SOBRE MODOS DE ABORDAGEM E ENSINO DA POESIA QUINHENTISTA

July 25, 2017 | Autor: Marcia Arruda Franco | Categoria: Gil Vicente
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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.

SOBRE MODOS DE ABORDAGEM E ENSINO DA POESIA QUINHENTISTA Marcia Arruda FRANCO1

RESUMO O presente artigo reflete sobre o ensino e a pesquisa de textos quinhentistas, a fim de legitimar os estudos históricos culturais da literatura antiga, por meio duma abordagem multidisciplinar. Pretende pensar os modos de manipulação do texto antigo como documento de sua época e das épocas em que foi relido, como um objeto de referência útil para o conhecimento histórico de diversas temporalidades. Neste sentido, a aproximação central nos estudos humanísticos entre nova filologia de alta tecnologia, e história material do livro e da leitura permite uma revisão da historiografia literária e cultural sobre o século XVI. PALAVRAS-CHAVE: Século XVI; Ensino; Estética da Recepção; História Cultural; Nova Filologia.

INTRODUÇÃO Pretendemos expor o ponto de vista que dirige as nossas pesquisas e aulas sobre os textos quinhentistas. Ao inserir a fonte poética em uma temporalidade específica é possível a sua construção como documento histórico pelo menos de quatro modos básicos: 1) O seu duplo sistema de referência ao real e ao imaginário será ativado por determinada recepção crítica ou criativa, historicamente determinada. As respostas diversas a um mesmo poema ao longo dos tempos nos falam mais desses tempos do que dos poemas. O comentário poético e a crítica literária são preciosas lupas para o investigador do diálogo entre o presente e o passado, em busca de se pensar o capital simbólico transmitido acerca da poesia quinhentista e a canonização deste período poético. 2) Inversamente, a inserção do poema no horizonte da sua primeira recepção nos revela o ponto de vista do tempo em que a obra foi escrita, ficando à mostra o seu nascimento e vida no universo da cultura, daí a importância de se trabalhar com manuscritos e primeiros impressos, o que implica

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Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV). Av. Professor Gualberto, 403. Cidade Universitária. CEP 05508-900. São Paulo, SP, BRASIL. E.mail: [email protected]

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uma reflexão sobre a tarefa editorial e sobre as categorias autor, obra e leitor, feita pela Nova Filologia e pelos estudos da História do Livro e da Leitura, isto é, dos primeiros leitores da poesia em seu tempo: poetas, editores, impressores, tipógrafos, inquisidores, escribas, colecionadores etc 3) Através do diálogo do poético com algumas questões coevas (no caso do século XVI português: o comércio de especiarias, a poesia do Renascimento, a inquisição, as descobertas científicas, o humanismo, a defesa da língua vulgar e do português etc) também é possível fazer emergir o ponto de vista do passado. 4) Por fim, a recepção criativa mais próxima do tempo da investigação, isto é, aquela feita pelos próprios poetas, erigidos em leitores ou consciência receptiva de um tempo recente, também pode ser manipulada como fonte documental, mostrando-nos a vitalidade da poesia antiga neste determinado momento da sua recepção. O caráter dialógico da produção poética torna possível reescrever a história da literatura a partir das suas formas de expressão, isto é, com um critério interno à série literária. Logo a série de releituras e reedições de uma obra em variados tempos nos conta qual ponto de vista determina cada época em particular. A recepção criativa, como objeto de estudos literários, tratada do ponto de vista retórico e comparatista, deixa entrever como se sucedem as gerações de poetas, nas suas glosas de determinadas imagens, e imitação de determinados autores. Ou o discurso se urde de um código poético pré-existente antigo e modelar ou de um novo código que se forja em determinada prática poética como a modernista ou a romântica. No paradigma comunicacional dos estudos literários, a cadeia diacrônica de registros permite documentar uma história crítica da literatura que se exerce como comentário aos textos doutrinários ou objetos de referência. A preocupação com o estatuto histórico dos estudos literários tem sido o denominador comum dos ensaios publicados e das aulas ministradas. Isto não significou em nenhum momento deixar a especificidade do discurso poético de lado, ao contrário, é através do sistema de dupla

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referência ao seu próprio tempo e à série literária que a fonte poética pode servir como ferramenta do processo de conhecimento histórico. Com o propósito de assegurar um estatuto histórico aos estudos literários, a sincronia poética deve ser compreendida como um diálogo da obra com outro tempo posterior ao seu e contemporâneo ao do investigador ou consciência receptora, no exercício de sua Exotopia. Exotopia, como explica Bakhtin, no nível das interações humanas, significa estar do lado de fora de alguém, que pode assim ser compreendido por seu aspecto externo, invisível a si mesmo, mas visível ao outro. Contando com uma visão de conjunto, aquele que está de fora tem uma perspectiva de compreensão impossível àquele que está dentro. No plano da compreensão do passado, contudo, o pesquisador conta com um conjunto de textos cujo diálogo desenha os contornos de uma cultura, historicamente determinada. Cabe a ele escutar este diálogo, que deve ser, no entanto, urdido por uma leitura particular, pois só ela poderá fazer surgir o concerto das vozes pretéritas. Finalmente, a título de experiência didática, e para construir um elo afetivo com a poesia do passado, ainda propomos a nossos alunos exercícios de criação poética, por meio do afeiçoamento das técnicas de composição trovadoresca e da nova poesia, de modo que possam usar a sua própria criatividade e exotopia, por exemplo, pelo deslocamento das técnicas do passado para as angústias de seu próprio tempo e/ou por meio de uma despersonalização instruída em poeta antigo.

DO HISTÓRICO DAS RECEPÇÕES À HISTÓRIA DO LIVRO E DA EDIÇÃO Tomemos o exemplo paradigmático de Camões, cuja obra é estrutural para o desenvolvimento da poesia portuguesa posterior. Cada século constrói o seu Camões. Estas leituras adquirem uma historicidade própria, advinda do confronto entre, de um lado, a interpretação que se

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faz no presente e a feita no passado próximo da investigação, e de outro, a obra do Poeta em seu tempo, com os seus pares. Para comparar Garcia de Orta, o botânico quinhentista, e Camões, no livro de quem publica o seu primeiro poema, a história do livro antigo nos fornece subsídios de reconstrução do horizonte quinhentista. Se quisermos avaliar a recepção oitocentista dos grandes quinhentistas, interessa-nos o conde de Ficalho, o botânico oitocentista, contemporâneo de Eça de Queirós. Logo, será preciso entender a dinâmica da recepção das obras científicas e literárias, o modo como o botânico e escritor oitocentista pôde relacionar um cientista e um poeta do século XVI, da perspectiva oitocentista, e como hoje os podemos relacionar, com o foco em quinhentos, a partir de estudos retóricos, culturais e da história do livro. Com isto, estaremos lançando mão de uma metodologia da teoria literária desenvolvida na Escola de Constança, desde fins dos anos sessenta, a Estética da Recepção, para ler não apenas obras literárias, mas também científicas. Pelas referências diretas que o discurso científico faz ao real cotidiano, àquilo que circunda a linguagem, cuja descodificação é dependente do mundo da vida, e justamente por ser um texto impresso quinhentista, os Colóquios dos simples e drogas e cousas medicinais da Índia podem ser objeto de uma leitura teórico-literária que não abdica de entender o ponto de vista científico em que foram escritos. Não se trata de construir os Colóquios como ficção, mas como objeto da história cultural quinhentista. O paralelo com a obra camoniana acentua a reconfiguração dos campos culturais no século XVI, aproximando as obras de ciência e poesia, do ponto de vista do século XIX, e construindo uma nova interpretação histórica das relações entre Orta e Camões, com o foco no século XVI. Sabemos que o nosso ponto de vista não se confunde nem com o do século XVI nem com o do século XIX. Com isso se jorra alguma luz sobre o modo de conhecer característico do século XIX, sobre o contexto cultural de Ficalho, onde o comentário botânico poético é uma prática legítima da crítica

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literária. O botânico participa da homenagem oficial ao tricentenário de Camões, em 1880, amplamente festejado em diversos campos da cultura letrada, dos dois lados do Atlântico, quando o poema épico ainda gozava de prestígio e de poder institucional, por sua cultura humanística. Além disso, do nosso ponto de vista, ao examinarmos diretamente as relações quinhentistas entre Orta e Camões, também estaremos construindo nossa compreensão historicamente determinada, sabendo que outros olhares verão outras coisas que nos escaparam. Provavelmente será possível através da nossa “exotopia” espaço-temporal encontrar as motivações específicas a cada um dos dois momentos pretéritos (o século XIX e o XVI) em que a pesquisa científica foi valorizada no mundo lusitano. Para abordar as obras de Camões e Orta, nos séculos XVI e XIX, esta pesquisa busca integrar enfoques teóricos e metodológicos provenientes de diferentes disciplinas, assim como das chamadas “áreas de fronteira”, ou disciplinas limítrofes. A História Cultural vem sendo tributária de diversas ciências humanas: a Antropologia, a Sociologia, a História, a Teoria Literária, a Nova Filologia. Aqui importa explicitar os vínculos metodológicos entre História Cultural, Teoria da Literatura e Nova Filologia, pois a investigação limita-se a obras impressas pela tipografia lusíada quinhentista e a suas reedições posteriores assim como de alguns manuscritos quinhentistas, nossas fontes primárias. Em “Os estudos literários hoje”, Bakhtin reflete sobre dois aspectos que devem ser levados em conta num estudo literário sobre obras de épocas passadas. O primeiro aspecto diz respeito às possibilidades de aproximação entre a História Cultural e os Estudos Literários. O segundo, à impossibilidade de se restringirem os estudos históricos de literatura ao contexto histórico cultural

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em que surgiram as obras, pois estas interagem com outros contextos históricos, congregando novos significados. Há dois movimentos para o pesquisador de obras de épocas antigas: o primeiro é entender como estas obras, suportes materiais de sentido, integram-se em um contexto cultural próprio. O signo impresso comum às diversas manifestações do saber sugere uma configuração concreta das fronteiras entre os campos discursivos da História, da Poesia, da Ciência Natural e da Filologia. O segundo movimento que se abre ao pesquisador de textos antigos será entender como as obras foram adquirindo outros sentidos, também históricos, ao serem editadas e lidas em outras épocas, interagindo com outras configurações culturais.

MATERIALIDADE DE TEXTOS ANTIGOS E HISTÓRIA CULTURAL

Cabe, neste contexto, explicitar o diálogo existente entre Chartier e Gumbrecht-1 e Gumbrecht-2, via Jauss, quanto à questão das teorias da leitura e da recepção. Chartier considera que o papel ativo do impressor como doador de sentido ao texto foi esquecido pela Estética da Recepção, o que eliminou a distância entre as intenções autorais e os “dispositivos que resultam da passagem a livro ou a impresso, produzidos pela decisão editorial ou pelo trabalho da oficina”. E continua: “Esta distância, que constitui o espaço no qual se constrói o sentido, foi muitas vezes esquecida pelas abordagens clássicas que pensam a obra em si mesma, como um texto puro cujas formas tipográficas não têm importância, e também pela teoria da recepção que postula uma relação direta, imediata, entre o “texto” e o leitor, entre os sinais textuais manejados pelo autor e o “horizonte de expectativa” daqueles a quem se dirige” (Chartier, 1990, 127). Tendo como alvo Jauss, a questão é desenvolvida por um dos mais irrequietos membros da Escola de Constança: Gumbrecht, na segunda fase de sua reflexão teórica. Ao propor a questão da

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“materialidade da comunicação”, além de rever o legado formalista sobre o lado material da forma poética e propor a emergência de um campo de sentidos não hermenêutico, isto é, não centrado na subjetividade do leitor, mas sugerido pelo suporte material do texto, Gumbrecht, de certa forma, responde a Chartier e desdobra a abrangência da Estética da Recepção sobre as questões tipográficas. No plano da indagação teórica, o segundo Gumbrecht põe em suspenso o resultado alcançado pela Escola de Constança, tanto em relação ao estatuto discursivo próprio do poético, não identidade entre a materialidade dos fatos e o horizonte do mundo, quanto em relação a uma visão hermenêutica da leitura poética. Os questionamentos do último Gumbrecht - a propósito do “campo não hermenêutico” (uma forma de interpretação não centrada no sujeito) e da emergência de sentido a partir da “materialidade da comunicação”, como dado perceptivo (auditiva ou visualmente) conferem à ficção uma dimensão concreta que se deixa corrigir pelo horizonte do mundo e da qual emerge o sentido num plano objetivo, isto é, que extrapola a subjetividade do leitor e do poeta. A “materialidade da comunicação” só é pensável, segundo Gumbrecht, a partir de uma concepção hjelmsleviana do signo poético (Gumbrecht, 1993, 14-5). Os campos tradicionais do significado e do significante são bifurcados: os planos da substância do conteúdo e da forma do conteúdo dão conta da dimensão imaginária e ideativa do poético; os planos da substância e da forma da expressão dão conta da materialidade perceptual da obra poética (Ibidem). O “campo não hermenêutico” se compõe de associações de sentido sugeridas pela dimensão perceptual do poético, sendo esta a acionar o juízo do leitor. A emergência do sentido se dá a partir do ritmo, do código lingüístico utilizado, da imagem tipográfica, dos espaços em branco, enfim, através das qualidades perceptuais e materiais da escrita. Um estudo da “materialidade da comunicação” poética privilegia o uso de fontes manuscritas, da tipografia antiga e das primeiras edições das obras. O “lugar na

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vida” de uma obra começa pela história de sua edição, manuscrita ou tipográfica, isto é, no momento de sua inserção no mundo das coisas, que, necessariamente, interfere na sua circulação e na situação de leitura, ao provocar a emergência de outros sentidos. Quando convoca as características perceptuais da escrita como um campo de emergência do sentido, Gumbrecht está redimensionando, ao inseri-las no contexto das interações, as aquisições formalistas relativas à análise do ritmo, às associações fonológicas, em suma, ao elemento material da produção poética, assim como a visualidade gráfica da poesia, do impresso etc. Ao mesmo tempo os estudos de convergência temática e emulação tópica figuram a materialidade retórica dos discursos humanos, deixando entrever o ponto de vista do passado ao se referirem ao seu próprio tempo. O estudo de uma questão quinhentista clássica, como o comércio de especiarias ou a defesa da língua portuguesa, ou a sátira a um comportamento insuspeitado, como práticas lésbicas e homoeróticas, a partir da escuta de variados discursos, o religioso, o poético, o editorial, o teatral, o filológico, nos desvenda o ponto de vista do passado, escrito por um conjunto de textos coevos que o representam como limite da sua consciência histórica, ou horizonte hermenêutico. No estudo do tema homoerótico no século XV, o ponto de vista do passado emerge, por exemplo, do cotejo entre o Tratado de Confissom, de 1489, e algumas sátiras quatrocentistas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende que abordam tal temática. Tanto os métodos da pragmática do texto do primeiro Gumbrecht (in Lima, 1979) como os questionamentos teóricos implicados pela escuta da materialidade da comunicação poética devem ser encarados como fases de um processo reflexivo iniciado pela adoção do paradigma comunicacional para os estudos de literatura. A dimensão material do signo poético, apesar da sugestão de sentidos vazados de um campo não hermenêutico (não centrado na subjetividade do autor/leitor, mas que emerge do material poético), num estudo concreto de literatura, deve ser

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reintegrada ao plano pragmático da comunicação poética. Pode-se concluir que o caráter mais produtivo da reflexão sobre o poético elaborada pelos membros da Escola de Constança se evidencia na recuperação de um estatuto histórico para os estudos literários. A História Cultural e a Teoria da Literatura associadas como disciplinas limítrofes compartilham um mesmo campo de saber, determinando objetos, como as obras da tipografia antiga, manipuláveis como documentos para a compreensão de épocas passadas, mas não de uma perspectiva totalizadora, pois o que importa marcar é o desvio diferencial e irredutível das diversas leituras sugeridas pelas próprias obras enquanto suportes materiais de sentido à sua e a outras épocas, a este ou aquele leitor, nesta ou naquela edição. Conceitos como autor, obra, leitura, hermenêutica, representação, materialidade, linguagem, próprios da Teoria da Literatura e da Filologia, também ganham a atenção dos historiadores. A construção retórica, por exemplo, tem de ser entendida em sua estrutura de representação trópica, reconstruindo-se a cartografia do labirinto de referências histórico-culturais. De fato, teóricos da literatura como Gumbrecht, Jauss e Bakhtin são fundamentais para quem queira entender a história da leitura proposta por Roger Chartier. Se o conhecimento histórico passa a ser orientado por determinados conceitos advindos da Teoria da Literatura, a fonte literária perde primazia e exclusividade como objeto da leitura teórico-literária. As obras de poesia, de ciência médica ou matemática, de história, de gramática do Renascimento português podem receber um mesmo tratamento, pois são fontes manuscritas e imprensas quinhentistas em língua portuguesa, objeto de uma hermenêutica que colocava o leitor no centro da elaboração de sentido. Nunca é demais citar o verso de Sá de Miranda: “Quantos ledores, tantas as sentenças”. A obra poética, em contrapartida, passa a ser apenas mais uma fonte impressa ou manuscrita para o conhecimento histórico.

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Por contar com um sem número de reedições, a fonte literária do Renascimento não deixa de ser uma fonte especial. Como nos mostram Jauss e Bakhtin, as diversas leituras feitas da obra poética, por poetas e críticos, fazem dela um objeto “metahistórico” capaz de sinalizar, através dos registros de recepção, incluídos aí os sinais da tipografia quinhentista, as sucessivas épocas que a leram, isto é, de deixar à mostra um sistema de valores culturais privativo de cada época, que permite surpreender não só as diversas visões de mundo que desde o século XVI se apoderaram dos textos renascentistas, como a pluralidade de leituras coevas, feitas a cada momento específico da história editorial da obra, independente do discurso ser poético, crítico-literário ou científico. Algo paralelo pode ser percebido na recepção da obra de Orta pelos botânicos europeus e portugueses ao longo dos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX, segundo se depreende quer da leitura do nobre botânico português quer do estudo da história editorial e de circulação da obra de Orta. Todo o interesse histórico-recepcional atestado pelo conde de Ficalho, não implica uma compreensão da obra de Orta voltada para a época quinhentista. De fato, é uma visão determinada do Renascimento que conduz as diversas leituras feitas no século XIX das obras da imprensa quinhentista. Por vezes, essa visão, seguramente anacrônica, obscurece uma apreciação do horizonte histórico dessas obras: o horizonte cultural do império lusíada. Daí a necessidade de estudos centrados no tempo de produção do objeto de referência, cujo horizonte hermenêutico seria redimensionado no primeiro momento de sua circulação. Como nos lembram Gumbrecht e Chartier, os textos impressos quinhentistas (ou de manuscritos disponíveis e das suas sucessivas reedições) são apenas lugares possíveis de se surpreender as diversas reconfigurações históricas dos campos de saber e das práticas de leitura e de escrita do R enascimento. Para traçar a relação da obra com o tempo em que foi criada é preciso conhecer a sua história editorial, a forma material como circulou pela sociedade e pelo mundo dos

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leitores, como texto impresso, preso a uma forma de manifestação sensível no mundo das coisas. As edições sugerem a emergência de determinados sentidos, à medida que são editadas desta ou daquela forma, num ou noutro tempo, por este ou por aquele editor.

FILOLOGIA “HIGHTECH” E ESTUDOS HUMANÍSTICOS O objetivo é pensar a prática filológica como central nas humanidades, abarcando discursos filosóficos, lingüísticos, histórico-culturais, literários, editoriais, crítico literários etc. A filologia é o estudo plural do documento antigo. É uma vista pluridimensional do texto ou objeto de referência, na medida em que todos os seus níveis de produção de sentido são examinados, desde o fônico ao ortográfico, desde a gramática à mancha na página, e ainda o significado histórico-cultural e filosófico. No sentido restrito, a filologia se pratica como crítica textual: a ecdótica, parte da filologia que se preocupa com as questões materiais da edição; sendo leitura e edição do documento, é a parte da filologia que mais se beneficia da tecnologia digital para a edição de textos antigos, conhecidos pelas inúmeras variantes com que foram conservados. Com Gumbrecht 3, em seu texto, “Fill up the margins! About Commentary and copia”, aprende-se que uma filologia hightech ou de tecnologia de ponta poderia dar a visão do poliedro que é qualquer texto. A edição em suporte informático não só possibilita a visualização e leitura das variadas lições do texto manuscrito ou impresso, através do acesso visual a uma realidade material, que até então esteve restrita ao acesso de poucos especialistas, como sobretudo fornece uma

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agilidade ao processo do comentário dos textos múltiplos que põe em circulação. Para Gumbrecht, a estrutura aberta da internet possibilita a proliferação dos comentários como camadas de sentidos suplementares, agregadas ao sentido do objeto de referência, mais ou menos no sentido inverso em que o desconstrutivismo opera em relação a des-leitura dos textos. Para o teórico, a filologia hightech ou cibernética também permite catalisar as humanidades em torno do suporte digital que, ao abrigar a imagem de qualquer artefato, permite que este seja, mais do que simulado, comentado em presença. Aí está o futuro da filologia. O filólogo deverá ser capaz de manejar o suporte informático para fins editoriais, pois, por exemplo, no caso da poesia quinhentista e medieval, não é pouco escanear os documentos, e ainda será preciso transcrevê-los quer diplomaticamente quer os restabelecendo ao nosso sistema ortográfico atual. Todo um sistema de referências cruzadas deve ser acionável para a consulta e comparação da série de documentos transcrita e fixada, assim como comentadas as referências culturais dos sistemas de versões. A edição na era digital exige o trabalho em equipe e adaptação dos programas curriculares da Faculdade de Letras à formação dos ciberfilólogos. A emergência de uma filologia de alta tecnologia sugere uma série de questões e campos para o estudo e edição dos textos antigos e para as técnicas de ensino e interação entre professores e alunos. Em suma, pensar a revolução tecnológica na transmissão das letras, da história, da botânica, da filosofia é reencontrar o lugar central da filologia nos estudos humanísticos.

CRIATIVIDADE E AFEIÇÃO DO TEXTO ANTIGO NO ENSINO DE LETRAS Para concluir este texto, a título de exemplo, do terceiro modo de se difundir o amor pelo estudo e leitura da poesia do século XVI, vamos ler as redondilhas O Pranto de Mário Pardo, de

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Renato Lacerda, Graduando em Letras (Lingüística e Português) pela FFLCH-USP. “Um dos trabalhos de aproveitamento da disciplina Literatura Portuguesa“, por mim ministrada no segundo semestre de 2007, no curso de Letras da FFLCH-USP. Renato Lacerda o disponibilizou em seu blog em janeiro de 2008, e dá o crédito da revisão do ritmo da redondilha maior a outro trovador. Como atividade acadêmica, importa avaliar a releitura criativa. A disposição e a temática do pranto vicentino são sintetizadas, mas há troca do gênero do sujeito poético e da forma estrófica. O pranto de Mário Pardo, a meio caminho entre a longa duração da poesia oral e popular, e o trovadorismo palaciano, teve êxito em afeiçoar no presente as técnicas e os temas do passado quinhentista: PRANTO DE MÁRIO PARDO. Inspirado no Pranto de Maria Parda, de Gil Vicente. Composto em redondilha. DE RENATO LACERDA

— Eu me chamo Mário Pardo e quero apenas beber. Mas carrego um grande fardo: a mim ninguém quer vender. Estou morto de vontade de tomar uma cachaça. Percorri toda a cidade, mas não acho nem fumaça. Serve pinga, serve vinho: qualquer bebida me alegra. Não me dão nem um pouquinho e dizem que “regra é regra”. Fui proibido de beber pelo prefeito da vila. Só por causa de um bebê: um que troquei por tequila. Foi na Rua Principal que roubei o molequinho. Eu tava passando mal, precisando de um golinho. Por isso todos os bares Tentam evitar o Mário. Vai a todos os lugares

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num rito quase diário. Quando não encarcerado, sai à busca da “marvada”. Só quer é ser saciado dessa vontade danada. Uma vez esse coitado vendeu o pouco que tinha. Chegou a andar pelado: Deu roupa por caipirinha. Não tem mais o que vender, está bastante arrasado. Como ainda quer beber, agora pede fiado. — Vai-te embora, seu bebum, aqui não é seu lugar. Não faço fiado algum, pois todos têm que pagar. O prefeito me proibiu de vender para você. E ouça bem, seu imbecil: Fiado é na pequepê. Então parte o cachaceiro a fingir-se de “coitado”: diz pro Juan Carpinteiro que está muito esfomeado. — ¡Hambre que nada, bandido! ¡Yo sé que quieres beber! Tu no es hombre sufrido, ¡tienes mucho a padecer! Já sabendo o seu futuro, Mário entra em desespero. Sabe que o destino é duro, e chama o testamenteiro. — Escreve aí, bom amigo: “A minh’alma, que ela vá, se puder, junto comigo.” Isso é tudo, isso já dá. — Vê se larga de preguiça, e acha logo o que dizer! Eu tenho que encher lingüiça

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pro testamento valer. — Pois então escreve aí que Mário não bebeu mais, só porque o povo daqui melhor trata os animais. Ninguém chore a minha perda: sou só mais um que se vai. Um homem de vida esquerda, sem mãe, sem pinga nem pai. E logo de abstinência morreu o homem sem lar. Ninguém notou sua ausência: só dois cachorros de bar.

FIM Hoje há um fato inexplicado sobre a tumba do boçal, pois sem ninguém ter plantado nasceu um canavial!

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