Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas. Tese de doutorado em Antropologia Social. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MUSEU NACIONAL ALLINE TORRES DIAS DA CRUZ

SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS

RIO DE JANEIRO 2014

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Alline Torres Dias da Cruz

SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS Volume 1

Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Doutora Olivia Maria Gomes da Cunha

Rio de Janeiro 2014

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Cruz, Alline Torres Dias da. Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas / Alline Torres Dias da Cruz. – 2014. 236f.: il. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de PósGraduação em Antropologia Social, Rio de Janeiro, 2014. Orientador: Olivia Maria Gomes da Cunha. 1. Dom. 2. Troca Ritual. 3.Pessoa. 4. Corpo. 5. Família. 6.Imigrantes da República Dominicana – Teses. I. Cunha, Olivia Maria Gomes da (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Museu Nacional. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

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Alline Torres Dias da Cruz

SOBRE DONS, PESSOAS, ESPÍRITOS E SUAS MORADAS Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

Aprovada em Profa . Dra.Olivia Maria Gomes da Cunha (Orientadora) PPGAS/MN/UFRJ

Prof. Dr.Marcio Goldman PPGAS/MN/UFRJ

Prof. Dr.Eduardo Batalha Viveiros de Castro PPGAS/MN/UFRJ

Prof. Dra.Patricia Birman IFCH/Departamento de Antropologia/UERJ

Profa . Dra.Antonádia Monteiro Borges ICH/Departamento de Antropologia/UnB

Prof. Dra. Giralda Seyfert (Suplente) PPGAS/MN/UFRJ

Profa. Dra.Ana Claudia Cruz (Suplente) ICHF/UFF

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CRUZ, Alline Torres Dias da. Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas. Rio de Janeiro: 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. A tese versa sobre a manutenção ritual cotidiana dos mistérios, espíritos que pertencem aos panteões do vodu, por imigrantes da República Dominicana, chamados de pessoas que têm os mistérios, que vivem em Porto Rico. O material etnográfico realça os mistérios como uma espécie de herança familiar em circulação. Pessoas e mistérios descrevem as experiências multifacetadas e densas entre eles com categorias como dom, atender, trabalhar, pagar, corpo e consumo. Deixando-se conduzir pela trama relacional que essas categorias informam, a tese tem como objetivo inicial demonstrar a maneira singular como a noção de pessoa é compreendida pelos interlocutores, vivos e mortos, que tomam parte nesta etnografia. O segundo objetivo é discutir os modos de atenção ritual enquanto formas de troca que produzem dependência recíproca e trabalho entre os dominicanos e seus espíritos, a partir da manipulação de substâncias e objetos cuja importância reside em seus efeitos sensíveis. Tomando as práticas de sensibilização dos mistérios como técnica ritual fundamental, o terceiro objetivo é discutir como certa materialidade – artefatos, imagens e substâncias – é interiorizada nas casas, visando-se à recriação de certas paisagens de lembrança para os mistérios, que assim as habitam; bem como manipulada nos ambientes domésticos como dispositivos de afastamento de tantos outros. Palavras-chave: Dom, Troca Ritual, Pessoa, Corpo, Família, Imigrantes da República Dominicana

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CRUZ, Alline Torres Dias da. Sobre dons, pessoas, espíritos e suas moradas. Rio de Janeiro: 2014. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. This thesis discusses the daily care of misterios (mysteries); spirits that belong to the vodou pantheon, by immigrants from the Dominican Republic that live in Puerto Rico called personas que tienen los misterios (people that have the mysteries). The ethnographic material reveals these misterios as a kind of family legacy in circulation. People and misterios describe their multifaceted and dense experiences in between them with categories such as don (divine gift), atender (to attend), trabajar (to work), pagar (to pay), cuerpo (the body) and consumo (consumption). The initial objective of the thesis is to demonstrate the singular manner in which the notion of person is comprehended by the interlocutors, alive and deceased, that take part in this ethnography, through the relational plot that these categories inform. The second objective is to discuss the forms of ritual attention as ways of exchange, which produce a reciprocal dependence and work in between Dominicans and their spirits through the manipulation of substances and objects whose importance resides in their sensitive effects. Taking the misterios awareness practices as a fundamental ritual technique, the third objective is the discussion of how certain materials- artifacts, images and substances- are interiorized in houses, achieving a recreation of the misterios scenery that live in them; and also how these things are manipulated in the domestic ambience as devices of alienation from so many others. Keywords: Gift, Ritual Exchange, Person, Body, Family, Dominican Republic Immigrants

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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO 1.1 Relações.....................................................................................................................14 1.2 Configurações............................................................................................................20 1.3Trocas.........................................................................................................................22 1.4 Des(Encontros)..........................................................................................................25 1.5 Interpelações..............................................................................................................32 1.6 Trânsitos e travessias.................................................................................................34 1.7 Capturas ou enredada pela própria trama..................................................................39 CAPÍTULO 1 DOM EM CIRCULAÇÃO 1.1 AS PESSOAS E SEUS MISTÉRIOS 1.1.1 A missão e os caminhos de Joana.......................................................................45 1.1.2 A árvore de Gina.................................................................................................47 1.1.3 No meio disso: Rosa e Diogo...............................................................................49 1.2 CONECTANDO ‘PESSOAS’, FAMÍLIA E ESPÍRITOS......................................51 1.3 INCORPORANDO O PARENTESCO...................................................................59 1.3.1 Montar ou subir: percursos do dom no corpo...................................................60 1.3.2 Objeto e Cavalo.....................................................................................................65 1.3.3 Há uma metresa em cima.....................................................................................68 1.3.4 Não governo de si..................................................................................................70 1.3.5 Sonhos e outras formas de incorporação...........................................................73 1.3.6 Vicissitudes do dom: transitando por e incorporando habitus humanos e animais...........................................................................................................................73 1.3.7 Consumo dos corpos............................................................................................77 CAPÍTULO 2 FLUXOS, DIMENSÕES E TRANSBORDAMENTOS 2.1SOBRE COMO GERAR LUZ, FORÇA E OUTRAS DISPOSIÇÕES .........................................................................................................................................81 2.2 PRESTAÇÕES RITUAIS: SUAS CONEXÕES, SEUS EFEITOS 2.2.1 Servir e Conectar..................................................................................................85 2.2.2 Servir e Alienar.....................................................................................................89 2.2.3 Dos serviços que geram revolta...........................................................................96 2.2.4 Fazer chegar para trabalhar..............................................................................100 2.2.5 Pagar e adocicar: táticas de um plano ritual...................................................109 2.2.6 Tateando mistérios e divisões............................................................................113 CADERNO DE IMAGENS CAPÍTULO 3 A CASA E OS ALTARES: INCORPORANDO TEMPOS, ESPAÇOS, RECRIANDO PAISAGENS MNEMÔNICAS 3.1 ALGUMAS AMBIENTAÇÕES........................................................................... 130 3.2 DIVISÕES INCRUSTADAS NA TERRA 3.2.1 Os guedeses e suas sensações.............................................................................136 3.2.2 Escavar a terra, ver do mirante........................................................................139 3.2.3 Rebeldes da terra, do rio e do monte................................................................141 3.3 HORIZONTES EFÊMEROS: OS SANTOS DE CIMA E SEUS ARTEFATOS ......................................................................................................................................142 3.4AS COORDENADAS DAS SUBSTÂNCIAS E DOS MODOS DE SERVIR ......................................................................................................................................145

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3.5 MANIPULANDO SOCIALIDADES..................................................................146 3.6 SINCRONIZAÇÃO E HIERARQUIAS............................................................. 152 CADERNO DE IMAGENS CAPÍTULO 4 APROPRIAÇÕES E SUBVERSÕES ESPIRITUAIS 4.1 NARRATIVAS VISUAIS ..................................................................................166 4.1.1Uma guedé e suas imagens................................................................................170 4.1.2 Um quadro, dois oguns....................................................................................172 4.2 A FESTA DE SÃO MIGUEL..............................................................................173 4.2.1 Horas Santas.....................................................................................................176 4.2.2 Festejando como morto....................................................................................178 4.2.3 Mistérios, doutores da igreja e antepassados...................................................184 4.2.4 Fogo, chaves e São Pedro.................................................................................186 4.2.5 Das bênçãos em utensílios quebrados................................................................187 4.3 TRANSFORMAÇÕES........................................................................................189 CADERNO DE IMAGENS CAPÍTULO 5 AS COISAS MÁS NA CASA 5.1 SOBRE ALGUNS ESPAÇOS PRECÁRIOS....................................................196 5.2 BOTÂNICAS: ENTRE MATERIALIDADES E COSMOLOGIAS................203 5.3 UMA SUSPEITA DE BRUXARIA: ATIVANDO ODORES ACRES, AFASTANDO ESPÍRITOS INVISÍVEIS...........................................................................................205 5.4 TÉCNICAS ESPECTRAIS................................................................................210 5.4.1 Outras receitas para espantar os mortos......................................................215 5.4.2 Joana e seu morto...........................................................................................217 5.4.3 Comprando com São Elias: de pedras a mortos ou de anônimos a afins ..................................................................................................................................218 CADERNO DE IMAGENS CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 226

REFERÊNCIAS....................................................................................................230

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A Luiz Carlos Dia da Cruz (In Memoriam)

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Agradecimentos Essa tese é produto de uma série de engajamentos individuais e coletivos. Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro e ao CNPq a concessão da bolsa de doutorado que permitiu a realização do curso de pós-graduação e a condução do trabalho de campo etnográfico em Porto Rico. À minha orientadora, Olivia Maria Gomes da Cunha, pela qualidade acadêmica com que conduziu os cursos que me ambientaram à literatura e aos assuntos relacionados à antropologia caribenha, e com que orientou a tese. A todos os colegas do Laboratório de Antropologia e História (LAH/MN) pela partilha de experiências que se desenrolaram em águas caribenhas. Aos professores Marcio Goldman, Eduardo Viveiros de Castro, Patricia Birman e Antonádia Borges pela participação na banca. Ao Instituto de Estudios del Caribe (IEC) da Universidad de Puerto Rico-Recinto Río Piedras, especialmente a Humberto García Muñiz e Ovidio Torres, pelo apoio institucional e incentivo ao longo do desenvolvimento da pesquisa. A Juan Giusti Cordero pelo imenso apoio acadêmico e pessoal em Porto Rico. A Dale Tomich pelos ensinamentos valiosos durante o curso que proferiu no PPGAS/MN em 2009. À equipe administrativa da Universidad de Puerto Rico-Recinto Río Piedras e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, especialmente à Carla Ramos, Alessandra, Fernanda Alves, da Biblioteca Francisca Keller, e à Adriana de Alcantara, Carla Cardoso, Bernardo Carvalho e Isabelle, da Secretaria Acadêmica. Durante os anos em que estive no curso de doutorado conheci pessoas que contribuíram muito nos caminhos que trilhei dentro e fora dele. Sou muito grata a Waldemir Rosa, Mariana Renou, Marcelo Mello, Rodica Weitzman, Handerson Joseph, Magdalena Toledo, Carlos Gomes, Alessandro Angelini. Outras pessoas especiais, a quem sou muito grata são Alain Kaly, Anita Kaly, Aline Camargo Torres, Carla Ramos, Clícea Miranda, Alea Melo, Henri Sidney, Emmanuelle Kadya Tall, Jehyra Asencio, Jose Manuel Gonzalez Cruz, Beatriz Martins Moura, Telma Bemerguy, Anderson Lucas, Rosemeire Sanca, Abel Sanca, Francisco Carlos Antonio da Conceição. Pela abertura de portas e caminhos, levando-me para dentro de suas casas, que os meus interlocutores dominicanos e seus mistérios efetuaram para mim, Muchas Gracias! Pela força daqueles que são também a minha força, amor e gratidão para sempre: à minha mãe, Marlene Torres da Silva Dias da Cruz, ao meu pai, Luiz Carlos Dias da Cruz (In memoriam), a Luiz Gustavo Torres Dias da Cruz e Ellaine Torres Dias da

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Cruz, meus irmãos, ao meu tão pequeno e já tão grande filho Guilherme Biagui Torres Dias da Cruz Kaly, a Gabriel Torres Dias da Cruz Fernandes e Bernardo Torres Dias da Cruz Fernandes, nossos gêmeos queridos.

Levado ao universo das simbioses, metido até o pescoço em poços cujas águas eram mantidas em perpétua espuma pela queda de retalhos de ondas, rasgadas, laceradas, rompidas na rocha viva e mordente do dente-de-cão, Esteban maravilhava-se ao observar como a linguagem, nessas ilhas, tivera de recorrer à aglutinação, à amálgama verbal e à metáfora para traduzir a ambiguidade formal de coisas que participavam de várias essências. (Alejo Carpentier, O Século das Luzes, p. 191).

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Lista de Imagens Imagem 1. Altar para os mistérios na casa de Rosa.....................................................122 Imagem 2. Altar para os mistérios na casa de Rosa. Santa Marta A Dominadora e São Elias, espíritos guedeses...............................................................................................123 Imagem 3. Velas para os santos. .................................................................................124 Imagem 4. Altar para os mistérios de Gina. Serviço de mel com tabaco para tranquilizar Jean Crimnel (São Sebastião), espírito petro. .............................................................125 Imagem 5. Altar para os mistérios na casa de Joana....................................................126 Imagem 6. Altar para os mistérios de Gina. Lámpara divisional em recipiente circular de vidro, serviço para a 21 Divisão..............................................................................127 Imagem 7. Altar para os mistérios na casa de Armando. Serviço para Metresili (Virgem A Dolorosa)..................................................................................................................128 Imagem 8. Figura em papel de Nossa Senhora da Aparecida......................................129 Imagem 9. Altar para os mistérios na casa de Raul. Divisão dos guedeses.................155 Imagem 10. Altar para os mistérios na casa de Raul. Serviços para os guedeses São Expedito/Guedé Limbó (à esquerda) e Santa Marta A Dominadora ......................................................................................................................................156 Imagem 11. Altar para os mistérios na casa de Armando. Divisão dos guedeses: São Expedito, São Elias e Santa Marta A Dominadora, santos da terra, e alguns trabalhos e serviços rituais..............................................................................................................157 Imagem 12. Altar para os mistérios índios na casa de Armando, que escavou a terra sob o chão e as paredes para ambientar esses espíritos .....................................................158 Imagem 13. Altar para os mistérios índios contíguo aos espíritos guedeses e a outros mistérios do rio............................................................................................................159 Imagem 14. Boneca que seria transformada ritualmente no mistério Anacaona (índia)..........................................................................................................................160 Imagem 15. Mistério índio, cercado por alguns artefatos, e contíguo a São João Batista, um ogun, e a miniaturas de galos ...............................................................................161 Imagem 16. Chapéu em tecido azul confeccionado para São Santiago/Ogun Balendyó, e vermelho, em palha, para Papa Candelo (Candelo Sedifé)........................................162 Imagem 17. Artefatos de Candelo Sedifé: machete e um tipo de sacola (macuto) ....................................................................................................................................163 Imagem 18. Santas de cima (metresas) a imagem de Gran Toroliza/Jesus da Boa Esperança, espírito petro do monte.............................................................................164 Imagem 19. Altar para os mistérios com os santos de cima.......................................165 Imagem 20. Quadro de Ogun Balendyó/São Santiago Apóstolo tendo atrás Ogun Ferraile, cavaleiro com armadura e espada.................................................................191 Imagem 21. Altar para a festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan..........................192 Imagem 22. Serviço ritual para os mistérios................................................................193 Imagem 23 Serviço ritual (feijão e arroz, batata doce e arenque) para Guedé Limbó (São Expedito) no dia da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan..................................194 Imagem 24. Objetos de Guedé Limbó: ao fundo, seu macuto (sacola de palha), seu chapéu feito com esse mesmo material e seu lenço preto............................................195 Imagem 25. Resguardo preso no alto da botânica de Rosa..........................................221 Imagem 26. Resguardo preso no alto do portão principal da casa de Rosa ......................................................................................................................................222

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Imagem 27. Pañuelo vermelho, proteção dos mistérios, amarrado na janela de uma casa vizinha à de Rosa..........................................................................................................223 Imagem 28. Cruz desenhada com anil, para afastar as coisas más, na entrada de acesso à casa de Rosa................................................................................................................224 Imagem 29. Tecidos presos ao teto no altar onde Armando trabalha ritualmente .....................................................................................................................................225

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INTRODUÇÃO 1.1 Relações – Cada cabeça é um mundo, e os mistérios pegam a que eles querem; – Esses santos são bem interessados, mesmo se for uma vela, se você prometeu a eles, você tem que dar, ou seja, são bem interessados...1 Ao ouvir esses comentários, respectivamente de Gina e Joana, em momentos diferentes do trabalho de campo que conduzi em Porto Rico, 2 entre 2010 e 20113 tinha a intenção de escrever uma tese sobre a relação dos dominicanos, dentre eles Gina e Joana, com os mistérios, espíritos transmitidos a elas pelos seus antepassados familiares. Entretanto, ainda não era capaz de imaginar o resultado a que chegaria logo que me dediquei a produzi-la: ao reler as anotações de campo; ao grifar as expressões e termos que eram recorrentes no convívio com meus interlocutores e ao comentá-los numa espécie de diálogo sobreposto e paralelo com eles e comigo mesma, durante e depois da pesquisa; ao relembrar cenas, gestos, vozes e cheiros enquanto eles agiam e explicavam-me (ou não) o que faziam; ao rever fotografias e ao redescobri-las a partir de um novo olhar acerca das ‘relações’ entre ‘pessoas’ e mistérios. Os mistérios são espíritos que devem ser atendidos ritualmente pelos meus interlocutores dominicanos porque são concebidos como uma herança familiar. Alguns desses espíritos são servidos também pelos haitianos. Na literatura antropológica sobre o vodu no Haiti, muita mais extensa e antiga que a produção antropológica sobre a República Dominicana (DEIVE, 1975; ALEGRÍA-PONS, 1993; DAVIS, 1987; SÁNCHEZ-CARRETERO, 2005a, 2005b, 2008), tais entidades são chamadas de mystères/mystè (HERSKOVITS, 1971, p. 78, 80, 89, 99; DEREN, 2004, p. 29; 1

Ao longo desse trabalho farei uso de alguns sinais gráficos para diferenciar os significados, as ênfases, e os diferentes contextos em que termos e expressões foram utilizados por mim, pelos meus interlocutores, e os autores citados. Termos e expressões utilizados pelos meus interlocutores aparecerão em itálico. Aspas duplas identificarão as citações e termos utilizados pela bibliografia. Utilizarei aspas simples quando for minha intenção enfatizar certos termos. Termos em espanhol ou em crioulo haitiano que não são pronunciados pelos meus interlocutores serão mantidos sem grifos e acompanhados, quando for necessário, de tradução entre parênteses. 2 Território colonial espanhol desde o século XV ao lado de outras possessões coloniais espanholas (Cuba, Filipinas e pequenas ilhas do Pacífico), Porto Rico sofreu intervenção norte-americana e foi anexado aos EUA em fins do século XIX. Atualmente seu estatuto jurídico é o de Estado Livre Associado (ELA) ao governo norte-americano. 3 Na primeira viagem, fiquei em Porto Rico por quase três meses, entre fevereiro e abril de 2010. Na segunda, permaneci por quase seis meses, entre setembro de 2010 e março de 2011. Ainda nesta Introdução descreverei as condições de produção dos dados etnográficos da tese.

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MÉTRAUX, 2007, p. 66), de loa/lwa (espíritos) (MÉTRAUX, 2007, p. 13, 53; RICHMAN, 2008, p. 22; MCCARTHY BROWN, 2001, p. 5); de senj/sen-yo (santos) (DEREN, 2004, p. 29; MCCARTHY BROWN, 2001, p. 6) e ainda de anjos (MCCARTHY BROWN, 2001, p. 111). Além de mistérios, meus interlocutores usam santos e arcanjos para fazer referência a esses espíritos. Haiti e República Dominicana não compartilham somente uma mesma ilha no Caribe, chamada de Hispaniola, mas ‘pessoas’, espíritos, experiências de sujeição colonial, de trabalho (com os deslocamentos migratórios e imigratórios) e narrativas históricas sobre o passado escravista. Até fins do século XVII a ilha Hispaniola era ocupada apenas pela Espanha e, nessa época, foi divida e cedida à França, que criou na parte ocidental a colônia de Saint Domingue, atual Haiti. Haiti e República Dominicana só se consolidaram como nações independentes durante o século XIX. O Haiti do colonialismo francês e a República Dominicana, brevemente do colonialismo espanhol e em seguida do próprio Haiti. Ocupações militares – às quais se adicionou a dos EUA, em ambos os países, nas primeiras décadas do século XX –, confrontos armados, massacres, interdições territoriais, e racismo, que perduram até hoje, caracterizaram as relações entre as duas nações. Atualmente, dominicanos que descendem de haitianos não têm direito à cidadania na República Dominicana por uma decisão da alta corte do judiciário, efetivada em setembro de 2013. Apreensão de documentos civis e deportação são algumas das ações violentas a que os descendentes de haitianos, nascidos na República Dominicana, estão sendo submetidos pelo governo desse país ao longo dos últimos meses. A atenção para o que diziam meus interlocutores e a tarefa de percorrer uma literatura que pudesse iluminar e permitir-me imaginar de novo, não apenas as experiências das ‘pessoas’ com as quais convivi, mas também as minhas junto a elas, levaram-me a escrever um trabalho em que, eu espero, são as ‘relações’ que se fazem presentes. Mas o fato de que essa ideia já se insinuava durante o trabalho de campo não significa que eu lidei com ela do mesmo modo. Eu precisei fazer uma opção teórica ao redigir a tese, cujos personagens principais são os interlocutores dominicanos e seus espíritos chamados de mistérios. E essa opção tem a ver com uma imposição do que veio se tornar o material etnográfico da tese. Pois, apesar dessa aparente definição de duas unidades discretas – dominicanos e mistérios –, quase nada que descrevo concerne a agências independentes.

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Com isso, quero destacar que não se trata simplesmente de pensar essas duas contrapartes da pesquisa, ‘humanas’ e ‘não-humanas’, como agências independentes que interagem ou entram em contato indiferentes a qualquer forma de lastro. Imaginar isso significaria evocar os meus interlocutores dominicanos e os mistérios como seres mais ou menos autônomos. E tal abordagem, parece-me, seria equivocada face às narrativas e aos argumentos que me foram explicitados e que apresentarei ao longo dos capítulos. Essa tese é sobre homens e mulheres da República Dominicana que vivem em Porto Rico e atendem e trabalham ritualmente os mistérios porque seus avós, tios e pais o fizeram (ou ainda o fazem). É dessa perspectiva – e ela não exclui a existência de outra, como discutirei no primeiro capítulo – que o material etnográfico se afirma. Diante disso, o que enfatizo é que os modos de atenção e trabalho rituais qu e serão descritos reivindicam a existência de outros agenciamentos para explicar a sua realização atual. Esses agenciamentos são, às vezes, descritos como temporalmente anteriores, em outros casos não, mas ainda assim se referem a “relações prefiguradas” (STRATHERN, 2009, p. 332; 1999, p. 39-40) de antepassados familiares com os mistérios. São relações prefiguradas que tornam possíveis as interações contemporâneas que descrevo em boa parte da tese. E é a partir dessa espécie de pano de fundo que proponho que um dos objetivos desse trabalho, o mais geral deles, é problematizar a transmissão familiar dos mistérios. Assim chamo a atenção do leitor para um processo de singularização de ‘pessoas’ afeito a esse tipo de transferência de espíritos. Os caminhos que percorro para problematizar isso têm a ver com algumas perspectivas teóricas. Uma delas é aquela proposta por Marilyn Strathern, pois o que chamo de singularização da ‘pessoa’ visto da perspectiva da transmissão familiar dos espíritos tem a ver justamente com uma tentativa de pensar meus interlocutores dominicanos como um “lócus plural e compósito de relações [...]”. “A pessoa singular” [como Marylin Strathern enfatizou para as concepções melanésias], pode ser imaginada como um microcosmo social.” (STRATHERN, 2009, p. 40-41). Tento apropriar-me dessa ideia, que Strathern sintetiza como a de uma “socialidade generalizada” contida na “pessoa” (do ponto de vista de seus interlocutores da Melanésia), para refletir sobre o material etnográfico, por duas razões: uma delas tem a ver com a transmissão dos mistérios, a outra com a maneira como meus interlocutores dominicanos se definiam (ou definiam outros) quando pretendiam informar a ‘relação’

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(ou melhor, ‘as relações’) sobre as quais tento produzir uma compreensão antropológica. Dieterlen (1973, p. 9-10, 12) observou no pronunciamento de abertura de um colóquio internacional sobre a “noção de pessoa” na chamada “África Negra” a influência do artigo de Marcel Mauss (1938) para as reflexões que viriam problematizar esse assunto. Tal influência ocorreu, basicamente, em contextos de pesquisa etnográfica que, para os pesquisadores, não eram associados às culturas ocidentais, como a Melanésia, com o trabalho de Maurice Leenhardt, e a África Ocidental, com o trabalho de Marcel Griaule sobre os Dogon.4 Goldman (1996, p. 84, 88) salientou, no entanto, que a insistência no problema da “pessoa” poderia refletir uma inquietação ocidental. Para ele, a centralidade de uma reflexão como essa para outras culturas deveria, antes, ser algo questionado. Ele ainda chama a atenção que o consagrado artigo de Mauss indica duas direções para as pesquisa antropológicas sobre tal noção, uma linha evolutiva e outra relativista. O que tento fazer a partir do material etnográfico da tese é demonstrar certos modos de conhecer e experienciar os mistérios como alteridades, mas não apenas, uma vez que esses espíritos não são simplesmente ‘outros’, mas igualmente agências que geram afetos diversos nas ‘pessoas’, o que cria para elas modos de vida caracterizados pela instabilidade e a variação. Para isso tento descrever certas configurações relacionais em dimensões diferenciadas que se contrastam. É por meio dos contrastes entre essas dimensões, em que os meus interlocutores dominicanos e os mistérios interagem ou agenciam, que os primeiros, as ‘pessoas’ se singularizam. Carsten (1995, p. 223-224), por exemplo, observou também que a noção de pessoa orientou as investigações antropológicas entre as sociedades da Oceania, mas o investimento sobre as relações de troca e transações gerou um caminho de análise focado na transitoriedade e na capacidade de transformação entre “pessoas” e “coisas”. Enquanto que a parte oeste do continente africano, quando comparada à produção antropológica sobre a Melanésia, parece ter ficado à sombra de tal perspectiva nas monografias clássicas, que reverberavam compreensões mais ou menos imutáveis da pessoa. Como será visto é justamente tentando pensar o material da tese à luz das discussões sobre a circulação de dádivas e a 4

Sobre uma reflexão antropológica que procura pensar a noção de pessoa vinculada ao pensamento ocidental liberal articulada ao tráfico atlântico de escravos, e às novas formas de conceituar tal noção atualmente a partir das experiências de transplantes de órgãos e de captura de despojos humanos em práticas religiosas afro-cubanas cf. Palmié (2006).

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noção de “pessoa melanésia” que chamo a atenção para a alternância e a alteração que são criadas nas relações entre meus interlocutores, ‘humanos’ e ‘não-humanos’ durante o trabalho de campo. Para facilitar o desenvolvimento da argumentação, explicito antes a segunda razão que pautou minhas escolhas teóricas. A proposição de uma discussão que considerasse a noção antropológica de pessoa, mesmo considerando as ressalvas de Goldman, tem a ver com uma observação que fiz logo no início do trabalho de campo. Eu notei que pessoas que têm os mistérios era a maneira como meus interlocutores dominicanos se expressavam para sinalizar aqueles e aquelas que mantinham certos vínculos com esses espíritos. De outro modo, em suas interações e comentários correntes, eles empregavam termos em espanhol como la gente e/ou uno (as pessoas e alguém em português). O que quero dizer com isso é que o termo persona (pessoa) emergia quase sempre com um sentido mais circunscrito. Tal termo caracterizava uma ligação com aqueles espíritos e informava uma compreensão sobre a posse dessas entidades, com o emprego do verbo ter. Em sentido amplo e costumaz, o que eu ouvia eram os termos la gente e uno. Ao perceber isso, comecei a me questionar que pessoas que têm os mistérios poderiam ser essas. De fato, com essa indagação, eu pressupus uma separação radical entre “mim” e “eles”. Neste momento, implicitamente tinha como uma espécie de premissa antropológica que “[...] tomando por ponto de partida um dos sentidos que a tradição ocidental tem dado à noção [de pessoa], haveria o risco de encerra-[lá] em uma problemática de inspiração judaico-cristã que seria talvez completamente estranha aos modos de pensamento das sociedades da África Negra” (CARTRY, 1973, p. 19); e eu poderia, ingenuamente, dizer, caribenhas. No entanto, como ressaltou Trouillot (1992, p. 21), [...] quando Tylor publicou o primeiro livro geral de antropologia em inglês, em 1881, Barbados tinha sido ‘britânico’ por dois séculos e meio, Cuba tinha sido ‘espanhola’ por quase quatro séculos, e o Haiti era um estado independente por três gerações, após um longo século francês em que foi o responsável por mais da metade do comércio externo da metrópole’.

Segundo Trouillot, dificilmente haveria, no Caribe, lugares para olhar para os “primitivos”. Nesse sentido, a própria existência da “região” questionou a dicotomia Ocidente/não-Ocidente e a categoria de nativo sob as quais a antropologia estabeleceu suas premissas. O fato de as sociedades caribenhas serem inerentemente coloniais, ele argumenta, não diz respeito apenas à constatação de que todos os territórios caribenhos

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foram conquistados por um ou outro poder ocidental, nem que são as colônias mais antigas do Ocidente e que sua colonização foi parte do processo material e simbólico que propiciou a emergência do Ocidente como o conhecemos. Para Trouillot, as características sociais e culturais dessas sociedades não podem ser compreendidas ou descritas sem referência ao colonialismo. Conforme ele, essa inescapável característica impede a ressurreição do nativo, mesmo quando o colonialismo não é evocado explicitamente. E considerando-se que a antropologia prefere situações de “pré-contato” – ou cria situações de “não-contato” – “o Caribe é nada a não ser contato.” (TROUILLOT, 1992, p. 22). Diante dessas implicações epistemológicas, o questionamento do estatuto ontológico da pessoa que têm os mistérios, que discuto no primeiro capítulo, não significou somente uma inquietação intelectual minha e da literatura sobre as socialidades caribenhas. Essa era uma inquietação que os meus interlocutores também manifestaram para mim, como descreverei mais à frente. Alguns deles também se indagavam sobre os sentidos de se conceber e viver como tais pessoas, e, nesse sentido, submetiam seus próprios modos de vida à crítica, à reflexão e ao pasmo. Mas, além disso, tomei a noção antropológica de pessoa como uma ferramenta analítica rentável porque a transmissão familiar desses espíritos, do ponto de vista dos meus interlocutores (vivos e mortos), não se separa de um tipo de engajamento que eles chamam de atender e trabalhar os mistérios. Nesse sentido, ‘pessoa’ é um termo importante porque os dominicanos que conheci o mobilizam para aludir ou ressaltar uma confluência de concepções que recaem sobre certos seres humanos, e não todo e qualquer um. Mas sua importância se deve ao fato de que, ao mobilizar esse termo, eles sinalizam que ter esses espíritos implica a realização de uma série de atividades, tarefas, comprometimentos, bem como inconvenientes e controles. Dentre essas atividades e tarefas, algumas são descritas como trabalhar. A análise dos sentidos conferidos à ideia de trabalhar os mistérios, como me foi enfatizado durante o trabalho de campo, pode aproximar-se do debate que Marilyn Strathern propôs sobre as relações sociais que estariam encerradas dentro da “pessoa melanésia” e não fora dela. Procuro argumentar que assumir e trabalhar esses espíritos significa atualizar uma série de ‘relações’ que os antepassados familiares entretiveram com os mistérios. São esses vínculos que vêm à tona quando se diz que se é uma pessoa

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que tem esses espíritos. Trata-se, então, de sinalizar para certa configuração relacional no interior da qual meus interlocutores dominicanos se concebem. 1.2 Configurações A essa configuração eles atribuem o nome de família. Esse é o universo de referência e existência no interior do qual a atenção e o trabalho ritual são entretidos e justificados. 5 O assunto da transmissão familiar dos espíritos, claro, não é novo. Uma extensa literatura sobre o que se convencionou chamar de práticas vodu no Haiti (HERSKOVITS, 1971 [1937]; HURSTON, 2008 [1938]; MÉTRAUX, 2007 [1958]; DEREN, 2004 [1953]; MCCARTHY BROWN, 2001; RICHMAN 2008) sublinhou que as diferentes gerações com as quais esses antropólogos lidavam serviam (alimentavam) espíritos que já vinham recebendo atenção ritual de seus antepassados familiares nas terras em que viviam há anos. E tal investimento etnográfico completará, daqui a pouco, nada menos que um século. Mas se o assunto da transmissão familiar dos espíritos não é novo, ele foi quase sempre tratado como um dado. Não teve apelo de problema em quase todas as etnografias clássicas e contemporâneas sobre religiões afro-caribenhas e práticas rituais. Mesmo em uma etnografia como a de Karen Richman, uma das mais recentes e importantes sobre o vodu no Haiti e na chamada diáspora. Richman propõe uma discussão sobre a transferência familiar dos espíritos. Essa transferência perpassa todo um emaranhado de práticas rituais, definição de obrigações entre espíritos herdados, parentes e manutenção da posse das terras, regulação de estilos de vida, bem como concepções sobre família e trabalho assalariado no Haiti e no exterior. No entanto, todos esses aspectos são subsumidos a uma análise sobre manutenção substantiva. O que quero dizer com isso é que Richman encarou a transmissão dos espíritos nas famílias haitianas de Léogâne, comuna do sul do país, como um tipo de transferência de substância. “Substância”, ela diz, “tem a ver com coisas internas e inseparáveis das pessoas” (RICHMAN, 2008, p. 148). Meu argumento mais geral, como eu chamei a atenção tendo os argumentos de Strathern (2009) em mente, é demonstrar 5

Esse é um assunto que caracteriza várias coletividades vinculadas como família no Caribe. Kerns (1997, p.1-2) chama a atenção, em sua etnografia sobre os Black Caribs (Garífunas), em Belize, para os rituais que pretendem lembrar os parentes lineais mortos, que ficam sob a responsabilidade das mulheres mais velhas, mãe dos vivos e filhas dos mortos. Ao organizarem os procedimentos rituais, essas mulheres coletam fundos para realizá-los, e assumem os papéis mais importantes neles, protegem e representam seus filhos, netos e outros parentes para os ancestrais. Já Besson (2002, p.30) indicou que “o complexo religioso-mágico afro-jamaicano do obeah-myal, baseado em elaborados rituais mortuários que refletiam a percepção de um mundo espiritual ativo incluindo parentes ancestrais, reforçou o sistema de transmissão da terra costumeiro com o padrão de sepultamento baseado na descendência cognática.”

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que essa transmissão tem a ver justamente com “coisas” que não “são internas e inseparáveis”. O esforço analítico, então, é chamar a atenção para o que meus interlocutores dominicanos entendem por trabalhar os mistérios: um modo de vida cujos desdobramentos são variados e densos. Esses modos de vida dizem respeito a práticas de transferência que não se restringem ao sangue, entendido enquanto substância transmitida linearmente dos antepassados a seus descendentes e que garantiria a reprodução da família e dos espíritos, nem aos serviços, substâncias alimentares oferecidas aos mistérios para mantê-los. Tomo a ideia de trabalhar os mistérios (ritualmente) como um conjunto de ‘relações’ – e não apenas de substância – passível de ser transferido àqueles que se concebem como família. Isso significa que o pano de fundo teórico (e não etnográfico) que mobilizo recupera uma discussão que como a própria Strathern (2009) e também Janet Carsten (2011, p.22) indicaram, liga-se às considerações de Roy Wagner sobre os Daribi. Especificamente quando ele observa que “a troca de coisas destacáveis, separáveis, se encontra em oposição ao fluxo da substância interna (linear) [...] [tais coisas] fluem na troca através de relações não unificadas internamente por substância” (STRATHERN, 2009, p. 310apud WAGNER 1977a, p. 632). Daí resulta uma “pessoa melanésia”, Strathern aponta, constituída por uma separação entre relações internas e externas. As conseqüências que derivam dessas convenções melanésias direcionam o debate de Strathern (2009, p. 311) para considerações que são distintas daquelas que eu pretendo apontar. Ela chama a atenção, por exemplo, para o fato de que essa separação convencional, como indicou Roy Wagner, tem uma equivalência (por causa da capacidade de “substituição” e “replicação”) na personificação do próprio corpo melanésio. O corpo, enquanto um composto de relações, é o resultado das performances que visam objetificá-lo como uma “pessoa”. 6 Como será discutido no primeiro capítulo, eu tento demonstrar que os meus interlocutores dominicanos incorporam relações que poderíamos chamar de “internas e externas”, e isso têm uma série de implicações para a 6

Cito uma consideração da autora que me parece esclarecedora quanto à especificidade da reflexão que ela propõe: “Se focalizássemos, da nossa perspectiva ocidental, a forma substantiva das relações, poderíamos ser tentados a considerá-la respectivamente como o fluxo de coisas entre pessoas e como o crescimento de coisas no interior da pessoa. (...). Como alternativa [à perspectiva ocidental] (...) as relações [a partir do material etnográfico melanésio] podem ser tornadas visíveis através da substituição, da criação de uma coisa que incorpora essas relações numa outra forma” (STRATHERN, 2009, p. 274).

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maneira como se concebem como pessoas que têm os mistérios. Nesse sentido, seus agenciamentos não pretendem, como na discussão de Strathern, tornar visíveis ou trazer à tona (objetificar) relações, para que desse procedimento surjam “pessoas” (melanésias). O que meus interlocutores dominicanos objetificam aparece mais como desdobramentos por terem incorporado certas ‘relações’ de seus antepassados com os mistérios. Um desses desdobramenros em seu cotidiano é o distanciamento que conhecem de seus corpos: à medida que esses espíritos os ocupam, eles experienciam formas de alteridade (e afetos variados) entre corpo e pessoa, pessoa e espírito e corpo e mente. Os mistérios são associados a uma transferência biológica e a uma transmissão de trabalho ritual. Trata-se de dois processos que se referem a fluxos diferentes. No primeiro caso, meus interlocutores falam em sangue, no segundo caso em relações sociais. Isso me leva a propor que as pessoas incorporam variadas ‘relações’ descritas como específicas à família. Para elas, esse domínio coletivo não é pensado como propiciador simplesmente de um fluxo de sangue e outras substâncias. Pela família também circula a responsabilidade se efetuar trabalho ritual. Chamo a qualidade dupla desse processo de transferência de ‘incorporação do parentesco’ e a partir dela discuto o segundo objetivo da tese: as implicações dessa forma de relacionar-se ou de criar “conexão” (CARSTEN, 2000) para as pessoas que têm os mistérios. Ao destacar isso não me volto para a questão de como alguém se torna parente, como Carsten (1995, p. 226, 229), por exemplo, sugeriu ao discutir as práticas de alimentação, comensalidade e coabitação a partir da transmissão e partilha de substâncias como o sangue, o arroz e o leite, entre os ilhéus de Langkawi (Malásia). Em meu material etnográfico o que se evidencia é como os espíritos, por meio de dois processos de transferência, chegam aos meus interlocutores dominicanos como um dom familiar: algo natural e que precisa ser retribuído. Ao chamar a atenção para as implicações dessa forma de conexão ou de ‘relação’, o que faço então é pensar o parentesco da perspectiva do que ele transfere e do que essa transferência cria para aqueles que a receberam. É desse ponto de vista que meus interlocutores dominicanos expressam suas compreensões acerca de suas singulares pessoas. 1.3 Trocas A consideração de que os mistérios chegam às pessoas como um dom, se, de um ponto de vista, concerne a dois tipos de transferência familiar, outros pontos de vista

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perpassam essa premissa. Essa transferência é apenas uma das dimensões que conecta esses seres humanos e espirituais. Isso porque para além de serem transferidos e circularem por diferentes gerações familiares solicitando as cabeças que escolhem, os mistérios pedem a atualização de compromissos e obrigações rituais antigos. Desse modo, se é possível rastrear as ‘relações’ incorporadas de certas pessoas com os mistérios considerando uma dimensão temporal, em Porto Rico me deparei com essas conexões em movimento. Elas aconteciam enquanto eu conversava com meus interlocutores dominicanos e observava suas práticas rituais. Isso significa que o tempo da minha etnografia está baseado em dados etnográficos que se referem a ‘tempos’ diferentes. Eu não observei nem conheci como os antepassados dos meus interlocutores interagiam com seus mistérios. Antes, como os últimos realizavam isso durante o período em que estive e convivi com eles. O que pude mapear foi justamente como certas cabeças atualizavam o mundo que havia dentro delas, como Gina certa vez comentou. Mundos constituídos por antigos agenciamentos de familiares com seus espíritos (os mais diversos, como será descrito no terceiro capítulo), que reclamaram e obtiveram continuidade na atenção e no trabalho ritual entre alguns daqueles com quem convivi. Fazer essa observação é importante porque de um dom que circula, os mistérios se materializam não apenas como espíritos protetores e de auxílio. 7 Eles se tornam também, quando atualizados, contrapartes de trocas rituais com aqueles que os receberam e com outros, estranhos à configuração familiar. Essas maneiras dos mistérios se fazerem presentes na vida das pessoas, de dom transferido a parceiros de troca, levam-me aassumir outra perspectiva de análise, como será visto no segundo capítulo. Não apenas tempos diversos, mas dimensões que apontam para a mudança de posição desses espíritos (e consequentemente das pessoas) nas situações rituais se tornam eixos a partir dos quais se encaminha esta etnografia. Por meio das prestações rituais chamadas de serviços e baseadas na concepção de que os mistérios precisam ser alimentados, cria-se uma dinâmica de atenção e trabalho ritual em que dependência recíproca e certas formas de ‘contrato’, através da participação dos clientes, não são pólos contrastantes, mas interconectados. Alternando7

As formas de comunicação dos mistérios assumem diversas modalidades. Os mistérios podem se comunicar através da sensibilidade visual e auditiva das pessoas, ou seja, alguns são capazes de ver e ouvir esses espíritos; durante o sono e os sonhos; por meio de cartas, e do que se chama de montar ou subir, quando esses espíritos se incorporam completamente ao corpo humano. Outras formas de incorporação, que chamo de ‘relativas’, serão descritas ainda nesse primeiro capítulo.

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se nessas dimensões de troca, meus inerlocutores dominicanos e seus espíritos criam não apenas as condições que tornam possível a circulação do dom às gerações futuras; ambos também fazem com que sua força recíproca entre em esferas coletivas mais amplas e que o pagamento, enquanto retribuição por algo que foi disposto a terceiros, não seja exterior aos modos como a cosmologia e linguagem rituais são acionadas. Nos termos de Joana, esses santos são bem interessados. Para ela, mesmo a promessa de uma pequena vela, após ser feita, deveria ser cumprida. A negligência aos santos poderia assumir repercussões perigosas, às vezes fatais. 8 Tomo como referencial de análise as considerações de Gregory (1980) sobre economias da dádiva e da mercadoria quando procura definir algumas características que especificariam essas formas de troca. E, especialmente, quando ele sinaliza para a possibilidade de mudança entre uma forma e outra.

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Além disso, considero uma

discussão que vem sendo feita em etnografias realizadas no Caribe, especialmente sobre o vodu entre os haitianos (no país e na diáspora) e as regras del palo em Cuba, cujo foco de análise é as cosmologias, técnicas e linguagens rituais que assumem formas de economias rituais (RICHMAN, 2008 apud Larose 1975a, 1975b; MCCARTHY BROWN, 2001; PALMIÉ, 2002; OCHOA, 2004). Ao destacar os serviços rituais prestados pelos meus interlocutores dominicanos aos mistérios procuro discutir o terceiro objetivo da tese: a importância que a ideia de dar substância assume nos modos em que as pessoas e seus espíritos se fortalecem mutuamente ‘e’ naqueles em que se criam as condições para que ambos disponham a outros. Com as prestações rituais as pessoas se singularizam, pois sua potência vital – os mistérios que circulam pela família – se conecta a um modo de troca em que dádivas cotidianas, principalmente sob a forma de substâncias alimentares, mantêm as contrapartes espirituais. Argumento que se a essas prestações rituais se articula o que 8

Sobre a ideia de pagamento e as consequências da quebra de compromissos com os mistérios versará o segundo capítulo. 9 Strathern (2009) afirma que um dos contrastes que sustenta para estabelecer as condições em que a análise antropológica se faz inteligível é aquele entre sistemas mercantis e sistemas de troca de dádivas, derivado do trabalho de Gregory (1980). Ela observa que, como ele indicou, os dois tipos de troca são encontrados juntos, particularmente no período colonial e pós-colonial a partir do qual o estudo dele se desenvolveu. Ela observa, no entanto, que à medida que Gregory baseia a troca de dádivas em uma sociedade fundada no “clã” contrapondo-se à troca mercantil em uma sociedade de “classes”, a sugestão dele é de que haveria correlação direta entre as formas de intercâmbio e de organização social. Contudo, ela ressalta que os dois termos constituem um “único par cultural no interior do discurso da economia política ocidental” e que “Falar sobre dádiva evoca constantemente a possibilidade de que a descrição pudesse parecer muito diferente se, ao invés disso, estivéssemos falando sobre mercadorias” (STRATHERN, 2009, p. 47-49).

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meus interlocutores chamam de força da pessoa, outras ‘relações’, que não dizem respeito à dependência recíproca são também criadas. E, para isso, as substâncias são igualmente importantes. Por causa dessa mudança de perspectiva, em que os mistérios se tornam contrapartes da troca e não apenas dom transferido, a minha referência de análise passa a ser as práticas rituais de alimentá-los. Nessas situações, as substâncias que os meus interlocutores dominicanos usam nos serviços geram uma série de efeitos em seus mistérios. Isso permite que alimentá-los possa ser por mim comentado como um processo que permite a transferência de certas qualidades e disposições (Strathern, 2009, p. 311; Bateson, 2008, p. 119, 121) aos espíritos. Nesse sentido, pôr um serviço aos mistérios aos mistérios não permite somente a sua estabilização ou manutenção como herança familiar. Também são efeitos que os altares, composições que precisam ser organizadas por todos aqueles que têm os mistérios, geram sobre esses espíritos.

Os altares

permitem aos mistérios coabitar com as pessoas, assunto que discuto no terceiro capítulo. Para isso, elas precisam interiorizar uma série de artefatos e outras substâncias, além das alimentares, visando à recriação de uma cosmologia dentro de suas casas. O encontro dos mistérios com essa materialidade cria sensibilidades nos espíritos e recuperam suas lembranças de quando eram vivos. Com o foco em outras apropriações que os mistérios podem fazer dos artefatos através dos altares, o quarto capítulo descreve os sentidos que imagens geralmente associadas ao cristianismo assumem quando se considera a perspectiva de alguns mistérios. Tentando ampliar o universo em que meus interlocutores dominicanos e seus espíritos interagem, no quinto capítulo descrevo algumas distinções entre os mistérios e outras entidades chamadas apenas de mortos. Com esse termo podem ser chamados os espíritos desconhecidos, os mortos familiares ou ainda as chamadas coisas más, espíritos anônimos que, para meus interlocutores dominicanos, podem ser enviados como bruxaria. 1.4 (Des)Encontros – Hum... Brasil! Rosa exclamou, enquanto movimentava seus ombros e seios, ao me ouvir falar de onde vinha. Conheci Rosa na Plaza del Mercado de Río Piedras, o maior mercado de vegetais, frutas e carne fresca, dentre outros produtos, localizado em San Juan, capital de Porto Rico. Era a primeira vez que ia à Plaza. Caminhava pelos corredores do mercado para comprar alimentos, quando parei diante dos postos em que

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ela estava. Ao lhe perguntar o preço das frutas, em um espanhol que não dominava, Rosa percebeu que eu era estrangeira. Imediatamente, então, me perguntou de onde eu vinha. Sua performance diante da minha resposta, pareceu-me, naquele instante, reforçar uma imagem sobre o Brasil em que as mulheres são vistas por meio de imagens fortemente sexualizadas. 10 O Carnaval, através das mulheres brasileiras (mas também de certa imagem de festa popular), era para Rosa uma referência de conhecimento sobre o país, assim como para outros dominicanos e porto-riquenhos que depois conheci. Diante daquele movimento corporal tentei responder verbalmente ao modo como ela se comportou. Mas, face ao meu parco espanhol, diferentemente dela, não me fiz compreender. Rapidamente Rosa fez referência a uma novela brasileira. Ela ficou em silêncio por alguns segundos, tentando lembrar-se do nome, e então me disse que gostou de assistir na República Dominicana “Xica da Silva”: – As pessoas de cor como nós eram muito maltratadas nessa época, Rosa comentou em seguida, referindo-se a ela e a mim. Ao que adicionou algo como ainda bem que esse tempo acabou. Segurando as sacolas diante de Rosa, fiquei intrigada com suas considerações. A vinculação que ela fez entre Brasil e sexualidade feminina, mas também seu reconhecimento de que nós duas poderíamos ter experienciado uma situação comum de maltrato no passado. Além disso, a considerei uma pessoa solicita. Logo que cheguei a Porto Rico, hospedei-me no alojamento da Universidad de Puerto Rico, também no bairro de Río Piedras. Necessitava de alguns utensílios para preparar as refeições no quarto que havia alugado e perguntei à Rosa onde poderia comprá-los. Ela percebeu que seria difícil para eu fazer isso e pediu à Antonieta, sua irmã que estava naquele dia na Plaza, para levar-me até uma loja de produtos domésticos. Antonieta então me ajudou, eu lhe agradeci, e da loja retornei ao alojamento. Apesar de saber desde o Brasil que em Porto Rico existia uma população grande de imigrantes da República Dominicana, minha viagem à ilha tinha como interesse as transformações espaciais de um projeto de reabilitação arquitetônica que foi implementado na cidade de Ponce, ao sul de Porto Rico. Em Ponce, um bairro conhecido como San Antón passou por intervenções que pretendiam tornar as moradias e seu entorno símbolos da chamada “herança africana” em Porto Rico, em fins dos anos

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Sobre uma narrativa etnográfica que relata essa forma de abordagem, em que gênero, sexualidade e nacionalidade são articulados por interlocutores diante de antropólogas brasileiras no exterior, ver Ciocarri (2009).

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1990. Pretendia fazer uma etnografia sobre as relações contemporâneas dos moradores de San Antón com as novas formas urbanísticas e arquitetônicas. No entanto, encontrei dificuldade em estabelecer contato com um antigo morador e líder cultural do bairro. Tentei, por diversas vezes, encontrá-lo, mas por telefone ele postergava um próximo encontro. Quando o procurei pela primeira vez, através de informações disponibilizadas no próprio site do município de Ponce, ele me levou até San Antón. Ali me mostrou algumas casas reabilitadas, incluindo a de seus familiares. Além disso, afirmou que poderia tê-lo como um mediador para contatar os moradores. O que, contudo, nunca aconteceu. Enquanto mantinha a expectativa de um novo contato, esperando alguns dias se passarem para tentar mais uma aproximação do líder cultural de San Antón, retornei à Plaza para conversar com Rosa. Sentia-me sozinha e gostaria de ter com quem conversar. Buscava um “diálogo comum” como salientou Althabe (1990, p. 126) para o tipo de interação que orienta os antropólogos em direção a seus interlocutores. E, ainda que nessas primeiras semanas nada estivesse muito explícito – eu procurava um rumo –, chegar sob a condição de pesquisadora me fazia buscar uma escuta sensível à linguagem e aos termos recorrentes das pessoas; um lugar para olhar mais atentamente a maneira como elas falavam, seus movimentos e seus próprios olhares sobre o cotidiano. Ao entrar na Plaza, procurei o corredor em que se encontravam os postos, quando então a vi. Ali estavam seu tio, Francisco, seu marido, Diogo, além de uma mulher também dominicana, portadora de deficiência auditiva, chamada de Muda, que trabalhava para Rosa. Ela demonstrou que se lembrava de mim, e me cumprimentou com um beijo. Muda fez o mesmo. Comecei a conversar com Rosa e a escolher alguns alimentos, perguntando-lhe se ela era a dona dos postos de verduras e frutas. Rosa respondeu-me que sim. Mas, que além dos dois postos, possuía também a botânica, o que me respondeu direcionando seu olhar para um box em frente de onde estávamos. 11 A pergunta foi proposital. Ao me aproximar do corredor, vi imagens de santos, sabonetes, colares e fiquei curiosa. À minha pergunta, Rosa seguiu comentando que a botânica era de santería.12 Quando então quis saber se não havia santería no Brasil.

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Ao conviver com Rosa, tomei conhecimento que ela arrendava os postos e a botânica de portoriquenhos que tinham de fato a licença para atuar como comerciantes no mercado. As botânicas são espaços aparentemente comerciais nos quais são encontrados uma infinidade de artigos “religiosos” e muitos outros produtos. Uma descrição mais detalhada das botânicas será feita no quinto capítulo. 11 12 Rosa utilizava o termo santería não para definir a cosmologia e as práticas rituais yorubá das reglas de ocha (conhecido também como Lucumí, em Cuba e chamado de santería em Porto Rico). Ela empregava

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Com pouquíssimo conhecimento sobre as chamadas ‘religiões afro-brasileiras’ e menos ainda sobre o que me pareciam ‘afro-caribenhas’, me silenciei. Não soube como lhe responder. Insisti, no entanto, em saber um pouco mais dela. Indaguei-lhe sobre os produtos exibidos. Alguns, Rosa me disse, vinham da Venezuela e da Colômbia, os sabonetes e outras mercadorias eram para banhos espirituais. Ela quis saber o que me levava a Porto Rico. Eu comentei sobre a pesquisa do doutorado e as dificuldades que enfrentava em relação a San Anton. Rosa me escutava com atenção. Diante de mim, ela se deslocou um pouco até a bancada da botânica e ofereceu-me um sabonete (jabón) para a boa sorte, como ela enfatizou ao me entregálo.13 Daquele primeiro encontro com Rosa, mediado pela compra de alimentos, desse novo encontro com algumas coisas da botânica, mediado agora por Rosa, passei, nesse mesmo dia, ao encontro com dois de seus familiares e com um ambiente de tensão, parte do dia a dia em Río Piedras: Francisco, tio de Rosa, havia se dirigido a mim para se apresentar. Trocávamos algumas palavras enquanto dois jovens se aproximavam da botânica. Eles perguntaram sobre algum produto, mantiveram-se ali por alguns minutos, e foram embora sem nada comprar. Rosa então comentou com Diogo que os jovens queriam roubar. Ocupado principalmente por imigrantes, moradores e trabalhadores da República Dominicana, e por alguns comerciantes porto-riquenhos em sua área mais central, o bairro já foi o eixo comercial mais importante da ilha e correspondia a um município. Río Piedras é socialmente descrito como o local dos dominicanos indocumentados (ilegais), de los tecatos y tecatas – usuários de drogas que vivem de pequenos furtos e roubos –, e como ponto de tráfico de drogas e prostituição. O uso do termo ‘encontro’ aqui não é casual. Baseio-me em um desdobramento da consideração de Althabe de que são conversas comuns que caracterizam a interação entre os antropólogos e seus interlocutores. Para ele, o conhecimento produzido pelos antropólogos, advindo das falas e comentários cotidianos, emerge de encontros o termo para se referir à presença dos santos, ou seja, dos mistérios e figuras santificadas (embora nem todas) do catolicismo. 13 Segundo Derby (2003, p. 5-6), numa região ao norte da ilha de Hispaniola, área de comércio e trânsito de mercadorias contrabandeadas de difícil controle para a administração colonial francesa e espanhola no século XVIII, dar jabón foi um coloquialismo para a conquista, como se a sujeição estivesse ligada de modo inextricável à aceitação da prestação e à forma resultante de dívida implícita nas recorrentes práticas de troca de mercadorias. Dajabón se tornou o nome oficial de uma cidade espanhola em fins do século XVIII, a fronteira oficial que veio a separar ambos os lados da Hispaniola em duas nações (posteriormente chamadas de Haiti e República Dominicana) ainda durante o período colonial. Dajabón se localiza às margens do rio Massacre, assim chamado depois do assassinato de haitianos durante o regime de Trujillo em 1937.

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concretos em diversas situações de comunicação. De acordo com o autor, fazer trabalho de campo etnográfico na França, em situações como aquelas de trabalho assalariado, de territórios residenciais urbanos ou redes de sociabilidade (em mercados ou escolas) significa atentar para o fato de que o conhecimento antropológico é produzido nestes momentos de interação. Seu argumento tem a ver com o que ele chama de “pluralidade de situações sociais” no país. Ele observa que, para seus interlocutores franceses, a vida doméstica e profissional apareceriam como instâncias separadas no cotidiano. E em tudo aquilo que dizia respeito especialmente a suas vidas privadas, a presença do antropólogo seria geralmente refutada. Para ele, o pesquisador e seus interlocutores tornam-se “prisioneiros da situação de campo”, e tanto a investigação antropológica quanto seus resultados imediatos permaneceriam encerrados em um contexto de comunicação (ALTHABE, 1990, p. 128). A partir de seu próprio trabalho de campo, Althabe enfatiza que, diferentemente do que chama de operação fundacional da disciplina, sua investigação não pretendeu superar a exterioridade que sintetiza a dicotomia clássica da disciplina: “nós” e “eles”. Não havia configurações coletivas particulares a serem conhecidas desde seu interior. Implícita às considerações do autor perpassa a crítica a uma abordagem antropológica que se afirma por causa de certa maneira de conceber o conhecimento da disciplina: resultado de uma viagem que leva o antropólogo a um mundo singular (e desconhecido). Embora seja possível salientar que tal pluralidade de situações sociais não é uma característica dos interlocutores franceses de Althabe (o que impediria tal pluralidade de situações em configurações coletivas diferenciadas daquelas de onde vêm os antropólogos?), a ideia de contexto de comunicação parece-me interessante para iluminar os encontros que descrevi até aqui. Minha aproximação inicial de Rosa teve muito da comunicação ordinária para qual Althabe atentou. E, avançando na discussão que o autor propõe, sugiro que desde que conheci Rosa, diversas foram as situações em que a “distância” a partir da qual eu me concebia diante dela (e de outros interlocutores no trabalho de campo) foi re-significada. Nesse sentido, não apenas meu interesse de pesquisa foi se explicitando a partir de alguns comentários e observações de Rosa sobre seu próprio cotidiano, mas ela tentou arrefecer minha condição de estrangeira: o que, para mim, era a armadura protetora da ‘alteridade’. Como Althabe observou, se a démarche antropológica – alvo

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de crítica desde pelo menos os meados dos anos 1980 com os escritos pós-modernos – instituiu-se (durante boa parte das histórias da disciplina no século XX) por meio da construção de uma distância entre antropólogo e seus interlocutores, meu posicionamento como alguém “exterior às situações de encontro” foi frequentemente questionado (ALTHABE, 1990, p. 129). 14 É claro que Rosa e seus familiares sabiam que eu vinha de outro país. Isso não a impediu, entretanto, que tentasse estabelecer conexões e associações. Assim, ela insinuava justamente a possibilidade de algum modo de comunicação (e de identificação) entre nós duas. Parece-me que esse foi o sentido de sua performance – um constrangimento para mim e não para ela – ao saber minha nacionalidade. Ela mobilizou a imagem que tinha sobre o Brasil corporificando gestos e movimentos que pretendiam criar alguma possibilidade de comunicação. Especialmente porque eu não falava perfeitamente sua língua. Interessada em se comunicar, Rosa ainda tentou outra aproximação: falou-me sobre a novela do Brasil que lhe agradou e me identificou com ela através da escravização das pessoas de cor retratada no folhetim. Talvez tenha sido a própria disponibilidade de Rosa em dar sentido para mim que tenha me feito querer voltar à Plaza para conversar com ela. Neste momento, eu estava à espera de um potencial interlocutor pouco interessado em firmar um diálogo. Mas, como salientou Althabe, se desde a sua chegada ao “campo”

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o

antropólogo está implicado – mesmo sem às vezes o saber – em uma rede de aliança e oposições que o tornam um “ator” do universo coletivo que lhe interessa, não são apenas diálogos comuns que caracterizam as situações do trabalho de campo. Isso apareceu nas notas etnográficas que fiz sobre meus encontros iniciais com Rosa e seus familiares. Mesmo sem ter definido um novo assunto de pesquisa, depois de alguns dias que a conheci, decidi registrá-los no meu caderno de campo. Foi também com esses escritos que me dei conta que poderia arriscar-me no universo das botânicas como campo etnográfico. As anotações eram fragmentos de lembranças acerca de comentários, palavras e gestos. E sobre elas procurei destacar alguns termos, expressões 14

Sobre uma abordagem que, apesar de considerar a importância dos produtos dos discursos, do intercâmbio dialógico e da autoridade mútua tanto para a relação com as pessoas com as quais se faz trabalho de campo quanto para a escrita, propõe uma “dupla localização” da prática etnográfica, com cada uma delas oferecendo uma perspectiva sobre a outra ver Strathern (1999, p. 1; 6). 15 Como destacou Florence Weber (2009, p.158), em uma crítica ao aspecto genitivo de propriedade que marca a relação de alguns etnólogos, que se expressam em termos de “o campo ‘de’ tal ou tal etnólogo, ‘meu campo’”, “Essa palavra mágica designa ao mesmo tempo a sociedade ela mesma, o estágio que ali empreendeu o etnólogo e o desenvolvimento de sua investigação”.

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e situações feitos no ambiente de compra e venda da Plaza. Foram essas anotações que, posteriormente, transformaram-se em dados e assumiram o papel de corpus da tese, como observou Olivier de Sardan (1995, p.74). Especialmente quando, com base nelas, comecei a explicar para pesquisadores porto-riquenhos como havia chegado à pesquisa com os imigrantes dominicanos. Mas não eram apenas tentativas de aproximações que essas primeiras anotações recuperavam para mim. Além de reencontrar Rosa, receber dela um sabonete para a boa sorte, e conhecer seu tio e marido, no segundo encontro, por exemplo, ocorreram hesitações e silêncios. Assim como eu não soube lhe responder se havia santería no Brasil, ela quis saber onde eu fazia tranças no cabelo. Ao ouvir-me que era uma mulher angolana, que residia no Rio de Janeiro, a face de Rosa se modificou. Ela me pareceu descontente com o que lhe falei. Segundos depois ela indagou Diogo, seu marido, se ele gostaria que ela usasse tranças. Ele, sem se opor verbalmente, demonstrou reprovação. As oposições do jogo social de que fala Althabe começaram a se delinear no que vieram a ser outros encontros. Ainda durante o segundo, Rosa me fez um convite para acompanhá-la e a Diogo, que também trabalhava como músico em um grupo de merengue, em uma apresentação. O casal se ofereceu a ir ao alojamento universitário para buscar-me. Feliz com a possibilidade de estabelecer um vínculo com eles, os aguardei ansiosamente aquela noite. Mas eles não apareceram. Após algumas tentativas de ligação para o celular de Rosa, resolvi então me deitar ainda mais frustrada. Passaram-se alguns dias e retornei à Plaza. Rosa, então, explicou-me que acabou por não ir à festa em que seu marido tocaria com o grupo. Eu lhe disse sobre as ligações para seu celular, ao que ela reagiu afirmando que nem sempre as atendia porque suas clientes lhe telefonavam tarde. Quando se tratava de casos de hospital, ela me disse, atendia as ligações, mas por causa de brigas no casamento não dava muita atenção. Ao escutá-la quis saber por que as clientes a procuravam. Por causa da santería, Rosa me disse. Pouco tempo depois, chegou à botânica um jovem. Ele indagou Rosa sobre velas, velas de santería, o rapaz especificou. Rosa lhe perguntou sobre que tipo de vela ele buscava, e comentou que eram das mais caras, pois seriam diferentes... 16 A partir daí já estava muito interessa na botânica e na relação de Rosa com essa loja. Havia decido lhe perguntar, então, se poderia fazer o trabalho de campo com ela. 16

Nas botânicas eram vendidos os chamados velones, grandes velas que custavam dois dólares (geralmente as que traziam nomes de santos, espíritos ou plantas) e três dólares (rotuladas com nomes que indicavam alteração de comportamentos, estados e disposições). Mais informações sobre os valores das mercadorias serão apresentadas no quinto capítulo.

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Cansada de esperar por um sinal positivo sobre San Antón – já estava em Porto Rico havia cerca de vinte dias de uma estada que chegaria a quase três meses – queria me inserir no universo das compras e vendas dos artigos e produtos que eu via como ‘religiosos’. 1.5 Interpelações – Você tem um namorado?, Rosa me perguntou naquele dia em que fui à Plaza para lhe contar sobre minhas intenções de pesquisa com ela. Assim como Muda e seu tio, ela me olhava de modo desconfiado. Abri minha carteira e mostrei uma fotografia que era de meu companheiro. Enquanto a procurava, os três se entreolharam. E, assim como ocorreu quando falei da cabeleireira angolana, eles demonstram pouca satisfação em vê-la. Imediatamente Rosa me interpelou. Quis saber seu eu gostava de homens negros. Com a mesma velocidade reagi dizendo-lhe que sou negra. Logo depois, em tom afirmativo – distinto daquela chamada a lhe dar explicações – Rosa me disse que ele era africano. Confirmei e perguntei-lhe como ela sabia. Mas Rosa se manteve em silêncio. Esse foi o mote que ela utilizou para afirmar que em Santo Domingo as pessoas são da minha cor, da cor dela e do marido... morenos (e não negros, era o que estava implícito em seu comentário). Diogo, depois que viu a fotografia, afastou-se de nós por alguns minutos. Ao retornar, quis saber se eu conhecia o palo, instrumento de percussão tocado em festas rituais na República Dominicana. Como eu não conhecia, ele pediu que Rosa buscasse dentro da botânica um cd de palo. E afirmou que no Brasil havia sim esse estilo de música. O cd, que Rosa me emprestou, intitulava-se Santería Cubana. Produzido em Porto Rico, era formado por doze músicas cujos temas eram alguns orichas: Babalu Aye; Obatala; Yemalla; Orichaoco; Ochosi; Elegua El Nino de Atocha; Dada, Oba e Yegua; Inle; Elegua; Ogun; Chango; Ochun. Depois lhe expliquei o motivo de retornar ali. Ela me indagou: – Como eu não vou te ajudar, Alline? E concordou que conduzisse a pesquisa. Com isso, finalmente, iniciei o trabalho de campo. Retirando meu caderno de campo da bolsa (após a fotografia da carteira, que dentre as várias possibilidades de compreensão que criaram para ela e seus familiares, situou-me como uma jovem mulher que não estava à procura de uma contraparte masculina ao visitar com frequência a Plaza), anotei avidamente as explicações que ouvia sobre velas, incensos e santos.

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À noite, quando fui jantar na casa de Rosa, percebi uma nova tensão. Agora não em relação ao cotidiano em Río Piedras. Mais uma vez, conversas em que emergiam noções (e preconceitos) de cor e raça. No decorrer do dia, em meio à observação participante, Rosa me fez o convite de acompanhá-los para fazer aquela refeição. E eu aceitei. Durante as primeiras semanas de meu trabalho, vendendo artigos da botânica (mas também verduras, legumes e frutas) e realizando o registro etnográfico, almoçava quase sempre nos postos dela na Plaza. Ela e Muda preparavam a comida em um fogareiro, abaixo de uma bancada. Jantava em sua casa depois que fechávamos os boxes. Ainda na primeira estada me mudei do alojamento universitário para a casa de Rosa, onde fiquei por cerca de duas semanas até regressar ao Brasil. 17 A casa dela se localizava nas imediações da Plaza del Mercado, também em Río Piedras. Era uma residência confortável, com três quartos (um deles suíte), uma ampla sala conjugada a uma cozinha bem equipada, um banheiro ‘social’ e uma área de serviço. Àquela época, além de Rosa e Diogo, Antonieta, cerca de dez anos mais velha – Rosa estava com trinta e três anos –, morava na residência. Naquela noite, então, Rosa me mostrou em sua filmadora alguns vídeos. Eram registros feitos pelos familiares em San Francisco de Macorís e Naguá, cidade em que vivia um de seus tios, também na República Dominicana. As imagens em Macorís gravavam o desenvolvimento da construção de uma casa, propriedade de seu irmão caçula e da companheira que viviam em Porto Rico. Porque Rosa me dizia o vínculo de parentesco de cada uma das pessoas que aparecia na gravação, perguntei quem era a sua mãe. Ao me mostrá-la, Rosa argumentou que sua mãe era morenita,18 assim como eu, trigueñita. Momentos depois, enquanto jantávamos, Antonieta fez um comentário, e eu não entendi. Mas a mulher da irmã caçula, irritada, a chamou de racista. Antonieta replicou. Como eu não consegui entender o motivo da conversa e da exasperação da jovem, perguntei à Rosa o que Antonieta havia dito. Ela me respondeu que sua irmã não gostava de haitianos. Antonieta reagiu dizendo que os haitianos eram bruxos e pretos.19 17

Ao retornar para a segunda estada do trabalho de campo, me hospedei novamente na casa de Rosa, onde permaneci por pouco dois meses e meio. Depois, voltei a alugar um quarto no alojamento da Universidad de Puerto Rico, onde vivi até fim do trabalho de campo. 18 Alguém com pele escura, termo cujo sentido é distinto de quando os dominicanos empregam moreno, que recupera a ideia de uma pessoa de cor, mas com a pele mais clara. 19 Sobre o chamado “anti-haitianismo” como política nacional (e micropolíticas gestadas cotidianamente) na República Dominicana a partir de uma abordagem histórica ver Derby (2003).

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Um primo-irmão delas que acabara de chegar de Nova Iorque, ao escutar o comentário agressivo de Antonieta, tomou a palavra: – E eu também não sou preto? Constrangida, Antonieta, em tom baixo esboçou uma reconsideração. Segundo ela, alguns haitianos eram bons. Nestes iniciais encontros e contatos (ALTHABE, 1990; TROUILLOT, 1992) com meus interlocutores dominicanos foi se explicitando os significados negativos que eles atribuíam a noções como negro ou preto. Identificar alguém nestes termos era definir um homem ou uma mulher como haitiano(a). E, em algumas situações, vi Rosa e Diogo, por exemplo, atribuindo essa nacionalidade a dominicanos com pele escura que chegavam à botânica para comprar. A tensão de cor e racial era uma constante também no cotidiano deles na Plaza. Pois, em diversas abordagens de clientes portoriquenhos à procura de alimentos, Diogo era por eles retratado como morenito, o que significava alguém de pele escura (o que ele possuía), apesar de seu cabelo fino e traços faciais afilados. Rosa e seus familiares mobilizavam várias categorias relacionadas à cor da pele, tais como blanco(a), moreno(a), trigueño(a) e prieto(a), associados a outros atributos corporais, para se definir em relação aos seus interlocutores, estivessem esses em Porto Rico ou na República Dominicana. Por várias vezes ela se definia como blanca conversando comigo – a quem ele via ora como morena ora como trigueña porque a cor da minha pele é mais escura que a dela, e meu cabelo, apesar de trançado como o das haitianas, ela me dizia, não era ruim. Durante o trabalho de campo, escutei ela me dizer, por diversas vezes, que estava blanca, e por isso retornaria mais bonita ao Brasil. Como a Plaza de Mercado era um ambiente fechado e não a céu aberto, não ficávamos expostos ao sol. Para Rosa isso, positivamente, garantia o branqueamento da cor da pele (da dela e, como ela fazia questão de insistir, da minha). Mas diante de um interlocutor porto-riquenho, cuja cor da pele fosse mais clara que a sua, a textura e o comprimento do cabelo fossem lisos e longos (sem a adição de produtos químicos no caso feminino), e cujas características faciais como o formato do nariz, fosse afilado, Rosa não se definia como blanca. Uma espécie de suspensão pairava no ar. E então ela não atribuía a si mesma uma tonalidade. Dizia apenas minha cor. 1.6 Trânsitos e travessias Se nestes contextos de comunicação passei a ter acesso a possibilidades de uma escuta, observação e registro sobre Rosa e sua família (e o universo da botânica),

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preciso ressaltar que mais do que diálogo ordinário me conectou àqueles que se tornaram meus interlocutores. Trânsitos de imagens e objetos (às vezes cessação de falas) assim como travessias diversas sustentaram os comentários que descrevi. E por meio disso foram esboçadas, particularmente da parte de Rosa, tentativas de identificação ou de alguma forma de partilha. Nos termos dela, os dominicanos eram como eu, ela, o marido, assim como sua mãe. E foi com o racismo que perpassou seu comentário que Rosa me disse que eu não era exatamente outra para ela. 20 Isso foi se tornando mais explícito quando ela justificava para parentes e conhecidos o porquê da minha presença na Plaza. Rosa fazia referência à pesquisa de doutorado. Logo em seguida argumentava que eu estava só na ilha. Não conhecia bem o lugar tampouco as pessoas. E certa vez me falou algo como eu tenho uma filha, ela pode precisar de ajuda também no futuro, nos estudos... Tendo chegado à ilha também sozinha, mas numa condição completamente distinta da minha, Rosa aludia a essa experiência, uma espécie de conhecimento de causa sobre a solidão de ser estrangeira, para explicar sua decisão de colaborar comigo. Havia mais ou menos dez anos que Rosa emigrou de San Francisco de Macorís, cidade ao norte da República Dominicana, onde nasceu e viveu. Com pouco mais de vinte anos, ela entrou ilegalmente para a ilha vizinha de Porto Rico, em uma viagem clandestina nas chamadas yolas, embarcações de madeira que cruzam o mar do Caribe em uma travessia extremamente perigosa. 21 Aí permanecia desde então, fazendo frequentes viagens para a sua cidade na República Dominicana. A possibilidade de tal mobilidade entre as duas ilhas era possível porque Rosa possuía o direito de residir em território norte-americano. Neste sentido, ela se diferenciava da maioria de seus familiares e de outros imigrantes dominicanos que conheci. Geralmente, eles viviam como ilegais em Porto Rico, sem os papéis, como definiam. Após a saída de Rosa da República Dominicana, seu irmão caçula também deixou San Francisco de Macorís. Ele também já tinha os papéis, ou seja, sua situação 20

Em algumas situações de compra e venda na botânica, observei Rosa construir uma aproximação em termos de cor com clientes que possuíam a pele mais escura que a dela, dizendo-lhes que eram iguais. Mas isso não minimiza as implicações políticas do racismo na República Dominicana. Uma das mais graves, como salientei no início deste texto, é o impedimento à cidadania dos descendentes de haitianos que nasceram e vivem há várias décadas na República Dominicana. 21 Não apenas por causa das adversidades vindas do próprio mar, mas da convivência humana nas yolas. Alguns dos relatos que me foram narrados durante o trabalho de campo chamam a atenção para a agressão e o abuso sexual de mulheres dominicanas, e o lançamento ao mar daquelas que se tornam um “problema” para os atravessadores.

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como imigrante estava regularizada, e isso lhe permitiu viajar a Nova Iorque para trabalhar na construção civil. Ocupação que realizava naquele momento em Porto Rico. Alguns anos depois de Rosa, outras irmãs (junto com a então namorada do caçula) e seus tios22 fizeram o mesmo. Todos atravessaram o mar do Caribe em yolas e se reuniram a ela. Também como Rosa, que deixou sua filha, 23 então uma bebê, sob os cuidados de seu pai, de sua mãe e de seu irmão caçula – até que ele também emigrou e a menina ficou com os avôs –, os filhos de Antonieta não estavam em Porto Rico. Antonieta vivia em Porto Rico havia seis anos. Desde o início ela trabalhou como empregada doméstica em diferentes casas de famílias porto-riquenhas. Não revia pessoalmente seus três filhos por esse período, pois não tinha os papéis, o que a impedia, além de tantas outras duras restrições, sair de Porto Rico para rever sua família. Na mesma situação estava a jovem dominicana, mulher do irmão caçula de Rosa e Antonieta. Ela embarcou na mesma yola junto com Antonieta (e outros familiares de Rosa) e trabalhava também como empregada doméstica em residências de porto-riquenhos. Seus pais e sua irmã se mantiveram em San Francisco de Macorís. E eles não se viam desde então. Como estratégia visando à legalização em Porto Rico, quase todos eles, tanto os homens quanto as mulheres, firmaram o que chamam de casamento para ter os papéis ou matrimônio por contrato. E aguardavam a obtenção do direito de residir em territórios norte-americanos, como Porto Rico, desde que contraíram tais casamentos com porto-riquenhos (as). Do ponto de vista das experiências de Rosa como imigrante (por anos, assim como tantos outros dominicanos, sem papéis), a sugestão de Althabe de que o antropólogo e seus interlocutores se tornam “prisioneiros de um contexto de comunicação” assume outros sentidos, certa radicalidade. Foi justamente porque se arriscou a atravessar outras águas 24 – e não preservar seu espaço doméstico da interferência perturbadora de estranhos (SCHWARTZ, 2002) –, disposta a refazer sua vida pessoal e familiar considerando trânsitos, contatos e esfacelando algumas fronteiras entre um lado e outro do mar do Caribe, que Rosa se manteve presa a uma pluralidade

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Os tios de Rosa também arrendavam postos de verduras, legumes e frutas na Plaza del Mercado. A menina estava com cerca de treze anos em 2010. 24 Certa vez ouvi Rosa argumentar que, apesar de muitos dominicanos que ela conhecia terem decidido ir para Nova Iorque, o que ela mesma fez durante uma semana, hospedando-se na casa de tios que residiam na cidade há anos, ela decidiu regressar a Porto Rico porque conhecia essas águas. Na cidade norteamericana, ela explicava, iria falar com quem? Sem saber inglês, ela descreveu essa experiência como marcada não apenas pela solidão, mas também pela indiferença. 23

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de situações sociais, a contextos não menos múltiplos que os dos interlocutores franceses do antropólogo. E o que chamo de radicalidade dessas experiências (para ela e para a sua própria família) concerne ao fato de que para fazer circular dólar através das remessas, roupas, produtos de higiene, de limpeza doméstica, alimentados enlatados e presentes, entre Porto Rico e a República Dominicana, Rosa, Antonieta, o irmão caçula e sua mulher precisaram se imobilizar na primeira ilha. Nela, tornaram-se sem papéis. Ainda que raramente eles falassem direta e amplamente comigo sobre esse assunto, suspeito que não se tratava apenas de recato. Saber o que expor e como fazê-lo bem como aprender a resguardar-se, uma vez que a ameaça da deportação foi ou ainda era uma espécie de assombração que rondava o dia a dia da família, implicava conseguir preservar a própria integridade física de cada um deles, de seus corpos. Sem que no momento eu mesma fizesse qualquer conexão, eram corpos de pessoas – e como será visto adiante, uma variedade de agências espirituais capazes de afetá-los – que também estavam em jogo com o sabonete que Rosa me deu para a boa sorte. O produto não passou apenas da bancada da botânica para meu quarto no alojamento universitário. Ele era um dos materiais por meio do qual Rosa e Diogo experienciavam cotidianamente a vida como pessoas: limpar o corpo para atrair a boa sorte, como depois eu observei, era uma das técnicas que o casal empregava e recomendava na botânica porque participava de um mundo cujas ameaças eram não apenas físicas, mas também espirituais. Essas se difundiam em sua casa, na botânica, nas ruas e nos bares de Río Piedras. Neles mesmos. Tal produto, para Rosa, não era apenas um símbolo particular de seu modo de ver o mundo, de representá-lo. Fazer essa consideração, no entanto, trata-se de uma travessia que eu mesma precisei fazer enquanto conduzia o trabalho de campo entre eles. Tentarei descrever, então, alguns dos caminhos que a constituíram. O universo da botânica despertou a minha atenção etnográfica, mas me parecia, no mínimo, confuso. Um exemplo: no primeiro dia que convivi ali com Rosa, ela quis saber se eu faria entrevistas para a investigação do doutorado. Em seguida, começou a me explicar o que as pessoas iam buscar: boa sorte, abrir os caminhos, e outras expressões que não consegui entender. Para mim era difícil imaginar e compreender que por meio de relações comerciais era possível se obter o que ela chamava de boa sorte. Mas o meu estranhamento não tinha a ver apenas com o fato de que me deparava com um universo

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no qual sorte e prosperidade pudessem ser alcançadas, em parte, através da compra de certos objetos, produtos e substâncias. A persistência dessas noções também chamava a minha atenção no seguinte sentido: por que era importante para as pessoas buscar a boa sorte e abrir os caminhos? Comecei a indagar sobre alguns dos produtos e seus usos. Rosa me explicou que os incensos serviam para a limpeza e proteção na casa e festas de santería... Cada cavalo que se monta se faz uma festa ao santo protetor padroeiro [al patrón] com rum, cerveja, vinho, refrigerante, diferentes comidas, doces... quando o ser humano nasce com os mistérios, que é isso que é santería [precisa passar] por uma benção [santíguo], um tipo de preparação, um tipo de batizado... depois que você está preparado monta o ser que te toca: São Miguel, São Elias, Santa Marta; A Madama – uma negra –; Anaisa a Pie – que é a esposa de São Miguel. Nessa conversa tomei conhecimento de que ela é uma pessoa que tem os mistérios. Mas também nela mistérios e santos são categorias intercambiáveis. E santos é também um termo que em Porto Rico significa orichas. Sua mobilização tornava possível Rosa falar de outras categorias que, no decorrer das minhas observações, não tinham a mesma importância no que dizia respeito à atenção ritual em seu altar. 25 Observei rapidamente essa composição de artefatos e substâncias na noite em que jantei em sua casa, descrita mais acima. Ao pedi-la para ir ao banheiro, Rosa me indicou o que ficava no interior de um dos quartos, no qual dormia sua filha quando ia a Porto Rico. Foi ao cruzar o quarto vi que Rosa mantinha ali um altar para os mistérios. Naquela manhã, escutando Rosa (e o que já vinha ouvindo com as visitas à Plaza) comecei a me colocar um problema: mistérios, santos e orichas seriam intercambiáveis entre si? Sem sentido, como depois percebi, para meus interlocutores dominicanos, que com freqüência me diziam: – É o mesmo, o que se modifica é a forma da pessoa trabalhar. No entanto, não eram uma classificação e hierarquização entre entidades que eu buscava. Interessava-me entender quem ou o que eram os mistérios a partir do que vinha observando e escutando, pois eu simplesmente não sabia como concebê-los, embora estivesse explícito que, para Rosa, se tratavam de outros já não mais vivos. Mas 25

Obrigação ritual daqueles que se chamam de pessoas que têm os mistérios. Nos altares são arranjados quadros e figuras em resina de santos diante dos quais se posiciona alguma louça (copos, xícaras, taças) com certos líquidos e substâncias, velas, objetos pessoais como fotografias das pessoas, dos clientes ou de outros que os últimos levavam.

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seriam eles humanos mortos, humanos mortos vistos como deuses ou ainda deuses que nunca teriam sido completamente humanos? 26 Convivendo com ela, na botânica e em sua casa, notava que seu altar era formado por imagens singulares, escutava em suas conversas, particularmente com clientes dominicanos, referências a certos santos, em geral os mesmos que ela havia mencionado no meu primeiro dia na botânica (São Miguel, São Elias, Santa Marta A Dominadora...) e continuavam a sê-lo em boa parte das vendas. Mas não conseguia dimensionar essas especificidades etnograficamente. Não sob uma forma que eu considerasse etnograficamente mais válida. Ainda durante a minha primeira estada, Rosa me avisou um dia que um cavalo dos mistérios havia chegado à Plaza. Raul estava ali para comprar nas botânicas, e se dirigiu até a dela. Ela me apresentou a ele dizendo que eu fazia uma investigação de doutorado sobre os santos, que eu gostaria de ver um mistério montado e o altar de uma pessoa que monta. Além disso, indagou se eu poderia fotografar seu altar e ele (montado). O jovem dominicano reagiu: – São Elias não gosta que lhe façam fotos. Tentando me explicar o motivo da recusa, Rosa me disse: – É que isso são espíritos… Até então ela não havia mobilizado espíritos para se referir aos mistérios. Ele tomava os mistérios, em nossas conversas, sempre como santos. Como já salientei, vinha notando que pessoas que têm os mistérios era a maneira como meus interlocutores dominicanos chamavam os seres humanos que mantinham certas ‘relações’ com esses espíritos: atender (com os altares) e trabalhar ritualmente os mistérios, por exemplo, como o fazia Raul. Ao começar a me perguntar sobre as pessoas que têm os mistérios como Rosa (e também Diogo) e Raul, eu pressupus (mais uma vez) uma separação radical entre ‘mim’ e ‘eles’. 1.7 Capturas ou enredada pela própria trama Após o meu retorno a Porto Rico para dar continuidade à pesquisa, Rosa me convidou para acompanhá-la até San Francisco de Macorís. Havia quase um mês que eu estava em Porto Rico, voltando a viver em sua casa com sua família. Rosa precisava fazer consultas e exames médicos, o que só realizava em seu país. Aproveitaria a ocasião para levar duas crianças, filhos de seus primos que viviam ilegalmente em Porto

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É óbvio que formulei tal indagação a partir de distinções que carregava a partir do pouco que conhecia e ouvia falar sobre candomblé e umbanda no Brasil.

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Rico. Os avôs e outros familiares da República Dominicana não conheciam os meninos. Eu a ajudaria no deslocamento com uma das crianças e teria a oportunidade de conhecer seu padrinho. Ela gostaria que eu conversasse com ele, pois além de fazer consultas, era quem cuidava da sua preparação em relação aos mistérios. Eu acabei me encontrando, em certo sentido, com o padrinho de Rosa. Contudo a situação não se desenrolou exatamente como eu esperava. Pois a conversa foi com o mistério que ele monta. A chegada à República Dominicana, que para mim seria uma forma de conhecer algumas pessoas, tendeu a deslocar (e a questionar) a minha posição de antropóloga. Pois se meu objetivo era saber um pouco mais sobre as pessoas que têm os mistérios, eu passei a experimentar encontros nos quais de algum modo fui sendo produzida como uma delas através dos processos internos que eu definira como objeto de estudo (ALTHABE, 1990, p. 129). Diálogos e observações, no entanto, altamente sensíveis. Neste sentido, as descrições que se seguirão só podem ser vistas como “caso etnográfico” no sentido que defende Favret-Saada (1977, p.74-75): não para dar a ilusão de uma diferença de natureza entre o sujeito que teoriza e o sujeito teorizado, mas para possibilitar o próprio direito à interpretação da etnógrafa; que, no que lhe toca, por diversas vezes e maneiras “foi tomada” pelos discursos e práticas de feitiçaria no oeste da França.27 San Francisco de Macorís, 4 de outubro de 2010. Acabei de sair da consulta que fiz com o padrinho de Rosa. Ela me levou bem cedo lá com sua irmã Jose. Nós ficamos esperando, havia 3/4 pessoas esperando. Um rapaz que é dominicano (+-35), que nasceu em Boston, mas a família é dominicana, acompanhado de outro homem branco (+-40), entrou com este para a consulta. Nós chegamos, sentamos e ficamos esperando. Um senhor mulato (+-55) nos recebeu, e era ele quem abria o portão para as pessoas. Rosa perguntou por Nelson, e eu achei que esse fosse o nome do senhor que monta. Depois percebi que não. Nelson me pareceu ser o nome do rapaz que faz a tradução do que o ser/mistério/espírito diz para quem está sendo consultado. Rosa, acompanhada da irmã, perguntou pela esposa do senhor, que não estava. 27

Fazendo o trabalho de campo, a autora se deu conta que sua investigação etnográfica poderia deslocar a maneira como as práticas de enfeitiçamento eram compreendidas na França. E aqui ela se contrapõe a uma série de saberes, como os de folcloristas, médicos e jornalistas que procuravam a região do Bocage por causa da feitiçaria seguindo ideias pejorativas e sensacionalistas. Porque ela considera seriamente que “[...] na feitiçaria a palavra é a guerra [...] todos são beligerantes, inclusive o etnógrafo, e não há lugar para um observador não engajado”. (FAVRET-SAADA, 1977, p.27), ao se interessar por esse assunto e buscar conversar com as pessoas acerca disso, Favret- Saada se inseria numa trama em que uma complexidade de significados e práticas construía o enfeitiçamento/desenfeitiçamento como um discurso e uma experiência real. Além de ser vista como alguém que ao procurar falar poderia ser potencialmente uma enfeitiçada – alguém que tivesse ‘sido tomada’ por um mal – foi concebida às vezes também como uma “desenfeitiçadora”: porque já sabia muito dado que falava constantemente com feiticeiros e enfeitiçados, era localizada como alguém que tinha certa “força”.

41 Então elas esperaram um pouco, e tiveram que ir, pois Rosa tinha consulta marcada num hospital de San Francisco de Macorís (privado). Eu então fiquei sozinha, e o senhor que recebia as pessoas começou a conversar comigo. Rosa antes de ir falou o que eu queria lá, e eu também lhe disse algumas coisas. Que eu estava em Porto Rico estudando as botânicas, e queria agora me aproximar, conviver, com as pessoas que fazem consultas. Não me lembro o porquê, mas esse senhor me disse que o outro senhor, que faz consultas, tinha uma botânica em Nova Iorque (ele antes havia dito outra cidade norte-americana, mas não me lembro o nome). Eu então disse o nome da botânica de Rosa, e lhe perguntei o nome da botânica do senhor. Ele acabou que não me disse, conversamos um pouco, mas ele não falou. Nesse meio tempo os dois rapazes entraram, e haviam chegado dois senhores. Ah, já havia uma moça lá esperando, branca (+-35), que não parecia dominicana. Ela não conversava com ninguém. Ah, o senhor que recebe as pessoas me disse que a casa ficava muito cheia. Que vinha gente da República Dominicana, dos EUA, do México, da Jamaica, do Haiti, de diferentes lugares. Que o senhor fazia cura, trabalha com cura, e com coisas boas. Ele então disse que o procuram tantos os mansos quanto os cimarrones. Eu não entendi o que ele queria dizer, e lhe perguntei. Ele então me disse que todo o tipo de gente procurava o senhor, tanto boa quanto má. Esse senhor me disse também que já viveu em Boston, em diferentes lugares. Então quando ele saiu do pátio, um dos senhores que estava lá [esperando] ouviu que sou brasileira, e começou a conversar comigo me perguntando sobre o Brasil, minha cidade, essas coisas. Ele então falou com o outro senhor que sou brasileira, e me convidou que eu sentasse mais perto deles. O que mais conversou comigo é branco (tinha a pele bem avermelhada, queimada de sol, +-55), o outro era mulato (também com a pela bem queimada de sol, e um pouco mais novo). Então o senhor branco me perguntou se eu estava má [mala], no sentido de se esse era o motivo para eu estar ali. Eu lhe disse que não, que estava ali por outra razão. O mais novo falou que bem que se via que eu estava bem (se referindo à minha aparência física), e eu lhe disse que sim, que tenho saúde. Então conversamos um pouco, eu estava bem, descontraída, até que o rapaz que acompanha as consultas me chamou. Ah, antes disso, quando os dois rapazes mais novos entraram lá dentro, eu entendi o senhor que recebe as pessoas dizer que ele (o senhor que atende) estava com muito trabalho porque, eu entendi assim, atendia as pessoas e falava/atendia pelo telefone também. Eu entendi ainda alguma coisa de Uruguai... Então o rapaz fez sinal para que eu fosse para a consulta. Ele é jovem (+-35), mulato, e parece dominicano. Eu então esperei alguns segundos na porta, o senhor estava fumando, na verdade, acendendo um cigarro. Eu então fui até ele, que segurou minhas mãos as cruzando, e me deu benção (Dios te bendiga, eu acho). Ele estava usando na cabeça um pañuelo (lenço) lilás, um chapéu de palha, e óculos escuros. Não me lembro se estava descalço... Fumava todo o tempo, e fica sentado. Houve um momento em que ele levantou, acho que para pegar fósforos, algo assim. O rapaz [Nelson] senta ao lado dele (direito). Do seu lado esquerdo há um altar com uma imagem (estátua) de São Expedito com uns colares, eu acho. Um quadro de Santiago Apóstolo e a Virgem da Alta Graça. Próximo à imagem de São Expedito, há três estátuas pequenas iguais às que Rosa me disse que se chamam São Francisco e Santa Francisca, e mais uma de um senhor negro, também sentado, que se parece mais com a de um “preto-velho”. Acho que havia algumas flores, não me lembro bem, mas vi as caixas em papel de alguns dos banhos/despojos que se vendem em Porto Rico [nas botânicas]. Do lado esquerdo do quarto há uma espécie de box, que me parece ser o espaço onde os banhos/despojos são feitos. Então, quando eu me sentei, o senhor que estava com a pele bem escura (preta) começou a me falar várias coisas. Ah, depois que ele nos cumprimenta, ele utiliza a mão, acho que a direita, para fazer uma espécie de benção na cabeça, com o sinal da cruz, me parece. [...]

42 Ele se comporta da seguinte maneira. Parece que se põe a escutar o que alguém está lhe dizendo do lado esquerdo, porque faz um movimento com o corpo como se estivesse ouvindo algo. Então diz as coisas, e o rapaz traduz. Depois de um tempo percebi que ele fala espanhol, mas com alguns sons que não deixam muito claro o que está dizendo. Depois, eu entendia algumas palavras e frases que ele dizia. Então fiquei não assustada, acho que essa não é a melhor palavra, mas decepcionada. Ele me disse várias coisas que não foram boas. Algumas eu acho que têm a ver, outras não. [...] falou que via um zombi em mim. Zombi é um morto (Ele me disse que um dos motivos para eu me preparar para estudar los misterios era o de evitar que coisas más – zombies são uma delas, mas ele usou outros termos – se aproximassem de mim) . Não sei se a sequência foi essa. [...]. Então em um momento me disse que, não me lembro exatamente, [algo] como dons espirituais. A palavra não foi dom. Não me lembro, e ele me perguntou se eu queria ser uma santera. Eu disse que não. Ele então falou que São Miguel Arcanjo me protegia, e que sou filha dele, Anaissa a Pie, Santa Marta, e Virgem de Pilar. [...]. Eu não me lembro se ele falou da preparação nesse momento, acho que sim. Quando ele me perguntou se eu tinha alguma pergunta para lhe fazer, eu expliquei que estava fazendo uma pesquisa sobre religião, que teve início numa botânica em San Juan (PR). Acho que antes ela já havia dito que eu estava em Porto Rico, e que as coisas estavam melhor lá do que onde eu estava [no Brasil]. Acho que ele já havia dito sim que eu devia ser preparada para montar os mistérios... Então quando ele me deu a palavra, ele disse que só têm os mistérios os elegidos pelos elegidos; que todos são elegidos, mas só apenas esses podem. Ele se apresentou como Prin, um espírito (de uma pessoa, como nós, o rapaz me explicou) que viveu na África há muito tempo atrás. Ele disse que as pessoas precisam de uma preparação, precisam preparar a cabeça para que possam montar, e que eu necessito fazer isso, para me preparar e pedir permissão aos mistérios para fazer a pesquisa. Ele me disse que o espírito, ele, Prin, pertence às 7 Potencias Africanas; que ele é o segundo; o primeiro seria Juan.... e o terceiro Guedé...; não entendi os outros nomes que aconpanham. Falou que ele é um Guedé, mas um Guedé bom, que trabalha para o bem das pessoas. [...] quando eu comecei a dizer o que estava fazendo/queria ali, e então disse que estudava religião, o rapaz me perguntou que religião. Eu falei os misterios (com o som aberto), e ele repetiu pronunciando de outra maneira (como se a palavra fosse menor, incompleta, e com sons mais fechados). Prin então nesse momento inicial me disse que a preparação é para abrir a cabeça das pessoas; falou algo de cérebro, que eu não entendi; e se eu estava interessada em espiritismo. Foi aí que fiz referência aos mistérios. Ao longo da conversa ele reafirmou que eu não estava preparada, e me fez propostas de que eu poderia trabalhar com isso [...] lhe disse que não era isso que queria [...]. Antes havia me dito que se eu me preparasse, ele poderia me explicar tudo, deixar eu gravar, escrever, fazer fotos das festas de São Miguel e Anaisa, dos despojos/banhos. Que poderia me passar algumas gravações de programas que foram feitos com ele. Por vários momentos me falou que as minhas capacidades – não foi esse o termo – espirituais é uma herança de família, que vem há várias gerações. Afirmou muito isso, e quando eu falei sobre a mudança de tema da pesquisa, me explicou que isso aconteceu por causa dessa minha sensibilidade espiritual (não usou essa expressão mas foi esse o sentido). Que eu me senti tocada ao ver a botânica, uma energia posistiva, que na verdade a mudança tem a ver com isso. Seguiu dizendo que eu precisava de um batizado para estudar a ciência oculta. Eu perguntei se essa iniciação me permitiria montar, pois não queria isso. Ele me disse que sim, mas que não precisaria montar, mas teria que fazer, ter, não sei bem, os 7 pontos...

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Mesmo com todas as ressalvas desse mistério sobre as exigências que, segundo ele, me seriam colocadas para fazer a pesquisa (e a minha recusa em aceitá-las), eu tive acesso nessa conversa a uma variedade de informações que posteriormente se transformaram em dados etnográficos. Como Prin se apresentou, dizendo o seu nome e origem, pude perceber como os mistérios são concebidos: espíritos de pessoas que viveram como nós há tempos atrás. A partir disso, também mapear certa especificidade dos mistérios face ao problema que havia colocado sobre a diversidade de agências (santos e orichas) que eram mencionadas durante as práticas de comércio na botânica em Porto Rico. Além disso, uma inflexão relevante se deu. Pela primeira vez eu tinha um mistério como interlocutor direto. Isso adensava as experiências que vinha tendo no trabalho de campo. Os espíritos passaram a ser parte atuante da pesquisa. Se nesse dia em San Francisco de Macorís me senti um pouco frustrada quando me dei conta que não falaria com a pessoa do padrinho de Rosa, mas sim com o mistério que ele monta, no decorrer da investigação outras pessoas me diziam que havia uma abertura ou demanda de alguns mistérios, que queriam falar comigo Como se nota nas transcrições do meu caderno de campo, é importante destacar que a própria noção que eu perseguia – como se definia a categoria pessoa que tem os mistérios – se tornou interna à relação que eu procurava estabelecer com meus interlocutores. Penso que as considerações de Favret-Saada (2005) em “Ser Afetado” explicitam um domínio interessante desse processo. Também interessada em refletir sobre como foram obtidas suas informações de campo, neste texto Favret-Saada revela que lhe foi necessário adotar um dispositivo metodológico. Isto lhe permitiu a formulação de certo saber posterior à pesquisa. Entretanto, não se tratava nem de observação participante, menos ainda de empatia. Conforme a autora, seus interlocutores só falaram sobre feitiçaria com ela quando pensaram que tinha sido tomada; quando reações que não estavam sob seu controle significavam, para eles, que ela havia sido afetada pelas falas e atos rituais. De modo que ninguém pensava em falar com ela pelo fato de ser etnógrafa. A minha presença diante de Prin, e por que não pensar frente aos interlocutores humanos da pesquisa, parece-me que também não era percebida a partir do meu objetivo profissional e acadêmico. Ainda que para mim isto não fosse imediatamente explicito, eles me viam (e Prin usou exatamente esse verbo: ele via um zombie em mim) de determinada maneira. Com isso não quero utilizar um recurso de linguagem, mas dar

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relevo a uma das capacidades sensíveis, atribuída tanto às pessoas quanto aos mistérios, por meio da qual uma série de interações pode ser estabelecida ou rechaçada. Diante deles, eu me tornara uma confluência também constituída por espectros, espíritos e imagens. Uma ‘nova’ pessoa me foi delineada.

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CAPÍTULO 1 DOM EM CIRCULAÇÃO 1.1 AS PESSOAS E SEUS MISTÉRIOS 1.1.1 A missão e os caminhos de Joana – Eles disseram aos meus pais que eu tinha uma luz muito forte e era preciso cuidar disso. A essa época Joana era uma criança, estava com cerca de sete anos. Acompanhada de suas irmãs, ela cantava no coral de uma paróquia na cidade de La Romana, costa sudeste da República Dominicana. Mas, no interior da igreja, Joana desmaiava enquanto participava das atividades do coral e das missas católicas. Além disso, era comum ela se sentir enfraquecida e doente. Um casal de idosos que frequentava a mesma igreja e vinha observando os desmaios de Joana, decidiu procurar os pais dela. Falaram com eles, então, nos termos acima. Eles [o casal] trabalhavam a obra, Joana me disse. 28 Seus pais eram católicos. E Joana escutava o pai, em particular, volta e meia dizer que só acreditava em Jesus Cristo e na Maria Santíssima (Virgem Maria). Por isso, durante a infância dela, nas paredes da sua casa viam-se apenas os quadros de ambos. No entanto, mortos familiares e de antigos amigos estavam sempre próximos do pai de Joana. E, às vezes, incorporavam-se nele enquanto dormia. Ele assumia as características físicas e gestuais dessas pessoas falecidas, mas depois não se recordava de nada. Joana me disse que seu pai também era capaz de tumbar (derrubar) bruxas invocando orações em La Romana, e era conhecido por isso. Inicialmente, entretanto, seus pais nada fizeram para tentar conter o enfraquecimento que a acometia. Joana estava com treze anos quando seus pais convenceram-se de que ela precisava ser batizada. A tarefa coube ao casal de idosos que os havia aconselhado. O batizado de Joana durou um ano. Na verdade, vários batizados. Pois ao longo desse período o casal a levou para percorrer diferentes cidades da República Dominicana. Conduziram-na a um cemitério, a sete igrejas católicas, ao mar e ao monte (áreas de mato e bosque). 29 Em cada um desses locais, uma cerimônia específica foi realizada.

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Expressão utilizada pelos meus interlocutores dominicanos ao se referirem às pessoas que têm os mistérios, aquelas que atendem ritualmente esses espíritos e realizam consultas espirituais, o que chamam de trabalhar os mistérios. 29 A espacialidade do monte está ligada, em várias ilhas caribenhas (Haiti, Suriname, Jamaica, Cuba, República Dominicana, Porto Rico, Guadalupe, Martinica) à presença e ocupação das áreas de mato, bosque e montanhas pelos chamados cimarrones, escravos africanos e crioulos que não se submetiam ao poder colonial e fugiam para regiões isoladas e de difícil acesso, e que podiam também entrar em confronto direto com os exércitos coloniais. Entre os meus interlocutores dominicanos, uma categoria particular de espíritos, conhecida como los petroses, são concebidos como aqueles que em vida se estabeleceram no monte, assunto que será discutido no terceiro capítulo. Esses espíritos são definidos por

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Durante doze meses, Joana vestiu apenas roupas brancas. Para Joana, o batizado é importante porque tranquiliza os espíritos. Para Joana, seu enfraquecimento e desmaios deviam-se a força dos seres de luz na sua vida, que a derrubavam (tumbaban) no chão. Os mistérios são a luz a que ela fez referência nas nossas conversas. Joana reconhece que trabalha esses espíritos desde que terminaram as cerimônias de seu batizado. E isso já durava quarenta e um anos, quando a conheci em 2010 em uma botânica em Río Piedras. Após a fase mais crítica da infância, Joana passou a ser procurada em sua casa por vizinhos e mesmo estranhos. Suas capacidades divinatórias atraíam outros. Aos treze anos, ela também engravidou de um namorado, com quem teve seu primeiro filho. Na juventude trabalhou em restaurantes em La Romana, e, anos mais tarde, quando se casou com um comerciante dominicano com quem teve duas filhas, passou a ler as cartas, consulta feita aos mistérios por meio de um jogo de baralho espanhol. Primeiro, para algumas amigas. Depois, para desconhecidos. A solicitação dos trabalhos,30 especialmente para os relacionamentos amorosos, começou a aparecer nessas consultas iniciais, e Joana passou também a prepará-los. No entanto, assumir a tarefa de trabalhar os mistérios não ocorreu sem questionamentos. Joana sempre insistia comigo que pôr suas capacidades divinatórias à disposição de outros não foi uma escolha sua. Os mistérios foram preponderantes nesta decisão. Ela sabe que tem os mistérios desde o seu nascimento. Os eventos que a debilitaram na infância eram uma mostra do que ela definiu como a força dos espíritos sobre si mesma. Assim como a sua capacidade de relatar e prever acontecimentos ou de gerar outros quando, depois de invocar os santos por causa do que considerava uma agressão contra si, observava os responsáveis por tais atos prejudicados econômica e fisicamente.

meus interlocutores dominicanos como tendo comportamentos violentos, intransigentes e rebeldes. Historicamente foram associados às vitórias dos escravos crioulos e africanos em Saint Domingue (que se tornou a república do Haiti no início do século XIX) contra o domínio colonial francês. Meus interlocutores dominicanos não costumam nomear os espíritos dessa categoria individualmente. Usam com mais frequência o termo petro para fazer referência a esses mistérios. 30 Trabalhos são objetos criados em potes, preparados a partir da manipulação de velas ou de órgãos de animais que os interlocutores dominicanos fazem para os clientes incorporando os mistérios ou invocando esses espíritos. Geralmente quando esses compósitos são feitos à base de substâncias como óleos, especiarias e outros alimentos os dominicanos os chamam de serviço. Esse assunto será tratado no próximo capítulo.

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Ainda na juventude, durante as consultas que ela fazia com terceiros, Joana ouvia com frequência um aviso. Diziam-lhe que ela veio ao mundo para trabalhar os mistérios. Essa era a sua missão. E, em caso de recusa, esses espíritos a levariam. Para Joana, isso queria dizer que ela morreria e outra pessoa seria colocada em seu lugar. Já os mistérios reencarnariam novamente em quem fosse substitui-la. Ainda assim, ela me dizia: – Eu não queria saber disso para nada, para nada! Com um sorriso um tanto desconfortável em seu rosto, sinal mais de preocupação que exatamente de satisfação, Joana explicava-me que, quando morresse, seus filhos ficariam em uma situação complicada: – Eles têm seus mistérios, têm sua proteção através de mim. Com o seu falecimento, um deles teria que começar a trabalhar e assumir a atenção ritual que ela vinha dando a esses espíritos há décadas. O problema, nesse caso não mais para ela, mas para seus descendentes, é que nenhum dos três gostava disso. No decorrer das consultas, Anaisa – chamada de metresa pelos dominicanos – era o espírito feminino que mais se apresentava quando Joana jogava as cartas para os clientes.31 São Miguel Arcanjo e Santa Marta A Dominadora, outra metresa, também são seus mistérios protetores; ambos se apresentavam durante as consultas e intervinham no auxílio e na resolução das suas dificuldades cotidianas: – Eles resolvem, acomodam as situações para mim. É preciso ser fiel a eles, ser leal. Eu sou uma pessoa que sigo meu caminho e não me deixo influenciar... eles [esses santos] não fazem nada de graça, é preciso dar algo em troca.. Eu os atendo e eles me assistem, Joana argumentou comigo. 1.1.2 A árvore de Gina – Joana, por exemplo, trabalha isso, e quando a pessoa falece os filhos e filhas dela, alguns deles, inevitavelmente, vão ter que trabalhar, foi o que Gina comentou quando soube o motivo de minha presença junto à Joana na botânica, que, então, reagiu: – É mais comum os netos, mas se não há netos, são os filhos mesmos. Já havia notado a ida de Gina à botânica em outras ocasiões, ora acompanha de um casal de crianças (seu filhos), ora de uma senhora que me parecia ser sua mãe. E, às vezes, de outra mulher que se parecia muito com ela. Quando Gina para lá se dirigia, 31

Metresa é uma corruptela de maîtresse, termo que no vodu realizado no Haiti nomeia um espírito feminino conhecido como Metresili: uma mulher que se apresenta em um estilo burguês crioulo, vinculada aos padrões de feminilidade da época colonial e geralmente concebida como acompanhante e amante de personagens masculinos, especialmente aqueles ligados às forças de guerra. Entre os meus interlocutores dominicanos, não apenas Metresili, mas outros mistérios femininos são chamados de metresa.

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estava à procura de alguma mercadoria. Sempre perguntava sobre velas, imagens de santos e óleos. Gina trabalha os mistérios há nove anos. Como Joana, ela também relutou em assumir esses espíritos. Isso ocorreu quando ela já não vivia mais em Miches, sua cidade na República Dominicana, mas trabalhava como empregada doméstica em Porto Rico. Era comum que Gina caísse ao chão e perdesse a consciência enquanto realizava suas tarefas nas casas das patroas. À noite, quando saía para se divertir, bastava ingerir um pouco de rum ou qualquer outra bebida alcoólica para dar início às consultas na rua ou dentro dos bares. Os mistérios montavam ela. Para Gina todas essas situações eram constrangedoras. Entretanto, faziam-se cada vez mais comuns. Quando passava diante de alguma botânica, ela se detinha em frente. Olhava os quadros, as imagens de santos. Sentia-se de alguma forma capturada, ao mesmo tempo em que se perguntava: – Por que eu? Depois da repetição dos desmaios nas casas em que trabalhava e das consultas cada vez mais frequentes nos espaços públicos, ela desistiu de sua ocupação como empregada doméstica. Começou, assim, a se dedicar à consulta espiritual de terceiros. Gina recebe os clientes em um altar organizado dentro da casa em que mora com seu casal de filhos e o marido, em Río Piedras. Mas já havia oferecido as consultas na mesma botânica em que conheci Joana e atuado em outras. Durante aquela conversa na botânica, depois de ter indagado à Joana se ela havia me dado um número – informação que os mistérios comunicavam à Joana, conhecida por receber até oito mil dólares nas loterias de Porto Rico e da República Dominicana – Gina me questionou: – O que você quer saber sobre os mistérios? Isso é como uma árvore com raízes, ela argumentou, movendo suas mãos em sentido vertical e em seguida espalhando seus dedos. Gestos que procuravam demonstrar que as raízes e os galhos se propagavam: os que chegavam (novos nascidos) continuavam a trabalhar. – Meu avô, minha avó trabalhavam os mistérios, e eu faço parte disso. Isso é algo que se passa pela família, e os mistérios são quem decidem até quando eu vou seguir trabalhando. Cada cabeça é um mundo e os mistérios pegam (cogen) as cabeças que eles querem. Além de Gina, sua irmã, a outra mulher que a acompanhava algumas vezes na botânica, realizava consultas também em Río Piedras. Sua família há muito mantinha relações com esses espíritos. Quando passei a frequentar a casa de Gina e a observar seu altar, ela comentou que sua mãe trabalhou com São Judas Tadeu. Perguntei-lhe, então, se isso havia ocorrido quando ela era uma criança: – Naquela época eu ainda não

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estava nesse mundo, Gina me respondeu. Ela me explicou que isso ocorreu no final dos anos 1950, no início dos 1960, e que ela mesma só nasceu em 1973. Quem lhe detalhou o modo como sua mãe trabalhava com aquele santo foi São Santiago Apóstolo/Ogun Balendyó, o mistério protetor de Gina. El patrón, como às vezes ela o chamava. 1.1.3 No meio disso: Rosa e Diogo Foi salientando que se trata de um dom com o qual se nasce, algo natural, que Diogo certa vez me contou, sem que eu esperasse, que tem os mistérios, em particular o espírito de uma mulher chamada Anaisa. 32 Mas também um espírito chamado de Barão do Cemitério. Diogo era marido de Rosa, minha principal interlocutora durante os primeiros meses que estive em Porto Rico. Ele me parecia sempre muito desconfiado e reticente quanto ao assunto da pesquisa de doutorado. Se Rosa permitiu, prontamente, que eu ficasse com ela na botânica, fazendo-lhe perguntas, anotações e fotografias, enquanto a ajudava com as vendas, Diogo me via com certa suspeição. Meu interesse por um assunto que não apenas ele, mas também Rosa e outros dominicanos com quem convivi demonstravam reserva, gerava nele certo desconforto. Entretanto, Diogo disse-me que também tinha os mistérios quando estávamos na botânica de Rosa, na Plaza del Mercado. Logo depois que retornei ao Brasil, em abril de 2010, Rosa viajou para o Alasca. Ela havia se cadastrado, via internet, junto à Trident Seafoods, uma multinacional pesqueira norte-americana com base no Alasca e no noroeste do Pacífico. E havia sido recrutada para trabalhar no processamento de salmão por cerca de três meses. Com isso, a botânica ficou sob a responsabilidade de Diogo. 33 Na ausência de Rosa, Anaisa subiu nele. Na ocasião, ele havia entrado na loja para procurar uma mercadoria a pedido de uma cliente. Por isso, ele me disse, não gostava de ficar no interior da botânica. Ao sair Diogo começou a rir sem interrupção. Parentes e conhecidos que estavam próximos dele não compreenderam o que acontecia. Diogo acreditava que não estava ainda maduro. Por isso, era incapaz de se controlar quando a metresa se aproximava.

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O mesmo mistério feminino de Joana. Diogo e o irmão caçula de Rosa se cadastraram também no site da empresa, mas não foram recrutados como ela. Meses depois, o irmão caçula foi chamado, mas teria que se apresentar em um escritório da empresa em Washington, nos EUA. Sua condição econômica, no entanto, não lhe permitiu fazer a viagem 33

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Nessa ocasião, ele me explicou que ter os mistérios é uma coisa de família. Minha avó tem, meu tio também, 34 e eu cresci no meio disso. Minha tinha recebeu da minha avó, mas ela não ficava bem quando os seres se colocavam [se ponían] e não os quis, Diogo argumentou comigo. Diogo e Rosa são de cidades do norte da República Dominicana, da região conhecida como Cibao, mas se conheceram em Porto Rico. Ele nasceu em Isabela; ela, como eu pude visitar, é de um bairro rural, antiga região de cultivo de arroz em San Francisco de Macorís. Enquanto Diogo chamou a minha atenção para o caráter natural e familiar de seu dom, Rosa pouco falava sobre o aspecto familiar dos seus mistérios. Enquanto conversávamos certa vez na botânica, perguntei-lhe com quem havia aprendido sobre tudo aquilo que vendia ali. Rosa argumentou que isso é como uma coisa que te falava, ninguém te ensinou, Deus e os santos te dão os conhecimentos. Ela percebeu que possuía esses conhecimentos quando vivia ainda na República Dominicana e estava com cerca de dezessete anos. Nessa época, Rosa me disse, semidesperta [em estado de sonolência], se sonha a coisa [com as situações], vê a coisa [o que aconteceu ou acontecerá], vê uma pessoa e sabe o que se passou. É um dom que Deus te dá. Ela dizia que em sua família não havia outros que tinham esses espíritos, somente ela. Nossas conversas giravam, basicamente, em torno dos banhos, limpezas e trabalhos. Era isso o que Rosa recomendava aos clientes, amigos e parentes, cujas mercadorias eram geralmente adquiridas na botânica. Conversávamos, ainda, sobre as peculiaridades de alguns mistérios, especialmente São Miguel Arcanjo, seu santo protetor. Mas no decorrer de uma conversa com um assíduo cliente porto-riquenho, Rosa se referiu a um antigo parente seu, adoecido em uma cama havia muitos anos. O comportamento do homem idoso seria repetido por uma cobra enroscada em uma árvore no quintal. Isso era o que vinha sendo contado entre os familiares ao longo dos anos. Ele era um antepassado seu, o cliente lhe falou. Ao que Rosa, apenas acenando com a cabeça, respondeu que sim. A possibilidade de um vínculo espiritual entre o senhor adoecido e o animal perpassou tanto o comentário do cliente quanto o gesto positivo de Rosa.

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Padrinho de Rosa nos mistérios, que cuidava dela espiritualmente e a quem fui levada para conhecer quando viajei com Rosa até sua cidade natal, San Francisco de Macorís, na República Dominicana, em outubro de 2010. Viagem a que fiz referência na Introdução.

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Era provável que ela não fosse a única a ter os mistérios em sua família. Sua irmã mais velha, que vivia no bairro San Jose, próximo a Río Piedras, possuía, assim como Rosa, capacidades divinatórias através dos sonhos. Além disso, enquanto conversávamos no quintal da casa que Rosa construiu para os pais e a filha em San Francisco de Macorís, suas jovens primas com pouco menos de vinte anos comentaram que uma delas sempre ia ao chão quando participava das missas da igreja católica local. Os parentes adultos suspeitavam que ela também tivesse os mistérios. Devido à convocação para o trabalho com o processamento do salmão na Trident, Rosa adiou seu batizado em San Francisco de Macorís. As cerimônias seriam conduzidas por seu padrinho nos mistérios, tio de Diogo. E deveriam ser realizadas em fins de maio de 2010. Mas no início de junho ela deixaria Río Piedras rumo ao Alasca. Para Rosa, a comunicação que mantinha com os mistérios, não apenas por meio dos sonhos, mas também da audição e visão, era um dom com o qual havia nascido. Irritada, a vi certa vez reclamar com Diogo e a irmã com quem morava sobre uma borícua35 que estava aprendendo a fazer os trabalhos. Rosa gastava boa parte de seu tempo na botânica vendendo e ensinando sobre o uso de produtos, objetos e plantas para retirar as coisas más (sacar las cosas malas).36 Além disso, recomendava a aquisição de imagens de santos e velas para a organização de altares domésticos como forma de cuidar e estar pendente aos santos; e, ainda, preparava os trabalhos porque é uma pessoa que têm os mistérios. Para ela, o aprendizado sobre esses assuntos era contrário (e mal visto) à sua própria experiência, ao que ela definia como o seu dom. 1.2 CONECTANDO ‘PESSOAS’, FAMÍLIA E ESPÍRITOS Meus interlocutores, dominicanos e mistérios, definem alguns desses espíritos como a força da pessoa.37 Isso significa que é por meio de uma série de práticas rituais que a disposição e a capacidade cotidianas para a realização da vida daqueles que têm

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Termo do grupo indígena taino que designava a atual ilha de Porto Rico como Borinquén, é utilizado com o sentido de identidade porto-riquenha. 36 Para os meus interlocutores dominicanos, as coisas más são espíritos invisíveis e anônimos enviados por meio de bruxaria para causar malefícios aos seres humanos. Mas também se emprega o termo em referência aos mistérios conhecidos como petroses. Joana e Antonio, por exemplo, assim chamavam os petroses. 37 As pessoas possuem geralmente um mistério protetor e outros dois que se fazem também presentes em seu cuidado e auxílio. Esses três espíritos não são obrigatoriamente os mesmos que protegiam os antepassados familiares. Outros mistérios, no entanto, devem ser atendidos ritualmente e podem montar essas pessoas. Há, no entanto, uma hierarquia nessa forma de incorporação. Alguns mistérios são impedidos de passar, ou seja, de montar as pessoas, pelo mistério protetor (ou pelos outros dois principais). No segundo e quarto capítulos, descrevo algumas situações em que isso ocorreu.

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esses espíritos são ativadas e conservadas. Nesse sentido, manter ritualmente os mistérios como uma potência para si requer das pessoas engajamentos de ordens diversas. Um desses engajamentos diz respeito ao fato de que, ao serem recebidos, os mistérios solicitam retribuição. “Que força faz com que se retribua uma coisa recebida, e em geral se executem os contratos reais” (MAUSS, 2008, p. 60) é um questionamento pertinente, também, para aqueles que atendem e trabalham os mistérios.38 O fato de que fluxos de força – de dom espiritual concebido como potência pessoal – sejam debitados a uma conexão familiar levou-me a procurar entender como essa ‘relação’ é compreendida. Isso é o que farei nesta seção. Na seguinte, tentarei demonstrar quais são as implicações de receber um dom espiritual porque se é parte de uma família e como o dom age e constrange aqueles que o receberam, ou seja, o que essa transmissão cria contemporaneamente para as ‘pessoas’. Para isso, considero a sugestão de Marilyn Strathern de que a ideia de “força vital” pode ser compreendida como uma potência transferível. Assim procuro lançar luz às narrativas de Joana, Gina e Diogo acerca dos ‘dons’ por eles recebidos. Em uma reflexão sobre o papel estético de substâncias como a gordura entre os Etoro do interior da Papua Nova Guiné, Strathern (1999, p.47-48) sublinhou a importância dos arranjos sociais concernentes ao fluxo da força vital que os homens faziam circular entre si. Para os Etoro a imagem negativa de uma pessoa que não dissipa, mas, antes, acumula a vitalidade dos outros, é de caráter estético, liga-se à forma ampla do corpo. Por consequência, um corpo franzino ao final da vida de um homem é o esperado. Tal forma indica que as gerações mais antigas conferiram seus corpos às mais jovens; estes absorveram a força vital daqueles.39 Por isso a força vital não deveria ficar alojada durante muito tempo no corpo, o importante era que pudesse fluir. Buscando isso, os homens a mantinham em constante circulação sob a forma de doação de sêmen, de provisão de carne (alimento que induz o crescimento) e da distribuição de conchas valiosas (riqueza); todos signos de vitalidade. Deste modo, os homens Etoro eram capazes de rastrear a expansão e o esgotamento da força vital em sua relação com os outros. Um homem era, na juventude e no início da 38

No entanto, o que me interessa por enquanto não é exatamente a descrição desses modos rituais entre os dominicanos e seus espíritos herdados, o que farei no segundo capítulo. 39 Conforme Strathern (1999, p.50), os Etoro não interpretam o crescimento e a forma da pessoa como uma consequência direta da ingestão de comida comum. A autora afirma que foi nesse momento, ao estabelecer uma imagem de algo preenchido com carne, que se deu conta que introduziu, deliberadamente, a massa, um sentido de volume e peso, a solidez que os falantes do inglês associam com a ideia de substância.

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vida adulta, recipiente da força vital de outros homens, até o momento em que se tornaria doador, conferindo-a aos mais jovens. A força vital era transmitida às crianças não-nascidas por meio do intercurso sexual, aos meninos através da inseminação ritual, e a outros nas transações com conchas e carne, cuja doação era tida como equivalente à transmissão (STRATHERN, 1999, p.49). Guardadas as diferenças entre o que consiste a força vital para os Etoro e aquilo que meus interlocutores chamam de força da pessoa – os espíritos recebidos de seus antepassados – descrevo a circulação dos mistérios como um processo em que ‘pessoas’ são singularizadas. Para isso, é importante um exercício reflexivo em torno do que consiste esse dom e como ele circula pela família. Para isso, eu não tomo, como observou Carsten (2000, p. 1), o conteúdo do “parentesco” como garantido. O que faço, seguindo as considerações dela, é tentar construir uma imagem das implicações e da experiência vivida dessa forma de relacionar-se. Chamo de ‘circulação do dom’ a transmissão dos mistérios de antepassados familiares (vivos ou mortos) a seus descendentes. Aqui a família é compreendida como uma configuração relacional produzida pela reprodução sexual e desta deriva a reprodução social. Neste sentido, a compreensão dos meus interlocutores assemelha-se ‘parcialmente’ ao que vem sendo chamado de modelo cultural euro-americano do parentesco (CARSTEN, 1995, 2000; BAMFORD, 2004). Parcialmente porque o que é transmitido nessas famílias, ao mesmo tempo em que se assemelha a esse modelo cultural, o torna mais complexo: trata-se de espíritos que também chegam a filhos e filhas, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas. Se a família é vista enquanto uma configuração ramificada de genitores primários – e recupero aqui a imagem da árvore com raízes evocada por Gina –, o que passa por ela não se limita a substância biológica. E isso apesar de o sangue ser evocado como índice substantivo que explica as conexões familiares tanto do ponto de vista de meus interlocutores dominicanos quanto de seus mistérios. Por ora, darei um exemplo de como o sangue é mobilizado pelos primeiros. Mais à frente, de como os mistérios também falam empregando essa noção. Quando acompanhei Rosa a San Francisco de Macorís, na República Dominicana, conversei com uma jovem que era conhecida na cidade como alguém que sabe muito. Um primo de Rosa me levou para conhecê-la por causa das capacidades divinatórias dessa jovem. Em sua casa, ela explicou-me que existiam pessoas que, como era seu caso, tinham os mistérios para desenvolver. Outras, como eu mesma, tinham

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para cuidar de si. Quando eu lhe perguntei sobre como ela aprendeu suas capacidades de adivinhação e comunicação com esses espíritos, ela argumentou que isso não se aprende: é alguma coisa com que as pessoas nascem e vem da família. Ela ainda argumentou comigo que herdou dos dois lados, materno e paterno, e assim me explicou: – É algo que tem a ver com a raça, o sangue, ela me dizia enquanto apontava para as veias de seu braço. Chamar a atenção para essa maneira como se explica o recebimento do dom espiritual é enfatizar apenas um tipo de transferência a que os mistérios se ligam. Como a jovem de San Francisco de Macorís argumentou comigo – mas também Diogo, Rosa, Gina e Joana –, essa transferência é localizada como um processo natural. Mas é importante que eu faça a seguinte consideração: conceber os mistérios como um dom inato no sentido de que alguém nasceu ou foi escolhido para ter esses espíritos devido à sua conexão familiar não tem tanto a ver com uma concepção em que aquilo que é natural se equaliza a algo dado ou espontâneo. Pretendo demonstrar que meus interlocutores definem esse dom como sendo de ordem natural situando-se em um ponto de vista muito particular. Essa naturalidade do dom espiritual se explica em oposição ao que eles chamam de compra de espíritos (ou espíritos comprados). Essa é uma prática ritual que permitiria a obtenção de mortos e dos mistérios por meio de certos modos rituais caracterizados pelo contrato. Comprar os espíritos contrapõe-se a recebê-los naturalmente porque, no primeiro caso, há a intencionalidade humana de estabelecer relação com essas entidades.

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Assim, quando os meus

interlocutores dominicanos se referem aos mistérios como algo inato, o que pretendem informar é que não foi uma decisão deles ter esses espíritos. Embora seus antepassados familiares sejam os doadores do dom, à frente estavam os próprios mistérios (há quem fale em Deus) na escolha das cabeças humanas que os receberiam. Essa é uma perspectiva singular sobre o que é visto como o caráter natural daquilo que foi recebido dos parentes que pertencem a gerações anteriores. Há ainda, no entanto, espaço para outras compreensões. Para os meus interlocutores, o que está em jogo não é apenas um processo de transferência de substância que garante a manutenção 40

A descrição de práticas sobre a compra, o pagamento e a coerção de espíritos, enfatizando a alienação, o trabalho e o contrato, são aspectos comuns às etnografias contemporâneas que discutem cosmologia, modos rituais e formas de socialidade no Caribe. Dois sistemas rituais vêm sendo, em alguma medida, contrapostos na literatura. No Haiti, os rituais vodu radá (ligado aos espíritos familiares) e petro (nos quais seria possível entreter relações de compra de espíritos, ainda que alguns dos espíritos petro também se definam como herança familiar). Em Cuba, os sistemas religiosos da regla de ocha (culto yorubá) e das reglas del palo monte (de fundamentos congo). Cf. RICHMAN, 2008; PALMIÉ, 2002; 2006. Discutirei esses modelos rituais contrastantes no segundo capítulo.

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ritual dos espíritos porque com isso são gerados novos nascidos, novas pessoas. São também modos diversos de “dispor”, enquanto atos intencionais de “trabalho social” (STRATHERN, 1999, p. 46), que são transmitidos aqueles que têm espíritos. O que quero dizer com isso é que tais seres humanos engajam-se em uma série de relações sociais na medida em que assumem o cuidado e o trabalho ritual. São essas relações que também passam para aqueles fazem parte dessas particulares famílas. Sugiro que, no caso dos meus interlocutores dominicanos e seus mistérios, não se trata de conceber a transmissão dos espíritos como um processo que garante a continuidade de um vínculo unicamente substantivo. Seja esse vínculo entendido como oriundo da reprodução biológica de indivíduos do “mesmo sangue” (intercurso tido como natural porque os espíritos não foram comprados, mas vieram da família), seja esse vínculo proveniente da obrigação ritual de alimentar os espíritos herdados enquanto uma prática que seria inerente à família. Possíveis aproximações com algumas leituras recentes sobre parentesco podem oferecer pistas interessantes para o entendimento de noções como herança e transmissão de substância. Crítica quanto à permanência de uma abordagem substantiva nos estudos contemporâneos sobre o parentesco produzidos por Janet Carsten e outros autores, Bamford (2004) observa que, apesar do aparente conforto que as noções kamea sobre a transmissão de substâncias corporais do pai e da mãe poderiam ter frente aos princípios do modelo ocidental, o que conta para a definição das capacidades de reprodução feminina de uma menina vem de outros fluxos: dos presentes doados pelos afins do noivo a partir da aliança entre primos-cruzados da segunda geração. Isso não é dizer que os pais kamea deixam de transmitir substâncias aos seus filhos. Eles o fazem. A diferença é que não são tais substâncias que permitem a uma menina amadurecer e gerar sua própria prole, singularizando-se da perspectiva de um gênero. São as dádivas recebidas da família do noivo, posteriormente dele próprio. Os argumentos de Bamford orientaram minha releitura do importante trabalho de Karen Richman na comunidade haitiana de Ti Rivyé, em Léogâne, Haiti. Lá o uso do termo famni/eritaj celebrava o primeiro proprietário da terra na qual se viveu e cultivou. Os membros da famni partilhavam os direitos da parcela fundiária e herdavam através do sangue todos os espíritos antropomórficos servidos por aquele fundador (Richman, 2008, p.117-118). Para Richman (2008, p.157), seria difícil pensar a transmissão dos espíritos alijada da prática de servi-los ritualmente nas terras familiares. Alimentá-los

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nesses espaços era a atividade constitutiva da eritaj (parcela da terra familiar) do grupo de descendência. Richman se ateve à relevância da prática de alimentar os espíritos herdados (obrigação ritual) como um processo de produção por meio da qual são “criadas pessoas e relações pessoais”, ainda que, para a autora, tal prática seja capturada por uma lógica mais ampla: a partilha de alimento entre os próprios haitianos (seres humanos) é o que se reflete nas interações com seus espíritos. “Alimentar é o símbolo que resume o processo de produção – criando pessoas e relações pessoais – e não é surpreendente que a alimentação envolva as relações rituais (RICHMAN, 2008, p. 157)”. 41 Mesmo considerando que alimentar – “servir os espíritos” em Ti Rivyé – é uma prática em que são criados laços substantivos entre os membros da famni e seus espíritos herdados e a terra, Richman parece conferir pouca relevância a que tipo de compreensão sobre si alguém revela quando afirma “eu sirvo meus espíritos”. Partindo das considerações de Bamford e do material etnográfico sobre os meus interlocutores dominicanos e seus mistérios, pretendo demonstrar que não é apenas a oferta de alimentos (substância), em troca do bem-estar da famni ou da restituição de auxílio junto aos seus membros, que caracteriza a manutenção ritual dos espíritos herdados. São também formas de socialidade – a isso meus interlocutores chamam de trabalhar os mistérios – que são transferidas pelos antepassados e garantem a continuidade dessas entidades no mundo dos vivos. Além disso, mesmo nas descrições dos meus interlocutores dominicanos em que estão em jogo práticas substantivas, a elas se articulam noções tão particulares sobre a pessoa e seu corpo (concebido como algo disponibilizado para o consumo dos mistérios e instrumentalizado por esses espíritos para o trabalho ritual com os clientes), que seria difícil pensar aquelas práticas como opostas ao que Richman chama de “contratualização da substância”. 42 Em Ti Ryvié a transmissão dos espíritos pelos antepassados reivindica um discurso sobre substância entendida como “sangue, alimentação e descendência”. Mobilizando as considerações de David Schneider, em que substância tem a ver com o 41

De qualquer modo, Richman esteve atenta ao que Carsten (1995, p.223) descreve como um componente vital no processo de tornar-se uma pessoa e participar dar relações sociais, a prática de dar e receber alimento, como já salientei na Introdução. O que, em Ti Rivyé, foi descrito como incluindo a alimentação ritual daquelas entidades face à singularidade do que significa aí ser relacionado a uma fanmi. 42 Do ponto de vista dos interlocutores dominicanos, dentre as diversas modalidades de incorporação dos mistérios, algumas geram uma experiência de destacamento entre a pessoa e seu corpo. Esse passa a ser concebido como lócus de consumo dos espíritos. Discutirei essa questão mais à frente.

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que “é interno e inseparável da pessoa”, Richman constrói em sua etnografia a imagem de que a reprodução da famni e dos espíritos herdados ao sucumbirem, socialmente e ritualmente, a mudanças econômicas baseadas em diversas formas de alienação, passam a depender de relações ou indivíduos intermediários (RICHMAN, 2008, p. 148). Para Richman, alienar (ritualmente, inclusive) é uma consequência do que foi gerado pela capitalização das terras da famni por empresas norte-americanas. Ao se estabelecerem em Léogâne, essas corporações transformaram os camponeses haitianos em trabalhadores imigrantes e produtores (mantenedores) dos camponeses e da cultura tradicional. 43 Sua crítica à economia ritual transnacional documentada na Flórida e em Léogâne baseia-se principalmente na indicação do quanto de trabalho, especialmente daqueles que emigram e tornaram-se mão-de-obra assalariada explorada pela agroindústria nos EUA, incorpora-se às remessas enviadas aos seus parentes em Ti Ryvié. Com tais somas monetárias, em geral transferidas em dólar, os que ficaram no Haiti procuram aplacar a fúria de seus espíritos, que se sentem esquecidos e abandonados pela fanmi, especialmente pelos emigrados. Por isso é preciso alimentá-los nas terras familiares. Para Richman, esse engajamento pretende garantir a mutualidade entre seres humanos e seus espíritos, mas explicita interações em que os imigrantes nos EUA aparecem como produtores de riqueza e seus parentes camponeses (e as entidades) consumidores dela no Haiti. No entanto, reciprocidade não deve ser entendida como altruísmo, tampouco ações econômicas com motivações economicistas (STRATHERN, 1999, p. 18-19). Logo, considerar o material etnográfico sobre os meus interlocuotores dominicanos e seus mistérios revela que são ‘pessoas’ concebidas enquanto ‘parentes’ que parecem incorporar em si mesmas um tipo de transferência especial. E essa não se resume à substância, como discutiu Richaman. O dom que passa pela família – os mistérios e as diversas formas de comunicação com eles – circula porque os antepassados transmitiram não apenas substância (sanguínea e alimentar) a seus 43

Richman (2008, p.148) se refere à instalação da Haytian American Sugar Company e à capitalização das terras familiares. Conforme ela, ao mesmo tempo em que a terra, elo de ligação entre os membros do grupo de descendência e seus espíritos herdados, era comercializada, inventavam-se novas tradições rituais em Ti Rivyé. Ela documenta as mudanças rituais que criaram a figura do intermediário ritual, o gangan ason, entre os membros de um grupo de descendência e seus espíritos herdados, que passam a consultá-lo, pois já não se comunicam através do sonho e da possessão com suas entidades; o ritual de iniciação das mulheres, que pagam ao gangan ason para começar a invocar e servir seus espíritos do grupo de descendência; e o ritual de retirar os antepassados familiares já falecidos debaixo das águas, e objetificá-los como espíritos oraculares do grupo de descendência dentro dos altares domésticos.

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descendentes e a seus espíritos. Seus descendentes receberam, também, outros meios de criar conexões com os espíritos, como venho enfatizando. Meios que não se limitam a alimentá-los. Sobre isso sabia Gina quando me falou: – Meu avô, minha avó trabalhavam os mistérios, e eu faço parte disso. Como será visto ao longo deste capítulo e do segundo, dispor a outros (alienar) e pagar não são aspectos que Gina experiencia como estranhos, sendo alguém que têm os mistérios, às suas conexões familiares. Trabalhar os mistérios propicia um modo de vida particular. Recebê-los pressupõe engajar-se em várias relações sociais e na criação de diferentes artefatos. Trabalhar significa que a interação pessoa e seus espíritos herdados não se encerra em uma relação diádica (ou familiar), mas estende-se a outros, chamados de clientes. Como salientaram Joana e Gina, esses espíritos pedem e por vezes fazem com que isso seja inevitável. Com isso, as pessoas são levadas a pôr suas capacidades divinatórias à disposição de terceiros. Elas lidam com os clientes por meio das consultas. Em troca, são pagas por isso. Trabalhar quer dizer, ainda, organizar os altares para esses espíritos no interior dos ambientes domésticos. Desse modo, os mistérios são atendidos (alimentados), o que, por sua vez, demanda a compra e o acesso a uma infinidade de substâncias e outros materiais, além da própria atividade de composição dos altares. 44 Além de atender (alimentar com os serviços rituais) os mistérios e trabalhar (lidar com os clientes com as consultas), frequentemente nos altares domésticos as pessoas preparam os trabalhos: geralmente objetos compósitos que entram na esfera coletiva a partir de sua comercialização para os clientes. Tendo como objetivo criar ou alterar o estado dos indivíduos e/ou das situações em que eles se encontram, os trabalhos podem ser preparados com os espíritos montados ou não. Para os meus interlocutores, a comercialização dos trabalhos, as relações de pagamento com os clientes, a compra e o consumo de substâncias e outros materiais por seus espíritos não são práticas rituais exteriores aos seus vínculos familiares. Todas elas lhes chegam com o dom. Da perspectiva das pessoas (e como discutirei no segundo capítulo, também da dos mistérios), seria difícil sinalizar, como fez Richman, que relações e indivíduos intermediários, com os quais elas e seus espíritos herdados interagem, seriam externos à

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Por meio da criação dos altares são fabricadas para os mistérios temporalidades e espacialidades específicas. Assim, tenta-se recuperar para os espíritos o que foi a sua existência em vida, como discutirei no terceiro capítulo.

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cosmologia e à linguagem ritual aqui descrita. O fato de que gerações anteriores de familiares tenham assumido compromissos com os mistérios, compromissos esses definidos enquanto uma atividade quase sempre enunciada no tempo infinitivo – trabalhar –, também cria as condições para que emerjam, potencialmente, novas pessoas entre seus descendentes. Se o dom é transmitido naturalmente, recebê-lo tem implícito, assim como um dia esteve para os antepassados dos antepassados, a continuidade, a produção e o desdobramento de várias relações (STRATHERN, 2009, 1999; BAMFORD, 2004). Aí está um filho de um amigo meu. Aí há um filho de um amigo meu. Tu não pode passar por baixo da mesa meu filho, porque teu, teu papai foi um fiel filho e amigo dos mistérios. [...]. Tem a mesma cara, tem o mesmo sangue, e tu tem que… [Belié Belcan fez um som com as mãos] Quando te digam: - Tu és filho de fulano des tal [...]. Pois já. Dá-me um abraço. Como tu tá garçon, bem? (Belié Belcan, 28 de setembro de 2010, Santurce.)

Decorria a festa de São Miguel Arcanjo, em que se celebra também o dia de Belié Belcan, o mistério mais popular entre os dominicanos, quando esse espírito alertou aos convidados sobre a presença do filho de um amigo seu. O rapaz caminhava em direção a Belié Belcan, para cumprimentá-lo, enquanto o mistério lhe informava que deveria assumir os espíritos de seu pai. Nesse momento, Belié Belcan destacou uma ‘relação’ entre ele (espírito) e o pai do rapaz como de amizade. A afinidade entre ambos – e entre o pai do rapaz e outros mistérios – era em que consistia o vínculo transferido a esse convidado da festa. Mas além da transferência da afinidade que o pai manteve com os mistérios, Belié Belcan chamou a atenção para outro tipo de conexão que o rapaz trazia consigo: ele tinha a mesma cara e o mesmo sangue. Para Belié Belcan, ele era uma ‘pessoa’ vista a partir também da sua descendência linear: filho de outro filho dos mistérios, e não somente de um amigo desses espíritos. Sem dizer exatamente como a afinidade prefigurada (STRATHERN, 1999) e a continuidade sanguínea que singularizam o rapaz como ‘pessoa’ deveriam ser por ele atualizadas, Belié Belcan lhe antecipou, no entanto, um porvir. 1.3 INCORPORANDO O PARENTESCO São momentos desse processo de atualização do dom, em que relações prefiguradas se efetivam por meio de certos arranjos coletivos em que estão em jogo a convivência e interação com os mistérios e outros seres humanos (inclusive os clientes), mas também a confecção de objetos compósitos a serem comercializados e a recriação

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de certos tempos e espaços nos ambientes domésticos das pessoas, que minha etnografia captura. Descrever as maneiras diversas como aqueles que se tornaram meus interlocutores dominicanos e seus mistérios se relacionam em Porto Rico é, também, trazer à tona (e em alguma medida imaginar) existências múltiplas de muitas outras ‘pessoas’: os mistérios, concebidos como espíritos que tiveram uma existência histórica (pessoas que viveram como nós, como Gina me explicava), e os antepassados familiares. Dentre elas, algumas não foram meus interlocutores diretos. Mesmo assim, de maneira indireta, estão presentes nas interações e narrativas que conheci e relato. Atualizar o dom, como a partir de agora descreverei, revela o que essa particular forma de parentesco pode criar – a ‘incorporação da relacionalidade’ – e o que isso significa para as pessoas. 1.3.1 Montar ou subir: percursos do dom no corpo No caso de Gina, atender e trabalhar os mistérios são os modos rituais que ela incorpora há nove anos. Por um lado, é assim que se atualiza o tipo de conexão familiar da qual ela faz parte. 45 Mas dizer que Gina incorpora, em seu cotidiano, relações de trabalho ritual (e não apenas substância hereditária) porque receber um dom não é tudo. Ela conhece outros fluxos corporais, que não terminam com a transferência dos espíritos familiares. Esses fluxos, na verdade, desdobram-se a partir do engajamento dela com seus mistérios. Vários mistérios se incorporam à Gina. Montar ou subir são as categorias dos meus interlocutores que descrevem a modalidade mais explícita da ação dos espíritos sobre o corpo de uma pessoa que têm os mistérios.46 A modificação do comportamento, do tom da voz, por vezes da tonalidade da cor da pele e dos olhos, das roupas, dos objetos, adornos e gostos, e, em alguns casos, a assunção de modos animais, caracteriza o que vem sendo chamado na literatura antropológica de possessão. Gina trabalha os mistérios geralmente montada. E ela se refere a essa modalidade de incorporação como subir porque começa a sentir os mistérios pelos

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Como discutirei no segundo capítulo, esses modos rituais correspondem igualmente ao fortalecimento da pessoa. Portanto, vão além de um compromisso que efetivaria apenas relações passadas. É com esse engajamento que se produz a vitalidade diária de meus interlocutores dominicanos. 46 No entanto, é comum os interlocutores dizerem ele monta os mistérios ou eu subo um mistério; uma inversão do sujeito da ação, que deixa de ser os espíritos e se torna a própria pessoa, assunto que será discutido no próximo capítulo.

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pés. 47 Os espíritos então percorrem seu corpo: chegando ao estômago, passam pela garganta em direção à sua cabeça (o que ela me indicou pondo sua mão na nuca). A percepção que Gina passa a adquirir quando um mistério sobe permite-lhe descrever um percurso desses espíritos por seus órgãos até que ocupem seu corpo. Para ela, os mistérios localizam-se no estômago da pessoa, mas somente naqueles que os têm naturalmente. Contudo, não se trata apenas de uma sensação interna: – Quando um mistério sobe, eu sinto um do lado direito, outro do lado esquerdo e um em cima, Gina me disse, enquanto apontava para as laterais de seu corpo e espalmava as mãos em frente a ele. O dom que ela incorpora produz, ainda, uma percepção espacial tridimensional. Embora três mistérios fiquem ao seu redor, um em particular a transforma em cavalo, termo empregado por esses espíritos para se referir às pessoas a que se incorporam. As descrições de Gina sobre esse percurso interior dos mistérios aproximam-se da proposição de Augé (1986, p.164) quando propõe que se imagine “o que é o percurso dos deuses em direção ao homem”. Para ele, o próprio corpo humano poderia ser o ponto de partida do vodu (espírito) entre os Fon, e dos ancestrais familiares, que se localizam no dedão do pé entre os Yorubá. 48 De acordo com os primeiros, se o que é específico à divindade é “entrar na cabeça”, 49 seria no rim que o vodu se encontra. Entre os Fon e Yorubá, unções e sacrifícios são prestados aos órgãos e membros do corpo por causa da força espiritual neles acolhida. Para Augé, apesar de uma visão cíclica informar as narrativas míticas e os discursos sobre a entrada dos ancestrais divinizados do exterior na cabeça dos fiéis, a ideia de que o vodu e os antepassados yorubá estão nos órgãos permite pensá-los como “potências e qualidades físicas incorporadas”, geralmente herdadas. Baseando-se nesses 47

Armando, outro interlocutor dominicano que monta os mistérios, que conheci na botânica em que Joana realizava as consultas, também sente os espíritos inicialmente como um formigamento nos pés. 48 Cartry (1973, p.27), em publicação sobre a noção de pessoa na chamada África Negra, destacou que vários pesquisadores acentuaram a importância de modelos de tipo biológico nas ideias africanas relativas à estrutura da pessoa. Em algumas dessas sociedades, a criação humana seria descrita mais em termos de um modelo biológico do que de uma fabricação artesanal. Para Cartry, isso explicaria as concepções de que na placenta estariam inscritos alguns princípios espirituais entre os Mandinga, Yorubá, Ewé e Gourmantché. Verger (1973, p. 62-63), por exemplo, chama a atenção que o orí, termo yorubá para cabeça e que significa o local corporal onde a inteligência é assentada, ou ainda, o “guardião da alma dos ancestrais”, retorna para a mesma família quando há um novo nascido. Ou seja, uma das dimensões espirituais de uma pessoa yorubá, seu orí, também seria recebido por hereditariedade. Segundo o autor, um culto ao orí, ou seja, a essa parte do corpo, era feito com oferendas, tendo início com o rei de uma cidade e se estendendo por personalidades e titulados locais. Já a dimensão da pessoa mais conhecida entre os yorubás, o òrìsa (e, conforme Verger, o vodun para os fons), seria “... ancestrais distantes cuja lembrança foi mais ou menos perdida na noite do tempo e cujo caráter divino é sobretudo retido por seus descendentes atuais” (Verger, 1973, p. 69). 49 « Car si les Fon disent que le propre de la divinité est de « monter à la tête » de ses fidèles... »

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cultos, Augé sugere que, para ambos os fiéis, a reflexão e experiência sobre a alteridade são produzidas fundamentalmente através de seus corpos, dos quais os Fon e Yorubá já teriam se distanciado à medida que neles hospedam-se outros (AUGÉ, 1986, p.186). A proposta de Augé de que a reflexão sobre a alteridade seja associada a tal forma de incorporação espiritual me serve para pensar o que significa subir um mistério para Gina. Não porque para ela seu corpo é anatomicamente constituído por potências espirituais no mesmo sentido que entre os fiéis Fon e Yoruba. Embora Gina tenha me dito certa vez que os mistérios estão no estômago, não tenho mais informações de outros interlocutores sobre isso. E ela não se estendeu sobre o assunto. O que saliento é que suas descrições sobre essa forma de incorporar os mistérios demonstram o distanciamento que ela consegue tomar de seu próprio corpo. Sentir os mistérios o percorrendo é assumir a perspectiva de quem pode falar de si ao mesmo tempo em que se sabe que alguma outra coisa (neste caso, espíritos) transita em seu interior. Se trabalhar esses espíritos é uma maneira ritual de efetivar relações familiares anteriores, de singularizar-se como ‘pessoa’, o caso de Gina aponta para experiências diversas que são sentidas internamente em seu corpo. Ela se singulariza porque recebeu certos fluxos (de sangue e de trabalho ritual), mas também porque através deles incorpora ainda sensações e percepções outras: ligadas a ação dos mistérios sobre ela e, como descreverei adiante, às particularidades que cada mistério cristaliza. É lidando com experiências sobre alteridade e produção de afetos e disposições múltiplas em seu corpo que Gina se conhece enquanto uma ‘pessoa’. Escrevendo sobre as reglas del palo, Ochoa (2004, p. 25, 39, 40, 41) destacou que boa parte de seu aprendizado com sua interlocutora palera foi procurando entender o que ela encontrava em suas “entranhas” e na sua pele. 50 De acordo com ele, ela estava atenta aos “eventos” em seu corpo e sobre sua superfície como a ativação de seu coração, a falta de ar, os arrepios e calafrios cruzando seu pescoço. Sob a insistência dela, sua expectativa (simbólica) quanto ao que ela lhe narrava deu um salto epistemológico. Compreender o pensamento dela requereu dele considerar literalmente o que ela lhe dizia: que os mortos estavam em suas entranhas. Segundo Ochoa, ela considerava as experiências tais como a falta de sono e aflições não como “signos” dos mortos em seu corpo, mas como avatares dos próprios

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Sacerdotisa (palero, o sacerdote) de um sistema religioso afro-cubano chamado de reglas del palo, de “inspiração” congo, como Ochoa prefere definir, sobre o qual darei mais informações no segundo capítulo ao discutir as prestações rituais que os meus interlocutores dominicanos oferecem aos mistérios.

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mortos. As descrições dela de tais momentos perturbaram o que para ele era uma oposição familiar entre corporalidade e significação (corpo e significado, matéria e conceito). Conforme Ochoa, sua dificuldade em entender a experiência dela foi fundada em hábitos do pensamento que lhe falavam que a experiência não poderia ser simultaneamente visceral e intelectual. Ele se baseva em uma compreensão sobre um modo dualista do ser, que postulava que uma relação entre víscera e intelecto era mutuamente exclusiva. No entanto, nas explicações dela, víscera e intelecto eram mutuamente afirmadas sem contradição, Ochoa afirma. Para ele, compreender os mortos como uma sobreposição de sensação conceitual e visceral é crítica para compreender a expansão global e a ubiquidade dos mortos no pensamento cubanocongo. Eu diria que tal sobreposição não existe apenas para os praticantes das regras del palo. E, ainda, que a maneira como nós (antropólogos) lidamos com isso indica que definimos eixos analíticos diferenciados. E não que os nossos interlocutores desconheçam tais experiências. Ochoa se apropria das descrições de sua interlocutora para evidenciar que os mortos são sentidos como forças ubíquas e ambíguas no limite onde razão e sentido corporal eram mutuamente afirmados, anteriores à identificação, “mais do que indivíduos”. Eu procuro chamar a atenção para os “eventos” que são produzidos quando os mistérios percorrem o corpo e o ocupam completamente, e para aqueles em que certas sobreposições não se completam. Com isso, pretendo enfatizar as categorias que os meus interlocutores mobilizam quando experienciam as incorporações dos espíritos e como essas categorias permitem que eles se concebam como certas pessoas. Uma dessas concepções sobre a pessoa que tem os mistérios tem a ver com a possibilidade de separação que elas exprimem entre a capacidade de falar de si sabendo que seu corpo não está completamente integrado a um único eu. 51 Essa experiência sensível revela uma forma de conhecer a alteridade que emerge e se consolida na medida em que os espíritos são assumidos e passam a entreter relações de trabalho ritual com aqueles que receberam o dom. Nesse sentido, argumento que esses engajamentos corporais cotidianos revelam que se particularizar como uma pessoa que têm os mistérios poderia ser visto como um duplo processo de incorporar e separar/destacar. Com isso, eu não tomo a incorporação como um processo que somente atualiza laços de 51

Os mistérios produzem esse afastamento, falando da perspectiva de quem monta um corpo.

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afinidade entre seres humanos e espíritos. O que gostaria de propor é que atualizar o dom é recriar de novo essas relações (e outras) conhecendo experiências de instabilidade, variação e dissociação, o que, em alguns casos, implica a criação de marcas de violência pelos mistérios no corpo das próprias pessoas. Lambek e Strathern (1998, p. 6-7) propuseram uma abordagem que funciona como um horizonte de análise para as descrições como as de Gina. Na introdução a uma coletânea sobre as noções de pessoa e corpo na África e na Melanésia, eles se perguntam como o corpo pode sintetizar e simbolizar noções de pessoa e relações, conexões e desconexões, dependência e independência, dividualidade e individualidade, autonomia e hierarquia. Além disso, quais seriam os limites do corpo nesses empreendimentos. Seguindo Csordas quando defende a importância de uma abordagem fenomenológica para a condição da incorporação, Lambek e Strathern (1998, p.14) reafirmam a crítica de que o corpo não deve ser visto como algo garantido e objetificado em si mesmo. Para eles, a fenomenologia oferece um status ativo e positivo ao corpo. No entanto, ambos relutam em referir-se a ele como um “agente da experiência”, como faz Csordas. Se o corpo tem agência, Lambek e Strathern (1998, p.25).observam, os agentes são pessoas incorporadas. Com isso, o que os dois autores enfatizam é que os processos de incorporação e objetificação ou de incorporação e subjetificação sejam considerados momentos privilegiados para a compreensão de como aqueles pares conceituais se viabilizam. Da abordagem fenomenológica de Csordas eles recuperam a noção de pré-objetivo (que é importante também na discussão de Ochoa). Querem, desse modo, indicar um campo de experiências antes que se tornem completamente “culturais”. Para Lambek e Strathern (1998, p.14-15), essa formulação é útil porque fornece uma “gênese” para as práticas incorporadas, que precisam ser objetificadas para que gestos, por exemplo, transmutemse como símbolos de valores. Recuperar essa discussão de Lambek e Strathern é interessante porque eles procuram tornar visível certa indeterminação entre o que pode ser incorporado e objetificado quando são consideradas as etnografias sobre corpo e pessoa na África e na Melanésia de um ponto de vista comparativo. De acordo com os autores, “o que é préobjetivo em um lado pode tornar-se objetificado em outro; o que não é enfatizado em um pode tornar-se central em outro” (LAMBEK e STRATHERN, p.15).

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Nesta etnografia sobre os meus interlocutores dominicanos e seus mistérios, incorporação e objetificação podem ser mapeadas não apenas entre pessoas e corpos, mas também entre corpos e mentes e pessoas e espíritos. Como indicou Lambek (1998, p. 109), ao defender que corpo e mente não são opostos empíricos ou lógicos, mas sim incomensuráveis que falham em fazer inteiramente contato, “a mente não é simplesmente a ausência do corpo, nem o corpo a ausência da mente” . Como procurei enfatizar com as descrições sobre o percurso dos mistérios no interior de Gina, subi-los, enquanto uma prática incorporada, sustenta uma junção interna que permite uma disjunção significativa. Gina percebe o trajeto dos espíritos por seus órgãos. Com isso, consegue falar da perspectiva de quem se distancia do que se passa nele. Mas essa separação inicial que ela consegue produzir entre si e seu corpo, enquanto ele está sendo percorrido pelos mistérios, pode revelar compreensões significativas sobre o que implica ser alguém que incorpora certas conexões familiares. Compreensões que, eu proponho, tornam mais densas o que pode significar ser uma ‘pessoa’ múltipla ou que agencia variadas vozes. É sobre a possibilidade de tais arranjos, caracterizados ora por experiências descritas em termos de destacamento, ora de confluência, que emergem as noções de corpo e mente e pessoa e espírito entre meus interlocutores. Não explicitamente dicotômicas, as narrativas que apresentarei parecem descrever dinâmicas em que cada um desses pólos se liga e se separa produzindo experiências que remetem à invasão, a sobreposições relativas e vontades incongruentes, à falta de liberdade e ao exercício de poder, àquilo que escapa e surge como inesperado. 1.3.2 Objeto e Cavalo Na ocasião em que Diogo narrou o episódio em que Anaisa subiu nele, ele me disse: – Os mistérios são espíritos que entram nas pessoas, que tomam conta da mente das pessoas... as pessoas são objeto. Perguntei-lhe, então, como ele descobriu que tem esses espíritos: – Eu sinto minha mente, meu corpo, Diogo me respondeu. Para ele que experiencia interações com seus mistérios em grau e frequência diferentes de Gina, corpo e mente são sentidos como mais ou menos indistintos. No entanto, assim como ela, ele também é capaz de se pensar a partir de um afastamento de seu corpo, que os mistérios transformam em um objeto. Eu também me encontrava em uma botânica (onde trabalhava Joana e não Rosa), quando um cliente dominicano, que morava em frente à loja, foi ali à procura de mercadorias. Ele pretendia afastar os mortos que o rondavam comprando alguns

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produtos. Na conversa sobre a presença dessas entidades espirituais junto aos seres humanos, Joana lhe explicou que um mistério quando chega, ele se mete no corpo [da pessoa]. Para Gina, Diogo e Joana, a transposição de suas delimitações corpóreas pelos mistérios parece assemelhar-se a uma sensação de intrusão. Esses espíritos fazem do corpo objeto, metem-se nele, percorrem os órgãos. O fato de que essas entidades são concebidas como próprias a uma configuração relacional entendida como família nem impossibilita experiências sobre alteridade, tampouco impede algumas formas de objetificação em que o corpo e/ou a mente são sentidos como destacados de si quando ocupados por esses espíritos. Os mistérios tornam-se assim espíritos familiares especiais. Sua internalização corporal parece ser a base sobre a qual é possível, para meus interlocutores dominicanos, falar de diferença e separação. No entanto, são múltiplas as vozes capazes de emergir quando um mistério sobe. E isso provoca junções e disjunções não apenas do ponto de vista das pessoas sobre corpo e pessoa e corpo e mente, como salientaram Gina, Diogo e Joana. Também do ponto de vista dos mistérios, incorporação e objetificação podem assumir novos sentidos. Para essas entidades estão em jogo espírito e pessoa, ou, mais precisamente, espírito e seu cavalo. Belié Belcan: Aí Joaquim, o cavalo não sabe nada, quem […] sou eu. Ouviste? O cavalo, […] a dizer ao cavalo se ele não sabe nada. É verdade. Cavalo não sabe nada. O cavalo, somente eu […] sei eu. Nada sabe o cavalo, nada. Se eu não lhe dou a mensagem […]. O cavalo não sabe nada. Desde que queira dizer com a língua, o que o cavalo somente lhe diga, quem encontra ela não me encontra tampouco.

Durante aquela festa para São Miguel Arcanjo/Belié Belcán, a que já fiz referência, um convidado mais idoso fez um comentário sobre a anfitriã, Dina, ou talvez sobre o que ela sabe. Isso em tom baixo, discretamente, pelo menos aos meus ouvidos e ao alcance do gravador. No entanto, Belié Belcan imediatamente retrucou. Categoricamente, esse espírito salientou uma relação assimétrica entre Dina e ele. Para Belié Belcan, o cavalo não sabe nada. O convidado se equivocava ao supor que a fonte do saber de Dina reside nela mesma. A instrumentalidade dela era flagrante. A transmissão das mensagens a outros (incluindo os clientes) ocorria apenas porque o espírito fornecia-lhe isso. Do ponto de vista de Belié Belcan sobre o que ocorre com Dina, incorporar os mistérios significava

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simultaneamente objetificá-la de tal maneira que o corpo dela não estava a serviço de sua própria mente. E a explicação do mistério foi contundente: o que o cavalo quisesse dizer somente com a sua própria língua não conta com Belié Belcan. Quem encontra apenas com Dina, não encontra esse espírito. Mas Belié Belcan não tratou apenas de uma divisão entre o corpo de Dina e a mente (ou o espírito) que lhe introduzia conhecimento. Da sua perspectiva de mistério montado, Dina, uma senhora com mais de setenta anos, teve a sua condição alterada. Ela fora glosada por ele como cavalo. Se, como argumentei inicialmente, um dos significados dessas práticas incorporadas, do ponto de vista da pessoa, é a possibilidade de separação entre a capacidade de falar de si sabendo que seu corpo não está completamente integrado a um único eu, do ponto de vista dos mistérios, falar da perspectiva de um espírito que monta um corpo é construir outras distinções: sobre os próprios mistérios e as pessoas que têm esses espíritos. A autoria do que se fala e a autoridade de quem o faz distinguem e hierarquizam mistério e pessoa (ou, antes, cavalo). Uma distinção que ocorre simultaneamente à incorporação. 52 Colocar-se à disposição de Belié Belcan, aqui, já seria uma forma de separar-se de si (alienar, se quisermos) que não é estranha à lógica da transmissão dos mistérios como algo natural. Como venho enfatizando, o que Richman demonstra em suas descrições sobre as mudanças rituais em Léogâne como uma tensão entre aquilo que é entendido como “substância” (algo interno e inseparável) e o que é “contrato”, os meus interlocutores dominicanos incorporam em si mesmos porque receberam um dom dos antepassados familiares. Sugiro que para meus interlocutores dominicanos, não se trata de dois modos rituais que se confrontam, mas de uma maneira singular, híbrida e instável, de se conceberem enquanto pessoas. E aqueles que têm esses espíritos concebem essas relações como tendo muito de desconhecido: – Os mistérios são um mistério, Joana me dizia. Ninguém entende bem eles, as pessoas sabem o que têm que fazer [referindo-se a como os espíritos devem ser atendidos], mas, são um mistério, ela enfatizava. Por diversas vezes ela afirmou que se não trabalhasse os mistérios morreria e os espíritos reencarnariam em outra pessoa. Sua substituição nesses termos, o que ela dizia ser uma forma de punição dos mistérios, era tida como certa. Mas Joana também demonstrava incompreensão. Não entendia o 52

Lambek (1998, p.115-116), por exemplo, observou isso ao destacar que a incorporação da persona de um Marinheiro (espírito francês do período pré-colonial) por um médium de Mayotte habilita esse espírito a falar sobre “Madagascar” e “os Malagasy” como um “objeto”, da perspectiva de quem havia sido em vida de certa forma um estrangeiro no que veio a se tornar uma nação.

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porquê de viver dessa forma: ser remunerada com as consultas espirituais e a preparação dos trabalhos, ter de receber os clientes, bem como ver boa parte de seu cotidiano organizado pela interlocução com os mistérios. A experiência de desconhecimento, no entanto, não era apenas de Joana. Antonio e Maria eram um casal de dominicanos e também moravam em Río Piedras. Eles eram proprietários de uma firma de extintores e trabalhavam os mistérios, sendo pagos para isso, embora tenham salientado que não dependem economicamente das consultas. Em uma visita a casa deles, Antonio argumentou comigo: – É difícil explicar [a relação com esses espíritos]... Ele mesmo não saberia direito como as coisas acontecem. Ambos sabem que os mistérios chegam e podem se comunicar com eles através de seus corpos, mas a incompreensão também fazia parte de tudo isso. 1.3.3 Há uma metresa em cima Com um baralho de cartas espanholas, um pequeno sino (utilizado para chamar os mistérios) sobre uma modesta mesa, uma cruz de madeira pendurada na parede e portando um maço de cigarros – para fumar caso Anaisa se apresentasse durante alguma consulta –, Joana começava a trabalhar na botânica. Quando os clientes chegavam à procura de uma consulta, Joana os conduzia até um espaço reservado, atrás da parede em que se encontravam as prateleiras com as mercadorias. Era comum que logo após sua entrada no estreito ambiente, fosse ouvido o som do sino. Às vezes, suavemente, em outros momentos com mais intensidade. Como eu havia notado que não era para todos os clientes que ela o tocava, perguntei-lhe certa vez como ela decidia para quem soar tal objeto. São eles [os mistérios] que o agarram e tocam, Joana me respondeu. No decorrer das consultas, ela produzia para os clientes o que chamava de receita: uma lista em que escrevia o que era necessário ser comprado para resolver o problema que lhes afligiam. Os casos sobre bruxaria eram tão recorrentes quanto os pedidos para que fossem feitos trabalhos de amor e as perguntas sobre a vida presente e futura. Observar sua performance gerou uma inquietação em mim: como Joana sabia o que deveria receitar para cada cliente? Depois que a indaguei sobre isso, ela me respondeu: – Não é que eles [os mistérios] sabem o que há na botânica. Santigua-se a carta em nome dos mistérios e se sai na carta, então se escreve mais ou menos o que a pessoa necessita pelo que sai na carta, Joana respondeu. E depois observou: – Eu tenho

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que escrever porque quando saio [do espaço da consulta] não me recordo. Você não viu que quando saio me esqueço? Joana já teve seu altar para a invocação dos mistérios no interior da botânica, naquele espaço onde realizava as consultas. Mas o desfez havia certo tempo. Logo que a conheci questionei-lhe sobre a ausência do altar na loja. Eu já sabia que atender e trabalhar esses espíritos dependem da organização dos altares. –Eu os tenho [os mistérios] em cima, ela argumentou. Por isso não precisava do altar na botânica. 53 Nas ocasiões em que recebia clientes masculinos, três ou quatro homens que sempre a procuravam e, às vezes, entravam na botânica praticamente um atrás do outro, Joana comentava consigo mesma em voz alta: – Há uma metresa hembra em cima que só me manda homem!54 Anaisa era de quem ela falava. Montar ou subir não é a única forma de incorporação dos mistérios. Ter os mistérios em cima ou ter os mistérios em cabeça descreve outra modalidade de incorporação desses espíritoas às pessoas. As transformações são mais sutis. E a amplitude dos espíritos no corpo humano parece concentrar-se em um único órgão, a cabeça, e não difundir-se por todo o corpo, como relatou Gina ao descrever que os mistérios sobem em sentido vertical, percorrendo seu corpo de baixo para cima. Aquelas duas expressões descrevem uma percepção de que sobre a pessoa há um espírito criando uma espécie de sobreposição em seu corpo, um tipo de composição híbrida. Pessoas e espíritos incorporam-se relativamente. E não absolutamente, como acontece quando meus interlocutores dominicanos mobilizam o termo montar. Mas isso não a torna um cavalo dos mistérios. Com um mistério em cabeça uma pessoa tem a capacidade de conversar, comentar e fazer revelações sem que seus interlocutores tomem conhecimento de que são os mistérios quem lhes falam. – As pessoas [os clientes] não se dão conta de que são os mistérios que lhes dizem, foi o que Joana comentou comigo depois de uma consulta solicitada por um jovem advogado porto-riquenho que vivia nos EUA. Ele queria se candidatar a governador de Porto Rico, mas foi aconselhado pelos mistérios a esperar o próximo pleito. Pois, de acordo com esses espíritos, o momento ainda não era adequado. Gina também mencionou esse tipo de incorporação enquanto conversávamos com Joana na botânica. No dia anterior, ela contava-nos que uma mulher foi até a sua 53

Joana mantinha seu altar no quarto dos santos, maneira como os meus interlocutores dominicanos chamam o cômodo reservado aos mistérios no interior da casa. 54 Certa vez, ao lhe perguntar o que era uma metresa, ela me disse que É uma santa feminina.

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casa para uma consulta. Aceitando fazê-la, Gina começou a dizer à cliente o que essa desejava saber. Mas eles [os mistérios] não quiseram subir, ela ressaltou. Ao fim da consulta, Gina se dirigiu ao interior de sua casa, em direção ao altar e eles já estavam lá. Então Gina argumentou comigo e Joana que, às vezes, os mistérios chegam ao altar antes que ela vá até lá. Além disso, seria comum que antes de alguém chegar à sua casa, tais espíritos já o soubessem. Com o fim da consulta, a cliente foi embora: – Um mistério se subiu e tomou uma garrafa de Brugal (rum dominicano), Gina comentou conosco. – Às vezes eles não querem subir para certas pessoas. Dão cento e setenta voltas, mas não sobem, interferiu Joana. 1.3.4 Não governo de si Quando Gina e Joana observaram que os mistérios não quiseram subir diante da cliente, elas apontaram para uma dimensão importante desse convívio relativamente incorporado. Questões relacionadas à vontade e à liberdade, mas também ao indeterminado e ao que lhes escapa fazem parte da maneira como as ‘pessoas’ se concebem ao incorporar esse dom. Ao falarem de si dando ênfase a essas experiências, os meus interlocutores chamam a atenção para modos de vida que, através de seus corpos, são constantemente problematizados. Eles questionam o poder desses espíritos herdados sobre eles e os limites que lhes são colocados como pessoa que têm os mistérios. Gina me explicava que há espíritos que fazem trabalhos utilizando o sangue, o coração e a língua de animais como cabrito e vaca, além de objetos como agulha e prego, bruxaria, ela definiu. Argumentando que ela não faz isso, disse-me que mesmo assim há momentos em que se vê sem saída: – Alguns mistérios me põem sentada no altar [montada] e fazem esse tipo de trabalho.55 Lembrei-me, ao ouvi-la, do comentário que meses antes Diogo fizera sobre sua tia, que não ficava bem quando os seres se punham. Isso a levou a não querer os mistérios herdados da avó dele, Diogo salientou na ocasião. A descrição de que os mistérios se põem tem a ver com a resistência que as pessoas exprimem em permitir que os espíritos as montem. A intenção delas, entretanto, parece ser solapada. Gina fala sobre a falta de controle sobre seu corpo, mas também sobre a irrelevância de sua vontade diante do que foi produzido – um trabalho de bruxaria – depois que determinado mistério se colocou nela. Em seu caso, a

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Meus interlocutores geralmente atribuem esses trabalhos aos espíritos petroses.

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incorporação embora completa do ponto de vista da ocupação do corpo de Gina, gerou uma dissociação total: entre o espírito e a pessoa – Gina era simplesmente o objeto, o cavalo, mobilizado pelo mistério – e entre as disposições, os desejos, de ambos. Foi mostrando-me a marca de um corte em seu ombro que ela narrou outra experiência de dissociação entre seus desejos e os de outro mistério, mas também de si e de seu próprio corpo. – Isso foi para pagar-lhe, a São Santiago, um serviço que ele fez para uma mulher dominicana, que não lhe pagou, Gina me dizia. Ogun Balendyó feriu Gina, seu cavalo, como forma de punição pela falta de um pagamento que não foi cumprido com esse espírito. Uma cliente dominicana havia procurado Gina para a realização de um trabalho espiritual. Após a consulta com Ogun Balendyó montado em Gina, ele lhe deixou no altar uma advertência escrita. Recomendava que não fosse preparado o trabalho para a cliente, pois a mulher não realizaria o pagamento por isso. Gina, que decidiu ajudá-la, fez o trabalho, desconsiderando o aviso do mistério. E a cliente não pagou. Até então a vontade de Gina foi preponderante No entanto, quando Ogun Balendyó montou Gina novamente, fez um corte em seu ombro, do qual escorreu sangue o suficiente para assustar seu marido, que estava no altar junto com esse mistério. Diante da agressão, o marido de Gina exasperou-se. Aos gritos, disse ao mistério que ele não iria mais ali. Ogun Balendyó então argumentou que Gina não sentiu a dor do corte, nem viu o ferimento sangrando. Sua intenção era fazer com que ela pagasse pelo trabalho, já que a cliente não o fez. Visualizar a cicatriz em seu corpo seria a lembrança de tal pagamento. – Quem trabalha isso não se governa, é como uma criança a quem se diz: Sente aí! Foi nesses termos que Gina me falou sobre as situações, não tão radicais como a descrita acima, em que sentada em frente à mesa principal de seu altar, dirige-se às imagens e pergunta ao santo onde veria colocar-lhe, que então lhe diz ali. Durante a preparação de um trabalho para uma cliente porto-riquenha, percebi, ao observar Joana, uma diferença em seu comportamento. Sentada diante da mulher, sua cabeça cambaleava um pouco para trás, como se estivesse tonta. Em seguida ela passava a mão pela testa e se mantinha de olhos fechados. Ao terminá-lo, Joana liberou uma interjeição, algo cujo significado me escapa à escrita. Eu queria entender o que havia acontecido. Joana manipulou um spray, óleos, velas e objetos pessoais levados até a botânica pela cliente. Além disso, Joana lidou também com substâncias corporais da mulher, que as retirou de seu próprio corpo

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quando, por alguns minutos, saiu do espaço onde estava Joana e se encaminhou para os fundos da botânica. Joana tocava o sino em diferentes momentos da preparação do trabalho. Depois que a cliente foi embora, incitei uma conversa. Joana falou-me que estava longe enquanto preparava o trabalho para a cliente e que Santa Marta que estava ali. Essa metresa apareceu porque Joana a invocou para o trabalho. Mas ela se subiu sem pedir permissão. A senhora… Sem pedir permissão!, Joana novamente acentuou. Joana pretendia trabalhar os mistérios (ou pelo menos essa era a sua expectativa) por meio de uma alguma forma de controle sobre seu corpo. Sentir que um mistério subiu sem pedir permissão era uma experiência delicada, mas não apenas para ela, 56 que evitava ao máximo demonstrar qualquer sinal de transformação corporal por causa da proximidade desses espíritos. Como certa vez ela me disse, desde jovem sentia vergonha disso. Algumas vezes escutei e observei Joana falar do quão inesperado, quando não assustador, era sentir que os mistérios subiram ou vê-los em sua forma física se apresentando a ela. Até que, enquanto conversávamos, ela categoricamente afirmou: – Quem tem esses mistérios têm que viver quase sozinho. Ela dizia-me que gostaria de atender os mistérios, mas sem receber as pessoas em casa, fazer os trabalhos... Isso não lhe agradava: – Eu peço a Deus que retire um prêmio [na loteria] para deixar isso, porque quem tem os mistérios não tem vida própria, não se governa. O que Gina e Joana definem como essas experiências de não-governo de si mesmas pode produzir ainda um corpo marcado fisicamente pela ação dos mistérios. Para além da visão mais radical de que o corpo é simplesmente inutilizado com a morte se uma pessoa se recusa a trabalhar esses espíritos – concepção que perpassava sempre os comentários de Joana –, ele se torna lócus de memória sobre o poder exercido por tais espíritos. Como a própria Gina me descreveu, o corpo da ‘pessoa’ pode se tranformar em lugar de memória de uma relação contratual que havia gerado um débito com esse mistério.

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Gina contou-me que se ela ingerisse um pouco de rum quando estava na rua era o suficiente para que se subisse um mistério, depois outro, depois outro... Eles tiravam meu sapato, porque não sobem com a pessoa de sapato, e eu começava a consultar as pessoas na rua. Seu marido lhe sugeriu que procurassem alguém para batizá-la. Isso lhe permitiu controlar-se. De acordo com Gina, ter força para montar um mistério e dizer-lhes que não quer subir, pois os espíritos depois do batizado já não o fazem inesperadamente. Agora, Gina enfatizou, eles sobem quando eu os chamo. Apesar de certo controle sobre seu corpo e sobre os mistérios, ela me explicou que, quando está em algum lugar e eles querem subir, pede-lhes para esperar até que possa o fazer.

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1.3.5 Sonho e outras formas de incorporação Em uma festa para Papa Candelo, um dominicano que organizou a cerimônia, chamou São Elias com um recipiente que continha ossos. O rapaz pretendia dar esse resto moral ao marido de Gina. Mas Gina já havia sido avisada pelos mistérios sobre essa situação. Ela foi à festa tendo ao redor de sua cintura um lenço (pañuleo) preto e outro azul. Ela tinha da cintura para cima ela mesma, da cintura para baixo o mistério, que caminhava, andava por ela, e por meio dela, Gina me explicou ao mencionar os lenços amarrados ao redor de seu corpo. O mistério que estava com ela também já havia lhe dito disse-lhe para não deixar seu marido segurar os ossos. Ela mesma deveria agarrar o recipiente. E ela seguiu essa recomendação. No decorrer da festa, o homem dominicano pediu para que o marido dela pegasse o recipiente e Gina se propôs a segurá-lo. Suas mãos ficaram sem movimento e sensibilidade. Dormindo, durante um sonho, ela chamou os mistérios para que a ajudassem. E viu os sete mistérios ao redor de sua cama. Candelo acendia o fogo, acalentava a sua mão, ela me disse, pois sentia frio por todo o seu corpo. Perguntei-lhe então se o osso era um morto. Gina, acenando a cabeça, fez que sim. Ela se silenciou. Alguns minutos depois, contou-me que esse mesmo dominicano que trabalha os mistérios batizou uma jovem também dominicana para que ela pudesse trabalhar. Certo dia a jovem foi até Gina. Disse-lhe que só conseguia montar quando colocava um anel. Fiquei olhando para Gina, aguardando seu próximo comentário: – Isso não é um mistério, mas um morto comprado. Todos são mortos, mas os mistérios são seres de luz enquanto os mortos gostam da escuridão. 1.3.6 Vicissitudes do dom: transitando por e incorporando habitus humanos e animais Concebidos como pessoas que viveram como nós e/ou santos que andaram com Jesus, os mistérios conservam muito das características sociais, individuais e estéticas de quando foram vivos. Neste sentido, uma pessoa possui várias outras pessoas. O que requer saber administrar no cotidiano – e, para alguns dos meus interlocutores, até mesmo tentar quitar (retirar) – as influências e ações sobre si e sobre os outros dessas várias pessoas, que parecem ter vivido e pertencido a épocas e lugares distintos e expressam variadas disposições. A ideia de que esses espíritos tiveram uma existência em certo tempo e lugar não é tudo. Aspectos relacionados ao comportamento de animais como cobra, galo, abelha e

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peixe também compõem o comportamento dos mistérios. 57 Assim, o ‘dom’ de uma pessoa pode ser tão múltiplo a ponto de transitar por e incorporar formas humanas e animais quando certos espíritos montam ou sobem. Os modos como um mistério interfere sobre as pessoas revelam experiências que vão desde a produção de novas sensibilidades e capacidades até a possibilidade e qualidade da interação delas com terceiros. As intervenções e interlocuções dos mistérios se desdobram socialmente e podem abarcar familiares e clientes, além de outros seres humanos. São Santiago/Ogun Balendyó me disse que a irmã de Gina tem Jean Criminel, Agoue Taroyo e outro espírito, cujo nome eu não consegui compreender durante nossa conversa. Conhecido como um dos petroses, espíritos que são considerados impetuosos, agressivos e impacientes, Jean Criminel, Gina me disse, gosta de sangue e sacrifício de animal. Essa era uma das razões que fazia sua irmã querer passar, termo de Ogun Balendyó, esse mistério para Gina, que também o atendia em seu altar. No entanto, a vontade das pessoas de se afastarem desses espíritos parece ser mais difundida entre os meus interlocutores dominicanos, e também mais antiga.58 Logo depois que me aproximei de Joana, eu contei-lhe que havia viajado para a República Dominicana com Rosa fazia pouco tempo. Ela me perguntou como a pesquisa se desenvolveu, tratando de informar-me que lá existe um espírito, um petron que corta a cabeça das galinhas com a boca e bebe o sangue. Era a primeira vez que escutava um interlocutor dominicano fazer uma referência direta a essa categoria de espíritos. Como não havia compreendido inicialmente o que tinha acabado de ouvir,

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Durante o trabalho de campo, foram feitas referências a esses animais, o que não impede que as composições entre humanidade e animalidade dos mistérios sejam mais variadas. Herskovits (1971, p.160) descreve uma cerimônia em que os haitianos servem seus espíritos herdados, e dentre os pétro que são alimentados com touros há um espírito que recebe o serviço ritual primeiro porque “como o animal tem chifres”. 58 No mesmo trabalho de Herskovits (1971, p.168-169) que citei anteriormente, ele narrou o seguinte. As cerimônias que os haitianos prepararam com o objetivo de servir os espíritos pétro seriam utilizadas também como um meio de “afastá-los” e “contê-los”. Os órgãos dos animais sacrificados foram inseridos em receptáculos apropriados contendo agulhas sem as brechas e linhas para que esses “espíritos indesejáveis” tivessem uma “ocupação”. Assim, antes deles chegarem para molestar a família, perderiam tempo com a tarefa inglória de passar linhas por agulhas sem passagem. A alguns dos espíritos pétro que foram enterrados fora da terra familiar, no momento da oferta da comida em um buraco cavado por um sacerdote do vodu que trazia nas mãos uma cruz de madeira (“que faz toda coisa que é diabólica fugir”), foi dito que a comida dada a eles, espíritos da família, desobrigava as pessoas de qualquer outro comprometimento. Por isso esses pétro não deveriam retornar para causar problemas aos vivos. Além disso, esses espíritos deveriam se tranqüilizar nos locais onde foram enterrados de sete a dezessete anos. Esses espíritos resistiram a contenção ritual e lutaram, montados, com o sacerdote do vodu. “Se o hungan (sacerdote) não tivesse sido dominador, muito de algo diabólico poderia ter ocorrido naquele momento, porque ele precisou lutar com três loa (espíritos) fortes”, foi dito a Herskovits.

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indaguei Joana se o que ela me falava era que alguém matava a ave para o espírito beber seu sangue. Joana esclareceu-me que a pessoa montada mata com a própria boca a ave. Durante certas cerimônias, cabras e vacas também seriam mortas na República Dominicana, Joana me explicava, para que um desses espíritos ingerisse o sangue desses animais. Eu lhe perguntei então se eram apenas algumas pessoas que montavam esses espíritos. E ela me respondeu que muita gente em Santo Domingo o fazia. Para ela, esses espíritos... [e rapidamente alterou o substantivo de espíritos para pessoas] essas pessoas eram como pássaros maus, como animais que se vão para o monte porque são maus, porque trazem algo de mau.59 Bem depois dessa conversa Joana me falou que quitou um petro que tinha quando vivia ainda em La Romana. Em sua cidade, ela contou, fez remédios para quitar os petroses. Voltando a insistir que as pessoas têm os mistérios bons e maus, e que os petroses são espíritos de gente má, que fazia dano e vivia no monte, Joana narrou em sequência uma série de disposições que passava a adquirir quando esses espíritos aproximavam-se dela: ela chocava a cabeça contra a parede; mordia a si mesma; era capaz de comer gente; se colocava enraivecida rápido; por qualquer motivo era capaz de pegar um facão do mato (coger un machete) para brigar (pelear) com uma pessoa. Sob esses estados, era capaz de cortar a cabeça de alguém com tal instrumento-arma. Para Joana, os petroses são intolerantes. Por isso, a encorajavam a fazer tudo isso, colocando-a enraivecida e orgulhosa, ela repetia para mim. Depois que Joana quitou as coisas más, referindo-se aos seus espíritos petroses, ela disse-me, ficou tranquila demais. Mas, em seguida, argumentou: – Eu prefiro assim. A vida é muito complicada, há coisas que eu não entendo [como o que me acabara de contar], ela concluiu. Entretanto, mesmo depois que foi morar em Porto Rico, excessos e comportamentos diferenciados, dos quais Joana depois não se lembrava, foram relatados a ela pela sobrinha no apartamento em que moravam. 60 Reproduzindo para mim o que a sobrinha lhe contou ao perceber uma série de transformações quando ambas se encontravam na residência que compartilhavam, Joana me falava: – Subirão esses mistérios todos, a 21 Divisão... Foi o que, à época, a sobrinha lhe disse: – Tu falava como teu papai, como não sei o quê... uma língua esquisita... 59

Em La Romana, Joana realizava cerimônias para os petroses. Para isso, utilizava em certas situações órgãos de animais. 60 Joana e essa sobrinha deixaram a República Dominicana juntas. Em Porto Rico, elas começaram a compartilhar um apartamento no município de Carolina, área metropolitana de San Juan, não muito distante de Río Piedras. Mais informações sobre a imigração de Joana aparecerão no quinto capítulo.

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Um mistério, que se apresentou como Criminel (o espírito petro Jean Criminel) à sobrinha de Joana, modificou a cor de seus olhos, que se tornaram vermelhitos.61 Jean Crimnel ameaçou a moça, que havia escondido o uísque para impedir que esse mistério o bebesse. Se ela não lhe desse a bebida, Criminel lhe disse, iria pregá-la com uma faca na parede e feri-la. Depois dele, Santa Marta A Dominadora subiu em Joana, que então passou a se arrastar como uma cobra. Essa chegada e partida dos mistérios no corpo de Joana ocorreu das oito horas da noite até as quatro da manhã do dia seguinte. E após o consumo excessivo de uísque (cerca de quatro litros) e de café (cerca de oito garrafas) sem açúcar, Joana destacou, ela dormiu no chão diante do altar. – O mau também trabalha sobre nós [pessoas que têm os mistérios]... Você sabe quando há uma luta em que todo mundo está te puxando para um lado e somente um para outro? É assim..., Antonio argumentou, descrevendo em termos de uma luta às ações que as pessoas – como sua mãe, e, possivelmente, ele mesmo –

estavam

submetidas porque têm os petroses. Antonio fez esse comentário quando estive na casa dele e de Maria. Nessa ocasião, havia poucos dias que ele tinha regressado da República Dominicana. Ele viajou ao seu país para ir a um lugar conhecido como El Monte de Oración. Nessa colina, quitou um espírito mau de sua mãe, ele me falou, que era um petron. Na casa de Gina, eu e ela conversávamos com Luís, 62 seu amigo jamaicano, sobre os mistérios, e o rapaz me explicou que se Gina está com o sangue quente, o mistério sobe assim também. Dependendo também do estado emocional dela, o espírito chega mais tranquilo ou aborrecido. Gina então salientou que quando briga com alguém há um mistério que lhe diz: – Mata, mata, mata. São mistérios que gostam de sangue, que bebem sangue, que comem vidro, ela me explicou, o que lhe demanda saber se controlar, ela concluiu. Gina incorpora ainda outras disposições quando monta um mistério que se chama Ogun Ferraile, vinculado à imagem de São Jorge. Ela passa a se comportar como um galo: bate seus braços, espalma seu colo e assovia. Ao descrever os acontecimentos que ocorrem em seu corpo, Gina contava-me que é como se existisse algo em seu 61

Uma das características desses espíritos é subir extremamente quentes (calientes), o que faz com que os olhos dos cavalos fiquem vermelhos, o que caracteriza agitação e raiva. Mesmo os mistérios que não fazem parte da categoria dos petroses podem subir sob essa modalidade espiritual (como petro) considerada mais forte, agressiva e perigosa. 62 O rapaz vivia em Porto Rico e foi por ela batizado nos mistérios. Quando nos conhecemos, ele me explicou que ao regressar a Jamaica teria que seguir sua religião como era feita lá. Perguntei-lhe então como se chamava na Jamaica, e ele falou que se chama obeah e vudú.

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estômago, que chega ao seu peito e depois se prende à sua garganta. Então, ela assovia e faz uma espécie de canto. Porém, ela observou, isso se dá quando percebe que vai montar. Durante esse momento, Gina vê um galo vermelho e negro que, conforme ela, são as cores do pañuelo (lenço) desse mistério. Depois, ele [Ogun Ferraile] chega e trabalha como uma pessoa, Gina notou. Diferenciando-se dos comportamentos que foram descritos por Gina ao me contar sobre o que ela experiencia quando um espírito petro está próximo, ou ainda, quando monta um mistério como Ogun Ferraile, a metresa conhecida como Metresili atualiza em Gina formas corporais e gostos ligados a um habitus feminino crioulo (colonial). Gina havia acabado de tomar banho quando Metresli subiu em sua casa. No entanto, esse espírito feminino reclamou com o marido de Gina que ela, Metresili, estava suja, suja. Para que Metresili caminhasse e sentasse no altar, ele precisou estender uma toalha branca no chão, sobre a qual ela se locomoveu na ponta dos pés. Pediu em seguida perfume e talco, substâncias que passou pelo corpo e pés, e falou sussurrando. Depois de se perfumar e usar o talco, duas lágrimas em cada canto do olho desceram sobre o seu rosto. Indaguei a Gina por que Metresili chorava, se ela havia sofrido: – Se parece que sim, Gina me respondeu. 1.3.7 Consumo dos corpos As diversas modalidades de incorporação dos mistérios geram, como venho tentando demonstrar, objetificações cujos significados para esses espíritos e para as pessoas não são exatamente os mesmos. Relações assimétricas de poder, de conhecimento e acerca dos modos de dispor (aos espíritos e aos clientes) são significativas para os meus interlocutores, especialmente os vivos. É considerando essas relações múltiplas e densas que Gina, Joana, Diogo e outros interlocutores dominicanos se concebem como ‘pessoas’ que receberam dos antepassados um dom e se veem diante da tarefa desafiadora de atualizá-lo em seus corpos. Mas é importante ainda destacar outro aspecto dessas ‘relações’. Quando se trata especificamente de montar ou subir, o que parece estar em jogo vai além de uma compreensão sobre trabalhar como uma relação ritual em que dispor o corpo aos espíritos é colocar-se a serviço de terceiros, como as narrativas de Joana e Gina com que iniciei o capítulo revelaram. Para essas elas, há poder, há dissociação e há uma forma de colocar-se à disposição que problematiza qualquer visão simplista sobre o que significa viver relacionando-se com outros que são espíritos herdados. Eu argumento, como fiz ao longo desse capítulo, que dispor o corpo como uma forma de trabalhar os mistérios

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não é exterior ao universo cosmológico que informa o cotidiano dos meus interlocutores dominicanos. Procurei demonstrar isso salientando os processos de incorporação e objetificação que criam junção e disjunção entre esses seres humanos e seus espíritos em diferentes domínios da vida cotidiana. E ainda há um pouco mais a dizer sobre esses agenciamentos corporais. Na botânica, Joana dizia-me que para ler as cartas trabalha muito com a mente. Isso fazia com que ela se sentisse cansada. Seu esgotamento, Joana justificava, devia-se ao fato de que porque usa muito o cérebro precisa de concentração: – Os mistérios me dizem quando eu leio as cartas, ela me explicava. Se eu não estiver concentrada o que vou falar para as pessoas? No entanto, para ela montar um mistério é pesado, um mistério consome a pessoa. Embora pôr a mente/o cérebro ou todo o corpo à disposição dos mistérios, de um lado, e colocar-se a serviço dos clientes, de outro, sejam duas práticas definidas pelos meus interlocutores dominicanos como trabalhar, Joana vê a segunda forma de incorporação como mais desgastante. Para ela, essa é uma das implicações da ação dos espíritos sobre a pessoa, que torna necessário o ritual do batizado: – O batizado é para não ir ao chão [tumbar]... Porque quando um mistério sobe, ele derruba [tumba] a pessoa, que fica no chão. Um mistério quita a energia de alguém. Ele [o batizado] lhe dá força para receber os mistérios. Foi também enquanto consumo de si que Gina descreveu, certo dia em que eu estava na sua casa, a sua sensação de esgotamento porque trabalha os mistérios. Ela me dizia que estava exausta, pois no dia anterior foi a um rio. Nele, realizou um banho em Luiz, seu amigo jamaicano, que viajaria para Santo Domingo. Gina, então, explicavame que em diversas situações, mesmo tendo comido e sentindo-se saciada, depois de montar um mistério era como se não tivesse ingerido absolutamente nada: – O que eles [os mistérios] querem é meu sangue. Eles se alimentam através de meu corpo, Gina afirmou. – Eles consomem muito, reagiu seu marido ao escutá-la. Ele, entretanto, referia-se agora não ao corpo de Gina. Sua consideração era sobre tudo aquilo que precisava estar no altar para os mistérios. Para Gina e Joana, montar ou subir é uma prática ritual afeita a um consumo que dá substância aos mistérios ao mesmo tempo em que se dissipa algo de humano. O corpo de Gina, aqui, não seria apenas um meio para se atingir algo: a transmissão de mensagens a outros por meio de variadas formas de incorporação. Seu corpo teria um fim em si mesmo para os mistérios. Por meio dele, ocorreria uma transformação

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consubstancial: o que se busca, ou antes, o que os espíritos querem, para ficar com um termo caro à explicação de Gina, está no próprio corpo da pessoa: sangue humano (nutrientes). É essa forma de dar substância aos espíritos transmitidos familiarmente, que ocorre no corpo da pessoa, que a etnografia de Karen Richman desconsidera. Não são apenas serviços rituais obrigatórios, mas a própria incorporação definida enquanto montar (ou subir) que revela a criação de um vínculo substantivo entre os indivíduos e seus espíritos. Vínculo que, do ponto de vista da pessoa, resulta na extração da vitalidade de si. Parece-me que aqui há uma maneira de conceber como é possível dispor o corpo ou alienar substância a outros (aos espíritos, experienciados como alteridades), sem que seja necessário evocar a figura do intermediário que chega de fora da configuração familiar (natural).

Em maior ou menor grau saber deixar-se consumir é um dos

imperativos de incorporar aquilo que foram relações entre antepassados e seus próprios mistérios. Logo depois que conheci Gina, ela me disse que serão os mistérios que decidirão até quando ela seguirá trabalhando. Ela poderia atender os clientes até seus setenta, oitenta anos, mas, alcançando essa idade, não conseguiria mais subir um mistério. Seu corpo não aguentaria mais fazer isso. O parâmetro dela é um limite físico. Ao me explicar isso, ela indicava uma visão que articulava noções de geração, duração, mas também de transformação e consumo dos corpos das pessoas. Por sua vez, São Santiago/Ogun Balendyó, montado em Gina, ressaltou a juventude como um marcador importante para aqueles que são seus cavalos. Ele explicava-me que tinha mais de quinhentos anos e por isso gosta dos cavalos jovens. Caso contrário, ele ironizou, é um velho em cima de outro velho. Nessa perspectiva genealógica e geracional parece haver uma compreensão singular sobre ‘pessoas’, corpos e espíritos. Os corpos das pessoas têm uma duração. E um processo de vida e morte, marcado pela chegada de novos nascidos, garantiria a princípio a manutenção dos espíritos das famílias, ou seja, a vitalidade dos mistérios no tempo. Nesse sentido, a atualização dos espíritos estaria submetida, em parte, à duração dos corpos enquanto lócus de consumo. Mas se o corpo de Gina e as coisas postas no altar, entre as quais comida e bebida, equivalem-se mais ou menos quando estão sob a ação dos mistérios, seria redutor imaginar que nestas experiências apenas os mistérios são alimentados. Isso seria

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mapear somente um trajeto do que implica receber e assumir o dom. Quando montado em Gina, seu patrón contou-me que a irmã dela era montada pelos mistérios chamados de petroses e, por isso, a moça queria quitar esses espíritos, como já descrevi. Então, esse mistério disse-me que a irmão de Gina não poderia o fazer: – Os petroses são a força da irmã de Gina, se ela os quitar, seria como não se alimentar. O foco etnográfico deste capítulo foi principalmente o corpo enquanto um lócus no qual se experienciam algumas das implicações de uma forma de parentesco em que espíritos circulam como um dom. Passarei, no segundo capítulo, às descrições sobre os modos de atenção ritual prestados aos mistérios. As situações etnográficas ocorrem particularmente nos altares, onde são manipuladas substâncias alimentares, mas também químicas. Com essas práticas, meus interlocutores dominicanos pretendem afetar – para controlar, estimular ou suavizar – as disposições cristalizadas de seus espíritos que, eventualmente, eles mesmos atualizam, como me disseram Joana e Gina e Antonio, ao falar de sua mãe. Por meio de certa materialidade (substâncias, objetos, dinheiro) ganham relevo maneiras de produzir reciprocidade e trabalho ritual entre ‘pessoas’ e mistérios. As prestações rituais que serão então descritas dialogam com as experiências de criar ligação e destacamento que foram narradas até aqui, cujo alvo de minha reflexão foi o corpo. Nele, instabilidade e indeterminação tensionam o cotidiano da atualização das relações entre pessoas e seus espíritos herdados.

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CAPÍTULO 2 FLUXOS, DIMENSÕES E TRANSBORDAMENTOS “Que será que os anjos pensam de Deus?” (Alejo Carpentier, O Século das Luzes, p. 233)

2.1 SOBRE COMO GERAR LUZ, FORÇA, E OUTRAS DISPOSIÇÕES Naquela tarde, um casal de jovens havia entrado na botânica em que Joana realizava as consultas aos mistérios. Ao olhar para a prateleira em que estavam agrupadas as velas grandes, o rapaz se voltou para a moça que o acompanhava, sua irmã, e disse-lhe: – Você tem tua força, mas você os mantém apagados. O jovem dominicano se referia, eu pressupus ao ouvi-lo, ao fato de que sua irmã seria uma pessoa que tem os mistérios. Mas, ele chamava a atenção, a moça não fazia uso de um dos principais objetos que os meus interlocutores dominicanos adquirem nas botânicas com o intuito de ativar alguma forma de relação com espíritos, particularmente seus mistérios herdados. Enquanto realizei o trabalho de campo com Rosa na Plaza del Mercado de Río Piedras, ajudando-a com as vendas, era notável a recorrência da compra por imigrantes dominicanos das grandes velas de São Miguel Arcanjo, São Elias, Santa Marta A Dominadora, Santa Ana, São Expedito, São Santiago Apóstolo e Virgem A Dolorosa. O próprio altar de Rosa, inicialmente organizado no quarto dos santos e depois transferido para um local entre a sala de estar e a cozinha, era mantido diariamente com velas acesas. Ela e Diogo, ao final do dia de trabalho, separavam algumas velas para levar para casa e acender para os santos. Ele, especialmente, levava quase sempre plantas além das velas. Em casa, Diogo preparava seus banhos. Com eles buscava afastar as coisas más ou para atrair boa sorte. Rosa, ao chegar da botânica, sempre substituía as velas de seu altar que já haviam se apagado. Mas também tinha o hábito de acendê-las no chão da sala, logo depois da entrada da porta. – Essa casa tem os santos, Rosa sempre dizia a alguém quando queria enfatizar que vivia em um lugar protegido da violência urbana de Río Piedras. 63 Por sua vez Joana foi taxativa, desde o início de nosso convívio, em explicar o motivo de semanalmente comprar as velas para os mistérios, às vezes na mesma botânica em que trabalhava os espíritos. As velas de seu altar deviam estar sempre

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Caderno de Imagem do Capítulo 2 (Imagens 1, 2 e 3).

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acesas, caso contrário, ela me dizia, me contraria a sorte. Eu não gosto de ver meu altar às escuras… Se põe uma miséria, Joana me disse, ao que eu argumentei: – Não se vê bem. – Apagado, ela reagiu, não se vê bem apagado, Joana reafirmou enquanto separava velas, um banho, uma água espiritual e essência para uma assídua cliente dominicana da botânica. Em seguida a cliente fez um comentário sobre a falta de velas em seu próprio altar. E Joana argumentou com a mulher: – Assim eles [os mistérios] se põem. A isso a mulher retrucou: com quaisquer vinte, trinta pesos [dólares], eu acendo velas para eles [os mistérios]. Entretanto, quando ela não tinha dinheiro, eles também precisam entender, a cliente concluiu. Em sua casa, Gina explicava-me que é preciso acender as velas aos santos, porque senão é assim que eles põem alguém, me põem... Apagada, sem luz, era o que significava seu comentário. Para ela, à medida que se faz isso, as coisas vão melhorando, se desenvolvendo, progredindo. Neste dia, logo que chegamos à entrada de seu altar, localizado ao fundo da casa em que ela vivia em Río Piedras, no último cômodo depois do seu quarto de dormir, Gina me deixou atrás dela. Parou alguns segundos em frente à porta antes de entrar. A luz do cômodo estava apagada e as velas do altar também. Ela então me disse que quando sai deixa as velas apagadas. Quando vai trabalhar as acende, pois chega a gastar oitenta dólares comprando somente as grandes velas para os santos: – Quando eu as acendo quer dizer que estou chamando os mistérios, Gina me disse. Com a lâmpada ainda apagada, puxou uma cadeira, pediu-me para sentar e depois apertou o interruptor. Em seguida começou a me mostrar alguns serviços que os mistérios lhe pedem, que eles vão consumindo ali mesmo no altar, ela observou. Mostrando-me uma xícara de café com rum, que estava ao lado de sobras de cera vermelha, em frente ao quadro de São Carlos Borromeu (Candelo Sedifé) e Santa Bárbara Africana, Gina apontou em seguida para a imagem de São Miguel Arcanjo, que lhe pediu água não havia muito tempo. O mistério, ela observou, bebia a água aos poucos. Água, também, era a bebida que toda segunda-feira ela colocava para São Elias. E, retirando do chão a xícara com café que colocou para esse mistério – também conhecido como o Barão do Cemitério –, pediu-lhe licença ao fazê-lo, mirando o quadro, e argumentou comigo: – De todos os santos ele é o mais fodão. Gina então apontou para a altura inicial do café dentro da xícara. Mostrava-me, assim, a marca que surgiu na cerâmica depois que São Elias começou a consumi-lo.

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Para Gina também é importante que um mistério possa trabalhar rápido. Aliás, foi por causa disso que ela fez referência a certo quadro de seu altar. O quadro estava amparado em frente a uma imagem em gesso (uma figura mais popular de São Elias), mas que o retrata enquanto o profeta sentado em uma carruagem atrelada a cavalos. Olhando para o quadro, Gina me falou: – Esse é um mistério que trabalha com São Elias. E completou: – Esse mistério trabalha rápido. Para que ele continuasse a fazê-lo dessa forma, Gina lhe põe um serviço. Garantir a rapidez da ação de certos mistérios, entendida como trabalhar, não é o único objetivo que Gina busca ao manipular substâncias alimentares como serviços para esses espíritos. Com o mel ela pretende criar certos efeitos sobre as disposições de Jean Criminel, o espírito petro de sua irmã, que ela também atende em seu altar. Apontando em direção a um quadro de São Sebastião, Gina me explicava: – Eu o tenho aí [em uma quina do altar], isso supõe que não haja outros mistérios [imagens próximas]. Eu lhe ponho mel (uma taça com tabaco e mel) para tranquilizar. Ele gosta de sangue, sacrifício de animal. Eu tenho que o ter aí, isolado [referindo-se àquela localização de seu quadro]. Ele gosta de trabalhar com cabeça de bacá, de sangue.64 Joana também põe serviços aos santos. Tanto para os mistérios quanto para Eleguá, Obatalá e as 7 Potências Africanas. Ela atende os últimos de modo semelhante a como faz com seus mistérios. Assim, Joana não faz alterações importantes no tratamento dado àqueles dois orichas a partir do sistema cosmológico e preceitos rituais da santería ou regla de ocha. Para Eleguá, Joana prepara arroz doce com leite de coco, às vezes doce de goiaba ou a própria fruta. Já para Obatalá prepara também arroz doce, mais com um pouco de cascarilla (pó feito da casca do ovo). – As coisas são feitas pelos seres humanos, mas são para os santos. Eles comem e bebem, Joana me disse, referindo-se também às velas e aos óleos que utiliza nos trabalhos para os clientes dedicados aos mistérios, especialmente em objetos rituais conhecidos como lâmpadas (lámparas). Para as 7 Potências Africanas, ela prepara uma bandeja com frutas frescas – eles se alimentam do odor das frutas, Joana afirmou –, e pede-lhes desenvolvimento, evolução e proteção. No centro da bandeja ela insere uma vela grande e depois de 9 dias leva as frutas a um monte: – Quem trabalha com santería põe no meio a cabeça de um animal, de um cabrito... Os santeros dizem que antes de Jesus Cristo e no tempo

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Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 4.

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dele também as pessoas faziam sacrifícios para oferecer a Deus. Mas eu não trabalho com sangue. Perguntei-lhe, então, se os mistérios não gostam de sangue: – Eu não trabalho, ela respondeu. Quando se sentia constrangida pelos comentários de uma amiga dominicana que freqentava igrejas cristãs (evangélicas) – mas que tem um índio e por isso fumava um tabaco para esse espírito vez ou outra, inclusive na botânica – sobre os maus trabalhos (trabajo malo) feitos com os santos, Joana argumentava com essa senhora: – Eu os atendo, acendo suas velas grandes, suas coisas. Mas trabalho tranquilamente isso. Faço minhas coisitas, mas eu gosto dos trabalhos doces, trabalhar com coisas doces. No entanto, Joana sempre dizia que quando alguém lhe faz um dano ou ela quer algo, crava a espada de São Miguel que possui na mesa de seu altar e oferece uísque a esse mistério. Com um gesto que indicava um corte em seu pescoço, ela pretendia sinalizar para mim que seu agressor estaria, depois de tal serviço, morto. Porque ela mencionou a bebida alcoólica, eu lhe perguntei se havia diferença entre oferecer água ou uísque aos espíritos. Para ela, pôr uísque aos mistérios é um serviço mais forte. Tal substância permite que seu pedido se realize mais rápido. Para Joana, essa é a bebida que se põe para os mistérios mais fortes: São Miguel, São Marcos de León, São Santiago, Papa Candelo... Já Rosa não colocava alimentos em frente às imagens de seu altar. Água era o líquido contido nas taças e copos. Mas ela inseria mercúrio no interior de uma pequena xícara diante da imagem de São Miguel Arcanjo, seu santo protetor, e às vezes da imagem de Santa Marta A Dominadora. Em frente a São Miguel Arcanjo, Rosa tinha amparada uma fotografia de si. Certa vez a vi limpando a louça com um pedaço de papel. A cor amarronzada da cerâmica levou-me a pensar que se tratava de borra de café. Quando eu lhe perguntei o que era aquilo, Rosa me disse que era azougue (mercúrio) e servia para a boa sorte. Meses depois, Joana me explicou na botânica que o mercúrio é usado para os trabalhos, para inquietar um homem. Essa substância poderia ainda ser incorporada às lámparas: recipientes que contêm uma série de óleos (aceites), incluindo o de milho ou de oliva (considerado de melhor qualidade) em maior quantidade, bem como especiarias e outras substâncias no interior do qual se colocam pequenos pavios, chamados de mechitas, que devem ser acesos.65

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Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 5.

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As lámparas são preparadas pelos meus interlocutores dominicanos como um serviço ritual aos mistérios. No altar de Gina, uma lámpara divisional de la 21 División é oferecida a todos os mistérios, preparada com canela, anil estrelato, óleos, malagueta, cravo, entre outras especiarias. Tal serviço garantia coletivamente a alimentação dos espíritos mantidos em seu altar ao mesmo tempo em que se esperava que os pedidos e ações espirituais por ela solicitados fossem realizados. Gina, assim como Rosa, também amparou uma fotografia de si em seu altar. Mas para isso inseriu sua imagem em uma ampla bandeja, que, no momento em que a vi, já estava com vários dos alimentos nela colocados em estado de decomposição. Para Gina, os serviços como as lámparas são feitos a base de óleos e especiarias porque os mistérios gostam de tudo que nós, porque foram vivos.66 Às vezes Joana recomendava que seus clientes preparassem as lámparas e dedicassem tal compósito alimentar e de luz, adicionado com o azougue, aos mistérios em sua própria casa: – Se põe uma lámpara aos santos e se se deseja apressar-lhes se põe esse azougue… O santo não se pára, está sempre correndo, os santos se põem ligeiritos, Joana argumentou. Enquanto a observava na botânica, notei que ela inseria os chamados óleos nas velas que acendia para os mistérios, uma das formas de preparar um trabalho para os clientes. E perguntei-lhe um dia o porquê de inserir tal substância às velas. Joana me explicou que o fazia para que as velas ficassem mais fortes: – Os mistérios vão puxar (jalar) mais rápido a vela, a vela tem mais força. Mantendo-se pensativa por alguns segundos, ela concluiu: – Os óleos são um suplemento. Enquanto os mistérios vão comendo a vela, trabalham. 2.2 PRESTAÇÕES RITUAIS: SUAS CONEXÕES, SEUS EFEITOS 2.2.1 Servir e Conectar Como essas descrições evidenciam, boa parte da atenção ritual que os meus interlocutores dominicanos oferecem aos mistérios refere-se a práticas de dar substâncias aos espíritos herdados. A isso eles chamam de atender os mistérios. As substâncias, particularmente alimentares, permitem a criação de fluxos de troca contínuos entre as pessoas e seus mistérios. É sob essa modalidade de atenção ritual, chamada por eles de pôr serviço, que o dom recebido é retribuído ao longo da duração da vida de cada interlocutor. Nesse sentido, a água solicitada por São Miguel à Gina ou o café que ela e Joana colocam para São Elias/Barão do Cemitério todas as segundas-

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feiras, dia desse santo, ou ainda o refrigerante avermelhado Country Club, da preferência de Metresili, sobre o qual Armando pôs uma vela branca porque ela gosta que seja assim, mediam o processo de produção de relações entre esses vivos e mortos: – O serviço é como uma força para eles, que se alimentam disso. Tu põe comida e a comem... os espíritos vêm e se alimentam .67 Dar substância aos mistérios configura-se assim como uma forma de reciprocidade. É no decorrer da colocação dos serviços que os espíritos se fortalecem. É atualizando esse compromisso ritual familiar que as pessoas se potencializam. Nessas trocas, ambos vão adquirindo um fortalecimento mútuo. Seres humanos e espíritos se tornam indissociáveis no sentido estrito que dependem, cada contraparte a seu modo, de uma vitalidade que não está exatamente em si. 68 A força da ‘pessoa’ liga-se à organização e à atualização desses circuitos rituais. Foi isso que enfatizou Ogun Balendyó e sugeriu o jovem dominicano à irmã na botânica. O mistério explicou-me porque a irmã de Gina não poderia passar seus petroses para a própria Gina: seria como se ela não se alimentasse. O rapaz observou que sua irmã tem sua força mas a mantém sem ativação. Tal dependência recíproca é um dos aspectos que Mauss (2008) considerou como fundamental nas economias da dádiva. Nelas, pessoas e coisas se entrelaçavam de tal modo que era difícil pensá-las como inseparáveis. E isso a despeito de toda a circulação a que ambas estavam submetidas. Posteriormente Gregory (1982, p.18-19) enfatizou essa preocupação de Mauss, destacando que os sistemas de troca de dádivas estabelecem uma “relação entre os sujeitos” que transacionam. Para Gregory, o objetivo dos sujeitos é obter o máximo de devedores de dádiva; as relações pessoais que essa forma de troca cria e não as coisas em si mesmas são o que eles desejam. Mas o fluxo e as contrapartes pelos quais me interesso nesta etnografia são outros. Espíritos, que já foram pessoas como nós ou que foram vivos – para usar expressões recorrentes de Gina – e não exatamente coisas (itens materiais) circulam entre aqueles definidos como parentes. Esta é uma diferença importante, que me leva a fazer pelo menos duas considerações gerais ao aproximar esse material etnográfico de tal discussão conceitual e teórica sobre as trocas de dádiva e de mercadoria.

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Caderno de Imagem do Capítulo 2. Imagem 7. Isso, no entanto, como procurei mostrar no primeiro capítulo, não significa que corpo (ou mente) e pessoa ou pessoa (cavalo) e espírito experimentem uma mesma relação ou ponto de vista, seja em termos de percepção, saber ou poder. 68

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A primeira é que diante da distinção que apontei não convém pensar as relações entre meus interlocutores dominicanos e seus espíritos utilizando uma noção de troca cujo acontecimento fundador é a sociedade. Isso, no entanto, não impede que eu experimente o seguinte movimento analítico: mobilize a troca, enquanto uma noção antropológica que descreve certos arranjos e interações entre coletivos diversos por meio da circulação de itens variados, para pensar a constituição de pessoas em relação a seus espíritos herdados contemporaneamente. Mauss foi perspicaz a isso ao indicar que um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveram que entrar em contato, e que por definição, estavam lá para contatá-los, eram os espíritos dos mortos e os deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo. Era com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar. Mas, inversamente, era com eles que era mais fácil e mais seguro trocar. A destruição sacrificial tem precisamente por objetivo ser uma doação necessariamente retribuída. (MAUSS, 2008, p. 79).

As trocas que Gina e Joana vêm estabelecendo com os mistérios e que eu tentei tornar visível no início desse capítulo funcionam como imagens parciais, não idênticas, mas mesmo assim factíveis sobre como pode ter sido a interação de seus antepassados familiares com esses espíritos. Gina, Luiz, seu amigo jamaicano, e eu conversávamos em um final de tarde na casa dela. Enquanto Gina lavava certa quantidade de arroz que prepararia para o nosso jantar, movimentava suas mãos por entre os grãos e observava a água turva que escorria. Isso a levou a comentar conosco: – Cada geração trabalha diferente. Até com isso [água do arroz] se pode trabalhar. Ao propor esse segundo capítulo, tenho como intenção deflagrar imagens contemporâneas sobre as ‘relações’ pressupostas que constituem as ‘pessoas’, discutidas no primeiro. A segunda consideração é a seguinte: não se trata de uma diferença de escala tampouco de uma substituição homóloga. Retira-se a sociedade, incluem-se meus interlocutores dominicanos; saem os itens materiais, entram os espíritos. Pois os mistérios figuram excessivamente nessas interações. Eles são o que se transmite adiante quando certo circuito ritual chega ao fim com a morte de uma pessoa ‘e’ um dos pólos da troca. Sendo, além de uma das contrapartes rituais, o que também é transmitido, os mistérios podem ser localizados em três dimensões quando se procura refletir sobre suas ‘relações’ com os seres humanos. Com essas considerações, tentarei explicitar o que proponho como a tripla localização desses espíritos. Quero especificar, desse modo, uma dimensão da análise

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que não se reduz apenas à dependência recíproca entre contrapartes humanas e espirituais. Uma das dimensões das relações que venho discutindo diz respeito a quando os mistérios são descritos como um dom transferido pelos meus interlocutores. Aqui ganham realce as relações prefiguradas: trocas cotidianas de serviços rituais que lhes foram transmitidas, cujo pressuposto é uma continuidade no tempo, assunto do primeiro capítulo. O que me leva a pensar esses espíritos como um dom em circulação é o caráter inalienável e a profundidade temporal que os mistérios assumem, na medida em que estão associados a uma forma de conexão familiar que precisa se efetivar para gerar a força da pessoa. Aqui penso nas considerações de Gregory (1982, p.43-44, 47) de que as relações pessoais são importantes e devem se perpetuar para aqueles que transacionam dádivas porque são elas mesmas que se fazem presentes nos itens materiais trocados. 69 Do ponto de vista das pessoas e dos mistérios, as trocas rituais que criam a potência de ambos são aquilo que vai sendo perpetuando, enquanto uma obrigação ritual, para aqueles que receberão o dom. Contudo, esses fluxos cotidianos de substância – as trocas de serviços rituais –, quando atualizados, recriam ‘relações’ diversas. Eles produzem mutualidade entre as ‘pessoas’ e seus espíritos ao longo de um determinado transcurso de anos. Mas tais fluxos podem ser empregados também como forma de gerar trabalho dos mistérios e das próprias pessoas. Nesses contextos de atualiação do dom os mistérios não aparecem como aquilo que foi recebido. Mas sim enquanto um dos agentes das trocas. Quando se trata das prestações rituais, esses espíritos se alternam entre duas posições: eles são uma das contrapartes das relações mútuas com as pessoas, que se fortalecem conforme atendem ritualmente seus espíritos, oferecendo-lhes os serviços nos altares; mas os mistérios se 69

O que procurei demonstrar no primeiro capítulo usando a ideia de ‘incorporação do parentesco’. Personificação é a noção mobilizada por Gregory para definir esse processo. Incorporação foi a minha opção conceitual na medida em que se trata, para pessoas e mistérios, de justificar o dom referindo-se a relações familiares anteriores. O que é recebido e incorporado durante certo período não é tido como item material ou artefato que traz em si o labor dos que o criaram; trata-se de mortos que se reconhecem, falam sobre uma existência também humana e suas relações com os vivos de quem receberam cuidado e trabalho ritual. Desse modo exprimiram-se Ogun Balendyó com Gina ao lhe revelar como sua mãe trabalhava com São Judas Tadeu e Belié Belcan com o convidado da festa, cobrando-lhe cuidado ritual. Mas com essa observação não pretendo essencializar o que vem sendo definido como “coisas” nos sistemas de troca de dádivas na Melanésia. Bateson (2008, p.106-107) destaca que entre os Iatmul uma forma de tratamento habitual do wau para com um lau é reunir em uma sequência de nomes ancestrais maternos importantes, tais como um tipo de palmeira, que é também um peixe e um ancestral do clã. No caso dessa forma de tratamento, planta, animal e pessoa se conectam de tal forma que, empiricamente, o que pode ser tomado como ‘coisa’ é posto em suspensão. E apenas um exercício etnográfico poderia procurar esmiuçar essas ligações.

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tornam ainda os intermediários a quem os meus interlocutores dominicanos recorrem quando os clientes entram em cena. É ativando-os que as pessoas pretendem satisfazer os desejos e/ou solucionar os problemas daqueles que as procuram. Sob essas condições, substâncias também são dadas aos espíritos para que possam trabalhar. Esses dois aspectos são importantes para a maneira como os meus interlocutores dominicanos entendem os modos rituais que prestam a esses espíritos. São os contextos que se referem a esses dois modos rituais – de alguns participar, de outros observar – que revelam a existência de direções e interações variadas nas prestações rituais. McCarthy Brown destacou isso ao observar que, para a sua interlocutora haitiana em Nova Iorque, chamada de Mama Lola, a comida cumpria um papel importante na maneira como essa sacerdotisa se relacionava com seus espíritos herdados. Essas entidades eram alimentadas em escala mais ampla uma vez por ano, em suas festas de aniversário, e, em escala menor, diariamente com libações e pequenas oferendas. E ela destaca que “sem essa nutrição os espíritos não deveriam, e talvez não poderiam, trabalhar para Mama Lola” (McCarthy Brown, 2001, p. 44). Na introdução ao livro, ela também esboça uma abordagem semelhante a que eu proponho aqui, pois dá ênfase aos fluxos de prestações rituais que permitem o cuidado e a manutenção dos espíritos de Mama Lola, e, nesse sentido, dela própria, assim como salientei para meus interlocutores dominicanos no início deste capítulo. McCarthy Brown destaca ainda a importância de uma “rede de troca de presentes” mais ampla, criada por meio da condução do trabalho espiritual, da leitura das cartas e dos tratamentos rituais para outros. Rede na qual ela mesma se inseriu quando começou a dar presentes aos espíritos e notou que isso modificava o altar de Mama Lola (MCCARTHY BROWN, 2001, p. 6-7).70 2.2.2 Servir e Alienar As lámparas que Gina prepara como um serviço ritual para todos os mistérios , chamados de 21 Divisão, serviam à Joana como uma forma de direcionar a ação dos mistérios para seus clientes. Preparando em seu altar doméstico essas composições substanciais formada por óleos, especiarias e luz dedicadas ao consumo desses espíritos, Joana pretendia assim fazer com que os mistérios chegassem até seu altar. Nele, esses espíritos comeriam aquilo que se encontrava dentro das lámparas e trabalhariam: concretizariam, para os clientes, aquilo que lhes foi solicitado por Joana com a oferta do 70

As prestações rituais também foram mobilizadas por Ochoa (2004, p.107) para descrever a maneira como as regras do palo se organizam ritualmente.

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serviço ritual. Gina também descreveu em termos de dar substância a maneira que emprega para manter um mistério conhecido por trabalhar rápido. É colocando-lhe um serviço que ela consegue reproduzir tal ação espiritual quando dele precisa. Ainda que transmitidos familiarmente, os mistérios são alimentados também para satisfazer os desejos de estranhos, alheios à lógica da transmissão do dom. E as substâncias alimentares não são as únicas manipuladas para tal fim. Visando-se ao imediatismo na concretização dos desejos e interesses dos clientes, nos serviços que são colocados aos mistérios são adicionadas substâncias químicas como o mercúrio, por exemplo. O efeito esperado é produzir estímulos intensificados nos espíritos. Nos termos de Joana, o santo não pára, está sempre correndo, se põem ligeiritos. O que se pretende é que os mistérios possam trabalhar e que o façam em ritmo acelerado. Joana investe também em tal intensificação ao inserir óleos às velas que acende para os mistérios, destinadas aos clientes: um suplemento para que eles consumam a energia do calor mais rápido, e assim realizem o que lhes foi pedido. O que passa a estar em jogo é uma maneira de reproduzir, através dos serviços rituais, uma força espiritual que é ou será empregada não diretamente para as próprias pessoas. Tal força deve ser canalizada para os clientes. Se com essas trocas rituais os mistérios também se fortalecem, já que lhes são oferecidas substâncias que lhes conferem força, nesses contextos alimentá-los significa mais do que simplesmente criar reciprocidade. Pessoas e mistérios se utilizam de um fundamento ritual para produzir algo que não se limita às ‘relações’ de mutualidade entre ambos. Quero argumentar que com isso o que surge é algo que sinaliza para transformações: novas disposições são criadas nos espíritos e novas potências místicas (os serviços ou trabalhos destinados aos clientes) extravasam os limites dos altares, propagando-se coletivamente e redefinindo os densos e complexos contornos entre os seres humanos e seus mistérios. Com isso destaco que o caráter da ‘relação’ entre pessoas e seus espíritos se modifica. Gerar a disposição para os espíritos trabalharem, nos termos que me foram descritos, faz com que os meus interlocutores dominicanos e os mistérios manejem compreensões acerca da troca de mercadoria. Nesse sentido, ao lado das substâncias alimentares, outras formas materiais (e conceituais) fazem parte das prestações rituais. Uma delas é o pagamento por algo que foi externalizado aos clientes sem a criação de uma dependência duradoura e rotineira.

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Desse modo, o que faço é tomar alguns aspectos da proposta de Gregory ao tentar caracterizar o que definiria a troca de mercadorias: a independência recíproca entre os envolvidos e a interrupção no tempo daquilo que trocam como itens alienáveis. É a partir dessa ideia de alienabilidade, talvez, mais propriamente, a partir de uma compreensão sobre a capacidade de ‘pessoas’ e ‘espíritos’ serem descritos como propícios a se adequar, em alguns momentos, a essa condição, que proponho uma reflexão. A troca de dádiva praticada na PNG hoje não é uma relíquia colonial, mas uma resposta contemporânea a condições contemporâneas. Sem dúvida, a troca de dádiva é uma atividade econômica indígena; mas a troca de dádiva dos dias pré-coloniais (da qual quase nada é conhecido) foi muito diferente da troca de dádiva atual. A atividade econômica não é uma forma natural de atividade. É um ato social e seu significado deve ser compreendido com referência a relações sociais entre pessoas em cenários historicamente específicos. A essência da economia da PNG hoje é a ambiguidade. Uma coisa é agora uma dádiva, agora uma commodity, dependendo do contexto social da transação. Um porco pode ser comprado como uma commodity hoje de modo que possa ser usado em uma troca de dádiva amanhã. É por causa dessa ambiguidade que o conceito de dualismo, com seu setor tradicional claramente definido, deve ser abandonado. A colonização da PNG não produziu uma transformação de mão única, de ‘bens tradicionais’ a ‘bens modernos’, mas complicou a situação onde coisas assumem diferentes formas sociais em diferentes épocas e em diferentes lugares (GREGORY, 1982, p.115-116).

Essas imagens contrastantes entre dependência recíproca e alienação que resultam das trocas de dádivas e de mercadorias foram mobilizadas também por Palmié (2002, p.159-200) em sua discussão sobre a regla de ocha e as reglas del palo. Palmié se atém, especialmente, às formas de socialidade que os praticantes das reglas del palo descrevem em suas interações com as contrapartes espirituais. E entrega-se à tarefa de refletir sobre como as experiências históricas de violência, dominação e transformação de “pessoas” em “coisas” nas economias transatlânticas da plantação escravista penetram na linguagem, tecnologia e performance rituais desses cultos afro-cubanos. Como Gregory salientou na citação acima, Palmié também chama a atenção para as repercussões que essas experiências da modernidade tiveram especialmente para aqueles recriaram suas vidas vendo-as submergir em marés coloniais. Ele destaca que no simbolismo ritual dos praticantes da regla de ocha os orichas são entidades cuja volição é fundamentalmente independente da agência de sua contraparte humana. E, embora os deuses possam ser persuadidos a garantir favores específicos, podem recusar-se a realizá-los, chegando a punir os devotos que não têm um comportamento divino adequado (PALMIÉ, 2002, p.166).

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Para ele, o simbolismo do parentesco está implícito nas representações sobre os vínculos estabelecidos através da iniciação na regla de ocha: os orichas, tidos como pais, veem os devotos como filhos. Desse modo, ele destaca que a troca entre ambos é frequentemente definida como um processo de alimentação baseado em noções de reciprocidade generalizada. Os deuses devem ser alimentados e a imagem da alimentação condensa todo um arranjo de noções sobre a troca como um meio de conectar os humanos e os orichas em um relacionamento duradouro. Palmié, então, observa que uma série de operações rituais liga a cabeça do iniciado com os recipientes que contêm a presença objetificada do oricha em questão. Uma vez que isso ocorra, as relações não devem ser rompidas por ambas as contrapartes. Antes, devem ser mantidas pelo que é considerado, idealmente, como uma cadeia de prestações recíprocas. Isso assume a forma de sacrifícios e de outros tipos de atenção ritual dos devotos, de um lado, e da influência positiva do oricha, de outro. Entretanto, Palmié ressalta, Na prática, o deus se apropria do trabalho ritual do devoto consumindo seus produtos na forma de sacrifícios e cerimônias. E, de fato, os iniciados às vezes lamentam-se sobre quão exigentes seus deuses são, que tarefa árdua é trabalhar com os orichas (PALMIÉ, 2002, p.166).

Um simbolismo ritual completamente diferente caracteriza as relações entre os praticantes das regras del palo e suas contrapartes místicas. Enquanto na regla de ocha considera-se que os orichas iniciam as relações com os seus devotos, “reivindicando suas cabeças”, nos cultos congos praticados por cubanos destaca-se a agência humana. Ela deflagra a interação com as entidades espirituais, conhecidas como nfumbi. Embora possam ser herdadas (geralmente quando isso é prescrito em adivinhação), essas potências espirituais entram em contato ritual com os seres humanos por meio de um sacerdote (tatá nganga), que cria um objeto chamado de nganga ou prenda. Esse sacerdote deve ser conquistado para concordar em iniciar alguém nas regras del palo e deve ser pago por esse trabalho ritual. Isso feito, ele estabelecerá contato com o espírito de um morto humano e o instalará ritualmente em um receptáculo, chamado de nganga ou prenda (PALMIÉ, 2002, p.167). Palmié acentua que a relação mística entre o espírito e sua contraparte humana se efetiva mais por meio desse objeto complexo, que media o contato entre ambos, do

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que pelos ritos de iniciação, chamados de rayamiento. 71 Isso porque a relação entre ambos é geralmente descrita como um pacto firmado. Desse modo, afasta-se das imagens de nutrição doméstica, troca recíproca e dependência benéfica veiculadas na regla de ocha. Para ele, os símbolos do trabalho assalariado e do pagamento, da dominação e da subordinação, da escravização e da revolta são pervasivos às práticas rituais das regras del palo. Se a interação entre o devoto e seu oricha assim como aquela entre tatá nganga e o espírito de um morto humano descrevem relações de dependência, esse vínculo é conceituado de modo contrastante. Enquanto os primeiros poderiam ser vistos como modelados parcialmente sobre concepções naturalizadas de obrigações mútuas entre prole e pais, o sacerdote do palo seria um empreendedor místico que comanda uma força de trabalho vinculada pelo contrato ou pela captura (PALMIÉ, 2002, p.167-168). As ngangas são um objeto compósito. Geralmente construídas com caldeirões, em seu interior são estocados materiais heterogêneos como galhos, ervas, terra, ossos, despojos animais e humanos, pós, cinzas e cera de vela, além de chifres, penas e crânios fazerem parte de tal composição (PALMIÉ, 2002, p.170, 184; PALMIÉ, 2006; OCHOA, 2004, p.125; ROUTON, 2008). Citando Lidia Cabrera, Palmié descreve que, no palo monte, o ato deliberado de apropriação de substâncias conectadas metonimicamente com a individualidade de um morto humano, tais como a extração de crânios, ossos e seus fragmentos ou apenas terra do cemitério, é descrito como roubo. Assim, acredita-se que o espírito move-se à procura de seus restos mortais, que ainda subsistem. No entanto, para que tal captura seja bem sucedida, é importante atrair o espírito (nem sempre essa entidade mora nas imediações do cemitério), através de cantos e oferta de bebida alcoólica e outras substâncias para perto de seus restos mortais. Isso realizado e dispondo-se o espírito a entreter relações de serviço com sua contraparte humana – o que se confirma com um oráculo de pólvora –, algumas moedas são depositadas no local em que se extraíram os materiais que incorporam o espírito, seu pagamento (PALMIÉ, 2002, p.172-173). A partir desse pagamento, as trocas entre tatá nganga e os espíritos que são instalados nas ngangas sob seu comando são descritas em termos de um simbolismo contratual. Além das ofertas de tabaco e aguardente que mantêm o funcionamento

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Com tais ritos, o iniciado tem o direito de possuir e interagir com uma nganga. Além disso, passa a se integrar formalmente a uma série de vínculos religiosos.

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adequado da nganga e a sua lealdade ao tatá nganga, esses objetos compósitos são alimentados geralmente após o fim de certa tarefa específica. Eles trabalham por comissão, e, enquanto a apropriação de seu labor místico define uma relação expressa em um idioma de troca, isso pareceria se conformar muito mais às noções marxistas de relações sociais mediadas pela transação de commodities do que a uma imagem maussiana de troca de dádiva (PALMIÉ, 2002, p. 173).

Algumas prestações rituais oferecidas aos mistérios deixam mais permeáveis as fronteiras entre dependência recíproca e alienação que, pelo menos idealmente, garantem a integridade da regla de ocha e das reglas del palo como dois sistemas religiosos autônomos. Tanto os temas da volição dos deuses e do processo de alimentá-los como meio de produção de vínculos recíprocos domésticos, mais afeitos a relação entre devoto e oricha, quanto aqueles que tratam do contrato ou da captura de mortos humanos por meio de técnicas de manipulação de substâncias para atraí-los ou pagá-los nas regras del palo, combinam-se e não simplesmente se opõem nesse material que venho descrevendo. Quando destaquei que a prática de alimentar os mistérios pode ser vista enquanto uma técnica ritual que incita o trabalho desses espíritos, percorria essa consideração o seguinte argumento: se dar substância significa mais que criar conexões mútuas, produzir as disposições para o trabalho dos mistérios aparece como um dos efeitos de alimentá-los. Servir, neste caso, significaria também criar a capacidade ou a vontade neles para alienar. A criação de tais disposições gera uma transformação, pois transborda a definição das relações entre pessoas e seus mistérios quando vistas da ótica apenas do fortalecimento recíproco. Outra socialidade passa a ser descrita. São justamente essas disposições para trabalhar ou servir o tatá nganga que Palmié realça para os praticantes das regras del palo. Para isso, ele reconhece que considera como parâmetro de comparação o que significa idealmente para os devotos na regla de ocha alimentar os orichas (PALMIÉ, 2002, p.171). No palo, os espíritos são contratados ou capturados para servir sacerdotes (ou seus clientes). E esses geralmente não possuem um lastro (de parentesco simbólico, como na ocha, ou biológico, como no caso dos mistérios) com as entidades espirituais. Palmié enfatiza as tecnologias rituais que pretendem criar nos espíritos dos mortos a vontade de locomoção, cujo resultado é sua instalação nos caldeirões que se tornarão as ngangas. A extração de substâncias que fazem parte do corpse ou do

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ambiente fúnebre de indivíduos falecidos, a oferta de bebida e o pagamento com algumas moedas nas sepulturas engendram e firmam o contrato entre o tatá nganga e esses espíritos. Roubo, oferta de substância e pagamento aparecem como eventos críticos que permitem as possibilidades de se firmar esse tipo de relação. O que “complica a situação das coisas” no material que apresento, para usar uma expressão de Gregory, é que mesmo tendo esse lastro familiar (natural), os mistérios e as prestações rituais que lhes fortalecem não parecem indiferentes ao contrato. Embora esses espíritos não tenham sido capturados, no sentido que acentua Palmié, a oferta de substância pode funcionar como uma troca alienada e com isso a volição dos mistérios é transformada, como ele chama a atenção para as regras del palo. Além disso, é justamente porque o serviço ritual é concebido como algo que se produz para outros (e não para a potencialização da própria pessoa), que necessita ser retribuído enquanto um pagamento. Aqui retomo a história de Gina, em que seu corpo foi tomado como lócus de produção de memória sobre o poder e uma dívida espiritual. O corte no ombro dela, por um lado, pagou Ogun Balendyó pelo serviço que o mistério fez para a cliente dominicana, que não cumpriu seu trato com esse espírito. Por outro lado, Gina comentou, a sua mutilação não foi o bastante para esse mistério. Em seguida, Ogun Balendyó propôs à Gina a preparação de outro serviço, que ela deveria colocar-lhe. Gina se recusou, no entanto, a fazê-lo. Ela me explicou que, no altar, visualizou todo o serviço ritual indicado por Ogun Balendyó, com tudo, tudo que eu deveria colocar nele, lembro que ela acentuou. Se lhe colocasse esse serviço não haveria outro caminho, ela me falou – e o seu olhar era ainda apreensivo –, a mulher estaria morta. Por um lado, nessa história vê-se a importância de ser cumprido um acordo firmado com os espíritos, no sentido de que eles dispuseram a outros algo da força que lhes pertence. E, neste caso, não foram saldados por isso. O pagamento de Ogun Balendyó, ainda que sob forma substantiva (o sangue), foi aquilo retirado de Gina. Não se tratou, aqui, da cobrança (e extração) de uma dádiva simplesmente. Como Palmié observou a recompensa da nganga também lhe chega ao fim da execução de uma tarefa específica. Tais objetos trabalham por comissão. Mas através da imagem da prestação ritual oferecida aos mistérios, é possível rastrear outras transformações acerca da posição desses espíritos quando entretêm suas trocas. E essas transformações, ainda que

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flertem com a capacidade dos mistérios de se alienarem, têm outros efeitos. Novos transbordamentos são delineados. 2.2.3 Dos serviços que geram revolta Em geral, a tríade pessoas, mistérios e clientes descreve relações de independência recíproca entre os dois últimos. Uma vez atendidos pelas primeiras invocando os segundos ou ainda pelos próprios espíritos montados em seus cavalos, o cliente interrompe seu contato com as entidades e as pessoas, ou, pelo menos, essa é a expectativa. No entanto, esse acordo que une momentaneamente espíritos e outros indivíduos continuou a repercutir na maneira como Gina e Ogun Balendyó interagiram na histórica acima. Por meio da própria ideia de serviço, o que era inicialmente a vontade de Ogun Balendyó – a sua recusa em trabalhar para a tal cliente – assumiu a forma de uma relação contratual e temporária. E eu não sei como Gina o convenceu a fazer algo pelo qual ele, como espírito, já sabia que não receberia. E, diante da dívida gerada, a mesma imagem foi empregada pelo mistério, que sugeriu uma vingança fatal. Para isso, bastava Gina alimentá-lo. Servir, neste caso, significaria estimular (alimentar) a revolta para matar. Nessa narrativa está presente um dos elementos que torna as práticas das regras del palo, segundo Palmié (2002, p.176), formas condensadas da violência que perpassou as socialidades do sistema da plantação escravista nas Américas. Como já chamei a atenção, a ênfase inicial de Palmié é sobre as relações de contrato e trabalho pago que caracterizam as práticas rituais entre paleros e mortos humanos. No entanto, dentro do simbolismo contratual das regras del palo é comum os praticantes alimentarem com sangue as ngangas, no interior das quais os espíritos se encontram. Tal substância aumenta a efetividade desses objetos compósitos Os sacerdotes que falham em alimentá-las adequadamente com gotas de sangue e outras substâncias ou as estimulam sobremaneira com a oferta do mesmo sangue, criam nesses objetos um gosto acentuado por isso. Tal desejo incontrolável só será completamente saciado com a devoração de seus “senhores” (PALMIÉ, 2002, p. 173).72

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“Há algum tempo elas [as prendas ngangas] já começaram a extrair o sustento diretamente dele [palero]. Pouco a pouco elas minaram a força dele e, quando a luta se intensificar, começam a levar ele para baixo, blindando caminhos certos ou pondo-o em risco. Se ele não banquetear elas, elas iram banquetear ele”, interlorcutora palera de Ochoa ( 2004, p. 131).

97 Tornando o sangue o objeto da troca de commodity, alguém se arrisca a ser vítima dos desejos de um consumidor fundamentalmente alienado porque literalmente semelhante à coisa: o nfumbi. A desumanização através da agência das coisas é, assim, a outra face da fantasia de controle total obtido por meio de representar objetos como extensões de si (PALMIÉ, 2002, p.173).

Isso leva Palmié a deslocar sua análise para as transformações que seres humanos e espíritos passam a experimentar nas regras del palo com base em suas relações de trabalho alienado. Inicialmente os espíritos dos mortos são objetifcados como “coisas”, combinados no interior da ngangas com uma série de substâncias e materiais que são parte de si e outras que lhes dão efetividade ritual para o uso do tatá nganga. Entretanto, por causa da própria manipulação substancial a que são submetidos pelo sacerdote, os espíritos se tornam potencialmente agentes da revolta. A instabilidade dessa forma de relação, que tem premente a ameaça de coisificação – ou desumanização como propõe Palmié – dos próprios sacerdotes (e de seus clientes que lhe solicitam uma nganga) precisa ser cuidadosamente modulada. Caso contrário, a predação faz dos vivos (agentes) alimento das ngangas (objetos). Essa ameaça não é uma característica das relações de contrato das regras del palo. Para Ogun Balendyó, um mistério herdado, predar a cliente poderia assumir a forma de um serviço ritual que ele consumiria por causa de sua ira pelo não cumprimento do contrato. Fazer essa aproximação não significa que tomo os mistérios como as ngangas, ou seja, como “objetos”, embora altamente complexos e híbridos, como o próprio Palmié (2002, 2006) enfatiza. O que pretendo é considerar como esse universo conceitual, em que alienar a outros pode ser praticado como uma ‘relação’ que traz em si uma chance de transbordamento, neste caso de retaliação, perpassa diferentes cosmologias sobre as interações entre seres humanos e espíritos no Caribe, particularmente naquelas chamadas de afro-caribenhas. Em Cuba (e na sua diáspora nos EUA) Palmié descreveu o complexo da ngangas afro-cubanas. Em Porto Rico, com sua presença acentuada de imigrantes da República Dominicana, vê-se que as linguagens e técnicas rituais entre os meus interlocutores dominicanos e seus espíritos herdados são modeladas por relações de dom e trabalho: servir ritualmente informa como práticas caracterizadas pela constituição e manutenção recíproca de ‘pessoas’ e mistérios podem estar a serviço de estranhos. No entanto, isso

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não se define como uma anomalia para a dependência mútua que é criada entre as contrapartes da troca ritual transmitida como herança familiar. O que ocorre parece ser uma alternância sobre quem ou o que é o sujeito e o objeto nas diversas prestações rituais. Como Palmié salientou, experienciar essa dinâmica implica conhecer relações de comando e controle, e elas não estão isentas do risco da revolta. Trata-se, assim, de socialidades que se desenvolveram imbricadas com os “sistemas históricos de escravidão no Novo Mundo (...) com contradições sociais crônicas que emergiam do fato de que a desumanização completa do escravo como um simples fator de produção permanecia uma finalidade inatingível” (PALMIÉ, 2002, p. 176). Uma narrativa que Joana me ofereceu sobre um acontecimento que experienciou enquanto vivia na República Dominicana, refaz com outros personagens alguns dos argumentos que defende Palmié: a fantasia do controle total de objetos que funcionam como extensões da pessoa apresenta como seu outro lado a desumanização a que se incorre com isso. Durante uma madrugada, na cidade de La Romana, Joana sentou-se para fumar um cigarro e beber café no segundo andar da casa em que vivia com o marido e as filhas. Era isso o que fazia quando lhe faltava o sono. Como em outras noites, ela escutou um barulho que vinha da rua, um som que sempre lhe parecia o de uma cadela com correntes. Joana já havia contado ao marido sobre os sons que ouvia nas madrugadas. E ele disse-lhe que se tratava de um bacá, e, por isso, que deixasse isso para lá. Mas naquela noite, sentada sobre o reservatório de água do terraço, Joana não ouviu apenas aquele barulho. De longe, viu também um cão andando na rua. O cachorro com as correntes, à medida que se aproximava, transformou-se em um touro, acompanhado por vários filhotes de cães atrás. Sem encarar o animal, ela começou a rezar alguns salmos da bíblia. Depois disso, Joana me disse, um vizinho suicidou-se. O homem era proprietário de um negócio, e teria comprado um bacá. Ele teria feito uma tentativa, mal-sucedida, de matar a esposa e um dos filhos. E, por fim, acabou com a própria vida. – Muitas pessoas que compram um bacá se suicidam, se matam ou então o bacá come o próprio dono. O bacá se alimenta de sangue e os donos de fazenda, de tempos em tempos, têm que lhe dar um animal, uma vaca, um cavalo... Eles gostam de sangue, o que querem é o sangue, e as pessoas acabam se matando, Joana concluiu. Para ela,

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os bacás são homens que se transformam em animais e animais que se transformam em [outros] animais. Os dominicanos que têm firma, fazendas e negócios compram isso no Haiti, mandam fazer no Haiti. Convivendo com os imigrantes dominicanos é possível serem ouvidas narrativas sobre os bacás. Seres híbridos criados a partir da manipulação humana de forças espirituais, pouco escutei sobre como os bacás são produzidos. Em contrapartida, os relatos sobre sua comercialização e atuação percorrem os relatos daqueles que vivem em Porto Rico. Nesses relatos sobre a interação entre os seres humanos e esses seres híbridos (meio-homens, meio-animais), coerção, pagamento e a possibilidade de predação são completamente pervasivos. A imagem dos bacás não é completamente estranha às dimensões de troca pelas quais fluem dádivas e trabalho ritual entre pessoas e seus mistérios. Jean Crimnel, como Gina salientou, gosta de trabalhar com cabeça de bacá e Gina por isso serve-lhe mel. Assim Gina procura atingir seu paladar. Ela esperava que essa substância adocicada atuasse sobre os gostos que o espírito manifesta, considerados perigosos e violentos, como a manipulação de sangue de animais sacrificados ou das cabeças de bacás. E não seria equivocado sugerir que, tal como ocorre com os paleros, estimular demasiadamente Jean Criminel, oferecendo-lhe uma substância pela qual ele já sente desejo, possa ser o que Gina teme. Possivelmente dar-lhe sangue seria abrir caminho para algum futuro ato de revolta. Gina faz uso, por sua vez, de práticas de controle. É buscando constantemente acalmá-lo que ela convive com ele em sua casa e no seu altar. Ou, antes, em sua vida. Adocicar (endulzar) os espíritos é uma técnica ritual partilhada pelos próprios mistérios quando trabalham montados em seus cavalos, como logo descreverei. Em geral, empregá-la, como Gina o fez, tem o intuito de controlar a rebeldia, seja a dos espíritos ou dos seres humanos. Foi no contexto da solicitação de um trabalho espiritual por uma cliente porto-riquenha, no qual se procurou adoçar o marido dela, que pude observar algumas das técnicas de invocação empregadas para a materialização desses espíritos. E essas vão além da colocação dos serviços. Entretanto, se os serviços colocados nos altares fazem com que os mistérios trabalhem sem que estejam visíveis aos olhos humanos, para que realizem suas tarefas montados em seus cavalos, antes eles precisam chegar às casas. Por um lado, o deslocamento dos mistérios ocorre porque as suas práticas de consumo ocorrem geralmente no interior dos ambientes domésticos. Práticas que permitem a reciprocidade

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entre eles e as pessoas, bem como a produção de disposições para o trabalho dos espíritos por causa dos efeitos das substâncias que lhes são oferecidas. Mas, por outro lado, a chegada precisa ser produzida por meio da ativação de outras sensibilidades dos mistérios. 2.2.4 Fazer chegar para trabalhar Quando fui conhecer o altar de Armando no município de Canóvanas, fora da área metropolitana de San Juan, ele aguardava uma cliente porto-riquenha. Ela iria até a casa dele acompanhada de uma senhora dominicana, amiga de Armando. A portoriquenha seria consultada pelos mistérios. Na verdade, ela já vinha passando por essas consultas havia algum tempo. Era uma quinta-feira de dezembro muito chuvosa. O dia se via completamente nublado e úmido. Eu havia chegado à casa de Armando cerca de quarenta minutos antes delas. Quem me conduziu até lá foi Carlos, um senhor porto-riquenho taxista, amigo de Rosa. Mas ele se recusou a retornar ao final daquela tarde para me buscar. Isso porque enquanto fazíamos o percurso, adentrando o município de Canóvanas, ele me descrevia extremamente apavorado o bairro San Isidro como uma barriada perigosa, em que ocorreriam muitos assassinatos. Nesse bairro se localizava a residência de Armando e Renan, seu companheiro porto-riquenho. Armando havia ido até a entrada de Canóvanas. Lá pediu que o taxista o acompanhasse de carro. O trajeto até a sua residência e de Renan era labiríntico. As ruas, completamente sinuosas, de terra. À medida que íamos percorrendo o caminho, viam-se casas simples enfileiradas, com os muros contíguos formando becos. Por causa da forte chuva, tornava-se mais difícil fazer o trajeto enlameado e repleto de buracos. O taxista demonstrava irritação e medo. Rezando, perguntava-me até onde iríamos. Mas eu não sabia respondê-lo. Era a primeira vez que estava ali. Mais adentrávamos a San Isidro, mais assustado ele sentia-se. Já na rua em que Armando e Renan moravam, vimos dois homens adultos negros no portão de uma casa. E Carlos esbravejou muito, quase retirando as mãos do volante. Ele não conseguia controlar seu pavor. Em tom alto, dizia-me que gostava de mim, mas que não retornaria ali para levarme de volta a Rio Píedras. Carlos insistia em dizer que estávamos em uma barriada. Quando ele parou o carro, Armando saiu para nos cumprimentar. E chegou a ver e ouvir os comentários de Carlos. Depois de desculpar-me com Armando por causa da reação de Carlos, ele me encaminhou até uma construção, em um nível abaixo de sua casa. A casa se localizava

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em uma pequena encosta e foi feita com madeira. No interior daquela construção ele organizou seu altar: um espaço criado com pedaços de papelão, folhas de zinco, estrados de madeira a partir de uma estrutura de concreto. Em seu interior, uma espécie de antessala, as imagens de santos podiam ser vistas em várias paredes. Ao entrar, à esquerda havia dois quadros de virgens com um crucifico ao meio. E, um pouco afastado, um quadro de Santa Clara. Na mesma parede, existiam ainda um quadro da Virgem A Dolorosa e na parede à direita (pintada de azul e bolas rosas pelo casal) outro de Anaisa/Santa Ana. Um quadro de São Elias foi pendurado numa pilastra. Ao lado dessa estrutura, mas em um espaço separado por tábuas de madeiras, Armando organizou um altar índio. Formado por dois bustos de índios, um feminino e outro masculino – entre os quais fora colocado um totem –, esse altar se destacava pela quantidade de terra exposta. Logo que nos sentamos na antessala, Armando pediu a Renan para preparar uma defumação (sahumerio). Ele começou a queimar o carvão. Em seguida, Renan acendeu uma vela branca, que foi colocada no chão. Quando a defumação ficou pronta, Armando se dirigiu à porta da antessala e ali permaneceu por alguns minutos. Então começou a espalhar a fumaça pela antessala. Ao terminar, Armando entrou no altar. Antes, no entanto, por causa daquele dia chuvoso e denso, Armando havia comentado comigo que alguns mistérios não gostavam de subir nestas condições. Em dias como aquele, só sobem os mistérios mais fortes, ele pontuou. Neste intervalo de tempo, o telefone dele tocou. Uma cliente queria lhe perguntar sobre quantos dias ela deveria manter um trabalho. Armando continuava no altar. Depois de dar a resposta à mulher, que conversava ao telefone com Renan, nós escutamos o som forte do sino. Amauri o tocava dentro do altar. Ele também borrifou algo no ar, provavelmente água florida. Renan, então, comentou comigo que seu companheiro estava chamando os mistérios. Quando conheci Armando na botânica em que Joana realizava as consultas, ele me explicou que os mistérios não chegam imediatamente. Seria necessário um tempo. Tocar o sino e esperar foi como ele sintetizou. Mais do que isso, no entanto, precisa ser feito em seu altar para que a chegada desses espíritos seja bem sucedida, ou seja, para que os mistérios entrem no ambiente doméstico e depois ocupem o corpo de Armando. Fumar um tabaco, por exemplo, foi o que Renan me disse que Armando faria logo depois que ouvimos os sons do sino que vinham do altar. Esses atos realizados por Armando e Renan para invocar os mistérios demonstram que eles precisam ser atraídos.

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Acender uma vela, produzir um chamado sonoro através do toque do sino, fumar um tabaco, são atos sutis que criam as condições para que os mistérios se movimentem em direção à casa de Armando. No entanto, em outra conversa que tive com ele em seu altar, dei-me conta que tais indicações materiais diziam respeito também a um comprometimento dos mistérios com seus cavalos. Comprometimento que pode fazer de tal chamado quase uma ordem. Armando me falava sobre as imagens dos santos e alguns objetos rituais relacionados aos mistérios. Ao segurar o sino e sacudi-lo com vigor, ele comentou: – Já o espírito tem que chegar, já sabe que tem que trabalhar. Seu tom de voz era marcadamente impositivo. Semelhante maneira de falar eu já havia ouvido de Joana na botânica. Eu tinha lhe perguntado se era possível que os clientes fizessem eles mesmos os trabalhos e dedicassem aos mistérios: – Não é da mesma maneira, porque eu tenho os mistérios e como eu os atendo eles têm que me obedecer! Logo depois desse comentário, Joana me olhou de forma estranha. Parecia ter percebido o tom autoritário que utilizou, elevando e impondo a sua voz. Geralmente eram as relações de poder e controle dos mistérios sobre ela que eram acentuadas em nossas conversas. Não o contrário, como ela acabava de expressar. Essas considerações de Joana e Armando revelam que, além dos serviços que geram disposição para o trabalho, esses pequenos ritos de invocação também são importantes. Eles criam uma espécie de etiqueta disciplinar para o tipo de prestação que está em jogo aqui. Como Palmié apontou em sua análise sobre as ngangas, pelo menos nesse momento, o comando (ou a agência) está com os seres humanos. Minha observação, no entanto, não significa que a interferência dos mistérios se arrefece no cotidiano dos meus interlocutores dominicanos. O que me parece relevante é que à medida que a prática de atender esses espíritos engendra outra dinâmica ritual, algumas obrigações são criadas para os mistérios em termos de uma etiqueta disciplinar. A partir dos pequenos atos que Armando e Renan realizaram, os mistérios sabem que têm que chegar para trabalhar ou obedecer porque são atendidos, como Joana me falou exasperada. Esses procedimentos fundados em técnicas que manipulam certa materialidade (chama de vela como sinal luminoso e não apenas como energia consumida pelos espíritos, água florida borrifada no ar e fumaça de tabaco liberada), como aqueles de de Armando, pretendem produzir um ambiente sensível propício aos mistérios.

– É

preciso ensinar os mistérios porque o mundo hoje é outro. Quando um mistério sobe,

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ele olha ao redor e não reconhece nada, é preciso fazer com que ele se sinta à vontade, bem, Luiz, amigo jamaicano de Gina, certa vez me explicou. Neste sentido, se através de certa materialidade substantiva (alimentar) as ‘pessoas’ alcançam alguma autoridade, embora relativa e instável, sobre os mistérios pondo-os para trabalhar, a manipulação de outras formas materiais criam condições ambientais que revelam alguns modos de regulação das ‘relações’ em jogo. Como Gina me explicou, acender as velas significa que ela está chamando os mistérios. Assim ela os invoca quando vai trabalhar, e, possivelmente, esses espíritos também. Depois que Armando saiu do altar, ele comentou com Renan sobre um talco que a cliente porto-riquenha deveria trazer consigo. Consideração que me soou esquisita. Passaram-se alguns minutos e as duas mulheres entraram na antessala. Traziam, de fato, um frasco de talco infantil Johnson, duas garrafas médias de rum Bacardi e uma vela de cera com formas humanas. Armando conferiu esses materiais, e argumentou com a cliente porto-riquenha que ela só saberia se iria necessitar somente do trabalho ou ainda de um banho durante a consulta com o mistério. Armando me chamou para conhecer seu altar. Estávamos ali havia já certo tempo quando Renan entrou. Ele dizia que a cliente porto-riquenha estava apressada. Sentamo-nos novamente na antessala e só então Armando começou a fumar um tabaco, como Renan me disse: – O tabaco é para chamar os mistérios. Eu tenho que fazer certas coisas para que eles subam sem demorar muito, Armando completou. Para ele, quando se santigua um tabaco para fumar é importante que isso seja feito até o fim. Descartar o tabaco seria jogar fora seu aché, sua bendição. Enquanto ele fumava, sentado em uma cadeira ao lado da minha, sua amiga dominicana, Luz, que acompanhava a cliente porto-riquenha, me perguntou se não havia essas coisas no Brasil. Antes, quando as duas chegaram, Armando me apresentou como uma brasileira que quer conhecer os mistérios. Eu então mencionei o candomblé como uma religião que se aproximaria da santería (regla de ocha). Luz me perguntou se os caracoles eram jogados no candomblé. E Armando pediu para que eu olhasse a pedra colocada pouco depois da entrada da antessala, próxima à porta. Na verdade, três pedras formando um busto cuja cabeça tinha olhos, nariz e boca feitos com búzios (los caracoles como Luz mencionou), além de uma espécie de penacho no topo: uma imagem de Eleguá. Luz passou da santería aos santeros. Mencionou alguns desses sacerdotes que trabalharam na botânica em que conheci Joana, e se referiu particularmente a um deles

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que teria enlouquecido. Armando imediatamente reagiu. Ele não sabia o que se passava com os santeros, que quando trabalham mal ficam loucos. Para Armando, com relação aos mistérios, as pessoas só ficam loucas se deixam de trabalhar. Eles querem seu corpo, ele concluiu. E em seguida argumentou: – Se a pessoa morre, eles reencarnam em uma pessoa da família, que deve seguir trabalhando. Eu então lhe perguntei se os mistérios eram uma herança. Repetindo o termo que eu empreguei, ele novamente enfatizou: – Se uma pessoa morre, eles ficam na família. Foi durante essa conversa que Armando pegou um frasco de uma loção, conhecida como “Pompeia” (de fragrância dita francesa). Ele passou a substância em seus braços e em ambos os lados das mãos. Passando a diante o frasco para a cliente porto-riquenha, pediu-lhe que também usasse a substância e que ficasse tranquila. Ela demonstrava nervosismo e já havia dito isso a Armando. Ele então pediu à Luz e a Renan que fizessem o mesmo, e, por fim, a mim. Eu lhe perguntei qual era a finalidade de usar a loção em nossos corpos: – Tranquilizar o espírito, Armando respondeu. Em seguida Luz pediu-me que não ficasse nervosa. De fato, eu não estava. E argumentou que há pessoas que se assustam, porque os mistérios chegam às vezes com muita força. Por isso, seria comum que Armando chocasse bruscamente sua cabeça na divisória que separa a antessala em que nos encontrávamos do altar. Comentava-se, então, que há dias em que o mistério demora para subir e chega muito forte. Mas foi Luz que quando usou a loção em seus braços e atrás do pescoço, em sua nuca, sentiu um tremor (temblor). Mais tarde, como pude saber por causa da carona que ela e sua amiga porto-riquenha deram-me de volta a Rio Píedras, a pedido de Armando e do espírito que subiu nesse dia, Luz também é um cavalo dos mistérios. Alguns minutos depois de usarmos a loção, Armando pediu a Renan um lenço preto. Momentos antes, ele havia mencionado a palavra velho, mas nesta ocasião eu não entendi do que se tratava. Ele voltou a falar então nesses termos. Até que nos informou: – O velho está por aí, sem saber exatamente onde, mas ali, entre nós. Luz disse a Armando que sentia uma vibração apenas em um lado do pescoço. Sua sensação corporal era a de que eles [os mistérios] não conseguem subir, pois ela deveria sentir isso [a vibração desses espíritos] dos dois lados do pescoço. Renan então perguntou a Armando se deveria buscar junto com o lenço também a capa. Depois que Renan retornou com essas duas vestimentas, Armando pediu que todos ficassem tranquilos. Sua cliente porto-riquenha acabara de dizer-lhe, mais uma vez, que sentia arrepios.

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Pronunciando o nome de Papa Legba, Armando enunciou uma sequência de frases em outra língua, que não era o espanhol. E eu não pude compreendê-lo. Então pediu a Renan a garrafa de rum que a cliente lhe trouxe e bebeu uma quantidade considerável, de uma única vez, no gargalo. Mais alguns minutos se passaram, quando Armando movimentou seus ombros, sacudindo-os com vigor e sussurrou algo. E novamente fez outro pedido a Renan. Agora, uma garrafa de água florida, cujo líquido Armando borrifou na capa e no lenço. Novamente voltou a pedir tranquilidade – sua cliente porto-riquenha insistia em afirmar que estava nervosa –, pois ele não queria retirar ninguém do chão. Luz disse que sentia a corrente e Renan então comentou que sentia a presença de São Elias ali, apesar de não ter isso e não montar. Armando reagiu a esses comentários dizendo que era a corrente que estava passando. Lentamente ele foi se transformando. Foi depois que borrifou a água florida na capa e no lenço que seu corpo começou a se movimentar para trás e para frente. Nesse momento, ele pediu a Luz para iniciar uma oração. Primeiro um pai-nosso, que todos oramos. Ela então emendou uma avemaria. Renan, de pé e ao lado de Armando, posicionou sua mão atrás da cabeça de Armando, para amortecer o choque de seu companheiro na divisória. O que não adiantou. Sentado, Armando se movia para frente e para trás durante certo tempo. Mas logo depois que Renan se afastou, Armando bateu a cabeça bruscamente. Seus olhos arregalaram-se. Vagarosamente arrotos foram liberados. Esse era o som que ouvíamos pausadamente, devagar... Ao olhar para Armando, víamos pouco a pouco que São Elias/ Barão do Cemitério ali chegava. Depois de materializar-se, esse mistério, conhecido como o Barão do Cemitério – o primeiro morto enterrado em um campo santo, como os meus interlocutores dominicanos o definem –, começou a consultar a cliente porto-riquenha. E montado em Armando ele fez um trabalho para ela: – Armando está me ajudando a trazer de volta meu marido, a adocicá-lo, a mulher posteriormente me falou. Essas técnicas de invocação de São Elias me permitem reforçar uma consideração que fiz anteriormente, quando afirmei que, ao aproximar a discussão de Palmié sobre as ngangas dos mistérios não pretendia dizer que esses espíritos são “objetos” ou “coisas”. Como venho procurando demonstrar, a questão principal que perpassa esse capítulo é demonstrar a alternância entre as posições ou condições dos espíritos quanto a duas dimensões das prestações: aquelas em que eles se fortalecem reciprocamente e

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alienam aos clientes parte daquilo que os constitui. O que me interessa é a variação e não a fixidez. De modo que o que faço, ao longo dessas descrições especialmente, é mapear algumas experiências sobre a instabilidade e a dissociação como uma forma de relação. Por alternância, volto a afirmar, entendo a capacidade dos mistérios se destacarem da força que lhes constitui, vinculada à atenção ritual prestada por certas pessoas e baseada nos mais diversos vínculos substantivos (alimentos, bebidas, lámparas e velas), e apresentarem isso a outros sob aspecto novo. Enquanto um produto (serviço ou trabalho) destinado a sujeitos que lhes são estranhos, mas que nem por isso estão fora do circuito ritual no interior do qual os mistérios e as pessoas se mantêm cotidiamente. A invocação de Armando reforça que, para os meus interlocutores, os mistérios não são “coisas” no sentido estrito. 73 Isso porque se, por um lado, parece-me que nela está mais ou menos explícito que a aproximação da cliente porto-riquenha de Armando e seus mistérios se baseou em um lógica contratual: não apenas a pressa dela, mas a própria etiqueta ritual na qual ele mesmo se engajou, definem uma dinâmica de produção de um tarefa por demanda; por outro lado, mesmo assim chamar os mistérios foi uma técnica ritual que demandou cuidados especiais. Esse cuidado não se deveu somente ao fato de que a incorporação da contraparte fundamental dessa troca poderia não ser bem sucedida. O que frustraria a cliente e Armando. Ou que sua ida poderia gerar sérios traumas no cavalo. Assim argumentou comigo Belié Belcan montado certa vez em Armando, quando observou que é importante tranquilidade no momento do transe. Pois, em seu decorrer, há o risco do espírito da pessoa não retornar ao seu corpo depois que o mistério o deixa. O que implicaria a sua morte. A tranquilidade que Armando e Belié Belcan mencionaram é uma noção importante porque diz sobre aquele que está na iminência de receber o espírito e o ambiente que precisa ser criado para que isso se efetive. Odores doces, como o da água florida e da loção, são utilizados para suavizar a atmosfera que circunda os mistérios e o corpo que irá recebê-los. No limite, os próprios espíritos. Esse é um aspecto sensível característico das relações entre as ‘pessoas’ e alguns de seus espíritos. 74 Como discutirei no quarto capítulo, é engajando-se na liberação de

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E me pergunto se em algum outro contexto etnográfico, é possível de fato falar disso nestes termos. E esteve presente na maneira como Ogun Balendyó elaborou o que chamo de um plano de ação ritual para mim, ao me prescrever a necessidade de um despojo e banho antes que eu regressasse ao Brasil. 74

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odores característicos (especialmente acres e fortes) que alguns dos meus interlocutores dominicanos evitavam a aproximação e contato com os chamados mortos: espíritos anônimos ou mesmo de parentes que para eles se distinguem dos mistérios que atendem ritualmente. Cuidado, também, foi preciso com as vestimentas que o Barão do Cemitério usaria. Seus trajes receberam um pouco de água florida. Além disso, foi preciso saber esperar. Pois em um dia de dilúvio como aquele era preciso aguardar o deslocamento do mistério. Tal desvelo, por exemplo, não se assemelha com as técnicas mobilizadas para fazer com que o espírito que se encontra dentro da nganga apresente-se nos rituais das regras del palo. Vê-se isso nas descrições de Routon (2008, p.632-633) sobre uma cerimônia no palo mayombé: “– Vamos velho”, era assim, ele diz, que o morto da nganga, construída com um caldeirão e no interior da qual havia, entre outras coisas, um boneco, foi chamado. Após a entoação de cantos que tardavam em cumprir o seu papel, um novo cantor assumiu a liderança e o corpo do mayombero exibiu os primeiros sinais de possessão (convulsões rápidas, explosões vocais, respiração ofegante e babas). O ambiente na sala, de um automatismo triste se tornou fervoroso. Um canto evocava que cães perseguissem um cimarrón que foi para o monte. Com isso, Routon explica, espera-se provocar o morto, invocar o espírito com mais força, quando uma pessoa não quer cooperar e luta com os espíritos para que não tomem seu corpo. De acordo com Routon, a cerimônia, que começou como uma honra aos mortos, transformou-se, impregnando-se com a imagem violenta de um capataz da plantation e seus cães atrás de um escravo fugido. “Os espíritos dos escravos fugidos estão sempre sem ar, eles sempre chegam correndo para escapar do capataz e seus cães”, comentou -se na cerimônia.

Relutante a emergir de seu lugar escondido no outro mundo, o espírito do escravo fugido de Arcano tinho sido forçado a participar da festa feita em sua honra através de um apelo para a imagem aterrorizante de uma caça de um escravo colonial. Com a face contra o chão, o espírito incorporado se contorcia com seus braços firmemente pressionados contra a extensão de seu torso de um modo terrivelmente reminiscente da boca bajo, uma tática disciplinar que requeria a um escravo deitar-se com a face no chão enquanto recebia chibatadas. Um dos assistentes rituais então suavemente colocou a lâmina de um facão do mato sobre os ombros do espírito, estendendo-a para baixo em um ângulo que cruzava suas costas. O espírito logo se recuperou, ficou de pé, e começou a dar conselhos para todos os presentes, em uma fala

108 misturada consistindo do bozal, o espanhol entrecortado falado pelos escravos africanos recém-chegados à ilha e a variante cubana do kikongo (ROUTON, 2008, p.633 grifo do autor).

Assim como os mortos das regras del palo, diz-se que os mistérios são também de outro mundo, muito embora, como será visto adiante, tal mundo para os mistérios se encerre no mesmo em que os vivos habitam. Como observou Luiz, (...) o mundo hoje é outro. Quando um mistério sobe, ele olha ao redor e não reconhece nada (...). Por isso, Luiz indicou, é importante que os mistérios se sintam bem ao chegar à casa dos cavalos. Sua consideração indica que fazer chegar um mistério para trabalhar implica lidar com alteridades que não se identificam tampouco se comportam – pelo menos os espíritos mais conhecidos vinculados aos meus interlocutores dominicanos com os quais pude ter contato – como os escravos fugidos, cimarrones das plantações no Novo Mundo. Essa é uma diferença importante, pois cria uma série de nuances não apenas sobre quem troca (‘pessoas’ e seus espíritos ou ‘pessoas’, seus espíritos e os clientes) e o que se troca (serviços que fortalecem mutuamente ou trabalhos espirituais realizados para terceiros). Chamo atenção para a existência dessas nuances pela seguinte razão: articulada a essa economia ritual apresenta-se uma cosmologia na qual os mistérios reconhecem uma ordem espiritual singular em que está implicada também uma noção de trabalho. O que discutirei a seguir é que se isso quer dizer que esses espíritos têm suas tarefas – como várias das situações etnográficas já demonstraram –, sua realização se dá de acordo com um regimento cosmológico que me parece singular. Outros elementos, além daqueles que descrevem as relações rituais (com seus variados fluxos, dimensões, posições e transbordamentos) entre contrapartes humanas e espirituais, fazem-se relevantes nessa cosmologia. Se há trocas de naturezas diversas, há igualmente hierarquia e colaboração quando se caracteriza o trabalho ritual dos mistérios. – Os mistérios não foram escravos, foram pessoas livres pelo mundo, os orichas foram escravos, isso é outro ramo, depois que os escravos morreram... depois os indígenas, eles, os mistérios, saíram. Os mistérios são espíritos de várias partes do mundo, Belié Belcan argumentou comigo montado em Armando. Atenta a essa perspectiva de Belié Belcan, descrevo abaixo uma cena etnográfica em que dois modos rituais (pagar e adocicar), quando empreendidos pelos mistérios, revelam uma cosmologia delineada e experienciada como uma divisão, chamada pelas pessoas e pelos mistérios de A 21 Divisão (no singular mesmo).

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2.2.5 Pagar e adocicar: táticas de um plano ritual Quando os mistérios trabalham não o fazem isoladamente, mas em colaboração. Conversando com Gina em seu altar, ela me explicou que São Elias, Santa Marta e Guedé Limbó são companheiros de trabalho. Quando ela põe um serviço para eles ou apenas para São Elias, os outros dois lhe ajudam. Gina já havia destacado a colaboração entre os espíritos quando me mostrou o quadro do mistério que trabalha com São Elias e rápido. Quando eu passei a frequentar a sua casa e o seu altar, ela mencionou algumas vezes que eu retornaria a Porto Rico. No entanto, nunca me explicava exatamente o motivo. Certo dia, Gina avisou-me que um mistério queria falar comigo. Eu estava prestes a regressar ao Brasil e insisti que precisava saber do que se tratava. Gina pediume para esperar. Abriu a cortina da entrada do altar e foi até a mesa. Encostando sua mão direita com a parte exterior sobre a testa ela tocou o sino, abaixando-se até a altura em que estavam as imagens dos santos no chão. Como se ouvisse algo, ela aproximou sua cabeça do quadro de São Santiago Apóstolo, que estava em frente à mesa, com uma nota de um dólar pendurada no canto direito: – É São Miguel que quer falar com você. São Miguel é bom... Foi o que ele, São Santiago, me disse. Gina me pediu então que eu fosse à sua casa ao fim da tarde do dia seguinte, por volta das 18 horas, para uma consulta. Quando toquei a campainha ao final da tarde, Gina estava ainda deitada. Trocamos algumas palavras enquanto ela deixava a sonolência de lado. Aproveitei a ocasião para entregar-lhe uma imagem impressa em papel de Nossa Senhora da Aparecida, que ela incorporou ao seu altar, aderindo-a na parte elevada de uma parede. No dia anterior eu, ela e Luiz conversávamos, enquanto bebíamos café em sua sala, e inusitadamente Gina me perguntou sobre o patrón do meu país. Expliquei-lhe que no Brasil havia uma padroeira, dizendo-lhe o nome da santa. Gina então reagiu. Naquele momento, os mistérios estavam dizendo-lhe que a padroeira era como São Aparício, faz as coisas aparecerem e trabalha com São Donato. No decorrer da conversa, olhando para a parede da sala diante de nós, ela argumentou que estava vendo a santa. Pediu-me então que lhe desse uma imagem da padroeira.75

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Caderno de Imagens do Capítulo 2. Imagem 8.

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Já desperta, ela iniciou a preparação de uma defumação (sahumerio). Ao pôr uma pedra de carvão em uma chama do fogão, Gina comentou que sentia frio. Quis saber se eu também estava com a sensação, ao que lhe respondi que não. Ela então aproximou suas mãos do fogo para aquecê-las, passando-as depois por seu pescoço e suas costas. Parecia-lhe que havia um mistério ali que sentia muito frio. Luiz, seu amigo jamaicano, chegou logo depois. Ele também seria consultado pelos mistérios. Ela permanecia com a sensação de frio, e argumentou com seu marido que era São Lazaro quem estava na sala entre nós. Algum tempo depois, ela deu uma vela branca mediana para mim e outra para Luiz. Gina se dirigiu até o altar. Quando retornou usava uma capa azul com bordas brancas, os pés estavam sem sapatos, e tinha nas mãos um jarro divisional, objeto ritual da 21 Divisão, que sempre contém um líquido. Para chamar os mistérios, ela ingere um pouco dessa bebida. Caminhando até a entrada da porta, subiu alguns degraus. As pernas então cambalearam, seu corpo estremeceu, o que a fez se desequilibrar. Já firme, ela ergueu o jarro, olhando fixamente para o horizonte enquanto sussurrava algumas frases. Em seguida fez libações em três lugares no chão, diante da porta da sala, para que os mistérios entrassem em sua casa. 76 Ao descer, mancava, andando com dificuldade. Direcionando-se a um móvel sobre o qual havia uma grande garrafa de rum, presente que Luiz tinha levado naquele dia para os mistérios, ela pegou a bebida. Ao ver isso, seu marido comentou em voz baixa comigo que o rum não era para ele (Ogun Balendyó), mas para outro mistério. – Esse garçon está sempre trazendo as coisas para os mistérios... É por isso que ajudamos ele. Porque é assim. Nós vemos isso e o ajudamos, Ogun Balendyó comentava ao receber do marido de Gina a garrafa de rum que Luiz havia lhe dado, enquanto eu me sentava em frente ao mistério, que, ao deparar-se comigo, chamou-me de madama. Além da capa, Ogun Balendyó usava no altar um pañuelo na cabeça com um nó atado para frente, também azul. Ao redor do pescoço, ele havia transpassado mais ou menos sobrepostos três lenços (pañuelos): vermelho, verde e azul. Nessa consulta, o mistério se apresentou como espanhol, destacando que na Espanha tem muitos cavalos dos mistérios que o montam, que montam seu mistério, ele enfatizou. Sua pronúncia do 76

Conforme Gina, além dos pontos com o líquido contido no jarro divisional e rum no chão da porta, é bom que se queime água florida nas invocações dos mistérios para atrair boa sorte, cheiros bons.

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espanhol acentuava ao final das palavras a letra ‘s’, e Ogun Balendyó empregava ainda algumas palavras em crioulo haitiano. 77 Durante o tempo em que estive com ele, o mistério fumou tabaco, ingeriu rum, e utilizou uma vela acesa, cuja chama eu encarei enquanto o espírito se fixou em meus olhos e transmitiu seu saber divinatório para mim. Ele confirmou que pediu ao cavalo – foi assim que se referiu à Gina em todo momento – para avisar-me que queria falar comigo. O motivo era um despojo que deveria ser feito em mim. Como eu frequentei muitos altares, ele argumentou, eu não poderia voltar ao Brasil sem uma limpeza. Em mim aderiram-se o que os meus interlocutores dominicanos chamam de coisas más, espíritos de mortos anônimos que podem perambular pelas ruas, mas também se encontram nos altares, levados pelos clientes sem que o saibam. De acordo com ele, eu estava muito pesada, sem conseguir dormir bem. Era necessária, por isso, uma abertura de caminho. Quando Ogun Balendyó mencionou o preço do despojo, na verdade, ele pronunciou apenas alguns números, eu não entendi o que isso significava. Pergunteilhe o que me dizia: – É isso a que vocês chamam de dinheiro, ele me respondeu. E depois completou: – Eu tenho que pagar os outros que vão me ajudar (com o meu despojo e banho), meus irmãos. Momentos antes, o mistério havia dito que possui sete irmãos. Eu quis saber se ele se referia a irmãos espirituais. Sete irmãos espirituais e em vida, ele sintetizou. Logo depois, Ogun Balendyo fez referência ao badi, palavra do crioulo haitiano que significa altar.

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Novamente não compreendi o que o mistério me dizia.

Conversando com Gina e seu marido mais tarde, entendi que o que ele me informava era que o pagamento pelo despojo deveria ser colocado, posteriormente, por mim ali mesmo, no próprio altar. O mistério foi incisivo comigo. Ele queria saber se eu realmente faria o despojo. Era patente que havia desconfiança dele em relação a mim. Enquanto questionava-me se eu realmente faria o que ele tinha acabado de me prescrever, Ogun Balendyó comentou: – É por isso que o Ogum do Mar fica aborrecido, não gosta dos seres humanos...

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Gina e seu marido explicaram-me que os mistérios usam com o casal palavras em patuá (é assim que meus interlocutores dominicanos chamam o crioulo haitiano): tafu (tabaco); tafiá (rum); cofi (café); lajan (dinheiro), la plas (marido de Gina, que auxiliava os mistérios quando montados nela). Métraux (2007, p. 60) observou que la place era uma abreviação de “comandante geral do lugar”, o mestre das cerimônias vodu nos templos urbanos no Haiti. 78 Métraux (2007, p.66) também salientou que caye-mystères, bagui, badji ou sobadji eram os nomes para o santuário no interior dos templos vodu urbanos; geralmente, uma sala que, ao fundo, era ocupada por um ou mais altares.

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Porque eles não lhe dão o que prometem. Os seres humanos lhe pedem as coisas e depois que conseguem não lhe pagam. Extremamente sério, fixando os olhos nos meus, Ogun Balendyó me explicava que eu faria um despojo no mar e então um banho no rio. Após ouvi-lo, indaguei-lhe se poderia anotar o que seria preciso para a limpeza. – Você vai fazer? Você vai anotar, mas vai fazer mesmo?, o mistério insistia. Somente quando lhe dei certeza de que faria o despojo, Ogun Balendyó começou a ditar-me o que eu deveria comprar e entregar ao cavalo. E descreveu-me, detalhadamente, seu modo de ação ritual. O despojo seria feito primeiro no mar. Depois disso iríamos a um rio:79 – Eu vou com o cavalo no mar. Lá, em cabeça do cavalo [ou seja, ele não estaria montado em Gina],80 o cavalo vai invocar Yemaya e esse Ogum, que é metade sereia [e como quisesse lembrar-se da palavra disse pescado, logo se corrigindo]... Esse Ogum que é metade pescado e metade pessoa. Quando chegássemos ao rio, Ogun Balendyó não entraria, porque aqui é com outros mistérios, ele destacou: – São Judas Tadeu também é um Ogun, mas do rio [era quem iria trabalhar nesse lugar]. Aí vão ser invocados La Caridad del Cobre, para fazer tua abertura de caminho, e os índios Guaicaipuro e... [o outro nome eu não consegui entender]. Ao repetir-lhe o que deveria ser comprado, o mistério fez um acréscimo. Lembrou-se que precisava pedir-me para comprar também maças. As frutas seriam levadas porque há mistérios rebeldes no rio. E ele, Ogun Balendyó, precisaria adocicá-los (endulzarles). – Os mistérios estão todos na Terra, no céu estão apenas Papa Bon Dieu, Jesus Cristo e o Espírito Santo. Deus escolheu eles para ficar com ele no céu. Os mistérios estão no que vocês, seres humanos, chamam planeta Terra. Eles estão....Sem completar a frase, o mistério movimentou as mãos como Gina costumava gesticular, indicando que esses espíritos estão no ar, ao redor. Por causa dessa conversa, esqueci-me de pagar-lhe a consulta. Já na sala, disse isso ao marido de Gina, que me pediu para voltar ao altar. Receosa, reagi. Seria melhor ele perguntar ao mistério se eu poderia entrar e pagá-lo. Ao sair do altar, o marido de Gina deu-me passagem para entrar. Ogun Balendyo já se encontrava com o amigo jamaicano de Gina. Ambos conversavam. Luiz estava sentado à sua frente com um lenço vermelho amarrado à cabeça (como Ogun Balendyo) e fumava um tabaco. O mistério fazia referência ao 79 80

Além de mim, uma cliente porto-riquenha de Gina e seu marido passaram pelo despojo e banho. Modalidade de incorporação relativa dos espíritos, como discuti no primeiro capítulo.

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medo que o rapaz sentia, o que lhe impedia de montar os mistérios. O rapaz já havia me dito que Ogun Ferraile é seu protetor, ele é um soldado dos mais poderosos, Luiz fez questão de enfatizar. Eu então os interrompi. Trazia as notas nas mãos. Exasperado, o mistério me disse para pôr o pagamento em qualquer lugar do altar: – Eu não toco nisso, eu não ponho a mão nisso, ele esbravejou. Novamente faltou-lhe a palavra dinheiro para as notas com as quais eu lhe pagava a consulta. 2.2.6 Tateando mistérios e divisões Que os espíritos trabalham em companhia, tendo a ajuda de outras entidades, não parece ser uma peculiaridade da maneira como os mistérios se engajam em suas tarefas visando aos humanos. Ochoa (2004), Espírito-Santo (2009) e o próprio Palmié (2002) já chamaram a atenção para isso em suas etnografias sobre Cuba. Em sua etnografia sobre as regras del palo, particularmente aquelas chamadas de palo briyumba, Ochoa observa que ao lado das prendas ngangas mais poderosas, cujos caldeirões alcançam altura considerável, geralmente veem-se outras que são suas “aliadas”, que ajudam as primeiras, fabricadas em recipientes de ferro e cabaças menores (OCHOA, 2004, p.125). Recuperando o trabalho de Cabrera, Palmié (2002, p.176) ressaltou a existência de uma estrutura de comando e submissão nas regras del palo. Sacerdote e espírito eram apenas alguns dos agentes que tinham lugar para fazer uma nganga funcionar. Na narrativa que ele recupera em seu livro, uma informante de Cabrera define tudo o que está no interior da nganga como “animais”, “turmas de escravos” sujeitas, às vezes, à revolta. Esse agrupamento ajuda o espírito (nfumbi) em seu trabalho. O sacerdote (ngangulero) comanda o espírito, que é o capataz que dá ordens aos animais e galhos (“turmas de escravos”) que são sua força escrava. Já Espírito-Santo (2009, p.101-103) observa que em Cuba há basicamente dois tipos de entidades na cosmologia espírita. O primeiro tipo é chamado de “cordão espiritual” e apresenta-se como o grupo mais importante. O segundo se refere aos espíritos familiares, que podem se inserir no cordão espiritual de um médium, ou mesmo representar um cordão específico. Para a autora, o cordão espiritual principal é formado por espíritos cujas características biográficas e físicas misturam-se às narrativas e imagens de grupos sociais e étnicos historicamente diversos em Cuba. Freiras, padres franciscanos, índios e indianos, escravos, cimarrones, escravos emancipados, ciganos, intelectuais e negociantes, europeus dos séculos XVIII e XIX,

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chineses, palestinos, árabes, artistas e dançarinos de cabaré, médicos, devotos católicos, haitianos, mexicanos e feiticeiros africanos são alguns dos espíritos que constituem o cordão de alguém. Um cordão espiritual é organizado hierarquicamente, pois à frente dele há sempre uma entidade chamada de “anjo da guarda”. O espírito que, durante as sessões de possessão, Espírito-Santo argumenta, possui mais “luz” ou “conhecimento” e cujo encargo é coordenar e supervisionar os outros espíritos em suas tarefas respectivas. Espírito-Santo salienta que cada uma dessas entidades conecta-se a um conjunto de histórias mais amplo, a um grupo de identidade distinto e particular chamado de “comissão”. Para ela, uma comissão é ontologicamente mais ampla do que simplesmente um grupo selecionado de espíritos. Isso porque tal agrupamento contém todos os seres que têm historicamente, através de suas vidas, tornado-se parte dele por causa de identidade, profissão, filiação religiosa ou causa da morte. “Comissão médica”, “comissão africana”, “comissão ngangulera” (“comissão palo”), “comissão científica” são algumas delas.

[...] se uma médium trabalha com o espírito de um índio [...] ela saberá que o poder e a visão deste espírito residem e dependem, no mínimo parcialmente, da conexão dele com todos os outros espíritos índios – a comissão índia – cujo conhecimento e serviço esse espírito deve frequentemente evocar para ser bem sucedido em sua desejada evolução (ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.103).

Se a partir do detalhamento do despojo e do banho que Ogun Balendyó me prescreveu é possível afirmar que os mistérios são espíritos que trabalham em companhia, acredito que algumas especificidades caracterizam esse tipo de associação. Antes dele (ou talvez justamente porque estava com ele), Gina já havia chamado a minha atenção para isso. Ela ressaltou que ao pôr um serviço para determinado espíritos outros que lhe são próximos trabalham junto com o mistério principal. Companheiros de trabalho foi a expressão que ela usou para definir esse tipo de ação espiritual entre os mistérios, como narrei no início desse capítulo. Neste contexto em que eu assumi a posição de uma das contrapartes da troca, apareceu mais uma vez uma descrição sobre um contrato. Essa foi uma das tônicas de Ogun Balendyó enquanto conversávamos no altar. E não seria equivocado supor que a sua preocupação quanto à minha confirmação em fazer a limpeza estava relacionada ao seu compromisso: ele precisava pagar os outros mistérios que o ajudariam, seus irmãos

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espirituais e em vida. Sua insistência, talvez, era uma repercussão do acontecimento com aquela cliente dominicana, em que o trato firmado não foi saldado. Mas ao explicitar uma relação de contrato, Ogun Balendyó traçou outros delineamentos no interior dos quais os mistérios se associam. Além do pagamento como uma forma de vínculo entre os próprios mistérios, um universo cosmológico descrito em termos de uma concepção espacial foi enfatizado. Em teoria, cada espírito singular realizaria uma tarefa em pelo menos três ambientes: na praia, no rio, e como eu soube somente no momento do banho, na atmosfera. Isso, segundo Ogun Balendyó, incluiria a transferência de responsabilidades dentro do plano de ação ritual que me foi traçado. A primeira especificidade que aponto diz respeito ao estatuto desses espíritos. Os mistérios parecem ser tão diversos quanto os ambientes geográficos em que podem ser encontrados ou nos quais vivem. Belié Belcan, por exemplo, revelou -me que os mistérios foram pessoas livre pelo mundo. Ogun Balendyó, que os mistérios estão no que nós, seres humanos, chamamos de planeta Terra. Das duas perspectivas, esses espíritos preservam (e se esforçam para recriá-lo, como será visto ao final do capítulo) seu cosmopolitismo. Mas a partir de mais alguns detalhamentos sobre a minha limpeza, pode-se imaginar que, se pelo menos um espírito europeu (espanhol) de séculos passados e uma prostituta estiveram presentes no rio, diversos outros trabalharam como mistérios: entre eles, espíritos híbridos, condensações de potência humana e animal, mas também do que chamarei de energia vital, na falta de um termo melhor que defina a existência de um mistério que é um sol, um Barão muito poderoso, segundo Gina. Vamos, então, a alguns dos detalhes. Embora invisível para mim, Ogun Balendyó estava em cabeça de Gina, com ela e entre nós, desde que deixamos a casa dela bem cedo pela manhã. Logo que eu e a senhora porto-riquenha chegamos, Gina nos disse que chamaria São Santiago antes de sairmos. Ela se dirigiu ao altar e em poucos minutos ouvimos o sino tocar. Seu marido foi até o cômodo e então me pediu para entrar. Ao ver-me, Ogun Balendyó se referiu a mim como pitiso (menina, filha pequena, Gina me explicou, porque para ele nós somos muito jovens). Sem o lenço na cabeça e a capa, três lenços (vermelho, verde e azul) estavam sobrepostos ao redor de seu pescoço. Indagando-me se eu estava bem, o mistério quis saber em seguida se eu estava com o pago (pagamento). Respondi-lhe que sim, ao que ele reagiu dizendo-me que o deixasse numa espécie de caldeirão que havia dentro do altar. Mostrando-me um galão

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no qual se via grande quantidade de um líquido e uma vela em cima, o mistério voltou a esclarecer que se tratava de um despojo na praia e um banho no rio. O marido de Gina, que estava dentro do altar conosco, então foi lembrado por Ogun Balendyó de levar tabaco, pois nós vamos também, o mistério lhe disse. Gina saiu de casa tendo ao redor de sua cintura alguns lenços amarrados. Nos ombros, ela havia posto um lenço amarelo. Em seu corpo havia ela, Ogun Balendyó e talvez outros mistérios, que seriam invocados no decorrer daquele dia, cuja cor de cada lenço indicava. Na praia, depois do despojo que Gina e seus mistérios realizaram em mim, lancei alguns centavos de dólar para trás. Assim paguei pelo despojo um mistério que vive no mar, um ser híbrido (meio-pescado, meio-humano). Gina nos pediu que saíssemos da faixa de areia sem olhar para trás. Devíamos seguir caminhando em frente. – Tudo de mal, todas as energias negativas vão ficar aqui, ela mencionou. Yemaya, Ogun Balendyó me falou na consulta, também seria invocada para mim ali. E Gina usava na praia um lenço amarelo ao redor da cabeça, que representava essa entidade. Ainda na praia, lembro que ao me pedir para segurar a camisa da cliente porto-riquenha, enquanto despojava a mulher, Gina estava com voz rouca, como a de Ogun Balendyó. Enquanto nos deslocávamos até a região de rio, ela comentou no carro conosco: – O rio e o mar são onde se há mais força, os dois lugares em que há mais força . Em meio a pedras e à água do rio, mais mistérios foram invocados e outros subiram em Gina. Ogun Balendyó preparou meu banho logo depois que Gina fez um resguardo (ela ainda não estava montada) e pediu que eu o ingerisse. Aparentemente São Judas Tadeu, um mistério que vive ali, não se apresentou. Ogun Balendyó adoçou o mistério rebelde do rio utilizando as maças (que parece ser um híbrido de humano com abelha), invocou outro, também um petro, mas que é o sol, acendeu velas e pediu-me para manter uma acesa quando chegasse aonde vivia. Uma das velas foi colocada sobre um desenho que ele fez com cascarilla em uma ampla e mais elevada pedra, espécie de mirante. Depois que terminou de atender-me ele deu passagem à Anaisa. Essa metresa cuidou primeiramente da cliente porto-riquenha de Gina, depois de seu marido. Anaísó, na verdade, pois logo que subiu em Gina bamboleando a cintura como se estivesse mantendo relações sexuais, com as mãos nos órgãos genitais, essa metresa anunciou que estava sob sua forma petro: – Anaisa de Piés chegou! Eu sou Anaisa Petro... Eu sou velha... As pessoas dizem que eu não subo no rio, que eu só subo no seco, eu subo em

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qualquer lugar onde eu quero... Eu possa nadar no rio..., a metresa nos dizia, solicitando ao marido de Gina seu lenço amarelo, que ela mesma amarrou à cabeça, deixando uma das pontas na lateral do ombro, como se fosse uma trança; depois perfume, que usa nas partes íntimas do corpo de Gina, cerveja e cigarro. O marido de Gina, depois de procurar em várias sacolas sobre as pedras, não encontrou o maço. Anaisa percebeu isso. Vagarosamente, ela saiu da frente da cliente porto-riquenha e organizou com muito zelo, sobre uma pedra, alguns materiais do despojo que estavam completamente espalhados. Olhou na direção de uma bolsa plástica e caminhou até onde a sacola estava. Ali dentro encontrou o maço de cigarros. Seu cuidado em fazer isso era notório. Preparada (perfumada, ela fumava e bebia sua cerveja quente), Anaisa conversava conosco enquanto macerava as plantas para o banho da senhora portoriquenha, dizendo-nos que já era bem velha. E que a chamam também de Anaisa 7 Voltas: – No tempo em que eu trabalhava em negócio de madama, eu tinha muitos homens. Indaguei-lhe, ao ouvi-la, que tempo foi esse. Vagamente, Anaisa me respondeu: – Era um tempo. Ao encarar-me, seu olhar transmitia seriedade, e ela me questionou: – E o que tu crês, que tu és desse tempo de agora? Teu corpo agora é esse, mas você vem de outro tempo. Sentada sobre uma pedra próxima à água do rio, mantendo a cabeça abaixada enquanto trabalhava, Anaisa comentou irritada: – Santa Marta está aqui, ela vive fodendo atrás de mim. Mas Anaisa não a deixou passar (subir em Gina). A partir destes detalhamentos, sugiro que o plano ritual que Ogun Balendyó traçou parece contar com espíritos cuja força se liga, em parte, a ambientes geográficos singulares (e há a possibilidade de que tais ambientes se cristalizaram nesses seres postmortem ou eles se cristalizaram nesse ambiente durante a vida). Além dos espíritos híbridos que foram invocados naquele contexto, a própria Santa Marta A Dominadora, como apontei no primeiro capítulo, é descrita como uma combinação de mulher negra rústica e cobra. 81 É neste sentido que sugiro uma segunda especificidade nessa maneira como os mistérios trabalham ritualmente: se de um ponto de vista mais geral, os espíritos se associam em um universo cosmológico que é caracterizado por algumas premissas

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Essa espécie de simbiose de uma vida em comum, que cria intimidade entre ambientes e aqueles que foram também humanos, como os mistérios, será evocada com mais vagar no próximo capítulo. Nele discuto a interiorização dos mistérios na casa das pessoas.

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espaciais, como já salientei, arregimentar a força de seres diferentes parece algo semelhante a uma estratégia militar. Com isso, adocicar o espírito petro rebelde do rio e pagar o Ogun do Mar que não gosta dos humanos porque esses não saldam seus compromissos com ele, poderiam ser vistos como táticas rituais que pretendem reunir e comandar potências diversas, encontradas em diferentes lugares. Essa imagem tem a ver com as descrições etnográficas das ações rituais de que também participei. Mas ela se sustenta ainda nas conversas com os meus interlocutores dominicanos, que vez ou outra, fizeram referência para mim à 21 Divisão. As pessoas falam em divisão como uma noção que reúne certos mistérios. Divisão dos oguns, divisão dos guedeses, divisão dos petroses, divisão dos congos, divisão dos índios, são as mais comuns. Em geral, há um mistério que lidera cada divisão, e é comum que isso seja indicado com a expressão ele está à frente da divisão, é o chefe da divisão ou aquele mistério que vem/está atrás dele. Entre as chamadas metresas, algumas são identificadas com os mistérios de cada divisão. As mais populares são Anaisa, Santa Marta a Dominadora e Metresili/Virgem A Dolorosa. Entre os oguns, Ogun Balendyó está à frente. Quando comentei com Gina sobre a seriedade com que ele falou comigo naquela primeira consulta, ela reagiu: – Ele é sério sim, ele não sorri, porque ele é um mistério muito velho, é o mistério mais velho, muito respeitado pelos outros mistérios, que quando o veem fazem reverência. É por isso que ele é chamado de El Patrón, porque é muito velho. Ogun Balendyó é concebido como um guerreiro, que tem atrás de si mais seis mistérios, seus irmãos espirituais e em vida, como ele mesmo definiu. Os espíritos guedeses são os responsáveis pelos mortos humanos, e estariam também em um agrupamento de sete entidades masculinas. Os espíritos petroses geralmente são considerados impetuosos e violentos, aqueles que trabalham particularmente com sangue e vivem no monte. Mas se as divisões funcionam como categorias cosmológicas que instituem algumas demarcações, 82 essas se desfazem parcialmente quando os mistérios entram em ação. Quando conheci Armando na botânica, ele observou que o nome pelo qual o conjunto dos mistérios é chamado é 21 Divisão. Isso, ele me explicou, não tem a ver com o número de santos, antes com a quantidade de grupos de espíritos. São Miguel/Belié Belcan (alguns falam também em Candelo Sedifé) é considerado 82

O que, como será visto no próximo capítulo, parecem ter como aspectos diacríticos marcos diversos de temporalidade, espacialidade, origem social/cultural e estatuto dos espíritos

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geralmente o chefe da 21 Divisão. É comum também ouvir os dominicanos dizerem que ele é o chefe da milícia, uma referência que combina seu caráter belicoso enquanto espírito (ele é um mistério que luta e derruba os inimigos) e descrições cristãs sobre o arcanjo São Miguel. E é articulando-se a espíritos de divisões diferentes que os mistérios trabalham. Assim, faz sentido que, para além do que tentei explicitar com as descrições acima, no dia a dia fale-se em termos da ajuda, por exemplo, entre Candelo Sedifé e Anaisa, Anaisa e São Miguel/Belié Belcan, ou ainda Candelo Sedifé e Belié Belcan. Enquanto ouvia Armando falar sobre os grupos de mistérios, mencionei a umbanda – ele havia me perguntado se havia santería no Brasil – por causa da organização dos espíritos também semelhante a grupos. Expliquei-lhe mais ou mesmo que havia os espíritos de preto-velhos e caboclos, por exemplo. Os primeiros seriam pessoas que viveram durante a escravidão; os segundos seriam pessoas misturadas entre índios e brancos. Ele, Renan e uma amiga dominicana do casal prestavam atenção ao que eu dizia. Depois de me ouvirem, Armando me disse: – Cada escravo tinha uma arma, assim se passa com os mistérios. Anaisa trabalha com cerveja, cigarro e perfume. Candelo Sedifé trabalha com tabaco, bebendo café sem açúcar, ele destacou. Ele havia me perguntando se eu já tinha conversado com outras pessoas e com os mistérios. Contei-lhe que quando vi Candelo Sedifé em uma festa para São Miguel/ Belié Belcan, esse mistério pediu óleo (aceite) para fazer uma chama: – Encanta-lhe trabalhar com o fogo, Armando afirmou, Belié Belcan tem como arma a espada, e Santa Marta a cobra. Nós [Armando apontou para a amiga dominicana] somos índios, descendentes de índios, de Enriquillo, de Guaicaipuro, um índio que é muito conhecido na Venezuela. Essa religião começou com os escravos africanos que estavam na Hispaniola, [citou então o nome de alguns mistérios, dos quais eu só entendi o do Barão do Cemitério], isso é vodu, que é praticado no Haiti. Com a fronteira, as pessoas de um lado se casavam com as outras e iam se mesclando. Começou aí o surgimento das raças. No Haiti, a religião popular é vodu, que é como se eles fossem para igreja todos os dias. O que os dominicanos fazem é uma adaptação da religião no Haiti. A noção de fronteira mobilizada por Armando ou mais precisamente, a sua compreensão sobre o que permanece e se reproduz a despeito dela – os espíritos atendidos ritualmente pelos escravos africanos que estavam na Hispaniola, e se propagaram no que venho a se tornar o Haiti e a República Dominicana – serve-me para

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dar realce a meu argumento sobre o que proponho como uma cosmologia espiritual quase militar. À frente da divisão (e de todo conjunto da 21 Divisão) estão alguns homens de batalha, como Gina certa vez definiu se patrón, ideia que perpassava também os comentários de outros interlocutores sobre seus mistérios. Mas mesmo essa definição não impede o suposto de que a ‘zona de combate’ (Palmié, 2002, p. 188) em que cada um desses seres espirituais se localiza não é (e não foi) a mesma. Os princípios desse universo conceitual (as divisões) e suas táticas fundadas em meios de controle (alimentar, adocicando, para acalmar), de trabalho ritual em colaboração, e de pagamento demonstram o seguinte: tal lógica ritual busca ultrapassar, expandir-se, capturando o que pode ser conceituado e experimentado em alguma medida como diferenciado. Essa imagem é apresentada por Palmié (2002, p. 185 apud Brown 1989, p. 376), quando recupera uma passagem de David Brown. Nela, um interlocutor diz-lhe que se concebe como um “sacerdote-guerreiro urbano conquistando território estrangeiro por meio da incorporação disto no ‘mundo’ encerrado em sua nganga”. A prenda seria como o mundo, na qual existe alguma coisa de todas as coisas. Dessa maneira, algo de qualquer lugar aonde o sacerdote vai deve ser inserido na prenda. Segundo o informante de Brown esse procedimento se explica porque ele é um “(...) guerreiro. Quando um exército conquista um país, eles deixam um exército de ocupação. Eu vivo em Union City; se eu vou a Nova Iorque para ‘trabalhar’ eu terei que deixar escoltas ou guardas, construir um perímetro, uma fortaleza”. Questionado por Brown se há uma “moralidade, um certo ou errado” em seu trabalho como palero, o informante lhe diz: “Qualquer coisa que você pague a prenda para fazer, ela fará, isso não é como os santeros”.83 83

Para Palmié (2002, p.185-187), essa imagem poderia representar o desenvolvimento de uma série de transformações em que a fabricação e manipulação rituais das ngangas assumiram, historicamente, a forma de um campo marroom (e não apenas condensaram era relações de trabalho servil da plantation escravista. Conhecido como manigua, essa era a área geográfica conhecida como ‘terra de nenhum homem’, criada entre o território operacional das tropas espanholas e o espaço precário tomado do antigo regime colonial pelo exército da “ralé” (Cuba Libre) no decorrer da guerra dos Dez Anos (1868-1978). Segundo Palmié, as tropas espanholas no curso de uma investida a um campo rebelde negro capturou uma escultura antropomórfica de madeira, cujo torso tinha uma cavidade preenchida com “remédios” e ao lado do qual havia um chifre bovino, em cuja abertura foi inserido um espelho. Quando os remédios eram aplicados na ponta dos chifres junto ao corpo da imagem, o pequeno espelho reproduzia as formas e os movimentos dos espanhóis perseguindo os insurgentes. Outro uso tático desses objetos [minkisi] em operações militares que Palmié descreve é uma nganga encerrada em uma pele de cabra. Tal objeto induzia o transe em uma mulher que vivia em um palenque, um assentamento negro marroom, que, sob essa condição, indicava aos rebeldes onde as tropas espanholas estavam. Para Palmié, esses são episódios que descrevem uma guerrilha brutal e interminável em que esses objetos rituais afro-cubanos foram controlados com a finalidade de reconhecimento militar: dispositivos técnicos ou de guerra para fugir dos

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Naquela primeira consulta que tive com Ogun Balendyó, esse mistério – como outros vinham fazendo durante meu trabalho de campo – procurou conectar as minhas próprias conexões. Fazendo parte da tarefa a que me dediquei no primeiro capítulo, Ogun Balendyó argumentou comigo que eu tenho uma missão com eles (os mistérios). Por isso, eu deveria trabalhar os mistérios no Brésil, ele me propôs, afrancesando com dificuldade o nome do país. Travando uma negociação com ele, expliquei-lhe que estava ali por causa do doutorado. Não gostaria de trabalhar os espíritos. Depois de tanto insistir e eu recusar, ele se conformou parcialmente: – Está bem, então tu tens que ter um altar lá, colocar as coisas... E tu crês que não me tens?, ele desafiou-me, eu falo português lá. Voltando ao assunto do banho e despojo, ele procurou explicar-me que não pretendia (com seu plano de ação ritual) praticar o que as pessoas chamam (e temem) de roubo dos mistérios: – Eu não vou te quitar [os mistérios], porque eu te disse que eu tenho Yemaya. Os lenços [pañuelos] ficarão com você. E, então, sinalizando para aquilo que firmaria a nossa futura e momentânea aliança, na medida em que aceitei receber o seu cuidado ritual, ele comentou: – Se fosse outra pessoa, seria vinte [número que representa o valor da consulta]. Mas como é para você... Seu cosmopolitismo e ímpeto de expansão, como mistério que pede atenção e trabalho ritual, quando eu me recordo dos fragmentos dessa conversa, agora me parecem prementes. É como um esforço de aprofundar, no próximo capítulo, certas perspectivas desse universo cosmológico fundado nas divisões que me aproprio não apenas de narrativas e observações sobre e dos mistérios, mas fundamentalmente de suas imagens, que se espaçam na casa das pessoas. Ao dar relevo a esse material, procurarei demonstrar que através de algumas das formas de interiorização desses espíritos nos ambientes domésticos as divisões são recriadas. Mas é também por meio de tais formas que os mistérios reivindicam seus modos próprios de lembrança.

ataques espanhóis enviando espíritos ao território inimigo para revelar a inteligência vital. Contudo, ele se pergunta, para além disso, que tipo de guerra esses matiabos/matiaberos (os que usam tais “objetos” rituais) estavam envolvidos.

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CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 2)

Imagem 1. Altar para os mistérios na casa de Rosa: da esquerda para a direita, Virgem A Dolorosa/Metresili, São Santiago Apóstolo, Santa Bárbara, São Miguel Arcanjo/Belié Belcan, Santa Ana/Anaisa, e Grande Poder de Deus. Río Piedras, San Juan, setembro 2010. Foto: Alline Torres.

123 Imagem 2. Altar para os mistérios na casa de Rosa. Santa Marta A Dominadora e São Elias, espíritos guedeses, diante de xícara com mercúrio e taça com água. Río Piedras, San Juan, setembro 2010. Foto: Alline Torres.

124 Imagem 3. Velas para os santos. Casa de Rosa. Río Piedras, San Juan, setembro 2010. Foto: Alline Torres.

125 Imagem 4. Altar para os mistérios de Gina. Serviço de mel com tabaco para tranquilizar Jean Crimnel (São Sebastião), espírito petro. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

126 Imagem 5. Altar para os mistérios na casa de Joana. No recipiente branco sobre a mesa e nos latões no chão, as lámparas, serviços oferecidos aos santos para que trabalhem. Carolina, dezembro 2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 6. Altar para os mistérios de Gina. Lámpara divisional em recipiente circular de vidro, serviço para a 21 Divisão. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

128 Imagem 7. Altar para os mistérios na casa de Armando. Serviço para Metresili (Virgem A Dolorosa): refrigerante Country Club sobre o qual havia sobras de cera derretida, na bancada mais alta. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

129 Imagem 8. Figura em papel de Nossa Senhora da Aparecida, que Gina incorporou ao seu altar, na parte elevada, junto aos quadros de São Miguel. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

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CAPÍTULO 3 A CASA E OS ALTARES. INTERIORIZANDO TEMPOS, ESPAÇOS, RECRIANDO PAISAGENS MNEMÔNICAS O solo estava coberto por uma espessa capa de excrementos que aprisionava utensílios líticos e espinhas de peixe petrificadas. Ti Noel observou que várias botijas de barro ocupavam o centro e que devido a elas reinava, naquela úmida penumbra, um aroma acre e pesado. Sobre folhas de soroca amontoavam-se peles de lagarto. Uma grande rocha plana e várias pedras redondas e lisas tinham sido utilizadas, sem dúvida, em recentes trabalhos de maceração. Sobre um tronco, aplainado a fio de machete em toda a sua longitude, estava um livro de contabilidade, roubado do caixa da fazenda, em cujas páginas se alinhavam grossos traços de carvão. Ti Noel não pôde deixar de pensar nas lojas dos herbanários do Cabo, com seus grandes pilões, seus receituários em estantes, seus potes de noz-vômica e de assafétida, seus maços de raiz de malva-branca para curar as gengivas. Só faltavam alguns escorpiões em álcool, as rosas em azeite e o viveiro de sanguessugas. (Alejo Carpentier, O reino deste mundo, p.27-28)

3.1 ALGUMAS AMBIENTAÇÕES Depois que São Elias/O Barão do Cemitério ocupou o corpo de Armando, esse mistério amarrou o lenço preto ao redor da cabeça de seu cavalo, lenta e silenciosamente. Em seguida, Renan o auxiliou a vestir uma capa preta com bordas brancas e uma grande cruz nessa mesma cor decalcada no centro. Renan deixou a antessala e dirigiu-se ao interior do altar. Ao sair dele, trouxe uma muleta, que fora pintada também com a cor preta. Com muita dificuldade, São Elias se apoiou no bastão. Renan o ajudou a ficar de pé, e, então, a caminhar. Os pés estavam tortos, virados para a parte interior das pernas, e os dedos dobrados. Luz, ao perceber que eu prestava atenção nesses membros, indicou-me com seu olhar que eu ficasse atenta para esses aspectos. O corpo de Armando parecia ao mesmo tempo frágil e contraído. São Elias e Renan reservaram-se, por alguns instantes, no interior do altar. Como discuti no segundo capítulo, os mistérios são concebidos como espíritos que precisam chegar à casa das pessoas. Nela eles se alimentam e trabalham. Ambas as atividades geralmente ocorrem com os mistérios assumindo o estado de fumaça (humo), como Gina certa vez comentou. Pois os mistérios estão no que nós, humanos,

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chamamos de planeta Terra, como seu patrón me falou. Por aí: ouvi algumas vezes os dominicanos dizerem nas botânicas. A característica volátil desses espíritos é algo a ser considerado na atenção ritual prestada pelos meus interlocutores dominicanos, parece-me, não apenas porque ‘ter um altar’ é sinônimo de cuidado ritual obrigatório, um meio dos mistérios, que estão ao redor, nutrirem-se (e vitalizarem as pessoas); e, igualmente, uma condição material para o trabalho espiritual. Se os altares indicam que a interiorização dos mistérios na casa das pessoas pode ser vista como uma forma de agenciar a transitoriedade desses espíritos, neste capítulo quero argumentar que, por meio deles, os mistérios conseguem reivindicar suas próprias lembranças. Desse modo, um dos desdobramentos mais radicais dos altares é que através deles os mistérios obtêm a capacidade de se sentir como eram quando vivos. Nos altares, os mistérios se encontram com objetos e paisagens recriadas domesticamente. Esses artefatos incitam lembranças nesses espíritos à medida que os afetam enquanto mortos e podem habilitá-los ainda que efemeramente, por vezes, inesperadamente, a recuperar contemporaneamente suas antigas experiências em vida. É buscando viabilizar esse tipo de conjunção entre espíritos e materiais que as ‘pessoas’ manipulam artefatos que se tornam mnemônicos (SHAW, 2002, p.14): condensações de experiências históricas, modos de agenciamentos, geografias e sensações ambientais que são significativos do ponto de vista do que foram ou do que são os mistérios. Esses espíritos ocupam as casas por certo período, assim como o fazem com o corpo das pessoas. Entram e saem desses dois lócus materiais ao longo do ciclo de vida de alguém. E é justamente no decorrer desses movimentos que é feito um esforço, geralmente solicitado pelos próprios espíritos, para fixá-los. Isso garantiria a estabilização e sedimentação do vínculo recíproco, e, posteriormente, a possibilidade de sua continuidade geracional. – O altar é um símbolo de atração... tranquiliza o cavalo, pois os mistérios estão na casa, ele não pode, o cavalo, trabalhar em outro lugar, São Elias me explicou durante a minha consulta, realizada com esse mistério depois daquele que foi um demorado encontro de trabalho com a cliente porto-riquenha na casa de Armando. Como me indicou São Elias, o altar funciona como um ambiente criado para permitir a efetivação da tarefa que cabe aos espíritos (e às pessoas). Por meio do altar, elas sentem-se sensibilizadas pelos espíritos, tranquilas, e por isso permanecem junto dos mistérios na casa.

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Espírito-Santo (2009, p.110), ao longo de sua tese, enfatizou que um elemento crucial do desenvolvimento da “pessoa espírita” em Cuba é que o mundo espiritual, para ser efetivo e ter uma existência produtiva, precisa ser recriado socialmente e materialmente pelos médiuns. “Desenvolver o morto”, como ela define, solicita que o médium externalize e potencialize, trazendo sob seu controle, uma rede de espíritos, da qual ele se torna parte à medida que possibilita que tais entidades possam exercer influência no mundo. Do ponto de vista social, a habilitação dos espíritos ocorre num processo de identificação que implica que outros percebam, testemunhem, confirmem e convençam futuros espíritas sobre a veracidade de tais entidades durante as chamadas missas espirituais. Do ponto de vista material, o ato de representar os espíritos através de imagens e bonecos é um procedimento fundamental para aquela habilitação, o que torna visível os guias espirituais do médium (ESPÍRITO-SANTO, p. 135). Para ela, “(...) os espíritos do médium, e assim, sua ‘pessoa’, devem ser trabalhados em interação social para serem eficazes e consequentes. A agência do espírito se expande quando é socializada e materializada em contextos sociais (ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.138). Assim como São Elias, Espírito-Santo indicou a importância dos processos de materialização dos mortos para o desenvolvimento do trabalho espiritual. A diferença entre ambos, eu diria, é que esse mistério chamou a atenção para a necessidade das pessoas terem próximas de si um símbolo (material) de atração. Enquanto EspíritoSanto (2009, p.154), apesar de reconhecer que os materiais (plantas, flores, álcool, velas, tabaco) utilizados nas missas espíritas encorajam os espíritos dos participantes a se deixarem ver e também funcionam como ferramentas que permitem a concentração e facilitam a incorporação espiritual, defende um argumento que me parece mais radical quanto a esses processos de materialização. [...] os espíritos tornam-se reais, tornam-se presentes, quando são colocados para trabalhar através do médium; e isso pode somente ser realizado via uma série de correspondências materiais [...]. Invocar um espírito é, em muitos sentidos, visualizar e materialmente representar ele, recriá-lo [...]. Um espírito simplesmente não existe, no contexto de uma missa, como também no contexto da vida, sem as condições com as quais ele pode efetivamente se manifestar (ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.155).

Do ponto de vista dos meus interlocutores dominicanos, por exemplo, a “realidade” e “presença” dos mistérios não passam necessariamente pelos processos de materialização que pretendem colocar os espíritos para trabalhar através dos seres

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humanos. Tais espíritos, enquanto entidades que remetem a relações familiares anteriores, não são criados, mas assumidos e atualizados no decorrer da vida de alguém. Espectros de relações prefiguradas, os mistérios, ainda que estivessem encerrados apenas sob essa forma, dificilmente teriam sua existência negada. Neste sentido, como observou Battaglia (1992, p.10) é uma “pessoalidade convergente”, que traz consigo relações históricas e sequências de comprometimentos de relações prefiguradas, que são produzidas com os altares para os mistérios. Ao dar saliência à observação de Espírito-Santo sobre a materialidade enquanto meio de objetificação dos espíritos que, de outra maneira, não poderiam existir, quero chamar a atenção para um aspecto que, na cosmologia dos mistérios, é central. Mas não exclusivo a essa cosmologia, como demonstram as etnografias de McCarthy Brown (2001) e Ochoa (2004). Esse aspecto é o seguinte: à medida que os altares geram uma forma de coabitação entre as pessoas e seus mistérios – fundada, sem dúvida, nos processos de materialização das entidades como Espírito-Santo discutiu – a tarefa de dedicar-se a interiorizar domesticamente os mistérios aparece como um ofício singular. Uma tarefa quase estética na qual são recriadas algumas divisões por meio da combinação de coordenadas espaciais e variações de gostos, inclusive aqueles eminentemente ambientais, assuntos que descreverei a seguir. McCarthy Brown, em sua etnografia sobre o vodu em Nova Iorque, destacou a importância da produção dessas ambientações para os espíritos por meio dos altares. Ao descrever um altar para a festa de aniversário do espírito Azaka, ela observou que, a partir de materiais exíguos, a família de sua interlocutora e ela mesma começaram a criar a impressão da densa opulência dos altares do vodu: seu “estado de ânimo”, seus ‘humores” (MCCARTHY BROWN, 2001, p. 41). A ambiência que se torna objeto de atenção dos seres humanos quando se dedicam ao ofício de construir altares para suas contrapartes espirituais é um assunto discutido também por Ochoa. Com base em seu trabalho de campo entre paleros e paleras, ele conceitua a proliferação dos mortos com os quais esses sacerdotes entram em contato e lidam como um “plano de imanência”. Chamado de kalunga, esses “mortos do ambiente” seriam como uma “atmosfera” ou “clima”, “zonas de alta e baixa pressão”, cuja influência saturada seria mais ou menos discernível corporalmente (OCHOA, 2004, p.50).

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Para ele, a inspiração das regras do palo é esse plano de imanência, os mortos do ambiente. Segundo ele, o palo ensina que o morto toma a forma e exerce suas influências em objetos exteriores a si, o que sugere que os mortos do ambiente e seus poderes de criação e decomposição podem ser encontrados em inúmeras formas (substâncias, objetos e na sua inexplicável dissipação). O morto do ambiente é sentido como uma força anônima, vaga e incrustável (OCHOA, 2004, p.51). Ochoa salienta que os antepassados familiares de sua interlocutora palera (e não aqueles mortos contidos nas ngangas) que respondiam às suas inquietações (e às dos clientes dela) eram simultaneamente frágeis. Eles necessitavam de assistência, pois poderiam desaparecer no vasto anonimato do kalunga. Esses mortos eram condensações momentâneas dessa atmosfera. Emergiam como

silhuetas, repentinamente e

iluminavam-se de uma massa anônima. “Os mortos são ofendidos com facilidade e são afugentados (...). Eles são facilmente esquecidos”, a palera lhe explicou (OCHOA, 2004, p. 57-58). Assim como Espírito-Santo, Ochoa observa que esses mortos familiares tornavam-se materiais sob a forma de fotografias, estatuetas e copos de água que compõem um altar espírita. Seu “lugar” é um pedaço do chão (pequenos rincões no interior ou fora da casa). E, talvez, porque essa seria uma maneira de estabelecer uma relação de contigüidade esses mortos, a terra, e a água, substâncias subsumidas dentro do kalunga, a atmosfera dos mortos (OCHOA, 2004, p.63, 65) Ochoa chama a atenção que esses rincões não seriam propriamente altares, na medida em que se configurariam mais como “lugares de profundo respeito”, ligados a uma fabricação individual e à intimidade de alguém com seus mortos familiares e não às regras de iniciação da ocha, que permitem a produção de seus imponentes tronos, e do palo, que levam à construção das não menos imponentes prendas ngangas. Ao fazer isso, ele indica a importância do que chama de “pequenas materialidades” (cinza, terra e trilhas de serragem de cupins na casca das árvores), formas do morto que são ubíquas na matéria e parecem inconsequentes, tanto para os pesquisadores quanto para os iniciantes do palo, que não lhe confeririam muito apreço. Nesse sentido, ele dá visibilidade não apenas aos espíritos, mas igualmente a uma “atmosfera” ou “clima” que na produção dos altares para os mistérios é aspecto fundamental. Não porque os mistérios são essas substâncias. E sim porque estar incrustados a elas é uma forma de recriar à sua existência, enquanto mortos ou de

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quando foram vivos. Nesse sentido, tais substâncias e esses espíritos não se separam de uma multiplicidade de ambiências. A partir da minha própria movimentação durante o trabalho de campo, também entrando e saindo da casa das pessoas, comecei a notar que os altares fazem mais do que atraí-las (e os mistérios) para tornar possível a realização do trabalho espiritual. Os altares são constituídos como certas paisagens de memórias espirituais (SHAW, 2002, p.56) em que terra, monte, rios e cemitérios condensam experiências de tempos diversas, violentas e conflitantes. Nesse sentido, essas paisagens também tornam visíveis formas de socialidade que descrevem associações, isolamento, braveza, rebeldia e indiferença, semelhantes àquelas sobre as quais me debrucei no final do segundo capítulo. Os altares de Gina e Armando são paisagens de memórias espirituais nesse sentido. Tais composições se expandiam à medida que refaziam ambientações: assumiam certa profundidade, variações de altura, temperatura e uma notória alteração de qualidades estéticas e de paladares. Nesses agenciamentos materializavam-se, além de espíritos discretos, também espaços de divisões, hierárquicos mesmo quando contíguos. Quando considero as diferentes perspectivas que surgem desses altares para os mistérios – variadas paisagens de memórias –, torna-se difícil, mas também pouco produtivo, sugerir que o morto ganha existência através dos objetos pensados como “[...] instrumentos de sedimentação espiritual [...] meios pelos quais uma presença espiritual na vida material e social do médium pode ser gerada, consolidada e mantida”. (ESPÍRITO-SANTO, 2009, p.160). Primeiro porque materializar mortos como os mistérios diz respeito a um processo de composição cuja intenção não é somente a objetificação de entidades discretas (um ou mais espíritos). O que está em jogo nessa tarefa é igualmente a possibilidade de trazer à tona a densidade de existências que não se alijam de incrustações espaciais. Logo, não é apenas o morto, ou antes, os mortos que os meus interlocutores dominicanos precisam materializar para trabalhar. As pessoas veem-se às voltas com o imperativo (às vezes insólito) de refazer também os ambientes geográficos sensíveis que fazem parte das paisagens de memórias dos espíritos. Segundo, porque materializar os mistérios a partir da atenção a variações de temperatura, profundidade, textura, odores e maximização de vitalidade (consumo) espiritual, significa que esses aspectos fazem parte de paisagens de memórias que

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recuperam nem sempre e obrigatoriamente espíritos individualizados que deveriam ser objetificados. Tais aspectos sensíveis são agenciados pelas ‘pessoas’ como certas formas diferenciadas de socialidades cristalizadas nos ambientes. Nesse sentido, esses ambientes funcionam como geografias espectrais não menos importantes que os próprios espíritos. 3.2 DIVISÕES INCRUSTADAS NA TERRA 3.2.1 Os guedeses e suas sensações Intrigada com a forma de conceituar o deslocamento espiritual dos mistérios, cujo resultado final é quase sempre a sua incorporação absoluta, como a parte final da descrição da chegada de São Elias mostrou, indaguei à Gina o seguinte: se os mistérios sobem, de onde eles o fazem. – Da terra, do ar, ela me respondeu. Terra e ar podem ser vistos enquanto duas coordenadas espaciais que delimitam mais ou menos os níveis intermediários em que os mistérios se localizam: seus mundos dentro do nosso mundo. Com isso, a montagem dos altares, tarefa da qual os mistérios também participam e que parece inacabável dada a infinidade de espíritos que uma pessoa pode montar,

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aparentemente diz respeito à organização de imagens,

substâncias e artefatos segundo o critério da variação de altura. Alto e baixo, assim, são dois marcadores espaciais que contam nesse tipo de composição. Nos altares que frequentei, por exemplo, é estabelecida uma separação entre os santos da terra e de cima. Na terra ou no chão, os meus interlocutores dominicanos dizem, estão os negros. São Elias/O Barão do Cemitério é conhecido como o chefe da divisão dos guedeses. Os guedeses são conhecidos como os espíritos responsáveis pelos mortos, tanto anônimos quanto familiares. E o Barão do Cemitério, como o seu cognato indica, estaria no cemitério. Geralmente as pessoas o visualizam nesse local como um homem trigueño (“mulato” cuja pele é escura). E, quando o veem aí, o cumprimentam. Para os meus interlocutores dominicanos, ele foi o primeiro homem enterrado em um terreno utilizado como campo-santo.85 Neste sentido, a primeira tumba fúnebre funciona como lugar de atenção e trabalho ritual para acionar São Elias. Ele mesmo, durante a minha consulta, enfatizou a sua especificidade em relação aos outros mistérios, insistindo que seu espírito é de um morto humano anônimo: – Eu me chamo o 84

Durante nossas conversas, Gina me dizia que há tantos mistérios quantos seres humanos no mundo. Já Renan comentou que a cada dez anos Armando se tornaria capaz de montar mais mistérios, se torna mais evoluído, e poderia montar mistérios do Egito. 85 Um palero cubano, interlocutor de Ochoa (2004, p.143), definiu assim esse espaço fúnebre: à noite, ele é chamado de “campo lemba”, o “campo dos mortos”; “campo santo”, durante o dia; e “campo finda” quando ele queria se referir ao cemitério de modo geral.

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Barão do Cemitério, espírito de um morto, tu me entendes [Ele me perguntou repetidamente, insistindo sobre tal condição], espírito de um morto, que cuida dos mortos em acidentes trágicos e…, mortos em acidentes de carro. Certo anonimato, que tangencia a indiferença (ou a indigência), na medida em que qualquer morto humano pode ser invocado como o Barão do Cemitério – um corpo enterrado em uma área que se transformou esse lugar em um campo-santo – caracteriza seu estatuto em relação a outros mistérios. Alguns desses espíritos, por exemplo, fazem, embora vagamente, alusão a um tempo – como o fez Anaisa ao dizer-me que trabalhou em negócio de madama. Outros recuperam pertencimentos nacionais e fragmentos narrativos sobre seus antigos modos de vida, como Ogun Balendyó Paradoxalmente, foi o próprio São Elias que chamou a minha atenção para o fato de que todo mistério tem uma cultura, uma origem e uma história. Muito embora as dele mesmo não tenham sido evocadas. – São Elias me pediu uma cobra, mas eu lhe disse que vou comprar uma de mentira. Eu tenho as crianças aqui... Esse foi o pedido que o mistério fez à Gina. Assim, ela recriaria para ele a geografia fúnebre em que esse mistério se encontra. Além disso, Gina ressaltava, quando lhe coloca como serviço ritual uma xícara com café, não deve lavá-la depois que esse mistério consome a bebida. Gina precisa passar a louça na terra e tornar a servi-lo: – São Elias gosta da terra, ela justificou. Isso faz com que sua imagem seja localizada no chão do altar. Já Raul, um amigo de Rosa que conheci na primeira estada em Porto Rico, ampliou as dimensões e as próprias percepções de São Elias em seu altar. Ao lado da estátua do santo – ele mesmo fez questão de chamar a minha atenção quando o visitei – havia um esquife, sobre a qual colocou uma panela com terra de cemitério. 86 Com a voz rouca e praticamente sussurrando, São Elias explicou-me porque usa talco na pele quando sobe. Ele gosta do frio, e possui a pele fria; por isso usa tal pó (que foi levado pela cliente porto-riquenha à casa de Armando) no rosto, cujos frascos podem ser encontrados ao lado de sua imagem nos altares. Com tal substância, esse mistério mantém sua adequada temperatura enquanto um espírito de um morto humano enterrado em um cemitério. Na terra, ou seja, no chão dos altares, os meus interlocutores dominicanos localizam ainda os mistérios guedeses chamados de Santa Marta A Dominadora e

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Caderno de Imagem do Capítulo 3. Imagem 9.

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Guedé Limbó, também considerados espíritos negros. Suas imagens sempre são colocadas ao lado da de São Elias. Enquanto conduzi o trabalho de campo, nunca escutei ser mencionado o nome espiritual com que essa metresa se apresenta quando monta seus cavalos. Contudo, Gina me disse que quando ela sobe, senta-se no chão. Cobras, também artificiais, são associadas à imagem de Santa Marta nos altares – alguns dominicanos dizem que ela é a virgem que dominou a serpente –, além de potes de mel, perfume, uma maracá feita de cabaça e um lenço em tons predominantes de roxo. Foi um tecido dessa cor que Gina envolveu ao redor da cintura da estátua de Santa Marta, provavelmente a pedido da metresa.87 Guedé Limbó, que nos altares aparece como a imagem de São Expedito, é um espírito cujo estado é o de fome permanente. Ele solicita dinheiro dos seres humanos, o que é colocado em um recipiente nos altares, óculos, sempre de lentes escuras, um chapéu e seu macuto, sacola de palha no interior do qual guarda esses diversos pertences, além de um lenço ou echarpe preto. É possível intuir a diversidade de espíritos que podem ser atendidos pelos meus interlocutores dominicanos observando somente a maneira como a divisão dos guedeses, formada por mais espíritos do que esses três que apresentei e conheci, é organizada: um espírito de um homem morto trigueño, a princípio desconhecido, e onipresente em qualquer local que tenha se tornado um campo-santo; uma mulher negra que teria sido capaz de dominar uma cobra e que a esse animal foi vinculada tanto em forma quanto em conteúdo dada as suas preferências alimentares, como discutirei adiante; um homem negro faminto que pede, sempre muito irritado, comida e dinheiro para serem guardados em seu macuto, sua sacola de palha. Essas imagens e artefatos vinculados a esses três guedeses são arranjados no chão dos altares por causa de seus gostos, como os meus interlocutores dominicanos comumente afirmam. No entanto, eles se tornam objetos mnemônicos que produzem não somente efeitos sobre os espíritos. Eles produzem também relações de contiguidade entre experiências sobre certos tempos (não necessariamente cronológicas) que remetem à pobreza e a um relativo isolamento social (o que inclui a possibilidade de indigência) de homens e mulheres negros em socialidades caribenhas. É como uma espécie de composição sincrônica que o altar materializa mais do que espíritos. São alguns indícios

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Caderno de Imagem do Capítulo 3. Imagem 10.

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e marcos de formas de socialidade que foram associados cosmologicamente como divisões que vêm à tona com essas composições.88 3.2.2 Escavar a terra, ver do mirante: as divisões índias Quando eu entrei na antessala do altar de Armando desculpando-me pela reação de Carlos quanto a São Isidro, o bairro em Canóvanas, ele me disse que não havia problema. Armando viu com naturalidade a reação do taxista e de certo modo a legitimou: – As pessoas se assustam, mas isso aqui é um campito, ele definiu. Entretanto, não empregou barriada, a barriada São Isidro, como Carlos repetidamente me dizia enquanto percorríamos o local. Como era a primeira vez que eu estava ali, Armando explicou-me que vivia nesse campito e que ali há gente de vários lugares. Ele, dominicano, Renan, que é porto-riquenho, e haitianos: – Para os mistérios é bom que eu viva num lugar como esse. Porque os mistérios gostam de umidade, de terra, de sentir o cheiro da terra, porque isso os atrai, eles sobem mais rápido. Além disso, esses espíritos gostariam de ter próximo uma árvore de guando, o que Armando plantou na área íngreme em frente à sua casa. Atrás dela, ele observou, havia um lago com crocodilo, peixes, caranguejos. E, Renan destacou, cobras. Por isso, Armando novamente repetiu, é bom para os mistérios que ele viva ali. Ele então exemplificou: em um lugar como aquele em que morava a dona da botânica em que Joana fazia as consultas – Armando também trabalhou ritualmente por certo período nela – uma urbanização na área metropolitana de San Juan, construída basicamente com cimento, torna-se difícil ele montar os mistérios: – Para os mistérios não é bom, Armando reafirmou, quando então direcionou seu olhar para um altar que estava à nossa frente, bem ao fundo da antessala, e explicou-me que ali o chão era, inicialmente, coberto com cimento. No entanto, ele precisou desfazê-lo para deixar que a terra ficasse exposta. Com essa desmontagem uma nova paisagem foi criada para os mistérios índios.89 Já no altar de Gina foi utilizada não terra e sim farinha de milho sobre a área do chão em que as imagens de índios se encontravam. Isso, contudo, a pedido de Ogun Balendyo. Esse mistério avisou-lhe que os espíritos dos índios gostavam de ter aquela substância perto deles. Uma particularidade do altar na casa de Gina concerne às imagens dos mistérios índios. São de importantes personagens históricos no confronto e 88 89

Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 11. Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 12.

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na oposição à invasão e ocupação espanhola durante o início do século XVI nas ilhas caribenhas, particularmente naquela que esses europeus chamaram de Hispaniola (parte do território que se tornou o Haiti no início do século XIX e depois a República Dominicana), e no que se tornou a Venezuela (especialmente a região centro-norte). As imagens foram localizadas em um nível acima do chão, em uma espécie de mirante. Nele, Gina arranjou os quadros da chefe indígena Anacaona, que teria vivido no que hoje é Léogâne (Haiti), do cacique Guaicaipuro (que habitava a região de Los Teques, na Venezuela) e de um espírito chamado de Negro Felipe. 90 Sobre aquela pedra, um pouco elevada em relação ao nível do chão, Gina (talvez também a pedido de Ogun Balendyó) sincronizou tempos e espaços referentes a grupos indígenas e negros diversos. Pequenos artefatos como uma coruja em miniatura em frente à imagem de um índio em posição de observação, uma guimba de tabaco, uma xícara de café, outra com uma espécie de tostado funcionam junto aos quadros como índices não apenas da presença, mas das próprias lembranças dos mistérios. Aquilo que permaneceu, para eles (nesse sentido, com eles), no decorrer de séculos e de ações seculares, no interior da casa de Gina. 91 Armando, por sua vez, preparava-se para começar a atender e trabalhar com o espírito da índia Anacaona. Quando ele me mostrou seu altar, percebi que havia uma boneca em um canto das prateleiras em que foram arranjados os quadros e estátuas dos santos. Fiquei curiosa. No interior do altar, esse era o único artefato sob a forma de uma boneca. Depois que sai dali, eu e Renan começamos a conversar na antessala. Pergunteilhe então sobre a boneca: – É a índia Anacaona. Armando lhe colocou esse nome porque como parecia uma indígena, um espírito a benzerá [santiguará] e se pode usar ela para trabalhar; coloca-lhe sua oferenda e se usa para trabalhar, Renan me respondeu. E em seguida ele indagou Luz: – Se busca um boneco e se pode colocá-lo como um espírito?, ele procurava confirmar o que me dissera. – Tem devoção ao boneco, Luz argumentou. – Há um mistério que se chama assim, e Armando colocou esse nome na boneca porque ela se parece com Anacaona, Renan reafirmou.92 Um pouco de grãos de milho e apenas moedas foram colocados por Raul diante de uma estátua de um índio no chão, assim como uma quantidade considerável dessas 90

Os dois últimos são cultuados junto com María Lionza pelos venezuelanos, e são chamados as Três Potências. 91 Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 13. 92 Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 14.

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peças cunhadas sobre seus braços, como se ele as segurasse. Além disso, várias fotografias de homens, mulheres e crianças índias, realizando atividades em aldeias e rios, foram reunidas em um quadro, posto ao lado da estátua. 93 3.2.3 Rebeldes da terra, do rio e do monte Além de terra, pedras de rios e água fluvial fazem parte da espacialidade dos mistérios índios. Durante o meu banho e despojo, o marido de Gina jogou os ramos das flores que foram utilizados no rio. Anaisa ficou extremamente irritada com o ato dele. E praticamente ordenou que ele retirasse aquilo das águas, pois ela não havia lhe pedido para fazer isso, o que deixa sujo, emporca o rio: – Eu não gosto de sujeira, da porcaria, ela esbravejou. Enquanto o marido de Gina argumentava que não sabia, procurando um galho para puxar os caules da água, Anaisa resmungava, repetindo que não pediu que ele fizesse isso, pois suja, e ela não gosta disso. Aborrecida, ela o chamou. Ele ainda procurava arranjar-se para retirar o que tinha lançado ao rio. Séria, disse-lhe que era a última vez que ele fazia aquilo. Então, Anaisa me olhou, pois percebeu que eu a observava: – Os índios não gostam que sujem a água, não se pode fazer isso, ela reafirmou. Pouco depois, a metresa ensinou a mim e à senhora porto-riquenha a pegar uma pedra do rio, levá-la para casa, pôr sobre a sua superfície algum pó (que eu não entendi o nome, talvez, farinha de milho), mel e uma vela branca. Ao ouvi-la indaguei se isso era para os espíritos guedeses: – Não, é para os índios, isso se chama otá. Os guedeses são espíritos que também podem ser encontrados nos rios. Foi isso o que Gina me explicou ainda nesse dia. Quando ela está em tal ambiente vê alguns guedeses sobre as pedras. Por causa disso, ela associa esses mistérios ao chão, à terra, no sentido de que os vê a partir desse modo de ancoração. Renan, o companheiro de Armando, quando me mostrou seu próprio altar, havia preparado um trabalho para Guedé Limbó como um meio de aplacar uma bruxaria que teria sido feito para o casal: em um recipiente de barro, Renan inseriu 7 pedras de rio, ele destacou, cobertas por um pó branco. Mas estar embaixo nos altares não significa necessariamente localizar-se próximo ao chão no mesmo sentido que isso é atribuído aos mistérios guedeses, pelo menos aos três mais populares entre os dominicanos (O Barão do Cemitério, Santa Marta A Dominadora e Guedé Limbó).

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Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 15.

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Nota-se isso com relação a um espírito que Gina atende, segundo ela, o velho Lengassu, 94 que no tempo dele era monge da Igreja, cuja imagem está no chão do altar ao lado de dois petroses, que Gina vê também sobre as pedras dos rios. Para ela, Lengassu é um dos três mistérios mais fortes. Sua imagem é a de São Cipriano e seu tempo e papel social recuperam um ambiente completamente distinto daqueles dos guedeses já descritos. Ao lado dessa imagem, Gina atende Ti Jean (São João O Conquistador), um espírito petro – também considerado muito forte por ela – mobilizado para trabalhar em conquistas amorosas. Outros petroses como São Marcos de Leon, para quem Joana vez ou outra jalava (fumava) um tabaco na botânica, e Jean Criminel, o terceiro da tríade mencionada por Gina, também têm suas imagens no chão. São Marcos de Leon é um petro a quem Joana dedica alguns trabalhos feitos para os clientes. Conforme ela, ele vive no monte. O espírito petro Gran Toroliza (Jesus da Boa Esperança) é atendido por Gina na parte elevada de seu altar, ao lado dos chamados santos de cima. Ele também vive no monte e sua imagem é a de um homem sentado em uma cadeira construída com estrados de madeira: – Ele é bem bravo, sobe no monte, em uma casa com palo [madeira, varas] atrás, fora da casa. Íamos até a escola de seus filhos, quando Gina me disse que estava na casa da irmã quando precisou ir até o quintal (patio) para que esse espírito montasse. Quando colocaram uma cadeira para esse mistério se sentar, o móvel se rompeu com o peso do espírito. – Ele é muito forte, ela salientou. Além dos guedeses, índios e petroses, pelos menos dois espíritos da divisão dos oguns têm as imagens também no chão. São João Batista está em um ambiente fluvial, assim como São Judas Tadeu. São Lázaro, considerado o espírito de um homem bastante idoso, Santo Antonio de Pádua, que se apresenta como Papa Legba, também um espírito idoso a quem se pede que abra os caminhos na invocação dos mistérios, estão no chão no altar de Gina, mas são vinculados à terra. 3.3 HORIZONTES EFÊMEROS: OS SANTOS DE CIMA E SEUS ARTEFATOS – Esse chapéu azul foi feito especialmente para ele, São Santiago, que me pediu. A capa e o chapéu se parecem com os do quadro de São Santiago. São Santiago, ele conheceu Colombo [Cristõvão Colombo], tinha conexão. Ele é muito antigo, vem por gerações, vivia em Madri, Espanha. Esse vermelho é de Papa Candelo. Eles querem

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Provavelmente o loa (espírito) Linglessou, a que faz algumas referências Métraux (2007).

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sentir-se vivo, querem se ver como eram antes em cabeça humana, se vestiam assim antes. Eles viviam assim com essa roupa. 95 O chapéu confeccionado com um brilhante tecido azul para São Santiago Apóstolo/Ogun Balendyo e o de palha pintado de vermelho para Candelo Sedifé pendurados na parede do altar de Armando, enquanto objetos mnemônicos, reelaboram para esses espíritos suas antigas experiências em vida. Foi também no encontro com outro artefato que Ogun Balendyó alcançou, por alguns instantes, a sensação de ser novamente vivo: – Agora sim eu me sinto como a pessoa que eu era, esse mistério reagiu ao ter em suas mãos uma espada, com uma longa lâmina e punho de metal, em estilo medieval, dada a ele de presente por Luiz, amigo jamaicano de Gina. – Isso é bonito, o rapaz me falou ao me contar como Ogun Balendyó se sentiu ao receber o objeto. Candelo Sedifé, no altar da casa de Gina, também possuía seus objetos de lembrança. E um deles pode lhe ter servido como uma arma bélica. Trata-se, no entanto, não de uma espada, mas de um machete, seu facão do mato. Tal ferramenta é associada pelos dominicanos a uma árvore chamada de caoba.96 Certa vez uma cliente dominicana foi até a botânica em que Joana fazia as consultas, procurando por um pedaço da madeira de uma árvore conhecida como caoba. Ela dizia à Joana que se encontrava muito salgada... que tudo que tem que comprar me dá um trabalho [una brega]. Joana, entretanto, negou-se a cortar com um facão o tronco da caoba para vender-lhe. Argumentou com a jovem que não se atrevia a fazê-lo. A cliente, então, ela mesma o fez. E ao separar o pedaço que compraria, fez outro pedido à Joana: – Me dá um refresco [refrigerante] vermelho desse... pra meu velho... pra meu velho! Joana depois me explicou que a Candelo lhe encanta essa árvore, cujo tronco exala um cheiro semelhante ao de menta. As pessoas acenderiam a caoba para Papa Candelo, pois a madeira entra em combustão rapidamente, e adicionariam um pouco de incenso. Além disso, poderiam utilizá-la nos banhos para as coisas más – provavelmente foi isso que a jovem dominicana fez, pois se dizia salgada (sem sorte) – e para os trabalhos, nos quais são misturados a madeira da caoba e o incenso com um pouco de gasolina. Isso faria com que a resina da madeira fosse liberada, o que depois

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Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 16. Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagem 17.

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de certo tempo serviria como um tipo de emplastro a ser colocado sobre os ossos do corpo daqueles que sofrem com artrite. Apesar de sua imagem nos altares ser a de São Carlos Borromeu, sua estátua é a de um senhor negro. Ele fuma cachimbo, carrega consigo um cesto, além de seu facão e segura o crânio de um animal. Renan foi quem chamou a minha atenção para essa dissociação entre a imagem do santo e a estátua. Ele explicava-me que embora o quadro de São Carlos Borromeu (um santo branco) do altar de Armando ser Papa Candelo, esse mistério era na verdade preto. – Preto não, trigueño, ele se corrigiu. Renan fez então com que eu olhasse para a estátua e observasse a diferença que me assinalou. Antes disso, Armando já havia comentado que Candelo Sedifé fala patuá, embora ele mesmo não saiba a língua: – O espírito fala assim porque ele traz as raízes africanas da época em que viveu, de suas origens africanas, ele ressalvou. Ogun Balendyó e Candelo Sedifé são considerados santos de cima pelos meus interlocutores dominicanos. E suas imagens ficam, geralmente, sobre uma mesma mesa. Mas quando os altares são organizados sob a forma de uma escada (para Gina essa seria a maneira correta) ou ainda semelhante a uma pirâmide, Candelo Sedifé é localizado em um nível abaixo de São Santiago/Ogun Balendyo. Nos altares, acima desse patrón estaria apenas São Miguel Arcanjo, considerado geralmente o chefe da 21 Divisão. Em ambos os casos, as metresas, espíritos femininos, estão ao lado desses três santos de cima. Anaisa a Pié/Santa Ana, como já salientei, viveu como uma prostituta, e é localizada ao lado de São Miguel. Metresili é tida como a esposa de São Santiago (cuja união teria ocorrido quando vivos). Para Gina, são os únicos que foram casados mesmo, em seu tempo. Candelina ou a Virgem da Candelária é posicionada ao lado de Candelo Sedifé.97 Os espíritos arranjados na parte elevada dos altares em relação ao chão cristalizam experiências que evocam o fluxo de pessoas e de mercadorias. Além disso, ambientes mais urbanos. A exceção entre esses santos de cima seria Candelo Sedifé. 98 Os gostos das metresas Anaisa e Metresili, que são geralmente tidas como, respectivamente, mãe e filha em vida, são por produtos que incorporaram estilos de vida aburguesados, consumidos para um tipo de embelezamento considerado adequadamente

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Caderno de Imagens do Capítulo 3. Imagens 18 e 19. E talvez de Candelina, que às vezes é vista como a Baronesa do Cemitério, mas pouco é dito sobre ela.

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feminino, como o uso de perfumes, talcos 99 e jóias. E Anaisa expressa ainda o cultivo da escrita, leitura e declamação de poesia como hábito de lazer. São Miguel Arcanjo/Belié Belcan e São Santiago Apóstolo/Ogun Balendyo também desenvolveram a prática da escrita, e são retratados por Joana como homens brancos de olhos claros, que se locomovem a cavalo, e portam suas conhecidas e cultuadas espadas. 3.4 AS COORDENADAS DAS SUBSTÂNCIAS E DOS MODOS DE SERVIR As substâncias alimentares ocupam um lugar central nas prestações rituais oferecidas aos mistérios. A qualidade dos alimentos inseridos nos serviços, contudo, demonstra uma etiqueta ritual quanto ao que dever ser dado aos espíritos e de que maneira as pessoas devem fazê-lo. Não somente os artefatos, mas igualmente os alimentos produzem uma série de efeitos sobre os mistérios. Desse modo, ao serem arranjados nos altares é importante que se esteja atento a algumas diferenças de paladares e estilos de servir: lidar com esses sentidos de gosto nos ambientes domésticos é refazer com a comida e certos artefatos a separação entre os chamados santos de cima e os debaixo. Para os guedeses, Joana me explicou, prepara-se o que os dominicanos chamam de moro de arroz con habichuelas negras (combinação de arroz com grãos de feijão preto) e arenque (um tipo de peixe). Junto a essa refeição, inclui-se um pão circular feito com farinha de mandioca (casabe) e ovo cozido. Joana ainda destacou que esses alimentos devem ser servidos no chão do altar e em recipientes específicos: – Eles gostam de comer na figueira [higuera]. E justificando a preferência por esse tipo de cabaça, ela continuou: – Eles gostam do chão, da terra, não gostam do luxo. Há mistérios que gostam do luxo, mas os guedeses não. Eles gostam de comer na figueira (higuera), que se fume seu tabaco... São Miguel e Anaisa gostam da finura, gostam de bolo. Uma vez Gina chamou a minha atenção para o fato de que Santa Marta A Dominadora gosta de ovo cru (gema e clara), além de café, leite e tabaco. Para Gina, esse paladar se explica porque se trata do mesmo que o da cobra, animal a que essa metresa se hibridiza. Joana também salientou que Santa Marta fuma tabaco, aliás, seria a única das metresas que tem esse hábito. Além de solicitar que seja servida pelas

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Por razões completamente diferentes do que se passa com São Elias/Barão do Cemitério.

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pessoas com berinjela crua. Nessas refeições para os guedeses, geralmente se acende uma grande vela (da cor que representa esses espíritos) no centro dos recipientes. A finura salientada por Joana quanto às preferências alimentares de São Miguel e Anaisa associa-se não somente a diferenças de qualidade e textura das substâncias que lhes devem ser oferecidas quando comparadas àquelas dadas aos guedeses. A finura desses mistérios (e o não gosto pelo luxo de outros) é uma coordenada que se materializa na mobília do próprio altar: seus alimentos são servidos à mesa. No altar que Renan organizou para esses santos de cima, em uma prateleira presa à parede de seu quarto de dormir, a uma distância considerável do chão, uma taça grande com cerveja estava em frente à imagem de Santa Ana/Anaisa, que solicita também frutas. Em frente à de São Miguel, havia uma pequena cruz de madeira enrolada em duas fitas (vermelha e verde) e um prato com balas, doces e pedaços de pão (que não era casabe) em cima. Balas, doces e bolos são considerados pelas pessoas alimentos vinculados a certo refinamento social. Alimentos que não pedem muita elaboração no preparo, mais artesanais, e crus caracterizam a alimentação oferecida aos guedeses. E apesar de vários mistérios masculinos gostarem de bebida alcoólica, especialmente o rum, como Gina observou em uma ocasião (e o gim, do gosto do Barão do Cemitério), o café, por exemplo, é preferido por alguns e se liga a uma percepção de força dos espíritos que o pedem. Cerveja é a bebida colocada para Anaisa. Já o refrigerante vermelho Country Club é a bebida da preferência de Metresili, que pede sempre que se acenda uma vela sobre a garrafa, cujo acúmulo de cera derretida pelo calor se vê nos altares de Gina e Armando. Outro refrigerante, o Malta India, é oferecido a Santa Marta, que solicita também uma vela acesa sobre os potes de mel e de malta ao lado de sua imagem. 3.5 MANIPULANDO SOCIALIDADES Há trabalhos para unir, para separar, para trazer um homem que saiu de casa, para uma pessoa criar ódio e asno em relação à outra. Nesses trabalhos se levam muitas classes de coisas (Joana, 28/10/2010, Río Piedras, San Juan).

Um assunto que vem perpassando esse capítulo (e também parte do segundo) é a profusão de substâncias e objetos que são introduzidos e combinados nos altares. Como procurei chamar a atenção, a manipulação de substâncias e objetos indica uma série de efeitos que são atribuídos a essa materialidade. Ela é capaz de gerar apreço estético e lembranças, de vitalizar os seres humanos e suas contrapartes espirituais, de recuperar odores e sensações térmicas, de ativar, intensificar e tranquilizar disposições.

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A compreensão de que os alimentos fortalecem os humanos e os espíritos – e nesse sentido criam domínios de semelhança e partilha entre vivos e mortos – é um princípio da atenção e do trabalho ritual cujos desdobramentos são vários: os alimentos garantem a reprodução, na medida em que vitalizam, porém são capazes de mais. É possível criar disposições nos espíritos para que se movimentem e trabalhem. Nesse sentido, as substâncias ativam. Mas é também possível intensificar ações de trabalho através da manipulação de substâncias químicas como o azouge ou de acalmar com o açúcar. Nesse sentido, as substâncias alteram. Um aspecto diacrítico da manipulação de substâncias diz respeito aos gostos (e como será visto no próximo capítulo, aos odores). McCarthy Brown (2001, p.41-42) chamou a atenção para isso em suas descrições de um altar vodu para o espírito Azaka. Alguns espíritos preferem comidas picantes, outros consomem somente aquelas doces. Alguns ingerem bebidas alcoólicas, o que outros já não fazem. Atenta aos paladares dos vários espíritos servidos por Mama Lola, sua interlocutora haitiana em Nova Iorque, McCarthy Brown destaca que certos alimentos têm, nesse sentido, a capacidade de lembrar. Ao reunir uma mesa de comidas simples para Azaka, os haitianos em Nova Iorque procuram evocar uma culinária de uma época mais simples [...]. Em Nova Iorque, os caules de cana de açúcar e o pão de madioca (cassava) usados como dispositivos mnemônicos são difíceis de encontrar e caros (MACCARTHY BROWN, 2001, p.42 grifo da autora).

As substâncias e os objetos oferecidos aos espíritos podem ser pensados como artefatos mnemônicos como procurei discutir. Muito embora sejam mais os mistérios e menos os meus interlocutores dominicanos que façam referência a essa materialidade como meio de lembrança. Os últimos não falam em termos de memória, antes, de sua tarefa de criar ambientações, sensações e lembranças, para os mistérios. Como salientou Graeber (1997, p.377), quando se referiu aos rituais famadihana entre os “brancos” Merina, em Madagascar, os corpos dos mortos eram retirados periodicamente das sepulturas para serem revestidos em novo tecido como um meio de lembrar os mortos, mas também foram reduzidos à poeira para que seus nomes fossem esquecidos e encerrados novamente às sepulturas. Para os “brancos” Merina, a memória dos ancestrais era vista como uma forma de imposição sobre os vivos, sentida como uma “forma de violência”. Nesse sentido, eles manipulavam ritualmente os corpos dos antepassados para fazer com que fosse mais fácil esquecê-los.

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No entanto, gostaria de sugerir que a materialidade dos altares para os mistérios não se reduz apenas a uma espécie de dispositivo que afeta os espíritos trazendo à tona as suas lembranças, como mencionou McCarthy Brown. Procurando especificar um pouco mais a maneira como eu penso os artefatos mnemônicos, gostaria de sugerir que, através desses modos materiais de lembrar, no limite, das próprias paisagens de memória espirituais, as ‘pessoas’ engajam-se ativamente (e criativamente) com “coisas” que cristalizaram conhecimentos sobre formas de viver, de agenciamentos e de produzir sensibilidades. A imagem da conversa entre Joana e a cliente dominicana que buscava um pedaço da caoba (árvore) na botânica, em que a primeira afirmou à jovem que não se atrevia a cortar o tronco, parece-me reveladora do que podem recriar, para as pessoas, os fragmentos e porções do que são artefatos mnemônicos para os mistérios. Mesmo com sua recusa em tomar para si um facão do mato – o que a jovem cliente o fez –, Joana mobilizou esse artefato e reconstituiu certa paisagem campestre, na qual era possível ativar certo odor suave (de menta). Força, robustez, certa dose de destemor aliada ao risco de ferir-se (e virtualmente de agredir), mas também conhecimentos sobre formas de cura foram associados em um agenciamento aparentemente comercial no interior de um espaço como a botânica. A profusão de efeitos a que fiz referência mais acima poderia ser o resultado da manipulação (ou obliteração) daquilo que se sedimentou como socialidades, de modo fragmentado, indireto ou oblíquo, mas que mesmo assim informa sobre as relações coletivas. Proponho que são justamente variações de temperatura, profundidade, textura, odores, sabores, e maximização de vitalidade (consumo) espiritual que são apropriados no cotidiano pelos meus interlocutores dominicanos como aspectos materiais e sensíveis que informam sobre agenciamentos coletivos. Aquilo que é doce suaviza, acalma. Neste sentido, pode funcionar como “arma” de controle no sentido de que tem o poder quando, devidamente combinado, para alterar disposições. – Armando está me ajudando a adocicar meu marido, a cliente portoriquenha me falou. – Eu também faço trabalhos de amor, São Elias me informou depois de recebê-la no altar. – As maças são porque no rio há mistérios rebeldes, e eu preciso adocicá-los, Ogun Balendyó explicou. Joana, como mencionei no segundo capítulo, quando era constrangida por alguém que via com maus olhos o fato de ela trabalhar os mistérios, reagia dizendo que gosta de fazer trabalhos doces. Com isso, ela não se negava a tentar alterar as

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disposições daqueles que eram os alvos de seus clientes. Apenas fazia isso, geralmente, engajando-se com substâncias e técnicas mais agradáveis, apropriando-se da maneira (ou das armas femininas) como trabalha Anaisa. A metresa que estava sempre metida na botânica junto à Joana. Aquilo (ou aqueles) que revela um paladar mais adstringente pode significar capacidade de resiliência, e, assim, ser sinônimo de força. Aos santos mais fortes, Joana oferece bebida alcoólica como uísque e rum não apenas porque esses espíritos gostam, mas porque através desse líquido ela incita-os a manifestar essa força violentamente em cenários rituais masculinos de combate. Simultâneamente a isso, Joana crava a espada de São Miguel na mesa do altar. Desse modo, a maximização dessa substância pelos espíritos, para ela, seria extrema. Enquanto produto líquido resultante da fermentação da cana de açúcar, a bebida alcoólica (uísque, rum, gim) torna-se uma substância modificada daquilo que os interlocutores concebem como algo capaz de controlar por meios suaves. Como bebida fermentada, o álcool pode criar agitação e efervescência nos mistérios, ativados ritualmente para agredir os inimigos de Joana. A recusa que Gina e Joana expressavam em manipular sangue nos serviços e trabalhos relacionados ao petroses tem a ver com o efeito que tinha sobre elas a maneira como esses espíritos agem. Ameaças de pendurar potenciais inimigos na parede e furá los com uma faca (cuchillo), como Jean Criminel explicitou à sobrinha de Joana que se negou a dar-lhe bebida, ou de agressão levando alguém à morte, como me falou Gina sobre o petro que lhe diz mata, mata, são imagens momentâneas, fragmentadas, do que para Gina e Joana em um tempo configuraram-se como ‘relações’. – Quando o cavalo quer me dá sangue com açúcar, São Elias me disse. Misturando o que confere vitalidade com aquilo que informa sobre docilidade, Armando manipulava essas duas substâncias tendo o cuidado para modular adequadamente a sua relação com esse mistério. Ele decide em que momento oferecer a substância a São Elias. E não esse mistério – que deixou isso explícito para mim – lhe pedia como fonte de sua satisfação principal. O sangue, como substância ritual, é um elemento diacrítico não apenas na atenção prestada aos mistérios. Como discuti no segundo capítulo, esses espíritos, quando evidenciam seus aspectos contratuais e de pagamento nas relações com suas contrapartes humanas, aproximam-se das descrições sobre as práticas religiosas das regras del palo. No palo, a oferta dessa substância caracteriza a preferência alimentar

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das ngangas, que, como Ochoa (2004, p.130-131) descreve, é necessária para manter a prenda “úmida”. Além disso, diariamente, outras substâncias deveriam “esfriar” esses objetos compósitos nas regras del palo: luz de vela, aguardente e fumaça. “Esquentar” e “aquecer” as ngangas são procedimentos rituais que, de acordo com Ochoa, criam efeitos que as ambientam de forma apropriada – sem gerar a revolta pela negligência ou inadequação de sua alimentação – no interior das casas dos sacerdotes e iniciantes do palo. Para isso, ele destaca, outras substâncias são manipuladas como terra, por causa dos odores e temperatura que recria. As prendas de Isidra eram bem cuidadas e alimentadas. Cobertas com penas brilhantes, mantidas úmidas com úmidas com aspirações de aguardente e vinho branco seco. Ela guardava as prendas em um armário, sobre a terra que tinha trazido de sua cidade. Um grande depósito de cera derretida nos tijolos demonstrava que ela acendia as velas regularmente. Mantidas úmidas por suas libações diárias, suas prendas cheiravam como coisas da terra, frias e úmidas, como o solo que se liga às raízes de plantas, como uma cavidade úmida nos ossos da terra. O cheiro delas era profundo e direto, denso, úmido e real (OCHOA, 2004, p.132).

Essa compreensão sobre a interiorização de terra nos altares como uma substância capaz de gerar uma ambientação caracterizada por um cheiro específico e uma temperatura úmida percorreu as descrições dos altares de diferentes divisões dos mistérios. McCarthy Brown (2004, p.36-37) também destacou a importância dessa substância, quando considerou que os templos vodu nas cidades haitianas mantinham os adeptos em contato tátil com um chão de terra batido, local em que eram feitas as libações para os espíritos. Entretanto, a autora vê tal manipulação como a retenção de um “vínculo simbólico com a terra”, uma espécie de adaptação que restabelece nos templos urbanos famílias (religiosas) para os migrantes rurais que, deslocados, perderam suas terras familiares e as redes de convívio e apoio dos parentes. Mas a partir das descrições que apresentei sobre as divisões enquanto paisagens de memórias espirituais é interessante perceber o que há de “simbólico” nessa manutenção do chão sem revestimento nos templos vodu nas cidades haitianas. A terra, como McCarthy Brown sugeriu, revela um vínculo expressivo dos haitianos com as propriedades fundiárias. E por isso mesmo, seria também factível pensá-la como uma substância ou uma parte da paisagem que poderia reverberar mundos também habitados por espíritos, o que altera tanto o sentido de propriedade quanto do imperativo de ter de recriar esses mundos ritualmente. O foco deixa de serem as relações mundanas entre as

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pessoas, para que se possam esmiuçar as relações entre pessoas e espíritos transitando e fixando-se em variados mundos. As prendas da Casa [de palo mayombé] estavam assentadas em um pedaço de madeira compensada. A proibição das prendas permanecerem no azulejo ou cimento foi assim observada. As prendas extraíam força da terra. Sua verdadeira casa é a solidez secreta do monte e se elas pudessem ter seu caminho, elas se aninhariam enterradas um pouco na terra sob as raízes de antigas árvores, ceibas ou jagueys, perdidas na floresta. Sendo isso impossível em Havana, a maioria das prendas encontra-se em armários em camas construídas de terra do interior. Qualquer coisa é melhor do que o azulejo ou cimento, e quando não há outra opção o compensado é a melhor opção (OCHOA, 2004, p.154).

Outro elemento diacrítico diz respeito ao gosto pelo refinado e rude atribuído a alguns mistérios. O que, eu sugiro, poderia ser uma maneira singular que os meus interlocutores dominicanos empregam para mapear a domesticidade e o isolamento (e o espectro da rebelião) enquanto formas de relacionamento, quando lidam com certos vestígios materiais das paisagens espirituais. Alguns mistérios, como Santa Marta, transitam pelo domínio doméstico e por aquele que lhe é exterior. Ela sobe como cobra, mas, quando se incorpora totalmente, é capaz de cozinhar nas casas. Apesar de ser vista desgrenhada, Joana certa vez me disse referindo-se à imagem da metresa (ao seu cabelo volumoso e crespo), Santa Marta é uma mulher fina. Não completamente estranha à casa enquanto uma forma material que informa um padrão doméstico de convívio, ela é capaz de se interiorizar nela, embora chegue até aí rastejando, como um animal que vem de fora. São Elias também flerta com essas imagens de domesticidade e isolamento. Ele se apresenta vestindo uma capa preta com uma cruz branca, que reinscreve seu estatuto de morto humano anônimo. Chegando sob tais condições de um cemitério, esse mistério é aterrado nos altares, solicita maximização de consumo e assim se interioriza na casa e na família. Já Gran Toroliza, o espírito petro que vive no monte demanda que seu cavalo saia do interior dos ambientes domésticos. É fora deles, junto a madeiras e varas (palo) e cercado pelo mato no quintal, que esse mistério não simplesmente se materializa, mas também se ambienta. Sentado em uma cadeira atrás da casa, área externa transformada em seu monte, ele destrói com seu peso a mobília doméstica. Nessa imagem que Gina me ofereceu, a des-familiarização desse espírito petro com formas materiais domésticas parece assumir um lugar importante. 100

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O que não impede, como demonstrei no primeiro capítulo, que mistérios como Grand Toroliza, sejam uma herança familiar.

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Como discuti no fim do segundo capítulo, a partir das considerações de Palmié, o monte ou a (manigua) era a região de bosque, às vezes montanhosa, de acesso difícil em que os escravos fugidos (cimarrones) estabeleciam-se e organizavam os enfrentamentos contra os poderes coloniais. No entanto, como Palmié chamou a atenção, apesar de seu isolamento geográfico da sede metropolitana colonial, na manigua dos fins do século XIX, em Cuba, o que ocorreu foi a transformação de um assentamento maroon, os chamados palenques (construções erigidas com tábuas de madeira e galhos), em um campo rebelde entricheirado contra o ataque de tropas espanholas. Parece-me que são fragmentos do palenque, vestígios de suas construções isoladas no meio do mato, que Gina recupera ao delinear a imagem do bravo Gran Toroliza e seu ambiente. E, talvez, menos do campo maroon de luta contra o domínio colonial explorada por Palmié. O que não impede que outros espíritos também habitem o monte. Mas o monte não é refeito atualmente somente por causa desses espíritos discretos, bravos e rebeldes, em sua paisagem. Enquanto uma geografia caracterizada pelo que Palmié chamou de dispositivos técnicos ou armas empregadas pelos escravos fugidos na manigua – o envio de espíritos ao território inimigo para revelar informações importantes –, o monte parece ter sido reelaborado atualmente no interior das casas e botânicas. As ténicas e armas que nele vigoram assumem, com isso, a forma de bruxaria. Nas casas e botânicas, os meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos descrevem a chegada de espíritos enviados por inimigos para causar-lhes danos. Seres invisíveis que entram sem invocação ritual sob o comando de terceiros: – Estão atirando-lhe [tirandole], eu ouvia quando alguém queria dizer que era alvo da ação de espíritos ou pós lançados como bruxaria. Mobilizando um idioma de guerra, Rosa e Joana manipulavam substâncias cujos efeitos cristalizam alguns modos de fazer dispersar. São essas técnicas que pretendem afastar espíritos invasores que serão descritas no próximo capítulo. 3.6 SINCRONIZAÇÃO E HIERARQUIAS Ao dizer que os altares materializam indícios e traços de formas de socialidade que foram associados cosmologicamente sob a noção de divisão, procuro indicar que os mistérios se diferenciam sob o critério de uma oposição mais explícita entre aqueles santos que são da terra e aqueles santos que são de cima.

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Essas coordenadas espaciais condensam hierarquias (alto/baixo) entrecortadas por regimentos intermediários, os grupos de mistérios mais ou menos horizontais, que se espaçam, sem com isso perderem especificidade. A forma da pirâmide a que Gina fez referência, e que observei em alguns altares, é uma imagem que poderia corresponder inicialmente a essa composição. Observar os altares desmonta, em certo sentido, a pirâmide. No entanto, os enquadramentos espaço-temporais que descrevi revelam uma multiplicidade de perspectivas sobre o que significa tomar a terra como uma forma de socialidade e pertencimento. E o mesmo se passa na superfície plana das mesas afastadas do chão. Sobre as mesas habitam espíritos guerreiros, cujas armas, indumentárias pessoais e imagens informam que as guerras que eles lutaram em vida provavelmente não foram as mesmas. Seus tempos e espaços eram outros, assim como aqueles que guedeses, petroses e índios solicitam que sejam recriados no chão. Cosmologicamente tudo isso foi sincronizado, e cada um desses tempos e espaços se torna uma perspectiva a ser considerada para as ações rituais das divisões. É neste sentido que falo de sincronização ou relações de contigüidades criadas pelos altares. Ainda assim, é interessante ressaltar que são espíritos masculinos guerreiros que se apresentam à frente de uma divisão. E se ao lado deles estão as metresas, atrás legiões de soldados ou auxiliares, com quem esses chefes trabalham, parecem estar mais ou menos à sua disposição. No chão, os campos de lutas parecem ter sido diferentes. Os espíritos geralmente são concebidos como índios e negros, dos rios e do monte. O mesmo se dá com os combates planejados sobre a mesa. McCarthy Brown (2001, p.37, 45, 61, 68) observa que diferente de Azaka, espírito servido por Mama Lola, sua interlocutora haitiana em Nova Iorque, Ogou, “identificado”, conforme a autora, com o santo católico São Santiago (Saint James), é um espírito que torna a antiga história urbana do vodu mais aparente. No altar preparado para a festa de aniversário de Azaka (um homem da montanha), sua comida foi arranjada abaixo da mesa mais ampla, cujos alimentos seriam oferecidos a outros espíritos. Um chapéu de palha, seu macuto (makout), uma garrafa de rum com um laço de ervas ao redor, e “uma camisa azul de brim feita especialmente para ele”, sua interlocutora destacou, foram separados para o momento da chegada do espírito. Para McCarthy Brown, Azaka aponta para a importância das “raízes da terra” enquanto Ogou para uma dimensão mais urbana do vodu. Por isso seria um erro ver o vodu como uma religião agrária que se tornou precária quando se

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deslocou para as cidades. Quando Mama Lola planejou interromper as festas em Nova Iorque para seus espíritos, e realizá-las a cada três anos no Haiti – o que significaria que Ogou não teria a sua festa de aniversário – os espíritos lhe disseram: “Não! Faça uma mesa”.

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CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 3) Imagem 9. Altar para os mistérios na casa de Raul. Divisão dos guedeses. À direita, São Elias com seu serviço ritual e alguns artefatos fúnebres – casabe, arenque, ovo cozido e arroz com feijão; esquife e recipiente com terra de cemitério; ao centro, Santa Marta A Dominadora. Hato Rey, San Juan, abril de 2010. Foto: Alline Torres.

156 Imagem 10. Altar para os mistérios na casa de Raul. Serviços para os guedeses São Expedito/Guedé Limbó (à esquerda) e Santa Marta A Dominadora (à direita): casabe, berinjela, ovos cozidos e arroz com feijão, alguns dentro de cabaça; mel e Malta India, além das grandes velas e frascos de talco infantil. Ao fundo, à esquerda, um quadro de São Marcos de Leon, um espírito petro. Hato Rey, San Juan, abril de 2010. Foto: Alline Torres.

157 Imagem 11. Altar para os mistérios na casa de Armando. Divisão dos guedeses: São Expedito, São Elias e Santa Marta A Dominadora, santos da terra, e alguns trabalhos e serviços rituais. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

158 Imagem 12. Altar para os mistérios índios na casa de Armando, que escavou a terra sob o chão e as paredes para ambientar esses espíritos. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

159 Imagem 13. Altar para os mistérios índios contíguo aos espíritos guedeses (à direita, serviço ritual para São Elias: casabe, café e água; e moedas para Guedé Limbó/São Expedito) e a outros mistérios do rio. No chão, farinha de milho, substância sensível para os espíritos índios. À direta, Eleguá. Ao centro, caldeirão ritual envolvido pelos pañuelos (lenços). Casa de Gina, Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

160 Imagem 14. Boneca que seria transformada ritualmente no mistério Anacaona (índia). Atrás desse artefato, a imagem de um mistério índio, ambos próximos ao chão. Casa de Armando. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

161 Imagem 15. Mistério índio, cercado por alguns artefatos, e contíguo a São João Batista, um ogun, e a miniaturas de galos (talvez, sinalizando a presença de Ogun Ferraile); ao fundo, Yemaya. Casa de Raul. Hato Rey, San Juan, abril de 2010. Foto: Alline Torres.

162 Imagem 16. Chapéu em tecido azul confeccionado para São Santiago/Ogun Balendyó, e vermelho, em palha, para Papa Candelo (Candelo Sedifé). À esquerda, imagem de uma deidade hindu. Altar para os mistérios na casa de Armando. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

163 Imagem 17. Artefatos de Candelo Sedifé: machete e um tipo de sacola (macuto). À frente do machete, o quadro de São Carlos Borromeu, que representa Candelo nos altares. Casa de Gina. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

164 Imagem 18. Santas de cima (metresas): ao centro, da esquerda para a direita, Virgem A Dolorosa/Metresili, Santa Ana/Anaisa, e Virgem de Alta Graça; à direita, a imagem de Gran Toroliza/Jesus da Boa Esperança, espírito petro do monte, sentado em uma cadeira de paus de madeira tendo à sua frente um copo de vidro e abaixo uma nota de dólar. Altar para os mistérios na casa de Gina. Río Piedras, San Juan, fevereiro de 2011. Foto: Alline Torres.

165 Imagem 19. Altar para os mistérios com os santos de cima na casa de Raul. Hato Rey, San Juan, abril de 2010. Foto: Alline Torres.

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CAPÍTULO 4 APROPRIAÇÕES E SUBVERSÕES ESPIRITUAIS Na segunda manhã, quando Clarke e Wade iam de carro para o hospital de Nkisa, encontraram um despacho ao lado da estrada. Era comum que vissem esses sacrifícios na estrada e não costumavam parar. Mas este chamou-lhes a atenção por sua extraordinária fartura. Wade parou o carro, e os dois desceram para ver de perto. Em vez do costumeiro frango branco, havia dois grandes galos. Os outros objetos eram habituais: novas e amarelentas frondes de palmeira, cortadas do topo de árvore, uma tigela de barro com dois pedaços de nozde-cola e um pedaço de giz branco. Contudo, os dois homens só viram esses objetos depois. No que eles puseram o olho imediatamente, ao chegar perto do despacho, foi no florim inglês. – Ora essa! – exclamou Wade. – Realmente, isso é muito estranho. Um sacrifício dos mais extravagantes. Eu me pergunto qual será o significado de tudo isto. – Talvez seja pela recuperação do representante do nosso rei – disse Wade em tom alegre. Depois, algo pareceu lhe ocorrer, e disse seriamente: – Eu não gosto do aspecto disso. Não me importa que usem nos despachos seus cauris e manilhas, mas a cabeça de Jorge V? (Chinua Achebe, A flecha de Deus, p.231-232).

Narrativas visuais As imagens de santos como aquelas comercializadas nas botânicas em Río Piedras mediaram grande parte das minhas conversas e interações com os meus interlocutores dominicanos. Mas não foram somente essas pessoas que fizeram referência aos quadros e figuras em resina, relacionando essas formas materiais aos espíritos. Quando montaram ou subiram em seus cavalos, os mistérios também tomaram essas imagens como objeto de suas narrativas. Nessas apropriações espirituais, que incluem outros artefatos e linguagem ritual do cristianismo, os mistérios produziram uma espécie de metanarrativa. Por meio das imagens de santos eles conceberam a si mesmos. Além disso, alguns desses espíritos assumem atributos estéticos das imagens quando estão montados, e ainda oferecem a seus interlocutores um conhecimento que é também visual, baseado nos elementos iconográficos que compõem as próprias imagens. Neste sentido, visualizar certos quadros de santos pode ser também um modo de aprender não apenas sobre a singularidade de um mistério, mas também conhecer uma dimensão hierárquica que orienta a intervenção desses espíritos junto aos seres humanos, como aquela que discuti no terceiro capítulo.

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Os sentidos múltiplos dessas imagens nos altares parecem implicar que os próprios mistérios – alguns deles, pelo menos – se reconhecem e se definem por meio delas, mas também que podem refletir sobre as formas materiais que lhes permitem coabitar a casa e a vida das pessoas. Sugiro que talvez essas compreensões não digam respeito obrigatoriamente à ideia de que alguma outra coisa é imitada ou disfarçada quando as imagens de santos e artefatos ligados ao cristianismo são por eles apropriados. – Você então quer ver os santos? Foi nestes termos que Raul, um cavalo dos mistérios, indagou-me quando chegamos à sua casa, logo depois de mostrar-me que estávamos à frente da porta de seu quarto espiritual.101 Contudo, na casa de Raul as conversas se reduziram ao mínimo. O que lá ocorreu foram basicamente algumas trocas de palavras. Os motivos para isso não me são completamente explícitos. Mas suponho que, afora o fato de que a cautela caracteriza todos aqueles que trabalham os mistérios, o caso de Raul pedia precaução redobrada. Ele e um amigo também dominicano foram buscar-me na botânica de Rosa, na Plaza del Mercado, pois quando combinamos a visita Raul não me disse seu endereço. No carro, ele se lembrou que deveria comprar velas grandes. E alertou ao amigo que não poderia voltar para casa sem elas. Fomos então a um depósito próximo à Plaza. Nele Raul comprou duas caixas de velas, brancas e vermelhas. Ao efetuar o pagamento em dinheiro, a operadora disse-lhe que a nota de cem dólares com a qual ele fez o pagamento era falsa. Raul então retirou outra. Depois da compra, já no carro novamente, seu amigo disse-lhe que ele deveria substituir a nota falsa por uma legítima. Raul argumentou que não tinha como fazê-lo, pois estava ilegal em Porto Rico. Ao chegarmos, ele gentilmente disse que eu poderia sentir-me em casa e chamou um senhor mais velho que já se encontrava na residência. Apresentou-me como pesquisadora brasileira e pediu ao senhor autorização para a minha permanência ali, que reagiu dizendo que não havia problema. A escassez de conversas, no entanto, foi de certo modo compensada pelo aspecto visual da casa de Raul. Os santos não estavam apenas em seu altar, mas em várias locais da sala. Como ele mesmo havia proposto, eu estava ali para ver os santos, e foi isso o que eu fiz. Ou melhor, era isso que ele esperava que eu fizesse ao me levar até onde vivia e permitir que fizesse as fotografias do altar. Visualizar e não falar me pareceu ser a disposição de Raul diante de mim. 101

Como descrevi na Introdução, conheci Raul na botânica de Rosa. Na ocasião, ele foi à loja para fazer compras rituais.

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Já o meu encontro com Antonio e Maria em Río Piedras ocorreu meses depois de eu conhecê-lo também na botânica de Rosa, na Plaza del Mercado, durante a minha primeira estada em Porto Rico. Neste dia nós havíamos conversado um pouco, depois da apresentação de Rosa. E Antônio, ao saber sobre o meu tema de pesquisa, havia feito menção a São Miguel Arcanjo. Mas até que conseguisse ir à casa do casal, fiz várias tentativas de contato pelo telefone. Em uma tarde falei com Maria, que permitiu a minha ida até eles. O que eu fiquei sabendo ao chegar lá, no entanto, era que aquele dia estava sendo extremamente delicado e difícil para o casal: o pai de Antonio havia falecido naquela madrugada. Maria então confessou que ao falar comigo pelo telefone, quase desistiu que eu fosse à sua casa. Antônio, no entanto, disse-lhe para deixar-me ir. Desde a minha chegada naquele fim de tarde ela foi muito simpática. Explicoume que o pai de Antônio também tinha esses dons espirituais, tinha seus arcanjos, São Miguel... Por isso eles precisariam fazer certas coisas por causa de seu falecimento. Entretanto, Antonio já sabia o que ocorreria com seu pai, Maria me explicava. Ele estava em Santo Domingo e lá foi avisado pelos seres (mistérios) que precisaria regressar a Porto Rico por causa do que aconteceria com seu pai. Enquanto ela narrava-me isso, Antonio, que estava no interior da casa, foi à varanda onde nós duas estávamos e aproximou-se: – Ah, é você!, ele exclamou ao me ver, e explicou à Maria que foi ele mesmo quem havia me dado o cartão da firma de extintores com seus números de telefone à época em que me conheceu na botânica de Rosa. Antônio se sentou e Maria descreveu o estado físico do sogro. Quem o visse no dia anterior nunca pensaria que ele morreria, pois parecia estar bem, aos olhos dos familiares mesmo, ela salientou. Maria, contudo, insistia em afirmar que o marido já sabia o que aconteceria. Ele preparou aperitivos para comermos, e nos dirigimos até uma varanda mais ampla, onde continuamos a conversar. Antônio então me contou porque estava na República Dominicana nos dias que antecederam o falecimento de seu pai. Ele viajou para ir a um lugar conhecido como El Monte de Oración. Nessa colina, quitou um espírito mau de sua mãe, ele falou. Tal espírito era um petro, como descrevi no segundo capítulo. Antes de dizer-me isso, ele comentou que na festa de São Miguel do ano anterior quitou um morto da irmã de Rosa, levada por ela à celebração. Maria então explicou ao marido que o que me levava até eles era o interesse nas pessoas que têm os mistérios, que trabalham os mistérios, e na religião dos

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dominicanos. Eu havia mencionado a última expressão, mas, como está implícito por toda a tese, as ‘pessoas’ não definem suas ‘relações’ com esses espíritos como ‘religião’. Um equívoco meu que, no entanto, gerou alguns comentários de Maria sobre a maneira como é prestada a atenção ritual aos mistérios. Ela e Antonio criticaram aqueles que colocam comida e bebida alcoólica em frente às imagens: – No meu altar você sempre vai ver copos com água clara, nem bebidas, nem cigarros, porque Deus não fuma. E os anjos também não, Maria enfatizou. E tentando marcar uma diferença em relação ao modo como outros dominicanos lidavam com as imagens do altar, reiterou: – Eu não uso nada disso em meu altar porque Deus não necessita disso. Às vezes eles [os mistérios] me pedem uma comida, mas para que eu compartilhe com alguém. Me pedem coisas, para que faça coisas… Antônio, ao ouvir as considerações da esposa, comentou que isso (pôr comida e bebida alcoólica nos altares) não é verdadeiramente espiritual, as pessoas fazem as festas para beber, para fumar, isso de amarrar um lenço, pegar um tabaco não são coisas verdadeiramente espirituais. Eu não gosto disso. No decorrer dessa conversa em que Maria, Antonio e o que eles mencionavam sobre os seres eram o foco da minha atenção, mais uma vez eu fui enredada nas experiências e concepções que vinha procurando tornar o material desta etnografia. Ela estava sentada em frente a mim e de repente começou a falar sobre minha mãe, posteriormente sobre meu pai, que havia falecido quando eu estava em Porto Rico durante a primeira viagem. Inicialmente eu reagi ao que ela me dizia, pois não me dei conta do que se passava, mas Antônio me pediu para que não falasse. Eu deveria apenas escutá-la. Por causa da advertência dele, percebi que o tom de voz de Maria se modificou. Ela agora falava de modo alterado, às vezes mais alto, exasperadamente, quase aos gritos, e suas falas sofriam pausas. O movimento de seu corpo parecia-me também diferente. Maria estava agitada, gesticulava a cada frase que pronunciava. Mas sua transformação não era absoluta. Minutos antes, quando Maria comentava sobre os altares, ela havia dito que em certas ocasiões encontra alguém na rua, que a cumprimentava, e, em seguida, indagava-lhe sobre algo que teria falado. Maria me explicava que isso se dava porque, nessas situações, tinha um mistério em cabeça. Entretanto, não lembrava o que havia pronunciado a outros sob esta condição: – Eu não sei de nada, ela insistia.

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Eu escutava os comentários e descrições sobre minha vida familiar vindos de Maria, cujo comportamento se diferenciava da ‘pessoa’ com quem eu mantinha um diálogo havia pouco tempo. Ali, naquele momento, eu deparava-me com um monólogo. Pouco antes dessas mudanças, Antonio comentou em voz baixa: – Eles chegarão. Ao ouvi-lo não entendi seu comentário. Questionei sobre o que ele havia dito. O casal se olhou e ficou em silêncio. Quando novamente ele fez tal afirmação, insisti na pergunta, e Antônio respondeu que os mistérios chegariam, e eu sentiria, pois teria arrepios. No decorrer de suas falas, Maria novamente se modificou. Depois de dizer-me coisas sobre meu pai, voltou a referir-se à minha mãe, e parecia a ‘pessoa’ de antes. Logo depois ela se levantou e foi para o interior da casa. Eu e Antônio ficamos na varanda. Ele, como no dia em que nos conhecemos, começou a falar sobre São Miguel: – Lucifer era um arcanjo de Deus que tinha o domínio, que comandava outros arcanjos, mas que não quis reconhecer a Jesus Cristo como Deus queria. Então se rebelou contra Deus, e se reuniu com outros arcanjos maus para dominar. São Miguel Arcanjo foi quem defendeu Deus e venceu Lucifer. E buscando tornar explícito o que ele entendia por Lucifer, destacou, Satanás. Nesse momento Maria o chamou. Antonio entrou, deixando-me na varanda. Ele se demorou por alguns minutos e quando retornou pediu-me para acompanhá-lo. 4.1.1 Uma guedé e suas imagens Eu me dirigi até os fundos da casa. Nesse local havia um cômodo amplo. Chegando ali, mantive-me do lado de fora. Antonio entrou. Escutava então uma voz feminina, mas que soava como a de alguém com idade mais avançada, como uma senhora, pronunciando algumas vezes Ela, ela... (referindo-se a mim), de maneira agitada. Quando entrei nesse cômodo, vi ao fundo o altar, organizado sob a forma de uma pirâmide com as imagens dos santos (como Gina salientou), e Maria sentada. Porém agora completamente transformada. O quarto estava escuro, as luzes das velas que estavam no altar iluminavam o ambiente. Antônio estava de pé, ao lado da cadeira em que se sentava Maria, e ficou assim durante todo o tempo em que fiquei lá dentro, tendo sobre um dos ombros um pañuelo verde. Ela vestia uma capa roxa e tinha um pañuelo preto amarrado à cabeça, o que a caracterizava como um mistério pertencente à divisão dos guedeses. Apesar de não ter se apresentado, o que geralmente todo mistério faz, suponho que era Santa Marta A Dominadora. Minha impressão era de que além de mais velha, Maria estava com a pela mais escura. Antes de sentar-me, eu a cumprimentei aproximando minhas mãos, que ela

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cruzou. Durante todo o tempo ela se referia a mim como mujer e madama – essa palavra era pronunciada como se existisse uma consoante a mais, como mandama –, e minha vida também foi assunto das considerações desse espírito feminino. Em frente ao altar, mas não muito próxima dele, ela disse esbravejando: – Os seres humanos não crêem mais em Deus, não crêem mais no próprio ser humano... E ao olhar para as imagens dos santos no altar, continuou: Eles [os seres humanos] têm os quadros, usam os quadros, mas... Sua insatisfação era patente: os quadros dos santos estavam sendo usados inadequadamente. Voltando-se a Antônio e girando o corpo em direção ao altar, disse-lhe que eu falaria com cada um deles, arcanjos como ela. Então, voltando-se para mim, pontuou: – Porque tu estás buscando a verdade. E novamente reiterou para Antônio, por isso, eu voltaria ali mais vezes. Interrompendo o que me dizia, ela destacou: – Ele passa por um momento difícil. Ambos precisavam conversar. Despedindo-se de mim com o mesmo cumprimento, fez o sinal da cruz sobre as minhas mãos, na cabeça e na altura do peito. Quando me levantei da cadeira, ela pediu água a Antônio e ao bebê-la se engasgou um pouco. Já fora do cômodo, ouvi um barulho muito forte, como se ela tivesse caído no chão. Depois de um tempo, Maria se dirigiu à varanda acompanhada de Antônio. Aparentava extremo cansaço e estava aérea. Andando devagar, sentou-se e disse que queria deitar-se porque sentia sono. Passando sua mão pela testa, olhou para Antônio e indagou-lhe sobre onde tínhamos parado nossa conversa. Maria retomou o assunto de minha mãe, e o marido salientou para ela: – Eles sentem também a morte de uma pessoa, referindo-se ao que a guedé lhe disse sobre o falecimento de seu pai, após eu ter deixado o altar. Maria então observou: – Foram eles que ajudaram com teu papai..., referindo-se à morte do sogro. Ela quis saber de Antônio se eu havia feito uma consulta, e ele explicou que ela quis falar comigo. Foi depois do meu encontro com a guedé que Antônio me mostrou o altar em que há pouco nos encontrávamos. As luzes, agora, estavam acesas. Dizendo-me o nome de cada quadro, ele argumentou: – Para nós [pessoas que têm os mistérios] as imagens são vivas, eles [os mistérios] estão aqui. E ao pegar um dos quadros do altar, enfatizou: – Para outra pessoa isso é um pedaço de madeira, mas para nós que cremos isso é vivo. Tudo bem, isso é um pedaço de madeira, mas para nós é vivo, ele repetia. Olhando para o quadro de São Elias – o profeta Elias –, Antônio comentou: – Esse venho antes que Jesus, foi o único que Deus tirou da Terra com uma carruagem. As pessoas fazem mal, não entendem São Elias.

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A partir do encontro com Maria e Antonio, comecei a perceber que seria difícil pensar a existência das imagens de santos nos altares isolada de uma agência dos próprios mistérios, ou seja, como artefatos mobilizados unicamente pelas pessoas. Engajando-se com os quadros do altar, que, da perspectiva de Antonio, por exemplo, são vivos, a guedé fez uma crítica à maneira como os seres humanos usam esses artefatos. Com seu engajamento, ela mesma distanciou-se do que é tido pelas pessoas como uma forma material de sua presença espiritual. O que não significa que ela desconsidere que os quadros também sejam os mistérios: olhando para os quadros, ela dizia a Antônio que eu retornaria à casa e falaria com cada um deles. Diferenciando-se do que chamou de Deus, dos seres humanos e mobilizando criticamente os próprios artefatos que possibilitam a sua materialização, o que a guedé fez foi definir-se (e também os outros mistérios) como arcanjos. Assim, ela revelou seu próprio ponto de vista: designou alteridades diversas e conferiu um sentindo singular aos mistérios, ligando-os a uma hierarquia espiritual e a disposições benevolentes, ao chamá-los de arcanjos. No encontro que descrevi, ela destacou não apenas alteridades humanas e espirituais, mas também a intenção de qualificar as ações de ambos. 4.1.2 Um quadro, dois oguns Em outro encontro, agora na casa de Gina, eu fazia fotografias de seu altar, o que, segundo ela, não foi autorizado pelos mistérios inicialmente, que queriam saber dela se eu estava escrevendo um livro. Nessa ocasião, ela me dizia que porque Ogun [Balendyó] foi um homem de guerra, de batalha, ele lhe pediu dois cavalos (artefatos) e ferraduras para serem colocados perto de seu quadro no altar. Diferentemente dos outros altares que frequentei, no de Gina o quadro de São Santiago estava no chão. Ao perceber essa diferença, perguntei-lhe o motivo dessa localização. Ela me respondeu que Ogun Balendyó lhe pediu para colocá-lo ali. Os cavalos, Gina ainda salientou, deveriam ser postos um em cada lado do quadro. Especialmente no caso desse mistério é difícil dissociar a imagem do santo da do espírito, como, por exemplo, Renan fez com Candelo Sedifé e São Carlos Borromeu. Como descrevi no terceiro capítulo, Armando visualiza o quadro de São Santiago e reconhece nessa imagem características estéticas que fazem parte da maneira como ele vê o mistério. O chapéu confeccionado especialmente para Ogun Balendyó, por exemplo, parecia o do quadro, Armando chamou a minha atenção. Geralmente, as pessoas tomam a imagem como ele. E essa apropriação não se restringe à Gina e a Armando.

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Conversando com esse mistério, percebi que a presença de outros desses espíritos no altar de Gina era sinalizada com o toque de um sino utilizado para chamálos. Por três vezes Ogun Balendyó o tocou e o marido de Gina entrou no altar perguntando se o mistério se dirigia a ele. Nas três vezes Ogun Balendyó estava se comunicando com os mistérios que ali se apresentavam. Depois que o marido de Gina deixou o altar pela última vez, Ogun Balendyó, que nesse momento chamou a si mesmo de Santiago Balendyó, contou-me que Candelo estava ali, mas ele não o deixaria passar (ou seja, montar Gina). Ele me pediu então que pegasse um pañuelo vermelho que estava amarrado ao redor de um caldeiro e o enrolou ao corpo (na cintura) de Gina. Ele seguiu dizendo-me que Ogun Ferraile, outro mistério, estava sempre atrás dele. Ogun Balendyó segurava uma caneta, e com ela apontou para seu quadro no altar, mostrando-me a figura de um homem vestido com uma armadura, montado em um cavalo, um dos elementos que compõe a paisagem iconográfica da imagem: – Ele é esse aqui. Ele está sempre atrás de mim por isso eu pego um lenço (pañuelo) vermelho. E ainda salientou ele – Ogun Ferraile – é São Jorge, apontando, novamente, mas agora para outro quadro do altar, depois de procurar esse entre tantos outros.102 Considerando essas descrições etnográficas, os quadros e imagens em resina do santos parecem compor de modo inusitado as maneiras singulares como os mistérios se concebem.

Nessas interações entre esses espíritos e as imagens, vários sentidos

parecem ser produzidos para essas formas materiais. Pelo menos no que diz respeito às situações que apresentei, tais formas não se resumem simplesmente a representar espíritos que seriam algo diferente daquilo que está retratado nas imagens. Isso implicaria a ideia de que essas formas materiais apenas disfarçam por meio das figuras e cenários alguma outra entidade ou realidade que não estaria contemplada ali. Se isso é verdade para alguns mistérios, ainda assim, como demonstrou a guedé, é possível tomá las de vários pontos de vista. E retratar a si, por exemplo, como arcanjo. A partir das descrições da festa para São Miguel, em que o espírito Belié Belcan é celebrado, outras formas de apropriação pelos mistérios de artefatos relacionados ao cristianismo têm destaque. 4.2 A FESTA DE SÃO MIGUEL A festa de São Miguel Arcanjo é a mais esperada pelos dominicanos que atendem os mistérios e por aqueles que se relacionam com o santo por meio das

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Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagem 20.

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consultas e devoção. Durante minha primeira estada em Porto Rico, era notório que as mercadorias de São Miguel estavam entre as mais procuradas na botânica de Rosa. Mas o que vinha se apresentando, no decorrer do trabalho de campo, como a importância desse santo ia além de qualquer forma de mensuração numérica. A maneira como Rosa indicava – e ensinava – para alguns clientes como uma invocação a São Miguel deveria ser feita ao se acender uma vela antes de um despojo para sacar as coisas más ou de um pedido ao santo, implicava a mobilização de seu corpo. Tratava-se de uma impostação da voz que transmitia emoção e ao mesmo tempo firmeza com as palavras.Ao mesmo tempo, os olhos dela brilhavam. Nos primeiros dias em que comecei a trabalhar com ela na botânica conheci um amigo de Rosa, Horácio, dominicano de Samaná. Ele trabalhava como cozinheiro em um restaurante em Puerto Nuevo e vivia em Río Piedras. Nos seus dias de folga, ia até à Plaza e ajudava Rosa com as vendas. Em uma de nossas conversas na Plaza, Horácio falou-me que, para ele, São Miguel é um santo vivo e não morto. O meu retorno a Porto Rico em meados de setembro de 2010 ocorreu por causa dessa festa, que é realizada no dia 29 de setembro. Nessa ocasião esse santo vivo – como destacou Horácio cerca de quatro meses antes – monta geralmente o anfitrião da festa, seu cavalo. Logo que cheguei, Rosa avisou-me que ela e sua família foram convidados por Antônio e Maria para a celebração. Quase às vésperas do dia 29, eu soube que Diogo tocaria a conga em uma festa dedicada a São Miguel dentro de um bar em Río Piedras. Conforme Rosa, em Porto Rico não existia o palo (dominicano). 103 Para Rosa a ausência desse instrumento musical diferenciava – e desvalorizava – as festas (para os mistérios) realizadas em Porto Rico. Em San Francisco de Macorís, ela contou, seu pai costumava oferecer uma festa em homenagem a esse santo, e a celebração se estendia por todo o dia. A fartura de comida e bebida assim como a presença da música com os homens do lugar tocando palo eram o que Rosa acentuava. Nesse dia, um domingo à noite, fomos (ela, sua família e eu) a uma discoteca próxima à casa. O bar era o local de encontro dos imigrantes dominicanos que trabalhavam com Rosa na Plaza del Mercado, de seus amigos e vizinhos. Ela costumava frequentar esse local, e Diogo às vezes se apresentava ali com seu grupo de merengue. Para minha

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Instrumentos musicais ligados, respectivamente, a estilos musicais afro-cubanos e afro-dominicanos, que tanto as pessoas quanto os mistérios diferenciam quando tomam como referência as invocações rituais.

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surpresa, no intervalo da sequência de reggaeton, o DJ avisou ao público, majoritariamente dominicano, que na quarta-feira próxima, 29, se comemorava o dia de São Miguel. Por isso, ali seria realizada uma festa e uma bruxa consultaria o público. Fiquei ainda com a impressão de que a presença de um haitiano na festa, que tocaria algum instrumento, tinha sido anunciada. De volta ao reggaeton, o DJ depois de certo tempo passou a tocar uma sequência de músicas que mencionavam os nomes dos santos/mistérios. Luci, cunhada de Rosa, avisou-me que o que ouvíamos era palo (música de palo). Ao som dessas músicas sobre os mistérios, jovens dominicanos acompanhados de uma moça, também dominicana, começaram a dançar. Os rapazes, seguindo o ritmo do palo, moviam seus corpos com as costas curvadas. A moça movimentava rapidamente os ombros, e depois fazia o mesmo movimento que eles. Quando o DJ anunciou a realização da festa pela segunda vez, não se referiu mais à presença de uma bruxa na discoteca, mas sim de uma santa que faria as consultas. No dia seguinte, durante suas atividades na botânica, Rosa avisava aos clientes que naquela semana seriam realizadas festas para São Miguel em vários lugares em Río Piedras. Durante os três dias que antecederam àquela data, Rosa e Diogo, ao atenderem os clientes, avisavam-nos sobre o dia do santo. Na véspera do tão comentado e esperado dia, Rita, uma dominicana que trabalhava em um posto de verduras e frutas em frente ao de Rosa, avisou-me que iria a uma festa em San José, bairro próximo a Río Piedras. Um jovem comerciante porto-riquenho que a ouviu, começou a criticá-la. Para ele, isso era coisa do diabo, que não existe, que era uma mentira: – A única pessoa que viveu e ressuscitou foi Jesus Cristo, ele afirmou à Rita. E o rapaz ainda acrescentou que não acreditava que uma pessoa que fosse até a botânica, comprasse um santo, e depois acendesse uma vela em casa poderia obter algo por isso. Rita contra-argumentou. Segunda ela, o rapaz pensava assim porque nunca havia visto... Aludindo ao que poderia significar ver um mistério. Depois que o jovem comerciante porto-riquenho se afastou, Rita, que morou em Caracas por mais de dez anos, contou-me que uma vez foi necessário regressar da capital venezuelana para a República Dominicana logo depois de ter chegado porque um de seus filhos sofria bruxaria. Até então eu acreditava que iria à celebração organizada por Antonio e Maria. O que não aconteceu. Ela teria desistido de fazer a festa devido a problemas de saúde na família. Antonio fez uma cirurgia espiritual, como ele me disse quando fui à casa dele e de Maria. Na noite do dia 29, Rosa me levou, junto com sua filha que passava algumas

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semanas em Porto Rico, à outra discoteca em Río Piedras. Nela Diogo tocaria com seu grupo de merengue como parte das homenagens a São Miguel. Mas antes disso, no dia 28, uma amiga brasileira que conheci na época da minha primeira estada me chamou para ir a uma festa de São Miguel em Santurce, bairro de San Juan também conhecido na ilha por causa da acentuada presença de imigrantes da República Dominicana. 4.2.1 Horas Santas A celebração foi realizada por Dina, uma senhora de setenta e três anos. Ela vivia em Porto Rico há mais de quarenta anos e fazia consultas, conforme Janaína, minha amiga brasileira. Na festa do ano anterior, Janaína foi quem confeccionou a principal roupa para São Miguel. Quando chegamos a Santurce, por volta de 19:30, os convidados já haviam ocupado a casa e a varanda de Dina. Ela esperava a nossa chegada – a de Janaína com a roupa – para que fosse iniciada à comemoração. Janaína lhe avisou que eu iria com ela. Depois que Dina nos cumprimentou, demonstrou satisfação ao ver a roupa que minha amiga costurara: uma capa longa em tom verde musgo – assemelhando-se a um manto – com detalhes em dourado e rosado. Dina então pediu que fôssemos ao cômodo em que havia um altar para São Miguel. Um imenso altar, cuidadosamente decorado. 104 Ali, um senhor que durante quase toda a festa se posicionou no portal de entrada do altar, entregou-nos grandes velas vermelhas que traziam a imagem e o nome do santo. Verde e vermelho eram as cores de vários adereços que ornamentavam o altar; as cores que são do gosto de São Miguel. O senhor nos encaminhou ao interior do cômodo, indicou que acendêssemos as velas e pedíssemos o que desejássemos. As velas que Dina oferecia permaneciam ali depois de acesas pelos que chegavam. Alguns faziam nesse momento uma oração diante do altar. Pouco depois Dina iniciou uma curta saudação a São Miguel Arcanjo. Estávamos numa antessala, com cadeiras e dois instrumentos musicais que me pareceram os palos encostados numa parede, sinal de que não seriam utilizados. Sentadas e próximas à Dina, algumas senhoras dominicanas usavam sobre os ombros os pañuelos (lenços) verdes. Além desse adereço, elas vestiam pelo menos uma peça de roupa verde e/ou vermelha. Dina usava também um lenço verde, mas não nos ombros e sim amarrado à sua cabeça, e vestia um conjunto de blusa e calça da mesma cor.

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Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagens 21 e 22.

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Ao fim da sua saudação, ela e as senhoras começaram a entoar cantos parecidos com o que chamamos de ladainhas no Brasil (Janaína já havia me alertado que a festa se iniciava assim). Algumas delas – e outros convidados – tinham em suas mãos um panfleto religioso, cuja leitura dos trechos produzia uma espécie de liturgia católica. Além dos panfletos, trechos de um livro também católico, chamado Horas Santas – nome dado a esse primeiro momento da festa –, iam sendo lidos a pedido de Dina, a quem também cabia essa tarefa. A essas orações e frases intercalavam-se exclamações da anfitriã: – Viva Jesus! Viva São Miguel Arcanjo! E Viva Belié Belcan! Ao ouvirem o último nome, os convidados responderam Dina de forma mais entusiasmada. Neste momento, uma daquelas senhoras dominicanas transformou a aclamação em canto, e entoou melodicamente: – Eu sou Belié, Belié, Belié... Belié, Belié, Belié… Oh Belié! Belié, Belié... Mas as outras canções que se alternavam aos trechos da leitura do livro criavam, por sua vez, uma situação semelhante à de uma missa católica. Entre saudações a São Miguel Arcanjo, Dina entoava canções católicas, pronunciava os trechos do livro Horas Santas, o que chamou de palavra de Deus, e a isso aqueles que estavam na antessala respondiam com um Amém. Ela também invocou os anjos e as almas daquele maní – termo utilizado pelos dominicanos para a festa oferecida aos mistérios, basicamente com comida e bebida apropriada – assim como os santos e as virgens. Permitindo-se, assim, improvisar sobre o livro Horas Santas. Enquanto Dina iniciava a oração do pai-nosso e da ave-maria, um sino começou a ser tocado com entusiasmo – pelo senhor que se localizava no portal de entrada do altar – e assim Dina saudou novamente São Miguel, e anunciou que seria realizada a consagração. Encaminhando-se para o fim da cerimônia, Dina pontuou, por entre suspiros daqueles que a ouviam ali: Dina: Senhore, eu, em particular, e aquilo que temos vindo com esta devoção por 40 anos, lhe dando o agradecimento a todos por estar aqui conosco… Convidada: Ai! Convidados: Obrigada. Dina: Espero que tudo saia com bênçãos deste humilde arcanjo, dê saúde e abundância, dê… desenvolvimento espiritual e material. Convidados: Amém. Dina: E que todo chegue com uma paz… Convidados: Ai! Que assim seja. Dina: …mistérios. Convidados: Amém. Dina: Que a paz de Deus esteja com vocês. Convidados: Amém. E com o Espírito Santo. Dina: E que assim permaneça para sempre.

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Sob uma nova entoação que versava sobre desejos de paz, os convidados na antessala se levantaram das cadeiras a pedido de Dina, que lhes solicitou que caminhassem. Uma fila ia sendo formada. Uma baixela com vários tipos de grão secos, ovos cozidos, farinha e um lápis, na qual se apoiavam três velas acesas, foi retirada de uma mesa posicionada em frente à imagem de São Miguel no altar, erguida e carregada por aquele senhor dominicano, o primeiro da fila. Atrás dele, passamos então a percorrer o interior da casa, fazendo uma espécie de volta. Saímos da casa até a rua e, depois, entrando novamente por outra porta, retornamos à antessala. Enquanto levantávamos a pedido de Dina, regalos (presentes que protegem oferecidos em nome de São Miguel) foram distribuídos aos convidados. Depois disso, aquele senhor salpicou água florida e um punhado dos grãos sobre os que regressaram à antessala. Assim as Horas Santas chegavam ao fim. 4.2.2 Festejando como morto Então a comida foi servida: carne de cabrito acompanhada de um molho bem apimentado e pedaços de pão, e como sobremesa arroz com coco e suspiro, além de cerveja e refrigerante. Enquanto as pessoas conversavam e comiam no interior da casa, no corredor externo, na varanda e na calçada da rua, outros aí permaneceram durante as chamadas Horas Santas. No corredor, outro senhor dominicano, com uma cadeira à sua frente, despojava, conforme me disse um homem idoso que estava na calçada, alguns dos convidados. Quatro ou cinco pessoas esperavam em fila. Iniciando com um Em nome do Grande Poder de Deus, ele fazia um movimento com as mãos sobre a cabeça e ao redor do corpo delas – às vezes o tocando –, e dizia-lhes algumas frases em voz baixa. Enquanto os observava, outro senhor – que me pareceu porto-riquenho – usando sobre os ombros dois lenços (verde e vermelho) e tendo amarrado à sua cabeça um branco, aproximava-se. Borrifando um líquido perfumado nas mãos dos que ali se encontravam – água florida talvez com um pouco mais de essência –, ele informava que isso era uma preparação para os trabalhos que teriam início e para a vinda dos mistérios (Fiquei com a impressão de que neste momento ele disse Em nome de Bon Dieu). Com o líquido nas mãos, os convidados esfregavam-nas, e passavam o restante pela nuca, braços e cabeça. Na antessala Dina conversava com alguns jovens e senhoras dominicanas, e utilizou também água florida, pondo um pouco nas mãos das pessoas que estavam próximas a ela. Segundo a anfitriã isso era para afastar as coisas negativas. Uma

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senhora, ao esfregar suas mãos e passar o líquido pelo corpo, disse à outra que isso era como se saísse uma coisa má de dentro dela. Ao som das palmas de quem estava na antessala, o nome de Belié Belcan começou a ser pronunciado pelas senhoras dominicanas. Uma delas não se lembrava mais do canto, e perguntou às outras se não era possível improvisar. Chacoalhando as maracás que tinham nas mãos, elas tentavam iniciar o canto do mistério. Alguns acompanhavam e tocavam os palos que estavam encostados na parede: – Ya tumbó uno, Belié. Ya tumbó dos. Ya tumbó uno […], ya tumbó dos [Já derrubou um, Belié. Já derrubou dois]. Sentada e segurando uma maracá desenhada, Dina também começara a cantar: – Llegó Belié, Belié Belcan… [Chegou Belié, Belié Belcan]. E as pessoas reagiram. Segundo ela, era preciso chamar São Miguel. Quanto mais se esperasse para fazê-lo, mais longa seria a festa, pois ele se recusaria a ir embora. Entre o burburinho das conversas, alguns sons das maracás e dos palos podiam ser ouvidos. A presença de São Miguel foi então sentida, e uma senhora reagiu dizendo que o momento deveria ser aproveitado para chamar seu velho. Dina se levantou, e com os senhores dominicanos que a ajudavam, pediu que se deixasse a entrada da porta livre. Eles insistiam nisso. Aos poucos as pessoas que estavam do lado exterior da casa iam entrando e se acomodando nas laterais da antessala. Sob os cantos vacilantes – por causa do esquecimento de alguns ou do desconhecimento de outros –, ela pediu aos convidados em alto tom e batendo palmas vigorosamente: – Caliéntense la mano, bien caliente... para ver si levanta ese viejo donde esteba. Bien caliente, bien caliente, caliente, caliente, caliente, caliente [Esquentem a mão, bem quente... para ver se esse velho levanta de onde está]. Alguns gritaram e agitaram as maracás com entusiasmo. Dina continuava a pedir que as pessoas aquecesem as mãos. Diante das dificuldades em reproduzir o canto – os palos e as maracás eram tocados sem criar uma harmonia – um convidado brincou: – Belié foi passear em outra parte, e todos riram. Então mais uma tentativa foi feita. Pequenos sinos agora eram badalados. Inicialmente de modo mais lento. Mas à medida que se escutava Llegó Belié, [...], pá trabajar. Belié, Belié, Belié Belcan, […]. Ya tumbó uno, Belié, Ya tumbó dos, […], os toques eram acelerados. Dina novamente pediu que a entrada da porta ficasse aberta, ou seja, sem pessoas na frente: – Abra um pouquinho a porta. Mantenham-se tranquilitos e vamos ver se vão chegando os mistérios. Vamos ver se vão chegando os mistérios. Uma

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entoação foi feita por uma senhora dominicana, ainda sob os sons dos sinos, que agora assumiam um ritmo mais rápido, e das maracás: – Oh San Miguel, Belié Belcan [...], misericordia baja a la tierra pá trabajar. Oh San Miguel, Belié Belcan, misericordia baja a la tierra Belié Belcan [Oh São Miguel, Belié Belcan, misercórdia desça à terra pra trabalhar. Oh São Miguel, Belié Belcan, misercórdia desça à terra pra trabalhar Belié Belcan]. Dina, que estava no centro da antessala, de frente para o portal de entrada do altar e cercada pelos convidados, já demonstrava sinais de alteração corporal. Com as costas cada vez mais abaixadas para frente, seus passos eram cambaleantes. Fazendo uma espécie de assopros profundos por alguns segundos, Belié Belcan anunciou sua chegada: – Bendito [...] y El Santísimo Sacramento del altar! Gracia la misericordia! Gracia a lo Papa Bon Dieu!, ele gritava com a voz aguda. Depois dessas palavras, as primeiras de Belié Belcan após sua chegada, ele novamente liberou alguns assopros, e ao fundo podiam ser escutadas ainda algumas batidas no palo e as maracás. Seguiu-se, então, seu comentário acerca da roupa feita por Janaína, a quem ele me pediu que chamasse: Oye, oye... [Mais assopros]. Tengo un vestido nuevo que me trajeron por ahí... ¿Dónde está? Si me trajeron una capa nueva… ¿Y qué pasó? ¡Santísimo! ¡Gracia la Misericordia [sic]! ¿Dónde está? ¿Donde está la amiga tuya? Que me trajo un... [Ouve, ouve... Tenho uma bata nova que me trouxeram por aí... Onde está? Se me trouxeram uma capa nova... E o que aconteceu? Santíssimo! Graças à Misericórdia! Onde está? Onde está a tua amiga? Que me trouxe um...]. Belié Belcan então começou a cumprimentar apenas algumas pessoas que estavam ao seu redor, chamando os homens de garçon e as mulheres de femme. Ele demonstrava que já os conhecia e aguardava sua capa nova. Passaram-se alguns minutos e gritando ele pedia mais uma vez pelo vestido. Só depois de colocar o novo traje cumprimentaria todos os convidados. Mas, ele ressaltou, o cavalo (Dina), estava com um problema. E a sua presença ali era para dar a ela conhecimento: – Um vestido [capa] novo que me trouxeram. Espera que eu vou cumprimentar, e a todos, para depois [...] porque cavalo tem um problema, que ela [...], e eu estou aqui a dar-lhe conhecimento. Garçon, como tu tá? Como Deus queira. Quita-me esta e coloque-me a outra… [Com a voz charmosa] Graças à Misericórdia! Ao ver o mistério pondo a vestimenta, um senhor fez um comentário que aborreceu Belié Belcan. Ele teria dito algo relacionado à satisfação que o mistério demonstrou ao vestir a capa. Belié Belcan reagiu dizendo que apesar de estar longe,

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poderia inaugurar (usar pela primeira vez) o que quisesse. E não havia problema algum nisso. Em seguida pediu respeito. E, indo além, desafiou seu interlocutor, dizendo-lhe que como um homem que não cogitava se aproximar do palo (instrumento) poderia fazer uma gozação com ele. Belié Belcan: Eu estou longe, mas eu posso usar pela primeira vez [estrenarme], eu posso usa pela primeira vez [estrenarme] toda a bata e toda a capa que me dê vontade. E o que aconteceu? Respeita. Convidado: A capa é sua. [sic] Belié Belcan: Caralho! Como, como, como… um homem que não pensa nem ir ao palo está sacándome en cuenta... Convidado: O que passa é que eu não sei tocar palo.

Uma senhora dominicana falou para o mistério que o tal senhor não sabia tocar palo, e ele próprio, após a advertência de Belié Belcan, sussurrou que não sabia fazê-lo. Ela o ajudou a pôr a capa, dizendo-lhe que estava lindo. Após um assopro alto e profundo, Belié Belcan lhe agradeceu, chamando-a de femme, e justificou o elogio recebido revelando o que foi a ocupação de Janaína quando chegou a Porto Rico: – É que esta mulher é costureira, costureira dos artistas… e das coisas para as películas. Graça. [Mais assopros]. Graça... Mas seu traje ainda não estava completo. Faltava um tecido vermelho que, segundo o mistério, estava em algum lugar por ali. Depois de amarrar esse lenço à cabeça, Belié Belcan pôde começar a cumprimentar os convidados da festa, realizando a saudação (saludo) que lhe é específica. 105 Simultaneamente, explicava aos convidados porque não havia música de palo (ausência que parece ter dificultado a sua chegada, mas não a impossibilitado). 106 Uma metresa, Santa Marta A Dominadora, poderia montar o cavalo (Dina). Conforme Belié Belcan havia o risco do cavalo se machucar, o que levou ele a dizer a ela (Dina) que não houvesse música de A Dominadora na festa: – Agora, garçon, sim. [Após amarrar o pañuelo vermelho à cabeça, seguido de um assopro profundo]. Graça à Misericórdia. E

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Conforme Belié Belcan, era preciso ensinar o seu saludo: ele oferece a sua mão direita para um cumprimento, depois a esquerda, e à medida que ambos os braços se cruzam, ele gira (dá uma volta) no corpo da pessoa para os dois lados, segurando a mão dela. Segundo ele, ao cumprimentar alguém durante a festa, – Essa volta quer dizer que mistérios te vão proteger no mundo. Onde quer que esteja. Porque o mundo é redondo, e tu onde quer que esteja, [onde] tu andar.... Ao ver um senhor que se aproximava para cumprimentá-lo, o mistério disse em tom direto e objetivo, sem dar chance ao senhor de reação: – Ele não sabe cumprimentar os mistérios. Como está você? Bem! Estou feliz em ver-te. Gracia. Com isso, recusou-se a cumprimentar o convidado. 106 Durante a celebração, um convidado notou a existência dos instrumentos de percussão na antessala, e Belié Belcan lhe disse que naquele dia não haveria música de palo. O homem então queria saber se poderia tocar, e o mistério lhe perguntou se ele sabia. O convidado disse que sabia tocar batá, mas Belié Belcan explicou-lhe que aqueles instrumentos não eram batás e sim palos.

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Graça ao Papa Bon Dieu. Ouçam o que lhes vou dizer. Dê a volta bem [sic]. Ouviste. Dê a outra. [Belié Belcan realizando seu cumprimento em uma convidada]. Ouçam o que lhes vou a dizer. Vim…, graça, por vir aqui. Eu disse ao cavalo que não queria música de A Dominadora, e de Santa Marta A Dominadora porque depois [o cavalo] cai e se fere. Tu me entende? E não estamos para isso. E desde que se lhe dá uma cerveja se lhe monta A Dominadora. [As pessoas começam a rir]. E isso... há muito canto... Eu lhes vou dizer, cavalo quer canto, tu sabe, desde que não seja para lançarse ao chão. Porque depois a coisa se põe má. Vim, cavalo. As palmas. Um agradecimento [As pessoas batem palmas a pedido de Belié Belcan]. Graça à Misericórdia, Graça à Misericórdia. Ele seguia cumprimentando as pessoas, quando as convidou a dar um trago – de rum Brugal – com ele. Uma garrafa da bebida passou a circular depois que o próprio mistério tomou um pouco no gargalo, e alguns convidados fizeram o mesmo. Era notório que alguns tinham uma relação próxima com esse espírito, a quem ele manifestava satisfação em ver, dirigia perguntas específicas, desejava saber sobre os familiares e, às vezes, exigia a aproximação e o cumprimento. 107 A um homem, por exemplo, ele invocou uma palavra de Candelo Sedifé – Las formas son más altas y los pueblos comen migajas [As formas são mais altas e os povos comem migalhas] – o que gerou risadas. 108 A um jovem, ele pediu vigorosamente que fosse cumprimentá-lo, caso contrário, subiria na cadeira em que o rapaz sentava para o fazer. Ao se aproximar de Belié Belcan, o jovem se ajoelhou e disse: – Velho, velho, graça à Misericórdia. Mas o mistério reagiu: – Levanta-te em nome de Deus… e de nosso Pai Amado. Porque as formas são mais altas e os povos comem migalhas. Os convidados repetiram a frase com Belié, que prosseguiu dirigindo-se ao rapaz: – Qualquer coisa que tu queira, tu podes conseguir porque tu nasceste sem nada de [...]. Durante esses momentos, uma ave-maria foi orada, inclusive por Belié Belcan, mas também se cantou a música desse mistério, que ele mesmo iniciou. As pessoas acompanhavam-no, fazendo o coro. Belié Belcan batia palmas tentando criar um ritmo, e após alguns minutos reclamou: na festa havia homens tão fortes, mas que não sabiam nem cantar. Contrariado, ele pediu uma cadeira para sentar-se e avisou que não 107

Mas o contrário também aconteceu. A um homem que Belié Belcan não conhecia, ele disse: – Olá. Como tu tá garçon? […] Eu não tinha te visto aqui, eu tenho vindo aqui um par de vezes e eu não havia tinha te visto, agora que estou encarando. 108 Candelo Sedifé chegaria à celebração (montando Dina), aos olhos da maioria pelo menos, em um momento posterior da festa, depois da partida de Belié Belcan.

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cumprimentaria mais ninguém. Entre o burburinho das conversas e risadas dos que estavam à sua volta, ele insistiu na reclamação até que se surpreendeu ao ver uma pessoa conhecida. Belié Belcan: Parece que não sabem nem cantar. Convidado: Temos que aprender velho [...]. Belié Belcan: Pois então vão aprender [...]. Ai corno! Olha quem está aí atrás de ti. Olha quem está aí atrás de ti. Machos, machos. Carajo![...] Deus te abençoe. Convidada: Amém. Belié Belcan: Onde está Madalena? Como tá ela?

O canto de Belié Belcan menciona que a sua chegada tem como finalidade trabalhar e derrubar (tumbar) outros. No entanto, como ele mesmo avisou a alguns convidados, o dia não era de consultas. A ocasião era para cumprimentar (saludar) e também para pedir, comer, para pedir saúde, desenvolvimento e paz. Em outro momento, no entanto, aqueles que quisessem poderiam ir conversar com os mistérios, e Belié Belcan fez o convite: – Venha ver os mistérios, venha cumprimentá-los, venha para checar-se [consultar-se]. Que hoje não se trabalha, que hoje se cumprimenta, se dá bênção para o ano. Desde o início, Belié Belcan recomendou os convidados que não deixassem a festa sem levar os regalos (presentes dele): o maní, uma bolsinha com grãos secos dentre os quais amendoim, castanha, gergelim; 109 o pañuelo verde (gravado com o nome São Miguel Arcanjo) e uma pedra (cada uma com uma cor específica) com uma oração, que foram colocados juntos nesse mesmo saquinho. Conforme o mistério, ao abrirem esses pequenos embrulhos, as pessoas deveriam dizer o próprio nome e que estavam recebendo o pañuelo e a pedra em nome de Deus para a sorte, alegria e saúde. Belié Belcan explicou ainda a um convidado que o pañuelo – chamado também de fula – 110 deveria ser levado com alguém em qualquer situação em que os mistérios estivessem, fosse consulta ou festa. Portar esse objeto seria uma maneira de os espíritos identificarem as pessoas. As pedras oferecidas (com as orações), segundo ele, seriam otás: – Ola garçon. Como tá? Anda com seu fula? Garçon, antes quando [...]. Eu não sei se já chegou aí, essa pedra... Quem tá na consulta, já os mistérios identificavam a pessoa pelo pañuelo que levavam [...]. Isso se

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Os mesmos grãos que compunham a baixela colocada no altar, em frente à imagem do santo, que foi erguida ao final das Horas Santas pelo senhor dominicano. Geralmente esses grãos, chamados de tostados (torrados), são oferecidos como serviço ritual aos mistérios. 110 Ele pronuncia como fulá, com o acento na última sílaba.

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chama otá. [...]. Esse pañuelo [...], vocês vão consultar-se [com o cavalo], [...], ou vão consultar-se com alguém, vocês põem seu pañuelo aí ou o tenham na mão. 4.2.3 Mistérios, doutores da igreja e antepassados A festa prosseguia quando uma senhora dominicana, amiga de Dina, queixou-se com Belié Belcan. Ela enfrentava dificuldades com alguém de sua família que estava doente. Ele pediu-lhe que, depois, a senhora procurasse Dina, e lhe falasse sobre certo texto católico. Com ele, a mulher poderia compreender e aliviar seu sofrimento. – Quando tu venha diga ao cavalo que te busque uma leitura, que há em um livro que é um doutor da Igreja, que se chama São João da [...], que [nos] anos dezoito [século XVIII] escreveu sobre as almas. E não foi até que ela [Dina] fez essa leitura que ela pôde aceitar a morte do papai dela. É uma, é uma coisa tão grande, tão grande, não para quem [a tem], para a pessoa que está a sofrer. Mas eu não sei se vocês sabem que há uma leitura que diz: “[...]”. E essa é a enfermidade que chega a esse [...]. Durante esse aconselhamento, a amiga de Dina demonstrava angústia com o estado de saúde de seu familiar, cujo corpo não reagiria nem ao frio nem ao calor, observou Belié Belcan ao escutá-la. Procurando explicar-lhe o que estaria acontecendo com o corpo de seu parente, ele tentou tranquilizá-la: – Quando o corpo quer não faz esforço para nada, e isso é uma bênção que o espírito tem. E torna a nascer de novo Mas o que acontece? Que as pessoas que estão a sofrer [...] são os que o sentem, eles não sentem nada. Ao fim desse comentário, Belié Belcan lhe pediu então que rezasse. Logo depois outra convidada se aproximou de Belié Belcan. Ela procurava, também, auxílio para algum problema. E, pelo comentário de Belié, a dificuldade agora estava relacionada a questões de propriedade da terra. Por isso, ele recuperou uma história em que Dina mediou a relação entre antepassados e algumas pessoas que provavelmente disputavam uma posse fundiária. Conforme Belié Belcan, durante três dias o cavalo pediu para ser iluminado acerca de tal problema. Quando obteve uma resposta, quem se comunicou com Dina foram os antepassados, espíritos que compraram e nasceram na terra em questão. Os antepassados recomendaram que fossem colocados alimentos (vianda) – provavelmente no terreno – e que duas pessoas velhas fossem procuradas, pois essas conheciam e sabiam da história (da terra): – O cavalo pediu três dias, pedindo para que desse uma luz para essa gente [...]. Inclusive, o pedido, quando lhe responderam, lhe responderam os antepassados, donos dessa terra. E lhe disseram [à Dina]: “Que tu crê? Que se tu chega à tua casa e tenha alguma pessoas roubando, tu pega preso”,

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assim mesmo lhe disseram. “Perdoa, perdoa, perdoa”, e lhe disseram: “Que ponham vianda e que busquem dois velhos que vivem ao nordeste desse sítio, e esses velhos conheceram os antepassados e têm a história . Os interessados na disputa pela terra foram aconselhados por Dina a buscar os dois idosos através da internet. E, à medida que as mensagens foram chegando, Dina as atirou ao vento. Segundo Belié Belcan, com isso os caminhos começaram a se abrir: – E cavalo lhe mandou pôr uma página des internet [...]. E disseram que sim, que iam colocar a… E em três dias começaram a levar a [...] e quando o cavalo lançou a mensagem ao vento, começaram a abrir-se caminho [sic], e o cavalo iluminou [alumbró] os antepassados dessa terra. Porque essa terra não é mais que dos antepassados. E essa riqueza que há aí são dos antepassados dessa terra, dos compradores, dos que nasceram. E já chegou o momento que eles disseram [os antepassados]: “Estamos cansados!” [Belié então gritou] Então quando eles estão cansados [...] caminho para encontrar e estar aí. Por entre as expressões de Graça à misericórdia e Aleluia, de Belié Belcan e de alguns convidados que o escutavam, o mistério continuava a comentar a disputa sobre a terra quando, então, comunicou que ia embora. Ele começaria então a se despedir e se preparar para deixar sua festa: – Mas isto são dos antepassados. Eles estavam roubando os antepassados, eles estavam enganando o seu, mas eles entenderam [...] em seu idioma, em sua língua que isso, isso não era deles. Garçon, ouve garçon. Femme, femme... Garçon, [...] eu vou. Graça à misericórdia de Dios! E graça ao Papa Bon Dieu. Muita graça. Muitas bênçãos. Muita saúde. Muito desenvolvimento. Paz e tranquilidade. Como aconteceu no decorrer da invocação, algumas pessoas pediram para que o caminho de entrada da antessala fosse deixado livre. Enquanto isso, Belié Belcan dizia às pessoas presentes: – Vocês não vão mendigar tanto, vocês peguem a coisa como venha, que há passado tempo piores – ao que alguns disseram Amém –, piores tempos têm passado, ele reafirmou, gritando Graça a misericórdia, antes de fazer seu último comentário naquela noite e entoar seu canto batendo palmas: – E agora meu espírito se retira da universidade dos espíritos [...]. [E ele bateu o pé forte contra o chão]. Para levar-me toda sua contrariedade e a depositar diante da vontade divina. Dando três passos para atrás e [...] todas as suas contrariedades, dando três passos para frente até vocês e trazendo paz e tranquilidade, e desenvolvimento espiritual e material em nome

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de Deus. Graça à misericórdia. Onde? Chegou Belié! [Donde? Llegó Belié], e ele mesmo começou a cantar. Alguns sacudiam as maracás e repetiam as estrofes, o acompanhando. Belié Belcan saudou mais uma vez Gracia la misericórdia. Uma alteração na respiração foi percebida e suspiros profundos podiam ser escutados. Algumas pessoas continuavam a repetir o agradecimento acima, e pouco a pouco o som das palmas desapareceria. Um burburinho se iniciou, resultado da conversa dos que estavam na antessala. Mas em seguida ouviu-se um novo chiado. 4.2.4 Fogo, chaves e São Pedro Sob tímidas batidas no palo, outro mistério, praticamente sem interrupção, havia montado Dina e anunciava a sua presença: – Bendito y alabado [louvado] sea el santísimo sacramento del altar. Gracia la misericordia de Dios. Candelo Sedifé. Ele também deu início ao seu canto, e rapidamente foi acompanhado por uma senhora dominicana. Depois pelos outros convidados. Candelo Sedifé: Candelo, Candelo, Candelo Sedifé. Convidada: Candelo, Candelo, Candelo... Candelo Sedifé: Agogo, agogo, ag ogo, [...]. Agogo, agogo, Candelo ya llegó [Candelo já chegou].

Cantando, ele pediu que fosse aberta uma porteira por causa do cavalo – acho que agora a preocupação era com a respiração de Dina –, e um convidado insistiu para que as pessoas saíssem da entrada da porta. Notando a ausência de seu pañuelo vermelho, que ele ainda não tinha recebido, Candelo Sedifé disse que continuaria a trabalhar e a cumprimentar: – Mas se não há um trapo vermelho, eu vou seguir trabalhando, vou seguir saudando. Como está vocês?Como está vocês? Alguns convidados então trataram de providenciar uma bacia de metal – posicionada em frente ao mistério – na qual foi colocada água florida e um fósforo aceso. Uma chama foi gerada e Candelo Sedifé mostrou aos convidados que havia fogo no recipiente, pedindo que aquecessem as mãos: – Aqui há um fogo, olha. Esquentem a mão e peçam. Candelo, Candelo, Candelo Sedifé. Agogo, agogo, Candelo ya llegó. Agogo, agogo, Candelo ya llegó. Ave-María! Entoando mais uma vez o seu canto ao som de algumas batidas secas no palo, Candelo Sedifé tratou de que os convidados da festa se aproximassem das labaredas. Indo com as mãos abertas na direção do calor que era liberado, as pessoas as deslizavam depois pelo corpo. Uma senhora dominicana pediu um tabaco, e Candelo Sedifé perguntou quem gostaria de dar um trago com ele. Nesse meio-tempo, ele avistou uma femme e a

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cumprimentou, indagando se ela estava contente. Invocando com um grito as suas palavras – como Belié Belcan já havia feito – ao falar com essa convidada, em seguida ele deu uma alta gargalhada, Graça à misericórdia e Graça ao Papa Bon Dieu, o que foi repetido por alguns. E, como tinha ocorrido durante a presença de Belié Belcan na festa, Candelo também foi requisitado para dar um aconselhamento. Uma senhora, que viajaria, pediu-lhe ajuda para que fosse bem-sucedida em seu objetivo fora de Porto Rico. O mistério indicou o que ela deveria fazer. E, se antes da viagem, melhor. Assim os caminhos se abririam para ela. Pegue sete frutas e as coloque em sete garrafas, e pegue sete chaves e ponha na porta da tua casa com um copo de água. Não lhe ponha água. Coloque uma moeda de cinco centavos e [...]. E todos os dias pela manhã, essa garrafa tu a ponha que pegue tempo, que pegue o sol e o sereno, e todos os dias pela manhã tu traga esse banho e sai para rua. Sai para a rua. Caminha. Caminha mas não volte por aqui. Se tu sai por aqui, não volte por aqui. Dá a volta [...] com uma chave. Tu pegue uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete. [sic] a número um, a número dois, a número três, a número quatro, a número cinco e a número seis, e tu diz a São Pedro tu tens a chave da igreja, tens [...] dos céus. Empresta-me… pega uma chave, tua, emprestame tua força e tua inteligência para me ensinar [...], que eu vou fazer a vontade de Deus. Se pode o fazer antes de ir seria melhor. E se quiser o fazer lá, mas [sic]. Se abrem os caminhos, [...]. Sete frutas doces: maça, vermelha maça, maça verde, sete uvas verdes [...]. Fruta doce, não ácido.

Sua presença, entretanto, não se prolongaria por muito tempo. Quando terminou de indicar o banho para a convidada, Candelo Sedifé avisou que teria que ir embora. Outro mistério, Guedé Limbó subiria. Guedé estava mandando que Candelo se fosse para que também pudesse chegar à festa. Antes, contudo, Candelo Sedifé antecipou os convidados, enfaticamente, que Guedé estava com muita fome e teria que comer. Era então preciso deixar tudo preparado para que esse mistério, ao chegar, pudesse se alimentar e dividir a sua comida com os convidados: – Mas o Guede está mandando para que eu me vá […] O cavalo, o cavalo… ele cavalo. Eu me vou junto com você [Fazendo referência a uma convidada que ia embora], vai subir Guedé. Guedé vai repartir a comida, busquem onde vão comer. Olha femme, busca papel de alumínio para que levem a comida de Guedé porque ele está me mandando [...]. Porque tem muita fome e ele tem que comer [Candelo falou gritando]. [...] Eu me vou, eu me vou! Graça à misericórdia! 4.2.5 Das bênçãos em utensílios quebrados – Não me sinto bem [...], me deem refleco [refeição]. Foi ao som das risadas de alguns convidados, quando escutaram o pedido de Guedé logo que chegou à festa, que pude me dar conta de que esse mistério estava presente entre nós. A respiração de Dina

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agora se alterou pouco e suspiros menos intensos foram liberados depois que Candelo Sedifé foi embora da festa. Porque Guedé se apresentou solicitando alimentação, uma senhora dominicana reagir em tom de brincadeira: – Não te cumprimento, mas tu és bem folgado! Diferente do que aconteceu nos momentos iniciais da chegada de Belié Belcan e Candelo Sedifé, a de Guedé foi iniciada com gozações. Mas, entre os comentários de duas senhoras dominicanas que perceberam que esse mistério já havia chegado por causa do pedido de comida, uma salva de palmas e gritos de comemoração – com a participação do próprio Guedé – anunciaram a receptividade dos convidados com a sua presença. No entanto, ele se mostraria ainda mais exigente. Gritando e irritado, queria saber onde estava o cozinheiro – que deveria levar-lhe sua comida –, seu cuarto (dinheiro), seu rum e seu arenque (peixe): – Ouve, ouve… Onde está o cozinheiro? [...] garçon, [...], trazer minha comida. Corno! Onde está meu cuarto, onde está meu rum? Onde está meu cuarto? Corno! E isso, [...], arenque, corno. Sua atitude fez com que algumas pessoas resmungassem, mas outras pareciam achar graça e riam. Enquanto o que o mistério demandou não chegava, um chapéu de palha lhe foi dado. Ao usá-lo, Guedé perguntou se estava lindo. As pessoas que o rodeavam começaram então a gritar, afirmando-lhe que agora sim o mistério estava pronto, ao que ele deu Graça à misericórdia de Deus. A essa altura, uma ampla bandeja de alumínio na qual eram encontrados arroz e feijão preto, batata doce cozida e arenque – alimentos do gosto de Guedé – já havia sido posicionada em frente ao mistério. Ele então iniciou a partilha dos alimentos. Um jovem dominicano, que brincava dizendo que a maior parte seria para as pessoas, foi repreendido por Guedé, que lhe pediu para que não colocasse a mão na comida. Mas, percebendo que o rapaz fazia mais uma gozação, Guedé lhe disse que emprestaria – na verdade com um sotaque afrancesado – e confiaria o seu macuto (saco de palha) no qual seu cuarto (dinheiro) é guardado, ao jovem. 111 Guedé: Esta é de vocês… Convidado: E este é de você. Guedé: Não, não meta mão. Convidado: Não, nunca velho. Guedé: Esta é de vocês… Toma, fica tranquilo. Eu vou a pretêr [emprestar] macuto aqui. E confío que tu me leve macuto para [...] meu cuarto [dinheiro]. Garçon, garçon. Como tu tá? Abre métro [espaço]. Abre métro.

Ao mesmo tempo em que Guedé repartia a sua comida e a oferecia aos convidados, que preenchiam todo o espaço da antessala ansiosos para receber uma 111

Caderno de Imagens do Capítulo 4. Imagens 23 e 24.

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porção, ele solicitava ajuda porque recebeu um presente. Um convidado lhe deu uma garrafa de uísque Johnnie Walker (Label). O mistério, após ter avaliado a qualidade da bebida, informou que ninguém a tomaria com ele. Entretanto, aquele mesmo jovem dominicano o questionou, quando viu que Guedé oferecia a bebida ao homem que lhe deu o presente: – E com quem tu tá repartindo? Guedé então justificou: – Porque garçon me compra isso. Cuerno! Mas garçon o compra. [sic] ele o compra. Assim, o misterio acabou por pedir um vaso de corte (copo rompido) para brindar com os convidados: – Todo o que tem um vaso de corte que se alinhe. Que se alinhe. Apesar de disso, à medida que distribuía a refeição, ele comia e comentava que o estavam pelando – uma referência à comida que diminuía – e que faltavam ovos na bandeja. As reclamações de Guedé continuaram ao longo da festa. Ofendido, ele esbravejou: Corno! Não me colocaram óculos nem me puseram pó [talco], não me puseram nada. Também como se passou com Belié Belcan e Candelo Sedifé, alguns convidados deram início à busca dos objetos e substâncias que Guedé pedia. Quando os óculos (gafas) e o macuto apareceram, o mistério pediu que fossem colocados nele. Mas ele já vinha avisando que estava cansado e que iria embora. Queria apenas dividir um pouco mais sua comida com os convidados. A alguns ele pediu que colocassem a comida em um plato de corte (prato rompido) no interior da casa ou do negócio; a outros, quando comessem a comida, que pedissem pela proteção dos filhos. A outros que ainda não tinham se aproximado, ele perguntavam se não iriam comer. E, em tom de brincadeira, de alguns foi exigido o pagamento pala comida. Janaína não se sentia muito bem, já era quase meia-noite, e agora eu fui quem precisei ir embora. 4.3 TRANSFORMAÇÕES Para além do fato da primeira parte da festa que descrevi se desenrolar principalmente, mas não exclusivamente, como uma missa católica – através da leitura comandada por Dina de um panfleto litúrgico e do livro Horas Santas –, os modos como os próprios mistérios se apropriam de artefatos e linguagem ritual que geralmente são associadas ao cristianismo, mais especialmente ao catolicismo, têm destaque. A estátua de São Miguel no altar informa a maneira como Belié Belcan se veste para a sua festa, uma maneira dele celebrar como morto o seu dia, foi o que ele me falou montado em Armando. A vestimenta da imagem do santo, coberta por um manto em tom de vermelho e rosado sobre trajes de um soldado em verde e dourado, foi de certo modo reproduzida na capa confeccionada por Janaína, verde e rosa com detalhes em

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dourado. Tanto o modelo da roupa quanto suas cores seriam do gosto de Belié e fazem parte de seus atributos estéticos. E isso não era uma questão menor do ponto de vista de Belié Belcan. Satirizado por um senhor, convidado da festa, por causa da satisfação que demonstrou ao vestir a capa, esse espírito lhe cobrou respeito, marcando uma diferença de estatuto com seu interlocutor humano (Belié disse que vem de longe) ao mesmo tempo em que o desafiou do ponto de vista da masculinidade. Além disso, o reconhecimento de tais atributos estéticos renderam-lhe um elogio: ser chamado, por uma senhora dominicana, de lindo. Além dessa apropriação de características da imagem do santo pelo mistério, a chegada não apenas de Belié Belcan (mas também de Candelo Sedifé e de Guedé Limbó) na festa, ocorreu enaltecendo um sacramento católico que caracteriza a transubstanciação do corpo de Jesus Cristo. Nos momentos em que esses mistérios se materializam no corpo do cavalo e antes de se apresentarem eles pronunciam, entusiasmados: – Bendito y Alabado El Santíssimo Sacramento del Altar! ¡Gracia la misericordia! ¡Gracia a lo Papa Bon Dieu! Aqui, um ato de sacralidade fundado no altar aparece modificado e ampliado. O altar e o processo de transformação (material e espiritual) que nele ocorreriam do ponto de vista do catolicismo, por exemplo, parecem ter sido levados às últimas consequências quando se considera a festa do ponto de vista dos mistérios. Enaltecendo uma transformação que, para esses espíritos, é possível através desse artefato, os mistérios agradecem por ter chegado para celebrar – comer, beber, estrear roupas, rivalizar, informar, reclamar – com os vivos. Assim como ocorreu no meu encontro com a guedé, em que seu engajamento com os quadros de santos permitiu-lhe explicitar uma visão singular sobre Deus, crença, e arcanjos, Belié Belcan e os outros mistérios da festa parecem falar de uma perspectiva que subverte as imagens e linguagens do catolicismo (ou mesmo do cristianismo). Tais espíritos não têm lugar nesses sistemas religiosos, mas apropriando-se das imagens de santos, dos sacramentos católicos e liturgias eles se apresentam como múltiplos seres que se concebem e agem como divinos.

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CADERNO DE IMAGENS (CAPÍTULO 4)

Imagem 20. Da esquerda para a direita, quadro de Ogun Balendyó/São Santiago Apóstolo (segundo) tendo atrás Ogun Ferraile, cavaleiro com armadura e espada. Botânica do Mercado Municipal de San Francisco de Macorís, República Dominicana, outubro de 2010. Foto: Alline Torres.

192 Imagem 21. Altar para a festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. À esquerda, quadro de Metresili/ Virgem A Dolorosa, repleto de colares femininos. Ao centro, a grande imagem de São Miguel. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 22. Serviço ritual para os mistérios: maní (grãos secos torrados iluminados por velas no interior da bandeja). À direita, o jarro divisional, objeto ritual da 21 Divisão e sobre a mesa mais elevada uma porção da comida oferecida a Belié Belcan. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.

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Imagem 23. Serviço ritual (feijão e arroz, batata doce e arenque) para Guedé Limbó (São Expedito) no dia da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.

195 Imagem 24. Objetos de Guedé Limbó: ao fundo, seu macuto (sacola de palha), seu chapéu feito com esse mesmo material e seu lenço preto. Dia da festa de São Miguel Arcanjo/Belié Belcan. Santurce, San Juan, 28/9/2010. Foto: Alline Torres.

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CAPÍTULO 5 AS COISAS MÁS NA CASA Sobre las formas de hacer los rituales hay mucho que decir. Ya te he dicho que no hay dos casas donde las cosas se hagan iguales. Si cuando los orichas fueron traídos de África tuvieron que adaptarse de las selvas de allá a los montes de aquí, también tendrán que hacer lo mismo ahora que algunos santeros se los han llevado para el Norte [EUA]. Si la adaptación de ellos a Cuba fue obligada por la esclavitud, la adaptación al Norte tendrá que ser más voluntaria, porque los santeros se fueron porque quisieron. No pasará mucho sin que veamos a un Changó vestido como un esquimal; y a Yemayá y a Ochún con botas y abrigos de pieles y hasta con patines de hielo para poder andar por los lagos y ríos congelados de allá. Hay cosas que se han perdido en el Norte, como otras también aquí. Allá ir a la plaza no es posible. No tienen plazas como las que teníamos en Cuba; solo mucho minimax, pero no sirven para el ritual de la plaza. Nosotros también hemos perdido, en parte, porque como existían los lugares donde hubo plazas, el ritual se hacía de forma simbólica. Cuando las plazas dejaron de ser plazas y lo que se vendía en ellas se podía comprar por los puestos de vianda de los barrios, los iyawós con yubona [sacerdote masculino] iban a la plaza, al edificio del Mercado Único, saludaban las cuatro esquinas y regresaban al ilé, a la casa de santo. Ahora que ya no hay plazas de nuevo en eses lugares, como las había antes, es decir, que tú podías ir comprar viandas, frutas y algunas otras cosas, se siguen haciendo las ceremonias de igual forma” (Santero entrevistado por Robaina, Tomás Fernández. Hablen Paleros y Santeros, p. 62)

5.1 SOBRE ALGUNS ESPAÇOS PRECÁRIOS Meus interlocutores dominicanos estabelecem distinções entre os mistérios, espíritos que foram deificados e são considerados divinos ou seres de luz e aqueles chamados de mortos. Esses últimos podem ser espíritos de seres humanos desconhecidos que transitam pelas ruas, de familiares e amigos, ou ainda anônimos, que são enviados por meio de trabalho de bruxaria para causar danos, chamados também de coisas más (las cosas malas).112 Rosa e Joana viam todas essas entidades como espíritos cuja aproximação nunca é bem-vinda. Para Rosa, os espíritos de familiares deveriam ficar no outro mundo. Isso era o que ela dizia ao ser procurada na botânica por clientes que lamentavam o falecimento dos seus próximos ou sentiam-se afetados pela presença desses mortos

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As coisas más podem ser descritas apenas como espíritos invisíveis, o que dá margem a pensá-las como sendo não exatamente espíritos de mortos humanos, mas uma forma espectral bem mais difusa e desconhecida.

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humanos. Morto é atraso, Joana argumentava sempre que queria diferenciar-se da maneira como os paleros trabalham. Elas (mas também Gina) procuravam afastar tais espíritos com algumas técnicas vinculadas, principalmente, à manipulação de substâncias de odor acre e amargo, estivessem essas substâncias sob a forma de plantas ou de produtos químicos. Como uma espécie de contraponto às relações que as pessoas mantêm com os mistérios, em que a manutenção ritual é realizada como uma forma de produzir dependência recíproca e trabalho entre ambos, neste capítulo serão descritas outras modalidades de apropriação material e interações entre seres humanos e espíritos. Tratase de dois casos em que espíritos indesejáveis entram em contato com os seres humanos: em um deles tais espíritos são chamados de coisas más, no outro quem emerge é um morto humano familiar. Essas descrições estão em sua maior parte baseadas nas práticas de compra nas botânicas. Ou fazem alusão aos produtos dessas lojas. A radicalidade do caráter invasor e perturbador – algo a que os mistérios não estão completamente isentos, como procurei demonstrar no primeiro capítulo – atribuída aos diversos trânsitos e contatos dos chamados mortos com os vivos, é mais ou menos contida com técnicas que buscam seu afastamento temporário e controle relativo. O fato de Joana e Rosa procurarem conter a aproximação dessas entidades têm implícito um aspecto que merece ser explicitado. Enquanto pessoas que têm os mistérios elas lidam com seus espíritos herdados em um universo conceitual que não se sustenta apenas pelas relações de reciprocidade e trabalho, de fortalecimento mútuo e de disposição dessa potência a terceiros. Isso porque as pessoas e os mistérios são informados por uma cosmologia que não se restringe à 21 Divisão. Esta parece existir em uma “atmosfera”, para usar um termo de Ochoa, ainda mais densa e complexa, em que ameaças de agressão mística poderiam vir de muitas direções. Fazer essa observação é importante porque, durante o trabalho de campo, ao lado dos mistérios, as coisas más eram mobilizadas em comentários dos meus interlocutores dentro de suas casas e nas botânicas, sobre situações em Porto Rico e na República Dominicana, em relação a quem tinha o dom e àqueles que não o tinham. Diante dessa onipresença, era difícil, entretanto, apreender o que eram ou onde estavam as coisas más. Elas eram muito menos salientes para mim do que era observar Joana e suas sutis e controladas mudanças de comportamento porque Anaisa estava metida na botânica; Gina e sua sobreposição de expressões e informações com Ogun

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Balendyó; Rosa e suas explosões de força que remetiam a São Miguel. Essas modalidades de incorporação entre pessoas e seus espíritos herdados se tornavam mais explícitas para mim com o convívio e a atenção a seus estilos de comportamento, modos de enunciar (e enunciados) e gestos. Com relação às coisas más, os indícios da presença dessas entidades na casa apareciam basicamente sob a forma de proteção. Na casa de Rosa, cruzes eram feitas com anil nos cantos das paredes dos cômodos. Na botânica dela e na casa de Gina pañuelos com as cores do gosto de São Miguel (vermelho e verde) foram pendurados no alto da porta junto a pedaços de pães, a cruzes envolvidas em fitas nessas mesmas cores, e a ferraduras e plantas como resguardos que invocavam a presença protetora daquele e de outros mistérios. Os pañuelos poderiam ser vistos ainda pendurados no alto dos portões ou grades na vizinhança em Río Piedras. E, em uma casa ao lado da de Gina, na vila em que ela morava, uma veve (símbolo ritual) foi desenhada na porta de entrada. 113 Além desses resguardos para a casa e os negócios, outros geralmente sob a forma de pulseiras trançadas pelos próprios mistérios eram colocados ao redor do pulso. Contudo, mais do que essas proteções, o que se destacou durante todo o trabalho de campo – e eu fui submetida também a mesma técnica ritual no despojo na praia – foi a liberação de muitos odores. Manipulando principalmente certas substâncias químicas e plantas, os meus interlocutores dominicanos procuravam fazer com que o corpo humano, através da pele, e a casa e os objetos, através de suas superfícies, fossem expostos a odores incômodos. Assim realizavam a chamada limpeza por causa desses espíritos indesejados. Referindo-se a cenários etnográficos diferentes, Shaw (2002) e Palmié (2002) discutiram como técnicas rituais contemporâneas em Serra Leoa e Cuba condensam táticas de guerra e escape que vigoraram, nos dois lados do Atlântico, em conexão com o comércio transatlântico de escravos. No caso de Serra Leoa, Shaw discutiu como os falantes da língua Temne recuperaram em seu cotidiano a paisagem de rios e estradas como o domínio de experiências sobre emboscada, invasão e captura. Nesses ambientes, pessoas foram transformadas em cativos de chefes locais, posteriormente de comerciantes de companhias europeias e, depois de uma longa, violenta e incerta travessia, propriedade de outros senhores além mar.

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Caderno de Imagens do Capítulo 5. Imagens 25, 26, 27, 28, 29.

199 Mesmo durante o dia, o mato e as estradas que se percorrem poderiam ser espaços ameaçadores. Não pareciam ameaçadores para meu olhar europeu [...]. Mas a ameaça era invisível: espíritos do mato ‘capturavam’ as pessoas que entravam em seu domínio sem proteção ritual, fazendo particularmente crianças desaparecerem na floresta para sempre. Esses espíritos podem capturar adultos também, deixando suas vítimas loucas e sem orientação, transformando-as em pessoas perturbadas que vagam pelas estradas e pelo mato sem sentido de lugar. Naquela época, o perigo das estradas residia nos espíritos e feiticeiros do mato que viajam à noite por elas, reunindo-se nas estradas e atacando viajantes humanos sem sorte. Os rios, por sua vez, eram as moradas de sereias sedutoras e ricas que poderiam fazer um homem rico, mas ao custo de seu casamento, sanidade, e mesmo de sua própria vida. (SHAW, 2002, p.49).

Uma consideração de Shaw que me parece interessante diz respeito à transformação dos seres invisíveis que habitam as paisagens como rios e estradas em Serra Leoa. Tais espíritos, ela observa, tornaram-se seres geralmente negativos, “amorais” e “destrutivos”, que se localizam em áreas externas àquelas onde os seres humanos se estabelecem. Excetuando-se os espíritos do rio ou do mato com os quais alguns antepassados tiveram relações especiais e duas associações de culto (Poro e Bondo) – ambos encontrados em lugares sagrados da floresta afastados da vila – apenas dois tipos de santuários permaneciam e se localizavam com alguma centralidade. 114 E esses santuários, Shaw salienta, não eram espíritos da casa, mas forças que foram humanas ou tinham sido: um santuário de um antepassado, outro de gêmeos (SHAW, 2002, p. 51- 52). A percepção desses perigos implicou não somente uma modificação na maneira como as comunidades falantes de Temne passaram a lidar com os espíritos encontrados naquelas paisagens. A compreensão sobre as ameaças desses lugares ou que deles poderiam chegar permitiu ainda que técnicas rituais de proteção (closure) e de confusão visual (darkness) fossem empregadas. Com relação às técnicas de prpteção, Shaw notou que os poucos ancestrais que guardam uma vila são concebidos como “chefes de guerra”, “guerreiros”, que defendem a comunidade dos espíritos do mato e dos feiticeiros, assim como a defenderam das incursões humanas no passado. Para que a sombra de uma feiticeira falecida se mantivesse longe da casa, pequenos machados foram cravados em um pedaço de madeira em frente à porta. Se a sombra da mulher se aproximasse, foi dito a Shaw, os ancestrais agarrariam os machados e lutariam com ela para afastá-la (SHAW, 2002, p.55). 114

Shaw conduziu seu trabalho de campo em diferentes comunidades Temne, entre os anos 1970 e 1990.

200 [...] as possibilidades múltiplas de emboscada, captura, e incursão por espíritos e (mais intermitentemente) ‘pessoas pequenas’ do mato recapitula padrões de ataque que prevaleceram nos períodos dos comércios atlântico e legítimo. Os espíritos ubíquos e vizinhos dos início dos séculos XVI e XVII [...] não foram apenas banidos para o mato séculos depois. Eles também se tornaram desonestos, transformados – com a exceção dos espíritos domésticos da vila – de benfeitores que coabitavam em assaltantes amplamente destrutivos. Em sua metamorfose e exclusão enquanto seres externos, eles integram a violência dos comércios atlântico e legítimo no lugar e no espaço, transformando a paisagem em uma paisagem de memória (SHAW, 2002, p.56).

De acordo com ela, as técnicas de fechamento e confusão visual criam, respectivamente, um estado de impenetrabilidade e ocultação rituais, na media em que reelaboram os padrões de defesa que prevaleceram durante o comércio de escravos para as Américas e dentro da África Ocidental. Casas protegidas com “encantos” que impediam a penetração de espíritos do mato e dos feiticeiros, pendurados internamente na porta ou no meio das vigas da construção, elevando-se do teto, materializavam alguns dos “fechamentos” que Shaw observou em Serra Leoa. Tratava-se de garrafas “místicas” ou amuletos islâmicos benzidos em nome de Deus e dos ancestrais. O corpo humano também era submetido a tais técnicas de fechamento. Amuletos sob a forma de pulseiras com búzios, presos ao redor do corpo, e islâmicos, também envolvendo o pulso, eram usados especialmente por crianças contra o ataque de seres invisíveis. Para os adultos, camisetas também abençoadas feitas com tiras de tecido vermelho e branco cheias desses “encantos” eram usadas sob as roupas como amuletos de proteção (SHAW, 2002, p.48). Para Shaw, essas técnicas de fechamento associam-se às “armaduras místicas” para o corpo, e à construção de fortalezas e paliçadas contra a invasão de guerreiros, cujas brechas e pontos elevados funcionavam como locais de observação contra o ataque e saque à procura de escravos (SHAW, p.58-59). Com relação às técnicas de confusão visual, Shaw destaca os “encantos” e as práticas de segredo ritual e verbal que a associação de culto Poro (masculina) elabora para controlar os estados de “ocultação” ritual do corpo humano. Essa associação responsável por treinar os guerreiros, bem como organizar e regular a guerra e a paz em Serra Leoa contemporaneamente, conseguia, através de seus “encantos”, habilitar os adeptos Poro a cruzarem estados em que a distinção entre “esse mundo” e o “mundo dos espíritos” entrava em colapso. Aos adeptos eram conferidas capacidades tais como não ser ferido quando agredidos por armas, habilidade que demonstravam em performances públicas cortando-se a si mesmos com facas.

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De modo semelhante a Shaw, Palmié, como venho chamando a atenção desde o final do segundo capítulo, argumentou no sentido de que as técnicas rituais empregadas nas regras del palo, especialmente aquelas que se utilizam das ngangas como um meio de observar e adquirir informação através de espíritos enviados à casa de inimigos rituais, poderiam ser concebidas como “armas de guerra”. Shaw (2002, p.67) enfatizou que as transformações criadas com o comércio escravo estão registradas em uma modificação da paisagem, na qual se deslocaram a proximidade e intimidade dos espíritos do mato junto aos Temne. Mas essas transformações estão também incorporadas na permanência de técnicas rituais que se desenvolveram junto com essa forma de troca vivida como emboscada, invasão e apreensão. Já Palmié assumiu que as táticas rituais empregadas na manigua (ou no monte) recriam no trabalho ritual conduzido por paleros um universo conceitual em que a cura de malefícios é alcançada através da agressão mística. De acordo com ele, naquele contexto, obter o controle da própria subjetividade poderia significar privar outros disso (PALMIÉ, 2002, p.177). Eu retomo as discussões desses autores observando que elas não se replicam diante das especificidades cronológicas e contextuais que caracterizaram, em cada lado do Atlântico, a emergência de socialidades marcadas pela experiência de subordinação, trabalho forçado e comercialização de africanos. Ao trazer a contribuição desses autores, pretendo chamar a atenção para o que ambos apontam como formas de vida forjadas pela instabilidade e violência no interior de “espaços precários” de existência (SHAW, 2002, p.65; PALMIÉ, 2002, p.181-189). São espaços precários que, parece-me, rondam os meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos também hoje. Ao redor deles, no interior de suas casas e na entrada dos negócios como as botânicas, eles descrevem ameaças que remetem às táticas de guerra do monte baseadas em agressões místicas como o envio de espíritos. Por se configurarem como práticas de ataque, essas agressões requerem também resguardos de proteção que não são completamente estranhos às técnicas de fechamento da casa e do corpo mobilizadas pelas comunidades Temne. É chamando a atenção para esses aspectos que eu sugiro que as casas e os corpos, com e apesar dos mistérios, são domínios da existência também precários. Domínios

sobre os quais parecem atuar também certas formas de

“improvisação” sobre atos rituais (mais ou menos) estáveis, como sugeriu Das (2010) para os tipos de visões e sonhos nos quais indianos lhe diziam ter se tornado o alvo

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específico do comando e do desejo de espíritos ou deuses que lhes escolheram comunicar. Embora tais seres não tivessem nenhuma relação já codificada que, para aqueles indianos, justificasse esse contato. Uma dessas “improvisações” rituais, comum entre meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos que frequentam as botânicas e que faz da casa um espaço instável de existência, remete ao envio da agressão mística. Para isso, emprega-se uma técnica sobre a qual se comenta mais abertamente nas botânicas: a invocação de espíritos intranquilos via orações à luz de vela, o que direcionaria tais entidades instáveis para a casa daqueles que deveriam ser perturbados do ponto de vista físico e emocional. As velas que dão luz aos mistérios poderiam também deslocar espíritos que criam instabilidade. Foi nesse sentido que propus, no final do terceiro capítulo, que o próprio monte se tornou uma paisagem espectral. Ela assombra contemporaneamente meus interlocutores dominicanos e porto-riquenhos sem que para isso seja importante a objetifcação de espíritos individualizados. Essa paisagem do confronto místico não mapeia, para os meus interlocutores, necessariamente pertencimentos nacionais, fatos históricos registrados documentalmente ou personagens discretos e bem caracterizados, como tentei indicar aos analisar os vestígios de Gran Toroliza no monte, que Gina recuperou para si mesma e para mim ao narrar como ocorre a incorporação desse mistério petro. Pessoas como Joana, Rosa e Gina sabem que espíritos impetuosos e rebeldes vivem nelas no monte (e nelas). Mas outras, como os clientes porto-riquenhos e dominicanos que as procuram por causa dos sintomas da agressão mística em seus corpos, não sabem disso obrigatoriamente e de antemão. E tampouco elas e seus clientes fazem referência a qualquer espírito (ou petro) do monte. Ainda assim Joana, Gina, Rosa, e seus clientes (ou familiares) lidam, em suas casas e em seus corpos, com algumas técnicas de propagação de malefícios e de defesa contra inimigos que estão fundados no envio do ataque. São essas técnicas rituais específicas e as categorias que descrevem tais formas de agressão espiritual que se fazem atuais no cotidiano dos meus interlocutores. Trata-se de viver em zonas específicas de combate tais como havia salientado Palmié. É justamente enquanto uma forma de socialidade que é sentida como algo da ordem da dispersão, da incerteza e da dificuldade de definição e discernimento de espíritos reconhecíveis e individualizados que a paisagem do monte subsiste, tornando-se ela mesma espectral.

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De acordo com Rosa, por exemplo, as substâncias que ela manipulava ou ensinava os clientes a fazê-lo são para vencer e dominar dentro de casa, afastando ameaças espirituais através dos odores que amônia e aguarrás possuem. Joana, por sua vez, durante certo tempo utilizou enxofre e pólvora, em combinação com plantas ditas amargas, para espantar um morto humano que lhe foi muito íntimo, com que ela conviveu por anos dentro da casa. O que está em jogo nessas técnicas rituais, eu proponho, é o manejo de certas formas de dispersão que vigoram em conflitos. Tal manejo de substâncias químicas são as armas de Rosa nessas novas guerras místicas. Seus inimigos, como Shaw destacou, são entidades espirituais que não necessariamente se equivalem: mortos familiares, mortos desconhecidos que perambulam pelas ruas, e as coisas más. No entanto, para ela todas essas entidades deveriam ser afastadas ou espantadas para o outro mundo, aquele da obliteração. O arsenal ritual contra essas diferentes entidades espirituais Rosa encontrava em sua botânica. 5.2 BOTÂNICAS: ENTRE MATERIALIDADE E COSMOLOGIAS O universo material das botânicas na Plaza del Mercado de Río Piedras, em especial a de Rosa, era constituído por uma variedade de artigos religiosos como imagens de santos e velas, objetos como colares e orações, produtos químicos e plantas. Um primeiro olhar em direção à loja, que de modo mais imediato poderia ser visto como simplesmente comercial, sinaliza a existência de uma série de incensos, velas de variados tamanhos, sprays, frascos com líquidos coloridos – chamados de águas espirituais e de óleos (aceites) –, banhos e despojos, sabonetes, especiarias (canela, tipos diferentes de pimenta, mostarda, anis-estrelado, noz moscada), além de raízes e plantas. Essas, no entanto, eram as mercadorias visíveis aos clientes.115 No interior da botânica, longe dos olhares mais interessados e curiosos, Rosa guardava os produtos químicos como água de amônia, benzina, creolina e aguarrás, cujos rótulos dos frascos indicavam tratar-se de produtos venenosos.116 Rosa explicou-

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Como destacou Polk (2004, p. 22, 29, 31) em sua pesquisa etnográfica nas botânicas de Los Angeles, particularmente na parte sul da Califórnia, dependendo dos sistemas religiosos e terapêuticos de cada estabelecimento, revelavam-se os modos como os itens sacramentais eram utilizados, assim como as maneiras pelas quais os altares, santuários e outros ambientes sacralizados eram construídos. 116 Long (2001, p.99), em seu estudo sobre o processo de mercantilização de “encantos” tradicionais e a emergência de mercadorias espirituais fabricadas e comercializadas por empresas nos EUA que expandiram a negociação de seus produtos nos anos 1920, chama a atenção para o caráter trivial de muitos dos artefatos utilizados ainda nas primeiras décadas do século passado. Baseando-se nos dados, entre outras fontes, coletados pela antropóloga e romancista Zora Neale Hurston durante o fim dos anos 1920 e o início de 1930 junto aos trabalhadores espirituais na cidade de New Orleans, Long (2001, p.55) indica que vários dos ingredientes “mágicos” eram conservantes básicos e produtos de limpeza, especialmente de uso doméstico (amônia, enxofre, assa-fétida, anil, detergentes). Nos relatos recuperados

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me que cada uma dessas substâncias possui um cheiro e uma função: a benzina era utilizada para vencer as coisas más, o demônio... para vencer e dominar na casa; a água de amônia para sacar o demônio e os mortos maus (misturada a líquidos preparados como banho); a aguarrás para vencer e limpar a casa; a creolina também para limpar a casa. Também fora do alcance da visão, encontravam-se os pós, chamados de azufre (enxofre) e precipitado rojo, e, sem menos cuidado, tabletes de anil, com o qual são feitas cruzes nas paredes dos ambientes domésticos e no corpo após os banhos.117 As atividades de Rosa na botânica não se limitavam às vendas. Ali, ela preparava também alguns trabalhos espirituais, como mencionei no primeiro capítulo. Os de amor eram os mais comuns (mas não os únicos), e, geralmente, eram solicitados por mulheres dominicanas e porto-riquenhas, jovens e adultas, o que não excluía a ida de alguns clientes masculinos (que procuravam Joana também com freqüência) solicitando especificamente isso.118 Para alguns desses trabalhos, os clientes compravam as mercadorias recomendadas por Rosa, que as manipulava às vezes no interior da botânica. Alguns clientes voltavam para comunicá-la que os trabalhos foram bem sucedidos, outros para requerer dela a continuidade caso o efeito esperado não houvesse se concretizado. Entre os clientes, havia aqueles que eram desconhecidos, que estavam ali pela primeira vez, e outros que eram parentes ou vizinhos de Rosa, e a procuravam com certa regularidade. Além dos trabalhos de amor, boa parte do cotidiano de Rosa na botânica caracterizava-se por aconselhar e recomendar alguns clientes sobre a compra de certas mercadorias para sacar as coisas más. Porque ouvia a expressão com tanta frequência, perguntei-lhe o que eram as coisas más. Rosa disse-me que eram a má sorte, a raiva, tudo isso… os maus espíritos. Além das coisas más, existiam também os espíritos de boa sorte, espíritos que são bons, porque os espíritos são maus e bons. Quis saber então se os espíritos maus por Long em Spiritual Merchants, substâncias com odores fortes como, por exemplo, enxofre, amônia e assa-fétida eram “encantos” de proteção. Já nos anos 1940, essas substâncias químicas e produtos básicos de limpeza assumiram, segundo Long (2001, p.57), a forma de lavados de banho (para o corpo) e de piso (para as casas). Tais lavados poderiam atrair indivíduos e influências desejáveis e manter pessoas indesejáveis e maus espíritos afastados. Embora em alguns dos relatos reproduzidos por Long substâncias como a amônia possam servir tanto para proteger como para a preparação de um “trabalho mau” (bad work) (Long, 2001, p.59), a primeira forma de uso se associa às descrições que Rosa me ofereceu mais acima. A autora ressalta que “encanto” é um termo europeu, cujo emprego é raro nos “sistemas de crença de origem africana”. Long (2001, p. xvi) afirma que faz uso dessa noção como uma designação genérica para os muitos nomes pelos quais tais artefatos são chamados. 117 O anil é um produto químico utilizado durante a lavagem de roupas para deixá-las brancas. 118 Rosa ensinava alguns trabalhos aos clientes que deveriam ser preparados com excrementos de animais. Tais trabalhos eram considerados mais fortes.

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poderiam ser chamados por seus nomes, como ocorre com os mistérios, se possuíam e se apresentavam com características semelhantes às de pessoas. Rosa respondeu-me que os maus espíritos são invisíveis... [os] que não necessitam porta aberta para entrar, são como que invisíveis... Para Rosa os espíritos têm a capacidade de intervir de diversos modos na vida dos seres humanos. Suas ações podem ser sentidas em domínios como o espaço doméstico e o corpo. Mas a presença dos espíritos maus seria percebida a partir de indicadores específicos: – Quando alguém não dorme, sente calafrio, tudo se sai mal, se desespera… há pessoas que querem tirar a vida, há pessoas que se enfermam… um exemplo, se todo está se saindo bem e tudo se modifica [te cambia para trás], tudo te sai mal, isso significa que há um espírito mau, Rosa me disse. Durante as relações de compra e venda das plantas, notava que alguns clientes, especialmente os imigrantes dominicanos detentores de certos códigos, cheiravam as plantas, referindo-se à preparação de banhos doces e banhos amargos. Depois de certo tempo, atentei que as plantas estavam organizadas na botânica de Rosa em dois grupos, conforme seu odor e gosto. As perfumadas e adocicadas eram reunidas de um lado, as acres, de outro. Perguntei à Rosa que plantas eram usadas para os chamados banhos amargos e ela me deu alguns exemplos: quita maldição para retirar (sacar) a maldição; anamú, para todo o mal, altamisa, rompe zaraguey; além de água de amônia – ela completou – para sacar os mortos, espantar os mortos. 5.3 UMA SUSPEITA DE BRUXARIA: ATIVANDO ODORES ACRES, AFASTANDO ESPÍRITOS MAUS Em uma tarde na botânica a vi separando algumas plantas (albhaca, paçote, altamisa, flor de libertad), um frasco de Espanta Diablo (banho e despojo espiritual), duas velas brancas pequenas, duas velas grandes, de São Miguel (vermelha) e São Santiago Apóstolo (lilás). Após certo tempo, Luci, sua cunhada, chegou à Plaza del Mercado e Rosa contou-lhe que Julio, seu primo, estava com problema; e que ela já estava com algumas velas (branca, de São Miguel e de São Santiago). Ambas demonstraram preocupação. Pouco depois, Rosa me chamou para acompanhá-la até a sua casa. Lá começamos a conversar na cozinha. Ela pegou uma garrafa de rum – que havia comprado na Plaza antes de sairmos – e de água florida. Ao abrir essa última garrafa, um pouco do líquido respingou em seus olhos, e ela reagiu dizendo-me que quando isso acontece é porque o santo quer mais.

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Em seguida, ela me chamou até o quarto dos santos, onde mantinha um altar para os mistérios, e disse-me que gostaria de me mostrar o que faria. Pôs água florida em uma taça, a maior e central, que ficava na parte superior do altar. Em seguida, molhou as mãos com a mesma água florida e borrifou um pouco sobre os santos. Ao observá-la, perguntei-lhe por que o fazia, mas ela não me ofereceu resposta. Voltamos à cozinha, e ela pôs as plantas que havia trazido em um recipiente com água e depois as levou para ferver. Começou então a fazer um remédio contra gripe que seria armazenado em garrafas a pedido de um parente que estava com a filha doente e de um amigo. Enquanto isso Rosa falava ao telefone com familiares na República Dominicana sobre os problemas do seu primo Julio. O banho que estava sendo preparado seria para ele. Ao telefone, ela informava que Julio e outro primo têm espíritos na casa e que os espíritos querem matá-los. Na conversa, ela fazia referência a um lugar em Santo Domingo (nome da capital do país, mas que os dominicanos empregam de forma genérica para qualquer cidade e local da República Dominicana) no qual bruxas faziam trabalhos (e Julio poderia ter sido alvo delas) e a uma mulher haitiana. Depois que Rosa encerrou a chamada telefônica, eu aproveitei a situação em que nos encontrávamos e quis saber com quem ela havia aprendido a preparar o remédio e os banhos. Ela sabia preparar as garrafas porque observava sua mãe, mas começou a fazê-las sozinha; já os banhos, ela aprendera sem observar ninguém, pois sua mãe, ela me disse, não gosta dessas coisas. Para Rosa, um saber como o que detinha ocorre quando as pessoas nascem com esses dons. Por causa do que conversávamos, interessei-me em entender desde quando ela tinha o altar dos mistérios. Evitando se prolongar, ela respondeu sucintamente que começou a organizá-lo desde que arrendou a botânica. 119 Rosa silenciou-se. Após alguns segundos comentou que, quando era mais jovem, já tinha santos, sob a forma de pequenos quadros, em San Francisco de Macorís, sua cidade na República Dominicana. Disse-me isso e novamente calou-se. Percebi que ela não queria conversar sobre o que tinha acabado de associar: a obtenção da botânica e o início da organização do altar.120 Eu a ajudava a cortar as plantas para a preparação das garrafas, quando o telefone de Rosa voltou a tocar. Alguém estava na Plaza e queria conversar com ela. 119

De uma senhora porto-riquenha que, algumas vezes, vi indo à Plaza para receber o valor do arrendamento. 120 Durante a viagem que fiz com Rosa até San Francisco de Macorís, soube que ele fez uma festa para São Miguel no ano anterior, em 2009, na casa de seu padrinho nos mistérios, tio de Diogo.

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Nós então regressamos até lá. Alguns minutos depois chegaram Pablo, também seu primo, com a companheira. Eles já haviam estado ali outras vezes. Em uma dessas idas, o casal havia passado um bom tempo no interior da botânica conversando com Rosa. A moça estava enfrentando alguma dificuldade onde trabalhava. Depois de ouvi-los, Rosa indicou que comprassem, entre outras coisas, água florida, tabletes de cânfora, algumas plantas como arruda, águas espirituais, benzina, incenso e uma vela grande de São Miguel. E explicou-lhes: primeiro, a moça deveria limpar seu corpo com um banho e depois acender a vela em nome do santo. Simultaneamente, deveria espalhar pela casa, com a mão direita, um produto que me pareceu uma espécie de açúcar, cujo rótulo indicava 7 Potências Africanas. Além disso, Rosa recomendou à moça a limpeza de objetos como a mesa do local em que trabalha com a benzina. Agora, o retorno à botânica também tinha a ver com assuntos espirituais. Pablo era o outro primo a quem Rosa se referiu no telefonema que recebeu da República Dominicana. Ao fim da tarde, depois que fechamos a botânica, regressamos à sua casa. Já havia anoitecido quando Rosa pediu à sua irmã que a ajudasse com o banho de Julio. Sua irmã, no entanto, argumentou que não era boa para orar em voz alta, que fazia isso para si e não para os outros; saiu da casa e só retornou depois que o primo Julio, com a família, já tinha ido embora. Rosa então começou a preparar uma defumação (sahumerio), queimando incensos para fazer uma limpeza com a fumaça. Amarrou ao redor de sua cabeça um pañuelo lilás, e passou a fumaça (humo) pelo próprio corpo: entre as suas pernas e, depois, envolta do corpo, girando-o para a direita e então para a esquerda. Espalhou a fumaça pela cozinha, pelo corpo da filha do primo (que não queria), pelo meu corpo – dizendo que me queria limpa –, e pelo corpo da companheira de Julio. Nós repetíamos o mesmo sentido dos movimentos de Rosa. Enquanto isso, Julio se encontrava no banheiro da casa. Rosa acendeu a vela de São Miguel na entrada da porta da sala e a de São Santiago levou para o quarto dos santos, colocando-a no altar. Ela acendeu as velas brancas pequenas no banheiro onde o primo estava, e passou a fumaça pelo corpo dele. Rosa então pediu que a companheira do primo levasse o banho, feito com as plantas fervidas em água e misturado ao despojo Espanta Diablo, até o banheiro. Nesse momento, aconselhou a mulher a ficar junto com eles para aprender como isso era feito.

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Ao sair, Rosa disse que o primo realmente não estava bem. Ela sabia disso em função de uma indicação material: a pulseira (com imagens de santos) que ela usava em seu braço explodiu (plotar) enquanto ela realizava o banho nele. Enquanto Julio se vestia, Rosa perguntou à companheira dele se na casa em que viviam havia uma cruz, um crucifixo, e apontou para uma imagem (busto) chamada de Grande Poder de Deus, localizada em sua sala. Recomendou, após comentar que o casal não tinha nada em casa, que eles comprassem aqueles objetos e pendurassem na porta e parede – assim como ela o fez – e que a mulher também fizesse a defumação no apartamento em que vivia com Julio e a filha. Antes que eles se fossem, Rosa deu um pouco de incenso para a companheira do primo, além de cascarilla (pó feito com casca de ovo) e um frasco que, pela embalagem, poderia conter água de amônia ou benzina. Além disso, quis saber se ela havia aprendido a preparar a defumação. Quando Julio saiu do banheiro, Rosa quis saber como ele se sentia: se aliviado e se sua pele ardia (picaba). Ele sentia ardência na pele. Sua companheira comentou que era por causa da amônia. Rosa, no entanto, replicou. Segundo ela a sensação de ardência de Julio não era devido à amônia, pois no banho não haveria essa substância.121 Sentados na sala, Rosa continuou a fazer algumas perguntas a Julio. Queria saber se ele estava dormindo bem durante a noite e se vinha tendo sonhos. Rosa, Julio e sua companheira acabaram afirmando que vinham sonhando com algumas pessoas, que incluíam mortos da família. Rosa indagou se o primo gostaria de voltar para Santo Domingo, que atualmente há voos mais baratos para o país e, se ele desejasse, poderia ficar em sua casa naquela noite ou dormir ali até se sentir melhor. Eles conversaram um pouco mais, e o casal foi embora com a filha. A irmã de Rosa retornou à casa e logo depois chegou um vizinho dominicano. Conforme a irmã de Rosa, quando o telefone tocou bem cedo, naquela manhã, por causa de uma ligação de Santo Domingo, ela se assustou, pois era sinal de que algo grave acontecia. Os três iniciaram uma conversa relacionada ao que estava acontecendo com Julio. O vizinho contava alguns casos sobre bruxaria em Santo Domingo e em Porto Rico. Rosa argumentou que o trabalho feito para o primo era uma bruxaria, e ela e o vizinho suspeitaram de uma mulher da República Dominicana. Eles desconfiavam da pessoa com quem Julio era casado e tinha filhos. Acreditavam que ela desejava que ele regrasse. 121

Em geral, as soluções vendidas como banhos e despojos têm em sua fórmula alguma quantidade de amônia informada no rótulo.

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Tanto Rosa como o vizinho argumentavam que o retorno do primo deveria acontecer por causa da outra família que ficou na República Dominicana. Segundo Rosa, o próprio primo lhe disse, enquanto conversavam após o banho, que não queria mais ficar em Porto Rico. Mas a atual companheira não concordava com a sua decisão. O vizinho então cogitou se Julio pretendia ir para Nova Iorque ou Canadá. Rosa argumentou que ele desejava regressar para Santo Domingo mesmo. Para ela, a bruxaria que foi feita já apresentava seu resultado: o trabalho fez com que Julio não gostasse mais da companheira (também dominicana) com quem vivia em Porto Rico, e, tendo percebido isso, ele desejava partir. Para o vizinho, pessoas como Julio poderiam ficar loucas. Rosa então comentou que o primo vinha escutando em sua casa uma voz que lhe dizia se mata, se mata. Tudo o que ela havia preparado naquela noite pretendia interromper a influência de espíritos, enviados da República Dominicana, sobre Julio. Para Rosa, Julio era uma pessoa que sofria de depressão – o próprio primo teria dito isso a ela –, assim como um tio dela chamado Humberto. 122 Seu vizinho ainda mencionou outros casos de bruxaria, e a impressão que tive era de que longe de ser uma exceção, essa noção era mobilizada regularmente no cotidiano de Rosa e sua família. No dia seguinte, Rosa recebeu na Plaza outra ligação, provavelmente de seu país. Nessa ocasião, avisou por telefone que Julio está com uma coisa forte atrás. Enquanto ela trabalhava na botânica, a companheira de Julio chegou. Depois de conversarem um pouco, a mulher comprou algumas plantas, dentre elas um vaso com arruda para pôr na casa, uma vela grande dessa planta, além de outras. Julio teria que tomar outro banho naquela noite. E ele assim o fez. Ao cair da noite ele chegou. Rosa, novamente, começou pela defumação da casa e dos corpos das pessoas. Depois do banho – que vinha sendo realizado durante esses dois dias com o primo chorando, Rosa havia comentado –, mais uma vez ela quis saber se ele se sentia melhor, insistindo na pergunta. Ele disse-lhe que sentia uma dor muito forte na cabeça, que lhe impedia de dormir; diante disso ela voltou a oferecer sua casa para ele ficar naquela noite. Em seguida começou a ler orações de um livro vendido na botânica, particularmente a de Santa Clara, e quando acabou preparou um resguardo

122

Em uma conversa que tive com Humberto ele disse-me que enquanto trabalhava em Nova Iorque sofreu depressão e tinha a sensação de que havia malogrado naquela cidade. Seu retorno a Porto Rico parece que demandou algum tipo de intervenção de Rosa como no caso de Julio.

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com três dentes de alho amarrados em uma linha branca para o primo prender em seu pulso, e um pedaço para ele guardar na carteira. Na manhã seguinte, enquanto nós duas estávamos na botânica, eu conversei com Rosa acerca do que ela vinha fazendo com Julio. Ela me explicou que isso é como um medicamento. Se eu estivesse enferma, ela me interrogou, oferecendo em seguida a resposta, Tu buscas o medicamento... Se tu tens uma dor de cabeça, o que vais tomar. No caso de Julio, o que ela lhe preparou foi um banho para sacar as coisas más. Contudo, além do banho, Julio também precisou ser untado. Ele teria que voltar à casa de Rosa para tomar o terceiro e último banho, mas não foi até lá como vinha fazendo. À noite, enquanto o esperava, a família se reuniu, e novos comentários surgiram a respeito do primo. Eles acreditavam agora que poderiam ter sido os próprios parentes de Julio na República Dominicana que fizeram um trabalho de bruxaria para que ele regressasse. Só vi novamente Julio depois de alguns dias, durante um sábado. Ele foi até à Plaza para ajudar Rosa com as vendas das verduras e frutas, e passou todo esse dia entre nós. Quando retornei a Porto Rico pela segunda vez para dar continuidade ao trabalho de campo, Julio não vivia mais na ilha. Havia viajado para Nova Iorque, onde passou a residir. Sua companheira e filha permaneciam em Río Piedras. 5.4 TÉCNICAS ESPECTRAIS Quando chamei a atenção no início deste capítulo que as descrições sobre as interações entre as coisas más e os seres humanos funcionam como uma espécie de contraponto às relações das pessoas com os seus mistérios, essa observação se baseou em algumas maneiras como os meus interlocutores dominicanos exprimem a aproximação daqueles espíritos indesejados. Tais modos de exprimir percorreram as descrições acima. Os mistérios se apresentam (dizem seu nome) para aqueles que têm esses espíritos. E, a partir do momento em que são invocados, os móveis que se encontram na direção da passagem da porta da casa devem ser retirados, como sinalizei no segundo e quarto capítulos. Retirando-se os obstáculos que estão em seu caminho, os mistérios adentram. Quando perguntei à Rosa o que eram as coisas más e ela me respondeu que eram espíritos invisíveis que não precisam de porta aberta para entrar, sua resposta procurava indicar o fato de que os mistérios têm o seu ingresso permitido nos ambientes domésticos por aqueles que são pessoas. E isso inclui dar passagem a eles abrindo também as portas. Em muitas situações, como descrevi ao longo da tese, eles são

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invocados para a condução e realização das tarefas espirituais. Eles estão na casa, nos altares. Ao mesmo tempo por aí, trabalhando em diferentes cabeças (humanas). Desse modo, precisam chegar. Por sua vez, as coisas más são concebidas pelo seu caráter completamente invasor e desconhecido. Esses espíritos maus, como também são chamados, não são passíveis de ser identificados. Nesse sentido, estão alheios a um enquadramento como aquele dos mistérios que passam pela família, que se fazem reconhecer e são reconhecíveis por uma pessoa por causa das relações prefiguradas dos antepassados com eles. Outro contraponto que merece ser enfatizado não diz respeito ao estatuto dessas entidades, mas sim ao modo como elas interferem na vida dos seres humanos. Esses espíritos agem sobre o corpo dos vivos, produzindo sensações de calafrio, dores de cabeça, insônia e são capazes de materializar-se fora do domínio corporal: suas vozes são ouvidas, objetos explodem (plotar) – o que me parece uma forma de experienciar esse tipo de conflito com base em indicações sonoras – 123 quando estão sob a sua ação. No entanto, quando se fala do corpo, o que eu ouvi comumente é que ele ou ela tinha um morto atrás: – Julio está com uma coisa forte atrás, foi como Rosa comunicou aos familiares na República Dominicana a situação do primo. Nas costas dos vivos, sobrepondo-se como uma espécie de sombra (algumas pessoas são capazes de visualizar isso), que as coisas más se alojam. Essa forma de incorporação é diferente, como discuti no primeiro capítulo, do percurso interno que Gina sente antes que os mistérios a tornem seu cavalo. Além disso, nesse momento, outros mistérios se fazem presentes no ambiente, nas laterais de seu corpo. E mesmo quando não se trata de montar ou subir, o que as pessoas dizem estar em jogo nas modalidades relativas de incorporação é a cabeça, que aparece como a parte do corpo humano a que os mistérios se juntam. Ainda no que concerne ao corpo, atrás dos vivos, as coisas más (ou mortos de uma maneira geral) conseguem circular em ampla medida: entre casas e locais de trabalho, pelas botânicas e pelos altares, levados por aqueles que buscam se consultar com os mistérios, por exemplo. Como uma espécie de condutor, o corpo dos seres 123

Durante o período em que trabalhei com Rosa na botânica e em seus postos de venda de verduras e frutas na Plaza del Mercado, percebi que o barulho acentuado decorrente da queda das caixas das mercadorias gerava nela e em Diogo certo incômodo e insatisfação. Logo que tal fato ocorria, eles direcionavam seus olhares rapidamente para mim. Depois de um tempo percebi que a atitude deles indicava que espíritos indesejáveis, além de nós, poderiam estar presentes ali, derrubando intencionalmente as suas mercadorias no chão através de mim.

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humanos, que pode atrair esses mortos espontaneamente, é concebido não apenas como portador dessas ameaças, mas também como meio de sua propagação. Armando, por exemplo, mantinha em seu altar um vaso ao redor do qual havia várias fitas coloridas, cada uma com a cor referente à divisão dos mistérios. – Uma pessoa que vem [ao altar] com um espírito mau, Armando me explicou, poderia beber da água contida no vaso ou colocá-la sobre a cabeça. Esse símbolo, ele me disse referindose ao jarro cujas fitas o circundavam, são os 21 espíritos (21 División). Outro símbolo dos mistérios em seu altar era os tecidos coloridos suspensos ao teto e centralizados, uma proteção do altar, significam os 7 mistérios [principais], às vezes vêm espíritos maus, vêm com uma pessoa ou sozinhos... os panos ao meio, os protegem Deus e os mistérios, Armando concluiu. Além disso, Armando possuía pendurado ao teto do altar um resguardo: uma cruz enrolada em fitas suspensas (vermelha e verde, as cores de São Miguel), um embrulho e patas de algum animal. Mas se esses espíritos maus podem difundir-se pelos ambientes de convívio humano agarrando-se aos vivos, é o entendimento de que se trata de um combate que ganhe realce nas considerações de Rosa.

Como ela me explicou, as substâncias

químicas como a benzina e a aguarrás são manipuladas para que os seres humanos vençam as coisas más, para que consigam dominar na casa. Do ponto de vista de Rosa, o que se passa em seu ambiente doméstico é uma guerra mística com seres invisíveis. E esse confronto não se limitava à sua casa, mas a de tantos outros a quem ela recomendava na botânica os mesmos produtos e usos para afastar as coisas más. Produtos e usos que, como Long (2001) demonstrou, eram completamente difundidos entre os trabalhadores espirituais negros nas primeiras décadas do século XX nas antigas áreas de plantações escravistas do sul dos EUA. É essa imagem do conflito propagado no interior da casa, travado com seres desconhecidos que ali teriam chegado por causa de técnicas rituais que procuraram controlá-los e direcioná-los para gerar o infortúnio (físico e emocional, como no caso de Julio), que meus interlocutores sentem materializar-se no seu dia-a-dia. Como Shaw salientou em sua discussão sobre os Temne, essas experiências descrevem uma forma de instabilidade radical na medida em que é pervasiva aos espaços de convívio cotidiano. No caso dos meus interlocutores dominicanos, um espaço familiar íntimo e visivelmente coabitado por seres humanos e os mistérios. Mas a instabilidade também é radical porque as coisas más, a partir de sua aproximação dos seres humanos, retiram destes o próprio controle subjetivo, como Palmié indicou. A

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invisibilidade da agressão, da fonte do dano, da potência mística que invade e toma o controle de si, dos desejos, do sono, da casa e incita ações como o suicídio, é vivida como uma paisagem espectral. Trata-se, parece-me, da compreensão de que a vulnerabilidade humana é máxima diante da possibilidade de que diferentes modalidades de dano podem ser experienciadas indiscriminadamente uma vez que sejam lançadas de qualquer parte. Rosa cogitou, primeiro, um lugar onde mulheres haitianas fariam bruxaria em Santo Domingo. Depois a esposa de Julio que permaneceu em San Francisco de Macoris, na República Dominicana, enquanto ele imigrou para Porto Rico. Por fim, os parentes dele que também permaneceram no país. Diante do que afligia e perturbava Julio tanto física e emocionalmente, bem como da dúvida quanto a quem deveriam ser imputados tais malefícios, o que Rosa e seus familiares conseguiram mais ou menos articular como conhecimento significativo é que a situação do primo dizia respeito a um trabalho de bruxaria. O que pode ter sido, um dia, uma forma ritual de ataque como meio de cura (Palmié, 2002) para os interlocutores se trata atualmente de uma forma de fazer dano. Alguns trabalhos contemporâneos sobre modalidades de bruxaria na África têm salientado que a mercantilização de espíritos humanos como trabalhadores forçados em outros domínios do cosmo para o enriquecimento ilícito e dos próprios seres humanos através do roubo de sua vitalidade orgânica, especialmente do sangue, comercializado com vistas ao lucro e bem-estar de bruxos, seria um comentário crítico às transformações globais seculares e contemporâneas no continente: ao deslocamento forçado, à precariedade das formas de trabalho urbano assalariado, especialmente o migrante, ao imperativo da venda e do consumo massivo de produtos de alta tecnologia e de bens menos duráveis a partir de uma lógica máxima de obtenção do lucro, à expansão concentrada e elitista de infra-estrutura e serviços urbanos (COMAROFF & COMAROFF, 1999; GESCHIERE, 2006; SHAW, 1997; WEISS, 1999).124

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Esses trabalhos enfatizam lastros históricos diferentes, especialmente o de Shaw, que defende uma abordagem de longa duração baseada no comércio atlântico de escravos, e não nas mudanças globais mais ou menos recentes em comparação a amplitude que a primeira forma de troca assumiu. Metodologicamente o de Weiss também se diferencia. Ainda que ele discuta a captura de seres humanos para a extração de sangue humano, de acordo com os rumores e as narrativas entre membros Haya de comunidades rurais na Tanzânia, Weiss afirma que isso não é atribuído exatamente a espíritos ou feiticeiros do mato, mas sim a “pessoas gananciosas” que vivem nas cidades e enriquecem através do comércio de tal substância corporal. Para Weiss (1999, p.174), as compreensões acerca da transformação do sangue em mercadoria que gerava o enriquecimento de outros estariam predicadas na maneira como essa substância era conceituada entre os membros Haya. Nesse sentido, tais entendimentos não

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Muito embora narrativas semelhantes de escravização de entidades espirituais perpassem o cotidiano dos interlocutores dominicanos que conheci – e a imagem do bacá, que apresentei no segundo capítulo demonstra isso – a bruxaria como “uma ubíqua e inevitável parte da experiência vivida” (SHAW, 1999, p.867) entre os dominicanos e porto-riquenhos assume menos a imagem de canibalismo, vampirismo e trabalho forçado. O que parece ter maior relevância é uma compreensão sobre perigos que estão dispersos, difusos, que são lançados no ar (e no chão, como os pós, outra forma de bruxaria sobre a qual me foram dados comentários). Nesse sentido, tais técnicas rituais são espectrais não simplesmente porque assustam, mas também porque estão amplamente propagadas. Defender-se dela implica em limpar a casa e os corpos. Enquanto morei com Rosa e sua família, nos dedicávamos a essa tarefa com certa rotina. Já Diogo preparava seus banhos com certa dose de amônia, especialmente quando sentia que sua vida não se desenrolava como ele gostaria. E, no decorrer de uma sequência crítica de eventos, em que tecatos entraram na garagem da casa e roubaram sua caixa de ferramentas e instrumentos de reparo do automóvel, comigo dentro dela mas sem que eu escutasse qualquer barulho, e, posteriormente, seu carro de passeio foi roubado, seus banhos amargos procuravam afastar o que ela via como impedimento à sua sorte. Neste contexto tenso para Diogo, particularmente, eu já vinha frequentando vários altares. Ele não aprovava isso e acabei sendo vista como alguém que poderia estar levando junto comigo, para a casa deles, a má sorte sobre a qual meses antes Rosa me falara: [...] se todo está se saindo bem e tudo se modifica [te cambia para trás], tudo te sai mal, isso significa que há um espírito mau. Limpando a casa, Rosa procurava evitar e expulsar essas entidades. Especialmente no caso de Julio, seu primo, no qual ela se engajou porque é uma pessoa que têm os mistérios, o corpo dele foi submetido aos lavados de banho e a certas plantas. Exalando um forte odor acre, essa composição líquida extrairia dele, mais precisamente detrás dele, a influência negativa dos espíritos maus. A materialidade particular de plantas como a altamisa e o paçote e do Espanta Diablo (cuja fórmula indica alguma quantidade de amônia) caracteriza-se por um cheiro acre que age sobre a

assumiriam a mesma forma em relação a outras narrativas sobre o mesmo assunto na África Oriental, nem descreveria simplesmente bruxaria.

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sensibilidade dos vivos e dos mortos. 125 Afeta, nesse sentido, o que está difuso, muito próximo à pele e às superfícies, mas é invisível. O princípio ativo da técnica de limpeza do corpo de Julio fundamenta-se no pressuposto de que ele e as coisas más partilham uma experiência sensível vinculada ao olfato. Isso, apesar de seus distintos estatutos. Afetar-se aparece assim como um movimento perene entre vivos e espíritos, que tende a remeter mais ao que é comum entre ambos do que àquilo que os separa. Mas afastar ou espantar pelo odor, pareceme, poderia significar que se está lidando com uma dimensão sensível produzida pelas táticas que descrevem a vida precária das paliçadas e trincheiras: cenários repletos de adaptações como aquelas dos montes caribenhos e de alhures, conforme o santero entrevistado por Robaina indicou. 5.4.1 Outras receitas para espantar os mortos Duas mulheres entraram na botânica onde Joana podia ser encontrada todos os dias. Uma era mais velha, a outra mais jovem. Eram mãe e filha que a procuravam, como depois soube. Joana já estava sentada no espaço reservado em que sempre realizava as consultas, atrás do balcão. Quando a mulher mais jovem se dirigiu até Joana, ela tocou o sino. As duas permaneceram ali. Muito tempo depois, a mulher saiu com um papel em suas mãos. Uma longa lista que continha muitos itens escritos. A jovem mulher se dirigiu à dona da botânica, uma senhora também dominicana, que ao ler a lista, reagiu: – Você está bem má! Em seguida, separou arruda e alecrim, Espanta Muerto (uma água espiritual que ela mesma traz da República Dominicana), água florida, Quita Maldición (um álcool) e creolina, informando novamente à jovem cliente que traz a última substância da República Dominicana porque a que se vende em Porto Rico não é como a de seu país. A dona da botânica ainda separou um banho Rompe Brujo, uma vela grande com esse mesmo nome e um spray Corta Fluído. Dirigindo-se aos fundos da botânica, ela pegou ainda um saco no qual guardava mata guangá, e pediu que a cliente o segurasse. Um cheiro ruim se propagou pelo ambiente. Imediatamente, a dona da botânica voltou a afirmar que a jovem estava bem má. E explicou-lhe: o cheiro putrefato que sentíamos era porque a moça tinha algo em cima. Quando ela mesma foi até os fundos da botânica e pegou a sacola com a mata guanguá, nenhuma de nós sentiu tal odor. 125

Uma “materialidade partilhada de vivos e mortos”, como observou Ochoa, em que “os mortos são contíguos e imediatos aos vivos” (OCHOA, 2004, p.18).

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Enquanto a jovem segurava a sacola com a mata guanguá, passou a mão duas vezes por seus braços, como se sentisse arrepios. A dona da botânica argumentou, então, que após o banho com a mata guanguá, a jovem sacará o que tem em cima. Toda a compra custou mais ou menos sessenta dólares, se não um pouco mais. Passou-se certo tempo, e a mãe da jovem saiu junto com Joana do espaço da consulta. Sua consulta tinha chegado ao fim. Feliz, a senhora porto-riquenha disse que sempre tinha amor perto dela, e que não tinha algo mal como a filha. Mas também lhe foi indicado um banho, provavelmente para manter a boa sorte. Enquanto a dona da botânica separava as mercadorias para essa senhora, ela voltou a fazer outro comentário, agora, sobre o que se passava com a sua filha: – Estão lhe lançando para matar (Están tirándole para matar). Antes de ambas irem embora, a jovem perguntou à Joana o que deveria fazer com tudo aquilo que comprara. Joana pediu para ela, primeiro, limpar a casa e depois tomar o banho. A dona da botânica interferiu. Disse-lhe que depois deveria tomar um banho doce, pois já teria sacado... Joana lhe disse, por fim, para usar o spray na casa e então acender a vela. Mãe e filha já tinham ido embora, quando Joana disse-nos que a jovem foi ali havia algum tempo. Depois disso, teria ido a um santero, mas não gostou. Como havia gostado da primeira consulta com Joana, decidiu retornar. Joana argumentou que há quem jogue as cartas e ao saber que foi feita bruxaria para o cliente, o desespera, dizendo-lhe: – Olha, tem um morto atrás de você, te fizeram bruxaria. Eu prefiro orientar a pessoa e não desesperá-la. Se o cliente deseja saber quem está agindo dessa maneira, Joana não lhe conta. Se uma pessoa vai morrer, Joana não pode lhe informar; deveria lhe pedir para procurar um médico porque está enferma; se há traição, pedir cuidado, mas não falar ao cliente isso diretamente, completou a dona da botânica. Para Joana, uma pessoa pode atrair um morto para perto de si apenas andando na rua ou se tornar alvo de uma bruxaria se pisar em algum pó colocado na calçada para outros. Em Porto Rico, ela observou, seria ainda pior, pois não se tinha o costume de rezar pelos mortos, sobretudo, realizando missas: – Os mortos precisam de claridade e orações, ela concluiu. A dona da botânica então comentou: – Os mortos gostam de coisas boas, carros, mulheres bonitas [e rondariam aqueles que têm automóveis para não andar a pé assim como uma bela mulher]. Os mortos são ambulantes, a dona da botânica sintetizou. E, então, comentou: – Há mortos que não querem sair de casa.

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Ao ouvir esses comentários, Joana começou a me contar o que aconteceu com o seu marido depois que ele faleceu. Ou melhor, com o espírito dele, depois que se suicidou. 5.4.2 Joana e seu morto No primeiro dia após o suicídio de seu marido, na cidade de La Romana, Joana decidiu realizar uma missa em sua casa. Antigamente, ela me disse, as chamadas Horas Santas eram realizadas por nove dias, mas atualmente não era assim que ocorria. Somente quando se completaram nove dias do falecimento do marido que Joana realizou uma Hora Santa em casa. Para isso ela convidou muitas pessoas. Era um dia chuvoso e foi preciso instalar uma lona para evitar que os convidados se molhassem. Uma forte ventania retirou, no entanto, essa proteção. E as pessoas buscaram abrigar-se nos lugares cobertos da casa. Joana nunca havia visto um vento como aquele. Para ela, foi o espírito de seu marido que retirou a lona que protegia os convidados da chuva. Ele permanecia na casa em que Joana seguiu vivendo com as filhas depois da morte dele. Por causa disso, Joana precisou fazer muitos remédios para sacar o espírito da casa, assim como tomar vários banhos, com alhos e folhas. Um desses remédios foi utilizando o que, na República Dominicana, é chamado de velón 7 Mechas, no interior da qual podem ser encontrados enxofre (azufre) e pólvora (fula).126 Depois de comprar essas velas grandes, Joana aumentou a quantidade de enxofre – uma coisa que espanta morto, certa vez ela me disse – e pólvora. Ela adicionava mais dessas substâncias às velas para que o espírito fosse embora, para quitar da casa. Durante esse período, objetos e mobiliário se rompiam no interior de sua casa, e, em algumas situações, faltou pouco para ela se ferir gravemente. Joana também sonhava com seu marido em La Romana. Em um desses sonhos, ele estava no chão e ambos brigavam; ela tentava agredi-lo com força, mas não conseguia. Depois de fazer vários remédios – acender as grandes velas 7 Mechas repletas de enxofre e pólvora e tomar

126

Segundo Ochoa (2004, p.94), fula, no palo Kikongo atual (língua ritual utilizada nas regras del palo) significa pólvora, que é importante no ofício religioso. Ele explica que fula não tem nenhuma etimologia no espanhol. Ochoa explica que a pólvora é “quente” não apenas em termos de temperatura quando é acesa, mas também porque se proíbe sua venda e posse em Cuba, e, por isso, adquire-se pólvora pelo roubo. Rodolfo, interlocutor de Ochoa, usava fula para pólvora e para referir-se ao dólar americano. Joana, enquanto vivia em La Romana, trabalhava ritualmente com alguns espíritos petroses, e comentou algumas vezes comigo que usava pólvora para afastar as coisas más da casa de clientes, em função de seu som explosivo. A concepção de que essas entidades também são mais quentes (calientes) perpassa o emprego da pólvora na invocação ritual dos petroses.

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banhos amargos –, ela teria alcançado seu objetivo: quitar o espírito de seu marido da casa. Nove meses tinham se passado desde que ele faleceu e Joana imigrou para Porto Rico no início dos anos 2000. Nesta ilha caribenha, no entanto, teve novamente outro sonho com o espírito do marido. Nele, seu marido dizia-lhe que ela queria sacar ele da casa, mas quem a sacou da casa foi ele. Sua imigração para Porto Rico, desse modo, assumia outros sentidos que não apenas a necessidade de manter a si nessa ilha e as filhas em La Romana, trabalhando os mistérios sem os papéis, expressão utilizado pelos imigrantes dominicanos para referirem à condição de ilegais. Mas esse comunicado, durante o sonho em Porto Rico, não foi tudo. Joana residia havia um ano nessa ilha, quando o espírito de seu marido descobriu onde ela estava. Com ele atrás dela, Joana não conseguia se relacionar com ninguém. Para além de tudo o que implicava ter um morto atrás – sinônimo de atraso, como ela sempre insistia –, Joana se deparava com mais um problema: ter de se tornar legalizada após a entrada clandestina em Porto Rico. A estratégia de muitos homens e mulheres dominicanos que pretendem se estabelecer em Porto Rico é contrair o chamado casamento por negócio. Essa é a maneira como procuram obter o direito de residir na ilha, um território norte americano. Joana também se enveredou nesse caminho, e por duas vezes, pois no primeiro casamento por negócio seu esposo porto-riquenho faleceu. Quando a conheci em outubro de 2010, ela já havia se casado novamente com outro senhor porto-riquenho, com quem chegou de fato a dividir uma residência. Isso, no entanto, só foi possível porque Joana mobilizou um dos mistérios que atende: São Elias/ Barão do Cemitério. 5.4.3 Comprando com São Elias: de pedras a mortos ou de anônimo a afim Depois que o espírito do marido descobriu Joana em Porto Rico, ela decidiu comprar um morto para São Elias. Como descrevi no terceiro capítulo, São Elias/Barão do Cemitério é responsável, junto a outros guedeses, pelos mortos humanos. Herdado e atendido por dominicanos e haitianos, São Elias é também conhecido entre os portoriquenhos que frequentam as botânicas ou passam por consultas espirituais diretamente com esse espírito. Joana foi até um cemitério e procurou a sepultura de São Elias. 127 Escolheu então uma pedra ao redor e comunicou ao santo: – Comprei-lhe um morto. Pagou a São 127

Segundo os meus interlocutores dominicanos, essa sepultura é a do primeiro homem enterrado em um campo santo, como discuti no terceiro capítulo.

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Elias, pela pedra, 7 chavitos (centavos de dólar) que foram deixados na sepultura. Ao chegar em sua casa, iniciou então o preparo da pedra. Confeccionou um boneco com um tecido de uma roupa que fora do marido. Antes, Joana havia telefonado para uma de suas filhas em La Romana e pediu-lhe que enviasse uma camisa do pai, pois gostaria de guardá-la como lembrança. Usou o tecido para fazer uma roupa e inseriu a pedra no interior da vestimenta. Durante vinte e um dias Joana passou suas noites dormindo com a pedra em sua cama.

Ao mesmo tempo acendia uma grande vela que, quando se apagava, ela

substituía por outra maior. Sua intenção era que o espírito do marido fosse se elevando, se afastando. Após aqueles dias, Joana regressou à sepultura do Baron do Cemitério, e informou-lhe que estava pagando pelo morto, agora o espírito de seu marido: uma pedra vestida com um boneco e tecidos de roupa que lhe pertenceram, artefato com o qual ela voltou a conviver por algumas semanas em sua casa. Ao retornar ao cemitério, Joana deixou um morto específico na sepultura de São Elias e pagou-lhe, dessa vez, 21 chavitos. As diferentes técnicas de manipulação da materialidade empregadas por Joana para interromper a interferência do marido falecido em sua vida demonstram, assim como no caso de Rosa e seu primo, o emprego de uma técnica ritual baseada na dispersão via a ativação de uma sensibilidade olfativa dos espíritos indesejáveis. Procurando, ainda enquanto morava em La Romana, sacar o espírito do marido da casa espantando-o com as velas carregadas de enxofre, pólvora e os banhos, em Porto Rico Joana viu-se diante da necessidade de fazer uso de uma nova técnica de afastamento. Agora, um procedimento ritual em que um espécie de contrato foi firmado com o mistério Barão do Cemitério. A transformação ritual da pedra, um objeto mais ou menos indistinto retirado do cemitério, uma espacialidade fúnebre densamente significada para os meus interlocutores dominicanos por causa dos espíritos guedeses, como descrevi no terceiro capítulo, mas também dos próprios mortos genéricos, como salientaram Palmié (2002) e Ochoa (2004) ao descreverem as regras del palo, desenrolou-se durante uma dupla relação mercantil com São Elias/Barão do Cemitério. Para transformar tal objeto indeterminado em um afim que lhe foi muito próximo, primeiro Joana se apropriou da pedra e precisou anunciar ao mistério que habita aquele ambiente que se tratava de uma compra. Tornando o Barão do Cemitério

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o dono da pedra (talvez reconhecendo isso) com o pagamento monetário dos 7 centavos de dólar deixados em sua sepultura, Joana pode obter um morto comprado. É com essa expressão que os interlocutores dominicanos salientavam durante o trabalho de campo como é possível que os seres humanos possam ter espíritos sem recebê-los como um dom (herança familiar). A pedra foi encarada por Joana como uma força espiritual latente que, ao ser capturada através do pagamento a um mistério considerado divino (deificado), não seria colocada à disposição dela, como ocorre nas apropriações que os sacerdotes das regras del palo fazem de pedras de cemitérios e substâncias desse ambiente. Como Joana enunciou ao retirar a pedra da sepultura, ela comprava um morto para São Elias e não para si própria. A ênfase sobre a maneira como se dá a apropriação da materialidade por meio da qual seres humanos e espíritos interagem – e os sentidos que envolvem essas apropriações – foi um aspecto mobilizado por Joana, Rosa e Gina para se diferenciarem dos paleros e aqueles que fazem trabalhos maus (bruxaria). Para elas, os paleros trabalham com morto, ou seja, possuem espíritos que seriam mortos comprados e os colocam à sua própria disposição (e não sob o controle de seres de luz, divinizados e herdados, como o Barão do Cemitério). Utilizando mortos, ou seja, realizando apropriações mais ou menos semelhantes à de Joana, os seres humanos poderiam ainda enviar esses espíritos, colocados ritualmente sob seu controle por meio da compra, para prejudicar outros. Essa é uma das formas de compreender o que significa bruxaria. Com a pedra sob a sua posse, Joana empreendeu ainda outras transformações. Ela paramentou a pedra com um boneco e roupa feitos do tecido que pertenceu ao marido em vida e vinculou o espírito a ela novamente, levando a pedra já vestida para dormir junto de si no interior de um espaço doméstico caracterizado pela intimidade de casal. Depois de esperar certo período, Joana concluiu que sua apropriação e recriação material já teriam o efeito desejado. Com as roupas do marido e muito próxima dela, aquele morto comprado se tornou o espírito de um afim. Na posse do que se tornou seu afim espiritual, Joana então se dirigiu novamente à sepultura de São Elias. E lá pagou novamente a esse mistério, agora para que mantivesse sob a sua guarda um novo morto, o espírito de seu marido, artefato passível, então, de outras apropriações materiais e relações mercantis depois de inserido na espacialidade fúnebre que habita o Barão.

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CADERNO DE IMAGEM (CAPÍTULO 5) Imagem 25. Resguardo preso no alto da botânica de Rosa, sob a proteção dos mistérios. Plaza del Mercado, Río Piedras, março de 2010. Foto: Alline Torres.

222 Imagem 26. Resguardo preso no alto do portão principal da casa de Rosa, invocando a proteção dos mistérios. Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.

223 Imagem 27. Ao fundo, pañuelo vermelho, proteção dos mistérios, amarrado na janela de uma casa vizinha à de Rosa. Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.

224 Imagem 28. Cruz desenhada com anil, para afastar as coisas más, na entrada de acesso à casa de Rosa. Río Piedras, San Juan, março de 2010. Foto: Alline Torres.

225 Imagem 29. Tecidos presos ao teto no altar onde Armando trabalha ritualmente: uma proteção que invoca os mistérios contras espíritos maus. San Isidro, Canóvanas, dezembro de 2010. Foto: Alline Torres.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Terminar o último capítulo da tese com descrições sobre as pessoas, outros seres humanos, e os mistérios a partir de uma série de interações e intervenções sobre um universo cosmológico que não se reduz à 21 Divisão, permite-me fazer uma observação que, acredito, perpassou todos os capítulos. Trata-se de salientar que a troca e o contato com as entidades espirituais, independente de como essas sejam definidas, são tidos como extensivos. Troca e contato aparecem como os pressupostos cosmológicos que informam o cotidiano. E o que me parece ser o problema dos meus interlocutores dominicanos e também dos próprios mistérios é como ambos administram isso. Ou, de outro modo, como regulam as trocas e os contatos em que se fazem presentes seres humanos, particularmente aqueles concebidos como pessoas, e uma miríade de espíritos, dentre os quais esses seres de luz são alguns. Ter partido da discussão sobre a noção antropológica de pessoa e a circulação de dádivas me permitiu chamar a atenção para planos distintos em que essas trocas e contatos podem ser experienciados. Com isso, quero observar que ao longo da tese seria possível imaginar, a cada capítulo, perspectivas diferentes a partir das quais poderiam ser observadas e conhecidas as densas e múltiplas relações que tentei descrever. Os mistérios ocupam posições variadas em relação às pessoas, mas também quando são consideradas as divisões e a ordem espiritual mais abrangente que essas entidades chamam de 21 División; no interior da casa, coabitando esses espaços domésticos com as primeiras, mas também no que nós, seres humanos, chamamos de planeta Terra. Do mesmo modo, seria difícil pensar esse tipo de multiplicidade para a qual chamo a atenção sem que houvesse deslocamentos no posicionamento das pessoas com as quais eles interagem. Procurei descrever, então, no primeiro capítulo, que engajamentos poderiam ser mapeados a partir da premissa de que os mistérios são recebidos como um dom transmitido por antepassados familiares. Para além da discussão sobre o que significava tal dom, ou seja, que tipos de transferências poderiam ser mapeadas, procurei chamar a atenção para as implicações disso para aqueles que se concebem como parte daquela configuração relacional, que se definem como pessoas que têm os mistérios por causa de suas famílias. Singulariza-ser por causa dessa forma de conexão implica, eu espero ter conseguido demonstrar, experienciar um conhecimento sobre a alteridade com base no próprio corpo e afetos variados. Mas quero sugerir que ao incorporar essa forma de

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parentesco há aí uma espécie de modelagem imperfeita. Pois se as pessoas e os mistérios se reconhecem e agem partir da ideia de força (vital), isso não implica uma reprodução acabada. Não há amálgamas do ponto de vista da incorporação dessa forma de ‘relacionalidade’ mesmo quando se trata de montar ou subir. Os encaixes não são exatos: há sobras (os mistérios transformam as pessoas em cavalos e falam da perspectiva de quem tem conhecimento e autoridade sobre elas); há excesso (alguns mistérios manifestam disposições que ultrapassam os desejos das pessoas, e atuam desconsiderando isso); há quebras e interrupções (ter um mistério em cabeça é reconhecer uma sobreposição, e não uma internalização no corpo, cuja cabeça é ocupada pelo espírito); além disso, há extração de energia, pois os mistérios consomem o sangue humano; e ainda há peso. A partir dessas considerações, sinalizo que incorporar os mistérios, sob suas diversas modalidades, cria uma variação entre posições – talvez fosse mais apropriado falar em formas como se exprimem a agência e o que (ou quem) é produzido (é objetificado): destacamento, instrumentalidade, experiências sobre poder e controle, variação e transformação de sensibilidades e consumo de si eram reconhecidos pelosmeus interlocutores dominicanos como sendo gerados durante os modos variados de incorporação. Eu procurei descrever também em termos de variação os agenciamentos que pessoas e mistérios estabelecem no contexto das prestações rituais ao longo do segundo capítulo. Talvez, aqui, na medida em que apontei para como contemporaneamente o dom transferido se atualiza, os modos rituais de produção de reciprocidade e trabalho tenham aparecido mais explicitamente como dinâmicas que descrevem fortalecimento mútuo e alienação. E, eu espero, sem que com isso a cosmologia da 21 Divisão assumisse a forma de uma ordem espiritual corrompida. Contrato e pagamento ritual demonstram que algo (talvez, parte) 128 da força recíproca que liga as pessoas e seus espíritos foi colocada à disposição de outros, alheios a essas conexões. Essa também é uma maneira de os meus interlocutores dominicanos se singularizarem como pessoas. E é por meio das prestações rituais que eles conseguem criar formas de controle relativo sobre seus espíritos, geralmente descritos como entidades que se impõem e intervêm diretamente em suas vidas.

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Definir isso literalmente me parece um desafio.

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Mas nos contextos das prestações rituais, essa espécie de modulação que torna possível as pessoas interferirem sobre os mistérios depende da manipulação dos serviços: substâncias alimentares e químicas entram nas composições que pretendem fortalecer os espíritos herdados. Por sua vez através dessas formas de transferência outras variações são produzidas: os serviços rituais nutrem e geram capacidade de trabalho dos mistérios; intensificam e suavizam suas disposições cristalizadas como espíritos. As relações prefiguradas, nesse sentido, são também refeitas por meio dessas modulações, que tangenciam sempre a instabilidade e o inesperado. Se as contrapartes humanas e espirituais atuam sob esses fundamentos, pareceme interessante salientar que, como em outras cosmologias, linguagens e técnicas rituais descritas no Caribe, particularmente os casos do vodu entre os haitianos e das regras del palo em Cuba, há um universo conceitual e de experiência comum para aqueles que vivem nesses mundos. Neles, como eu procurei discutir também no segundo capítulo, em alguma medida alienar a outros pode ser vivido como uma relação que traz em consigo uma chance de transbordamento, neste caso de retaliação que beira práticas de predação. Parece-me que aqui há uma maneira singular de conhecer e lidar com a instabilidade como uma forma de socialidade que se efetiva através dos modos de atenção e trabalho ritual. Acredito que no terceiro capítulo as modulações (ou, se quisermos, a variação e amplitude) da atenção ritual alcançaram a sua forma mais concreta. E disso emerge certa visão sobre a cosmologia 21 Divisão que só me foi possível mapear justamente tentando descrever as perspectivas singulares que cada grupo de mistérios toma no processo de interiorização na casa das pessoas. Tal variação e amplitude têm a ver com os tipos de engajamento que essas mantêm com os mistérios. E quanto mais se entretêm relações de atenção e trabalho com esses espíritos, mais os ambientes múltiplos dos quais eles fazem parte são recriados nos altares. Por causa dessas formas de materialização e ambientação dos mistérios, há uma inflexão nesse capítulo, que se desdobra no capítulo seguinte. Pois simultâneo ao engajamento com modos rituais que permitem a produção de reciprocidade e trabalho, as pessoas que têm os mistérios dedicam-se a refazer antigos espaços de existência, sejam aqueles referentes ao tempo em que os mistérios foram vivos, sejam aqueles que recuperam seus lugares de existência como mortos. É dessa maneira que esses espíritos se mantêm ao longo das gerações, e é assim que eles reclamam suas próprias lembranças. Desse modo, enquanto as pessoas nos altares falam em trabalhar, nesses

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ambientes os mistérios se tornam capazes de lembrar. Parece-me que aqui há outra alternância de pontos de vista, que remete a um trato com os espíritos que não é da ordem da junção ou disjunção corporal, do fortalecimento ou da separação (destacamento) que gera pagamento, mas sim de uma espécie de remediação: ainda que mortos, para os mistérios é possível estabelecer também relações de intimidade com as pessoas. Elas manipulam artefatos e substâncias nos altares que permitem aos mistérios sentir e lembrar novamente; recuperar o paladar de acordo com seus gostos, mas também cheiros, temperatura, percepções de altura e profundidade. No quarto capítulo, as perspectivas desses espíritos, descritas anteriormente, ganham novas dimensões à medida que, através das imagens dos santos, alguns mistérios exprimem como se concebem. Produzindo uma espécie de metanarrativa ao se apropriarem de imagens e de outros artefatos que geralmente são associados ao catolicismo (e em alguma medida ao cristianismo), os mistérios parecem levar às últimas conseqüências sacramentos, saberes e liturgias que lhes recusam a existência enquanto mortos que fazem parte materialmente do mundo dos vivos. Festejando sob essa condição, os mistérios não apenas dão graças a consagrações católicas e invocam alguns de seus personagens religiosos. Eles se assumem também enquanto seres divinos. Sob a perspectiva deles todos esses aspectos parecem assumir novos sentidos. O último capítulo, a que fiz referência no início dessas considerações finais, talvez seja o que melhor demonstre como se regulam as trocas e os contatos generalizados entre vivos e vários mortos. Tomando ele como um contraponto dos anteriores, há aí um comentário sobre os três primeiros. Isso porque se trata de práticas rituais que informam sobre como são produzidas interrupções em contextos não apenas instáveis, mas também precários. Os agenciamentos que descrevi sobre as técnicas que visam a afastar ou espantar as coisas más do corpo e da casa informam sobre como bloquear a entrada, impedir a passagem, o que é permitido fluir e aquilo que não é permitido. O caráter invasor desses espíritos invisíveis de algum modo comenta também as relações prefiguradas que são atualizadas por causa de uma imposição dos mistérios; relações que pesam, geram excessos, extraem sangue, criam ímpetos. E, que, por isso, podem ser quitadas. Além disso, embora as situações etnográficas nesse capítulo não versassem exatamente sobre ‘relações’ com os espíritos como um dom, a técnica ritual que pretendia afastar um morto familiar comenta algumas das formas como a essas podem se incorporar o expediente diversamente empregado do contrato.

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