Sobre alguns conceitos de Quentin Meillassoux

July 6, 2017 | Autor: Francisco Trento | Categoria: Philosophy, Quentin Meillassoux, Contingency
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Sobre alguns conceitos de Quentin Meillassoux12 Nota-se que o Realismo Especulativo é uma corrente filosófica internamente muito heterogênea, que se estabelece através de uma “série de posicionamentos filosóficos que compartilham uma resistência geral ao que Quentin Meillassoux chama de correlacionismo” (ELMORE, 2015 in ENNIS; GRATTON, 2015, p. 159). Duas novas obras com tradução em inglês refletem um pouco sobre os conceitos que se apresentam como o cerne de sua ontologia, Time Without Becoming, uma conferência que pode ser vista como uma versão resumida das teses apresentadas em After Finitude, e o Meillassoux Dictionary. Em resumo, Quentin Meillassoux (2014, Kindle Loc. 68), membro da primeira leva de intelectuais do que ficou convencionado como o Realismo Especulativo disserta que o correlacionismo, operante na Filosofia Transcendental, em algumas correntes da Fenomenologia e do Pós-Modernismo, estipula uma “decisão mais ou menos explícita: de que não há objetos, eventos, leis ou entes que não estão sempre correlacionados com um ponto de vista, um acesso subjetivo” (MEILLASSOUX, 2014, Kindle Loc. 69). Não trata-se de uma utopia pensar fora da linguagem ou da cultura, mas de admitir que é possível especular sobre o Real, o absoluto e os sistemas de agência que atuam nele, ou melhor, sobre os traços que apreendemos dele em nossas

redes de significação e linguagem. Seguindo a

tradição por ele criticada, ao pensar em um “x”, pensamos sempre que “x” é um correlato do ato de pensar” (MEILLASSOUX, 2014), que não admite a existência de um fora do sujeito e de seu acesso ao objeto, ainda que cognitivamente impraticável. O problema, entretanto, não parece ser apenas esse, mas sim de um ceifar constante de qualquer possibilidade de especular sobre esse Real, já que o correlacionismo contemporâneo “não diz dogmaticamente que há um ente em si mesmo, mas que não é possível dizer nada sobre ele, nem mesmo se existe” (MEILLASSOUX, 2014, Kindle Loc. 100). As críticas a Meillassoux em grande                                                                                                                 1

Havia escrito uma parte deste artigo como item na tese nigrum speculis – comunicação como agenciamento, que desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP. Com uma virada spinozana que tomei, passei a observar de outra maneira a ontologia de Meillassoux. Mas esse talvez seja um assunto para o futuro. 2 Publicado no blog TRANSOBJETO, em https://transobjeto.wordpress.com/2015/07/14/sobrealguns-conceitos-de-quentin-meillassoux1/#more-721.

 

parte são calcadas no fato de ele supostamente fazer uma contradição performativa, ao falar que é possível falar de um fora estando dentro (da cultura, linguagem, etc.) e que a Matemática fosse de alguma maneira isenta desses dispositivos. Meillassoux nesse ponto é fiel a Descartes. Meillassoux defende em sua jornada anti-correlacionista dois pontos. O primeiro é o problema do Arqui-Fóssil (arche-fossil). Seria um “material indicando 1⁠

traços de um fenômeno ancestral, anterior mesmo à emergência da vida. Eu chamo de “ancestral” uma realidade – uma coisa ou evento – que existiu antes da vida.” (MEILLASSOUX, 2014, Kindle Loc. 126). Desta forma, seria possível especular, seja através das ciências ou da Matemática dos sistemas de conjuntos transfinitos de Georg Cantor, a existência de um absoluto na qual a agência não-humana ou ⁠2

mesmo não-vitalista opera, ou como diz o próprio autor, sustentar a existência de um absoluto, “uma realidade totalmente separada do sujeito, [...] que pode ser pensada pelo sujeito”. (MEILLASSOUX, 2014, Kindle Loc. 115). Quando a ciência fala sobre big-bangs, explosões de Supernovas que aconteceram há bilhões de anos, presumidamente antes da existência humana e de isótopos radioativos cuja vida é maior do que todo o período em que é cientificamente dito que há vida na terra, estaria enunciando algo sobre esse absoluto inatingível, suas características primárias. O correlacionismo falha, em teoria, porque “como alguém daria sentido à ideia de um tempo que precede o sujeito, consciência, Dasein, um tempo no qual a subjetividade ou o estar-no-mundo ele mesmo emergiu e que provavelmente desaparecerá com a humanidade e a vida terrestre, se alguém faz do tempo e do mundo visível a estrita correlação dessa subjetividade?” (MEILLASSOUX, 2014, Kindle Loc. 136). O outro argumento de Meillassoux é o Princípio da Factialidade, a necessidade de Facticidade e da contingência. A partir da explanação do teorema matemático de Cantor, o filósofo francês articula a enunciação da existência de um absoluto transfinito, porém contingente, ou seja, como se um dado infinito de possibilidades sempre pudesse é jogado no hiper-caos (hyper-chaos), o Real sobre o qual só podemos especular onde reina um caos anárquico de relações e agências, no qual apenas o tempo operaria com as infinitas possibilidade que não garantiriam nenhuma estabilidade (se traçamos leis físicas que funcionam, não é porque elas são fixas, mas porque estão assim, e podem mudar a qualquer instante conforme as combinações não contraditórias de agência-intermaterial, não causal, contingente,

dominado pela não-razão, o “atributo do tempo absoluto capaz de destruir qualquer entidade determinada sem razão para criação ou destruição” (MEILLASSOUX, 2014, Kindle Loc. 324). Uma aproximação leviana e forçada (e que talvez esteja mais relacionada à filosofia budista ou a ideia do eterno retorno de Nietzsche) pode ser relacionar essa concepção de tempo como ente que joga os dados caóticos dos eventos à fala presente em um depoimento do personagem Rust Cohle em True Detective (HBO, EUA, 2014-), seriado com forte inspiração metafísica, na qual ele explica como a morte - o Ser como morte, aquilo que não se desvela para nós em vida, o absoluto estático para além das dimensões perceptíveis pelos humanos – criou o tempo para que em seu movimento circular fossem desenrolados os eventos e agenciamentos que a livrariam [a morte] do tédio. Na eternidade, onde não há tempo, nada pode crescer. Nada pode devir. Nada muda. Então, a morte criou o tempo para crescer as coisas que iria matar… e você renasce sempre na mesma vida em que já nasceu. Eu quero dizer, quantas vezes já tivemos essa discussão, detetives? Bem, quem sabe? Quando você não consegue se lembrar de suas vidas, você não pode mudar suas vidas, e isso é terrível e o destino secreto de toda vida. Você está encurralada… como um pesadelo no qual você sempre vai acordar e continuar acordando (Tradução nossa, com modificações)⁠3

O tédio e a eterna repetição são dois elementos que aparecem na filosofia de Meillassoux quando ele disserta sobre a possibilidade ou não de Deus. Em sua tese de doutorado, A Inexistência Divina, o autor sustenta que um Deus não é um ente necessário, porém, pode ser criado de maneira contingente a partir do Ser caótico que tem poder de criação mesmo que altere as leis físicas e biológicas e que nesse futuro possível tem a possibilidade de trazer de volta à vida todos os entes que já estiveram no mundo e fazer com que os já existentes tornem-se imortais, vivendo em uma espécie de sociedade comunista. Desloca-se do pensar a necessidade para pensar a contingência. No caso da primeira, discute-se, deve haver ou não um Deus? Pensar a contingência é pensar a onipotência do caos e Deus como eterna possibilidade. A esses pressupostos, o filósofo também traz um posicionamento ético: nenhum Deus benevolente poderia ter matado todos os que foram mortos injustamente, e tampouco a absoluta descrença na possibilidade da existência de um Deus traria essas pessoas de volta. Através do único princípio que ele diz ser necessário, o da “desrazão [do Absoluto]” (DUDLEY, 2015 in ELLIS; GRATTON, 2015, p. 120) poderia haver a emergência desse ente. Entretanto, desenvolve-se outro problema, já que, recorrendo a Nietzsche e a eterna

recorrência ele afirma que “o que sustenta o seu Niilismo [de Nietzsche] não é a morte, mas um tédio e uma vida que durem para sempre” (ELLIS; GRATTON, 2015, p. 18) Se ainda assim pensarmos nessa circularidade e na possibilidade de repetição dos eventos, podemos recorrer à Quadrat, de Beckett, que entretanto 4⁠

parece exprimir uma impossibilidade de descrição ou tradução dos eventos que se passam na ausência dos humanos, mas na presença dos arché-fosseis. O que vemos são quatro seres caminhando, entrando e fazendo movimentos em torno de um quadrado quatro vezes cada um ao som de música africana. Ao se esgotarem todas as possibilidades matemáticas, os indivíduos se retiram do espaço enegrecido e se passam cem mil anos. O tempo entre as durações foi enunciado pelo próprio Beckett fora do texto da peça televisiva durante os ensaios. Na segunda interação, voltam os mesmos personagens, com vestes brancas, e esgotam novamente todas as possibilidades de movimento naquele espaço (que parece ser governado por leis que só permitem movimentos e afetos em ciclos de quatro). A peça termina aí. Nota-se que toda a estrutura desse mundo ficcional foi pensada de forma matemática, e inclusive o interregno entre um domínio humano e outro pode ser quantificado, cem mil anos, mas o período em si, que especulamos ser sem a presença das consciências humanas, não pode ser simbolizado ou intuído, restringindo-se àquele que pode ser correlato ao pensar representacional daquelas criaturas. Trata-se apenas de uma especulação e uma leitura correlacionista que a própria especulação beckettiana é certamente capaz de negar, mas nos ajuda a pensar a forma como Meillassoux aborda o correlacionismo. Em outras palavras, o que Meillassoux acredita é que “podemos identificar as possibilidades mais prováveis definindo o que está faltando na atual configuração [de mundos], e essas possibilidades é que são o domínio do filósofo especulativo” (ELLIS; GRATTON, 2015, p. 14). Um trabalho que poderia ser feito é comparar a ontologia da contingência de Quentin Meillassoux que pode produzir um Deus imanente com a ontologia da necessidade de Deus de Spinoza. Enquanto o primeiro afirma que só é possível a contingência, o segundo afirma que Deus, o mesmo que a natureza (Deus siva Natura) é a única substância existente, as relações de causalidade que ocorrem entre os corpos dessa natureza são necessárias; o que não significa que não exista liberdade. Para o filósofo holandês, a liberdade se dá no próprio fato de, havendo só

uma substância, ela não poder ser determinada por nada exterior, tudo acontece em um plano de imanência. Nela se desenvolvem apenas as relações imanentes e necessárias entre os entes. Ter a razão é ter noção das cadeias de causalidade que levam à produção de eventos ou encontros de corpos necessários, nada acontece por acaso na ontologia spinozana. Não é da natureza da razão contemplar as coisas como contingentes, mas como necessárias. (SPINOZA, 2014c, p. 179; Ética 2, proposição 44)

Toda essa tarefa exigiria uma nova pesquisa. Vale lembrar também as críticas e comentários feitos sobre Meillassoux por Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski em Há Mundo por Vir: Ensaios sobre os meios e os fins são extremamente válidas, já que o que parece segundo a crítica é que o filósofo francês, ao tentar ressaltar a matéria-morta como única do pensar o não-pensar, se reinsere em um subjetivismo antropocêntrico, dentro do qual é difícil pensar a urgência das relações materiais que emergem no Antropoceno; como pensar um mundo se não houver mais um mundo a ser pensado, seja para os homens ou outros entes viventes?: Concordamos com Shaviro (op.cit.) quando ele observa que a suposição de Meillasoux e Brassier de que a matéria, para poder existir em si (fora da correlação), deva ser inerte e "morta, termina por reintroduzir o excepcionalismo humano que, justamente tratava-se de eliminar. A decisão anti-antropocêntrica na raiz dessas duas versões do "mundosem-nós" revela-se, no final das contas, totalmente obcecada pelo ponto de vista humano. Tudo se passa como se a negação deste ponto de vista fosse um requisito de que o mundo necessita para existir – curioso idealismo negativo, estranho subjetalismo cadavérico. (O anti- vitalismo mais abrangente defendido pelos autores, que fundaria tal antiantropocentrismo, parece assim ser sobretudo uma medida de precaução, um gambito tático que garanta a neutralização do que realmente incomoda metafisicamente, a saber, a vida "tal qual observamos" por dentro – a experiência humana, hipervalorizada pelo cuidado mesmo com que se a invalida.) Mas um antropocentrismo às avessas ainda é um antropocentrismo, talvez mesmo o único antropocentrismo realmente radical, assim como os europeus queimadores de ídolos eram os únicos fetichistas na grotesca comédia de erros colonialistas, ao acreditarem na irrealidade dos fetiches do mesmo modo como acreditavam – irrealisticamente, que os "selvagens" acreditavam na realidade dos mesmos. (Latour, 1996). (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 52)

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Conferir o texto de Brian Massumi (2015a, p. 95) para uma boa crítica ao modo como Quentin Meillassoux estabelece o problema do correlacionismo na filosofia. 2 A operação feita por Meillassoux para o acesso às características primárias dos entres vale mão de uma forma de pensar que presa as ciências matemáticas como uma ontologia possível de acesso ao Absoluto Hiper-Caótico e criador dos entes. Destacamos que duas frentes atuam nesse modo de pensar, um Materialismo – “O Ser é materialmente independente de nós” (ENNIS; GRATTON, 2015, p. 4) e uma forma de Racionalismo, que é possível pensar sobre essa Absoluto não relacionado ao próprio pensar através da Matemática. O Absoluto Hipercaótico mesmo atuando sobre um princípio de desrazão criando entes sem qualquer subordinação hierarquia ou regras, deixaria como traço comum a todos os mundos e universos possíveis e atuais que ele produz um conjunto de impossibilidades de contradição que pode ser matematizável e aplicado a cada um desses mundos. Meillassoux exalta a superação da finitude por essa matemática devido ao infinito matemático, a possibilidade de hierarquias transfinitas entre conjuntos infinitos, porém, uns maiores que os outros; em contrapartida a um infinito não-aumentável, que corresponderia a Deus. Nota-se a inspiração clara a partir de Alain Badiou e sua obra Ser e o Evento nas teses de seu discípulo. 3 “In eternity, where there is no time, nothing can grow. Nothing can become. Nothing changes. So death created time to grow the things that it would kill... and you are reborn but into the same life that you've always been born into. I mean, how many times have we had this conversation, detectives? Well, who knows? When you can't remember your lives, you can't change your lives, and that is the terrible and the secret fate of all life. You're trapped... like a nightmare you keep waking up into.” 4 Cf. também os textos de Gilles Deleuze que apresentaram a peça na televisão francesa dos anos 1990, em especial, Sobre o Teatro.

BIBLIOGRAFIA GRATTON, Peter; ENNIS, Paul. J.. The Meillassoux Dictionary. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2015. MASSUMI, Brian. “The Crannies of the Present”. In: GRANT, Stuart; MCNEILLY, Jodie; VEERAPEN, Maeva (orgs.). Performance and Temporalisation: Time Happens. Palgrave Macmillan, 2015a. MEILLASSOUX, Quentin. Time Without Becoming. Edited by Anna Longo. Milão: Mimesis International, 2014. [Versão para Kindle]. SPINOZA, Baruch. Obra Completa IV: Ética e Compêndio da Gramática Hebraica. São Paulo: Perspectiva, 2014. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Deborah. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Instituto Sócio Ambiental (ISA); Cultura e Barbárie, 2014.  

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