Sobre narrativas no ensino da arte: táticas artísticas transdisciplinares

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2 Sensualidade no cais; corpo-vibrátil e arte-vida no encontro possível de sujeitos em práticas artísticas. ...enquanto nos atemos às coisas e às palavras, podemos acreditar que falamos do que vemos, que vemos aquilo de que falamos e que os dois se encadeiam: é que permanecemos num exercício empírico . Gilles Deleuze. O que importa é a nossa capacidade de criar novos dispositivos no meio do sistema de equipamentos coletivos que formam as ideologias e as categorias do pensamento, criação que apresenta muitas semelhanças com a atividade artística. Félix Guattari 2.1 O artista, o professor ou a mediação. Falar das coisas é mais fácil de fora do que de dentro. Consigo observar melhor as minhas propostas em educação após haver passado algum tempo. Ao rever meus cadernos de planejamento, pouco consigo pensa-los como um livro de receitas, com atividades prontas para o uso. Seu sentido esteve na experiência. As direções foram quase sempre cambiantes na medida em que os encontros assumiram cada vez mais um aspecto dialógico. Desta forma, com relações que se constituíram em amizades – quantos novos amigos adicionei nas páginas de relacionamento virtual – se operou uma transformação no meu posicionamento diante da arte, tanto como artista plástico, como no papel de professor da disciplina. Considerar a vida como uma obra de arte é compreender a arte não apenas na sua relação com objetos, mas também com os indivíduos e com a vida. Para que haja abertura a isto, é necessário duplicar-se e deste modo, resistir ao hábito. Este posicionamento éticoestético é posto por práticas refletidas e voluntárias, nas quais o homem pode se transformar. Quanto a estas novas práticas sociais, estéticas, e de si, SÁ faz interessante observação a partir da obra de Guattari: (...) é preciso repensá-las, na relação com o outro, pois é na articulação destas três ecologias, subjetividade em estado nascente, do socius em estado mutante, do meio amiente no ponto em que pode ser reinventado, que estará em jogo a saída das crises maiores de nossa época (...) um trabalho coletivo de ecologia mental, ecologia social e ecologia ambiental (a) ser realizado em grande

escala. Consiste em fazer transitar as ciências humanas e as ciências sociais de paradigmas cientificistas para paradigmas ético-estéticos. Uma busca pela transformação, que move os princípios de uma ética da resistência permanente. (SÁ, 2003, p. 43). Nos cruzamentos entre Arte e Educação, ainda é comum se verificar alguns desentendimentos entre professores e pedagogos, já que estes em suas funções políticopedagógicas acabam respondendo muito mais às solicitações de ordem institucional que ao processo de desenvolvimento da individualização no público assistido pelo projeto educacional formulados por aqueles. É a partir dos dispositivos pedagógicos, procedimentos e referências que as intenções selecionadas podem ser vistas enquanto proposições que se instauram como espaço escolar. A possibilidade de atribuir aos agentes envolvidos no uso deste espaço uma apropriação e re-elaboração deste processo, ou seja, a escolha que se dá entre os estados latentes constantemente incorporados por forças padronizadoras, está na produção de uma subjetividade enriquecedora na relação daqueles sujeitos com o mundo. A construção pedagógica da experiência de si é resultado de relações complexas. O dispositivo1 pedagógico será, segundo Larrosa, Qualquer lugar no qual se aprendem ou se modificam as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo. Por exemplo, uma prática pedagógica de educação moral, uma assembléia em um colégio, uma sessão de um grupo de terapia, o que ocorre em um confessionário, em um grupo político, ou em uma comunidade religiosa, sempre que esteja orientado à constituição ou à transformação da maneira pela qual as pessoas se descrevem, se narram, se julgam ou se controlam a si mesmas. A produção da subjetividade por instâncias individuais, coletivas e institucionais se elabora em meio a jogos de linguagem que não poderiam ser explicitados em uma relação entre sistemas tradicionais de determinação, fixados definitivamente. É um fenômeno de complexidade que se dá em reivindicações cada vez mais urgentes de enunciação singularizada em ecologias heterogêneas2. Neste sentido, a situação educativa é potencializada por uma produção atravessada por fatores psicológicos coletivos. Guattari (1992) situa três problemas na 1

Segundo Deleuze; “(...) os dispositivos têm, como componentes, linhas de visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura que se entrecruzam e se misturam, enquanto umas suscitam, através de variações ou mesmo mutações de disposição. Decorrem daí duas conseqüências importantes para uma filosofia dos dispositivos. A primeira é o repúdio dos universais. Com efeito, o universal nada explica, é ele que deve ser explicado. Todas as linhas são linhas de variação, que não tem sequer coordenadas constantes (...) A segunda conseqüência de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de orientação que se separa do eterno para apreender o novo”. DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. 2 GUATTARI, Félix. Caosmose. 1992.

ampliação do conceito da subjetividade: a irrupção de fatores subjetivos no primeiro plano da atividade histórica, o desenvolvimento maciço de produções maquínicas de subjetividade e o recente destaque de aspectos etológicos e ecológicos relativos à subjetividade humana. Estado latente de enunciações singulares que são resultantes dos perceptos e afectos no contato com o objeto que deixa de encontrar o significado em si para se situar na categoria de ritornelos existenciais que o indivíduo re-elabora em estado parcial de subjetivação. Estes ritornelos3 marcam o Agenciamento de territorialidades que na sociedade ocidental contemporânea se caracteriza pela estetização tecnológica e cultural. Estados que podem ser ocupados por ações artísticas deflagradas justamente nestas zonas fronteiriças entre as esferas de representação no corpo social. Neste local-limite que é o espaço de interação simbólica dos diversos atores envolvidos no processo educativo, é que se elaboram as novas subjetividades em, (...) implicações ético-políticas, porque quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada, em inflexão de estado de coisas, em bifurcação para além de esquemas pré-estabelecidos e aqui, mais uma vez, em consideração do destino da alteridade em suas modalidades extremas. Mas esta escolha estética não mais emana de uma enunciação transcendente, de um código de lei ou de um deus único e todo-poderoso. A própria gênese da enunciação encontra-se tomada pelo movimento de criação processual. (GUATTARI, 2003: 137). Assim, o encontro entre sujeitos que caracteriza a ação educativa se instaura com a cartografia de uma paisagem psicossocial, pois como afirma Rolnik; Paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaramse obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias.4 3

O ritornelo um termo relacionado à música. Guattari e Deleuze utilizam a expressão para construir um conceito relacionado com o movimento de territorialização e desterritorialização, e que define a possibilidade contida na experiência. 4 ROLNIK Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

E ainda sobre a figura do cartógrafo, a autora declara que a intenção deste é, (...) descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Aliás, “entender”, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima - céus da transcendência -, nem embaixo - brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem.5 A todo o momento, os encontros que mantive com as classes de crianças, adolescentes e adultos demonstraram a urgência de buscar um posicionamento de abertura às novas situações que a todo instante redefiniram as direções que o grupo caminhava. Este processo se permitiu, creio hoje, ser redesenhado continuamente a partir das enunciações singularizadas que cada um de nós produziu através da experiência vivenciada a cada dia na medida no que define o perfil do cartógrafo é exclusivamente um tipo de sensibilidade, que ele se propõe fazer prevalecer, na medida do possível, em seu trabalho (ROLNIK, 1989). Se toda ação educativa deve ser um ato político, do mesmo modo que toda ação política implica-se com um ato educativo e se verdadeiramente é na relação produzida entre o professor, os educandos e demais agentes institucionais ligados direta e indiretamente ao trabalho, que se podem produzir propostas artísticas na escola. O ensino de arte se faz junto aos procedimentos da arte na medida em que estas relações são determinadas por práticas que não se fixam em um único campo do conhecimento (a Arte, a Educação), mas que são marcadas por possibilidades trans-disciplinares e re-significantes da experiência com a vida, ainda que a intenção esteja na construção de um conhecimento relativo à linguagem da arte. Mas, ainda assim, por que percebemos tão pouco o uso dos procedimentos contemporâneos da arte, em sua real potência de diálogo do sujeito com o mundo, nas atividades desempenhadas nas escolas com crianças e adolescentes e até mesmo com adultos que freqüentam classes de ensino fundamental? 2.2 Ações coletivas e estados de subjetivação. Pensar a aula de Arte enquanto espaço de articulação dos estados de subjetivação com os enunciados denotativos presentes nas estruturas de narração dos indivíduos atuantes em seus devires. Busco a memória de alguns motivos que me levaram a iniciar conversas entre um

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ROLNIK Suely. Op cit.

grupo de adolescentes com a artista Raquel Stolf. A turma de 6 a série havia feito uma visita à exposição Entre-gravuras no Museu de Arte de Santa Catarina. Duas situações chamaram a minha atenção: a primeira, as queixas dos jovens de que haverem encontrado dificuldades em compreender, em palavras deles, “as falas” da mediadora que nada mais do que utilizou a terminologia comum ao campo das Artes Visuais; a segunda, o encantamento que demonstraram frente à obra Campo cego – um livro contendo folhas em branco que poderia ser manuseado pelo visitante que vestisse uma luva de tecido também branca. Decidimos então investigar a artista e suas obras. A proposta elaborada foi a de tomar contato real com algumas das proposições de Raquel Stolf. Para isto, solicitei-lhe ajuda e ela me entregou um envelope com alguns trabalhos: folders de exposições, impressos e um múltiplo. Em sala de aula, os distribuí entre os alunos e discutimos o modo como cada um percebia a poética da artista. A partir do múltiplo, brincamos com o sentido deslocado na repetição de uma palavra e a caligrafia como marca de individualidade. Algumas alunas decidiram que queriam saber mais, e preparamos algumas questões que foram enviadas via email para Raquel Stolf. As perguntas evidenciaram um entendimento da arte relacionado com noções de genialidade e originalidade, típicas da arte moderna e que nada mais eram do que um certo senso comum em relação ao trabalho artístico. Diz Foucault que o sistema de ensino é um sistema de ritualização da palavra, uma qualificação e fixação de papeis, e deste modo constrói sujeitos difusos, doutrinados e doutrinários que se apropriam e distribuem em seus discursos, poderes e saberes (SÁ, 2003, p. 46). Isto marcou o desaparecimento cada vez maior do diálogo, e estabeleceu na figura daquele que educa, o papel de transmissor de conhecimento, além de mediador da aquisição daquilo que Foucault observa como o cuidado de si, onde a subjetividade atua como diferenças que mantêm o conjunto homogêneo no corpo social. No caso do contato direto com a fala da própria artista, seus posicionamentos e procedimentos ético-estéticos levou os jovens a compreender que seus próprios entendimentos do que seria a atividade artística poderiam ser redesenhados a partir do estranhamento que se fez pelas respostas que contrariaram muitos dos seus saberes cristalizados. Conforme Stolf; O uso de palavras em minhas proposições artísticas pressupõe a ficção como plano de partida e como motor da escrita. Escrever implica um desejo de inclinar as palavras, até que os sentidos tombem, escorreguem. Implica em empilhá-las infinitamente, como fatias delgadas e opacas. Escrever buracos em forma de micro-minutos esguios. Escrever interrompendo, numa parede de ar. Escrever a vácuo.6

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STOLF, Raquel. Palavra Devir (sob a escrita obliqua). Disponível em: http://www.anpap.org.br/2007/2007/artigos/157 Acesso em: 20 de novembro de 2009.

Uma das obras que estava no conjunto enviado por Stolf é uma pequena pilha de folhas de papel finos e brancos, onde está impressa a imagem da palavra empilhado, escrita repetidas vezes. Resolvi distribuir aos alunos para que pudessem manusear e observar a proposição. Discutimos o que objetivamente se podia perceber; palavras empilhadas. A partir daí a mediação teve por objetivo estabelecer novos sentidos que se poderiam extrair dali. Falamos do gesto repetitivo e do gesto cotidiano. Da perda de sentido que a repetição exaustiva de uma palavra, dita ou escrita, pode adquirir e como este desvio cria novos sentidos a algo que trataríamos de modo banal. Acabamos por eleger a questão do duplo, da projeção da sombra, uma vez que as palavras empilhadas eram também um desenho que escorria pelo papel.

Figura 05: Raquel Stolf, “Palavra Transparente empilhada”, da Série: Fora [do Ar].

Durante algumas dos encontros seguintes, desenvolvemos desenhos a partir de situações nas quais a sombra despertasse os afetos dos jovens. Diante de sua própria imagem duplicada, elaboraram situações nas quais o diálogo íntimo com o mundo se transfigurou em uma projeção do próprio corpo no espaço que freqüentávamos. As aulas deixaram durante este breve período de ocorrer na sala, ocupávamos todos os espaços disponíveis e não raro, após rápidos registros, entregávamos à conversa e às trocas de olhares sobre o que cada um havia encontrado. A experiência subjetiva deixaria de ser vista como estado privilegiado de descrição pessoal da realidade, mas antes da ação pessoal na realidade partilhada pelos sujeitos. A ética implica o estabelecimento de relações que, em vez de serem pautadas por dominação, são exercidas em forma de composição entre os seres. Os envolvidos se mantêm singulares do começo ao fim, não isentos de tensões e de potencial criativo, aproximando-se, cada vez mais, de uma obra de arte (...) Já a estética é essencialmente criativa, tendendo a encontrar o processo artístico. (SÁ, 2003, p. 43).

No ano seguinte, propus para a já 7 a série uma visita à exposição de Amélia Toledo Entre, a obra está aberta, na mesma instituição. Escolhi uma das obras para que produzíssemos um jogo: uma caixa circular com tampa de vidro, em seu interior, várias espécies de conchas marinhas. Solicitei aos alunos que realizassem desenhos de uma daquelas conchas e que isto fosse feito em duplas, que após diálogo escolheria qual seria desenhada. De volta á escola, no encontro seguinte, estes desenhos foram transferidos para um cartão para criarmos um jogo da memória, mas que trazia a divertida característica de não haverem dois desenhos iguais. Este trabalho criou uma manhã de brincadeiras onde os jovens decidiam quais novas regras conduziriam o jogo. Escapávamos assim de uma relação que a instituição escolar impõe em sua rotina. O espaço da arte, se instaurou como uma não-disciplina, dado que a produção ali não respondia ao uso exaustivo do tempo e a exames típicos da rotina da escola, mas antes em termos de uma coletividade que; (...) deve ser entendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se desenvolve para além do indivíduo, junto ao socius, assim como aquém da pessoa, junto a intensidades pré-verbais, derivando de uma lógica dos afetos mais do que de uma lógica de conjuntos bem circunscritos. (GUATTARI, 1992, p. 20). A escola, tomada como instituição que organiza um campo de experiência, torna-se lugar de acontecimento que,em contato com visibilidades, tanto compõem a disciplinarização dos saberes, quanto promovem oportunidades em propor as novas subjetividades. O fundamento para a soberania do indivíduo para atuar num sistema de ritualização da palavra – como sugere a abordagem de Foucault de uma arqueologia dos saberes – se faz através de operações narrativas temporais, nos quais o sujeito adquire e afirma sua ação no devir. Mas longe de afastar-se totalmente do sistema comunicativo, constatar e utilizar o simbólico na elaboração de questionamentos por parte de cada indivíduo é dar-lhe consciência de sua participação neste sistema, pois; O sujeito da autoconsciência não é imediatez, nem pura privacidade, nem acesso privilegiado, interioridade não mediada que se expressa no discurso. Pelo contrário, a narrativa, como modo de discurso, está já estruturada e préexiste ao eu que se conta a si mesmo. Cada pessoa se encontra já imersa em estruturas narrativas que lhe pré-existem e em função das quais constrói e organiza de um modo particular sua experiência, impõem-lhe um significado. Por isso, a narrativa não é o lugar da irrupção da subjetividade, da experiência de si, mas da modalidade discursiva que estabelece tanto a posição do sujeito que fala quanto

às regras de sua própria inserção no interior de uma trama. (LARROSA, p. 70). Na experiência que recebi como educador, as linguagens da arte tiveram lugar privilegiado devido a minha formação na área de Artes Plásticas. No entanto percebi a impossibilidade em manter-se cerrado nestas linguagens, uma vez que a linguagem da arte é capaz de tocar em muitas das questões que surgem nos processos educativos. E assim, pode desenvolver olhares aguçados naqueles espaços onde os métodos pedagógicos visam à construção de cidadanias e de autonomias dos sujeitos na sociedade, já que o ensino de arte e a própria educação tornam-se sinônimo de desenvolvimento pessoal. É na relação entre as pessoas que se reúnem ali naquele espaço de aprendizado que as urgências e os possíveis caminhos se oferecem à descoberta, pois é aquele, o espaço privilegiado do diálogo entre os corpos. Mas é também o espaço de contato do sujeito, com o duplo. É deste modo que se podem observar o funcionamento dos dispositivos pedagógicos no que estes constroem a experiência de si; (...) como um conjunto de operações de relação orientadas à construção de um duplo e como um conjunto de operações de relação orientadas à captura desse eu duplicado. Aprender a ver, a dizerse, ou a julgar-se é aprender a fabricar esse próprio duplo. E a “sujeitar-se” a ele. (LARROSA, p.80). O corpo, que é a primeira instância de ação e articulação política, fala de seus desejos e frustrações assim como de suas habilidades e das simbolizações marcadas na pele e na oralidade. A estes estados subjetivos que deve o educador manter olhar atento, para que o processo educativo se torne um espaço de construção de mediações entre estados de subjetivação e de conhecimento. Só assim seus objetivos podem se cumprir. As linguagens da arte, nesta perspectiva, atuam como ação em devir já que ao professor-educador-artista ficam evidentes as limitações do planejamento prévio. Que isto não seja motivo para a falta de objetivos definidos, devo assinalar. Mas a importância em se abrir aos diálogos com os demais interessados, bem como com os demais agentes institucionais e de ouvir suas percepções me parecem de suma importância. Deste modo, atuar como o mediador às paisagens que se oferecem a cada instante, e é ai que Arte e Educação complementam-se no processo de criações que passa necessariamente por percepções e afetividades da experiência individual com a realidade e seus condicionantes sociais e históricos.

Figura 06: Visita de alunos da 6a série à exposição de Amélia Toledo no MASC, 2006.

As proposições que levei às crianças e adolescentes enquanto professor me mostraram o surgimento de situações significantes em ações focadas no contato entre as instituições de ensino formal e os espaços onde se desenvolvem projetos educativos como museus e fundações de cultura, e também junto às ações dinamizadas por movimentos sociais 7. De que modo os atores presentes nestes processos pedagógicos utilizam linguagens artísticas? Como estas linguagens são apropriadas pelos educandos? De que modos, propostas de caráter artísticos são elaboradas nestes espaços? Situações de conflito é matéria de arte nestes contextos? As aulas de Artes propõem espaços de experiência que marcam os sujeitos envolvidos no processo? E de que modo se poderia verificar isto? A estes questionamentos se somaram as ações dialógicas que produziriam uma enorme variedade de respostas, em situações que também foram possibilidades de ação no mundo. Nem tanto para transformá-lo, mas por estarmos em uma rede de práticas sociais onde somos ao mesmo tempo, produtores e agentes de mediação simbólica. A questão da subjetividade tem importante posição no projeto filosófico de Guattari 8 e conduz suas investigações para chegar a modos de desarmar e reconstruir os regimes de funcionamento das redes de produção social dos sujeitos. Para ele, a subjetividade é produzida em instâncias individuais, coletivas e institucionais. Esta produção, bem como seus registros semióticos não são determinados pela superestrutura ideológica em relações hierárquicas, mas sim dependente de fatores psicológicos coletivos.

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Ainda 1 ano depois, o mesmo grupo participou de um projeto colaborativo relacionado às atividades de uma rádio comunitária na comunidade Chico Mendes, na capital catarinense. Os jovens mantiveram diálogo com outro grupo da mesma faixa etária naquele bairro através de cartas, cartazes e rede social. Chico Mendes é um conjunto de baixa renda e que tem uma imagem bastante negativa devido ao tráfico de drogas e à criminalidade. 8 No pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, a filosofia tem como propósito a criação de conceitos, e o filósofo se comportaria como um experimentador ao invés de contemplador do mundo. Neste sentido, o exercício filosófico não mais se compreende como um ato de reflexão passiva mas como experimentação e exposição às contaminações.

A história contemporânea está cada vez mais dominada pelo aumento de reivindicações de singularidade subjetiva (...) que em uma ambigüidade total, exprimam por um lado uma reivindicação do tipo liberação nacional, mas que, por outro lado, se encarnam no que eu denominaria reterritorializações conservadoras de subjetividade. (GUATTARI, 1992, p. 13). Guattari pensa assim em uma concepção mais transversalista da subjetividade que não exclua as produções semióticas em suas dimensões maquínicas de subjetivação. Diz ele, Nessas condições, cabe especialmente à função poética recompor universos de subjetivação artificialmente rarefeitos e re-singularizados. Não se trata, para ela, de transmitir mensagens, de investir imagens como suportes de identificação ou padrões formais como esteio de procedimento de modelização, mas de catalisar operadores existenciais suscetíveis de adquirir consistência e persistência. (GUATTARI, 1992, p. 31) Do modo que passei a estabelecer relações entre os saberes e a função poética, como esteira de re-significação subjetiva, compreendo que o papel por mim atribuído ao ensino de artes é o de promover as rupturas ativas e processuais que elaboram os conteúdos a partir da emergência das novas subjetividades tanto em mim quanto nos alunos, pois como afirma Guattari, é na produção destas novas subjetividades que enriqueçam de modo contínuo a relação do sujeito com mundo, que estaria a única finalidade aceitável das atividades humanas (GUATTARI, 1992, p. 33). Para Guattari, a noção de subjetividade constitui-se como produção que tem o papel de eixo ao redor do qual os modos de conhecimento e ação podem envolver-se livremente, lançarse atrás das leis do “socius” (BORRIAUD, 2006, p. 110). Produção que visa uma individuação a ser conquistada e não passivamente sujeitada às maquinas de produção. Nesta forma de analisar a produção maquínica de subjetividade, estabelece-se uma inversão; esta produção é abordada através de agenciamentos práticos que se compõem de enunciados, ligados aos regimes, e de visibilidades, ligadas às máquinas. Estes espaços construídos podem trabalhar no sentido de uma uniformização, mas sua proposta é a de que ao se abrir às forças de fora surge a possibilidade de conquistar uma re-singularização libertadora da subjetividade individual e coletiva (SÁ, 2003, p. 40). A subjetividade não é algo natural, é construída e elaborada naquelas contingências sociais e históricas, as quais se referiu Foucault em suas análises quanto ao saber se si. A arte contemporânea em seus usos relacionais confronta a lógica capitalística e suas máquinas de subjetivação, e é este o aspecto que interessaria como uso dos dispositivos pedagógicos na ação do professor-artista.

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