Bittencourt (@SilvanaBit), do deputado Jean Wyllys (@jeanwyllys_real), do VJ da MTV PC Siqueira (@pcesiqueira) e do escritor Marcelo Rubens Paiva (@marcelorubens) são os que recebem maior atenção dos usuários. Cabe, na medida em que os estudos sobre a cartografia do ciberespaço avençam, explorar melhor as características comportamentais dos usuários. Todo modo, o mapa indica que os usuários recorrem a diferentes fontes e emitem conteúdos para pontos diversos. Daí decorre que os mapas indicam estágios de um determinado fluxo, são instantâneos de dinâmicas diversas. No caso das manifestações de São Paulo, não só os agentes são relevantes, mas os acontecimentos têm impacto sobre os fluxos. Vejamos mais dois dos mapas produzidos, o primeiro indica o fluxo de tweets durante a passeata do dia 13, antes do confronto com a PM:

Figura 3: Fluxos de tweets sobre a passeata antes do confronto com a Polícia Militar (MALINI, 2013).

O segundo mapa mostra a intensificação dos fluxos com a eclosão da violência policial. A reação dos usuários da rede aos acontecimentos nas ruas foi imediata.

Figura 3: Fluxos de tweets sobre a passeata durante o confronto com a Polícia Militar (MALINI, 2013).

Fato a se notar é que a maioria dos usuários não estava fisicamente presente na manifestação (a assimetria entre o número de tweets e os manifestantes nas ruas mostra isso), porém, pode-se pressupor, considerando-se o uso de pacotes de dados em dispositivos móveis e a atualização dos acontecimentos em tempo real – leia-se antes das midias tradicionais – que muitos tweetaram diretamente do protesto. Considerações finais A análise cartográfica dos incidentes de junho de 2013 (e não apenas destes mapas, mas da multiplicidade de mapas que podem ser construídos com de diferentes termos) é relevante para se compreender as formas de utilização das redes sociais na construção de uma esfera pública virtual. Neste sentido é válido mesmo revisitar – quantas vezes for necessário – a noção de esfera pública e além dela, como insistimos neste texto ainda que sem nos aprofundarmos, sobre a crítica presente no comportamento dos agentes. Há aí um grande problema para as pesquisas futuras: é possível medir a crítica dos agentes? Passada a onda de

protestos – físicos e virtuais, nas suas mais diversas manifestações – paira sobre os usuários da rede uma sensação de que nada mudou. Ditadores não foram depostos, como na primavera árabe (não que a deposição implique mudança; o Egito Mubarak foi substituído na sequência dos fatos por uma junta militar). O ativismo de sofá e de rua, teve, contudo, alguns ganhos (ou resultou em paliativos para as tensões sociais?). Porém, estes foram mais lentos do que os descontentes queriam, o passe livre ou a redução de passagens entrou na pauta de algumas gestões municipais, a PEC 37 foi rejeitada e Feliciano deixou o cargo. É possível que esta sensação de insucesso seja fruto das pautas difusas que apareceram ao longo do período mais acalorado das Jornadas de Junho. É possível que seja fruto de uma imaturidade da esfera pública virtual no Brasil e que o passo seguinte seja converter esta energia em mecanismos de ação. Os fluxos e implicações das Jornadas de Junho de 2013 são complexos e a respeito deles ainda há muito a ser explorado, especialmente porque houve desdobramentos ao longo de 2014 e primeiro semestre de 2015, mas é possível afirmar que internet brasileira deixou de ser vista de forma jocosa ou secundária pela mídia tradicional. Aliás, a forma como ela é vista pela mídia tradicional tenderá a perder importância ao longo do tempo. Embora nos mapas analisados o @estadão ainda tenha sido um ponto nodal, há outros fluxos relevantes e, sobretudo vida própria na periferia: usuários produzindo conteúdos para si e seus pares de forma dispersa mas significativa quando consideramos o volume desta produção. Não estamos mais no limiar de uma mudança. A mudança está em curso. De forma acelerada, os usuários evidenciam seu desejo de protagonismo nesta fase da rede, dentro e for a dela. A nós, pesquisadores, cabe acompanhar estas mudanças sem afetações respeitando as feições do rizoma. Bibliografia CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra,1999. v. 1. DELEUZE, Giles. Mil platôs não formam uma montanha.: depoiment. Debate com Christian Descamps, Didier Eribon e Roberto Maggiori, publicado no jornal Liberación em 23 de outubro de 1980. Disponível em: . Acessado em 10 de set de 2013. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da Esfera Pública. Rio de Jnairo:Tempo Brasileiro, 1984. LATOUR, Bruno. Reflections of an Actor-Network Theorist. International Journal of Communication, v.5, 2011. Disponível em:

. Acessado em 10 de set de 2013. MALINI, Fábio. A Batalha do Vinagre: por que o #protestoSP não teve uma, mas muitas hashtags. 2013. Disponível em: . Acessado em 10 de set de 2013.

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