Sobre a representação multicultural de personagens em obras audiovisuais educativas

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São Paulo, Ano II, n. 04, jan./Abr. de 2015

Como o cinema nacional pode ser socialmente relevante e interessante?

Sobre a representação multicultural de personagens em obras audiovisuais educativas Autor: Flávio Tonnetti Cinema, realidade e futebol: performando a voz da arquibancada Autor: Felipe Lopes Cinema brasileiro: consciência social ou busca pelo lucro? Autor: Renato Bulcão

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Sobre a representação multicultural de personagens em obras audiovisuais educativas Flávio Tonnetti1     pesar de inúmeros relatórios de órgãos internacionais apontarem o multiculturalismo entre as principais tendências da educação, sobretudo quando considerada em escala global, ainda é recorrente ver nos materiais didáticos audiovisuais e digitais um tipo de representação pictórica eurocêntrica que poderíamos considerar eufemisticamente, no mínimo, como conservadora. A narrativa centrada em personagens, recurso amplamente utilizado na elaboração de materiais didáticos audiovisuais ou digitais – e também nos impressos – muitas vezes apresenta uma homogeneidade pouco desejada no que diz respeito aos costumes e à caracterização física dos personagens, revelando pouca riqueza na diversidade de cores da pele, vestuário e comportamento corporal. A hipótese de que isso se deva ao fato de que os grandes produtores e editores de peças e roteiros de materiais didáticos sejam eles próprios europeus ou de centros de produção ricos, onde o branco é a cor dominante, parece ser uma explicação fraca, já que o multiculturalismo é hoje uma característica de qualquer grande cidade – e há que se ter em conta que, muitas vezes, os materiais de

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1 Bacharel, licenciado e mestre em Filosofia e doutorando em Educação, ambos pela Universidade de São Paulo. Coordenou cursos de educação a distância (EaD) na rede privada e atuou como professor de Ensino Médio nas redes pública estadual e privada. Edita o site ensino.blog.br São Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 • 68

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produtores periféricos também apresentam a mesma estética, reproduzindo um modelo no qual não retratam a face de sua própria população. Uma hipótese menos fraca é a de que esses produtores, eles mesmos, desejem se apresentar a partir de uma determinada identidade caucasiana, ou talvez porque, estando desde sempre bombardeados por uma “estética branca”, corrente nos meios de comunicação de massa, a tenham naturalizado. Lidando com a questão da representação multicultural ou tentando evitar bater de frente com ela – arcando com todos os custos comerciais, sociais e simbólicos que tal postura implicaria –, alguns produtores têm apresentado, com mais ou menos sucesso, personagens não humanos em suas séries. Constroem, assim, personagens com diferentes cores, formas corporais, comportamentos e psiquês interagindo em um contexto quase sempre surreal. Quando os roteiros de seriados para crianças resolvem bem essas questões, elas são rapidamente enquadradas no conjunto das séries sociorrelacionais. O rótulo de sociorrelacional, entretanto, não pode ser aplicado a quaisquer séries pelo simples fato de apresentarem personagens diferenciados. É preciso que a caracterização dos personagens contribua para a construção da alteridade por parte de quem a assiste, e que a forma corporal ou o contexto social no qual vivem os personagens motive o roteiro e o modo pelo qual as relações e conflitos são resolvidos pelos protagonistas. Um material que não problematiza a forma de apresentar seus personagens tem pouca chance de encarar o desafio da multiculturalidade. Uma defesa de quem evita esse desafio é afirmar que certas questões, como a representação de gênero, sejam irrelevantes quando o objetivo de aprendizagem é outro. Ou seja, para ensinar uma criança a somar, não importa a cor de um personagem, já que o objetivo é exclusivamente cognitivo. Quem pensa assim esquece que as narrativas didáticas veiculam valores sociais, e que tais valores podem influenciar – positivamente ou negativamente, conforme sejam tratados – o desempenho cognitivo dos estudantes. Ao considerar questões de representação identitárias como algo secundário, um editor pode se sujeitar a cometer um grave erro na elaboração de materiais didáticos ao conceber, por exemplo, um roteiro em que o único personagem capaz de fazer contas seja um menino branco. Editores e roteiristas exclusivamente preocupados com o valor cognitivo das lições que preparam se esquecem de agregar a elas valores sociais extremamente importantes para a educação e para a construção de uma prática de cidadania em que o estabelecimento da igualdade esteja entre as metas. Mas para isso é necessário ter, para além de um conhecimento técnico-pedagógico, um conhecimento do contexto social, assumindo a responsabilidade sobre o tipo de discurso que queremos fazer veicular nesse contexto. No caso brasileiro, algumas políticas de avaliação de materiais didáticos têm garantido que esses valores sociais não sejam desconsiderados pelos elaboradores dos materiais. Ao ignorá-los, editores deixam de ter seus materiais entre a lista dos indicados como adequados para a escola pública – e, consequentemente, para aquisição pelo Estado, principal comprador de materiais didáticos das editoras. Essa política de avaliação de materiais pedagógicos contribuiu muito para o amadurecimento da discussão identitária e da representação multicultural – questões que, até então, poderiam ficar à margem das pautas de editores. As questões raciais ou de gênero, cada vez mais discutidas, vêm acompanhadas da problemática da intergeracionalidade, da constituição moderna das famílias, da sustentabilidade, da percepção do corpo na vida moderna e da presença da tecnologia – o papel ocupado pelas tecnologias na vida das pessoas, bem como os diferentes níveis de acesso a elas conforme o contexto social em que se vive também precisam ser discutidos no interior das narrativas digitais – que já de partida pressupõem o acesso tecnológico. Qualquer material didático que não leve em conta o multiculturalismo em seus roteiros tem grande chance de ser muito superficial e pouco verossímil, já que o multiculturalismo é um componente não apenas de culturas híbridas, como a brasileira, mas caracteSão Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 • 69

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rística inerente a qualquer nação moderna num mundo globalizado. A educação para a tolerância pode começar a partir do momento em que representamos personagens de cores e culturas diferentes interagindo amigavelmente e em condição de igualdade. No Brasil, onde reinam o mito do encontro das raças e a falsa ideologia da ausência de preconceitos, representar as múltiplas cores de sua gente nos meios audiovisuais de massa ainda é um enorme desafio. Na tevê aberta, palco de representações controversas e reificações de preconceitos, as lutas dos movimentos sociais negros fizeram a discussão avançar. Uma novela de grande audiência com temática religiosa, em que personagens continuavam a ter uma vida após a morte, apresentou um paraíso sem negros, em que todos os figurantes eram brancos. Após ser alvo de discussão, a rede de televisão acabou incorporando, após enormes críticas, contingentes de negros em seu quadro celestial. Nessa mesma emissora de tevê, quando o mais importante apresentador branco perguntou a um consagrado ator negro se ele considerava que havia preconceito racial nos meios audiovisuais, foi obrigado a ouvir do ator, ao vivo, que ali mesmo no auditório do seu programa dominical, em que se escolhem as mais belas garotas a se sentarem nas primeiras fileiras, não havia nenhuma negra. No caso de materiais audiovisuais educacionais, a questão da representação de identidades múltiplas é ainda mais fundamental, porque a educação é, necessariamente, o instrumento por meio do qual os preconceitos devem ser desconstruídos – sobretudo quando voltados para crianças, não é benéfico que programas de tevê educativos e materiais pedagógicos apresentem apenas personagens brancos. Apesar dos enormes debates em torno desses temas, crianças negras e indígenas continuam a ser sub-representadas. O caso das identidades indígenas é ainda mais grave; quando não completamente excluídas, são representadas de forma extremamente caricata. A dificuldade de reconhecer as identidades indígenas como componentes legítimos da cultura brasileira – e os índios como sujeitos de uma realidade histórico-social – é bem apontada por Cao Hamburger, realizador de séries infantis de grande prestígio, quando relata insatisfação em relação ao tratamento que deu à questão indígena em um de seus filmes não infantis – no qual a temática indígena é central. Se mesmo para um grande realizador, atento às questões e valores sociais que se fazem veicular em uma obra, é difícil evitar as armadilhas dos preconceitos e lugares-comuns, então o que pensar dos realizadores para os quais essas questões não importam? Em colaboração com uma empresa produtora de conteúdos audiovisuais educativos, responsável por produzir uma série de materiais digitais, sugerimos à editora contratante que suas personagens principais fossem redefinidas, acrescentando uma personagem de característica indígena e transformando outra em uma criança ruiva, desconstruindo assim a planificação do branco que era característica comum aos personagens da proposta inicial. A sugestão de incluir um professor negro, entretanto, foi tratada com mais São Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 • 70

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cuidado, demonstrando como a questão das representações identitárias do negro no lugar daquele que ensina continua a ser, ainda, um tabu – mesmo em contextos que imaginamos mais progressistas, como deveria ser o da educação. O preconceito, a intolerância e o desconhecimento das questões raciais parecem ser, ainda hoje, as principais razões pelas quais as “identidades minoritárias” continuam a ser sub-representadas – embora sejam majoritárias numericamente, não o são em poder de representação ou participação econômica, política e simbólica. Em outra sugestão dada a um roteiro audiovisual procurei desconstruir uma violência de gênero presente num plano didático – um gesto socialmente tão naturalizado a ponto de um roteirista o sugerir em um material para crianças. Na situação ficcional, um menino atirava uma bolinha de papel na cabeça de uma menina. A reprodução naturalizada de uma violência de gênero, com a mulher ocupando um lugar de fraqueza e submissão, me pareceu completamente inadequada – sobretudo em se tratando de um material elaborado para crianças no estágio da educação fundamental. Sugeri a reestruturação da cena com o garoto arremessando a bolinha de papel em direção a um cesto de lixo – agora com o símbolo gráfico de reciclagem – e com a garota aproximando-se dele e fazendo breve referência à questão da reciclagem. Agregamos ao roteiro um valor social, ao mencionarmos a questão ambiental em uma cena circunstancial em que os personagens dialogavam sobre temas de língua portuguesa. Embora secundário, aquele comportamento expressa um valor social que é recebido pelo aluno – ainda que o foco do material didático não seja a discussão da reciclagem ou a preservação do ambiente; ou a questão do respeito mútuo e da igualdade de gêneros.  Isso significa que a preocupação de quem produz e elabora materiais didáticos não pode ser apenas conteudista – num sentido bastante estrito do que seja conteúdo. Sempre que possível, é desejável associar valores sociais positivos às representações feitas em materiais didáticos. Nos exemplos citados, acrescentamos ao valor cognitivo de cada roteiro um conjunto de valores sociais, incentivando a reciclagem, desconstruindo preconceitos raciais ou de gênero e desnaturalizando a violência. Podem parecer coisas sem importância, mas não são. Na educação, podemos seguir duas vias: a da reprodução ou a da transformação. Se vamos pela segunda via devemos tratar de reconstruir e reelaborar nossas visões de mundo e as posições sociais que os indivíduos ocupam nele. Se estamos realmente preocupados em trabalhar para uma educação cujo objetivo é a constituição de sociedades mais igualitárias e inclusivas, então esses valores não constituem apenas o pano de fundo de nossos materiais didáticos: são os protagonistas deles. Sob o discurso de se aproximar da realidade dos jovens, há sempre a tentação de retratar a criança como ela se comporta. Para uma série ou filme comercial, essa lógica de rápida identificação e pronta aceitação funciona muito bem, já que o que se deseja é a venda de um produto, mas para um material educacional, nem sempre conduz aos objetivos de formação. Aparentemente bem-intencionada, essa diretriz pode ter um efeito antipedagógico ao reforçar um comportamento existente quando poderia apresentar outro. O resultado é que acabamos criando uma repetição que não alarga o repertório comportamental da criança. E corremos o risco de reproduzir para as crianças aquilo que elas já são em vez de convidá-las a ir adiante. Ocorre-me pensar se, nesses casos, o que nos condiciona não é também um preconceito – ainda que idealizado – em relação à própria infância, ou seja, até que ponto não nos orientamos por uma expectativa de comportamento que não é um espelho das crianças, mas daquilo que esperamos ou acreditamos que elas sejam. Dessa forma, muitos criadores de materiais pedagógicos audiovisuais – em cinema ou desenho animado – evitam apresentar crianças executando tarefas na cozinha ou lidando com ferramentas. Em parte por considerarem essas representações como algo perigoso, criando uma superproteção excessiva da infância que aprisiona eternamente a criança ao universo do pueril, São Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 • 71

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negando a ela a chance de tornar-se adulta ou exercitar-se em outras atividades não necessariamente enquadradas como infantis. Ou ainda por considerarem a autonomia de uma criança preparando alimentos ou construindo objetos com ferramentas como uma narrativa inverossímil, ao assumirem como pressuposto que crianças não cozinham nem trabalham – num imaginário social limitado e limitador. São interessantes os programas educativos holandeses que documentam crianças manipulando utensílios de corte para preparar seu próprio alimento. Como também são interessantes os jardins da infância alemães dedicados ao manuseio de ferramentas em que pequenas crianças constroem e manipulam objetos. Esse tipo de representação é interessante pois apresenta uma criança autônoma que pode ser referência para outras crianças. Portanto, ela não apresenta uma criança aprisionada num lugar predeterminado de infância tal qual fora concebido por um adulto, mas apresenta uma criança em vias de tornar-se adulto por meio da construção de sua autonomia, seja ao construir o seu próprio brinquedo, seja ao preparar seu próprio alimento. No que toca às representações em torno da criança, precisamos acolher os novos formatos da família contemporânea. Reconhecer a família como lugar do múltiplo é o primeiro passo para bem representá-la. O núcleo familiar composto por um pai, uma mãe e um filhinho representa apenas um tipo de família. Casais homossexuais, filhos de pais solteiros, famílias formadas por tios e avós precisam ser representados, pois é esta a cara da família contemporânea. Sobre as relações que se estabelecem com personagens de outras idades – não apenas dentro da família, mas também fora dela –, é tanto melhor quanto mais os enredos trouxerem relações intergeracionais, que não fiquem restritas ao universo das crianças, representando também o ponto de vista dos adultos em seus enredos, mesmo que o protagonismo esteja nos personagens infantis – e melhor ainda se houver uma reverência à ancestralidade, associando ao roteiro o respeito aos mais velhos como valor social e pedagógico. Se não nos cansamos de discutir o papel e a relevância dos materiais didáticos e pedagógicos, cada vez mais digitais, é porque esse tipo de produção cultural possui uma importância extrema. Para realizadores e donos de produtoras privadas, essa importância é, sobretudo, econômica – incorporando produtos digitais e audiovisuais em plataformas e dispositivos móveis, os negócios educacionais encontram espaço para ampliar suas ofertas em novas fatias de mercado e consumo. Na era da educação híbrida, em que contextos presenciais e digitais se misturam e se interpenetram, os materiais pedagógicos não deixam de existir, apenas se reinventam. Ainda que possamos ser contrários ao uso de materiais didáticos – há muitos que têm razões legítimas para ser, por princípio, contra eles –, não podemos diminuir sua importância como ferramentas do professor no processo educativo. Quanto melhores as ferramentas disponíveis aos professores, mais condições ele terá de escolher aquela que melhor se adeque ao seu objetivo – e é em defesa disso que advogamos. Se para um é produto e para o outro é ferramenta, para o estudante – criança, jovem ou adulto – é obra com o auxílio da qual constrói sua identidade e reconhece a identidade do outro: é também por meio desses materiais que aprendemos a ser e a estar no mundo. Quanto melhor for a qualidade e maior o alcance de um discurso preocupado com a multiculturalidade, o respeito à diferença e à luta pela igualdade de direitos, maiores são as chances de vivermos em um mundo onde as pessoas sejam sensíveis a eles. A educação, com seus materiais e dispositivos, deve ser posta a serviço disso. 

Imagens: www.morguefile.com e www.freeimages.com São Paulo, Ano I, n. 04, jan./abr. de 2015 • 72

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