Sobre as “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”

July 23, 2017 | Autor: Paulo Lousinha | Categoria: História da arte
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CULTURA ARTÍSTICA CONTEMPORÂNEA E EXPOSIÇÕES DE ARTE

Sobre as “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”1 A passagem de Alberto Carneiro no final da década de 60 por Londres2, depois da sua formação na Escola de Belas-Artes do Porto, colocou-o no epicentro “(...) da eclosão da arte conceptual e na partilha da atracção que viveram os jovens artistas ingleses pela natureza como matéria e tema da arte.”3 O texto “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”, escrito entre Dezembro de 1968 e Fevereiro de 1972, assimila essa experiência londrina do artista. Como alerta João Fernandes, convém não confundir esta notas de Carneiro, com uma qualquer denominação politicamente correcta que viva da vulgarizada inclusão da palavra “ecologia”.4 Trata-se antes, na opinião do mesmo, de um programa relacional: “(...) a relação consciente dos significantes na ordenação de uma crítica profunda sobre os significados que virão, depois, como autenticidade das relações com o mundo.”5 O trabalho deste artista resulta de uma experiência pessoal de relacionamento com a natureza. Por isso, escreve Carneiro, “A arte ecológica será o renascer duma alegria natural no encontro com a natureza renovada e já infinitamente próxima: obra em mutação na consciência do inconsciente dum tempo distante e outra vez nominada na posse de sensações estéticas futura e naturezamente reversíveis.”6 Nascido e educado em meio rural, a revisitação aos lugares da infância são recorrentes na obra de Alberto Carneiro, ou seja, “A comunicação criadora autentica-se no âmbito do inconsciente, através das memórias mais profundas do ser e que são, afinal, o fulcro das actividades quotidianas.”7 Se como afirma Javier Maderuelo, a obra de Alberto Carneiro surgiu como resquício da tensão aberta com a passagem do minimalismo à land art, o seu trabalho seminal “O Canavial: Memória metamorfose de um corpo ausente”, pode muito bem sintetizar as suas “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”. Mais que uma instalação realizada com canas, “O Canavial” é um trabalho conceptual, cujo projecto se resume numa folha de papel A4 quadriculado. Para Maderuelo, o registo de esquemas, desenhos, códigos e textos, afastam este projecto de ser um mero esboceto com instruções para a montagem da instalação, convertendo-se numa obra em si mesmo, cuja existência não depende necessariamente da sua construção posterior.8 Mas ainda mais significativo acaba por ser o texto no canto inferior direito sob o qual data - 12 de Dezembro de 1968 - e assina o projecto: “Da minha infância guardei as

Alberto Carneiro, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica” (Dezembro 1968 / Fevereiro 1972), in Alberto Carneiro-Exposição Antológica. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 62. 1

No ano de 1968, Alberto Carneiro conseguiu uma bolsa para realizar uma pós-graduação de dois anos na prestigiada Saint Martin's School of Art, onde acabavam de concluir a sua formação Barry Flanagan, Gilbert Proesch e George Passmore (Gilbert & George), Richard Long e Hamish Fulton. 2

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Javier Maderuelo, Caminos de la Escultura Contemporánea. Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 2012, p. 267. Ver texto de João Fernandes no catálogo Alberto Carneiro, Centro Galego de Arte Contemporánea, Xunta de Galicia, 2001. (fonte: http://www.fe-e-arte2012.com/albertocarneiro.html) 4

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Alberto Carneiro, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”, op. cit., p. 62.

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Alberto Carneiro, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”, op. cit., p. 62.

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Alberto Carneiro, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”, op. cit., p. 62.

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Javier Maderuelo, Caminos de la Escultura Contemporánea, op. cit., p. 269.

Paulo Adriano Vieira Lousinha











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horas de encantamento das correrias pelos campos (as flores e os frutos roubados, os gorjeios dos pássaros, a erva imensamente verde, o passar do ribeiro e o sentir de um corpo deitado no canavial).” 1. Alberto Carneiro, “O Canavial”, desenho-projecto, 1968; Grafite sobre papel milimétrico, 21 x 29,5 cm

" Para além do carácter conceptual de “O Canavial”, a obra física de Carneiro é o testemunho material de um acto reflexivo, como mostra da introspecção do artista com a natureza. Carneiro compreende a natureza a partir da experiência do seu próprio corpo, através dos impulsos dos sentidos. E esse é um desafio também para o espectador, obrigado a interagir, nesta obra em particular, para responder à pergunta “Somos um corpo no canavial ou o canavial é o nosso corpo?” Com Alberto Carneiro, a relação do corpo com o espaço, com o tempo e com a matéria é uma referência permanente a Gaston Bachelard: “Encontrei-o através das minhas vivências com a matéria, no prolongamento das minhas reflexões, na definição de uma poética que me tinha chegado mais pelo sentir e que encontrou nele a formulação teórica.”9 Não sendo indiferente às experiências da land art, muito do seu trabalho na década de 70 foi realizado fora do atelier, numa relação de proximidade com a natureza, a paisagem e o meio físico que o viu nascer. Com a obra “Os sete rituais estéticos sobre um feixe de vimes na paisagem”, de 1975, Alberto Carneiro estabelece um diálogo entre o mundo rural e os espaços urbanos da arte, ou seja, entre a natureza e a arte. Este trabalho afinal, mais não é que a materialização de uma das suas notas: “Consciência do atrofiamento que os factores urbanos e culturais exercem sobre a alegria mais profunda do ser, na ausência de uma intimidade com a natureza, a arte ecológica virá repor na memória das sensações estéticas os valores que da terra no homem se definiram e estruturaram na sequência dos tempos.”10

Alberto Carneiro, “Das Notas para um Diário” (9 de Maio de 1965), in Alberto Carneiro-Exposição Antológica. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 41 9

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Alberto Carneiro, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”, op. cit., p. 62.

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Segundo Javier Maderuelo, apesar da aparente simplicidade desta obra de Carneiro, o seu propósito e significados são muito ricos. Para este autor, o feixe de vimes funciona como um marco ao redor do qual o artista procura estabelecer relações estéticas com a envolvente imediata.11 Esta relação de proximidade entre território e paisagem revela uma consciencialização do artista pela valor estético do trabalho do camponês. Tal como Adolf Loos,12 também Alberto Carneiro é sensível à estética do camponês, que manifesta uma capacidade artística isenta de vícios culturais. Uma das coisas que chama à atenção nos trabalhos de Carneiro é a contínua referência às árvores, tanto em títulos e textos como em desenhos e fotografias: “Nós não afirmaremos que uma árvore é uma obra de arte. Nós apenas diremos que poderemos tomá-la e transformá-la em obra de arte.”13 Não há pois na obra de Alberto Carneiro vontade de representação mas sim de transformação. Desde a mítica cabana primitiva, ilustração clássica da origem da arquitectura, que o homem coabita com a árvore e a utiliza para criar objectos. Carneiro ao esculpir os troncos seguindo os veios naturais dá uma nova vida simbólica ao que já só seria madeira. O material que só aspiraria a ser utensílio, volta a ser árvore ao ser transformado em obra de arte. Para Maderuelo, este jogo de transformações não é unidireccional, mas claramente dialéctico. O encontro de Alberto Carneiro com a natureza é uma simbiose. Não uma projecção psicológica, mas uma transferência de personalidade: “Falaram de valores de erotismo acerca da minha última escultura em madeira; disseram mesmo: a madeira parece carne. Não sei o que seja erotismo; mas se for a identidade profunda entre um corpo, o meu, e outro corpo, o da árvore, até à exaustão da posse e da simbiose, eu direi que esse será um conceito justo para dizer o que se passou nos momentos da criação.”14


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Javier Maderuelo, Caminos de la Escultura Contemporánea, op. cit., p. 274.

No seu texto “Arquitectura”, de 1910, Adolf Loos usa a parábola do elogio à casa de montanha do camponês, para criticar o arquitecto viciado nos modelos ornamentais dos livros das bibliotecas das escolas de artes decorativas, que como quase todos os habitantes da cidade, diz, não tem cultura. Faltalhe a segurança do camponês, cuja cultura resulta do equilíbrio entre o o interior e o exterior do ser humano, capaz de assegurar um modo sensato de pensar e actuar. 12

13

Alberto Carneiro, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica”, op. cit., p. 62.

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Alberto Carneiro, “Das Notas para um Diário” (14 de Março de 1965), op. cit., p. 40.

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Referências CARNEIRO, Alberto, “Das Notas para um Diário” (8 de Dezembro de 1964), in Alberto Carneiro-Exposição Antológica. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 40-41. CARNEIRO, Alberto, “Notas para um Manifesto de Arte Ecológica” (Dezembro 1968 / Fevereiro 1972), in Alberto Carneiro-Exposição Antológica. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 62. MADERUELO, Javier, Caminos de la Escultura Contemporánea. Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 2012. Imagem 1. Alberto Carneiro, “O Canavial”, desenho-projecto, 1968 Fonte: http://fladarte.addition.pt/listObras.jsp?id_obra=542

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