Sobre a reminiscência em Platão

August 5, 2017 | Autor: Antonio Martins | Categoria: Epistemology, Plato and Platonism, Fonseca
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B I B L O S — Vol. LX1 (1985)

ANTÓNIO MARTINS Universidade

de

Coimbra

SOBRE A REMINISCÊNCIA EM PLATÃO 0.1. Como é sabido, uma das metáforas usadas por Platão para se referir à possibilidade que o homem tem de aprender e de conhecer, de adquirir saber, é a da reminiscência. E se dizemos uma das metáforas, é porque não podemos esquecer, contrariamente ao que geralmente acontece, que Platão também explora outra via de esclarecimento da mesma questão através da doutrina da purificação, κάθαρσις, exposta, no Sofista, pelo estrangeiro de Eleia (229b ss). Contudo, vamos debru­ çar-nos sobre a metáfora da reminiscência neste breve apontamento tentando esclarecer o seu significado e relevância filosófica, a partir do texto chave do Ménon (80a-86c). Além deste, dois outros textos nos apresentam a aquisição de saber e o aprender como reminiscência: Fédon 72e-76e, Fedro 249b-e. Embora seja nítida a influência dominante da imagética destes dois textos, sobretudo do passo do Fedro, em determinadas interpretações do pensamento platónico, cremos que a análise da questão da anamnese na obra platónica deve partir do Ménon para o Fédon e Fedro e não ao contrário. Seguimos, assim, a sequência da cronologia real destes diálogos (Ménon, ... Fédon, ... Fedro) ao darmos prioridade a uma interpretação do trecho do Ménon. A linguagem metafórica e o enquadramento mítico em que a reminiscência surge nestes textos podem ser tidos como algo que favorece a interpretação tradicional do dualismo platónico. De facto, a tradição de estudos e comentários da obra platónica que interpretam a afirmação de Sócrates no Ménon (81d4) como u m a descrição daquilo que, literalmente, acontece quando um homem conhece algo que não sabia antes, é longa e muito representativa. Interpretação literal que se estende, geralmente, às afirmações sobre o ciclo das reincarnações da alma e está, quase sempre, associada a uma interpretação também (pretensamente) literal dos três símiles da República. Cingindo-nos agora, aos textos que tratam da reminiscência, procuraremos mostrar

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os limites de uma interpretação demasiado literal e imediata desses textos. Segundo a interpretação tradicional da posição platónica, a alma teria contemplado, numa existência anterior, antes de ter encarnado em determinado corpo, as ideias de todas as coisas, ideias que ela vai relembrar/recordar quando devidamente estimulada. U m a primeira dificuldade desta concepção tradicional da reminiscência é que ela absolutiza determinadas expressões metafóricas do Fedro e esquece que no Ménon não se fala de uma reminiscência ( ἀνάμνησις) das ideias. O mínimo que se pode dizer, é que o texto é omisso, neste ponto. À pri-meira vista, Sócrates parece apoiar-se, principalmente, nas concepções órficopitagóricas da reincarnação e da metempsicose. Outra dificul-dade séria da interpretação tradicional, demasiado literal, reside no seguinte facto: é que é o próprio texto platónico que se distancia da literalidade da metáfora da anamnese (Ménon 86b6 ss, Fédon 72e4, 114d ss, Fedro 257a). Esta dificuldade remete-nos para questões her-menêuticas centrais como a da recta interpretação da linguagem meta-fórica em geral, do uso e sentido da metáfora no discurso filosófico e, neste caso, de saber como interpretar a metáfora e o mito nos diálogos platónicos. N ã o é aqui o lugar de aprofundar e explicitar esta pro-blemática. Quando dissermos, mais adiante, algo sobre alguns pressupostos da nossa leitura de Platão, retomaremos este assunto dentro dos limites impostos pela natureza deste apontamento. Apesar das dificuldades apontadas, a interpretação literal dominou a cena não só no campo da filologia como no da filosofia. Só na filosofia moderna é que surge a ideia de interpretar a reminiscência como Interpretada racionalmente, a remiexpressão de um saber a priori. niscência não poderia querer dizer outra coisa que não fosse o facto de que na alma tinham que existir conceitos que não poderiam ter a sua origem na experiência mas que já tinham que existir como pré-dados, antes de toda e qualquer experiência. Este tipo de interpretação foi muito divulgado pelos neokantianos tornando-se, desde então, moeda corrente em análises filosóficas do texto platónico. Por exemplo, Moravscik constrói todo o seu estudo da anamnese em torno da questão de saber se «the recollection thesis is best classified as empirical hypotheContudo, foi Leibniz, e não sis, a priori truth, or mere metaphor» Kant, quem primeiro interpretou a reminiscência platónica no sentido de um a priori lógico. Nos Nouveaux Essais refere-se expressamente ao Ménon pretendendo ver no episódio da aula de geometria a expressão

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M o r a v c s i k em Vlastos, G. (1971) 69.

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mais pura da posição platónica a respeito da reminiscência. Pré-existência e reincarnação da alma seriam mero ornamento rigorosamente exterior e alheio à posição platónica . Curiosamente, Kant não aproveita esta sugestão de Leibniz limitando-se a ver na doutrina da reminiscência o subproduto de certo tipo de fanatismo religioso . Convém não esquecer que o conhecimento que Kant tinha da filosofia grega deixava bastante a desejar. Na Alemanha, depois de Leibniz será preciso esperar por Hegel para encontrarmos alguém que conheça directamente e em profundidade os textos filosóficos dos gregos. Mais perto de nós, serão os neokantianos de Marburg, designadamente P. N a t o r p , quem vai retomar a sugestão de Leibniz. De entre os filósofos contemporâneos que seguem esta linha de interpretação, apesar de já não partilhar os pressupostos sistemáticos daqueles autores, merece especial referência N. Hartmann . 2

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Se a interpretação demasiado literal nos parece insatisfatória porque se limita a soletrar determinadas frases de diálogos platónicos, retiradas do seu contexto originário, sem conseguir dar um conteúdo filosófico minimamente plausível à reminiscência, a sugestão de Leibniz, por outro lado, ao reduzir a reminiscência a um saber a priori não só diminui o possível alcance da reminiscência como dificilmente se harmoniza com o seu carácter metafórico. Esta, como outras tentativas de dar um conteúdo filosófico positivo à reminiscência, peca por excesso. Diz mais e, sobretudo, diz o que não está no texto. Embora o texto platónico, como qualquer texto com um mínimo de qualidade, seja dotado de uma parcela de ambiguidade que possibilita e justifica uma pluralidade, sempre renovada, de interpretações, há, no entanto, limites que a letra do texto impõe e nos impedem de aceitar qualquer interpretação e de as colocar ao mesmo nível. Limites que tem que se respeitar sob pena de o texto se tornar mero pretexto. À primeira vista, parece que estamos condenados a ter que optar por u m a interpretação literalista que nos apresenta a reminiscência como u m a doutrina filosoficamente ambígua e de interesse meramente arqueológico, ou por uma interpretação filosófica que actualiza a ideia de reminiscência mas nos faz pagar o preço de uma redução efectiva do alcance da metáfora

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L e i b n i z , G. W . , Nouveaux Essais...

in G e r h a r d t , Die Philosophischen Schrif-

ten V, 74 ss, 451 s. 3

und

Cf. K a n t , I., « W e l c h e s s i n d die F o r t s c h r i t t e die die M e t a p h y s i k seit L e i b n i z

Wolf in

Deutschland

gemacht

hat?

in Weischedel,

Schriften z u r M e t a p h y s i k u n d L o g i k ( W i e s b a d I n s e l . «

Hartmann,

N.,

Kleine

Schriften II ( B e r l i n :

W.

(Hrsg.)

1958). 1957) 4 8 - 8 5 .

WERKE

III:

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da reminiscência impedindo-nos, simultaneamente, de interpretar coerentemente o texto platónico dos diálogos na sua globalidade. Talvez a saída para este impasse esteja precisamente numa interpretação que procure um preenchimento positivo da intenção platónica não tanto naquilo que é dito explicitamente como naquilo que se nega. Mais do que uma tese positiva, a metáfora da reminiscência seria indicador que permitiria uma orientação numa via de diferenciação e determinação do saber. Isto está intimamente ligado a características peculiares da obra platónica. Sem termos a pretensão de abordar de uma forma minimamente adequada esta problemática, não queremos deixar de sublinhar alguns traços que nos parece deverem ser tidos em conta numa leitura do texto platónico. Mais do que a abordagem exaustiva do tema, interessa-nos a clarificação de alguns pressupostos da nossa leitura. 0.2. O primeiro ponto a ter em conta é que Platão assume uma atitude crítica e distante perante os seus próprios textos. Trata-se, como é sabido, de diálogos, na sua esmagadora maioria, em que o seu autor não figura nem se identifica, imediatamente, com qualquer dos interlocutores. Deixemos, agora, de lado a questão da estrutura peculiar do diálogo platónico e sua função específica. Seja qual for a posição que tomarmos nesse diferendo, uma coisa é certa, e frequentemente esquecida: os diálogos platónicos não nos apresentam — ao contrário do que acontece com outros textos da tradição filosófica — de forma imediata e decifrada, doutrinas filosóficas do seu autor. Por isso, nós evitaremos falar de uma teoria platónica da reminiscência. Na mesma linha, quando falamos de Sócrates, sem qualquer qualificativo, referimo-nos ao Sócrates platónico (personagem dos diálogos), deixando em aberto a espinhosa questão das relações entre este e o Sócrates histórico. Deixando de lado os problemas postos pela forma literária da obra platónica queremos sublinhar a tensão existente, no diálogo platónico, entre a obra escrita e a ficção literária nela esboçada. É que ao nível da ficção literária, pelo menos em certa medida, deixam de ter validade os limites da palavra escrita. Mas, mais importante ainda que o facto da oralidade, é a forma como é configurada esta oralidade. Neste nível passam-se muitas coisas: pergunta-se, responde-se, age-se, reage-se. Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no diálogo platónico até porque ambos estão presentes nos textos que tratam da reminiscência. Contudo, isso levar-nos-ia demasiado longe na nossa análise. M a s não gostaríamos de terminar estas considerações

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prévias sem dizermos uma palavra sobre outra figura de estilo que desempenha papel importante na obra platónica e nos interessa particularmente, a metáfora. Sem pretender, de qualquer forma, minimizar o interesse e a importância dos estudos sobre a metáfora feitos no campo da retórica e da poética, não cremos que o simples recurso a categorias retóricas e/ou poetológicas baste para uma interpretação correcta do uso que Platão faz da metáfora. N u m texto filosófico, as metáforas surgem precisamente quando se pretende representar ou expor conteúdos e resultados importantes da reflexão. A metáfora é tanto mais difícil de dissolver (de traduzir) quanto mais originária e primacial for a ideia ou princípio em questão. Neste caso, o resultado das tentativas de eliminar a metáfora é, quase sempre, outra metáfora. A história da filosofia relata-nos grande número de disputas, mais ou menos inglórias, provocadas ou ocasionadas por metáforas cujo carácter metafórico não foi tido na devida conta. Platão usa a metáfora em pontos fulcrais dos seus diálogos. Ela surge como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo que não tem (ou se julga não ter) a estrutura de um estado de coisas. Além disso, a metáfora revela, de forma eminente, uma característica de qualquer expressão linguística. Na metáfora torna-se patente o carácter instrumental da forma linguística. N ã o podemos esquecer que embora a linguagem molde a nossa experiência, esta transcende a linguagem. O reconhecimento de semelhanças ou diferenças nos objectos da nossa experiência não é um fenómeno puramente linguístico. Em suma, a linguagem não pode ser o limite da nossa experiência apesar de ser inevitável que ela molde a nossa experiência. E é claro que a linguagem não é o limite do nosso mundo. N ã o é aqui o lugar de explicitar, e muito menos justificar, estas afirmações. Apesar de tudo parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filosófica fundamental de Platão que se afasta decididamente de um realismo ingénuo de tipo fundamentalista sem cair, por outro lado, no linguisticismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos. Atitude que ainda hoje é (pode ser) exemplar. Além disso, não podemos esquecer que as funções apofântica e deictica da linguagem não são totalmente intersubstituíveis. Se um autor usa deliberadamente metáforas ao serviço da função deictica da linguagem, isso quer dizer que essas metáforas não exprimem só conteúdos que poderiam perfeitamente ser representados e comunicados de outro modo. Daí que a metáfora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamento, nos diálogos de Platão. Neles se mostra como é que se pode usar a metáfora sem se ser vítima dela. O uso da metáfora aí exem-

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plificado pode considerar-se paradigmático de um modo adequado e correcto de lidar com formas linguísticas. Quem decifra, comenta ou interpreta uma expressão linguística, dá a entender, pelo próprio facto de o fazer — quer queira, quer não — que, para ele, o sentido procurado não está já materializado na pura letra do texto. O Sócrates platónico nunca crê estar na posse de conhecimento/saber quando profere e articula determinadas fórmulas linguísticas. É daqui que parte uma tensão permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real, tensão que percorre toda a obra platónica. É ela que está na base do confronto com a sofística e aparece também nos trechos que introduzem a reminiscência, designadamente no Ménon. O que fica sugerido nestas palavras introdutórias visa apenas explicitar um pouco algumas das pressuposições subjacentes à nossa leitura de Platão. Explicitá-las completamente seria inútil e inviável no presente contexto.

1.

A reminiscência em Ménon 80a-86c

O Ménon começa pela questão da ensinabilidade da virtude. A primeira parte do diálogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto com uma série de diálogos de Platão muitas vezes classificados como «aporéticos». A este grupo pertencem o Cármides, Laques, Êutifron, Protágoras, entre outros. Nestes diálogos, Sócrates tematiza determinados conceitos normativos como a coragem, a justiça, a prudência. No início do diálogo, o seu interlocutor está sempre seguro e convencido de que é capaz de explicitar o conteúdo de tais conceitos. Aos seus olhos, trata-se de uma tarefa sem qualquer espécie de dificuldade, até porque se trata de coisas de que se está sempre a falar e que todos julgam saber. A arte socrática de condução do diálogo consiste precisamente em levar o seu interlocutor, através de uma estratégia de discussão dirigida, de que ele normalmente não se apercebe, a fazer a experiência de que, afinal, com grande espanto seu, não é capaz de dar a explicação exigida. Assim, por mais que lhe custe, tem que admitir que não sabe o que significam realmente aqueles conceitos. Não-saber que se traduz, normalmente, nestes casos, na incapacidade de apresentar uma definição dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os intervenientes no diálogo. Daí que muitos autores chamem também a estes diálogos diálogos de definição. É então que o interlocutor atinge o nível de consciência problematizante de Sócrates, o saber do seu próprio não-saber. N ã o se trata, neste caso, de um não saber oco

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mas sim da consciência de que o pretenso saber de que se julgava dispor, não aguentou uma prova séria. N ã o podemos esquecer que a declaração de Sócrates do seu não-saber é eminentemente irónica. É irónica na medida em que não se harmoniza facilmente com a superioridade que ele manifesta nas mais diversas situações de diálogo, frente a diferentes interlocutores. Por outro lado, o sentido literal da afirmação mantém-se. Este não-saber é sempre fruto de uma experiência, experiência a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser feita por cada um. Pode-se, evidentemente, falar sobre ela, dizer isto ou aquilo, já que ela não tem nada de indizível. Contudo, é uma experiência que o interlocutor tem que fazer, ele mesmo, já que se trata de uma experiência acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pretenso) saber. Neste sentido, poderíamos dizer que o verdadeiro tema destes diálogos é exactamente esta tensão entre aquilo que se crê saber e aquilo que se sabe realmente, a capacidade que o interlocutor tem de aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema. No diálogo que nos ocupa agora, Ménon começa por perguntar se a virtude (ἀρετή) se pode adquirir mediante o ensino ou através do exercício, pondo ainda a hipótese de ela ser um dom da natureza ou ser explicável de outro modo. Sócrates vai-lhe mostrar, logo no início da conversa, que ele nem sequer sabe o que é, realmente, a virtude. Ménon é capaz de mostrar, no decurso do diálogo, que sabe aplicar com propriedade o conceito de virtude, que o sabe usar correctamente. Ao mesmo tempo, faz uma experiência importante: esta habilidade, que ele efectivamente possui, não o torna, só por si, capaz de dar uma explicação ou uma definição correcta deste conceito. A situação, de facto, ainda é mais grave porque Ménon começa por nem sequer perceber o sentido da questão da definição. Daí que Sócrates tenha que lhe chamar a atenção para as condições formais que uma definição correcta tem que satisfazer. Ménon tem que admitir que, afinal, não sabe o que é a virtude: «Em boa verdade, estou entorpecido corporal e espiritualmente e não sei que responder-te» (80a7) ss). Experiência que contrasta com a convicção inicial de Ménon que lhe vinha, entre outras coisas, do facto de, como ele próprio diz, ter já discursado inúmeras vezes sobre a virtude diante de muita gente e com sucesso. Mas agora não sabe dizer o que ela é (80b). Ménon interpreta a aporia em que se encontra em sentido puramente negativo, como uma derrota. A própria comparação que ele faz entre Sócrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que é capaz de imobilizar momentaneamente a mão de quem o agarrar é sintomática. Sócrates rejeita a comparação dizendo que também ele ignora o que

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seja a virtude. Apesar disso propõe a Ménon que tentem encontrar, em conjunto, uma saída para a aporia comum sobre a essência da virtude (80dl-4). Mas como Ménon tinha já interpretado como enfeitiçamento aquilo que para Sócrates era libertação de um saber aparente, em vez de aceitar a proposta que lhe é feita, resolve contra-atacar com u m a objecção à boa maneira do seu mestre Górgias (80d5 ss). Trata-se do célebre argumento erístico, também conhecido por argumento preguiçoso (ἀργός λόγος). É claro que é Sócrates quem dá à objecção de Ménon a sua forma paradoxal e é dele também a expressão «argu-mento erístico». N ã o nos interessa aqui analisar as diferenças entre as duas formulações nem discutir até que ponto se trata ou não de um verdadeiro paradoxo. O certo é que, no diálogo, Ménon aceita também a formulação de Sócrates quando observa, logo a seguir: «E não te parece um belo argumento este, ó Sócrates» (81a). Na formulação de Sócrates, o argumento diz que «é impossível a um homem investigar quer aquilo que sabe quer aquilo que não sabe. Pois, aquilo que sabe não precisa de o investigar porque já o sabe e o que não sabe também não porque, nesse caso, nem sequer sabe o que deve procurar» (80e2-5). U m a argumentação semelhante surge no Eutidemo quando se discute a questão de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que não sabe. Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platão discute pormenorizadamente . Para Platão, a saída destas dificuldades não está na negação da possibilidade de aprender e de uma paideia. Pelo contrário, para ele, a possibilidade de aprender é um d a d o adquirido. É um facto incontestável. Outra coisa completamente diferente é a explicação desse facto. A tese da reminiscência, que Sócrates introduz nesta fase do diálogo com Ménon, surge como u m a resposta ao argumento erístico e uma tentativa de encontrar u m a saída para o impasse em que o diálogo tinha caído. De acordo com a formulação de Sócrates, «investigar e aprender não são mais que reminiscência»( τὸ γὰρ ζητεῖν ἄρα καὶ τὸ μανθάνειν ἀνάμνησις ὅλον ἐστίν 81d4-5). Assim, a reminiscência permitir-nos-ia ver o aprender como recordação de algo que já se sabia mas que, entretanto, por qualquer motivo, se tinha esquecido. Investigar e aprender são, assim, explicados em termos de um processo de reactivação de um saber latente. Esta (hipó)tese é introduzida por Sócrates com a ajuda de concepções de origem religiosa e apelando para autoridades sacerdotais («homens e mulheres conhecedores das coisas divinas» 81a). Trata-se da imortalidade, 5

Cf. Eutidemo 277d ss.

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pré-existência e reincarnação da alma, a que Sócrates acrescenta a pressuposição de um nexo universal de todas as coisas. Esta (hipó)tese é exemplificada, em seguida, através de um experimento didáctico, a célebre aula de geometria que Sócrates dá ao escravo de Ménon. O apelo a autoridades religiosas não deixa de ser estranho. A pseudo-justificação da reminiscência não tem nada que ver com as justificações e razões que Sócrates exige sempre dos seus interlocutores e de si próprio. Trata-se de coisas que teria ouvido a sacerdotes e poetas. N ã o nos interessa aqui discutir a origem histórica da concepção de reincarnação a que alude Sócrates neste passo. O mesmo se diga das influências eventualmente sofridas por Platão nesta matéria. Como veremos, a reincarnação é algo secundário relativamente à intenção filosófica da reminiscência. Um dos erros mais frequentes é assimilar e confundir estes dois conceitos. Mesmo aceitando e levando a sério a linguagem metafórica e o enquadramento mítico-religioso da reminiscência, não podemos perder de vista o tema principal do texto e entrar em conjecturas, mais ou menos justificadas, sobre a origem histórica destas concepções. Aliás, como o próprio contexto mostra, o que importa aqui é a função da (hipó)tese ou suposição e não a sua origem, muito menos a sua origem histórica. Sócrates não assume totalmente o conteúdo da tese da reminiscência. O próprio recurso ao mito é já sintoma de um certo embaraço especulativo, de uma certa incapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor. Daí que Sócrates se distancie do conteúdo da forma mitológica. Assim, fala de algo que ouviu dizer (81a5) e, mais adiante, dirigindo-se a Ménon, imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira, observa: «mas vê lá se te parece que dizem a verdade» (81b2-3). Porém, a afirmação mais clara de Sócrates que nos leva a pensar que ele não assume, de facto, o conteúdo da representação mitológica que envolve a reminiscência surge quase no final do trecho que estamos a interpretar: «Há alguns pontos na minha argumentação que eu não desejaria afirmar categoricamente» (86b6-7). É claro que se pode contestar que esta afirmação é vaga e indeterminada não se podendo mostrar concludentemente que se refere a esta e não àquela frase, a este e não àquele aspecto da questão. Mas nem é preciso que o seja. De momento, sem entrar em mais pormenores, basta-nos que ela não seja incompatível com a nossa leitura. Na terceira parte do diálogo (86c-89d) retoma-se a questão de saber se a virtude é ensinável. Se a reminiscência fosse interpretada literalmente, então, deveríamos esperar que, nesta fase, Ménon se recordasse da verdadeira definição de virtude ou que alguém lha fizesse

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relembrar. Sócrates seria a pessoa indicada em função do aparente sucesso da aula de geometria ao escravo de Ménon. Ora não é nada disso que acontece. Este facto, embora se passe ao nível da ficção literária, é importante. Contudo, nem sequer é tido em conta, e muito menos explicado, pela generalidade dos intérpretes partidários de uma interpretação rigorosamente literal. O que se passa a esse nível é algo dificilmente compreensível em termos da letra do texto em 81a-e. A viragem que se dá na terceira parte do diálogo, caracteriza-se pelo facto de Sócrates recorrer ao uso de hipóteses inspirando-se em determinado método matemático. A introdução do método hipotético vai permitir discutir a questão inicial do diálogo — se a virtude é ou não ensinável — contornando a questão da essência e da definição da virtude. O método hipotético, que Sócrates propõe (86d ss), não põe em causa a primazia metodológica da problemática da definição. Ela mantém-se. Mas também não se pode esquecer que foi à volta desta questão que se gerou um impasse no diálogo. O método hipotético permite a continuação do diálogo pondo entre parêntesis a questão da definição da virtude. Se supusermos que a virtude é uma espécie de saber, então, poderemos concluir que ela é ensinável (87c ss). É claro que este método não conduz à resposta à questão da essência da virtude. Ela fica em aberto. Mas permite continuar o discurso racional e crítico e evitar o silêncio. No Ménon encontramos uma aplicação e uma reflexão sobre o método hipotético tendo por paradigma de aplicação a geometria. Podemos mesmo dizer que a 'tese' (doutrina) da reminiscência tem, no Ménon, o estatuto de uma hipótese. Ela constitui o quadro de referência da aula de geometria. Esta pequena demonstração pedagógica — por muitos considerada o modelo do chamado diálogo didáctico — deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptível de ser interpretado em função da (hipó)tese pressuposta. Sócrates vai interrompendo a sua lição de modo a interpretar, neste sentido, as diferentes etapas (82el2-13; 84a3-b; 84d; 85c-d). Trata-se de mostrar a M é n o n até que ponto a (hipó)tese da reminiscência permite interpretar/esclarecer aquilo que se está a fazer. Neste sentido, parece que poderíamos dizer que a reminiscência só é tema de discussão neste diálogo na medida em que tem como função explicar algo. Ela deve permitir a Sócrates explicar, justificar qualquer coisa e não ser justificada/explicada. Ela não é explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste explanans). É a (hipó)tese da reminiscência que deve explicar o que se passa no episódio da aula de geometria e não o inverso. No contexto da nossa análise, não tem grande interesse entrar na discussão de pormenor

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do famoso exemplo apresentado por Sócrates e que deu origem a extensa literatura especializada. A letra do texto não permite uma solução fácil e matematicamente correcta do exercício que o escravo deveria resolver sem recorrer a uma pressuposição suplementar. O que importa é que estas dificuldades não afectam a nossa compreensão da função da aula de geometria no diálogo. E voltamos, novamente, à fala de Sócrates em 86b: por mais sérias que possam ser as reservas face à reminiscência enquanto explicante do investigar e do aprender, o imperativo de procurar a verdade (des)conhecida mantém-se. Seguindo-o, seremos, com certeza, «melhores, mais corajosos e menos preguiçosos» (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento erístico (preguiçoso). O texto platónico põe em causa o próprio pressuposto em que assenta a argumentação sofística que pretende contestar a possibilidade de aprender e investigar: um conceito unívoco de saber. Para além dessa forma única de saber, restaria apenas a ignorância total. Este é exactamente um dos temas centrais da sua polémica com os sofistas. Platão está interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e reflectir sobre a discrepância entre as pretensões dos sofistas e aquilo que eles faziam. É nessa perspectiva que se enquadra a discussão dos pressupostos dos argumentos apresentados. A resposta platónica ao paradoxo sofístico em torno da questão ensinar-aprender, consiste em, num nível superior de reflexão, aplicar a argumentação erística àquilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contradições daí resultantes. Se, de facto, fosse impossível aprender e mudar de opinião (condição essencial de progresso no processo de constituição do saber), então, os sofistas, para serem consequentes, nem sequer deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo. Nesse caso, tal argumentação não teria qualquer objectivo. Assim, os sofistas refutam, com aquilo que fazem, aquilo que dizem. A resposta mais positiva ao argumento erístico é dada pela (hipó)tese da reminiscência. Sócrates está de acordo com um dos pressupostos da argumentação: do não-saber, puro e simples, da ignorância total não se pode chegar ao saber, não se pode aprender. Aprender, progredir no saber, pressupõe a possibilidade de jogar com algo que já sabemos, ainda que este saber esteja apenas latente e o seu conteúdo possa, eventualmente, ser posto em causa, numa fase posterior do processo cognitivo. Quando Sócrates afirma que só podemos conhecer o que, de certo modo, já sabemos, isto significa que o conceito de saber se tornou ambíguo. Se ele fosse entendido univocamente, como acontece no argumento erístico, então, a afirmação de Sócrates seria, pura e simplesmente,

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absurda. Mas, se o conceito de saber é ambíguo, isso talvez não se possa atribuir totalmente a uma deficiência de linguagem que eu posso (devo) eliminar. Esta ambiguidade pode ser sinal de que q u a n d o falo de saber, estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu distinga vários modos de saber e os não confunda. A reflexão platónica sobre epistêmê e doxa é, justamente, uma tentativa de distinguir e articular vários modos de saber. Dentro desta ordem de ideias, poderíamos dizer que a importância histórica da (hipó)tese da reminiscência consiste precisamente na afirmação da necessidade de diferenciação do conceito de saber. É claro que tudo isto deixa ainda muito vago e indeterminado o possível conteúdo da metáfora da reminiscência. A interpretação da reminiscência em termos de memória, para além de deslocar a questão do seu nível próprio — que é epistémico — para o da psicologia, deixa intactos os dados iniciais do puzzle. Fica sempre por explicar como é que eu aprendi pela primeira vez. Isto para não falar já do problema da identidade da alma através de várias encarnações.

2.

A reminiscência no Fédon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscência em Platão gostaríamos de fazer algumas considerações sobre os passos do Fédon e Fedro que a mencionam. Começando pelo Fédon, a primeira coisa que salta à vista, relativamente ao Ménon, é o enquadramento diferente em que surge a reminiscência. Vai aparecer num contexto em que se pretende justificar a imortalidade da alma. Neste caso, surge como explicação do saber e aprender humanos que, a ser aceitável, pressuporia, por sua vez, a pré-existência da alma. É introduzida no diálogo, pela primeira vez, através de Cebes que se refere, cautelosamente, a algo que Sócrates teria dito muitas vezes: «...segundo esse mesmo dito, ó Sócrates, se é verdadeiro, e que tu costumas repetir muitas vezes, de que o nosso conhecimento não é mais do que reminiscência» (Fédon 72e3-6, sublinhado nosso). Símias intervém, dizendo não se lembrar de como se pode provar esta afirmação. Cebes chama-lhe a atenção para o facto de uma série de questões bem postas fazer com que o interpelado descubra, por si mesmo, a verdade acerca dessas coisas. Isto só seria possível (explicável) se essas pessoas possuíssem, em si mesmas, esse saber. A referência à figura geométrica, nesta fala de Cebes, é interpretada por muitos autores como u m a alusão clara ao episódio da aula de geometria, no Ménon (Fédon 73a-b). Mesmo que admitamos que não se trata de uma referência explícita, o importante

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para nós é o facto de se falar, nos dois textos, de uma forma específica de saber, a geometria. Além disso, o facto de, segundo a hipótese cronológica que seguimos, o Fédon ser posterior ao Ménon e de a reminiscência ser apresentada por Cebes como algo já conhecido, permite-nos interpretar a referida fala de Símias como uma alusão ao trecho do Ménon. Voltando ao texto, vemos que Símias, instado por Sócrates, diz não ter dificuldade em aceitar a reminiscência da forma como ela foi introduzida por Cebes. Mas, pensando bem, ele não sabe em que é que consiste exactamente a reminiscência e gostaria que fosse o próprio Sócrates a explicá-la (73b). Sócrates começa por lembrar que a própria noção de reminiscência implica a de um conhecimento anterior, e o posterior esquecimento, do que se vai relembrar. Dá vários exemplos de como pode surgir a reminiscência através de uma associação (lira/manto — pessoa a m a d a ; Símias — Cebes) fazendo com que Símias confirme tratar-se, em tais casos, de «uma espécie de reminiscência», sobretudo quando se trata de coisas esquecidas por acção do tempo e da falta de treino (73el-4). Até aqui, trata-se, basicamente, de sequências de coisas dissemelhantes. Mas, logo a seguir, Sócrates altera o paradigma destas sequências com a introdução de imagens (73e5): pintura de um cavalo/ lira — homem; retrato de Símias — Cebes. Implicitamente, Sócrates parece supor que, em cada um destes casos, se conheceu primeiro aquilo que está na origem da imagem. Depois de concluir que tanto a semelhança como a dissemelhança podem suscitar a reminiscência, Sócrates introduz na discussão a ideia de que a semelhança por nós detectada é sempre imperfeita (74a ss). Apresenta como exemplo a desfasagem que há entre várias coisas iguais e a igualdade em si mesma. Este modo de falar da «igualdade em si mesma» ou do «igual em si mesmo» (ideia de igual(dade)) representa um artifício que permite a Sócrates evitar a espinhosa tarefa de definir este conceito. Ao contrário do que acontecia no Ménon, aqui a referência à problemática das ideias é bem explícita. No Fédon, a reminiscência é apresentada como recordação de ideias, capacidade de encontrar (redescobrir) relações entre várias ideias. Voltando ao exemplo das coisas iguais — igual(dade), Sócrates insiste na imperfeição da relação de igualdade que nós podemos constatar entre diversos objectos concretos. A maneira como Sócrates fala é muito ambígua e dificulta a compreensão do texto. Por um lado, fala na diferença entre a igualdade dos objectos iguais e a igualdade em si mesma, diferença que se poderia interpretar em termos da distinção entre o nível conceptual/proposicional — em que a proposição «A = B» é sempre verdadeira — e o mundo do fluxo contínuo. Por outro lado, usa 'igualdade' quase diríamos em sentido absoluto, como se ela fosse

521

SOBRE

A

REMINISCÊNCIA

EM

PLATÃO

algo para que um objecto concreto tende realmente. Aqui parece usar igualdade num sentido muito próximo do de 'identidade'. Se for usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores, então, leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do terceiro homem, a um regresso infinito. Deixando agora de lado esta problemática, procuraremos seguir a argumentação de Sócrates. Para sermos capazes de reconhecer esta deficiência, é necessário que tenhamos conhecido, previamente, a igualdade perfeita que nunca se encontra nos objectos concretos. E é isto, que nós conhecemos antes mas que também já tínhamos esquecido, que nós vamos recordar q u a n d o virmos coisas iguais. Este «antes» é, depois, colocado num tempo anterior ao nascimento que é, por sua vez, apresentado como o tempo do esquecimento. Aos três tempos — antes do nascimento/no nascimento/depois do nascimento — correspondem três momentos epistémicos — visão ou intuição/esquecimento/reminiscência. A respeito deste modo de falar de Sócrates convém não esquecer que esta sequência temporal é uma representação que serve de suporte à expressão de determinados momentos do processo cognitivo. Neste primeiro argumento em que a reminiscência surge no Fédon insiste-se na existência da alma no tempo, independentemente do facto de estar ou não unida a um corpo. Assim, o conhecimento ou saber de que a alma dispõe, foi adquirido em determinado momento, em algum tempo. Aqui, como no Ménon, diz-se que aqueles que aprenderam alguma coisa, não fizeram mais que «recordar o que em tempos aprenderam» (Fédon 76c). Tanto num texto como no outro, a metáfora da reminiscência, interpretada literalmente, em vez de explicar (ou 'iluminar' para quem preferir esta tonalidade metafórica) como é que o homem adquire conhecimento/saber, pressupõe precisamente essa possibilidade e a correspondente capacidade da alma h u m a n a : «Estamos de acordo, não é verdade, em que, para haver reminiscência é imprescindível que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda (Fédon 73c; sublinhado nosso). Contra uma interpretação literal demasiado rígida da reminiscência e do quadro mítico em que se desenvolve a conversa de Sócrates com os pitagóricos Cebes e Símias, fala o próprio Sócrates quando afirma: «Claro que insistir ponto por ponto na veracidade desta narrativa não ficaria bem a uma pessoa de senso» (Fédon 114d). Mas, além desta reserva expressa pelo próprio Sócrates, é preciso não esquecer também a estrutura hipotética da argumentação do Fédon designadamente nos trechos que se referem mais directamente à reminiscência. Só a título de exemplo ver Fédon 75c-e, 76d-e. N ã o vamos entrar aqui na análise do significado da hipótese (suposição)

BIBLOS

522

no Fédon e muito menos na obra platónica em geral. No entanto, não queremos deixar de fazer algumas observações, muito sinteticamente, a este respeito. Pode-se perguntar, o que é que é designado por hipótese no Fédon: é uma proposição que afirma a existência da ideia ou é a própria ideia cuja existência é afirmada por tal proposição? É claro que algumas formulações poderiam ser interpretadas como enunciados de existência. Contudo, Sócrates não as usa como elementos susceptíveis de serem integrados numa estrutura proposicional. Enunciados como «Há um belo em si» não entram, como tais, nem sequer em implicações. U m a hipótese pode ser posta em causa, pode ser justificada com a ajuda de outra hipótese. Pode-se usar este método até chegar a «algo de positivo» (Fédon 101e). «Algo de positivo», «algo de satisfatório», neste caso, é, antes de mais, a própria suposição das ideias. A simplicidade que a caracteriza é o reverso da segurança que a torna imune a todos os ataques erísticos (100d, 101d, 105b). Esta técnica platónica de lidar com a ideia como conteúdo de uma hipótese permitia evitar a tarefa de elaborar uma teoria das ideias. No Fédon, apesar de muitos exemplos de ideias e da importância que tem tudo quanto se diz em torno das ideias, não se diz claramente que ideias há, como se delimita o domínio das ideias, como é que está ordenado/organizado o reino das ideias, como é que se podem identificar ideias singulares, etc. Tudo isto são questões importantes que uma teoria das ideias não poderia de modo algum ignorar. N ã o se colocam, directamente, questões de definição. A questão do modo como a ideia está ligada àquilo de que é ideia também não é abordada. Relativamente ao conhecimento da ideia, temos que admitir que a concepção da reminiscência, introduzida nos textos atrás referidos, também não permite fazer qualquer afirmação diferenciadora sobre as ideias. É certo que o Fédon representa, relativamente à tematização de predicados, um nível reflexivo superior ao dos diálogos anteriores segundo a cronologia real. Esta tematização leva a que aquilo que se quer significar com um predicado se tome como objecto de enunciados. E é precisamente aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a existência de ideias autónomas e separadas. Mas esta é uma via que já o jovem Sócrates sabia conduzir a dificuldades insuperáveis, lição aprendida com o velho Parménides . Por outro lado, o mesmo Parménides aconselha-o a não abandonai a suposição das ideias. Sendo assim, parece que é legítimo interpretar qualquer enunciado que pareça pres6

o

Cf. Parménides 128e-135b.

523

SOBRE

A

REMINISCÊNCIA

EM

PLATÃO

supor a admissão de ideias com existência autónoma (separada) de tal modo que a representação dos dois mundos surja como um simples meio ilustrativo a que se recorre para não renunciar completamente ao discurso racional. Esta é uma das razões que motivam as nossas reservas face às interpretações dualistas. No Fedro, o enquadramento mítico e a carga metafórica que envolve a reminiscência ainda são mais evidentes. Fedro lê a Sócrates um discurso de Lísias sobre o amor. Sócrates faz também um discurso semelhante sobre o mesmo tema. Mais adiante, na palinódia, Sócrates diz que «a alma que jamais observou a verdade nunca atingirá a forma que é a nossa» e isto porque «como disse, toda a alma humana, por natureza, contemplou as realidades, ou não teria vindo para esse ser vivo» (Fedro 249e-250a). De acordo com a narrativa do Fedro, é esta visão originária que permite ao homem recordar como são realmente as coisas. Por outro lado, a alma humana, precisamente porque não é divina, não pode ver toda a verdade. O conhecimento e o saber caracteristicamente humanos são, necessariamente, incompletos. Mais, a reminiscência aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria foi contemplada . Dom que consiste na capacidade de interpretar a realidade racionalmente: «E isto porque deve o homem compreender as coisas de acordo com o que chamamos ideia, que vai da multiplicidade das sensações para a unidade, inferida pela reflexão. A tal acto chama-se reminiscência das realidades que outrora a nossa alma viu, q u a n d o seguia no cortejo de um deus, olhava de cima o que nós agora supomos existir e levantava a cabeça para o que realmente existe» (Fedro 249b-c, sublinhado nosso). Este texto liga, muito claramente, a reminiscência à questão das ideias. Por outro lado, toda a linguagem mítica deste passo e as referências a um lugar supra-celeste onde se pode avistar a planície da verdade, tem servido, desde a antiguidade, de suporte imagético a uma interpretação do platonismo em termos de um dualismo radical. Contudo, tal como acontecia no Ménon e no Fédon, também no Fedro encontramos afirmações de Sócrates que apontam para uma certa reserva e distância crítica face ao discurso em que vem inserida a referência à reminiscência. Sócrates não só qualifica o seu discurso como «uma espécie de hino mítico» com o qual se terá alcançado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que, a não ser dois aspectos que não deixam de ter o seu interesse, se se conseguir apreender 7

8

7 Fedro 8

249b.

Fedro 2 5 0 a ; cf. 248a, 249d, 278d.

BIBLOS

524

o seu significado técnico, «parece-me que em tudo o resto nos entregámos realmente a um divertimento» (265c-d, sublinhado nosso). Os próprios partidários da interpretação tradicional, mais literal, da reminiscência vêem neste trecho uma dificuldade séria para tal interpretação . No Fédon e no Fedro, os textos que falam da reminiscência, sublinham, também, a estreita relação que existe entre a alma e a ideia. Para ultrapassar uma compreensão da reminiscência demasiado presa à letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosóficos que é o dos três diálogos em questão, é preciso atender à articulação da reflexão platónica sobre a alma, as ideias e a dialéctica. N ã o podemos, de m o d o nenhum, desenvolver aqui, nem sequer ao de leve, esta problemática, mas não quereríamos deixar de sublinhar, mais uma vez, que o lugar sistemático da (hipó)tese da reminiscência é uma teoria do saber e não uma psicologia dita metafísica ou, na expressão usada por Moravcsik, «bad armchair psychology» . Um dos traços principais dos fragmentos platónicos de uma teoria do saber, é a vinculação estreita do saber com uma instância sabedora. Chamemos-lhe sujeito epistémico. Trata-se de um nexo de tal natureza que Platão pensa não ser viável a exteriorização e representação total do saber. É por isso que se insiste, em vários passos dos diálogos, no facto de o verdadeiro saber nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escrevemos. Ele manifesta-se, antes de mais, na capacidade que o sujeito epistémico tem de explicitar e justificar aquilo que afirma. Ele não está vinculado a uma formulação contingente como o poeta, por exemplo. Daí o apelo constante, na obra platónica, a «dar razão» (λóγον διδóναι) daquilo que se s a b e 1 1 . Este justificar-se, prestar contas, legitimar o que se afirma é feito sempre num contexto intersubjectivo e nunca se reduz a uma mera transposição de conteúdos proposicionais. Convém não esquecer que é precisamente na capacidade de exprimir-se através de frases e lidar com elas bem como com proposições que se pode confirmar o verdadeiro saber, mesmo aquele que, por hipótese, não é completamente redutível a enunciados. N u m a perspectiva 9

1 0

9

A s s i m , u n s o m i t e m o Fedro q u a n d o falam da r e m i n i s c ê n c i a em P l a t ã o .

Ver, a t í t u l o de e x e m p l o , a e x p o s i ç ã o de A. G r a e s e r — Die Philosophie der Antike 2, Sophistik und Sokratik, Plato u.

Aristoteles

(München:

B e c k , 1983) — q u e se limita

a c i t a r o Ménon e o Fédon. O u t r o s , c o m o B l u c k , v ê e m n a s afirmações de S ó c r a t e s , referidas no t e x t o , um indício de q u e P l a t ã o « n o l o n g e r believes in s u c h t r u e » (Plato's Meno, C . U . P . , 1961, p. 53). 10

M o r a v c s i k , J . (1971) 6 8 .

11

Cf. p o r ex. Fédon 76d.

ἀνάμνησις

as literally

525

SOBRE

A

REMINISCÊNCIA

EM

PLATÃO

platónica, as possibilidades de discussão racional não se esgotam q u a n d o esbarramos com os limites da linguagem apofântica que não consegue representar determinadas formas de saber. Pela mesma razão nos parece pouco verosímil um esoterismo completamente divorciado da obra escrita. O que Platão tinha a dizer está nos diálogos. N ã o há outra filosofia não-escrita de Platão para além daquela que encontramos na sua obra. Está lá tudo o que ele tinha para dizer sobre o indizível. O que não está lá é, rigorosamente, silêncio. E este é para ser guardado. A concepção da reminiscência revela de modo nítido a estreita relação do saber com o sujeito epistémico. Mais uma vez insistimos no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga metafórica inegável e dificilmente redutível a texto claro. É claro que hoje ninguém se atreveria a propor uma concepção da reminiscência demasiado presa à letra do texto platónico como uma hipótese com algum valor, ainda que meramente heurístico, no âmbito de uma teoria do saber. Quando muito apresentá-la-ia com a pretensão de ser a interpretação mais correcta (e coerente) do texto platónico. Mas mesmo a este nível de mera interpretação de um texto vindo de um passado distante, não seguimos essa linha de interpretação sobretudo por duas ordens de razões já sugeridas. Em primeiro lugar temos as várias indicações do próprio texto que sublinham o carácter metafórico dos trechos em que se fala da reminiscência e indicam uma certa relativização" das afirmações nelas contidas. Por outro lado, uma interpretação que se limita a soletrar a letra do texto platónico não pode, de modo nenhum, fazer jus à pretensão de verdade característica de um texto filosófico. De outro modo, a reminiscência, como outras teses platónicas, teriam, na melhor das hipóteses, um interesse meramente arqueológico. Assim, como já dissemos, parece-nos inadequado interpretar a reminiscência em termos de memória. Quem se recorda não sabe apenas de que é que se recorda mas sabe também que se recorda. Contrariamente à sugestão de alguns, é precisamente desta estrutura da lembrança/recordação que teremos de abstrair se quisermos interpretar positivamente a reminiscência. Se entendermos a metáfora literalmente, no sentido de uma recordação daquilo que já foi conhecido numa vida anterior ao nascimento de cada indivíduo, então, o problema do conhecimento/saber é, pura e simplesmente, adiado. N ã o parece ser possível fugir a um regresso infinito. Aquele primeiro conhecer também precisa de ser explicado. Finalmente, seguindo a indicação do texto, é preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisição de conhecimento(s) não vai ser recordado enquanto tal na reminiscência. Daí que, apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos,

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526

a reminiscência se possa referir sempre aos conteúdos de conhecimento/ saber e não ao acto de conhecer ou aprender. N ã o se trata, portanto, de um elemento de uma qualquer teoria psicológica ou pedagógica. Como já dissemos, não é esse o seu lugar sistemático. N ã o foi nossa intenção discutir as diversas interpretações deste tópico clássico do pensamento platónico. Elas são numerosas e de vários tipos. Desde as interpretações de cariz religioso revalorizadoras da linguagem mítica até às que inserem a reminiscência numa metafísica do psiquismo humano, passando por várias formas de inatismo e de apriorismo e as diversas interpretações hermenêuticas que sublinham o papel dos pressupostos e pré-conceitos em todo o conhecimento humano. Aqui, como noutros casos, não se estabeleceu ainda um consenso. Outras hipóteses de reconstrução são possíveis ainda que, como já observámos, seja m u i t o difícil preencher a metáfora platónica com um conteúdo teorético bem definido. Sob o ponto de vista histórico, ela tem o mérito de assinalar a necessidade de uma reflexão diferenciadora de vários níveis de saber, de chamar a atenção para a estrutura complexa do saber humano. Neste contexto, ela desempenha um papel de demarcação que se mede não tanto pelo que diz sobre essa mesma estrutura como pela indicação de que as teses inconciliáveis com ela são insustentáveis como explicação e justificação do saber. Neste sentido, poderíamos dizer que a reminiscência não é conciliável com: a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamente livre de pressupostos; b) teorias que na análise do saber prescindam da referência ao sujeito epistémico; c) teorias que concebam o saber como algo totalmente objectivável e redutível a um processo comunicativo. Em suma, poderíamos interpretá-la como uma metáfora crítica de todos os reducionismos no quadro de uma teoria do saber. Nesta sua função crítica e demarcadora ela permanece, a seu modo, ainda hoje, actual.

3.

Excursus. platónica

O

comentário de

Pedro da

Fonseca à reminiscência

Fonseca analisa a (hipó)tese da reminiscência na quaestio IV relativa ao seu comentário ao capítulo primeiro do livro alfa da Metafísica de Aristóteles . O tema da quaestio problematiza uma afirmação 1 2

12

Petri

Fonsecae,

Commentariorum

in

Metaphysicorum

Aristotelis

Sta-

giritae L i b r o s , C o l o n i a e , M . D C . X V ( R e i m p r . e m H i l d e s h e i m : G . O l m s , 1964) I , p p . 86-92. seca.

P a s s a r e m o s a u s a r a sigla C M A p a r a n o s r e f e r i r m o s a esta o b r a de F o n -

527

SOBRE

A

REMINISCÊNCIA

EM

PLATÃO

de Aristóteles pondo a questão de saber se todas as artes e ciências terão a sua origem na experiência, — «num artes omnes ac scientiae experimento gignantur?» Fonseca dedica a quase totalidade da segunda secção desta quaestio ao comentário da reminiscência platónica. Os textos referidos nesse trecho são os lugares clássicos da reminiscência no Ménon, Fédon e Fedro. Além destes três diálogos, Fonseca cita República X ( C M A I, 86, 88, 89). O passo da República a que ele se refere não aborda directamente a questão da reminiscência. É citado para ilustrar a concepção da reminiscência como recordação daquilo que a alma terá conhecido, separada do corpo: «Nam Plato in decimo de Republica sub finem scribit, Erim Armenium qui in proelio occubuerat postquam reuixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore separatus apud inferos uidisset» (CMA I, 89, sublinhado no original; cremos tratar-se de Rep. 614b). A preocupação principal de Fonseca, neste texto, é salvaguardar a noção de progresso científico, de novidade no processo cognitivo. Daí a sua rejeição de todas as posições que, de uma forma ou de outra, possam ser entendidas como negação ou supressão da novidade no saber. Assim, neste texto, ele começa por repudiar a «temeridade daqueles que afirmam haver um único intelecto em todos os homens, que não adquiriria nenhuma ciência nova mas através dele aprenderiam os homens algo e finalmente todas as ciências» ( C M A I, 86). Depois de expor rapidamente a noção platónica de reminiscência, baseando-se no texto do Ménon, passa a refutar a tese do intelecto único comum a todos os homens. Refutação muito sumária já que a análise mais demorada desta tese vai ser feita noutro lugar: «alibi dabitur fusius disserendi locus» ( C M A 1, 88). Nesta secção vai debruçar-se mais atentamente sobre a (hipó)tese platónica da reminiscência. Antes de mais, é significativo o modo como ela é qualificada por Fonseca: fictio, somnium, figmentum . Esta adjectivação sugere que se trata de algo que não pode ser interpretado literalmente, algo fácil de eliminar enquanto candidato à verdade. Para além de sublinhar o carácter onírico e fictício da metáfora da reminiscência, Fonseca procura reconstruir e criticar o seu possível conteúdo teorético. 1 3

O primeiro argumento contra a reminiscência joga com a interligação entre o habitus dos primeiros princípios e a ciência entendida

13

« M i t t e n d a d e i n d e est fictio illa P l a t o n i s e x t a n s i n P h a e d r o , P h a e d o n e ,

e t 1 0 R e p u b . q u a p u t a t i n M e n o n e ...» C M A I , 86.

« S o m n i u m v e r o illud

P l a t o n i c u m ( q u o d est in M e n o n e , P h a e d r o , P h a e d o n e , et 10 de R e p . ) de o b l i u i o n e et r e m i n i s c e n t i a facile refellitur.

F i g m e n t u m P l a t o n i s refellitur» C M A I , 8 8 .

BIBLOS

528

como «habitus conclusionum». O texto platónico não afirma nem pressupõe um esquecimento dos primeiros princípios. Se o nascimento provoca o esquecimento de um conhecimento antes obtido, também deveria, de igual modo, levar ao esquecimento dos primeiros princípios. Se estes não se esquecem na altura do nascimento também não há razão nenhuma que nos leve a crer que a geração, por si só, faça esquecer algo que se aprendeu e conheceu anteriormente. Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca está ligado à própria noção de invenção. A contribuição positiva dada pelos inventores, pelos que descobrem alguma coisa, traduz-se num alargamento do âmbito do saber. É esta novidade que está na base do progresso científico. E este conhecimento novo não pode ser entendido como reminiscência mas, precisamente em virtude da sua novidade, tem que ser considerado como verdadeira aquisição de saber. Assim, o conhecimento que o criador/inventor de determinada disciplina tem desse domínio específico, não pode ser considerado reminiscência sob pena de ele deixar de poder ser considerado, realmente, o seu inventor. Por outras palavras, o próprio facto da novidade, da inovação, indica que o processo cognitivo não é redutível a uma mera reposição de dados já adquiridos. Ciência, saber, é tradição e inovação. Por isso, diz Fonseca, o nosso saber não se pode identificar totalmente com a reminiscência . 1 4

Até aqui rejeita-se a reminiscência sobretudo porque admiti-la seria negar, ou pelo menos não explicar, a inovação na tarefa do conhecimento. Considerada enquanto hipótese explicativa da possibilidade de aprender e saber — enquanto resposta ao argumento erístico — a reminiscência não satisfaz. O «habitus scientiae» pode gerar-se a partir do «actus sciendi». Ora para poder realizar qualquer acto de conhecimento, argumenta Fonseca na linha da tradição escolástica, bastam dois factores: a ajuda dos sentidos e a própria capacidade intelectiva (sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi, remoto quovis habitu. C M A I, 89). Esta explicação é preferível por ser mais simples. Claro

14

«Si e o r u m t a n t u m q u a e n o u i t i n alio c o r p o r e , igitur c o g n i t i o e a

q u a m h a b e n t i n u e n t o r e s a r t i u m n o n est r e m i n i s c e n t i a : q u o d i n aliis h o m i n i b u s n o n p r a e cesserit.

I t a c o g n i tio m u l t a r u m a r t i u m effectiuarum q u a e n o s t r o

e t i a m saeculo i n u e n t a e s u n t n o n est r e m i n i s c e n t i a i n i p s a r u m i n u e n t o r i b u s , n e c item q u a d r a t i o circuli, si t a n d e m i n u e n i a t u r , erit r e m i n i s c e n t i a in eo a q u o t a n d e m fuerit r e p e r t a . . . , Q u o d s i i n i n u e n t o r i b u s a r t i u m n o u a c o g n i t i o n o n est r e m i n i s c e n t i a sed u e r a scientia a c q u i s i t i o , potest u t i q u e scientia a c q u i r i q u o f i t u t scire n o s t r u m n o n o m n i n o idem sit q u o d reminisci» C M A I , 88-89.

529

SOBRE

A

REMINISCENCIA

EM

PLATÃO

que a alegada simplicidade que justifica esta preferência alética (alethic preference) de Fonseca, não é devidamente justificada no texto. Supõe-se que o leitor está familiarizado com a teoria preferida, desenvolvida noutro contexto, e que isso é suficiente para poder considerar, este contexto, supérflua (superuacanea) a reminiscência. Mas admitindo, por hipótese, que a alma, separada do corpo, tivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimento/saber — entendido em termos de participação das ideias ou de outro modo — não há motivo que justifique o esquecimento da alma. Esquecimento que é colocado no nascimento. N ã o se justifica, pois, diz Fonseca, a geração humana não é violenta nem contra a natureza já que se trata de uma conjunção natural da forma humana com a sua matéria própria e natural. Assim, a geração humana não implica, por si só, u m a diminuição das virtualidades da alma. N ã o há outro modo de ser homem. Portanto, relativamente à reminiscência, se o homem não conhece, aqui e agora, isto ou aquilo e se não há nada que justifique o seu esquecimento, então, quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diálogo platónico) também não as conheceu antes . Este argumento não faz mais do que explicitar o primeiro. 1 S

No final deste breve comentário à reminiscência platónica, Fonseca retoma, novamente, o texto do Ménon. Ao contrário do que afirma Sócrates, o que se passa na aula de geometria ao escravo não prova que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e não a adquirir novos conhecimentos. Fonseca joga com a conhecida distinção aristotélica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para nós, alegando que o facto de Sócrates formular uma série de perguntas e o escravo se limitar a responder, de acordo com a metodologia estipulada, sim ou não, não implica que o escravo não estivesse envolvido num processo de verdadeira aquisição de saber. Mais uma vez, Fonseca prefere outra explicação para interpretar e compreender o que se passa no episódio da aula de geometria. A seus olhos, a (hipó)tese da reminiscência não satisfaz . 16

15

« P o s t r e m o , s i o m n e s scientiae essent a n a t u r a i n d i t a e a n i m i s n o s t r i s ,

ante q u a m corpora ingrederentur, coniunctionem

cum

corporibus:

n o n esset c u r e a r u m o b l i u i s c e r e n t u r p r o p t e r est

enim

generatio

humana

c o n t r a n a t u r a m , sed n a t u r a l i s c o n i u n c t i o f o r m a e c u m m a t e r i a ; detrimentum

accipit

obliuiscuntur

omnium

ex

coniunctione

secundum

cum

Platonem:

propria non

et

sunt

non

naturali igitur

uiolenta

et

nullaque forma eis

materia: a

at

natura

i n d i t a e » .CMA I, 91 «Argumentis vero Platonis, quae pro commento hoc proposita sunt ex M e n o n e 16

hunc

in

modum

occurrendum

est.

Priori

illud S o c r a t i s , Hic puer ordine interrogate

quidem,

nihil

consequentiae habere

et a nemine edoctus incipit exercere

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530

Finalmente, se é verdade que o processo cognitivo não pode partir do zero, tal facto não implica que tenhamos de admitir um pré-saber bem definido e virtualmente ilimitado. Para que se desencadeie o processo cognitivo basta, na opinião de Fonseca, que tenhamos um conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos c o n h e c e r . De novo, a reminiscência a surgir como uma hipótese explicativa insatisfatória e inútil. Com todos os limites próprios da tradição filosófica em que se insere, o comentário de Fonseca é um documento significativo do seu confronto com o pensamento platónico. Mas há que sublinhar o interesse primordial de toda a sua argumentação: salvaguardar a possibilidade de compreender a novidade e evitar que a inovação fosse completamente absorvida pela tradição. 17

Coimbra, Outubro de 1983

actum scientiae: ante sciebat.

ergo non est consecutus novam scientiam,

sed reminiscitur eorum quae

Q u i d e n i m interest si o r d i n e i n t e r r o g e s an o r d i n e d o c e a s ? an n o n s e m -

per , i s q u i a u d i t , consulit m e n t e m s u a m , n i h i l q u e c o n c e d i t , nisi q u o d p e r s e n o t u m esse

perspicit,

aut

ex

per

se

notis

et

a

se

concessis

iam

uidet

esse

d e m o n s t r a n d u m ? Si id c o n c e d i t q u o d per se n o t u m esse uidet, n o n a c q u i r i t s a n e n o u a m s c i e n t i a m . Sin a u t e m a s s e n t i t u r p r o n u n c i a t o ,

quod no n

iudicat

per se

n o t u m sed t a m e n i a m ex p e r se n o t i s d e m o n s t r a t u m esse c e r n it : n o n d u b i u m est q u i n uere discat s c i e n t i a m q u e uere c o n s e q u a t u r , siue r o g a t u s sit t a n t u m , siue ab alio e d o c t u s , siue e t i a m a se i p s o m e n t e q u e s u a d u c t u s » . C M A I , 9 1 . 1 7

C M A I , 91-92.

531

SOBRE

A

REMINISCÊNCIA

EM

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