Sobre a redenção da cidade: pertencimento, coexistência e o programa da habitação social em São Paulo

July 22, 2017 | Autor: Luís Jorge | Categoria: Social Housing, Architecture and urbanism
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Sobre a redenção da cidade:
pertencimento, coexistência e o programa da habitação social em São Paulo
Luís Antônio Jorge



Domingos, esse lugar aqui não é mais o meu.
Não existia nenhum desses edifícios e a cidade era outra.
Está vendo essa multidão que anda de um lado para o outro?
Eu não conheço nenhum deles.
Esse mundo não é mais o meu.
Manuel Bandeira
(citado em "A torradeira do poeta", de Domingos de Oliveira, Folha de S. Paulo, 11/ago/2013)




Mudam de céu, não de alma, os que correm além do mar.
Horácio (65-8 a.C.)


Era uma destas favelas de borda de estrada ou da avenida que do dia para noite virou postal. Para sair na fotografia a exibir a mais nova ponte no céu da cidade a paisagem vem sendo conformada. Os fundos e bordas das fotografias da ponte acompanham o ritmo veloz das mudanças de usos e de formas de ocupação do solo da extensa região formada pela várzea do Rio Pinheiros, junto ao eixo descrito pela Av. Engo. Luís Carlos Berrini.
Quem visita o novo conjunto de habitações de interesse social do Jardim Edite, na esquina da Berrini com a Roberto Marinho, já nos arranques da ponte estaiada Octavio Frias de Oliveira, pode se espantar com o incomum e indagar-se sobre este uso em local tão marcado pelos estigmas do alto padrão e frequências de classe A. Altaneiro e bem posto, o conjunto parece, antes de tudo, lembrar-nos de que vivemos na mesma cidade, somos todos parte de um tecido urdido por brutais diferenças e que a arquitetura e o urbanismo podem bem servir às políticas de reparação de danos, inclusão social e combate à segregação sócio-espacial.
O conjunto arquitetônico Jardim Edite veio inscrever a casa do homem comum no mundo dos postais. A casa modesta de um trabalhador dentro da cidade, gozando dos seus endereços e serviços, constrói a trama social da urbanidade, o único desenho sustentável da cidade no século XXI, a superar o modelo de desenvolvimento urbano vigente, ou seja, a combinação de crescimento da cidade e de grandes investimentos com perda crescente de urbanidade e da qualidade e do sentido do espaço público.
O programa da unidade habitacional é por demais conhecido e um tanto conservador, com relação à ideia de família no Brasil: dois quartos - um para os pais, um para os filhos - um banheiro, uma sala, uma cozinha e uma área de serviços ou lugar para lavar e secar as roupas. Como inscrever algum encantamento neste tão visitado programa? A resposta dada pelos escritórios MMBB e H+F foi equacionada nos seguintes termos: introduzir o desenho ou espírito da cidade na arquitetura. Ou melhor, trazer a "alma encantadora das ruas", como formulado pelo nosso cronista de costumes há mais de um século, João do Rio, para os espaços de interface entre a moradia - a função primeira do projeto - e a cidade. No percurso entre o espaço público e o espaço privado de cada unidade habitacional, há uma evidente intenção de esparramar ou disseminar o sentido das ruelas e dos vazios presentes na memória dos moradores da antiga favela do Jardim Edite que deu lugar ao presente conjunto de moradias. Nos interstícios vazios das nossas densas favelas são construídos os vínculos comunitários que, ao contrário das ruas bem servidas, são sólidos, pois foram moldados por uma experiência física que deixa marcas indeléveis nos corpos. O sentido do espaço da rua da favela é, antes de tudo, uma experiência corporal. A compreensão de que há uma luta comum e que os problemas atingem a todos resultam de uma vivência do corpo físico antes dele se tornar social. Por isso, o sentido é sólido, enquanto na cidade dos postais ou na Berrini, esta experiência é fluida e líquido é o corpo social que ali viceja, sem a presença das tais marcas adquiridas no espaço sólido daquelas ruas.
Assim, o projeto dos acessos ou corredores de circulação nas torres de habitação do Jardim Edite guarda vestígios de uma memória das ruas ao sugerir o convívio, uma conversa mais longa com os vizinhos, como quem frequenta a calçada ou a rua para gozar um tempo de descuido ao fim do dia e participar da vida em comum que se faz nas ruas, junto aos espaços em frente à casa de cada família. Com a mesma intenção são tratados todos os espaços de circulação do conjunto: como abrigo para o corpo social já constituído e nutrido pela solidez da experiência na antiga favela. E eles são muito diversos. Os blocos horizontais de habitação, de configuração laminar, sem elevadores, oferecem uma escada de único lance para cada dois apartamentos por andar, fugindo da tão difundida economia da planta em H, só para fazer fluir o acesso dos apartamentos à área de convívio comunitário enquanto o morador descortina as duas faces da paisagem paulistana que o bloco separa.
O desenho que relaciona as funções do conjunto (habitação, sempre acima do nível da rua, restaurante-escola, unidade de saúde e creche, em contato direto com a rua) reverbera a preocupação em transformar a passagem ou o caminho em algo mais do que fluxo: propõe praças, pátios e quintais, distribuídos nos diversos níveis do bloco de embasamento, conforme as vocações de uso, sempre ajustadas às escalas do público que utilizará os serviços e da comunidade de 252 famílias moradoras. A pureza formal e prismática encobre a variedade espacial da arquitetura de interstícios e transições entre os equipamentos de uso público, os de uso coletivo e comunitário e os de uso privado.
A referida pureza prismática e ortogonal dos volumes e da implantação do conjunto confere clareza de intenções, como é próprio da arquitetura praticada pelos autores do projeto, todos formados pela FAU/USP, em gerações distanciadas por quinze anos. O conjunto ocupa duas quadras longilíneas separadas por uma pequena rua transversal à Roberto Marinho. Os três blocos verticais são paralelos e demarcam fronteiras destas quadras. Os dois blocos horizontais, também paralelos, são ortogonais aos primeiros e também fronteiriços, em lados opostos. A disposição destes volumes de maior porte (verticais e horizontais) confere unidade ao conjunto e reconhecimento do todo e das partes, ao definir pátios, ou melhor, áreas protegidas, destinadas ao uso público no nível da rua e ao uso coletivo do condomínio residencial, no nível da laje de cobertura dos equipamentos públicos, onde, por uma série de dispositivos de conexão e passagens promove-se um "segundo térreo", elevado e integrador dos distintos blocos. Esta estratégia de desenhar os vazios entre os blocos residenciais é uma reação aos elementos urbanos marcantes do entorno imediato. Na quadra mais próxima da Berrini há dois pátios principais: um no nível da cobertura dos equipamentos públicos serve como um afastamento das moradias da pista elevada de acesso à ponte estaiada, outro, no nível do chão, serve como convite e ingresso direto pela rua secundária e transversal à Berrini, mais próxima da escala do pedestre do que à do automóvel, e para onde se voltam também todos os acessos dos equipamentos e serviços públicos, com seus respectivos pátios de usos exclusivos. Na quadra adjacente, onde se localiza a creche, a disposição do bloco horizontal de habitações no limite junto à Roberto Marinho, volta as áreas livres ou os pátios para o interior do bairro, como uma aproximação à agradável praça vizinha. E a rua que divide o terreno em duas quadras, ladeada pelas torres verticais, configurada como uma travessa, assume ares e usos próprios da escala de vizinhança, como uma tranquila rua de baixo tráfego, com vocação para a brincadeira de rua, sob os olhares de mães e amigos. A opção por esta forma de implantação não seria totalmente compreensível sem o conhecimento de um dado técnico: todo o terreno está localizado sobre um aterro, inviabilizando qualquer solução com subsolos ou mesmo a implantação de usos semi-enterrados. Todas as fundações foram executadas em hélice contínua e o pavimento térreo, sobre lajes em concreto armado, evitando futuros recalques no frágil terreno.
Os dezessete pisos que formam a altura comum das três torres são inusuais no Brasil, devido a um dogmatismo renitente que não permite o uso de elevadores em habitações de interesse social, independentemente de análises conjunturais mais aprofundadas. O projeto do Conjunto Jardim Edite pôde romper com este dogma e responder aos apelos de uma esquina formada por duas vias de grande porte, sendo uma delas definida por dois níveis – o do chão e o do elevado. A resposta é certeira: a primeira torre, orientada para a Berrini, foi afastada ao limite funcional e programático para oferecer uma praça, preservar uma árvore e se articular com a larga calçada que circunda todo o conjunto, resultando em uma insuspeitada nobreza e dignidade urbanística, tão generosa com as avenidas, quanto os mais suntuosos empreendimentos imobiliários da vizinhança. Todos os recuos foram oferecidos para os passeios públicos e para a praça de esquina, explicitando o significado da sua função urbana. E estes passeios, por sua vez, são o acolhimento ao público que se servirá do restaurante-escola, da unidade de saúde e da creche, com suas respectivas entradas individualizadas, indicadas por um variado e forte colorido que circunda as calçadas e contrasta com a sobriedade cromática dos blocos de habitação.
As torres possuem o mesmo pavimento-tipo que resultou em faces bem diferentes nos lados de maiores dimensões. No lado onde estão as janelas das unidades, predominam as linhas horizontais; no lado do corredor de acesso aos apartamentos observa-se uma grade de cheios e vazios modulada por retângulos verticais. Se na primeira situação os planos horizontais ressaltados projetam sombras sobre as janelas para enfatizar o motivo geométrico da composição, na segunda situação, a relação geométrica entre cheio e vazio produz uma pulsação rítmica mais vibrante. Se na primeira, o predomínio dos planos horizontais é uma sobrescritura, na segunda, a escrita é formada por unidades discretas, distinguíveis e autônomas como um boogie woogie mondriânico e monocromático, onde no centro o ritmo é regular e nas bordas ou limites do quadro a regularidade é desfeita pelos vazios ainda inscritos na modulação. Observa-se, na planta do pavimento tipo, que estes vazios estão incorporados aos apartamentos de canto e, portanto, não fazem parte do sugestivo espaço coletivo de circulação já mencionado. Tratam-se das áreas de serviços das unidades de canto, espaços para lavar e secar roupas, expostos aos olhos da cidade. A imagem subverte a abstração geométrica da composição, ao exibir, qual bandeiras agitadas, nossas roupas comuns dependuradas, e introduzir uma manifestação dissonante, colorida e imprevista como um estranho festival, uma festa dos nossos trapos coloridos, uma lembrança de feriado nacional ou de festa popular insinuando-se, pelas frestas, nos dias e nos espaços do mundo das corporações e do trabalho produtivo.
A metáfora do feriado nacional, imagem imortalizada pela poesia de Orestes Barbosa em "Chão de Estrelas", serve-nos para saudar a importância deste acontecimento na vida da cidade, uma das bem-vindas exceções realizadas em São Paulo, se considerarmos os conjuntos de habitações de interesse social largamente implantados no país, nos últimos anos. Neste sentido, o Jardim Edite é um feriado para celebrar a volta da casa do homem comum à cidade. Suas lições exemplares de arquitetura e urbanismo não devem ser interpretadas como um caso isolado de concessão às demandas e pressões sociais, precisamente, porque ele não veio para se servir, mas para servir à cidade, para mostrar a ela como tudo poderia ter sido diferente e como a vida e o corpo de São Paulo teriam sido outros se praticássemos o conceito de que a cidade é um bem comum e que nos seus espaços públicos cultivamos a nossa identidade e o nosso apreço por ela e pelos outros.


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Ficha Técnica do Conjunto Residencial e de Serviços Jardim Edite, em São Paulo (SP), Brasil
Obra para a Prefeitura de São Paulo
Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB/Habi)
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU)

Início do projeto: 2008
Início da obra: dezembro de 2010
Final da obra: maio de 2013
Área do terreno: 18.000 m2
Área construída: 25.714 m2

Arquitetura e Urbanismo:
MMBB (Fernando Mello Franco, Marta Moreira e Milton Braga)
H+F Arquitetos (Eduardo Ferroni e Pablo Hereñu)
Estrutura: Kurkdjian e Fruchtengarten (2008) / Projetal (2010)
Fundações: MAG Projesolos (2008) / Portella Alarcon Engenheiros Associados (2010)

Sondagem: Geosolo
Instalações: PHE
Paisagismo: Suzel Mjárcia Maciel (2008) / Ricardo Vianna/Bonsai Paisagismo (2010)
Orçamento: Nova Engenharia (2008)
Gerenciadora: Consórcio Bureau Sistema PRI
Consultorias: System (projeto geométrico)
Proiso (impermeabilização)
Cia. De Projetos (estrutura metálica)

Construção: Kallas


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