Sobre o absurdo da condição humana em As moscas, de Jean-Paul Sartre

June 5, 2017 | Autor: Luiza Silveira | Categoria: Comparative Literature, French Literature, Literature, Jean Paul Sartre, Theatre of the Absurd, Theatre
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS






Sobre o absurdo da condição humana
em As moscas, de Jean-Paul Sartre
Trabalho final da disciplina "Teorias do Teatro no Século XX"




Luiza dos Santos Silveira














Belo Horizonte
2º semestre de 2015


1. Introdução
As moscas é uma peça de teatro do escritor, filósofo e crítico francês, Jean-Paul Sartre (Paris, 1905 - 1980), representante do Existencialismo. A peça é de 1943, época em que o país estava ocupado por nazistas, e Sartre acreditava que os intelectuais deveriam ter um papel ativo na sociedade. Dessa maneira começa sua carreira dramatúrgica após um confinamento, em 1940, em uma prisão em Trier, quando fora capturado enquanto prestava serviço militar no setor de metereologia do Exército francês. Neste Natal, escreveu e dirigiu Bariona, um mistério natalino, junto com seus companheiros de cativeiro. Logo após aprofundiza mais no seu chamado Teatro de situação, estreiando a obra objeto de estudo deste trabalho.
O enredo se baseia na lenda grega de Orestes, filho do rei de Argos, Agamêmnon. O filho volta do exílio em busca de vingança pela morte do pai, que foi assassinado por sua mãe, Climemnestra, e seu amante, Egísto. Após o delito, enviaram Orestes ainda criança para o desterro e fizeram de Electra, sua irmã, escrava dentro do próprio palácio. Certamente Sartre, ao retomar o mito, pretendeu distanciar-se das versões clássicas, como o de Ésquilo, evidenciando a desunião entre os planos divinos e humanos, sendo os deuses inimigos da liberdade humana, em vez de apresentar o equilíbrio que poderia haver entre tais níveis.
Em questões abstratas, por meio de alegorias da situação política em que vivia, o autor transpassa o mitológico para um falar sobre o absurdo da condição humana, para abordar questões filosóficas sobre o Existencialismo e a liberdade, as quais tratou mais significamente em O Ser e o Nada (1943). Pois, este trabalho pretende analizar a peça a partir do que Sartre denonima Teatro de situações, contrapondo com o Teatro do absurdo (Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Arthur Adamov, etc.), sendo ambas modalidades dramatúrgicas muito próximas teoricamente, e ao mesmo tempo, diferentes em pontos específicos.


2. O mito e a tragédia sartriana
Para Sartre, utilizar-se do mito em pleno século XX não havia saído de moda. Primeiro por ser uma maneira de disfarçar conteúdos de teor político que não podiam vir a público, pela censura da França da época. Também, mesmo que pensasse que o teatro deveria ser contemporâneo ao seu tempo, o mito seria "uma forma dos povos não-modernos construírem uma interpretação global da realidade" . Ainda afirmava que o teatro seria sobretudo um mito, e que sua função é introduzir o individual na forma de um mito. É neste discurso que pode-se abordar a unidade no múltiplo, encontrar a conexão entre o particular e o universal, sendo um ritual coletivo e transformador da realidade.
Em As moscas, Sartre traduz o mito para retrarar seus grandes temas do existencialismo (filosoficamente abordados em O Ser e o Nada, escrito e publicado simultaneamente à peça, em 1943), a partir do modelo do herói da lenda de Orestes. Aqui, ele seria uma variante do salvador contra os opressores, as Erínias - o remorso - e Júpiter - "senhor das moscas". O Deus é o monstro: aterroriza a cidade de Argos, aprisiona Electra e esconde o segredo dos deuses e dos reis - que os homens são livres. Evidentemente, o mitologismo na obra é trágico, segundo Pierre-Henri Simon, é um novo trágico, que trata "da angústia e do abandono do homem, este ser frágil, gratuito e perdido num mundo feroz e hostil" . É uma tragédia da liberdade, em oposição à fatalidade, pois, se esta existe na condição humana, é a liberdade.
Aristóteles, em sua Poética, define a tragédia como

a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes: ação apresentada não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções .

Albin Lesky refuta o que seria a purgação ao apontar que, nos dias atuais, os espectadores não seriam purificados, ou não estariam livres desse excesso de emoções. Nesta catarse pode-se encontrar uma brecha para o que Camus aponta como um "desconforto diante da inumanidade do próprio homem", ou a "náusea" (no livro homônimo) de Jean-Paul Sartre. Este seria o absurdo da condição humana .


3. Teatro de Situações ou Existencialista
Este é o nome que o autor designou para seu tipo de dramaturgia. A situação é o conjunto de condições, de obstáculos e de cirscunstâncias que o mundo nos impõe. A liberdade está sempre "situada", nos é forçada; é essencialmente um transcender, já que por mais barreiras uma situação tenha, ela não revoga a condição de ser livre.
As moscas foi a primeira tentativa deste tipo de teatro. Caracteriza o personagem sem análise psicológica ou social, mas se faz nas suas ações aplicando a sua liberdade; ele não "é", mas vem a ser. Ainda, vale a pena mencionar o caráter ideológico e crítico desta obra. Michel Contat expôs que a peça é:

contra a ideologia disfarçada de religiosidade que convocava ao remorso e à expiação. O adversário de Sartre em As moscas é o catolicismo da Igreja que apoiou o regime do marechal Pétain. Resistir é primeiramente resistir às ideias que fundam a colaboração, que a justificam metafisicamente.

Resistir sem remorsos, assumindo as responsabilidades de todas as consequências. Assim como pode se notar na alegoria dos personagens, aludindo diretamente ao quadro político da França de 1943. Por exemplo, os habitantes de Argos são a França, obrigada a viver o arrependimento de um ato que não cometeram - na peça, a morte do rei Agamêmnon. Orestes é a resistência, o homem mundano que decide fazer justiça com as próprias mãos, provocando até as santas instituições de ordem estabelecida, impelido por um inconformismo que aprende com Electra, sua irmã, mesmo que ela, vulnerável, ainda esteja atrapada passivamente por um sentimento de revolta.


4. Teatro do Absurdo
A definição deste teatro veio a partir do livro de Martin Esslin: Teatro do Absurdo (1962). Nele, reuniu dramaturgos que nunca disseram pertencer a essa escola, mas de todos modos, aproximou-os a um mesmo movimento, pois "refletem as preocupações e angústias, as emoções e o pensamento de muitos de seus contemporâneos no mundo ocidental" . São figuras como Samuel Beckett, Eugêne Ionesco, Arthur Adamov, Jean Genet, entre outros autores de vanguarda na França, Inglaterram Espanha, Alemanha, Estados Unidos, etc.
O significado original de absurdo era "fora de harmonia", no contexto musical. Encontra-se em dicionários definições como "em desarmonia com a razão; irracional, ilógico". Já para Ionesco:

Absurdo é aquilo que não tem objetivo… Divorciado de suas raízes religiosas, metafísicas e transcendentais, o homem está perdido; todas as suas ações se tornam sem sentido, absurdas, inúteis.

Logo, o tema principal desses escritores de vanguarda é essa "sensação de angústia metafísica pelo absurdo da condição humana". Albert Camus, em O mito de Sísifo (1989, p. 40) considera que, neste mundo, o absurdo é o confronto entre o pensamento irracional, oposto à razão universal, determinista, que pretende provar toda a ciência, e o fascinante desejo de nitidez, invocado no mais profundo do homem. É uma relação intrínseca entre mundo e homem.


5. Aspectos da condição humana em As moscas, de Jean-Paul Sartre
As sensações de angústia mencionadas anteriormente são compartilhadas também pelo pensamento sartriano; a busca pelo sentido da vida, ou a exaltação da ausência desta. No entanto, diferem-se do Absurdo na maneira em que apresenta seu teatro. Sartre e Camus se manifestam como uma "noção da irracionalidade da condição humana sob forma de raciocínio extremamente lúcido e lógicamente construído" . Por outro lado, o Absurdo usa da falta de sentido dessa condição, de maneira em que rejeitam os recursos racionais e discursivos. Assim se pode apontar sobre as obras de Sartre e Camus, mesmo que ainda sobre a desilusão de nossa era e sua falta de sentido, se versam de modo racional e polido.
O Teatro do Absurdo renega falar sobre o absurdo da condição humana, pretendem apresentá-lo tal como é, com recursos teatrais concretos - o que acontece no palco importa mais do que as palavras ditas pelos personagens, ou seja, há uma desvalorização brusca da linguagem. É exatamente nessa tentativa de juntar conteúdo e forma que há a principal divergência entre os teatros em questão. No Teatro de Situações, expressa-se "a condição humana, pois levam ao espectador o que é o absurdo da vida e fazem com que ele tome parte disso e se posicione" .
Toma-se como exemplo a Orestes, personalidade reduzida à sua potencialidade, personagem cuidadosamente redesenhado por Sartre. Representa a liberdade, a possibilidade de poder fazer qualquer escolha. Volta a Argos para vingar seu pai, é impulsionado pela rebeldia de Electra, indo contra a corrente de remorsos e moscas que rege sobre a cidade, até mesmo contra a vontade de sua irmã, desejosa de mudanças, de sair de sua condição de escrava, mas no final amarga-se com as consequências das atitudes de Orestes.

Orestes - Acreditas que eu gostaria de impedi-lo? Eu fiz o meu ato, Electra, e este ato era bom. Eu o carregarei sobre meus ombros omo um barqueiro leva os viajantes, eu o farei passar para a outra margem e prestarei contas por ele. E quanto mais pesado para carregar ele for, mais me alegrarei pois minha liberdade é ele.
Orestes - (...) E a angústia que te devora, acreditas que ela cessará de me roer? Mas que importa: eu sou livre. Para além da angústia e das lembranças. Livre. E de acordo comigo mesmo.

O personagem é coerente com a sua função. O autor oferece uma solução ao absurdo que é a situação que Egisto impôs à cidade, de que todos se arrependam por um crime pretérito, ou às Erínias, moscas sedentas pela fraqueza humana, se alimentam da solidão, impestam todo o ar a ponto de chegar à escuridão. Conduz a liberdade, o segredo dos deuses, à um remédio válido.
Camus confere o pensamento irracional de alguns filosófos, e para Heidegger, a condição humana é uma existência humilhante. A todos os seres há uma "inquietação", e esta é um medo breve para o homem perdido no mundo; o problema é tomar consciência dele meso, o converter-se em angústia, um estado lúcido de vigília, redescobrindo a própria existência. Sentimento recorrente no segundo ato da obra, o medo, durante a festa dos mortos ("A mulher - É preciso ter medo, meu querido. Grande medo. É assim que alguém se torna um home honesto" ), disseminado por Egisto, ali presente em frente à caverna com todos os argivos, relembrando a seu povo que não podem esquecer de suas "podridões", do remorso de seus mortos ("Egisto - Ora, piedade! Não sabeis que os mortos nunca têm piedade? "). Nessa ocasião, Egisto insiste em chamar a atenção para a inquietação, para a irracionalidade da situação em evocar os mortos, e do pavor que todos sentem em rememorá-los em seu pior aspecto quase fisicamente.


7. Conlusão
A peça de Jean-Paul Sartre trata com excelência da questão da condição humana, a que o leitor ou espectador praticamente consiga sentir no ar as moscas do remorso, a visão enfraquecendo, sendo esse o objetivo cumprido de um Teatro de Situação, em falar sobre, discorrer a respeito da existência, no caso da literatura, não tão específico quanto algum outro livro de filosofia do autor. É a capacidade de tratar de temas angustiantes dentro de uma abordagem mitológica, tão abrangente em suas alegorias e metáforas, e mesmo assim não há escapatória da "náusea". O mito de Orestes, traduzido pelo escritor francês, logrou vir à contemporaneidade, inserir-se em outro contexto histórico como a França ocupada por nazistas, em 1943.
O absurdo apresentou-se também de maneira sutil, dialoga com o Existencialismo, mas não é protagonista do teatro sartriano. São preocupações em comum, anseios semelhantes dos pensadores da época, inquietações da mente que só no fazer literário e dramatúrgico tentam procurar alguma salvação.






























8. Bibliografia

CAMUS, A. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989.
LESKY, Albin."Do problema do trágico" In: A tragédia grega.
MAGDALENO, D. G. O teatro moderno sob a ótica da filosofia existencialista. Vol. 6, nº 1, 2013. Disponível em: [https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/danielimagdaleno.pdf]. Acesso em: 17/12/2015.
MARTIN, E. O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.
SARTRE, J. P. As moscas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005.
SOARES, C. C. Sartre e o Pensamento Mítico - Revelação arquetípica da liberdade em As Moscas. 2005. 225 f. Dissertação (mestrado) - Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2005. Disponível em: [http://filosofia.fflch.usp.br/sites/filosofia.fflch.usp.br/files/posgraduacao/defesas/2006_mes/caiocaramicomest.pdf]. Acesso em: 17/12/2015.


LIUDVIK, C. Orestes na barricada: As moscas e a resistência ao nazismo. In: SARTRE, J. P. As moscas.As moscas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005. P. xv.
Ibidem. P. xviii.
ARISTÓTELES. Poética. apud LESKY, A. Do problema do trágico" In: A tragédia grega. P. 28.
CAMUS, A. Os muros do absurdo. In: O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989. P. 34.
LIUDVIK, C. Orestes na barricada: As moscas e a resistência ao nazismo. In: SARTRE, J. P. As moscas.As moscas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005. P. xi.
MARTIN, E. Introdução: O absurdo do absurdo. In: O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. P. 18.
IONESCO, E. Dans les Armes de la Ville. In: MARTIN, E. O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. P. 20.
MARTIN, E. Introdução: O absurdo do absurdo. In: O teatro do absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. P. 20
MAGDALENO, D. G. O teatro moderno sob a ótica da filosofia existencialista. Vol. 6, nº 1, 2013. P. 113.
SARTRE, J. P. As moscas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005. P. 83
Ibidem. P. 94.
SARTRE, J. P. As moscas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005. P. 38.
Ibidem. P. 44.



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