Sobre a semântica de \'pouco\' e \'um pouco\'

June 28, 2017 | Autor: Luisandro Mendes | Categoria: Quantification, Formal Semantics, Intensification
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SOBRE A SEMÂNTICA DE POUCO E UM POUCO ON THE SEMANTICS OF POUCO ‘FEW/LITTLE’ AND UM POUCO ‘A FEW/LITTLE’

Luisandro Mendes de Souza*

RESUMO: este trabalho discute a interpretação das expressões ‘pouco’ e ‘um pouco’ a partir de uma abordagem referencial do significado (CHIERCHIA, 2003; entre outros). Primeiramente, busca-se descrever o seu comportamento sintático-semântico. A partir disso, investiga-se a semântica apropriada a ser atribuída à ‘pouco’, que opera tanto sobre o domínio dos indivíduos quanto sobre o domínio gradual. Apesar dessa diferença, há uma operação mais geral que esse tipo de modificador exerce (GUIMARÃES, 2007). Propor-se-á uma semântica para ‘pouco’ que incorpore os dois aspectos já apontados na literatura: o julgamento de valor, e a intuição de que ele significa algo como ‘menos do que o padrão contextual’. Para ‘um pouco’ advoga-se uma abordagem composicional. PALAVRAS-CHAVE: semântica formal; quantificadores; intensificadores. ABSTRACT: this paper discusses the interpretation of expressions ‘pouco’ (‘few’) and ‘um pouco’ (‘a few/little’) from a referential approach of meaning (CHIERCHIA, 2003; among others). First, we aim to describe their syntactic and semantic behavior. After that, we search for the appropriate semantics to be attributed to ‘pouco’, which operates both on the domain of individuals and on the degree domain. In spite of this, there is a general operation that this modifier does (GUIMARÃES, 2007). We propose a semantics for ‘pouco’ which incorporates two aspects already seen in the literature: the value judgment, and the intuition that it means something like ‘less than a contextual standard’. To ‘um pouco’ we advocate a compositional approach. KEY-WORDS: formal semantics; quantifiers; intensifiers.

INTRODUÇÃO Oswald Ducrot (1977), em um texto clássico da abordagem argumentativa, explora as diferenças semânticas entre as expressões pouco e um pouco. Partindo desse estudo, o principal objetivo do presente artigo é mostrar que essas diferenças podem ser explicadas através da perspectiva da semântica referencial (CHIERCHIA, 2003; entre outros). Nesse sentido, não almejamos negar a validade da proposta argumentativa de Ducrot, mas mostrar que a sua descrição é capturada pelas ferramentas da semântica de modelos, pelo menos nos aspectos fundamentais: a contribuição das expressões para o valor de verdade da oração e sua *

Professor Adjunto na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). [email protected]

significação lexical. Já sobre a contribuição que as expressões possuem retoricamente, um semanticista formal nada tem a dizer sobre o tema. A primeira seção do artigo cumpre essa função. Na seção 2.2, apontaremos alguns problemas com os quais Ducrot não se deparou, e até onde sabemos, ninguém ainda apontou. São questões que somente poderiam ser formuladas a partir da perspectiva que assumimos. Veremos que as respostas para essas questões são tanto semânticas quando sintáticas, ajudando-nos a entender a diferença entre essas expressões.

1. OS DADOS E O PROBLEMA BÁSICO Ducrot (1977) levantou o seguinte conjunto de fatos no seu estudo do contraste entre pouco e um pouco. Obviamente que o seu texto lidava com as expressões francesas peu e un peu, mas como notam os tradutores de “Dizer, não dizer”, na época não havia estudos sobre essas expressões em português e se pressupôs que a equivalência poderia ser assumida sem grandes problemas – imaginemos que seja esse o caso de fato. Passemos, então, ao que Ducrot nos apresenta. Na descrição de Otto Jespersen (citada por Ducrot), pouco indica quantidade inferior a um pouco; Para Ducrot, tal abordagem é insuficiente. Entre parênteses, abaixo das sentenças, temos as respectivas paráfrases atribuídas pelo autor às sentenças (1a-b), a partir do que ele chama de ‘abordagem quantitativa’ da diferença semântica entre as expressões.1 Exemplos do autor (DUCROT, 1977, p. 206). (1a) Pedro bebeu pouco vinho. “Pedro bebeu vinho e vinho em pequena quantidade.”

(1b) Pedro bebeu um pouco de vinho. “Pedro bebeu vinho, mas uma quantidade pequena.”

1

Um dos pareceristas do artigo aponta que as paráfrases não constam no artigo de Ducrot. O autor (1977, p. 206 [destaque nosso]) afirma explicitamente as paráfrases, que deixa entrever ao comentar o exemplo (1a), número (6) em seu texto: “(6) pressupõe que Pedro bebeu vinho ontem, e põe que a quantidade de vinho que ele bebeu é pequena”. Sobre o exemplo (1b), o seu (7), ele afirma: “Assim, (7) põe que Pedro bebeu vinho, mas limitando esta afirmação a uma quantidade pequena”. Em essência, ele vê a diferença nos seguintes termos: “Enquanto que pouco afirma uma restrição, um pouco restringe uma afirmação”. Além de destacar que um pouco não faz um “julgamento de quantidade”. A nosso ver, é justamente essa a função de um pouco, medir quantidades ou graus, como veremos.

O primeiro problema que vemos com as paráfrases é que elas são sinônimas, logo, não nos dizem muita coisa sobre o que as expressões de fato significam. As conjunções e e mas possuem a mesma semântica (a mesma contribuição para o valor de verdade da oração complexa), embora possa se argumentar, como o próprio Ducrot fez em outro lugar no mesmo livro, que no discurso (ou no que ele chama de nível retórico) essas conjunções atuem diferentemente. Podemos provar que esse é o caso afirmando a primeira e negando a segunda. Isso produz uma contradição. Dessa forma, (2) nos mostra que as paráfrases oferecidas não são seguras. (2) #Ele bebeu vinho, mas uma quantidade pequena, só que não é o caso que tenha bebido vinho em uma pequena quantidade. Na abordagem quantitativa de descrição do significado básico dos termos, temos o seguinte: a) Pouco: afirma uma restrição; b) Um pouco: restringe uma afirmação. Isso é representado esquematicamente em (3). (3)

pouco

um pouco

------------------|---------------------------------|---------------- escala de quantidade Vamos assumir que o esquema gráfico mais adequado é (3’), e no decorrer do artigo buscaremos evidências de que esse é o caso. A diferença é sutil, mas significativa. O leitor deve notar também que enquanto (3) apenas menciona ‘quantidade’ a escala que propomos é indeterminada: a escala não precisa operar somente sobre quantidades de indivíduos que o domínio denota, justamente porque as expressões não operam semanticamente sobre indivíduos (mais tecnicamente, não operam apenas sobre predicados de indivíduos, de tipo , seguindo a ontologia de Montague (cf. HEIM; KRATZER, 1998). (3’)  pouco

um pouco 

------------------|---------------------------------|---------------- escala X

A partir de (3’), propomos que pouco denota ‘algum grau ou nenhum’ = [0,1] e um pouco denota ‘pelo menos um grau ou mais = [1, ∞]. O mesmo pode ser dito das expressões equivalentes no inglês, (a) little/(a) few, cuja diferença reside na distinção massa/contável, cf. (4).

(4) (a) little water/time

(a’) * a few water/time

pouca água

um pouco de água

pouco tempo

um pouco de tempo

(b) few books/days poucos livros/dias

(b’) * a little books/days um pouco de livros/dias

As representações entre colchetes indicam que pouco possui um limite máximo e mínimo do que conta como pouco no contexto de proferimento; já um pouco é limitado apenas no seu mínimo e seu máximo é ilimitado. A seguir, apresentaremos mais alguns dados de Ducrot e mostraremos que os contrastes que ele apresenta são capturados pelo esquema em (3’). 1.1. Mais dados de Ducrot

Comecemos por discutir os pares de exemplos apresentados abaixo em (5) e (6).

(5a) Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu pouco vinho ontem. (5b) Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu um pouco de vinho ontem.

(6a) #Parece que ele está se tornando sóbrio: bebeu um pouco de vinho. (6b) #Parece que ele está se tornando menos sóbrio: bebeu pouco vinho.

Por que o contraste? Para Ducrot o contraste não pode ser explicado pelo esquema em (3), pois ele distingue os termos relevantes apenas em função da ‘quantidade’. Acreditamos que a diferença não é simplesmente de ‘quantidade’, e Ducrot tem razão nesse ponto; a diferença, essencialmente, tem a ver com os limites que cada item impõe na escala relevante dada pelo predicado. Contrastemos primeiramente os exemplos (5a) e (6a). Os predicados se tornar sóbrio e beber pouco vinho são semanticamente compatíveis, o que não acontece em (6a). Se de fato um pouco não apresenta um limite máximo, afirmar que alguém bebeu um pouco de vinho não exclui a possibilidade de que ela tenha bebido muito vinho, o que é incompatível com o predicado se tornar sóbrio. Na mesma direção é a análise do contraste entre (5b) e (6b). Se alguém está se tornando menos sóbrio, podemos inferir que o sujeito está

bebendo muito. O leitor deve notar que o segundo par de sentenças é uma imagem espelhada das sentenças em (a). O predicado se tornar menos sóbrio significa que o sujeito está bebendo mais, o que é compatível com beber um pouco que não estabelece um limite máximo. Usar a expressão beber pouco com se tornar menos sóbrio é como colocar um limite máximo na quantidade de bebida consumida, e estabelecer que essa quantidade é pequena, em relação a um dado padrão contextual. Apelar para uma abordagem referencial nos parece mais intuitivo e simples. Podemos supor que sóbrio signifique ‘não beber nada’, enquanto a contribuição de se tornar é especificar que o sujeito está passando pelo processo de chegar a esse ponto, isto é, ele ainda não é totalmente sóbrio. Portanto, abre-se a possibilidade de que ele beba alguma quantidade. Vejamos agora outro exemplo interessante discutido pelo autor. Suponha que eu tenha muito dinheiro no bolso e diga (7a) ou (7b). Nesse caso, (7a) será falsa, e (7b) verdadeira. Esse tipo de julgamento é possibilitado porque pouco fecha a escala e impede que façamos inferências para cima. Um pouco, por sua vez, permite que façamos inferências para cima (não necessariamente lógicas, i.e., acarretamentos). Ter um pouco de dinheiro não exclui a possibilidade de que eu tenha muito.

(7a) Tenho pouco dinheiro no bolso. -/-> Tenho muito dinheiro. (7b) Tenho um pouco de dinheiro no bolso. → É possível que eu tenha muito dinheiro.

Se revertemos as inferências, o comportamento também é distinto. (8a) não me permite inferir (8a'), já (8b) me permite inferir (8b’). Veja que o nexo é de acarretamento entre as duas últimas sentenças. Todo situação em que (8b) for verdadeira também será uma situação em que (8b’) será verdadeira. (8a) e (8a') soam contraditórias entre si porque não há uma situação que faça as duas verdadeiras ao mesmo tempo, a não ser que os limites entre o que é pouco e muito estejam sendo negociados pelos interlocutores. Pense-se no caso de um pai com R$20 no bolso e uma criança de dez anos com a mesma quantia. Para a criança esse dinheiro é significativo, e pode contar como muito; para um pai, dificilmente. Mesmo assim, não podemos dizer que o dinheiro no bolso do pai é, na mesma situação, pouco e muito.

(8a) Tenho muito dinheiro no bolso. -/-> (8a’) Tenho pouco dinheiro no bolso. (8b) Tenho muito dinheiro no bolso. → (8b’) Tenho um pouco de dinheiro no bolso.

O terceiro caso surge quando as expressões estão sob o escopo de um operador de condição (9) ou necessidade (10), construções que têm sido tratadas na literatura sobre modalidade de forma similar.2 Aqui, princípios conversacionais (como a Máxima de Quantidade) devem estar em jogo também, já que claramente estamos lidando com inferências que não são lógicas, embora sejam feitas a partir da denotação dos termos.

(9a) Se eu tiver um pouco de tempo livre, farei esta viagem. (9b) #Se eu tiver pouco tempo livre, farei essa viagem.

Mesmo que o verbo viajar implique, via conhecimento de mundo ou algo parecido, que seja preciso algum tempo para fazer isso, não é necessário que se especifique isso na denotação do verbo, senão todo verbo de evento precisaria ter essa especificação na sua denotação. Assim, a anomalia de (9b) tem a ver com o fato de que eventos tomam certo tempo, e por conhecimento de mundo sabemos que viajar toma uma quantidade razoável. Vejamos agora o caso com o operador de necessidade:

(10a) Foi necessário um pouco de tempo para que ele refutasse o teorema de Gödel. = foi necessário bastante tempo. (10b) Foi necessário pouco tempo para que ele refutasse o teorema de Gödel. = foi fácil.

Apesar de envolverem um operador de modalidade, os exemplos em (10) estão mais relacionados aos de (11-12). Os padrões de inferência são os mesmos. A pergunta é: que tipo de inferência é essa? Na sua discussão desses exemplos, Ducrot assume que essa inferência

2

Essencialmente, operadores modais de possibilidade e necessidade são tratados como quantificadores sobre mundos possíveis. Operadores de possibilidade envolvem quantificação existencial sobre mundos, e operadores de necessidade quantificação universal (CHIERCHIA, 2003).

pode ser explicada através da noção de Litotes.3 Em comum, esses casos envolvem um efeito de negação de pouco e um efeito de reforço ou intensificação de um pouco.

(11a) Este livro é pouco interessante. Inferência = não é interessante.

(11b) Este livro é um pouco interessante. Inferência = e talvez muito interessante.

(12a) Pedro está um pouco atrasado hoje. Inferência = É habitualmente pontual.

(12b) Pedro está pouco atrasado hoje. Inferência = É habitualmente atrasado.

Como as inferências são sistemáticas, elas devem ser Implicaturas Convencionais (GRICE, 1967; LEVINSON, 2007) e assumiremos isso sem argumentação. Note que essa interpretação é sistemática com adjetivos, como temos nos casos (11-12). Nos casos em (10) as expressões estão dentro de um sintagma nominal, [um pouco de tempo/pouco tempo], e o efeito parece ser o mesmo: um pouco de tempo abre a possibilidade de que foi preciso muito tempo. Com pouco tempo, novamente podemos dizer que há conhecimento de mundo envolvido. Tarefas que tomam pouco tempo são consideradas fáceis, por isso a inferência é disparada. Vejamos agora o contraste final. Para Ducrot (13a-b) são sinônimas, mas (14a-b) não são. Sua intuição está correta, já que afirmar (13a) e negar (13b) produz uma contradição (cf. 15). Mesmo não sendo exatamente sinônimas, quando se nega a segunda as situações se excluem, como se não fosse possível ter um pouco de trabalho e não trabalhar um pouco. Já com (14) a situação é diferente. Podemos imaginar uma situação em que se tenha pouco trabalho, mas não se trabalhe pouco. O que quer que trabalho e trabalhar signifiquem4, as expressões parecem medir alguma quantidade de tarefas no caso da primeira e o tempo de 3

Litote é um conceito da retórica utilizado no seu paradigma para dar conta de enunciados que produzem um efeito de negação; uma espécie de estratégia para diminuir a rudeza de uma afirmação do tipo o livro não é interessante no caso de (10a). 4 Digamos que denotem predicados de eventos. A diferença entre a nominalização e o verbo residiria apenas no fato de que a nominalização nos permite ocultar sintaticamente o argumento sujeito/agente (cf. CHIERCHIA, 2003).

trabalho na segunda. Possivelmente isso esteja ligado ao fato de que trabalho é um substantivo, e tendemos a medir as entidades denotadas por substantivos em termos de quantidade, pelo menos no caso dos substantivos contáveis. Para os verbos, e isso é comum com os predicados de atividade, podemos medir a sua duração temporal (através de advérbios ou sintagmas adverbiais). Assim, trabalhar pouco, ou trabalhar um pouco significam ‘trabalhar pouco/um pouco de tempo’. Logo, pode-se ter pouco trabalho e não se trabalhar pouco, mas não se pode ter um pouco de trabalho e não se trabalhar um pouco. Chamemos esse problema de “Contradição do Preguiçoso”. A negação sobre as expressões inverte a escala: “não um pouco = nada” e “não pouco = muito” (voltaremos a isso adiante). Assim, as diferenças entre os pares não podem ser atribuídas, somente, às expressões em discussão nesse artigo e sim, mais propriamente, às diferentes dimensões que os predicados sob modificação impõem lexicalmente. Mesmo que denotem conjuntos de eventos, a diferença entre as categorias sintáticas importa para como medimos as entidades que o predicado denota. Em Trabalhar muito, o advérbio pode operar tanto sobre a quantidade de eventos de trabalho ou sobre o tempo que um evento tomou/toma. No caso da forma verbal, a dimensão medida é de horas de trabalho ou quantidade de eventos mínimos de trabalho, enquanto que o nome trabalho, assim, como os nomes em geral, é medido por unidades contáveis (nomes comuns, na sua maioria) ou abstratas (nomes abstratos). (13a) Eu te peço um pouco de trabalho. (13b) Eu te peço trabalhar um pouco.

(14a) Eu te peço pouco trabalho. (14b) Eu te peço trabalhar pouco.

(15a) #Eu te peço um pouco de trabalho, mas te peço não trabalhar um pouco. (15b) Eu te peço pouco trabalho, mas não te peço trabalhar pouco.

Desses dados tiramos o seguinte conjunto de problemas, considerando que tenhamos estabelecido que um pouco e pouco não são sinônimos: a) a diferença semântica entre as expressões: pouco fecha a escala em um ponto próximo a zero e desativa inferências para cima; um pouco fecha a escala em um ponto qualquer acima de zero, desativa inferências para baixo e permite inferências para cima;

b) as implicaturas: por que elas são disparadas com predicados de gosto pessoal como interessante e não com predicados escalares como alto? E o que dispara a implicatura, afinal de contas? As implicaturas podem ser explicadas pela semântica básica das expressões, já que pouco interessante de alguma forma acarreta que o grau em que o objeto apresenta a propriedade possa ser nenhum; e um pouco interessante exclui que o grau possa ser zero e acarreta a possibilidade de pelo menos um grau mínimo qualquer. Assim, as inferências são previsíveis a partir da denotação das expressões. O que pode explicar porque com adjetivos que denotam dimensões, como alto, bloqueiam a implicatura. Afirmar de um indivíduo que ele possui a propriedade ‘altura’ é afirmar que ele a possui pelo menos em algum grau, o que torna incongruente (na falta de expressão melhor) inferir de Tyrion é pouco alto, que o indivíduo seja baixo.

Todos os casos relevantes discutidos por Ducrot podem ser explicados via (a) e o esquema proposto em (3’). Os exemplos interessantes semanticamente, acredito, são o que pode ser considerado disparo de implicaturas e a Contradição do Preguiçoso. 1.2. Outros contrastes O objetivo desta seção é olhar para outros ambientes dentro da oração em que essas expressões podem ocorrer.5 O primeiro deles é o uso como diferencial. Diferenciais são expressões que modificam a distância entre os intervalos em que os indivíduos exibem uma propriedade gradual. No exemplo (16) muito modifica a distância entre o grau em que Sandor Clegane e Tyrion exibem a propriedade ‘ser alto’. Pouco e um pouco contrastam nesse ambiente, pois o primeiro não pode aparecer nessa posição estrutural. (17b) me soa interpretável, mas não é português coloquial como (16a) é. (16) Sandor Clegane é muito mais alto que Tyrion.

(17a) Jon é um pouco mais alto que Robb. (17b) ?Jon é pouco mais alto que Robb.

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Todos os exemplos a seguir foram elaborados por nós.

Guimarães (2007, p. 132) considera a modificação de mais por pouco possível6. Se for, temos então que nos perguntar o papel semântico que as expressões desempenham. Nos dois casos podemos inferir que Jon é mais alto que Robb. Além disso, elas também realizam a tarefa que os diferenciais executam nas sentenças comparativas, medir a distância em que os indivíduos exibem a propriedade. Na comparação canônica essa distância fica vaga, o diferencial, então, funciona para deixar mais específica essa relação – poderíamos usar algo ainda mais específico, como em Jon é dois centímetros mais alto que Robb. Interessantemente, veja-se que nesse caso, modificando um adjetivo, não há implicatura de atenuação alguma como há no exemplo (11) visto acima.7 Ainda, não vemos diferença entre as duas expressões, no par em (17), ambas soam como uma correção a uma afirmação prévia (18). Embora, (18B) me pareça mais natural que (18B’).

(18)

A: Jon é tão alto quanto Robb. B: Não, Jon é um pouco mais alto que Robb. ?B’: Não, Jon é pouco mais alto que Robb.

Por fim, podemos assumir que nesse caso elas são sinônimas ou meras variantes estilísticas, já que o uso de uma acarreta a outra e afirmar uma e negar a outra não produz contradição (cf. 19). Acreditamos que isso tenha a ver com o funcionamento semântico da comparação, que estabelece um mínimo e um máximo, e o que pouco/um pouco fazem é medir a diferença entre esses extremos. (19a) Jon é um pouco mais alto que Robb. → Jon é pouco mais alto que Robb. (19b) Jon é pouco mais alto que Robb. → Jon é um pouco mais alto que Robb. (19c) #Jon é um pouco mais alto que Robb, mas Jon não é pouco mais alto que Robb.

Um segundo contexto é dentro do sintagma nominal. Pires de Oliveira e Rothstein (2011) sugerem que um pouco seja um candidato a determinante que seleciona nomes massivos. Em (20-21) pouco e um pouco se comportam da mesma forma no que nos interessa, isto é, tomar como complemento um nome de massa.

6

Nesse estudo, o autor utilizou dados provenientes do corpus do VARSUL (Curitiba) e de sentenças coletadas em páginas da web. Portanto, podemos supor que o uso seja possível. 7 No universo de Game of Thrones, o seriado televisivo, Jon não é muito mais alto que Robb.

(20a) Quero um pouco de vinho. (20b) Quero pouco vinho.

(21a) Quero um pouco mais de vinho. (21b) (?)Quero pouco mais vinho.

Com nomes contáveis um pouco só é aceitável se o nome estiver no plural (22c) em contraste com (22b), embora aqui a restrição seja imposta pelo partitivo. A restrição do partitivo especifica que essas expressões só se combinam com sintagmas nominais definidos (JACKENDOFF, 1977), e em (22b) o nome menina é complemento da preposição de. Pires de Oliveira e Rothstein provavelmente diriam que (22b) é gramatical, dado que não veem problema algum com (23), exemplo dado por elas. Se (22b) é gramatical, então o problema desaparece e um pouco e pouco não fazem distinção entre massa e contável, como elas sugerem, a menos que o partitivo seja uma espécie de ‘grinder’ (ou triturador, i.e., um operador que torna nomes contáveis em massivos), o que suponho que elas não gostariam de dizer. De fato, um pouco de se combinar com nomes massivos ou contáveis sem determinação no português brasileiro mostra que a hipótese delas sobre a denotação dos nomes contáveis sem determinante está correta, ou seja, eles se parecem muito com os nomes massivos.

(22a) Tem pouca menina na festa. (22b) ?Tem um pouco de menina na festa. (22c) Tem poucas meninas na festa.

(23) João guardou um pouco de livro no armário.

Possivelmente existe algum fator de conhecimento de mundo interferindo na possibilidade de um nome contável ser modificado por um determinante gradual e produzir uma leitura de substância. Nomes para objetos e alimentos são facilmente tornados substâncias, ou nomes de massa, mas nomes que denotam entidades animadas parecem gerar efeito de grinding. Com um nome próprio temos uma leitura curiosa. (24) não pode ser interpretada como afirmando que existe uma quantidade da substância Roberta no texto. Na verdade, a sentença é verdadeira se formos capazes de identificar características no texto que sejam também características que a Roberta exibe em seus textos.

(24) Tem um pouco da Roberta nesse artigo.

Por sua vez, apenas pouco se combina com nomes plurais contáveis (25a) e (22c). Um pouco só modifica plurais definidos (25c), mas não singulares definidos (25d); nem nome plural sem determinante (25b). O que pode ser explicado novamente pela restrição do partitivo. Note que o problema não é apenas o predicado possuir indivíduos no seu domínio, coisa que o plural proporciona.

(25a) Rick matou poucos zumbis. (25b) *Rick matou um pouco de zumbis. (25c) Rick matou um pouco dos zumbis. (25d) *Rick matou um pouco do zumbi.

Algumas dessas diferenças poderiam ser explicadas considerando que pouco é um determinante, e os determinantes em português, até onde sabemos, não fazem restrição em relação à denotação do nome que modificam. Um pouco é um sintagma de medida, que pode ter leitura partitiva se combinado com um sintagma nominal definido, como em (25c), e, portanto, se nossa análise dessa expressão estiver correta, ele deve obedecer à restrição proposta por Jackendoff (1977) para essas construções, o que parece ser o caso. Por outro lado, se (23) é gramatical, o que explica a ocorrência de um nome sem determinante como complemento de um sintagma de medida? Pires de Oliveira e Rothstein (2011) argumentam que o nome contável sem determinante em português é um nome de massa. Assim, o problema se explica naturalmente, já que nomes de massa típicos, como em (20a) podem ser complementos da expressão sem problema. Isso pode ser um indício de que a restrição dos partitivos só se aplique ao domínio contável e não ao massivo. Um terceiro contraste entre as expressões pode ser visto no caso da modificação de outros intensificadores. Os exemplos em (26) nos mostram que apenas muito e bem podem modificar pouco; outros intensificadores são banidos, como demais, bastante, um monte etc.

(26a) Muito/bem poucos alunos foram bem na prova. (26b) #Ele bebeu muito/bem um pouco de vinho. (26c) *Bastante/demais/um monte poucos alunos foram bem na prova.

Se por um lado, no uso dentro do sintagma nominal, essas expressões poderiam ser caracterizadas como determinante, no caso de pouco, e sintagma de medida no caso de um pouco; nos demais usos um pouco está idiomatizado (ou gramaticalizado) e funciona como um intensificador típico. Mas se comporta próximo a muito, que resiste a ser modificado por outros intensificadores. No estudo de Guimarães (2007), apenas meio pode fazer esse papel, cf. Isso é meio muito.

(27a) *Pouco muitos alunos foram bem na prova.

O último caso a ser considerado é a possibilidade de as expressões serem usadas como predicados. Suponha o seguinte contexto: a quantidade de docinhos comprada para a festa de aniversário foi menor do que a desejável em relação ao número de convidados. Nesse cenário (28a) é um proferimento adequado, enquanto (28b) não.

(28a) Isso vai ser pouco. (28b) #Isso vai ser um pouco.

Alguma propriedade semântica poderia explicar isso? A resposta só pode ser negativa. Afinal, poderíamos imaginar uma situação em que há uma grande expectativa em relação ao lançamento de um filme e no final ele se revela menos interessante do que o previsto. Nessa situação poderia se afirmar que O filme foi um pouco chato, sem problema algum. Acredito que o problema reside em outro fator. Como um pouco é uma expressão que está se gramaticalizando como advérbio de intensidade, é natural que ainda não ocupe todos os espaços sintáticos que as expressões de intensidade típicas como muito e pouco ocupam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O conjunto de problemas pode ter resumido na tabela 1 abaixo:

Tabela 1 - Problemas Contexto Dispara implicatura com adjetivos Gera a Contradição do Preguiçoso Uso como diferencial Modificando um nome massivo Combinação com o mais-conjunção Modificando nome contável singular sem determinante Modificando nome contável plural Combinação com muito e bem Uso como predicado

Um pouco ok ok ok ok ok ok ok * *

Pouco ok * (ok) ok (ok) ok ok ok ok

Além dos problemas listados acima, temos o problema dos modificadores: por que só muito e bem podem modificar pouco? Outra questão que merece um olhar mais cuidadoso é a hipótese levantada por Pires de Oliveira e Rothstein (2011), que afirmam que um pouco seleciona nomes massivos. Na proposta delas o contável singular em PB denota sempre espécie e a raiz é um nome de massa. Vimos que um pouco não modifica plurais contáveis nus, a menos que esse nome seja definido. A única restrição sobre o predicado que as expressões modificam é aquela usual para modificadores graduais, a Restrição de Monotonicidade: expressões de medição só podem modificar predicados com estrutura interna (SCHWARZSCHILD, 2002; NAKANISHI, 2007). O que explica que predicados singulares, como os ‘achievements’ (eventos pontuais), gerem sentenças degradadas, como atesta (29d).

(29a) João correu pouco/um pouco.

[atividade]

(29b) Eu gosto pouco/um pouco de The Walking Dead.

[estado]

(29c) João construiu pouco/um pouco a casa.

[evento prolongado]

(29d) #A bomba explodiu pouco/um pouco.

[evento pontual]

Guimarães (2007) propôs que quantificadores e intensificadores são expressões que atuam semanticamente da mesma forma. Nesse sentido, deveríamos esperar que não houvesse diferença entre pouco e um pouco, ou que houvesse expressões especializadas apenas para um domínio. Claro, essa afirmação precisa ser relativizada em relação aos determinantes vagos, pelo menos, e excluída se consideramos os determinantes que denotam quantidades específicas, como um, algum, todos etc. Muito, pouco, bastante e demais se enquadram nessa hipótese. Comparando pouco e um pouco, temos o seguinte quadro resumido na tabela 2. Dessa ilustração vemos que um pouco e pouco não possuem a mesma distribuição semântica. Um

pouco não recobre com exatidão os mesmos contextos de uso dentro da oração que podem ser preenchidos por pouco. Isso evidencia que, se a hipótese feita sobre gramaticalização estiver correta, um pouco ainda está se consolidando como um intensificador, e apenas com o passar do tempo irá desempenhar todas as funções dos advérbios de intensidade típicos. Tabela 2 - Pouco e um pouco nos diferentes domínios Domínios Pouco um pouco Domínio nominal ok ok Domínio verbal ok ok Domínio adjetival ok ok Domínio adverbial ok (*) Uso como predicado ok * Como vimos, esse quadro precisa ser qualificado em alguns aspectos, já que essas expressões fazem seleção semântica: a) no domínio nominal o nome precisa ser massivo ou plural; b) no domínio verbal: o verbo precisa ser um predicado de estado ou de eventos; c) no domínio adjetival: o adjetivo tem que ser gradual; d) no domínio adverbial: o quadro nos parece ainda confuso e nada nítido e não parece haver nenhuma generalização possível de ser feita, por ora. REFERÊNCIAS CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Trad. L. A. Pagani, L. Negri e R. Ilari. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Londrina, PR: EDUEL, 2003. DUCROT, Oswald. “Pouco” e “um pouco”. In: _____. Princípios de semântica linguística. São Paulo: Cultrix. 1977. p. 202-231. GUIMARÃES, Márcio Renato. Dos intensificadores como quantificadores: os âmbitos de expressão da quantificação no português do Brasil. Tese (Doutorado em Linguística). UFPR, Curitiba, 2007. GRICE, H. P. Logica e conversação. In: DASCAL, M. (org.). Fundamentos metodológicos da linguística: pragmática. Campinas, SP: edição do autor, 1982. p. 81-103. HEIN, Irene; KRATZER, Angelika. Semantics in generative grammar. Oxford: Blackwell, 1998. JACKENDOFF, Ray. X-bar syntax. Cambridge: MIT Press, 1977. LEVINSON, Stephen. Pragmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007. NAKANISHI, Kimiko. Measurement in the nominal and verbal domains. Linguistics and Philosophy, n. 30, 2007, p. 235-276. PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; ROTHSTEIN, Susan. Bare singular nouns are mass in Brazilian Portuguese. Lingua, 121, 2011, p. 2153-2175. SCHWARZSCHILD, Roger. Grammar of Measurement. Proceedings of SALT XII, 2002, p. 222-245.

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