Sobre golpes e cabritos

May 18, 2017 | Autor: Alexandra da Cunha | Categoria: Creative Writing, Escrita Criativa, Literatura Brasileira Contemporânea
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Sobre golpes e cabritos
Alexandra Lopes Da Cunha

Sentia o coração a pulsar dentro dos ouvidos, muito alto, impedindo-o de escutar outros sons. Ele e o som do seu coração latindo furioso, ele, preso num desvario e necessitando concentrar na tarefa que nunca antes havia cumprido.
Tinha medo, ou achava ter. Por isso, a dor de estômago, o suor a brotar nas mãos. Secou-as no pano encardido das calças. Piscou vezes seguidas os olhos e tentou respirar com mais vagar, mas era como se corresse, corresse de perigo imenso, perigo de morte.
Tomou nas mãos o macete, abraçou com os dedos o cabo nodoso, sentiu-lhe o peso: mais leve que uma enxada, mais pesado que um malho. Bateu com ele contra o chão. O som surdo ecoou em seus ouvidos ocupados e o som surdo e seco fez com que gemesse do outro lado da parede uma voz: gemido de desespero.
Gemia igual a um cabrito antes da esfola, bichinho miúdo que chora de desamparo e chora mais por pressentir a morte. Dá mesmo um misto de pena e ódio antes de matar, antes de esfolar, até desejo. Quando a faca desliza rente à pele e o sangue do bichinho brota, é quase um gozo. Chega a dar vontade de lamber as mãos, o sangue deve ser doce, pensava, mas nunca, nunca mesmo provou. Tinha de morder os lábios para manter a língua quieta.
Hoje era diferente, não iria matar. Era outra coisa, algo que nunca fizera e, por isso, o nervoso. Experimentava o peso do macete, para ver como seria. Para sentir o peso e a força que precisaria empregar, repetiu o gesto de batê-lo contra o chão, e o som surdo e seco ecoou uma vez mais e, mais uma vez, escutou o gemido.
E, sim, aquele som, quase um choro de criança, despertou nele a ânsia, a mesma que tinha em fazer correr o fio da faca pelo pescoço dos cabritinhos e fazê-los morrer, um desejo de ferir, de matar, e sempre que fazia isso, que matava, era como se estivesse dentro de uma mulher, sentia a mesma contração dos músculos nas costas, um calor a se espalhar pelas ilhargas, o tesão que faz gritar quando escapa do corpo. E sua cabeça girava, girava, precisou se apoiar contra a parede, tão tonto ficara.
Mas desejou mais, mais daquela sensação, então bateu e bateu com o macete contra o chão e escutou o outro, aquele que seria depois o alvo da força de seus golpes, aquele sem- vergonha que desejava toda e qualquer mulher: feia, bonita, as mulheres dos outros, as meninas filhas dos outros, até as velhas viúvas, aquele cabra desgraçado que não conseguia ver passar mulher sem querer violá-la, escutou-o a gemer mais e mais alto, como louco, como se ele também estivesse a se acabar dentro de alguma mulher, e continuou batendo contra o chão, a terra cedia, nuvens de pós subiam até os seus olhos e ele, alucinado, a ouvir o outro a gemer, a gritar, imaginava, ele mesmo alucinado, como seria quando estivesse a cumprir a sentença de verdade, quando despissem o homem de suas calças e lhe segurassem os braços, amarrassem-lhes as pernas e ele teria então de bater o macete, de forma precisa entre as pernas do outro, e veria a dor tomá-lo por completo, e os gritos que lhe escapariam da boca, o corpo todo contraído, e sua masculinidade extirpada, o outro nunca mais precisaria de mulher, e pensar nisso o fez continuar batendo, enquanto o outro se desfazia aos gritos. Bateu e bateu enquanto teve forças.
Depois, o silêncio de ambos os lados da parede.
Deixou-se cair no chão, exausto, o corpo coberto de suor e poeira, as calças também úmidas, esperando que a tonteira passasse, com um sorriso a brotar dos lábios grossos de pó.


Alexandra Lopes Da Cunha é doutoranda em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autora de Amor e outros desastres (2013), Vermelho-Goiaba (2014), vencedor do Prêmio IEL 60 anos, na categoria Contos, autor estreante e de Bífida e outros poemas (2016).



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