Sobre encontros, amizades e caminhos na pesquisa em Ciências Humanas e Sociais

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Sobre encontros, amizades e caminhos na pesquisa em Ciências Humanas e Sociais Mailsa Carla Pinto Passos1 Rita Marisa Ribes Pereira2

No livro “Alice  no  País  das  Maravilhas”,  de   Lewis  Carol,   há um momento em que a protagonista cai numa toca de coelho e, desbravando o sem número de túneis subterrâneos que a formavam, depara-se   com   uma   bifurcação   em   seu   caminho.   “Que   caminho   devo   seguir?”   – pergunta Alice ao Coelho.

O Coelho, por sua vez, lhe

pergunta  “Para  onde  você  quer  ir?”  ao  que  a  menina  responde  que  não  sabe.  “Então”,   diz   o   coelho,   “tanto   faz   o   caminho.   Se   você   não   sabe   para   onde   quer   ir,   qualquer   caminho  pode  servir”. Esta breve passagem da história de Alice se mostra instigante para pensarmos o sentido da pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais porque nos coloca algumas questões que consideramos fundamentais no trabalho de pesquisa, desde aquela que indaga sobre qual realidade queremos criar com a pesquisa que fazemos, até as questões relativas a que caminhos escolher para essa produção. Mais que isso, este trecho nos lembra que todo caminhar é repleto de questões e de escolhas. Fôssemos nós, pesquisadoras, o Coelho Branco da história, indagaríamos se ela sabe onde está ou se não sabe. Se não sabe onde está, como pode escolher para onde ir? Qual seu ponto de partida? A partir de que contexto formula suas questões? Consideramos que seria importante ainda indagar de quem Alice estaria acompanhada, pois acreditamos que a escolha do interlocutor faz toda a diferença no conhecimento que se deseja produzir e na escolha do caminho para essa produção. Que relações de alteridade estabelecem Alice e o Coelho? O que dizem um ao outro? O que pronunciam e o que silenciam? O que supõem compreender? Indagações como estas nos dão pistas da pluralidade de perguntas que permeiam o trabalho do pesquisador e que exigem dele uma atitude responsiva. Através delas tanto se explicitam concepções de ciência e de verdade, como também perspectivas políticas que fazem da pesquisa uma constante busca de sentido. Compreendemos que 1

Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade católica do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2 Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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as Ciências Humanas e Sociais são ciências cujo objeto de estudo é o próprio homem e sua cultura, o que exige pensar metodologias que levem em consideração a especificidade de seu objeto.

1. Algumas considerações sobre a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais Historicamente originadas das Ciências Naturais e Exatas, as Ciências Humanas e Sociais herdaram dessa tradição a crença de que a verdade é fruto da evidência e da correta aplicação metodológica. Entretanto, se o objeto de estudo daquelas ciências supostamente admite essa forma de abordagem, nas Ciências Humanas e Sociais, isto produz um grande paradoxo: se, por um lado, a prescrição objetiva de metodologias se coloca como critério de cientificidade, por outro lado, é essa mesma sede de objetividade que lhe expropria o caráter de humanidade. Se abdicar da utopia de compreender humanamente os fenômenos humanos e a partir deles pensar categorias de compreensão apropriadas à sua complexidade, a ciência transforma-se numa normativa onde os sujeitos precisam se acomodar a categorias científicas fixadas a priori. Enfrentar esse paradoxo é, em si, uma declaração de opção teórica, pois implica pensar cientificamente os fenômenos humanos colocando em debate a próprio sentido de se fazer ciência. Essa perspectiva de compreensão que apresentamos encontra ressonância na filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin (2003, 2010) em seu esforço de pensar articuladamente as dimensões ética, estética e epistemológica na produção do conhecimento. Pensar e produzir conhecimento são atos éticos e não apenas cognitivos, uma vez que pressupõem a implicação dos sujeitos que se colocam em diálogo. Em cada pesquisa que fazemos colocamos em discussão, uma vez mais e sempre, as concepções de verdade e de ciência que nos acompanharão ao longo de todo o trabalho de pesquisa – da formulação das indagações à produção e circulação dos textos com seus resultados. Diz o autor que é preciso envidar esforços pela produção de um conhecimento que, além de verdadeiro e coerente do ponto de vista dos procedimentos científicos, faça também sentido aos sujeitos que os produzem, representando eticamente para eles uma verdade. Isto implica posicionar-se contrariamente a uma concepção de ciência pautada na neutralidade do pesquisador e numa concepção de verdade que se sustenta unicamente pela coerência interna dos procedimentos científicos. Esse modelo de ciência foi gestado pelo ideário moderno e tornado hegemônico pela filosofia positivista 2

do início do Século XX, mas, longe de ser modelo ultrapassado, é ainda muito presente neste início de século XXI. Exemplo disso é o vigor atual das perspectivas estruturalistas da linguagem, das teorias comportamentalistas do desenvolvimento humano e das concepções colonialistas ou evolucionistas da história. Bakhtin (2003, p. 400), na crítica que faz à ciência explicativa, afirma que essa perspectiva opera com a idéia de existência de um único sujeito e de uma única consciência – a do cientista – responsável pela produção de um conhecimento unilateral e monológico: o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (inclusive o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Não por acaso, essa concepção de ciência que se pauta na idéia de um conhecimento unilateral é a mesma que historicamente legitimou e ainda hoje legitima inúmeros processos de colonização, impondo-se arrogantemente como um saber mais elaborado e verdadeiro. Comprometida com o desencantamento do mundo, a ciência explicativa assume para si a tarefa de iluminar todo o reino do desconhecido, empenhando-se na tarefa de traduzir em linguagem científica toda experiência que lhe soe estranha. Amparado nessa perspectiva, o cientista se apossa da verdade para tornarse autoridade em relação ao conhecimento que produz e em relação àqueles que são tratados como coisa muda por essa ciência e pela sociedade que ela legitima. A quem serve esse conhecimento? Aos vencedores, como há muito já nos sinalizou Walter Benjamin (1987, p. 225) ao afirmar que nunca houve um monumento de cultura que não fosse também um monumento da barbárie, uma vez que a história tem sido recorrentemente contada pelos vencedores, embora não seja produzida unicamente por eles. Concordamos com Boaventura de Sousa Santos (2010), quando este identifica nas sociedades pós-coloniais a existência de um   “pensamento   abissal”,   que   está   fundamentado em distinções visíveis e distinções invisíveis, e onde estas últimas fundamentam as primeiras, dividindo a realidade social em dois universos diferentes: o que está de um dos lados da linha, amparado pela legitimidade de uma perspectiva hegemônica de ciência, e o do outro lado da linha. Esta divisão faz com o que está do outro lado da linha desapareça, uma vez que não se conforma ou extrapola os critérios ditados pela tradução unilateral. Torna-se uma realidade inexistente. Aquilo que está do outro  lado  da  linha  é  entendido  como  uma  “ausência”.  O  pensamento  abissal  se  sustenta   3

na impossibilidade da co-presença dos dois lados da linha, mas não só. Sustenta-se mais ainda pela impossibilidade do diálogo em condições simétricas entre aqueles que existem nos dois diferentes lados – por exemplo, os sujeitos do pensamento científico e aqueles dos saberes populares: as populações negras, as populações indígenas, as crianças, as mulheres, etc. A visibilidade/legitimação do conhecimento daqueles que estão de um dos lados da linha só existe porque é imposta a negação daquilo que está do outro lado da mesma linha, na constante tensão entre invisibilidade e visibilidade. É este pensamento abissal, ainda segundo Santos (2010), que regula/controla nossas relações e a visão que construímos do   “outro” - aqueles historicamente produzidos como invisibilidade e negação - os   que   habitam   “o   outro   lado   da   linha”, esquecidos em sua condição de sujeitos, expropriados em suas condições históricas e sociais. Santos (2008) argumenta que a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição política e filosófica ocidental conhece e considera importante (p. 94). Por isso o autor afirma que há neste momento um desperdício dessa experiência social em função daquilo que ele chama de razão indolente, ou seja, um modelo de racionalidade que funciona no/com o apagamento das outras

racionalidades

possíveis.

Isso

se dá muitas vezes

por

uma certa

ignorância/cegueira do pensamento científico hegemônico em relação às experiências do mundo social, que são plurais, diferenciadas, dinâmicas. Nesta   perspectiva,   temos   entendido   que   tanto   a   “sociologia   das   ausências” que se refere à expansão do domínio das experiências sociais já disponíveis, quanto a “sociologia   das   emergências”, que consiste na expansão do domínio das experiências sociais possíveis, implicam necessariamente na construção de uma outra forma de olhar para as práticas e para os sujeitos praticantes. Essa tem sido uma orientação que temos perseguido ao longo das pesquisas que desenvolvemos, compreendendo nossos interlocutores de pesquisa como portadores de conhecimento e protagonistas da história. Isso implica em vê-los não somente como assujeitados a uma ideologia onipresente e determinadora de gestos, gostos, modelos de pensamento, mas sim como praticantes que inventam e re-inventam cotidianamente (CERTEAU, 2006). Sujeitos inventores nas artes  de  fazer,  que  configuram  “o  tabuleiro”  do  jogo  social  vigente e que, ao inventar, se re-inventam. Não se trata de pensar em formas de resistência, mas sim nos modos de existência que afetam e modificam outros sujeitos a partir do encontro. Interessa-nos os 4

seus modos de co-existência. Em que medida estes modos modelam os sujeitos e suas práticas? Seguimos assim, orientadas pela idéia de que pesquisar no campo das ciências humanas e sociais é comprometer-se com a vida e com os sujeitos com os quais trabalhamos, comprometidas que somos com a produção de um conhecimento que faça sentido para nós mesmas e para os sujeitos envolvidos nessa produção. A poesia de Brecht (1990) com suas contundentes indagações oferece boa pista para a construção de uma metodologia de compreensão para a história e para a ciência: tornar visíveis as suas contradições. Quem construiu a Tebas das sete portas? Nos livros constam os nomes dos reis. Os reis arrastaram os blocos de pedra? (...) Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta a Muralha da China? (...) Uma vitória a cada página. Quem cozinhava os banquetes da vitória? (...) Tantas histórias. Quantas perguntas... Questões como estas trazidas por Brecht em muito contribuíram para que Benjamin, seu interlocutor, esboçasse a tese de que é preciso escovar a história à contrapelo para que a história possa se libertar do continuum em que se transformara pela lógica do progresso e da tradição positivista. Narrada na empatia com os vencedores, a perspectiva unilateral oculta suas contradições e seus embates. Por isso, diz Benjamin (1987, p. 222) é preciso escovar a história à contrapelo. Ou seja, é preciso apontar para a construção de outra perspectiva de história – vivida e narrada –, que procure dar visibilidade às inúmeras contradições que lhe constituem. Essa é a perspectiva atribuída por Benjamin ao historiador materialista, comprometido com uma concepção de história onde não haja distinção entre os grandes e os pequenos acontecimentos e que leve em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. (BENJAMIN, 1987, p. 222). A metáfora de escovar a história a contrapelo sinaliza que forma e conteúdo, que teoria e metodologia são aspectos indissociáveis na produção do conhecimento. Assim, se a ciência explicativa cria sua empatia com os vencedores se utilizando de metodologias como a linearidade e o continuum para tornar hegemônico e universal um conhecimento unilateral, é necessário contrapor a ela outras formas de compreensão dos fenômenos humanos que considere o desalinho e o desvio como perspectivas metodológicas. Desse modo, o inusitado pode vir à tona, como um fio que desprende da tessitura ordeira e que oferece ao olhar do pesquisador a possibilidade de indagação. É a partir desse olhar e dessa escuta que buscamos construir nossas metodologias de pesquisa cujo princípio primeiro consiste em olhar com curiosidade 5

para o outro lado da linha para ver o que ali existe em termos de saberes ou de identidades. Melhor dizendo, consiste em transformar a linha que originariamente aparece como divisória em jogo de saberes, enredados, articulados, carentes de intercâmbio. 2. Artes do fazer: o  encontro  fazendo  da  linha  abissal  um  jogo  de  “cama  de   gato”3 Há no Brasil uma brincadeira muito comum denominada “cama   de   gato”,   que consiste em emaranhar entre os dedos um barbante e a partir daí formar figuras geométricas que vão evoluindo em muitas outras diferentes. A cama de gato é um jogo que exige ao menos dois participantes. É sempre o outro que, ao recolher de nossas mãos o barbante, dá a conhecer as muitas formas em que nossa arrumação inicial pode ser transformar. Um vai trocando com o outro a estrutura de formas geométricas. A cama de gato passa de um par de mãos a outro sem que se desmanchem as formas geométricas iniciais. Entretanto elas vão transformando-se em novos incontáveis desenhos, em múltiplas possibilidades. Julgamos que essa brincadeira oferece outra bela metáfora no que diz respeito à pesquisa   e   à   produção   do   conhecimento.   Criar   infinitas   formas   com   o   “barbante   da   realidade”   para   que   estejam   em   contato   os   múltiplos   sujeitos   que   dela fazem parte. O que nos parece mais interessante na brincadeira é que cada um da dupla de jogadores se esmera em não deixar que o desenho geométrico formado pelo emaranhado da linha se desfaça. Mais que uma visão de continuum o que está em jogo é uma visão de comprometimento e responsividade. Como recebo  e  como  repasso  a  “cama  de  gato”  que   ganha forma em minhas mãos, mas que não é somente minha? São as mãos do outro que tornam possíveis suas transformações e a continuidade da brincadeira. Também nós, na intenção de produzir conhecimento em diálogo com a afrodiáspora no Brasil, o fazemos dialogicamente. Nossas mãos sustentam as figuras geométricas formadas pelo barbante emaranhado, articulados a outros pares de mãos cujos donos são os sujeitos da nossa pesquisa.

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As pesquisas narradas neste item foram coordenadas por Mailsa Carla Pinto Passos no âmbito do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Brasil – junto ao grupo de pesquisa “Culturas   e   identidades   no   cotidiano”   e   contaram   com   financiamento   do   CNPq   (Conselho   Nacional   de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e pela FAPERJ (Fundação de apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro). São pesquisas relativas ao Curso de Mestrado concluído por Sonia Regina dos Santos e Claudia Alexandre Queiroz, respectivamente

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Nas pesquisas que realizamos trabalhamos com a experiência social que emerge nos contextos estudados, preocupadas em não desperdiçar este universo de possibilidades que consiste em  estar  com  o  “outro”  em  contextos que são muitas vezes tratados somente como espaçostempos de não-saber. Uma ausência produzida por um discurso científico que mais do que negar o conhecimento e a experiência, nega o sujeito a que eles pertencem. Este tem sido um princípio na pesquisa: compreender nossos interlocutores como portadores de conhecimento e protagonistas da história. Sujeitos que dialogam conosco   e   demonstram   que   é   possível   fazer   da   “linha   abissal”   (SANTOS,   2010)   que   divide os sujeitos entre aqueles que sabem e aqueles sujeitos de suposto não-saber, material  para  o  jogo  de  “cama  de  gato”,  propondo com isso a negociação de saberes e o enredamento de ideias, práticas, identidades e, principalmente, de possibilidades. Os negros no Brasil - segundo o último censo do IBGE4, de 2010 - contabilizam mais de 50% da população. Embora quantitativamente sejam maioria ainda têm suas práticas culturais e identidades sujeitas ao estereótipo, que os fixa na imagem do folclórico, do subalterno, da não-existência, do não-saber. A sociedade brasileira é racista e o mais grave deste racismo é o silêncio que o produz e é produzido por ele. Como nos lembrou Florestan Fernandes (2007) temos preconceito de ter preconceito, por isso é um racismo velado e disfarçado de falsa democracia racial, embora manifesto nas experiências mais cotidianas. É exatamente este silêncio e a dissimulação da ideologia racista que torna a sociedade brasileira ao mesmo tempo vítima e algoz da própria sociedade brasileira. Embora os negros sejam mais da metade da população isto não está representado no que diz respeito às referências éticas e estéticas presentes na sociedade. Não quer dizer que essas referências não existam, mas sim que há a produção de uma não-existência, e tem sido na desconstrução dessa não-existência que temos trabalhado. Nosso compromisso, tanto com a produção do conhecimento, quanto com a emergência de saberes, práticas e identidades relativas a esses grupos impulsiona-nos a trabalhar com as narrativas desses sujeitos. Nosso interesse está em suas histórias e memórias, suas práticas e seus saberes. A imagem que cabe melhor aqui é a da linha abissal que divide o universo social transformada no barbante  de  nossa  “cama  de  gato”,  

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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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onde são representadas múltiplas formas de pensar, ver o mundo, incontáveis possibilidades de formas de conhecer e de experiências. A  “metodologia  do  encontro”  vai   pressupor que a dialogia não ocorre somente na relação que se estabelece em uma ordem dada de perguntas e respostas, mas no momento em que sujeitos se encontram ou para narrar suas práticas e suas histórias ou em torno de um fazer, ou fazeres.

Além disso, ela conta ainda com

acontecimentos/encontros que se dão muitas vezes ao acaso, que não estão previstos e que vêm a re-definir os rumos que a pesquisa vai tomando. Ao longo do trabalho realizado com os estudantes do CIEP Santos Dumont, no Município de Petrópolis da Região Serrana do Rio de Janeiro, jovens componentes do Coral Vozes do Amanhã, muitos desses encontros e alguns acasos foram nos fazendo re-dimensionar os rumos da pesquisa. Como sugere a passagem de Alice no País das Maravilhas, elegemos um lugar a chegar e escolhemos a companhia. Os caminhos, fomos descobrindo no processo. A pesquisa consistia em desenvolver um trabalho junto a um grupo de jovens cantores alunos de uma escola pública – em sua maioria moças e rapazes negros – para compreender seus processos identitários e o papel da arte nessa dinâmica. Em uma das atividades o grupo de pesquisa promoveu um encontro entre os jovens do Coral e um artista plástico negro – Pedro Cipriano – estudante de Letras cujas obras estavam expostas em uma galeria no Centro Cultural da cidade de Petrópolis. Na visita à exposição, e no encontro com Cipriano, a surpresa dos estudantes ao descobrirem que um rapaz negro podia ser um artista plástico e ter suas obras expostas em uma galeria de arte nos levou-nos a questionar sobre como a representação dos negros no Brasil vive contemporaneamente uma tensão de visibilidade/invisibilidade. São visíveis como subalternos, vítimas da discriminação e como sujeitos destinados a algumas atividades específicas – normalmente ligadas ao folclórico e ao estereótipo – mas não são visíveis como sujeitos-referência nas artes, nos espaços de ciência e de tecnologia, ao que já nos referimos anteriormente. A partir deste encontro, outros vieram: organizamos para os estudantes do Coral Vozes do Amanhã uma série de oficinas de literatura5, com textos escritos por mulheres negras que têm uma narrativa auto-biográfica. Elencávamos assim alguns sujeitos5

Essas oficinas foram realizadas pela professora Sonia Regina dos Santos. O trabalho que narramos aqui transformou-se em sua dissertação de Mestrado intitulada "Tia a senhora é negra porque quer": narrativas que bordam memória e identidades. Disponível em www.proped.pro.br .

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referência para aqueles estudantes – mulheres negras e escritoras – desconstruindo o princípio   do   “pensamento   abissal”   (Santos,   2010)   produzido   pela   ciência   moderna,   de   que estas seriam aquelas que estariam do lado da ausência, do não-saber e da nãoexistência. Esses textos eram semanalmente discutidos com os jovens. Propomos então a eles construir tapetes bordados com histórias que liam e ouviam. Em um trabalho posterior, o tema dos tapetes seriam as próprias histórias dos estudantes – narrativas que eles produziam em um texto coletivo e que viravam depois tapetes bordados. A tapeçaria por sua vez era então também um texto, mas o que mais nos interessava neste processo era a conversa que se estabelecia ao longo do processo de confecção dos tapetes, que tinham como tema ainda as histórias dos estudantes, suas experiências com o racismo, suas memórias, as práticas familiares e comunitárias. Cada encontro para a elaboração dos tapetes era um encontro que nos dava as pistas para o conhecimento daquelas realidades, identidades e práticas.

Reafirmávamos assim o

encontro como metodologia e a conversa ao acaso, em torno de um fazer, como alimento para a compreensão daquele universo social que estudávamos. Era a conversa que também alimentava outro projeto que acontecia paralelamente a este, em outra escola na periferia da Cidade do Rio de Janeiro, no Bairro de Acari. Na escola de Educação Infantil Ana de Barros Câmara questões próximas as que surgiam no CIEP Santos Dumont tomavam corpo. No pátio da escola, um grande painel ostentava um desenho em tamanho natural da Branca de Neve com os sete anões, como foram celebrizados por Walt Disney. A ideia da pesquisa surge quando uma menina de 5 anos, encantada com a aula que acabara   de   assistir   diz   para   a   sua   professora,   uma   jovem   negra:   “Tia 6, a senhora é a Branca  de  Neve!”. O fato provocou a professora, Claudia Alexandre Queiroz, membro do nosso grupo de pesquisa, a pensar sobre os processos identitários daquelas crianças – negras em sua maioria. As referências éticas e estéticas que circulavam na escola sugeriam pistas de um currículo no qual os sentidos de corporeidade e ética tinham como   referência   uma   “branquitude”,   que   mais   do   que   uma   existência   real   era   uma   imagem de sujeito a ser divulgada, inculcada, compartilhada, desejada. O elogio que a criança fez à professora consistiu em um sentimento legítimo de carinho e admiração,

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“Tia”  é  uma  das  formas  como  as  crianças  chamam  as  professoras  nas  escolas  do  Brasil.

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entretanto o que não está dito aqui, mas está enunciado é a legitimação da branquitude como modelo tanto de beleza quanto de competência7. O grupo de pesquisa dedicou-se então a pensar como desenvolver um trabalho nessa escola que problematizasse, por meio de encontros e do uso das narrativas, junto às crianças e às professoras, essa  imagem  de  “branquitude”.  Elaboramos um projeto no qual livros de literatura infantil, câmera fotográfica e filmadora funcionaram como mediadores dessa produção de conhecimento. Fotografar, filmar com os(as) alunos(as) e as professoras as atividades de leitura e discussão dos livros de literatura – que tinham como temática as africanidades e as afrobrasilidades – bem como as dramatizações dos mesmos, foi uma escolha metodológica de valorização de estéticas e de saberes diferenciados das crianças, com o intuito de analisar os modos de recepção, de negociações, ressignificações, conflitos. O que nos interessava não era necessariamente o produto, mas antes as reflexões dos sujeitos sobre seus processos identitários e sobre as relações raciais, o que ia se estabelecendo na dialogia, a partir desses encontros, acontecidos em torno de um fazer, de um objetivo comum. Um destes momentos consideramos bastante significativo e merece ser narrado aqui. Uma das atividades do projeto previa uma exposição durante uma semana no pátio da escola de quadros da artista plástica Magdalena Santos, uma senhora negra setuagenária, moradora de Petrópolis, que dista 70 quilômetros da Cidade do Rio de Janeiro, empregada doméstica aposentada, que pinta suas memórias de infância. Para o último dia da exposição pensamos em promover o encontro da senhora Magdalena com as crianças ali mesmo na escola, e para isso as professoras organizaram com os estudantes um conjunto de perguntas elaboradas a partir da experiência das crianças com as obras da artista. Como Magdalena não iria ao Rio de Janeiro, atribuindo essa resistência ao fato de a cidade ser muito grande e violenta, decidimos montar no pátio da escola um telão ligado a um computador conectado à internet e promover a conversa da Magdalena com as crianças pelo Skype, serviço de comunicação on line. Para este dia a comunidade foi convidada e estavam presentes muitas mães, avós e pais das crianças. Em casa, Magdalena conversaria conosco assessorada por sua filha, Sonia Santos, também membro de nosso grupo de pesquisa. Tínhamos então, em uma tarde de sexta-feira na escola uma exposição montada no pátio com obras de uma senhora artista plástica negra; estudantes e professoras 7

Este  trabalho  resultou  na  Dissertação  de  Mestrado  intitulada  “De  uma chuva de manga ao funk de Lelê: imagens  da  afordiáspora  em  uma  escola  de  Acari”.  Disponível  em  www.proped.pro.br .

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mobilizados pela expectativa do encontro pelo Skype com uma referência ética e estética sobre a qual todos haviam conversado intensamente ao longo da semana; a comunidade dentro da escola participando da atividade. Do outro lado estava uma senhora que nunca havia usado um computador e tampouco acessado a internet, e que não escondia sua expectativa em responder às perguntas elaboradas pelos estudantes. Este foi um encontro muito produtivo e que tem rendido muita discussão no grupo de pesquisa. O fato de termos tido que lidar naquela tarde com tantas informações, acontecimentos, discursos, sentidos produzidos, só confirmou para nós o caráter nãolinear do conhecimento e da realidade e a complexidade que é o campo de pesquisa. Pode-se focar em um aspecto daquela experiência, mas a totalidade é impossível de ser abarcada, e por isso o diálogo com o grupo de pesquisa é tão fundamental: porque potencializa a compreensão da pluralidade/complexidade. Essa experiência remeteu-nos à constatação de que, sobretudo nesta perspectiva do encontro, não há controle do pesquisador sobre a pesquisa. Quando se promove o encontro entre os sujeitos a realidade escapa. O exemplo mais significativo disso dentre tudo o que aconteceu nessa referida tarde - corresponde ao momento em que as mães e as avós das crianças, identificadas com as histórias de vida de Magdalena e com aquilo que ela pinta, pediram a palavra e começaram a fazer perguntas a ela também, o que absolutamente não fazia parte do roteiro que tínhamos preparado para aquela atividade e que veio a se consistir em rico material para a pesquisa. Fato é que ninguém produz conhecimento sozinho. O conhecimento é um fenômeno polifônico (Bakhtin, 2003). Enquanto escrevemos este texto outras vozes estão aqui presentes: autores lidos; conversas, as formais e as informais com nossos estudantes; os colegas que trabalham conosco; e uma infinidade tão grande de vozes que torna-se impossível enumerar. 3. Artes do dizer e do dizer-se: a amizade como princípio metodológico8 Trazemos aqui o tema da Amizade para construir em torno dele uma reflexão que permita compreender o seu sentido político como princípio metodológico para a construção do trabalho de campo. Essas reflexões são trazidas de um projeto de pesquisa  institucional  intitulado  “Artes  do  dizer  e  do  dizer-se: narrativas infantis e usos 8

O Projeto de Pesquisa narrado neste item foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Brasil, coordenado pela Dra. Rita Marisa Ribes Pereira, com apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERJ (Fundação de apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro).

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de   mídias”,   que   tem   por   objetivo   compreender   como   se   constituem   as   experiências   infantis na contemporaneidade e em que medida essas experiências são atravessadas pelas tecnologias. Realizamos num primeiro momento um levantamento sobre as mídias e tecnologias que crianças têm acesso como forma de buscar no contexto singular das práticas as questões que orientariam nosso estudo. Esse levantamento foi feito junto a um grupo de aproximadamente 150 crianças de escolas públicas e privadas e também por crianças da rede de familiaridade dos membros do grupo de pesquisa9. Esse grupo de crianças, com idades variando entre 4 e 11 anos e pertencentes a diferentes classes sociais, nos apontou que, além das mídias eletrônicas como televisão e rádio, já pesquisadas por nós em projetos anteriores, as mídias digitais se faziam muito presentes em suas experiências cotidianas, principalmente o computador conectado à internet e o aparelho de telefone celular que possua câmera fotográfica. Junto disto, as crianças deram pistas de que usavam essas mídias em casa, na escola ou em lan houses e que os usos que elas faziam do computador nesses diferentes lugares se alterava de acordo com o tempo disponível, a companhia (ou a ausência dela) e, principalmente, a liberdade em que esses usos se davam. O campo de produção teórica referente à cultura digital é amplo, fluido e em permanente expansão. A produção teórica visitada nos indicava que as transformações culturais engendradas pelas tecnologias afetam simbolicamente a todos os sujeitos contemporâneos independentemente do acesso concreto que se tem a elas. De uma maneira global, afetam pelas transformações na ordem da comunicação, da economia e da política e, de maneira mais restrita, em seus modos de viver, pensar e se relacionar na vida cotidiana. Interessava-nos, entretanto, saber como o acesso concreto (ou o nãoacesso) a essas mídias afeta a condição infantil na contemporaneidade. Pela necessidade de delimitar um ponto de partida, dada a extensão e complexidade do tema, optamos por iniciar nosso estudo buscando saber que usos as crianças fazem do computador com

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O grupo de pesquisa é formado por 10 integrantes, alunos de Graduação e de Pós-Graduação em Educação e também por professores da Educação Básica: Fernanda Mendes Gonçalves, Joana Loureiro Freire, João Marcelo Lanzilloti, Ivana de Souza Soares, Nélia Mara Rezende Macedo, Núbia de Oliveira Santos, Renata Lúcia Baptista Flores, Regina Maria Neiva Mesquita, Rita Marisa Ribes Pereira (coordenadora) e Vânia Lúcia Monteiro de Souza.

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conexão à internet: como usam, onde usam, com quem usam, o que acessam, porque usam, o que criam e comunicam nesses usos10. Percebemos ao longo do levantamento feito que a presença do aparato técnico – o computador com conexão – durante as entrevistas feitas alterava significativamente a qualidade da interlocução que se estabelecia entre pesquisadores e crianças. A possibilidade das crianças em acessar e mostrar concretamente as situações a que se referiam, ampliavam a possibilidade de comunicação e as formas de compreensão de situações que, na ausência do computador/internet ficavam restritas apenas ao campo do discurso. Isto nos indicou que seria importante incorporar as tecnologias e seu uso efetivo pelas crianças como parte das estratégias metodológicas para a continuidade do estudo. A pergunta que surgia, então, era sobre como definir o campo em que a pesquisa empírica seria realizada, pois encontrar um grupo de crianças com acesso a computador/internet e relativa autonomia de uso não parecia tarefa muito fácil. Pensamos, então, que nossa questão de pesquisa, construída em torno dos usos espontâneos que as crianças fazem do computador/internet em sua vida cotidiana, exigia formas de aproximação e interlocução com as crianças pautadas em critérios de familiaridade. Foi assim que a Amizade se apresentou para nós como um princípio metodológico e que nosso campo de pesquisa para o estudo dessa questão passou a ser constituído por um grupo crianças que são nossas amigas. A amizade é uma forma de experimentar a alteridade e há muito se insere no campo da construção e significação dos saberes. Não por acaso, está na base etimológica da filosofia e era tratada por Aristóteles como sendo uma virtude, superior à riqueza e ao poder. Entretanto, para que nossa abordagem não corra risco de enveredar por uma perspectiva romantizada da amizade, recorremos ao mesmo filósofo na ponderação que faz de que a amizade pode ter muitas facetas. Dentre elas, Aristóteles distinguia a amizade deleitosa, cuja base é o simples prazer da companhia, a amizade útil cujos fundamentos se encontram na política, e a amizade honesta, que se funda na idéia de ética por ele desenvolvida. Essa abordagem inicial do tema da amizade conduziu a estudos posteriores de filósofos como Espinosa, Hannah Arendt e Michhel Foucault, que, atualizando o 10

Três sub-projetos encontram-se   em   desenvolvimento:   “As   crianças   e   as redes   sociais”,   desenvolvido   como   projeto   de   Tese  de   Doutorado   por   Nélia   Mara   Rezende   Macedo;;   “As   crianças   e   os   sites   por   elas   acessados”,  desenvolvido  como  projeto  de  Dissertação  de  Mestrado  por  Joana  Loureiro  Freire;;  e  “Os  usos   que as crianças fazem do computador/internet na lan house”,   desenvolvido   como   Monografia   de   Graduação por Fernanda Mendes Gonçalves.

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conceito e atribuindo a ele novos sentidos, dão a perceber sua extensão que congrega desde   a   idéia   de   comunidade   (o   bem   comum)   até   a   idéia   de   “cuidado   de   si”,   fundada   numa ética do indivíduo. Pela brevidade da argumentação aqui permitida, optamos em recortar desse amplo debate as contribuições para pensar a amizade como instauração política e epistemológica de um encontro entre sujeitos onde a pesquisa se torna um bem comum. Esse recorte busca aproximar o tema da amizade dos conceitos de dialogismo e alteridade, tal como desenvolvidos por Bakhtin e apropriados pelo grupo de pesquisa em nossas buscas metodológicas. Na relação de amizade, o amigo se comporta comigo do modo como se comportaria em relação a si mesmo. Esse é o ponto fundante da construção de uma ética que pressupõe a necessidade da existência do outro e reconhece na alteridade a verdade da insuficiência do si-mesmo. Cultivada pelo hábito, a amizade é um exercício constante de auto-transformação em presença do outro, uma criação compartilhada de si mesmo onde as identidades se constróem enquanto se implicam e se afetam. É certo que a amizade é também um exercício de concórdia, tanto que privilegia as afinidades, mas não se trata, porém, de uma concórdia incondicional que se confunde às relações de poder. O que está em jogo é a criação de uma experiência de igualdade política que implica a horizontalidade da circulação da palavra (ARENDT, 1993). É justamente nessa perspectiva da horizontalidade da circulação da palavra que entendemos a amizade como um fecundo caminho metodológico de pesquisa. O fato de tratar-se de pesquisa realizada com crianças implica colocar em debate as relações de autoridade historicamente instituídas pelos adultos sobre as crianças – pais, professores, especialistas em geral –, tanto quanto a colonização da experiência da infância pelas ciências comportamentalistas. Nesse sentido, a relação de amizade entre adultos e crianças não é algo dado, mas é uma construção que implica princípios e valores tanto quanto a atividade de pesquisa ou outras formas de alteridade. O que está aqui em jogo é a relação de autoridade, muitas vezes naturalizada como subserviência de um em relação ao outro. Se a amizade, como pondera Arendt (1993) é avessa às relações de poder, ela não é, entretanto, sinal de indiferença. A amizade implica compromisso. A pesquisa também. Diferentemente das abordagens de pesquisa que priorizam o estranhamento como critério a priori para a escolha dos interlocutores, a fim de evitar influenciar nas respostas, optamos pela familiaridade que a amizade proporciona justamente por entender que o tipo de questão que formulamos se beneficia do fato de haver entre o 14

pesquisador e seus interlocutores infantis uma história social comum. Essa história nos diz que a relação de alteridade entre o pesquisador e as crianças pré-existe à relação de pesquisa, de modo que a pesquisa já se inicia fazendo uso de uma série de presumidos existentes entre os interlocutores. Presumidos são, para Bakhtin (2003), elementos constituintes do discurso que, pelo fato de já serem compartilhados e conhecidos pelos sujeitos em diálogo, podem dispensar a materialidade da palavra, na medida em que compõem internamente o discurso produzido em sua dimensão extra-verbal. No caso específico da pesquisa de que aqui tratamos, consideramos importantes no processo de interlocução tanto os presumidos da linguagem que já oferecem como ponto de partida um diálogo em processo, como também os presumidos da técnica: temos constatado que para haver comunicação entre o pesquisador e as crianças quando se estuda os atravessamentos da tecnologia na vida cotidiana, é imprescindível que haja entre eles um mínimo de presumidos no que se refere ao domínio técnico, sem o qual as próprias perguntas se esvaziam. São esses presumidos que garantem a comunicabilidade e a possibilidade de novas indagações. A presença do computador no momento da conversa torna visíveis alguns presumidos e acentua a criação discursiva face ao inusitado. Nesse sentido vale dizer que critérios de familiaridade ou de estranhamento não constituem uma verdade   “em   si”   da   dimensão   metodológica   da   pesquisa.   Trata-se de uma opção que responde às demandas teóricas e metodológicas e que define um ponto de   partida   para   a   interlocução.   Temos   clareza   de   que   o   jogo   de   “estranhar”   e   “tornar   familiar”   o   objeto   estudado é parte integrante da pesquisa, uma vez que é o estranhamento que mobiliza o ato do conhecer. Entendemos que neste caso, quando optamos por construir uma interlocução com sujeitos que já são nossos amigos, a postura do estranhamento se fará presente justamente quando a relação de alteridade já instituída pela amizade se transforma numa outra relação de alteridade pautada pela dinâmica da pesquisa. Essa  nova  relação  que  nasce  com  a  pesquisa  coloca  os  “amigos”  num  novo  lugar   social e convida-os a ver um ao outro de uma forma que ainda não haviam experimentado. Do mesmo modo, desnudam aspectos até então desconhecidos do outro. Por um lado, os presumidos da amizade dispensam a apresentação e a construção de um discurso mais explicitado e estruturado; por outro lado, a instauração da pesquisa traz para   os   “amigos   em   diálogo”   novos   temas   sobre   os   quais   ainda   não   produziram  

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discurso, exigindo deles a criação de novos posicionamentos e formas de linguagem, enfim, de uma busca compartilhada de sentidos. Nessa perspectiva, a pesquisa é uma instauração de discursividade numa ação que almeja o compartilhamento das suas questões norteadoras. Tais questões ou os empreendimentos a serem construídos pelo pesquisador em sua tarefa, não se encontram dados a priori, mas ganham existência ao longo do processo de pesquisa, em co-autoria com os sujeitos pesquisados. Ou seja, seu ponto de partida, mais que uma questão, é uma intenção de questionamento. Do mesmo modo, seu alvo não é a resposta isolada a uma questão – aprisionada em sua condição de produto –, mas o processo que permite que um determinado tema adquira, na relação de pesquisa, o status de questão. Entendemos que foi isto que aconteceu com o tema da amizade, tomado por nós, pesquisadores, inicialmente, como perspectiva metodológica. Na interlocução com nossos amigos infantis, descobrimos que o tema da amizade tem atravessado significativamente suas experiências com a tecnologia, através de sua participação nas redes sociais como Orkut e Facebook. O que é ser amigo nas redes sociais? Essa nova pergunta, hoje transformada em questão de pesquisa, tem exigido de nós pensar em outras formas metodológicas que abarquem a complexidade da cultura digital. Estamos iniciando um processo de pesquisa cujo ambiente on line dos sites de relacionamento é nosso  campo  de  investigação  e  nossos  interlocutores,  os  “Amigos” infantis que fizemos no Orkut e no Facebook. Isto nos apresentou a possibilidade de construir compartilhadamente   com   as   crianças   sentidos   para   a   “Amizade”, essa complexa experiência que abarca ao mesmo tempo a virtude e a virtualidade.

4. O que dizer sobre o dizer: cultivando encontros e amizades Se a realidade é socialmente construída, ela pode suscitar diferentes formas de apreciação, variáveis de acordo com a história e o contexto de cada sujeito que participa ativamente dessa construção. Isto coloca em xeque qualquer pretensão explicativa totalitária, na medida em que se condiciona à insubstituível presença do outro e das possíveis e diversas interpretações que este venha a contrapor. Toda produção de conhecimento no campo das ciências humanas é trabalho de compreensão respondente, que pressupõe uma interlocução e uma constante negociação de sentidos (Bakhtin, 2003). Por isso mesmo, a ciência não pode ser reduzida a uma produção unilateral comprometida com o esgotamento dos fenômenos sociais a partir de uma dada explicação. Diferentemente da explicação, entendemos a compreensão como a forma 16

privilegiada de diálogo com o outro, uma vez que implica uma produção compartilhada de discursividade acerca da realidade social, que é polissêmica por natureza. A compreensão implica ainda na produção de sentidos sobre si e sobre o mundo de ambas as partes: entre pesquisador e pesquisado. O diálogo modifica os interlocutores sempre. É a relação que produz sentidos e contribui também para que ambos se vejam em outra perspectiva: aquela que só o “olhar  do  outro” pode dar. Neste sentido o pesquisador não é indivíduo ou consciência isolada e, muito menos, neutro em relação às escolhas que faz e às verdades que produz. O pesquisador é um sujeito social, inserido em sua cultura, ocupa um lugar que é único e é desse lugar que constrói e reconstrói valorativamente o conhecimento. Na história de Alice no País das Maravilhas, tanto Alice quanto o Coelho Branco já não serão mais os mesmos depois daquele encontro. Nem nos, pesquisadoras, e nossos interlocutores. E talvez a melhor lição que tenhamos aprendido juntos é que tão importante quanto encontrar o caminho a seguir, é também importante aprender a perder-se. Perder-se, na atividade de pesquisa, significa abdicar das verdades a priori e assumir o lugar do não-saber e da procura. É o labirinto do não saber que fornece as as mais férteis questões: Por onde ir? Por que ir? Com quem ir?

Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ________________. Para uma filosofia do ato. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas Vol. I – Arte e política, magia e técnica. São Paulo: Brasiliense, 1987. BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956. Rio de Janeiro: Editora 34, 1990. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2006. FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo, Global Editora: 2007. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo- para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008. SANTOS, Boaventura de Sousa & MENESES, Maria Paula (orgs.) Epistemolgias do Sul. São Paulo: Cortez Editora, 2010.

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