Sobre as primeiras edições dos livros românticos de Garrett, nas suas Cartas Íntimas e na Revolução de Setembro

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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial Sobre as primeiras edições dos livros românticos de Garrett, nas suas Cartas Íntimas e na Revolução de Setembro Marcia Arruda Franco (Universidade de São Paulo – USP) Para João Luís Lisboa Resumo: Nas Cartas Íntimas e em o Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa, o processo editorial dos primeiros livros românticos de Garrett é visto no contexto de redefinição da função social do escritor, o que o levou a produzir os seus livros fora da tutela do mecenato, contando para isso com dois novos meios de produção do livro: o corporativo e o de livreiros estrangeiros. Depois, autor consagrado, a partir dos anos 1850, em Portugal, a Bertrand editou-lhe a obra completa em vários tomos. Examinamos aqui o anúncio de os II e III Tomos do Romanceiro e o Folhetim crítico literário que sobre eles escreveu Gomes Amorim na Revolução de Setembro no início de dezembro de 1851, a fim de perseguir o modo como se urde a crítica romântica em sua redefinição dos parâmetros classicistas da criação e avaliação poéticas, pelo ensino de uma leitura nacionalista do literário, tributária das idéias do novo Estado liberal. Ao serem cruzados os dados das Cartas Íntimas e os do jornal A Revolução de Setembro, acerca da publicação em questão, quem surge é a figura do autor romântico como político militante e homem de letras, que redige a minuta do anúncio e sugere as linhas de organização do folhetim. No século XIX, o Romanceiro é concebido e recebido como um serviço cívico de amor à pátria, capaz de formular uma identidade portuguesa e de conferir ao poético a função patriótica de redefinir a nacionalidade segundo os novos valores liberais. Palavras-chave: História da edição, crítica romântica, função social do poético, jornal, Almeida Garrett

O período em que Garrett publicou as suas primeiras obras românticas pode ser considerado de transição: tanto nos separa do modo clássico de concepção, edição e circulação do poético como nos introduz nas primeiras tentativas de produção (editorial e conceitual) romântica, da qual ainda nos vemos, em parte, presos. Em parte; pois também a revisitação dos meios editoriais da passagem do século XVIII a meados do XIX deveria deixar clara a nossa diferença relativamente ao circuito social e à produção do livro e à prática naturalizada da crítica romântica. A nova prática editorial responsável pelos livros de Garrett é melhor entendida por uma comparação com os aspectos que cercam a produção, a circulação e a função dos livros de um poeta do século XVIII, Nicolau Tolentino. Por isso vamos citar o

trecho do Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa 1em que Garrett emite um juízo tipicamente romântico acerca da obra deste autor: Nicolau Tolentino é o poeta eminentemente nacional no seu género: Boileau teve mais força, mas não tanta graça como o nosso bom mestre de retórica. E de suas sátiras ninguém se pode escandalizar; começa sempre por casa, e primeiro se ri de si antes que zombeteie com os outros. As pinturas dos costumes, da sociedade tudo é tão natural, tão verdadeiro! Confesso que de todos os poetas que meu triste mister de crítico me tem obrigado a analisar, único é este em cuja causa me dou por suspeito: tanta é a paixão, a cegueira que tenho pelo mais verdadeiro, mais engraçado, mais bom homem de todos os nossos escritores. (grifo meu, Garrett, 1963, p.510) Já deste trecho avalia-se a distância entre a postura crítica de Garrett e a contemporânea, organizada aquela pela hegemonia do critério nacionalista, orientador do juízo crítico: "Tolentino é um poeta eminentemente nacional". Reduzidas a bondade, a graça e a verdade de Tolentino à sua "pintura" dos costumes portugueses, a paixão nacionalista de Garrett não deve obscurecer, para os que busquem entendê-las, as diferenças históricas por que passou a instituição literária entre um e outro autor; por exemplo, a transformação da função social do escritor e da produção do livro, iniciada no período vivido pelo mestre de retórica de meninos (1740 - 1811) e ainda em fase de sedimentação quando Garrett começa a escrever as suas primeiras obras românticas, no primeiro quartel do século XIX. Antes de aprofundarmos a análise do critério nacionalista da crítica romântica, no espaço dos jornais de épocas, marcando a sua tendência para produzir juízos que se querem universais quando são apenas agentes de uma nova prática letrada, examinemos nos Bosquejos e nas Cartas Íntimas as diferenças entre Tolentino e Garrett, quanto ao universo social de produção, função e circulação do poético. Durante o século XVIII, como nos informa Margarida Barahona (1981, p.13), devido a vários fatores, há uma transformação da condição social e material do escritor português. As academias, como instituições socialmente ativas, estão praticamente falidas. Novos modos de convívio literário surgem em "outeiros (concursos de poetas que glosavam motes dados, por ocasião de solenidades literárias), mas também em lugares tipicamente burgueses” (Ibidem): assembléias, funções, botequins, como o Casaca, situado na Rua dos Capelistas, perto da Igreja de S. Julião (Tolentino, 1969,p.33). Há um alargamento do público ledor, composto não apenas pela aristocracia 1

O Bosquejo... foi redigido pela primeira vez quando Garrett tinha 17 anos, revisto por três vezes antes dos 22 e publicado em 1826, quando teria 27 anos. Na "Advertência", considera este seu ensaio da sua "infância poética" e cheio de "infindos defeitos" ,Garrett, 1963, p. [479].

esclarecida, mas acrescido das média e pequena burguesia urbanas. Aparecem outros meios de divulgação do produto poético como o Arsenal, "um dos locais em que se exibiam, pendentes de cordéis, os folhetos de literatura popular, por isso mesmo chamada 'literatura de cordel'” (Ibidem, n.4-5). Há, sobretudo, um aumento da atividade editorial: no cenário português, surgem livreiros estrangeiros e aparecem os primeiros jornais literários e científicos. O escritor não tem mais um mecenas, um protetor institucionalizado, mas também não conta com a industrialização editorial do livro, cuja eficácia relativa só começará no século XIX, ao tempo de Garrett, como veremos. Escritores, que, como Bocage e Tolentino, escrevem num regime de semimecenato, encontram-se "materialmente desprotegidos" (Barahona, 1981, p. 16), e buscam soluções parecidas para saírem deste impasse. Ambos, como era de se esperar, escreveram composições áulicas e circunstanciais em louvor de grandes figuras públicas. Garrett , por sua vez, recusa-se a escrever poesia encomiástica: "nunca fiz versos na minha vida [...] em louvor de damas ou de heróis nenhuns, para lisonjear ou engrandecer ninguém" (Garrett, 1963, 1434). Tolentino dirige os seus sonetos e quintilhas à nobreza de cargo, escreve em busca de um mecenas, pois não conta ainda com um circuito editorial burguês. A sua poesia, mais ou menos como a de Bocage, é a sua moeda: através duma poética do pretendente, consegue a sua remoção de mestre da retórica para o funcionalismo burocrático. Quando Garrett pede que o seu sobrinho seja agraciado com a comenda honorária da Ordem da Conceição, único "galardão" pelos seus "trinta anos de serviço público", usa a carta íntima e não o poema (Garrett, 1963, 1460-1). A publicação das Obras Poeticas de Tolentino pela Imprensa Régia, feita ainda durante a sua vida, em 1801, assinala a relativização do universo de produção e de circulação do texto poético, quanto ao galardão destinado aos autores: Tolentino vendeu os seus direitos autorais por 4.800.000 réis enquanto Bocage, menos feliz, conseguiu apenas 48.000 réis (Tolentino, 1969, X). Algo diversa era a condição social e material do escritor quando Garrett compôs e publicou quer o próprio Bosquejo..., quer os seus primeiros poemas nacionalistas. Graças ao funcionamento, ainda precário, dum circuito editorial burguês, Garrett pôde descartar o regime do semimecenato, e contar com um outro enquadramento do produto poético. No exílio, entre a Inglaterra e a França, Garrett publica os seus primeiros textos românticos, não sem estar sujeito aos diferentes mecanismos editoriais daqueles países,

comunitário e corporativo, no primeiro, e estatal, no segundo, nos quais permanecia ainda forte o modelo do patrocínio (Chartier, 1998, 55), isto é, a dificuldade em identificar o livro e a mercadoria produzida com fins lucrativos. Segundo Chartier, é neste momento que se fixa a figura do editor como ainda a conhecemos, “empreendedor cuja tarefa é tanto de natureza intelectual como comercial: buscar autores que lhe cedam textos, e controlar o processo que vai da impressão da obra até a sua distribuição" (Ibidem, 50). Profissional "que se vê também como um intelectual" (Ibidem, 53), acaba desenvolvendo relações tensas com os autores. O Bosquejo da História da Poesia e Língua Portuguesa foi encomendado por um editor em Paris, que queria divulgar a poesia portuguesa na França, para ser publicado como prefácio do primeiro volume do Parnaso Lusitano. Quando Garrett tenta distribuí-lo através de subscrições, é obrigado a desistir do seu propósito e a restituir, na medida do possível, o dinheiro das assinaturas, pois os direitos de distribuição da obra são do livreiro-editor e não do autor (Garrett, 1963, p.1417). Para Garrett, neste momento, 1828, a ação do livreiro J. P. Aillaud, proprietário do Parnaso Lusitano, é classificada de "alicantina" que quer dizer: cheia de "astúcia, manha, trapaça, treta", pois afeta o direito natural do autor sobre a sua obra. Os poemas histórico-nacionalistas, Camões, Dona Branca, Arco de Sant’Ana, obras de declarada orientação romântica, circularam e foram produzidos num regime já diferente do mecenato: os dois primeiros, impressos em França, foram distribuídos pelos editores, Livraria Nacional Estrangeira, e J. P. Aillaud, respectivamente; o terceiro, impresso em Londres (por Bossey & Son) seguiu o sistema das subscrições de amigos e conhecidos cultos, alguns nobres e burgueses esclarecidos, associados em clubes de leitura. Desta forma de produção e de distribuição dos primeiros livros de Garrett, afastando-se do regime do patrocínio e aproximando-se da produção industrial do livro, nos falam, à saciedade, as suas Cartas Íntimas. Do regime de assinaturas, é bom exemplo a primeira carta escrita a José Gomes Leal, de Londres: "Aproveitandome do oferecimento do seu favor, remeto-lhe uma papeleta de assinatura" (Ibidem, p. 1391). Sem poder levá-la pessoalmente Garrett se desculpa e completa: "e veja se arranja à minha Adosinda alguns padrinhos para se baptizar e sair a público" (Ibidem). Na carta a Duarte Lessa, de 7 de março de 1825, quando Garrett está exilado no Havre, há uma rejeição da identificação dos subscritores, ou padrinhos, como "mecenas"; o que importa é descaracterizar o sistema de assinaturas, ou subscrições, como um empreendimento do mecenato:

Pasmei, em verdade do que me diz sobre a sua carência de qualidades para Mecenas; nem pensava eu que uma triste prova de simpatia e amizade merecia une si amère raillerie. Não me lembra que nos poucos anos de minha mal agourada vida desse ocasião a que alguém cresse que o nascimento, as riquezas, valimento, alto engenho,heroicidade,(palavras suas) mas sobretudo as três primeiras eram divindades do meu culto, ou santos de minha devoção. Que outrem mo dissesse, passe; mas que o senhor me fale em mecenas: palavrinha com que sempre azoei, grande maravilha me foi. (Garrrett, 1963, p.1390) A confusão de Duarte Lessa é fácil de entender. A nova forma de produção do livro, que evidentemente não era um empreendimento lucrativo, não se isentava da noção de apadrinhamento, intrínseca ao sistema do mecenato. Por exemplo, Garrett, seguindo um costume editorial antigo, oferece o poema Camões e o Parnaso Lusitano à infante regente, D. Isabel Maria, mas, como o proprietário do Parnaso é o "benemérito português", João Pedro Aillaud, a oferta é compartilhada com o editor (Garrett, 1963, 603-5): "O editor proprietário desta obra, João Pedro Aillaud, pela sua parte a dedica também a Vossa Alteza e comigo a oferece" (Garrett, 1963, 606).Aos amigos de Garrett em boas condições social e financeira, caberia o encargo informal de conseguir subscrições, passando ao autor a "lista dos subscritores" (Ibidem, 1392). Em outra carta a Gomes Monteiro, Garrett esclarece sobre as dificuldades de arcar com os custos da impressão de seus primeiros livros: "Mando-lhe um exemplar de um livrito que fiz imprimir agora, que lhe peço aceite como presente do A. - Vão mais dez exemplares do mesmo para o meu amigo ver se pode passar algum e ajudar-me assim com as despesas da impressão, única coisa que pretendo tirar disto: e muito é se em livros portugueses se não chega a perder." (Garrett, O. C. , 1391-2). De fato, o regime de assinaturas, bem sucedido no sistema corporativo de produção do livro na Inglaterra, não lograva pagar as despesas de impressão dos livros portugueses de Garrett, e logo estes, não sem certa amarga ironia, vão ser oferecidos em troca da esmola de "almas caridosas": Mando-lhe vinte exemplares: tire para si os que quiser; se algum amigo for tão boa alma que queira dar a benta esmola do xelim por algum dos outros, bom será que ajuda as despesas da impressão; senão não importa: em último caso servem para guardanapos à míngua de mais pardo papel.(Ibidem) Interessante é comparar o destino semelhante dos versos de cordel, no poema "A Guerra", de Tolentino: "Musa vã, [...]/ / Emprega melhor teu canto [...] // [...] e do vulgo os olhos chama/ nas paredes do Arsenal, / cheia de aplauso e de lama. // De galegos

rodeada, / aos Aristarcos escapa; / té que das tendas chamada, / sejas protectora capa / de manteiga e marmelada. "(Tolentino, 1969, p.41). Ao longo da vida do próprio Garrett, em decorrência da luta travada, por editores e autores, os primeiros à frente, pelo direito autoral (Chartier, 1998, p.61-70), este estado de penúria se modificou: em seu testamento, como Visconde, pôde legar à sua filha Maria Adelaide não apenas o título nobiliárquico, mas também o direito sobre as suas obras "já impressas ou ainda inéditas, por todos os trinta anos que a lei garante" (Garrett, 1963, p.1478), depois da morte do autor. Se a produção e a circulação material do livro abrem um fosso entre a época de Garrett e a nossa, em meio à revolução eletrônica, a função social do livro como objeto de consumo de uma elite letrada e a dificuldade em identificá-lo com uma mercadoria lucrativa são traços de longa duração na cultura lusófona. Como autor, Garrett ainda se ocupa de etapas do processo editorial e da distribuição do livro, hoje a cargo de editores e jornalistas, nas engrenagens do comércio livreiro e da indústria cultural. Mais interessante agora parece ser surpreender no espaço da Revolução de Setembro a construção, pela propaganda e pela crítica literária, não só de uma nova funcionalidade social para o poético, que o exalta como expressão da identidade nacional, mas também da figura do autor romântico, no caso, o português Almeida Garrett, e sua intenção de reeducar o gosto dos seus leitores.

Anúncio e Folhetim n’A revolução de Setembro: a nova função social do poético Nas Cartas Íntimas de Almeida Garrett pode ser rasteado o conjunto de estratégias que autores, editores e críticos montaram, no século XIX, para a conquista de um público de leitores e para a redefinição da função social do escritor e da instituição literária. Leia-se, por exemplo, a carta de Garrett a Francisco Gomes de Amorim datada de 24 de outubro de 1851, muito ilustrativa do modo como eram anunciados os livros nos jornais e do modo como a eles se atrelava a atividade crítico-literária: ... Desculpe não lhe escrever por minha mão, que não posso de cansado – Aqui vai a ordem para lhe darem em casa dos Srs. Bertrands três exemplares dos dois volumes do Romanceiro de que se trata, sendo um dos ditos exemplares para a redação da Reforma, o outro para a da Regeneração e o outro para a da Revolução de Setembro; e peço que me faça o favor de os fazer entregar com os meus cumprimentos, rogando de minha parte o obséquio de inserir nos anúncios o que vai minutado no incluso papel. Observe meu Amigo e tenha muito em vista, para o recomendar, que o principal obséquio consiste em que o anúncio seja impresso em letras grandes da maneira por que foi feito o do Arco de Sant’Ana na Revolução de Setembro e segundo o

estilo dos jornais franceses, que é abarcando as linhas da composição toda a largura da página. Pelos motivos de conveniência que facilmente compreenderá, de evitar ciúmes, etc. etc. insisto em que é indispensável que o primeiro jornal em que saia este anúncio seja a Revolução de Setembro. Ela me tem feito sempre este favor nas minhas outras obras, e não seria coerente nem bonito da minha parte dirigir-me agora primeiro a outro jornal. Por minha parte vou dirigir-me também aos outros jornais das diversas cores pedindo-lhes a inserção do mesmo anúncio. E quando todos o tiverem feito, então V. se ocupará de redigir o artigo ou artigos analíticos de que tem a bondade de querer encarregar-se, e para o que lhe mandarei, em poucos dias os apontamentos que me pediu. (Daqui por diante escreveu por sua mão) Bem sabe que sou com afeição e estima – De V, - am° verdadeiro – Almeida Garrett. P.S. – Vai uma carta minha para o Sampaio da Revolução para se entregar com os livros juntamente. (Garrett, 1963, p. 1452) Seguindo a pista das Cartas Íntimas, uma pesquisa na Revolução de Setembro, jornal oitocentista, órgão do Partido Liberal, sob a direção de António Rodrigues Sampaio, de fato publica, nos primeiros dias de dezembro de 1851, ao lado de uma série de anúncios da edição dos Bertrands da Obra Completa de Almeida Garrett, como dos livros românticos Arco de Santana e Dona Branca, o anúncio do Romanceiro, segundo a minuta e o projeto gráfico do autor nas indicações da carta a Gomes de Amorim, referentes aos tipos e tamanhos empregados no título e o tamanho da mancha do anúncio, ocupando a largura toda da página (ver a ilustração dos 3 anúncios). Também Francisco Gomes de Amorim publica em a Revolução de Setembro o seu folhetim crítico literário sobre os volumes II e III do Romanceiro, provavelmente seguindo as indicações passadas pelos apontamentos de Garrett e seguindo a introdução deste aos volumes do Romanceiro. O folhetim tem três partes publicadas em três dias seguidos (1, 2 e 3 de Dezembro de 1851). Para surpreender o nascimento do ponto de vista nacionalista na crítica e na criação românticas, é interessante ler o anúncio ideado pelo autor do Romanceiro e depois relacioná-lo com o Folhetim. Neste cruzamento entre a carta íntima e o espaço do jornal é esboçado com traços fortes o contorno da figura do autor romântico, cuja intenção é a de re-educar o gosto literário dos seus leitores, ao redefinir a funcionalidade social do poético, o que, de resto, se esclarece evidentemente nos prefácios do próprio Garrett ao volume I e II do Romanceiro (utilizamos a edição de 1983). Participando como autor de variadas etapas do processo de comercialização do livro, da propaganda e do folhetim ou artigo analítico publicado na Revolução de Setembro, é possível supor que Garrett tenha na minuta para o texto do anúncio a intenção de ensinar aos prováveis compradores do livro a nova funcionalidade do

discurso poético. Leiamos o anúncio dos Volumes II e III do Romanceiro (ver ilustração da reprodução do anúncio), a fim de percebermos como é redefinida a função social do poético por meio das estratégias de sua comercialização e divulgação. Publicaram-se estes dois preciosos volumes, que são o 14° e 15° tomos da edição completa das obras do nosso auctor emprehendida pelos srs Bertrands. O 2° volume é de 347 paginas, e o 3° de 302. Todos sabem que o primeiro e tão apreciado volume desta collecção é uma verdadeira introducção a est’outros. Alli deu o illustre escriptor, em lingoa e estylo moderno, a tradução de alguns destes romances populares que desde a sua mais tenra idade tem andado colligindo com infatigável zelo, e cujos textos correctos, restituídos e purificados das innovações absurdas com que os deturpava a ignorância, agora nos dá nestes volumes. Conteem 37 romances originaes portuguezes, e 21 versões dos mesmos em várias lingoas estrangeiras. Além de uma intoducção geral sobre a nossa litteratura popular, cada uma das peças da collecção é acompanhada de estudos especiaes cuidadosamente feitos, e que formam um verdadeiro curso dessa litteratura. Fomos a ultima nação da Europa que se deu a colligir as relíquias da sua poesia popular; mas ressalvar-nos-hemos, dessa vergonha pela maneira com que fez o nosso A.; a qual não cede a nenhum trabalho estrangeiro deste gênero, e é superior a maior parte delles. – Parece incrível como elle até se quis fazer cargo de nos dar as lições varias das diferentes províncias do reino, com o fim, provavelmente, de manifestar e garantir a genuinidade do seu trabalho. Apenas uma parte do 1° volume desta collecção se publicou em Londres em 1828, logo appareceu um memorável artigo sobre ella no Foreign Quarterly Review; publicado o volume por inteiro em Lisboa em 1843, foi este completamente traduzido em inglez pelo celebre biografo de Camões, o Sr João Adamson. O Bernal Francez, a Miragaia, e vários outros daquelles romances o foram em castelhano; e a Miragaia em francez. Devemos sinceros agradecimentos nacionaes ao Sr Garrett por se conservar fiel às musas no meio de suas tão serias occupações e trabalhos, sacrificando, sem ofensa da philosophia e da política, aquellas mesmas graças a cujo altar o austero Socrates não duvidava inclinar-se. Os dois volunes nitidamente impressos na imprensa nacional, acham-se em casa dos srs. viúva Bertrands & Filhos, em Lisboa; O’Cel em Coimbra, Moré no Porto, e noutros estabelecimentos de livraria do costume.

Nesse momento o anúncio é um texto que ressalta as qualidades do produto anunciado mas também tece comentários à figura do autor, cuja credibilidade enquanto cidadão deve legitimar, tornar necessário e instrutivo o produto literário. Este anúncio divulga a iniciativa da Bertand em editar a Obra Completa de Garrett porque a considera um ato de civismo e nacionalismo, reconhecido pelos estrangeiros. No anúncio, o leitor é orientado a respeito de o primeiro tomo do Romanceiro ser não só uma introdução aos demais, mas uma recriação em linguagem e estilos românticos dos romances medievais, agora destituídos pelo autor das imperfeições da transmissão oral e dados a luz nos II e III tomos. O leitor é informado acerca da qualidade intelectual deste trabalho de recuperação da tradição da poesia popular, um curso de literatura portuguesa, cujo sucesso no exterior deveria se repetir em casa com mais propriedade. A valorização do produto interno pela avaliação positiva feita no estrangeiro é uma estratégia de propaganda que evidencia o caráter periférico da sociedade em questão e a necessidade de redefinir a função do poético, conferindo-lhe um caráter

cívico e patriótico, de alcance didático, dirigido à reformulação da identidade nacional, conforme os grandes centros de produção da cultura na Europa de então. O anúncio e o folhetim confirmam a história editorial inferida em as Cartas Íntimas, a respeito dos primeiros livros de Garrett publicados em Londres e Paris, onde alcançaram sucesso por seu nacionalismo. É ressaltado que as obras do autor foram traduzidas para outras línguas européias, para encarecer o autor e o produto, e ainda afirmar o caráter necessário da sua proposta de resgate da cultura popular portuguesa e ibérica, louvandose ainda a excelência com que Garrett desempenhou a sua tarefa. É de agradecer a sua iniciativa filológica e etnográfica em salvar do esquecimento o acervo de romances populares que se ia perdendo na oralidade, dando as suas variantes e traduções atuais. Nos romances populares estaria o espírito mais puro do povo português, segundo o modo romântico de valorização do produto literário. Os pontos tocados no anúncio serão retomados no artigo analítico de Gomes de Amorim, coadjuvantes no processo de reestruturação da funcionalidade social do poético, a fim de assegurar e ajustar a intenção cívica do autor, cuja minuta e apontamentos estão na base do anúncio e do folhetim respectivamente, conforme a carta acima lida. O folhetim se apresenta como uma notícia, na medida em que desenvolve de forma descritiva e doutrinária a nova filosofia do poético: Estes dois tomos, que são o 14° e o 15° da edição completa das obras do Sr Garrett, foi o presente mais apreciável que elle podia fazer ao seu paiz. O primeiro é a introdução destes dois, e contém a traducção litteraria de alguns desses romances populares colligidos pelo nosso poeta com um zelo infatigável. Desde a sua mais tenra idade tem elle consagrado muito tempo e muita actividade a este grande serviço nacional.

Tal atuação do autor na esfera da divulgação e da crítica ao livro manifesta o sentido programático e pragmático em ensinar ou elaborar uma nova maneira de legitimar a prática literária. O Anúncio e o Folhetim salientam que o público ledor fora de Portugal já consagrou o autor com a publicação, divulgação e elogio das suas obras. Em Portugal, o Folhetim sobre o Romanceiro saúda o resgate dos contos e romances populares como tarefa séria e digna de louvor nacionalista. É referida a intenção educacional implicada na atualização das trovas medievais para o gosto do século XIX, preocupação filológica presente na edição organizada e fixada por Almeida Garrett, tomada como um trabalho de recuperação do passado a partir da colação das diversas versões orais disponíveis: Os textos que agora nos dá são corretos e purificados de muitas innovações absurdas com que se cantaram entre o povo (ou se cantam ainda) deturpados pela ignorância. Os tomos 2° e 3° contém 37 romances originaes portuguezes, e 21 versões dos mesmos em diversas

línguas estrangeiras. Além de uma belíssima introdução geral sobre a nossa literatura popular, cada um dos romances é precedido de estudos especiais, que formam um verdadeiro curso dessa literatura.

Ou ainda neste trecho: Alem do estudo especial com que o nosso illustre philologo acompanha cada romance, todas as mais notáveis variantes destes vem apontadas á margem. Em fim ninguém que tenha verdadeiro espírito nacional e amor à litteratura pátria deve deixar de possuir aquella preciosa collecção de relíquias da nossa riqueza litteraria.

Vejamos brevemente o Folhetim acerca do Romanceiro, publicado em três partes, nos primeiros dias de dezembro em A Revolução de Setembro. A primeira e a segunda tratam da leitura romântica e liberal que redefine, segundo tal ótica política, a função do poético e a tradição da poesia popular. Como se lê na segunda parte do Folhetim (2 de dezembro de 1851): O povo, na sua tradição foi o único que conservou estas preciosas relíquias, que só um amor litterario pelas cousas pátrias, como é o do Sr Garrett, poderia reunir e colleccionar, apesar de seus tão graves e sérios trabalhos e dos acontecimentos políticos que teem perturbado mais ou menos a sua tranqüilidade.

É claro o ideário romântico-liberal e a canonização da figura de Almeida Garrett, Basta citar alguns trechos, como este que inicia a Parte II do folhetim: “O Sr Garrett como chefe da nossa literatura apresenta-nos com o Romanceiro os elementos necessários para ser levada ao fim a revolução que ele principiou”. Ou o inicio da Parte I:

De saída o caráter cívico do empreendimento editorial se faz por uma referência ao poema romântico de Almeida Garrett, Camões, obra que abre para a historiografia literária o romantismo português, em 1825, não como clássico e sim como o Poeta nacional por excelência. Em 1851, no folhetim, há consciência de que se trata de uma revolução nas letras paralela e interligada à revolução política na passagem do século

XVIII para o XIX. Trata-se de redefinir a função social da literatura no novo regime de idéias liberais e revolucionárias. É neste contexto que o nacionalismo confere à prática poética a função de redefinir a identidade do povo português, por uma restauração do seu passado poético remoto, ao encontro dos tempos que corriam por toda a Europa, a fim de favorecer o próprio comércio livreiro como ação cívica e patriótica: As grandes revoluções sociaes e políticas que tem abalado a Europa até aos seus alicerces, revelaram gradualmenete, a vida íntima de cada povo, a sua intelligebcia, eduação e costumes; como se fossem todos convocados por um pensamento civilisador, comprehenderam que era o seu dever e interesse procurar na sua união o meio de quebrar o jugo de ferro que pesava sobre elles O amor da pátria mal entendido é para as nações o que o egoísmo é para os homens. Este gênero de fanatismo produziu nos tempos antigos, assim como nos modernos, as mais deploráveis calamidades. Presos durante tantos séculos, pela sua cegueira; ou antes, pela política dos poderes despóticos que os esmagavam, os povos, em grande numero, movidos por um amor que deve dominar a todos os outros, o amor da humanidade, tendiam invencivelmente a sair do isolamento em que viviam saltando ou espedaçando as barreiras que os separavam. A linguagem das revoluções lhes era commum; o tempo da sua solidariedade tinha chegado, e era esta a condição da sua regeneração. As sciencias, as artes, a industria e a literatura deviam caminhar de acordo com a revolução política para operar esta união santa; porque na liberdade de um povo está a sua civilisação. De 1820 para cá é que o movimeno sympathico se fez sentir com uma nova energia. Os dez ou doze annos que se seguiram foram um período de enthusiasmo sublime e de gloria immortal. Nações inteiras caminhavam pela estrada do progresso à conquista da liberdade. A Europa estremecendo toda no meio de repetidas convulsões via por toda a parte desaparecerem todos os velhos regimens e brotar uma idéa nova, grande e generosa, que se inaugurava ao som dos hymnos de mil canhões, com o sangue de muitos martyres. [...] À medida, porém, que se operava a revolução política, apparecia tambem a revolução litteraria; o Sr Garrett erguia o pendão da reforma, soltava o primeiro grito de liberdade contra o dominio oppressivo e anti-nacional da falsa litteratura. Em 1825 a 1826, publicava a Dona Branca e o Camões com que principiou a restauração; em 1828 a Adosinda e o Bernal Francez acabaram de plantar na península a bandeira da independência, derrotando os fingidos clássicos e os importadores estrangeiros.

Neste longo excerto o discurso crítico do folhetim, na medida em que também faz a propaganda dos livros do autor, e o anúncio cruzam os seus propósitos de exaltar a nova prática literária, a edição e o comércio do livro como manifestações do espírito liberal. As regras impostas à falsa literatura clássica são comparadas ao despotismo sobre os povos, seguindo-se as idéias defendidas por Garrett nos prefácios do Romanceiro2, onde afirma ter sido Walter Scott quem incentivou a “nacionalizar a

2

Veja-se o prefácio á 3ª edição do Volume I do Romanceiro, Estampa,1983, p.47: A falsa literatura clássica opõe-se à verdadeira, popular e nacional, preservada oralmente pelo povo desde a Idade Média: (...) provar no presente trabalho que, que ao pé, por baixo dessa aristocracia de poetas, que nem a viam talvez, andava, cantava, e nem com o desprezo morria, outra literatura que era a verdadeira nacional, a popular, a vencida, a tiranizada por esses invasores gregos e romanos (...). Ou na carta a Duarte Lessa que antecede a Adozinda, à página 56: A poesia romântica, a poesia primitiva, a nossa própria, que não herdamos de Gregos nem Romanos, nem imitamos de ninguém, mas que nós modernos criámos, a

poesia moderna e a libertar do jugo da teogonia de Hesíodo” (Garrett, 1982, Vol.I, p. 56), pois os literatos oitocentistas estavam “enfastiados dos Olimpos e Gnidos, saciados das Vénus e Apolos” (Ibidem, 55). No Prefácio ao II tomo do Romanceiro, pode ser lida a mesma oposição entre literatura falsa e verdadeira: “Madrid e Lisboa rivalizavam a qual havia de proscrever e escarnecer mais a sua verdadeira poesia nacional. A falsa e ridícula imitação da antiguidade clássica,(...), dominava tudo” (Garrett, 1983, Vol. II, p.71). No conjunto, o Folhetim pretende demonstrar a tese romântica de que a Idade Clássica operou uma descaracterização dos traços geniais da cultura popular. Para o pensamento romântico, ao se resgatar a essência do povo, paradoxalmente, encontra-se o lugar onde é mais europeu e universal. Sendo este o teor cívico da antologia em questão. O que no século XIX, o anúncio e o folhetim parecem afirmar nas páginas de A Revolução de Setembro é, segundo Gomes de Amorim, o teorema de Garrett entre universal e nacional, o qual diz Que quanto mais nacional, mais extreme e puramente nacional é uma obra, mas agrada aos próprios estrangeiros, mas segura está de se generalisar e ser conhecida no mundo litterario. O que não tem cor nacional, o que pode ser para todos, é o de que todos fazem menos caso.

O objetivo do teorema é justificar o abandono do modo e das intenções clássicas do poético como não nacional, mas sim estrangeiro e imposto, como se pode ler na segunda parte do folhetim: Para nos livrar desse domínio oppressivo e anti-nacional, é que elle se deu ao trabalho de colligir os cantos populares que agora nos dá no Romanceiro. É para expulsar a poesia estrangeira do logar que tem occupado entre nós, e collocar no throno a verdadeira poesia nacional. Cada romance é um modelo vivo onde se pode estudar e aprender. Alli está desenhada a verdade; sente-se muitas vezes, e entende se sempre a exacção moral das cousas. Há peças que chegam mesmo a ser perfeitas tanto na belleza e combinação do enredo como na composição da rithma toante. O estilo é quase todo suave e correcto.

O programa de redefinir a nacionalidade portuguesa, segundo as manifestações da cultura trovadoresca e a construção da figura de Camões como herói romântico, confere ao poético um poder na formação do sentimento de nacionalidade. O espaço do jornal aberto à propaganda e à crítica literária permite a formulação da nova identidade nacional, através de sua ação no cotidiano e na formação do gosto do público ledor. É clara a oposição à maneira clássica de definição e avaliação do poético, caracterizada como não nacionalista porque fundada em regras universais. Segundo o juízo crítico romântico gestado então, a originalidade e a espontaneidade do passado medieval teriam abandonada poesia nacional das nações vivas ressuscitou bela e remoçada, com suas antigas galas, porém melhor talhadas, com suas feições primeiras, porém mais compostas.

sido castradas pela reforma poética que fundou o período clássico. A primeira tarefa é aprender a gostar das coisas da pátria. O Romanceiro do Sr Garrett, foi uma luz nova para a poesia e para a litteratua pátria. Devemos lhe o ter ressuscitado na península hispânica o gosto e o estudo da nossa poesia primitiva. Até a época em que o poeta levantou o estandarte da reforma, o romance andava despresado pelos poetas de água morna, que patinhavam nos charcos da cansada fonte d’Aganipe. A própria Hespanha accordou a voz do poeta e philologo portuguez. O duque de Rivas o confessa no seu Moro Exposito, publicado em França muito depois. Sacudiu-se então o pó dos antigos romanceiros e cancioneiros catelhanos; e o mesmo tardio Portugal principiou a crer que antes da litteratura latina, grega e italiana do século XVI, antes das francezias do XIX, nós tínhamos uma poesia, uma litteratura, que era a nossa própria, e para qual devíamos reverter, sob pena de morrermos afogados na imitação servil e esterilizadora dos modelos pautados e fradescos a que nos condemnava a rotina e a impotência.

Acerca da aliança entre língua e patriotismo, na prática poética e na crítica romântica, outro trecho ressalta a preocupação filológico-pedagógica do Romanceiro, cujo valor etnográfico é defendido, do ponto de vista das idéias liberais de progresso e nacionalismo oitocentistas, que percorriam toda a Europa: A lingoa pode dizer-se que é expressão da actualidade das sociedades; se comparam entre os diferentes povos e nas diversas phases da sua vida social e política, verão a paz della, a medida da sua imobilidade, das suas revoluções, de retrogradação e de progresso. Pura, inergica, nobre e sublime de si, como é a nossa, estava perdida, profanada, estrangeirada na poesia, no theatro e no gabinete; isto é no drama e no romance; veio o Sr Garrett e restauroua, mostrou-a em todo seu esplendor, em toda a sua pureza e perfeição. Quando um povo perde a sua lingoa, está perdida também a sua nacionalidade. Por tanto honra ao Sr Garrett que não só a tem conservado, polido e demonstardo o quanto é rica, mas que alliando o estudo das sciencias coma cultua das musas, e também orador eloqüente na tribuna, magistrado inteiro no foro, escriptor profundo em política, e em administração, patriota e homem d’estado, junta às coroas de louro e de carvalho, a de flores, que elle modestamente chamou sem fructo, mas Portugal e toda a Europa sabem quanto produzem, e produzirão cada vez mais,fructos de preço e de benção quais os não tivemos ainda.

Para a crítica romântica e nacionalista que então surgia, disposta a dar ao discurso poético e literário a função de definir o sentimento do povo português, direcionando-o para o momento poético anterior ao Renascimento (ou à medida nova ou maneira italiana), associar a língua e a pátria portuguesas era uma maneira de nacionalizar a expressão poética, despindo-a de vestes estrangeiras, impostas pelo período clássico. No trovadorismo a questão da língua natural sempre leva ao reencontro das raízes ibéricas, o que implica o esforço criativo de entender e verter para português os textos escritos em espanhol, gerando variantes portuguesas dos romances ibéricos. Gomes de Amorim deixa clara a associação entre língua e nacionalismo no pensamento oitocentista, na medida em que a língua natural possibilita um acréscimo de qualidade na sua regionalidade: “Dom Claros D’Além Mar é um lindo romance, que o

Sr Garrett julga de origem castelhana, mas que todavia o nosso povo não o canta peiorado, como se podem comparar no Romanceiro as duas versões”. O fato de o castelhano ser a língua primitiva dos romances não põe em xeque o pressuposto romântico da aliança entre língua e pátria, muito ao contrário, gera a produção em língua natural com mais sucesso. A língua materna é construída como elemento central da nacionalidade dentro do novo regime de idéias poéticas e políticas, muitas vezes vacilantes quanto a um conhecimento histórico da prática poética exumada: A simplicidade e belleza das coplas, não desdiz da verdadeira poesia primitiva; com tudo, no enredo há certa combinação artística, talvez delicada de mais, para ser feita na era de quinhentos; mas parece que o auctor desta rapsódia foi cortesão, porque no estudo com que a precedeu o Sr Garrett, diz que por fins do século XVI ainda se cantava na sociedade, por gentis damas e galantes cavaleiros; cantava-se em castelhano que é a sua origem. Algum dos nossos trovadores o naturalizou passando-o dos salões para o terreiro e fazendo-o verdadeiramente popular. Aproveitou-lhe o entrecho e nacionalizou-o em belíssimas coplas. É talvez esta a razão porque a sua origem se poderia julgar mais moderna do que é realmente. Se a composição é muito espirituosa para ter sido obra da imaginação de um trovador do povo, os versos são simples, despidos de gallas fingidas – em fim, são verdadeiros de mais para um poeta aristocrático daquelles tempos.

O ideário liberal em sintonia com o tempo está salientado pelo Folhetim, sendo o Romanceiro uma publicação de pendor etnográfico, cujo maior mérito mérito seria facultar o acesso ao fundo originário comum da cultura portuguesa e ibérica, conferindo ao poético a função de construir uma identidade nacional ao povo português. Cada vez menos importará imitar um código comum europeu, mas sim buscar uma suposta nacionalidade espontânea que se julga encontrar no passado trovadoresco, oral e popular, por meio da depuração do seu conjunto de variantes orais ao longo da história. Embora não se afirme filólogo, Garrett resgata os romances esquecidos pela poeira do tempo. Com isto redefine a identidade portuguesa a partir da edição de romances e chácaras da poesia oral, cuja origem remota é a Idade Média, mas que sobreviveram na memória popular da península. O Romanceiro significava no século XIX o encontro das raízes ibéricas e portuguesas da poesia cantada e dançada, na longa duração da oralidade, do tempo do trovadorismo, subsistindo como poesia popular, entendida como a natureza do povo português: “Um dos mais interessados modelos da poesia primitiva, é Guimar. Vejam estas coplas, a que nem sequer falta a arte, mas arte sem ser forçada, que nasce espontânea como a intelligencia, verdadeira como a natureza”. Este vínculo entre língua natural, trovadorismo e inspiração poética alheia a regras ou espontânea, não passa de um conjunto de projeções do temperamento

romântico na poesia trovadoresca e/ou popular efetivamente cantada na baixa Idade Média portuguesa em castelhano ou português, sujeita a uma codificação da língua não natural ou poética, que submete a elocução a regras, mesmo quando transmitida oralmente. Gomes Amorim confere às composições da oralidade uma espontaneidade que só possuem a custa de uma arte de trovar urdida pela própria oralidade na noite dos tempos, para usar a expressão de Zumthor. Na Idade Média a oralidade não se opõe ao domínio de regras de composição, muito ao contrário: o domínio de estruturas discursivas tipificadas é que permite a sua memorização, transmissão e revigoramento pela própria oralidade e pela escrita. A mesma coisa pode-se dizer a respeito da questão da autoria anônima, que é objeto de questionamento na segunda parte do Folhetim, em que os anônimos trovadores são comparados aos clássicos greco-romanos, denunciando que \Gomes de Amorim pressupõe um autor que teria se erguido como uma autoridade no inicio da cadeia de reproduções orais que teria sido não só um Homero mas um Virgílio: É sublime o pensamento, e é sublime o verso! A justificação do cavallo e o modo porque é feita dariam honra a Homero e a Virgílio. Porque se perderiam na escuridão dos tempos os nomes dos auctores destas interessantes rapsodias? – Seria talvez porque já nasciam condemnadas a peregrinar e a não terem outro livro senão a memória do povo, ou porque os Trovadores inspirados pela natureza não tinham conhecimento para avaliarem as bellezas que ella os fazia produzir?

A posição de Garrett não é tão ingênua; embora afirme a beleza espontânea da poesia popular, culpa o desinteresse dos eruditos pelo estudo da poesia trovadoresca: “A poesia dos trovadores ainda não foi imparcialmente avaliada nem sequer por aqueles (e poucos são) que a foram examinar nos próprios originais. Os mesmos que se extasiam com as rimas de Petrarca e de seus imitadores, esses mesmos a trataram de resto” (Garrett, 1983, Vol.II, p.62). O desconhecimento dos processos retóricos da poesia popular seria fruto do desinteresse filológico: “Os nossos filólogos, que elucidaram tanta coisa insignificante, desprezaram sempre a literatura popular como indigna de seus clássicos estudos” (Ibidem, p. 159). Deste modo, duvida das classificações dos gêneros e espécies da poesia popular, feitas, segundo lamenta, “às apalpadelas”, sabendo que apresenta “observações imperfeitas” com “cálculos fundados em hipóteses vagas”. A diferença entre chácaras, romances, solaus acaba sendo uma projeção do conceito romântico do poético. Para Garrett, “o sentimento há-de ocupar o primeiro lugar para poder expressar-se com poesia e força” (Ibidem, p.63). Se chácaras e romance se diferenciam por um critério métrico-formal, pelo uso comum da redondilha, e pelo

discurso direto ou pela presença de um narrador, cantigas e solaus vão ser definidos como a expressão de sentimentos: Eu inclino-me a crer que o solau é um canto épico ornado, em que as efusões líricas acompanham a narrativa de tristes sucessos, mais para gemer e chorar sobre eles, do que para se contar ponto por ponto. Cantiga deve ser a expressão lírica e improvisada de um sentimento. (Garrett, 1983, Vol. II p. 156)

Gomes de Amorim, por sua vez, considera Garrett um filólogo e salienta o aspecto filológico da sua edição, o seu cuidado de compulsar as variantes dialetais, de forma a encarecer a filologia oitocentista, para a qual a colação de diversas lições na construção de um modelo hipoteticamente mais próximo do original é uma prática legítima,3 um trabalho cívico e etnográfico. Cívico, na medida em que preenche com as lendas ibéricas um imaginário que se quer autêntico e expressivo da nacionalidade portuguesa; etnográfico por ser um resgate da poesia oral, anônima e popular, o lugar ótimo de expressão da natureza de um povo ou sua essência, segundo as premissas do Romantismo. Na parte três, o Folhetim ainda se apresenta como crítica literária mais genuína, apesar das ressalvas de Gomes de Amorim, que insiste em considerar o seu folhetim não uma análise do Romanceiro mas apenas uma notícia, em que cita e faz comentários sobre alguns romances, exemplares do modo como pretende reeducar o gosto dos leitores, anunciando um produto literário que lhes ensine o patriotismo, segundo valores liberais. O vínculo entre literatura e nacionalismo é um projeto europeu, comum ao autor, ao editor, ao crítico literário e ao jornalista no século XIX, que re-configura a funcionalidade do poético. Entre a grande variedade de romances e xácaras contidas nos dois tomos do Romanceiro, mencionarei de leve alguns que parecem mais importantes pela sua beleza, e com bons modelos para serem estudados. Não prometo seguir ordem alguma, porque não chamo a isto que vou escrevendo, analyse do Romanceiro, é apenas uma noticia delle.

Nesta parte final do Folhetim, a análise do aspecto literário se aprofunda através do comentário de alguns romances, que revitalizam a história da cultura ibérica, ao

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A respeito do texto popular do Bernal Francês desvenda o seu método de fixação dos textos dos roamnces orais: A que dou agora, além de revista pelos manuscritos do cavaleiro de Oliveira, foi aperfeiçoada ainda pela colação com as diversas cópias das províncias do Norte, especialmente da Beira Baixa que são, em meu entender, as mais seguras (...). (Garrett, 1983, Vol. II, p.155). Ou a respeito do Reginaldo deixa claro as sua emendas: “Eu tive de reunir vários fragmentos para o restituir” Ou: “São infinitas e mui disparatadas as variações que desprezei na maior parte ao emendar conjecturalmente o romance” (Ibidem, p.170).

revolverem os fundos da poesia oral peninsular, cujos vínculos com outros sistemas poéticos e culturais árabe, judeu e castelhano se manifestam em busca da caracterização do genuinamente português, tais como os romances de Dona Ausenda, A Donzela que foi à guerra e o Justiça de Deus, entre outros. A notícia inclui os comentários de estilo e a paráfrase do enredo entrecortada de citações dos momentos relevantes da história, uma sátira a vários costumes sociais, ao concubinato do clero, à educação das mulheres, ao patriarcalismo, ao charlatanismo, a feitiçarias: O romance Dona Ausenda é um dos mais engraçados, entre outros muitos do mesmo genero que traz a collecção. Além disso é correcto no estylo, bonito no enredo e o desenlace deve satisfazer aos moralistas mais austeros. A coisa passa-se por milagre de uma herva fadada, que: Mulher que ponha a mão nella Logo se sente pejada.

É clara a educação moral e social embutida nos textos recolhidos no Romanceiro contra os despotismos daquele tempo do qual só se pode extrair no presente de Garrett, uma lição ética, que incita à conduta justa, conforme as idéias do século XIX, pretensamente intemporais ou trans-históricas, como se fossem válidas para se pensar todo passado e futuro da humanidade. Dirá Garrett em nota a Adozinda, uma das recriações dos romances antigos, feitas ao gosto da poesia do século XIX, publicadas no primeiro volume do Romanceiro: “A diferença não está em chamar o sol Apolo, ao Amor cupido, à guerra Marte: sim na maneira de conceber, de pensar, de pintar, de moralizar as mesmas idéias, as mesmas coisas por diferente modo” (Garrett, 1983, Vol I, p.258, n.14). Na parte III do Folhetim, Gomes de Amorim dá a notícia de alguns textos editados nos dois volumes do Romanceiro, como o Romance “Justiça de Deos“, em que está mais evidente a oposição contra o despotismo dos tempos passados e a disposição de deles resgatar uma lição acerca da essência ou do caráter moral de que se reveste a natureza e a cultura portuguesas. Um conde estupra uma donzela e ainda a oferta ao criado. O caso é levado ao rei e ao conselho, que decidem pela morte do conde. O velho soldado que resgatou a donzela, um frade disfarçado, é o agente da Justiça de Deus: Agora ouvireis o velho: O bom velho do soldado: - Fazeis, bom rei, má justiça, Mau feito tendes julgado: Primeiro casar com ella, E depois ser degolado Lava-se a honra com sangue, Mas não se lava o pecado.

A donzela que vai a guerra é um lindo romance que nos lembra a história de Mulan, o desenho animado recente. Um pai só com filhas não tem vassalo a mandar a guerra e uma delas, a mais velha, se prontifica a tomar o lugar de um soldado. Entretanto, o capitão não se dá por convencido porque lhe reconhece os olhos femininos, pelos quais se apaixona. Isto o leva a testar a masculinidade do soldado, por meio de uma série de estratégias, até o desfecho com o casamento do soldado-donzela e do capitão. A situação da donzella era gavissima, o comprometimento supreme; porem Ella não recuou. Quem affrontava os perigos da guerra, não temia as estratégias da mãi do seu capitão. Aceitou o convite: A donzella, por discreta Começou-se a desnudar.... Traz-lhe o seu page uma carta Poz-se a ler, poz-se a chorar: - “Novas de grande pesar: De que minha mai é morta Meu pai se está a finar”. O modo engenhoso porque se escapa a todas as experiências, e finalmente o meio que empregou para evitar o maior golpe tem muito merecimento e muito chiste. A donzella parte logo para a sua terra, acompanhada pelo seu capitão, que estava realmente perdido de amores pelos olhos do conde Dares. -“Senhor pai trago-lhe um genro, Se o quiser aceitar; Foi meu capitão na guerra, De amores me quis contar... Se ainda me quer agora, Com meu pai há de fallar.” O fecho do romance é delicioso; sobre tudo o ultimo verso em que a donzella se justifica d’um modo tão espirituoso: Sete anos andei na guerra E fiz de filho barão. Ninguém me conheceu nunca Senão o meu capitão, Conheceu-me pelos olhos, Que por outra coisa não.

Conclusão: por meio da redefinição do papel do escritor e da literatura, a história da edição e divulgação dos livros de Almeida Garrett no século XIX, lida nas suas Cartas Íntimas e nas páginas de A Revolução de Setembro, permite surpreender não só o momento de fundação da mentalidade romântica e da figura do autor romântico, na crítica e na produção literárias portuguesas, mas o projeto político-letrado de redefinição da identidade do povo português. Ao conferir uma nova funcionalidade ao poético vernáculo, o Romantismo o legitimará por seu nacionalismo e por sua capacidade de

formar uma mentalidade liberal, por meio do comércio do livro e de uma educação pela leitura. Bibliografia: BARAHONA, Margarida, org. Apresentação Crítica. Poesias de Bocage. 2a ed. Lisboa: Seara Nova / Editorial Comunicação, 1981. p. 13-17. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp, 1998. GARRETT, J. B. de Almeida. Obras Completas. Vila da Maia: INCM, 1963. 2 vols. GARRETT, J. B. de Almeida. Romanceiro. Lisboa, Estampa, 1983, 3 vols. JOBIM, José Luís, org. Introdução ao Romantismo. Rio de Janeiro: Eduerj, 1999. Revolução de Setembro, Lisboa (1, 2 e 3 de Dezembro de 1851). Anúncio e Folhetim sobre os volumes II e III do Romanceiro de Almeida Garrett. TOLENTINO, Nicolau. Sátiras.3a ed. Seleção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa. Lisboa: Seara Nova, 1969. Sátiras e outros poemas de Tolentino. Apresentação crítica, selecção, notas e sugestões para análise literária de Maria da Graça Videira Lopes. Lisboa: Seara Nova / Editorial Comunicação, 1978. ZILBERMAN, Regina. "Almeida Garrett e o cânone romântico". Via Atlântica, São Paulo, n. 1, 54-65, mar. 1997.

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