Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

June 1, 2017 | Autor: P. Pereira Guimarães | Categoria: Political Philosophy, Social Contract Theory, Thomas Hobbes, Jean Jaques Rousseau
Share Embed


Descrição do Produto

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau1 On human passions in Thomas Hobbes and Jean-Jacques Rousseau Pedro Augusto Pereira Guimarães2 Resumo: O objetivo deste artigo é analisar e comparar a teoria das paixões humanas em Thomas Hobbes (1588-1679) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Se, por um lado, Rousseau tece elogios a Hobbes no que concerne à soberania, por outro, ele o confronta diretamente no que diz respeito às paixões humanas. Em Hobbes os homens naturalmente se encontram subjugados por um périplo de paixões, e, diante da irregularidade das paixões, a guerra é inevitável. Daí, Hobbes concebe o Estado com um poder irresistível para que os homens atuem não seguindo apenas as paixões, mas também a razão. Em Rousseau, as únicas paixões naturais são o amour de soi-même e a pitié, as paixões que geram a guerra entre os homens só existem em sociedade. Portanto, Hobbes não poderia ter deduzido a ordem política dessa concepção de natureza humana. O pormenor é que tanto em Rousseau quanto em Hobbes a vida cívica seria impossível sem as paixões. Palavras-chave: Estado. Hobbes. Paixões. Rousseau. Abstract: The purpose of this article is to analyze and compare the theory of human passions in Thomas Hobbes (1588-1679) and Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). If on the one hand, Rousseau weaves praise to Hobbes regarding the sovereignty, on the other hand faces Hobbes directly with respect to human passions. In Hobbes man are naturally subjugated by a tour of passions, and, on the irregularity of the passions the war is unavoidable. Hence Hobbes conceives the State with an irresistible power that man act not only following the passions, but also the reason. In Rousseau, the only natural passions are the amour de soi-même and pitié, the passions that cause war between men only exist in society. Therefore, Hobbes couldn’t have deduced the political order from this conception of human nature. The detail is that both in Rousseau as in Hobbes the civilian life would be impossible without the passions. Keywords: Hobbes. Passions. Rousseau. State.

*** Introdução

Quando falamos de Hobbes e Rousseau, a comparação compartilhada pelo senso comum é a mesma que foi feita por Diderot em seu artigo intitulado Hobbesianismo ou Filosofia de Hobbes: 1

O presente artigo foi apresentado pela primeira vez como uma comunicação proferida durante o I Congresso Nacional Jean-Jacques Rousseau: Idiossincrasias e Diálogos – realizado entre os dias 08/04/2014 e 11/04/2014 na cidade de São Luís-MA. Posteriormente foi modificado e aperfeiçoado até encontrar sua forma final de artigo. 2 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal de São João Del Rei - UFSJ. Orientador: Prof. Dr. Fabio de Barros Silva. E-mail: [email protected]

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau A filosofia de Rousseau de Genebra é quase o inverso da de Hobbes. Um crê que o homem da natureza é bom, e o outro o crê mau. Segundo o filósofo de Genebra, o estado de natureza é um estado de paz; segundo o filósofo de Malmesbury, trata-se de um estado de guerra. Foram as leis e a formação da sociedade que tornaram o homem melhor se acreditarmos em Hobbes; e que o depravaram, se acreditarmos em Rousseau. Um tinha nascido no meio do tumulto e das facções; o outro vivia na sociedade mundana entre os sábios. Outra época, outras circunstâncias, outro filósofo (DIDEROT, D’ALEMBERT, 2006, p. 189).

Como observa Derathé (2009), essa comparação é um tanto simplista e provavelmente foi escrita antes da publicação Do Contrato Social [1762]. Afinal, o ponto central de convergência entre os dois autores está na teoria da soberania desenvolvida pelo genebrino no contrato. Se o principal ponto de convergência entre Hobbes e Rousseau é a teoria da soberania, o principal ponto de divergência é, de fato, a concepção de natureza humana, principalmente no que concerne às paixões, e a maneira como deduzem dela a ordem política. Em Hobbes, a centralidade do tema das paixões humanas está explícita no próprio título de sua maior obra: Leviathan [1651-1670]. Leviatã é um monstro da mitologia hebraica descrito no livro de Jó, capítulo 41, como um monstro enviado por Deus para reinar sobre os filhos do orgulho, feito para não temer e ser temido. Em Rousseau, o tema está inserido no problema da desnaturação. A passagem de um estado apolítico (estado de natureza) para um político (sociedade política) se deu ao acaso, tendo como resultado o homem subjugado pelas formas corrompidas do amour-propre agravando ainda mais o quadro de injustiça e ilegitimidade da sociedade política nascente. O homem natural, para Hobbes, não é naturalmente mau como afirmam: é de fato não sociável. Como o critério que definirá o moralmente correto e incorreto são as leis positivas, não podemos julgar o homem natural como mau. O que o filósofo de Malmesbury afirma é que, diante da irregularidade das paixões, a guerra entre os homens é inevitável. O genebrino, por sua vez, afirma que as paixões que geram a guerra são paixões artificiais. As únicas paixões naturais são o amour de soi-même (amor de si mesmo) e a pitié (piedade). Portanto, a guerra não pode existir entre os indivíduos isolados, mas sim entre os Estados, no âmbito das relações internacionais.

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

105

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

O pormenor é que, para os dois autores, a vida cívica seria impossível sem as paixões.

Thomas Hobbes

Norberto Bobbio (1991), em sua célebre obra intitulada Thomas Hobbes, afirma que Hobbes concebe o Estado como um remédio para a natureza corrompida do homem, em que o indivíduo não é caracterizado pelo pecado, mas pelas prepotentes paixões, e que é tarefa da filosofia descrever e classificar as paixões tal como se descrevem e classificam as partes do corpo. Bobbio (1991) e, convergentemente, Leo Strauss (2009) reconheceram o Estado hobbesiano não como um aniquilador das paixões que valoriza apenas o lado racional do homem, mas sim como um disciplinador das paixões. As paixões são descobertas pelo método introspectivo “looketh into himself” (olhando para si mesmo). Como comenta Glen Newey (2014), a maneira de satisfazer as paixões é pelas leis da razão natural, com a qual deduzimos teoremas (natural laws) que demonstram o que é mais útil para nossa preservação. A descrição e a classificação das paixões são feitas por Hobbes principalmente no sexto capítulo do Leviatã3. Para Hobbes, os objetos não possuem valor intrínseco. Além disso, o critério que irá determinar as ações como moralmente corretas e incorretas são as leis positivas. O estado de natureza é, portanto, amoral. Quando os objetos são percebidos pelos sentidos, provoca um movimento nos órgãos e partes inferiores do corpo do homem denominado sensação. Diante da experiência, e da comprovação desse efeito sobre si mesmo e sobre os outros, é derivado um sentimento de desejo e aversão. Por conseguinte, as ideias de bom e mal estão intrinsecamente relacionadas a esse sentimento de desejo e aversão: bom é aquilo que desejo provocando a aproximação, e mal é aquilo pelo que sinto aversão, provocando o afastamento. Hobbes define desprezo como imobilidade. Ou seja, diante daquilo que não desejamos nem odiamos, sentimo-nos indiferentes e nos mantemos imóveis. Nos Elementos, Hobbes (2005) comenta que o conatus é o começo interno do movimento animal, identificando o conatus com as paixões: “nossos apetites nos inclinam a agir e nossos medos nos impedem de prosseguir” (SKINNER, 2010, p. 39). 3

Também em Elementos da lei natural e política capítulo IX e Leviatã capítulo XI.

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

106

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

Entre as paixões destacadas por Hobbes estão a (van)glória, o medo e a esperança. O homem tem necessidade de ter sua estima reconhecida pelo outro, e eventualmente atribui a si mesmo qualidades e atributos que nem sempre possui: é isto que Hobbes chama de vanglória. Quando esse reconhecimento que o homem tanto deseja lhe é negado, seu orgulho é ferido, germinando o sentimento de vingança. Bobbio (1991) comenta que a glória é uma espécie de testemunho da natureza egoística do homem que ama suas próprias capacidades. A glória acompanhada do interesse torna o homem um ser não-sociável, que busca na companhia dos outros satisfazer seu desejo de honra e bens materiais. No décimo terceiro capítulo do Leviatã, Hobbes identifica a glória como uma das causas de conflito que resulta na guerra de todos contra todos. Bobbio (1991) observa que o destaque que Hobbes confere à glória depende do fato de considerá-la a mais visível manifestação do desejo de poder. Hobbes concebe a felicidade como “um contínuo progresso do desejo de um objeto para outro, não sendo a obtenção outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo” (2004, III, p. 85). Desse modo, a felicidade não é estática, mas sim dinâmica. Assim, para satisfazer essa contínua corrente de desejos, é necessário obter poder. Constatamos, portanto, que a própria felicidade depende também das paixões. Em outras palavras, para Hobbes, um homem sem paixões não pode ser feliz. Como resultado, as pessoas desejando mais, e almejando poder para satisfazer seus desejos, entram em disputa umas com as outras. Além disso, a impossibilidade do objeto desejado ser partilhado por mais de uma pessoa e a condição de igualdade na disputa vai fomentar o conflito entre os homens. As paixões humanas recebem maior importância no tratamento que Hobbes confere às leis naturais. Como esclarece Leo Strauss (2009), a escola de direito natural clássica deriva as leis naturais de uma ideia de perfeição. Para Hobbes em contrapartida, as leis da natureza só serão eficazes se forem deduzidas do modo como os homens efetivamente vivem, em outras palavras: das paixões. Do medo da morte violenta é suscitado no homem o maior de todos os desejos, que é a preservação da vida. Como a vida não pode ser preservada numa condição de guerra e insegurança generalizada, torna-se necessário estabelecer a paz. A primeira lei natural “ordena”, portanto, a autopreservação e o provimento da paz.

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

107

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

Da primeira lei natural, são deduzidas várias outras que são de acordo com Hobbes deveres ou virtudes morais indispensáveis para o estabelecimento da paz. Embora a gratidão (quarta lei natural), a piedade (quinta lei natural), o perdão (sexta lei natural) e a humildade (oitava lei natural) sejam indispensáveis para o estabelecimento da paz, na ausência de uma autoridade política elas exercem pouca influência sobre o comportamento dos homens. Essas virtudes que poderiam ser vistas como “paixões benéficas”, como a piedade e a gratidão, estão longe de ser um sentimento natural. Elas são um dever que o homem só cumpre quando sente segurança para fazê-lo, senão, quando coagido. Na ausência do Estado, as paixões que exercem maior influência sobre os homens continuam sendo a glória, a esperança e o medo. Temendo a morte violenta, os homens transferem sua liberdade absoluta e direito a todas as coisas a um terceiro, que é o soberano, instituindo assim o Estado. Em outras palavras, os homens, movidos pelo medo da morte violenta, e pela esperança de poder desfrutar com segurança de uma vida mais satisfeita, pactuam estabelecendo a sociedade política. Como Hobbes afirma em Behemoth: “Todos os reinos do mundo [...] precedem do consentimento do povo, por medo ou esperança” (HOBBES, 2004, VI, p. 179). O homem, sendo o artífice e conteúdo da sociedade política, pode resolver os conflitos do homem enquanto conteúdo dessa sociedade. Como comenta Strauss (2009, p. 167), “o homem pode garantir a realização da ordem social justa porque é capaz de conquistar a natureza humana através da compreensão e manipulação do mecanismo das paixões”. Rawls (2012a), por sua vez, esclarece que Hobbes não reconhece na grande maioria das pessoas a capacidade de autocontrole, o que legitima um Estado mais coercitivo. A respeito do medo e da glória, Hobbes (2005, III, p. 128) comenta: Dado que a força das palavras é demasiada fraca para obrigar os homens a cumprirem seus pactos, só é possível conceber, na natureza do homem, duas maneiras de reforçá-la. Estas são o medo da consequência de faltar à palavra dada, ou a glória ou orgulho de apresentar não precisar faltar a ela [...] A paixão com que se pode contar é o medo.

Se no estado de natureza o medo e a vanglória são as paixões que suscitam a guerra entre os homens, após a instituição do Estado o medo e a glória apresentam-se como essenciais para o cumprimento dos contratos e estabelecimento da paz.

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

108

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

Entretanto, o Estado proposto por Hobbes não pode ser considerado despótico ou totalitário por valer-se do medo para garantir a observância das leis e os cumprimentos dos contratos. O medo estimulado pelo Estado não é um medo que não sabemos o porquê, denominado por Hobbes de panic terror. Esse tipo de medo que Hobbes nos fala é necessário para o provimento da paz. Ora, se o medo é a paixão que nos impede de agir, o Estado deve valer-se do medo da punição para impedir que os súditos cometam infrações. Além disso, como Hobbes regularmente descreve o Leviatã como um Deus mortal, o medo que o autor tem em mente é o mesmo que os cristãos sentem diante de Deus todo-poderoso, e não o medo do Déspota. Nas palavras de Janine Ribeiro (2013, p. 101): Não cabe para a filosofia hobbesiana o mito totalitário, que em nosso tempo funde o indivíduo no Estado. Pode-se aproximá-la do absolutismo, seu contemporâneo, completado pela economia mercantilista: procurando conservar a vida do corpo político e a de cada cidadão quando possível.

No décimo primeiro capítulo do Leviatã, Hobbes enumera as paixões necessárias à vida cívica, que predispõe os homens à obediência e à paz: desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de conquista-las por meio do trabalho; medo da morte; desejo de conhecimento e das artes da paz; desejo de louvores (ou seja, glória); e medo da opressão. Entre as paixões que devem ser banidas da vida cívica, estão o ódio, a concupiscência, a ambição, a cobiça e a pusilanimidade. Elas devem ser banidas porque são “enfermidades tão inerentes à natureza, tanto do homem como de todas outras criaturas vivas, que seus efeitos só podem ser evitados por um extraordinário uso da razão ou por uma constante severidade do castigo” (HOBBES, 2004, III, p. 284). Desse modo, tendo estabelecido a sociedade política, e o código de leis que a acompanha, “cada um deve, meditando sobre a lei, corrigir a irregularidade das paixões” (HOBBES, 2004, III, p. 291).

Jean-Jacques Rousseau

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

109

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

Rousseau aceita a premissa de Hobbes de que o homem não é naturalmente sociável. Também aceita o percurso: definir a verdadeira natureza do homem para, a partir dela, deduzir a boa ordem política. Rousseau traça uma relação entre as nossas necessidades e as paixões: “as paixões, por sua vez, parecem ter sua origem nas nossas necessidades” (ROUSSEAU, 1964a OC, III, p. 143). O primeiro tipo de necessidade que Rousseau identifica são aquelas relacionadas com a nossa própria conservação. São necessidades puramente físicas e fáceis de serem satisfeitas. Conectada com a conservação está a necessidade de promover nosso bem-estar. Desse segundo tipo de necessidade está o luxo da sensualidade, a união entre homem e mulher. O terceiro tipo de necessidades são aquelas relacionadas à opinião. Em outras palavras, o desejo ou necessidade de ser estimado pelo outro. Apenas o primeiro e, em menor medida, o segundo tipo são necessidades que o selvagem possui. O terceiro tipo existe apenas em sociedade. Por isso, as únicas paixões naturais que Rousseau chama de “princípios anteriores à razão”

4

são o amour de soi-

même (amor de si mesmo), que faz o homem velar por sua própria sobrevivência e bemestar, e a pitié (piedade), que gera repulsa ao ver o outro da mesma espécie sofrendo ou morrendo, impedindo o homem de causar dano ao seu semelhante (ROUSSEAU, 1964a, OC, III, p. 126). Este é um ponto central de divergência entre Hobbes e Rousseau. Para o primeiro, a piedade é uma virtude ou lei moral que o homem só obedece quando se sente seguro ou quando obrigado. Para o segundo, é um sentimento natural. É principalmente por Hobbes não ter reconhecido a piedade como um sentimento natural que Rousseau o confronta. Robert Wolker esclarece: Rousseau acreditava que Hobbes, em especial, havia ignorado a pitié ou compaixão natural dos homens por ter uma impressão equivocada do amour de soi. Ele imaginara que os indivíduos, para preservarem a sua existência, precisavam resistir aos ataques dos outros tentando destruí-los, e assim, no estado de natureza, seria impossível ser compassivo e, ao mesmo tempo, viver em segurança. Mas, para Rousseau, cuidar de si não exclui a preocupação com o bem-estar dos outros; pelo contrário, ele pensava que o desejo impiedoso de 4

No Ensaio sobre a origem das línguas, iniciado praticamente ao mesmo tempo do Segundo Discurso, Rousseau afirma que a pitié (piedade) depende da reflexão, o que contradiz o inatismo do Segundo Discurso. Nicholas Dent (2005) argumenta que como o Ensaio sobre a origem das línguas é inacabado ele não deve ser tomado como referência. Esse tema é desenvolvido posteriormente no Emílio ou da Educação, em que o genebrino reafirma o inatismo da piedade.

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

110

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau segurança pessoal à custa de outrem dá origem apenas àquela vaidade e desprezo que transformaram o mero estranho num inimigo [...] O conceito hobbesiano de amour-propre, a vaidade, um sentimento puramente relativo e artificial que, em sociedade, leva os indivíduos a se exibirem, querendo parecer que são mais do que os outros, e dá origem, como sugere Rousseau, ao “senso de honra” ao qual Hobbes atribuía um papel tão central, e tão equivocado, na natureza humana em geral (2012, p. 67, grifos do autor).

A honra ou glória, que Hobbes destaca como a paixão que causa a guerra, não é um sentimento natural do homem, ao passo que a pitié, negada por ele para legitimar um Estado mais coercitivo, é. Rousseau considera que a concepção de natureza humana da qual Hobbes deduz a ordem política não dizia respeito ao homem no estado de natureza, mas sim ao homem após a instituição do Estado civil: era o homem civilizado que Hobbes tinha diante de seus olhos. Portanto, a ordem política estabelecida por Hobbes é, para Rousseau, equivocada. É apenas quando os homens estabelecem um liame social mais forte, formando laços de dependência e dando origem a novas necessidades que as paixões naturais amour de soi-même e a pitié cedem lugar ao amour propre, paixão artificial. No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens [1755], conhecido como Segundo Discurso, Rousseau comenta o surgimento do amour propre: Cada um começou a olhar os outros e a desejar ser ele próprio olhado, passando assim a estima pública a ter um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais astuto ou o mais eloquente, passou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo tanto para a desigualdade quanto para o vício; dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, e, de outro a vergonha e a inveja (1964a, OC, III, p. 169-170, grifo nosso).

Seguindo no Segundo Discurso, em uma eloquente passagem Rousseau menciona o aspecto da sociedade nascente: Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao de propriedade, seguiu-se à rompida sociedade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos, as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, abafando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus (1964a, OC, III, p. 176, grifo nosso).

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

111

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

Esse momento descrito no Segundo Discurso entre o início da sociedade e o advento da autoridade política estabelecido pelo contrato fraudulento é, como afirma Rawls (2012b), inspirado na concepção hobbesiana de estado de natureza, em que os indivíduos são caracterizados pela irregularidade das paixões e pelo conflito. O que o genebrino pretende mostrar é que a glória ou a vaidade é uma manifestação corrompida do amour propre que existe apenas em sociedade e não pertence à constituição primitiva do homem. Nicholas Dent (2005) afirma que apesar de Rousseau enfatizar a manifestação corrompida do amour propre no Segundo Discurso, o amour propre também possui uma manifestação benéfica que, quando cultivada, possibilita a liberdade, a paz, a virtude e a felicidade, sendo essa uma premissa para seu projeto pedagógico. Para Dent (2005), o amour propre não precisa se manifestar como agressão, crueldade e desejo de domínio ou como a vanglória hobbesiana. A principal exigência do amour propre quando bem estimulado é receber o reconhecimento e o respeito das outras pessoas, estabelecendo uma condição de respeito mútuo e igualdade. Por isso, Rousseau (1969, OC, IV, p. 536) afirma que “o amour propre é um instrumento útil, mas perigoso”, pois pode se manifestar como a vanglória hobbesiana ou como exigência de respeito mútuo e igualdade. Dent (2005, p. 149) nos convida a imaginar uma sociedade em que os indivíduos não possuem amour propre: Vamos considerar como as coisas iriam ficar se entrássemos em uma associação que não possui uma igualdade fundamental de reconhecimento e status oferecidos para cada um dos membros. Nesse tipo de sociedade, haveria pequenas ou muitas distinções entre aqueles que têm riqueza, poder, status, etc. e aqueles que não têm. O dano a esse último grupo é óbvio. Eles não apenas sofreriam materialmente de várias formas, eles seriam também marginalizados, com o reconhecimento humano negado, não seria tratado como ‘uma parte indivisível do todo’ mas na verdade seria dividido dele.

Uma sociedade como essa, em que o amour propre não se manifesta corretamente, seria certamente um quadro semelhante ou pior do que aquele narrado no Segundo Discurso, porque teria como consequência inevitável o domínio de pessoa ou grupo sobre outras estabelecendo uma condição de escravidão e dependência. Além disso, no Discurso sobre a economia política [1755], Rousseau afirma que “não devemos desejar destruir neles suas paixões, e que a execução de um tal projeto Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

112

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

seria tão indesejável quanto impossível. Conviria com tudo isso, sobretudo porque um homem que não tivesse nenhuma paixão seria certamente péssimo cidadão” (1964b, OC, III, p. 259). Na Carta a D’Alembert [1755] Rousseau aponta que o meio pelo qual o governo deve agir sobre os costumes é a opinião pública: e aqui, o amour propre manifestado como honra e infâmia tem sua utilidade. O genebrino tem em mente um tribunal público, ou uma corte de honra como ele próprio prefere chamar, onde os cidadãos atuem como censores uns dos outros, agindo sobre duas paixões de seus concidadãos: a honra e a infâmia. O medo ou reforço negativo são desnecessários. Se quisermos que determinada pessoa tenha determinado tipo de comportamento devemos honrá-la, se não, difamá-la. Outro instrumento que devemos utilizar para manifestar o aspecto positivo do amour propre é a religião civil, que é abordada no último capítulo Do Contrato Social. Cada Estado deve ter seu próprio culto em que ocorre a sacralização das leis e dos deveres, fomentando o amor à pátria e o respeito às leis e às autoridades, ligando intimamente as leis e os costumes no coração dos cidadãos. Esse elo é impossível sem as paixões. Esse vínculo entre leis e costumes resultará no direito consuetudinário, “que não se grava no mármore nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos; que faz a verdadeira constituição de um Estado” (ROUSSEAU, 1964c, OC, III, p. 394).

Considerações finais

Uma das inovações feitas na filosofia por Thomas Hobbes deve-se ao desenvolvimento de sua teoria das paixões humanas que resultou na refutação de um pressuposto que até então era tido como certo. Santo Agostinho (1995) na sua obra O livre-arbítrio, por exemplo, constata que o mau moral aparece no mundo quando os homens obedecem a suas paixões ao invés de obedecer à razão. Como bem observou Skinner (2010), um dos pontos capitais da teoria das paixões humanas desenvolvida por Thomas Hobbes é a refutação desse pressuposto que perdurou séculos: Um dos pressupostos filosóficos de seu tempo, quase inquestionável, era que os agentes autenticamente livres são invariavelmente movidos a agir pela razão, enquanto oposta à paixão ou ao apetite. Era amplamente aceito que agir impelido pela paixão não é agir como um

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

113

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau homem livre, ou até mesmo agir especificamente como homem (SKINNER, 2010, p. 44).

Esse pressuposto é refutado por Hobbes ao identificar o princípio do movimento, o conatus, com as paixões, e por não conceber as paixões como um obstáculo a liberdade humana. Se, por um lado, é devido à irregularidade das paixões que os homens iniciam a “guerra de todos contra todos”, é também devido às paixões, notadamente o medo e a esperança, que os homens instituem o Estado e estabelecem a paz. A teoria da soberania desenvolvida por Hobbes pode ser considerada absolutista, entretanto, o Estado defendido por ele não pode ser considerado despótico ou totalitário devido à centralidade dada ao medo. Se o medo é a paixão que nos impede de agir, o Estado, valendo-se do medo da punição impede a infração e consolida a ordem política. Ora, a soberania de acordo com Rousseau também é inalienável e indivisível (Cf. ROUSSEAU, 1964c, OC, III, p. 368-369). A diferença em relação a Hobbes está obviamente nas mãos de quem a soberania se encontra e como se da o controle do mecanismo das paixões. A primeira inovação feita por Rousseau no que concernem as paixões humanas foi em estabelecer uma relação entre as necessidades e as paixões ignorada por Hobbes, que identificava a origem das paixões na sensação. Desse modo, os selvagens possuindo poucas necessidades possuíam, consequentemente, apenas duas paixões naturais: amor de si mesmo e a piedade. Como resultado, enquanto que Hobbes destaca o medo, a glória e a esperança, Rousseau destaca a piedade, o amor de si e o amor próprio, sendo a última a origem das paixões nocivas que suscitam o conflito entre os homens. A outra diferença está nos recursos que o genebrino utiliza para controlar as paixões. Enquanto Hobbes aposta no medo e na educação, Rousseau aposta na educação negativa, na opinião pública e na religião civil para impedir a manifestação corrompida do amor próprio. Por conseguinte, a piedade, o amor de si e o amor próprio quando corretamente estimulado, são essenciais para que tenhamos relações humanas benéficas e para que se consolide uma condição de igualdade e respeito mútuo.

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

114

Sobre as paixões humanas em Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau

Referências AGOSTINHO. O livre-arbítrio. Tradução Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. (Patrística). BOBBIO, N. Thomas Hobbes. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991. DENT, N. Rousseau. London e New York: Routledge, 2005. (The Routledge Philosophers). DERATHÉ, R. Rousseau e a ciência política de seu tempo. Tradução Natalia Maruyama. São Paulo: Discurso Editorial/Barcarolla, 2009. DIDEROT & D’ALEMBERT. Verbetes politicos da Enciclopédia. Trad. Maria das Graças de Souza. São Paulo: Discurso Editorial/Ed. da UNESP. HOBBES, Thomas. Leviathan. In: The English works of Thomas Hobbes of Malmesbury. v. III. London: Elibron, 2004. ______. Behemoth: The History of the Causes of Civil Wars of England. In: The English works of Thomas Hobbes of Malmesbury. v. VI. London: Elibron, 2004. NEWEY, G. The Routledge Guidebook to Hobbes’s Leviathan. London e New York: Routledge, 2014. (The Routledge Guidebook to the Great Books). MARTINICH, A.P. Hobbes. London e New York: Routledge, 2005. (The Routledge Philosophers). RAWLS, J. Hobbes. In: Conferências sobre a história da filosofia política. Tradução Fabio M. Said. São Paulo: Martins Fontes, 2012a. RIBEIRO, J. R. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013. ______. Rousseau. In: Conferências sobre a história da filosofia política. Trad. de Fabio M. Said. São Paulo: Martins Fontes, 2012b. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondemens de l’inégalité parmi les homes. In: Oeuvres Complètes. t. III. Paris: Pléiade, Gallimard, 1964a. ______. Discours Sur L’Economie Politique. In: Oeuvres Complètes. t. III. Paris: Pléiade, Gallimard, 1964b. ______. Du Contrat Social. In: Oeuvres Complètes. t. III. Paris: Pléiade, Gallimard, 1964c. ______. Emile ou de L’Education. In: Oeuvres Complètes. t. IV. Paris: Pléiade, Gallimard, 1969. ______. Lettre à M. Alembert. In: Oeuvres Complètes. t. V. Paris: Pléiade, Gallimard, 1995. SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana. Tradução de Modesto Florenzano. São Paulo: Editora da UNESP, 2010. STRAUSS, L. Direito Natural e história. Tradução Miguel Morgado. Lisboa: Edições 70, 2009. WALLER, E. Of the fear of the God. In: Poetical works of Edmund Waller vol. 1 of 2. London: Fogotten Books, 2013. WOLKER, R. Rousseau. Tradução Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2012. (Coleção L&PM pocket).

Vol. 7, nº 1, 2014. www.marilia.unesp.br/filogenese

115

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.