Sobre fósseis, diversidade humana e transplantação de espécies: João de Loureiro e a cultura científica portuguesa setecentista

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Sobre fósseis, diversidade humana e transplantação de espécies: João de Loureiro e a cultura científica portuguesa setecentista Antonio José Alves de Oliveira [email protected] Doutorando-História UFSC

Em 1754, um padre jesuíta é enviado para os domínios coloniais portugueses na Ásia e leste da África. Trabalhando principalmente entre as populações locais da Conchinchina, o padre Jesuíta João de Loureiro exerce as funções de médico local e trabalha em prospecções acerca do mundo natural, preponderantemente sobre investigações botânicas. Anos depois, com a expulsão dos jesuítas de toda a extensão dos domínios coloniais portugueses, Loureiro, mantém-se no continente asiático e produz prolificamente sobre os espécimes vegetais, em sua Flora Conchinchinensis. Na década de 1780, é então reconhecido como historiador natural do império português, e em suas memórias se debruça sobre vestígios fósseis e sobre uma possível diversidade das espécies humanas. Tais memórias são impressas pela Academia de Sciencias de Lisboa e colocadas em circulação pelo seu principal instrumento de divulgação, as memórias econômicas da Academia. Loureiro, nestas memórias debruça-se ainda sobre seus interesses particulares acerca da botânica, escreve sobre a cultura do algodão e ainda sobre a possibilidade de transplantação de espécimes asiáticas por toda a extensão das possessões marítimas portuguesas. O presente trabalho busca questionar a partir de sua trajetória a circulação de ideias e conhecimentos pelos domínios coloniais lusos a partir de dois níveis de circulação, a princípio, percebendo o papel de instituições como a Academia de Sciencias de Lisboa na promoção de sujeitos em circulação, que não eram propriamente homens de ciência, na maior participação nas investigações de elementos de interesse para a Coroa portuguesa em fins do século XVIII. Ainda, busca-se questionar de que maneira o padre jesuíta João de Loureiro se apropria desses elementos de circulação, inclusive inter imperiais, já que estava em constante contato com sujeitos que traficavam informações dos impérios britânico e francês, deixando suas marcas individuais nos modos de se apropriar e do fazer-se do conhecimento científico

da época, lidando com as tensões entre os imperativos coloniais, as escolhas políticas e seus anseios individuais. No que concerne a essa experiência de circulação de conhecimentos científicos, tratava-se, de certa maneira, de um projeto que buscava articular os vários olhares e experiências de diferentes sujeitos que residiam e serviam a Coroa portuguesas nas colônias ultramarinas, com uma leitura acurada sobre o mundo natural das colônias para servir ao engrandecimento do Reino, para o melhoramento das finanças e reconstrução do Erário Régio. A apreensão do mundo natural por um determinado viés (moderno, instrumental, racionalista) nos mais distantes domínios portugueses em tempos de crise e esgotamento de um determinado modelo de colonização era a pedra de toque desse empreendimento. Projeto este que enviou estudiosos para diversos rincões dos domínios coloniais. Basta-nos para este momento rememorar o projeto engendrado em 1783, com filósofos naturais enviados para Moçambique, Angola, Cabo Verde e para o Brasil, nas capitanias de Mato Grosso, Grão-Pará, Rio Negro e Cuyabá. Essa nova tentativa de articular possessões e olhares em torno do mundo natural possui algumas particularidades, a que nos interessa lançar alguns questionamentos. O primeiro deles concerne a essa retomada de circulação de espécies vegetais, práticas e conhecimento pela extensão dos domínios coloniais ultramarinos. O segundo, diretamente relacionado com o reconhecimento de práticas e conhecimentos acerca dos mesmos vegetais em circulação, incide sobre a tentativa de exploração de forma mais ampla e articulada dos recônditos de domínios coloniais na Ásia, América e África, o que implica variadas formas de disputa e negociações com os nativos e, principalmente com o mundo natural. A trajetória individual do Padre jesuíta João de Loureiro, que havia sido enviado à Macau em 1742 junto a outros quatro jesuítas pode nos auxiliar a compreender melhor o processo de transformação e circulação das ideias desses homens coloniais e ultramarinos na extensão do império colonial português. A princípio, é interessante notar a profunda transformação nesses longos anos de experiências nas possessões coloniais em África e Ásia. Viajando enquanto padre jesuíta para Macau, quarenta e cinco anos depois seu nome figurava na Academia de Sciencias de Lisboa não apenas como um experiente viajante que poderia prestar serviços úteis aos intentos coloniais portugueses, mas como um dos maiores especialistas em botânica e história natural, principalmente na ciência que conhecemos hoje

como paleontologia. Sendo jesuíta nas possessões portuguesas durante as transformações desencadeadas pelo ministério de Marquês de Pombal, inclusive o decreto de expulsão de todos os religiosos inacianos dos domínios lusos ultramarinos, Loureiro, se transfigura então em médico e botânico, dedica-se aos estudos de história natural, astronomia e medicina e continua a executar suas atividades no continente asiático, ainda mais porque fora reconhecido os seus grandes préstimos à coroa portuguesa1 “missionário a serviço de nacionaes e estrangeiros, ultimando felizmente negociações commerciaes e outras, nas quaes a qualidade de bom intérprete ajuntava a de valioso medianeiro, como se depreende de alguns dos seus apontamentos”. Dentre as primeiras atividades científicas desenvolvidas por Loureiro, está a descrição e análise do eclipse da lua em 1770, quando residia na Conchinchina. A partir de então, em seus escritos se pode observar as apropriações e as leituras de tradições científicas europeias, principalmente as leituras do neerlandês Boerhaeve e dos italianos Pitcarnii, Scoto e Samuel Mansino. Inicia também nesse período aproximações e contatos com a Sociedade Real de Londres, presidida à época pelo célebre naturalista Joseph Banks. Dois anos após a fundação da Academia de Sciencias de Lisboa, em 1781, torna-se sócio e começa a produzir e direcionar seus estudos para as produções da Instituição, onde escreve sobre transplantação de espécimes vegetais, sobre as possibilidades do cultivo do algodão. Nas memórias da Academia ainda nos volumes sobre física e matemática escreve sobre os vestígios fósseis e sobre uma possível diversidade das espécies humanas.

Além disso, seus estudos em

astronomia também resultaram em uma carta geográfica do reino da Conchinchina, que por meio das latitudes pode indicar as principais localidades desta possessão portuguesa. Leitor assíduo do naturalista sueco Karl von Linée, dentre suas referências encontra-se o Genera plantarum, livro que conseguiu, segundo Bernardino Antonio Gomes, por meio de navegadores britânicos que circulavam pelos arredores da Índia, quando de sua estadia na Índia portuguesa. Aliás, é através das leituras de Linée que produz um volumoso estudo das 1 Como indica Bernardino Antonio Gomes no “Elogio Histórico do Padre João Loureiro” lido na sessão solene da Academia Real das Siencias de Lisboa, em 30 de Abril de 1865. In: Memórias Econômicas da Academia das Sciencias de Lisboa. Classe de Sciencias Moraes, políticas e bellas-lettras. Nova Série – Tomo IV, parte I. Lisboa: Typographia da Academia MDCCCLXXII.

plantas do oeste da Índia e do leste do continente africano, mormente as possessões portuguesas em Moçambique, coletânea de estudos que publica sob o nome de Flora Conchichinesis, que acaba sendo impressa somente em 1793, em Berlim, através de Carl Ludovic Wildenow. E é justamente através de seus estudos botânicos que entra em contato com as grandes instituições de ciências da época, principalmente com a Royal Society de Londres, cultiva uma amizade com o presidente, Joseph Banks, cuja grande estima por Loureiro se pode observar através de algumas correspondências trocadas entre os dois. Em uma delas, Banks explicita uma certa fragilidade nos estudos científicos portugueses à época, mais como uma retórica de convencimento para Loureiro se juntar à sua instituição do que propriamente uma realidade concreta do estado em que se encontrava os estudos científicos em Portugal. Mesmo assim, se faz interessante atentar para parte de suas trocas de correspondências. Na primeira delas, datada de dezembro de 1780, Banks escreve para Loureiro: I hear the customs of Lisbon, the nation in general not being much addicted to learning, and the scarcity of books wich i noticed when i was there in 1766, will make your publications more difficult as well as less useful effected there. 2

Sem entrar no julgamento do mérito das sociedades letradas em Portugal à época ou de algum efeito de realidade ou verossimilhança nas palavras de Joseph Banks, se faz mais interessante interpretar os interesses e as maneiras com que os ilustrados observavam as respectivas instituições, nesse caso, a tentativa de convencimento e os interesses acerca da vasta experiência de Loureiro, em que isso poderia ser útil para a Royal Society de Londres, deságua na enunciação dos preconceitos acerca da produção do conhecimento em Portugal, tendo como base a produção em outros países como França e a própria Inglaterra. Com efeito, no último quartel do século XVIII, mais precisamente com o período conhecido como a “Viradeira” no reinado de Maria I, os incentivos à Academia de Sciencias de Lisboa aumentaram, superando inclusive os incentivos à antiga Academia de História. Historiadores naturais como Domenico Vandelli e Giullio Mattiazzi, se fizeram presentes nas 2 Eu tenho ouvido falar dos costumes de Lisboa, a nação em geral não é muito devotada à aprendizagem, e a escassez de livros que notei quando eu estive lá, em 1766, fará suas publicações mais difíceis assim como menos efetivamente úteis lá. Carta de José Banks a Loureiro. IN: “Elogio Histórico do Padre João Loureiro” lido na sessão solene da Academia Real das Siencias de Lisboa, em 30 de Abril de 1865. In: Memórias Econômicas da Academia das Sciencias de Lisboa. Classe de Sciencias Moraes, políticas e bellas-lettras. Nova Série – Tomo IV, parte I. Lisboa: Typographia da Academia MDCCCLXXII, Pág. 23.

transformações ocorridas no reino, como os Estatutos da Universidade de Coimbra. Ainda, a criação do Museu Real da Ajuda, designada para ser uma espécie de “central de cálculo”3, sobre o qual se voltariam as produções dos historiadores naturais, filósofos e administradores coloniais em circulação pelas possessões ultramarinas. É certo que os resultados, observados em retrospectiva, principalmente após os calamitosos episódios de invasão do reino por parte dos franceses em 1807-08, deixam uma impressão muito desfavorável das produções e da organização das instituições científicas, como evidenciar Ronald Raminelli, em seus estudos, donde os caixotes de um dos mais célebres estudiosos, Alexandre Rodrigues Ferreira, cuja viagem por mais de 10 anos no norte e oeste do Brasil resultou em um grande número de caixotes com espécimes animais e vegetais, além de pinturas e relatos etnográficos sobre os povos com os quais se deparou, encontravam-se embaralhados e com pouca utilidade no reino4. No caso do padre João de Loureiro, este se torna sócio e correspondente da Academia de Sciencias de Lisboa e ao mesmo tempo correspondente da Sociedade Real de Londres, explicitando que eu tenho o desejo de servir a dita sociedade real, e como tenho vivido mais de 40 annos n'estas terras da índia, principalmente no reino da Conchinchina, tenho alguma experiencia do que toca à sciencia natural n'estas terras, e me offereço para servir e obedecer à dita respeitável sociedade em qualquer cousa que me queiram ordenar n'esta materia, quando tenha a honra e fortuna de ser admitido por seu associado5.

E no caso de Loureiro, suas produções se voltam principalmente para duas vertentes, a primeira delas, uma série de escritos nas memórias econômicas da Academia de Sciencia de Lisboa, em que flui uma série de ideias sobre transplantação de espécimes com um intuito de fazê-las circular por toda a extensão das possessões marinhas portuguesas, mais como conselhos de quem de fato conhecia os caminhos de circulação e possibilidades de melhor aproveitamento dos vegetais para o reino. Como por exemplo, em seus escritos entitulado “Da transplantação”, datada de 1789, mas supostamente escrito alguns anos antes.

3 LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000. 4 RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: monarcas, vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008. 5 Carta de Loureiro a Perry. In: “Elogio Histórico do Padre João Loureiro”, pag. 21.

Loureiro mostrava uma certa consciência global das possibilidades que os vegetais existentes nas possessões marítimas portuguesas poderiam acarretar para o aumento da Fazenda Real e o engrandecimento do reino, afinado com os seus pares que também escreviam nas Memórias Econômicas da Academia. Ainda, é interessante atentar para outro aspecto de suas reflexões para além dessa consciência global das possibilidades, trata-se de uma certa percepção de uma fitogeografia global das plantas, algo que iria ser melhor desenvolvido somente anos mais tarde, principalmente por Alexander Von Humboldt, em seus “Quadros da Natureza”, mas que já estava esboçado em alguns vários outros escritores ilustrados, como é o caso de Loureiro. Tais esboços de uma fitogeografia ficam mais evidentes em uma outra passagem de Loureiro, também intentando o convencimento dos seus pares sobre a importância do conhecimento desses fatores. Explicita que: A ilha de frança, ou maurícia, fica em 18 graos e meio, e a de Bourbon, ou mascarenhas em 20 graos e meio, ambas de latitude austral na africa. Angola fica em perto de 9 graos na costa occidental da mesma africa, donde para o norte, e sul, se estendem largamente as colonias portuguesas; e todas ellas ficam mais próximas que as ilhas de França da linha equinocial, em cuja vizinhança estáo sitas as ilhas Molucas, e de banda, nas quaes o cravo, e a muscada tem a sua patria natural, e primeira origem. As terras do Pará no Brasil ficao debaixo da mesma linha; e por conseguinte sem a menor differença de clima a respeito das molucas; quando a cayenna franceza differe em 5 graos de distancia para o norte. Mostrada acima identidade do clima próprio para a transplantação das especies aromaticas do cravo, e nas colonias portuguesas, resta saber como se poderá executar bem a transportação.6

Cabe ressaltar ainda dois pontos acerca dessas hipóteses de transplantação de espécimes vegetais da Ásia para a América. Primeiro, que essa prática no final do século XVIII, não era nenhuma novidade, posto que desde a Restauração houve um movimento de capitais e interesses por parte dos portugueses que ficou conhecido na historiografia como virada estrutural para o Atlântico, donde a circulação de espécies possíveis de ser cultivadas na América passaram a receber maiores atenções por parte dos portugueses para ser devidamente aclimatadas já na segunda metade do século XVII. Um outro ponto que cabe chamar atenção, é que os vegetais a serem incentivados, que entram no rol das espécimes listadas e discutidas pelos ilustrados eram mormente espécimes que poderiam acarretar

6 Da Transplantação das árvores mais úteis de países remotos. Por João de Loureiro. In. Memórias Econômicas da Academia das Sciencias de Lisboa. TOMO I, 1789. Lisboa na Officina da Academia Real das Sciencias, pag. 156-157.

grandes somas à arrecadação real. Ficando em um espaço secundário, e na grande maioria das vezes unicamente discutidas pelos administradores coloniais e os Ministros de Estado, as importantíssimas espécimes vegetais enquanto gêneros alimentícios. Estas, embora ocupando um lugar primordial no mundo colonial, eram pouco visadas e discutidas nas memórias econômicas. A segunda grande temática de suas reflexões eram desenvolvidas nas Memórias de Matemática e Física, também da Academia de Sciencias de Lisboa, e nestas, suas tergiversações, discussões e teorias fluíam para discussões que tinham ou poderiam ter como enredo aspectos de uma temporalidade mais alargada, como as discussões das petrificações animais e os vestígios fósseis e a discussão da existência de uma multiplicidade de espécies humanas habitando o planeta. Sobre os vestígios fósseis, Loureiro escreve a sua “memória sobre huma espécie de petrificação animal”, em 1799. Sua abordagem, flerta com uma série de elementos díspares, iniciando-se com um discurso de autoridade baseado nas afirmações de Ovídio em suas “Metamorfoses”, Plínio, em sua “Historia Naturalis” e Linné, no seu Sistema Naturae, traz elementos da cultura local na análise dos fenômenos, discute com seus contemporâneos, no caso principalmente Rumphios, para logo em seguida lançar seus vereditos sobre os fenômenos baseando-se unicamente em elementos locais, buscando o conforto da negação de uma temporalidade mais alargada, que já àquela época começava a preocupar filósofos naturais que tinham o campo minado pela descoberta dos vestígios de um “tempo profundo” 7. No caso, de Loureiro de tradição religiosa e jesuíta, suas apreensões e análise dos vestígios fósseis ancora-se em uma temporalidade bastante estreita, preocupado inclusive com as possibilidades dos questionamentos que poderiam advir com sua postura. Apresentando a discussão loureiro explicita sua consciência de que aquele é um assunto de grande monta para a História natural sua coetânea: os gabinetes dos curiosos, e amantes da Sciencia Natural se achão hoje providos d'estas maravilhas, ou raridades, que por taes se fazem estimáveis; mas que já se não pode duvidar, que são effeitos da Natureza. No que toca ao Reino Vegetal, se vem alli troncos, ramos, folhas, espigas de flores, e fructos de diversas árvores, principalmente de diversos filices inteiros, e outros generos pertencentes a Cryptogramia: dando a todos estes o nome generico de Phutolithos. No que pertence ao Reino animal, se vem nos mesmo museos muitos petrificados de insectos, de 7 RUDWICK, Martin. Bursting the limits of Time: The reconstruction of Geohistory in the Age of Revolution. The University of Chicago Press, 2005.

vermes, de animaes quadrupedes, e ainda de homens. D'estes, que são os mais maravilhosos, se achão alguns citados por Linneo na terceira parte os Systema Naturae, e entre elles hum descripto por scheuchzero com o titulo, de Homem testemunha do diluvio. E nesta materia ainda he mais admiravel, o que refere helmoncio de huma horda, ou tribu inteiro de tartaros vagabundos baskires, sogeitos agora ao imperio russiano, que no anno de 1320, diz, fora transformada inteiramente em pedra, com todo o seu gado, carros, e alfayas, de que ainda permanecem naquelle sitio as estatuas de marmore mais naturares, e mais conformes ao seu prototypo, que jamais deu a luz esculptor algum. Porém, eu duvido muito de tao memorável sucesso não porque o tenha por impossivel; pois os mesmos agentes naturaes, que tem força para petrificar hum vivente, a tem da mesma sorte para muitos, em quem achem as mesmas disposições. Mas como se pode crer, que se ache huma tal raridade nos dominios da russia ha mais de quatro seculos, sem que ao menos parte della se tenha conduzido para o museo de petersburgo?8

Ainda na “memória sobre huma espécie de petrificação animal”, Loureiro estuda vestígios fósseis de alguns artrópodes encontrados no leito de um rio na Conchinchina, atual Vietnam. E apesar das discussões de seus colegas naturalistas visarem discutir do específico para o geral, tentando desenvolver e compreender de uma maneira mais ampla como se dá as transformações fósseis, Loureiro se pauta em uma discussão contrária, apresenta o geral, sem polêmicas e questionamentos, para depois chegar ao específico, ao estudo dos seus caranguejos petrificados e o rio em que os mesmos se encontram, retirando dali quaisquer elementos que poderiam acarretar em discussões mais latentes, e colocando em cheque elementos temporais contrários à sua fé. Cabe ressaltar que no final do século XVIII, quando Buffon passou a aceitar uma temporalidade mais alargada, em sua Historia Natural, com a utilização de uma medida do tempo geológico distinta de uma hegemonicamente aceita foi fatalmente acusado de proliferar uma disciplina ateísta. No caso de Loureiro, ele passa a ignorar toda esta discussão temporal e discute e explica a produção do fenômeno apenas na esfera do específico, limitando-se a interpretar o fenômeno por meio de elementos que poderiam estar próximos espacialmente e temporalmente: o doutor joão jacobo d'annone, membro illustre da sociedade helvetica, dando noticia de alguns caranguejos petrificados, que tinha em seu poder, e d'antes tinhao sido do museo do celebre naturalistta Seba, começa dizendo: do mesmo nome se pode colligir, que os caranguejos petrificados são caraguejos, que tendo nascido, e vivido na augoa forao levados para a terra, e mudados em substancia de pedra por meio de varias mudanças, que tem havido no globo terrestre. Este he tambem o 8 Memória sobre uma espécie de petrificação animal. In: Memórias de mathematica e phisica da Academia R. das Sciencias de Lisboa. Tomo II. Lisboa na Typograohia da Academia, 1799, pág. 48.

parecer de outros authores, que elle citta; o qual eu não nego que se verifique em algujma parte só digo, que não se podde admitittir geralmente. A origem dos nossos petrificados de conchinchinanão só he diverssa, mas tambem mais natural, e mais palpavel, sem para isso nos vermos precisados a suppor alguma mudança extraordianria no nosso globo, de grandes diluvios, terremotos,ou vulcanos, que talvez não houve, nem ha lembrança, que houvesse jamais em conchinchina. Os petriffcaos d'este paiz nem se achao nas entranhas da terra, nem nas praias do mar, nem na extençao de todo aquele rio, mais que somente na pequena superficie de huma milha a flor da terra, e debaixo da agoa. (… ) daqui se infere, e conhece claramente, que a violencia, que tira a vida, e transforma em pedra aquelles viventes, esta no lodo, e no fundo d'aquele pequeno espaço de rio, aonde se achao cavar a terra: e tendo elles alli chegado vivos, quando sobem do mar, ou descem com a corrente para o mar, ficao naquele sitio entorpecidos, e durros como he a pedra, em cuja substancia se transformao.9(52)

A apresentação dos autores que discutem os elementos que passam a incorporar uma compreensão mais alargada da temporalidade é explicitada unicamente para o autor mostrar ao publico que está inteirado sobre o debate, entretanto, na sequencia são cabalmente refutados pelos elementos específicos, e próximos inclusive do ponto de vista concreto, uma refutação de elementos de teor mais abstratos, para dar vazão a elementos específicos e empíricos, fechando as portas para abstrações e as discussões sobre o “tempo profundo”. Bem conheço, que com esta exposição não fica totalmente clara a difficuldade da petrificação animal; com tudo parece, que explica mais a materia do que a sentença comum, que diz, que hum animal se petrifica, porque se lhe introduz o succo, ou espirito lapidifico, sem explicar que cousa seja, e como obre o dito espirito; ou a sentença aristotelica, na qual pela corrupçao da forma antiga de animal se diz gerarse de novo a forma de pedra, sem dizer o como: ou finalmente por se lhe introduzir alguma semente de pedra: como poderial alguém dizer, seguindo o parecer de Baglivio, Tournefort, e homberg a cerca da geração, vegetação e semente das pedras: mas esta sentença, anda que fosse mais provavel, do que he, nunca poderia admittir se nos petrificados animaies, como os nossos, que nucna tem cresciscimentoe, nem por conseguinte vegetaçao.10

Uma outra discussão apresentada e engendrada pelo Padre Loureiro nas memórias econômicas de Física e Matemática diz respeito ao “exame phisico, e histórico, se há ou tem havido no mundo diversas espécies de homens?”, produzida em 1784, mas publicada somente em 1799. Se faz interessante atentar para esta temática basilar conquanto seja esta uma discussão que também poderia desaguar em uma temática sensível também acerca de uma temporalidade da existência da vida mais alargada. As proposições de discussão de Loureiro,

9 Memoria sobre uma espécie de de Petrificação animal., pág. 52. 10 Memoria sobre uma espécie de de Petrificação animal., pág. 53.

entretanto, baseadas em uma erudição que remonta aos autores da Antiguidade como Plinio e Aristóteles, e contemporâneos como Linné e Buffon, se baseia no exame histórico detalhado acerca das hipóteses levantadas por Linnée no Sistema Naturae, e discutir a existência de outras espécies de homens. Além do Homo Sapiens, apresentado pelo naturalista sueco, também foi listado um certo Homo nocturnus, identificado com os Trogloditas, na antiga discussão engendrada por Plínio, em Historia Natural; o Ourang Outang, símio que habita regiões africanas; e por fim nas ilhas do Coromandel indiano, o Gibbon ou Gollock, que Loureiro descreve como um espécime de bugio, que possui os membros anteriores desproporcionais ao restante do seu corpo. Para Loureiro a análise que empreende é basicamente histórica e filosófica, o intento que busca empreender como “exame físico” é bastante diminuto em comparação com estes dois elementos anteriores. As argumentações baseiam-se bastante em relatos de viagens, inclusive muito de suas viagens pelos continentes africano e asiático servem como elementos que constroem o argumento de verossimilhança em suas assertivas. O discurso de autoridade de autores da Antiguidade, como Plínio e Aristóteles é colocado em perspectiva em relação à própria experiência que Loureiro teve em suas andanças pelo continente asiático e africano. O que chama bastante atenção também, é o fato do autor sempre relacionar essa experiências com os diálogos que empreendeu com os nativos ou com comerciantes de outras nações expansionistas da época, como ingleses e holandeses. São estes, ao lado de uma vasta erudição, os principais elementos que elenca para assegurar o seu discurso de verdade e de ciência para o seu leitor da Academia de Sciencia de Lisboa. Na sua análise, o primeiro candidato a ocupar um lugar de espécie humana ao lado do Homo Sapiens, é o que a bibliografia analisada por Loureiro nomeia como Homo Nocturnus, ou Trogloditas, ou ainda Albanos (albinos). Estes são descritos da seguinte forma: dos antigos trogloditas fallao não somente plinio, mas também strabo, pomponio mela, e outros authores mais modernos, que herodoto, de quem parece que hoverao principalmente esta noticia. Herodoto historiador grave, e pai da historia, como lhe chamou cicero, diz no livro 4º das suas antiguidades, que de todas as nações conhecidas os trogloditas de ethyopia são os mais ligeiros na carreira: que se sustentão de serpentes, e lagartos, e outros animaes amphibios: que usão de lingoa particular, que nã otem semelhança com alguma outra, e que mais se parece com os guinchos ou silvos dos morcegos. (…) Strabo na sua Geografia das naçoes do mundo confessa, que habitaõ da outra parte do mar roxo: quia enim terram subeant multi troglodytas, quasi antricolas dixere: hi ex arabibus siant, qui ad alteram sinus arabici partem vergunt ad Aegyptum, et Aethyopiam. E plinio citado por Linneo, diz que os troglodytas fazem covas, que são as casas, em que vivem: que o seu comer he

carne de serpentes: que dão gritos, sem voz distincta: e que nã opodem comunicar-se pela falla.11

A outra característica atribuída pela bibliografia analisada por Loureiro é a característica do albinismo. Aqui se constitui um elemento de análise fisica aliada à discussão bibliográfica do autor, que conclui a discussão eliminando alguma possibilidade aventada de que os albinos ou trogloditas constituiria alguma espécie humana distinta, antes, como o autor mesmo evidencia em suas andanças, chegou a ver muitos indivíduos em diversas partes da Ásia e da África. Isigonus de Nicasa, citado por Plinio diz, que os albanos, povos da antiga Scythia, e descendentes de Jason, nascem com os cabelos brancos, e os olhos avermelhados, com os quaes vem melhor de noite, que de dia. Estas propriedades atribue Linneo ao seu Homo Troglodytes, a que também chama Homo Nocturnos, e Albanos (que ambos estes nomes lhes são próprios) não fazem por si huma nação, nem ainda huma família distinta, segundo a experiencia modernos nos tem ensinado: antes sim se encontrao espalhados por diversas naçõess, e nellas procedem de pais, e de famílias, que não tem as mesmas propriedades.” (…) com tudo sendo huma mudança ou variedade, que não he transcendente de algum principio constante, mas sim do temperamento accidental, pela diversa combinação dos humores, não se pode dizer, que estes indivíduos formão huma especie de homens diversa da nossa. 12

A segunda espécie de homem analisada por Loureiro é o homem do Mato ou Ourang Outang. A análise se faz bastante instigante porque adentra-se em uma discussão morfológica, já engendrada por Linneo no Sistema Naturae, o que seria um segundo grande elemento de destronar o ser humano de sua suposta condição especial de existência no planeta, antes, no século XVII, Copérnico havia proposto que o planeta girava em torno do Sol, e não o contrário. Aqui, no Sistema Naturae, o ser humano aparece como uma espécie animal entre as demais, apesar de todas as atenuantes que eram procuradas em relação a esse mais novo questionamento da excepcionalidade humana, dentre os quais, está o que Loureiro elenca como a condição racional, e não unicamente sensitiva dos humanos: esta semelhança, e figura exterior, he unicamente a que nos pretende persuadir, que o orang – outang he homem; (…) nem me digão, que naquelle, allem da grande semelhança figura, se acha também a viada, com que se move, sente, e conhece, como os homens; pois o modo de vida, e conhecimento, que os escritores mais exactos tem observado no orang-outang, he comum, e não superior ao de outros 11“Exame phisico, e histórico se há, ou tem havido no mundo diversas espécies de homens?”.In: Memórias de mathematica e phisica da Academia R. das Sciencias de Lisboa. Tomo II. Lisboa na Typographia da Academia, 1799, pág. 59. 12 “Exame phisico e histórico se há, ou tem havido no mundo diversas espécies de homens?”. Pág. 63.

animaes: com tudo se diz d'estes, que são viventes sensitivos, e não racionaes. Logo, segue-se que o único motivo, que nos poderia induzir, e enganar para o ter por homem à primeira vista, he somente a grande semelhança, que tem com a figura humana.13

A discussão que envolve a suposta terceira espécie é a que envolve o histórico, e o exame físico do que os autores descrevem como o Homo Lar: Depois da que o celebre linneo na 1ª parte do seu systema naturae chamou 2ª especie de homens, deo a luz outra 3ª especie, que com o nome de gibbon, ou gollock se acha descrita no appendiz da mantissa impressa em stockholmo no anno de 1771, ele lhe dá o nome especifico de homo lar, que parece quer dizer domestico, e familiar, assim como o erao os deozes lares, que se diziao assistir com os romanos para lhes guardar as suas casas, e os caminhos publico. (…) este é o animal disforme chamado gibbon, que debaixo do especifico nome de homo lar se nos quer introduzir por indivíduo do nosso mesmo genero, formando huma terceira especie do genero humano. Chamo-lhe disforme; porque na realidade o he, assim na forma interna, como na externa. Na externa basta para o affirmar a enorme desproporção, que tem dos braços com o corpo, a qual deformidade nã ose vẽ em algum dos animaes, que chamamos perfeitos, e nelle faz uma aparencia desagradavel, e medonha. Na interna; porque nã obstante alguma semelhança, que tem tem exteriormente com o homem, elle não falla, nem discorre, nem ainda mostra aquela industria, e habilidade, de que a natureza tem dotado outras especies de bugios. Pois se destes, com serem mais industriosos, falta a razão para dizer que são homens, como se podera dizer daqueles que o são?14

Novamente uma série de elementos asseguram a superioridade humana não apenas somente em relação a este espécime específico, mas também em relação os outros seres que não possuíam, as características de racionalidade atribuídas unicamente ao Homo Sapiens. O homem continuaria a ser a medida de todas as coisas para a ciência da ilustração. “temos visto como de ambas as novas especies de homens, que nos inculca o celebre linneo, nem ha fndamento para dizer, que são racionaes, nem adequada semelhança no corpo com a nossa especie. Como logo se ha de dizer que são homens? Na mesma tal qual semelhança não concordão as relaçoes dos viajantes. Donde se pode inferir que ou elles disseram mais do que virão (como ordinariamente succede na relação das cousas maravilhosas), ou que não sendo os objetos das relações em si muito semelhantes, não podem formar um todo, ou huma especie muito semelhante ao homem. (…) Não entram nesta conta os troglodytas, que, como temos visto, sempre foram da nossa mesma especie; ainda que homes agrestes, e barbaros, assim como eram os tapuias do brasil. Assim aquelles, como todas as mais nações, que povoão o universo, tiveram principio, e descendem todos do mesmo Pai. 15

13“Exame phisico e histórico se há, ou tem havido no mundo diversas espécies de homens?”. Pág. 65. 14“Exame phisico e histórico se há, ou tem havido no mundo diversas espécies de homens?”. pp. 70-71. 15 “Exame phisico e histórico se há, ou tem havido no mundo diversas espécies de homens?”. Pág. 80.

Considerações finais O incômodo e a necessidade que Loureiro encontrava nas discussões de seus contemporâneos indicam alguns elementos instigantes na cultura científica portuguesa, suas formas de apropriação e suas formas de difusão, além de evidenciar as escolhas que não deixavam de ser políticas em meio ao emaranhado de possibilidades existentes no modo de fazer circular a ciência setecentista. Loureiro como jesuíta das possessões ultramarinas, era um autodidata em botânica e história natural, assim como acontecia também com uma série de administradores coloniais que se dispunham a fazer circular ideias, vegetais e minérios dos domínios coloniais. No caso específico de suas discussões, como no caso da excepcionalidade do homem, Loureiro evidencia grande habilidade em discutir e argumentar seriamente com os seus contemporâneos, no entanto revelava suas escolhas políticas. O fato de ser um ilustre sóciocorrespondente da Academia de Sciencias de Lisboa, igualmente evidencia as possibilidades, as escolhas teóricas e políticas que eram aceitas e difundidas na Instituição. Elementos conservadores estiveram bastante presentes inclusive no empreendimento de transformação das instituições científicas do reino, em 1777. Na discussão específica da possibilidade da diversidade do homem, os posicionamentos ancoram-se ainda em supostos elementos da superioridade humana (racionalidade, fala) e por fim, a recusa de um suposto poligenismo deságua na antiga superioridade atribuída aos homens por alguma divindade: (…) que tendo-te Deos, ou a Natureza nossa mãi dado huma alma, entre todas as cousas a mais excellente, e a mais Divina, te deixes tu cahir em tal desprezo, e em tal vileza, que não conheças a grande diferença, que há entre ti, e os brutos? 16

É certo que na cultura científica hegemônica europeia não se fugia muito dos pressupostos bíblicos, nem temporalmente, com os 60 mil anos atribuídos a existência do planeta, nem quanto a superioridade humana em relação à vida no planeta. Esses pressupostos e paradigmas ainda demorariam um certo tempo a serem ultrapassados. Naturalistas franceses como Buffon, começariam a questionar o tempo da vida no planeta a partir de vestígios fósseis, mas somente com Cuvier o estudo desses registros temporais iria alcançar outro patamar. O pensamento da Ilustração que colocava o homem europeu no centro dos

16 “Exame phisico e histórico se há, ou tem havido no mundo diversas espécies de homens?”. Pág. 81.

paradigmas espacialmente e temporalmente, começaria a sofrer os primeiros abalos. Bibliografia GOULD, Stephen Jay. Dedo Vizinho e seus vizinhos: Ensaios de História Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. JARDINE, N.; SÉCORD, J.A.; & SPARY, E.C. Cultures of natural History. Cambridge University Press, 1996. LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: Como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000. MERRIL, E. D., Loureiro and his botanical work. In: Proceedings of the american philosophical society, vol. 72, nº 4 (apr., 1933). pp. 229-239. RAJ, Kapil. Relocating Modern Science: Circulation and the construction of Knowledge in South Asia and Europe, 1650-1900. Palgrave Macmillan, New York, 2007. RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: Monarcas, Vassalos e governo à distância. São Paulo: Alameda, 2008 RUDWICK, Martin. Bursting the limits of Time: The reconstruction of Geohistory in the Age of Revolution. The University of Chicago Press, 2005. _____. Worlds before Adam: The reconstruction of Geohistory in the Age of Reform. The University of Chicago Press, 2007.

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