Sobre o consentimento do sujeito passivo

June 29, 2017 | Autor: Michel Reiss | Categoria: Crime, Direito Penal, Consentimento do Ofendido
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO

SOBRE O CONSENTIMENTO DO SUJEITO PASSIVO

MICHEL WENCLAND REISS

Belo Horizonte 2004

MICHEL WENCLAND REISS

SOBRE O CONSENTIMENTO DO SUJEITO PASSIVO

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Ciências Penais Orientadora: Professora Doutora Sheila Jorge Selim de Sales

Belo Horizonte 2004

O candidato foi considerado .................................... pela banca examinadora, com a média final igual a (.......) ............................................

_______________________________________________________________ Professora Doutora Sheila Jorge Selim de Sales Orientadora

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_______________________________________________________________

Belo Horizonte, ...... de ........................... de 2004

Dedicatória Este trabalho é uma singela homenagem ao meu saudoso pai, Natan Reiss, de abençoada memória.

Agradecimentos Um agradecimento especial à Profa. Dra. Sheila Jorge Selim de Sales, pela orientação séria e detida, bem como pelo estímulo e incentivo no estudo das ciências penais. Ao Prof. Carlos Canêdo e ao Prof. Hermes Guerrero, companheiros constantes nesta caminhada pela pós-graduação. À minha família, fonte perene de força e perseverança. À Stael, exemplo máximo de carinho, ternura e afeição. Aos meus amigos, em especial ao Prof. André Myssior, ao Prof. Tarcísio Mendonça e à Leonor Cordovil, pela convivência durante nosso curso de mestrado. À Beatriz Pellegrino, pela ajuda com o italiano, e pela amizade. Ao Prof. Ronaldo Botrel, pelo auxílio com o português, e pela amizade. Por fim, aos meus alunos, por todo o aprendizado por eles transmitido.

“Abordando a questão do consentimento do titular do bem como causa de exclusão do ilícito, não pisamos em terreno pacífico, nem quanto à sua natureza e fundamento, nem quanto ao alcance e mesmo nem quanto à própria realidade do problema, que é sumariamente negada por alguns”. Aníbal Bruno

RESUMO

Este trabalho tem como objeto o consentimento do sujeito passivo como excludente de tipicidade e de ilicitude. De início, a par de considerações sobre a terminologia adotada para designar o instituto, analisa a natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo, inclusive relacionando-o com o direito processual penal. Em seguida, apresenta uma pesquisa sobre o tema no direito penal comparado e sua evolução histórica no direito penal brasileiro, viabilizando a apresentação de uma proposta de lege ferenda. Também foram examinados os requisitos o instituto. Por fim, examina o tratamento médico sob o enfoque do consentimento, com considerações acerca da eutanásia.

ABSTRACT

This work’s matter is the consent of the passive subject as to exclude the fact’s criminality whether in it’s coincidence with the law’s prescription as in the fact’s unlawfulness. Initially, besides the approach about the terminology used determine the legal institute, analyses the legal nature of the passive subject’s consent, including the relating it to the criminal procedure. Following, presents research about the compared criminal law and it’s historical evolution in Brazilian criminal law, enabling a de lege ferenda proposal. The requirements of the institute were also examined. Finally, studies medical treatment beneath the consent’s view, considering the euthanasia matter as well.

SUMÁRIO RESUMO ..................................................................................................................................................7 ABSTRACT ..............................................................................................................................................8 I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...........................................................................................................11 1.1. Introdução..........................................................................................................................................11 1.2. Do consentimento do sujeito passivo: noção e aspectos terminológicos .......................................13 1.3. Do consentimento do sujeito passivo na legislação penal em vigor...............................................15 II. NATUREZA JURÍDICA....................................................................................................................18 2.1. Principais teorias ...............................................................................................................................18 2.2. O consentimento do sujeito passivo e a exclusão da tipicidade .....................................................24 2.3. O consentimento do sujeito passivo e a exclusão da ilicitude ........................................................29 2.4. Nossa posição .....................................................................................................................................35 2.5. O consentimento do sujeito passivo e o direito processual penal..................................................37 2.5.1. O consentimento do sujeito passivo e o não-exercício do direito de queixa....................................38 2.5.2. O consentimento do sujeito passivo e o perdão aceito .....................................................................40 2.5.3. O consentimento do sujeito passivo e a perempção .........................................................................42 III. EVOLUÇÃO DO INSTITUTO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO E NA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA................................................................................................................................44 3.1. Anotações gerais ................................................................................................................................44 3.2. Direito penal brasileiro .....................................................................................................................45 3.2.1. O código criminal do império ..........................................................................................................45 3.2.2. O código penal republicano..............................................................................................................46 3.2.3. O projeto Sá Pereira .........................................................................................................................48 3.2.4. A consolidação das leis penais .........................................................................................................49 3.2.5. O projeto Alcântara Machado ..........................................................................................................50 3.2.6. O código penal de 1940....................................................................................................................51 3.2.7. O código penal de 1969....................................................................................................................53 3.2.8. A reforma penal de 1984..................................................................................................................54 3.3. Legislação estrangeira.......................................................................................................................55 3.3.1. O código penal italiano ....................................................................................................................55 3.3.2. O código penal português.................................................................................................................58 3.3.3. O código penal alemão .....................................................................................................................64 3.3.4. Outras legislações.............................................................................................................................66 3.4. Anotações finais: proposta de lege ferenda......................................................................................67 IV. REQUISITOS ....................................................................................................................................71 4.1. Nota introdutória: a vontade............................................................................................................71 4.2. O agente e a consciência do consentimento.....................................................................................72 4.3. A manifestação do consentimento....................................................................................................75 4.4. O momento do consentimento ..........................................................................................................77 4.5. A pessoa jurídica como consenciente...............................................................................................79 4.6. A disponibilidade do bem jurídico...................................................................................................80 4.7. A idade................................................................................................................................................88 4.7.1. Anotações gerais ..............................................................................................................................88 4.7.2. Disposições legais expressas ............................................................................................................91 4.7.3. Do instituto como excludente de tipicidade – critério geral.............................................................94 4.7.4. Do instituto como excludente de ilicitude........................................................................................95 4.8. Da representação ...............................................................................................................................96 4.9. Da interdição e emancipação............................................................................................................99 4.10. Da doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado e outras deficiências...102

10 4.11. Da embriaguez e do uso de substâncias entorpecentes ................................................................105 4.12. Da incapacidade superveniente, preexistente e concomitante à declaração de vontade...........105 V. OUTRAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONSENTIMENTO DO SUJEITO PASSIVO .108 5.1. Da atividade médica ..........................................................................................................................108 5.2. Acerca da eutanásia ..........................................................................................................................115 VI. CONCLUSÕES..................................................................................................................................126 VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................................129

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I. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

1.1. Introdução

O presente trabalho propõe examinar o consentimento do sujeito passivo no direito penal. Despiciendo mencionar a relevância do tema. Codificado em diversas legislações, não encontrou assento no Código Penal brasileiro, embora seja acolhido na doutrina como causa supralegal de exclusão da ilicitude.1 Até mesmo entre leigos é possível perceber o interesse pela matéria. Com efeito, ouve-se com freqüência a indagação: “Mas a vítima consentiu, por que o agente deve, mesmo assim, ser condenado?” Por essa razão, realiza-se um estudo sobre o consentimento do sujeito passivo, procurando deter-se sobre seus aspectos mais polêmicos, que chamam a atenção dos estudiosos da matéria.2 A primeira notícia histórica do consentimento é encontrada no direito romano, como expõe ALAGIA: Violenti non fit injuria es una máxima muy vieja del derecho romano

1

Cf. Capítulos II e III. Acentue-se que a ausência de codificação faz com que o instituto seja muito pouco estudado e aplicado no Brasil. A bibliografia é escassa: apesar de a maioria dos manuais mencionarem o consentimento, o fazem de forma simples e corriqueira, dedicando pouquíssimas páginas ao assunto, quando o fazem. Os professores tratam sucintamente do tema, quando muito. Há uma única obra específica sobre o tema no Brasil: PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido (Na teoria do delito). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 2

12 por la cual se reconocía al acuerdo valor eximente y, en tal sentido, se desconocía la existencia de un entuerto cuando mediaba la voluntad del ofendido.3 Todavia, nem sempre foi dada a devida importância ao consentimento do sujeito passivo. Exemplo disso pode ser retirado da Escola de Kiel, no Nacional Socialismo alemão. Pero el antecedente más oscuro estuvo representado por la escuela de Kiel, Esta corriente teorizó un saber penal para la excepción, es decir para la guerra, fragmentando la sociedad en amigos e enemigos, escenario en el cual, por supuesto, no había lugar para la autonomía personal y por ende para concederle valor al consentimiento.4

Inicialmente, a verificação recai sobre a natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo. Em seguida, realiza-se exposição acerca do instituto no direito penal brasileiro e em legislações estrangeiras, viabilizando assim a elaboração de uma proposta de lege ferenda. Também a imprescindível análise dos requisitos do consentimento foi elaborada. Por fim, dedica-se um capítulo para o tratamento médico, com algumas considerações sobre a eutanásia. Assim, espera-se que esta dissertação possa contribuir de alguma forma para o aperfeiçoamento do instituto e sua aplicação.

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ALAGIA, Alejandro. El consentimiento en la dogmática penal. Nueva doctrina penal. Buenos Aires: Del Puerto, 1999, fascículo A, p. 314. Continua o autor: No obstante este principio se oponía otro, del derecho público, que proclamaba a la voluntad imperial como fuente de ley, lo que constituyó la partida de defunción de aquella máxima y de todo el derecho romano republicano. Op. cit., p. 314. Sobre a expressão latina, leciona GALDOS: Fluye del Digesto el famoso nulla est iniura quae in volentem fiat, que quiere decir que no existe injuria si se ha consentido. Con posteridad al Digesto, los penalistas han resumido la frase acotada en el no menos famoso apotegma violenti non fit iniuria. GALDOS, Julio Armaza. La eximente por consentimiento del titular del bien jurídico. Revista de Derecho Penal e Criminología. Madrid: Facultad de derecho – Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1998, n. 1, p. 110. 4 ALAGIA, Alejandro. Op. cit., p. 315. Evidente que a tendência da Alemanha Nazista era exatamente diminuir cada vez mais o âmbito da autonomia da vontade do particular. Esclareça-se que, sob qualquer aspecto que se analise a Escola de Kiel, chegar-se-á a uma só conclusão: inegável seu caráter autoritário, típico do Estado Nacional Socialista alemão. Para mais detalhes, cf. BRUNO, Aníbal. Direito penal (Parte geral). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. I., p. 129-130; e PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 36-37.

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1.2. Do consentimento do sujeito passivo: noção e aspectos terminológicos

O consentimento do sujeito passivo pode ser compreendido como a manifestação de vontade por parte do titular do bem jurídico penalmente tutelado, de forma a descaracterizar o injusto penal.5 A palavra “consentimento” tem sua origem no verbo latino consentire.6 Consentio, em latim, é formado pelos vocábulos con e sentire, que significam sentir ao mesmo tempo. Portanto, conclui-se que consentimento, em português, significa “ser da mesma opinião”, “estar de acordo”.7 Interessante é a explicação trazida por HOUAISS, VILLAR e FRANCO: “manifestação favorável a que (alguém) faça (algo); permissão, licença, [...] anuência, aquiescência, concordância, [...] tolerância, condescendência”.8 Pode-se ainda falar em “aprovação; concordância de idéias; acordo; consenso”.9

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O presente trabalho tem como objeto o consentimento do sujeito passivo como excludente da tipicidade e da ilicitude. Sobre a natureza jurídica do instituto, cf. Capítulo III. Acerca da distinção entre ilicitude e injusto, revela a melhor doutrina: “... ilicitude é a contradição que se estabelece entre a conduta e uma norma jurídica, ao passo que o injusto é a própria conduta valorada como antijurídica. O injusto tem assim um caráter substantivo que é posto em destaque nesta definição singela mas bastante significativa de Schmidhauser: injusto é algo que não nos é permitido fazer. Note-se que o conceito de injusto engloba toda e qualquer ação típica e antijurídica, mesmo que não seja culpável. O crime é, pois, um injusto culpável; mas o injusto é uma conduta ilícita que não pode se aperfeiçoar como um verdadeiro crime, pela ausência da culpabilidade”. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 119. 6 MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Lisboa: Horizonte, 1987, v. II, p. 213; e BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. Santos: Brasília Limitada, 1974, v. II, p. 797-798. 7 TORUINA, Francisco. Dicionário latino-português. Porto: Gráficos Reunidos, 1987. 8 HOUAISS, Antônio, VILLAR, Mauro de Salles, FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 807. 9 CALDAS AULETE. Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Delta, 1970, v. II, p. 810-811.

14 A acepção do vocábulo “consentimento”, no léxico, sugere o significado do “consentimento do sujeito passivo” no âmbito jurídico: agente e o consenciente10 devem possuir vontades orientadas no mesmo sentido. No direito penal, o consenciente, como titular do objeto da tutela penal, permite que o agente realize a conduta lesiva, ainda que não seja necessário um acordo prévio entre eles. Essa é a essência do instituto, e nada mais correto do que a utilização do vocábulo consentimento em sua denominação jurídico-penal. No entanto, ainda é necessário uma observação sobre a denominação do instituto – consentimento do ofendido –, há muito consagrada pela doutrina.11 Considerando a importância de utilização de terminologia técnica mais apurada, a utilização do vocábulo “ofendido” não parece ser a mais adequada. Na verdade, o único legitimado a proferir um consentimento válido é o sujeito passivo do crime, titular do objeto da tutela penal. Isto porque o sujeito passivo do crime não se confunde com o sujeito passivo da ação, que é o objeto material (real ou pessoal).12 Tal entendimento pode ser fundamentado na rubrica marginal do art. 50 do Código Penal italiano: consenso dell’avente diritto.13 O vocábulo avente, particípio presente

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A expressão “consenciente” é utilizada por PIERANGELI, José Henrique. O consentimento..., cit., p. 118. Também optamos, neste trabalho, pelo termo “consenciente”. Já HOUAISS, VILLAR e FRANCO falam em “consentinte” referindo-se àquele “que consente; que dá consentimento; consentidor”. Op. cit., p. 807. 11 Diga-se que a já mencionada obra de PIERANGELI inclusive se denomina O consentimento do ofendido (Na teoria do delito). Op. cit. 12 Neste sentido é a lição de José Cirilo de Vargas: “Antes de tudo, é preciso distinguir o sujeito passivo da ação do sujeito passivo do crime. Este último é o titular do bem jurídico tutelado penalmente, enquanto o sujeito passivo da ação é o objeto material, ou seja, a pessoa, ou a coisa, sobre a qual incide a ação típica”. VARGAS, José Cirilo de. Do tipo penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 91-92. 13 Sobre o instituto no direito penal italiano, cf. Capítulo II, item 3.1.

15 do verbo avere, significa conlui al quale è riconosciuto un dato diritto, in base a una valutazione giuridica.14 Diante de tal argumento, FRAGOSO opta com acerto pela expressão “consentimento do titular do bem jurídico”, tout court, sem maiores considerações.15 Entretanto, nada impede que, no curso do presente trabalho, seja também utilizada a expressão “consentimento do ofendido”, consagrada na doutrina tradicional, registrando-se desde já a ressalva.

1.3. Do consentimento do sujeito passivo na legislação penal em vigor

Se por um lado é certo que muitas vezes o consentimento é irrelevante para o direito penal, considerando que sua tutela, regra geral, incide sobre bens jurídicos indisponíveis16, há diversas hipóteses em que o instituto traz conseqüências diversas nesse âmbito. ANTOLISEI resume bem a questão: La volontà del titolare del bene protetto dal diritto, sia nella forma positiva del consenso, sia in quella negativa del dissenso, ha notevole importanza ai fini penali.17

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ZINGARELLI, Nicola. Vocabolario della lingua italiana. 12. ed. Bologna: Zanichelli, 1996, p. 178. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal (A nova parte geral). 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 199. No mesmo sentido, cf. ainda as posições de BRUNO, Aníbal. Op. cit., t. II, p. 17; BARQUERO, Enrique Casas. La importância del consentimiento el la teoria general del delito. Doctrina penal: teoría y práctica en las ciencias penales. Buenos Aires: Depalma, 1988, ns. 41-44, p. 213; e GALDOS, Julio Armaza. La eximente por consentimiento del titular del bien jurídico. Revista de derecho penal e criminología. Madrid: Facultad de derecho – Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1998, n. 1, p. 109. Sobre o tema, cf. ainda: BRAVO, Otávio. Op. cit., p. 199-200; e MAGALHÃES, Délio. Causas de exclusão de crime. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 107-108. Registre-se que o último autor mencionado prefere utilizar a expressão “consentimento do interessado”. 16 Sobre a disponibilidade como requisito do consentimento do sujeito passivo, cf. Capítulo IV, item 6. 17 ANTOLISEI, Franceso. Manuale di diritto penale (Parte generale). 14. ed. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1997, p. 281. 15

16 Assim, em sua mais simples acepção, o consentimento do sujeito passivo desenvolve funções diversas no direito penal brasileiro. Há casos em que o consentimento é elemento constitutivo do tipo penal. Pode-se mencionar, e.g., os arts. 126 (aborto provocado por terceiro) 18 e 220 (rapto consensual)19 do Código Penal. Portanto, a tipicidade de determinados fatos dependerá da presença do consentimento. Em outras hipóteses, o tipo penal exige uma atitude de oposição por parte do sujeito passivo, ou seja, o dissentimento é elemento implícito ou explícito na descrição do fato incriminador. São exemplos o aborto provocado por terceiro20 e o seqüestro e cárcere privado.21 Em tais casos, o consentimento leva à ausência de tipicidade. Além disso, conforme se expõe infra22, há ocasiões em que o instituto poderá afastar inclusive a ilicitude23 de determinados fatos típicos.

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Art. 126. Provocar o aborto com o consentimento da gestante. Art. 219. Raptar mulher honesta, mediante violência, grave ameaça ou fraude, para fim libidinoso. Art. 220. Se a raptada é maior de 14 (quatorze) e menor de 21 (vinte e um), e o rapto se dá com seu consentimento. Exemplo retirado de TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude penal e causas de sua exclusão. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 129. Ressalte-se a peculiaridade do caso do rapto consensual. O sujeito passivo não é apenas a “raptada”, como esclarece PRADO: “A tutela penal visa proteger o pátrio poder ou a autoridade tutelar, bem como a moralidade sexual. [...] Por ser a família o ente orientador da vida sexual da menor, o rapto atenta contra ambas, sendo o consentimento da ofendida nulo, já que não extirpa a ofensa à proteção de que necessita na devida formação da moral sexual. [...] Sujeito passivo deve ser a mulher honesta, na faixa etária entra 14 e 21 anos [...]. Como é o pátrio poder o bem jurídico ora tutelado, entende-se figurarem também como sujeitos passivos, ainda que mediatos, os pais da menor”. PRADO, Luiz Regis, op. cit., v. III, p. 258. Cf. ainda COSTA JUNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código Penal (Parte especial). São Paulo: Saraiva, 1989, v. III, p. 125-126. 20 Art. 125. Provocar aborto sem o consentimento da gestante. 21 Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado. 22 Cf. Capítulo II, item 3, que aborda a natureza jurídica de excludente de ilicitude do consentimento do sujeito passivo. 23 Em consonância com a redação dada para a rubrica marginal do art. 23 do Código Penal (exclusão da ilicitude), optamos preferencialmente pela utilização do termo “ilicitude”, e não “antijuridicidade”. Ademais, não se pode perder de vista que o crime é um fato jurídico, ou seja, acarreta conseqüências para o mundo do Direito. Para maiores detalhes, cf., por todos, GUERRERO, Hermes Vilchez. Do excesso em legítima defesa. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 24. 19

17 Existem situações em que a presença do consentimento do sujeito passivo em nada altera a conclusão acerca dos juízos de tipicidade, ilicitude e culpabilidade. Entretanto, pode ser considerado durante a aplicação da pena. O homicídio privilegiado serve como exemplo em matéria de causa de diminuição.24 Também não se pode olvidar da circunstância judicial “comportamento da vítima”, prevista no art. 59 do Código Penal, que serve como um dos critérios para a fixação da pena-base. Sobre o tema, afirma BRAVO: É na cláusula comportamento da vítima do art. 59 do Código Penal, novidade trazida pelo legislador penal de 1984, que se poderá utilizar o consentimento do ofendido para fixação atenuada da pena-base a ser aplicada ao agente criminoso. Assim, nos casos em que reste íntegro o delito, por não ter a aquiescência conseqüências diretas sobre o conceito analítico da conduta criminosa, inequívoca será a necessidade de se considerar o consentimento concedido pelo titular do bem jurídico na primeira fase de fixação da pena.25

Resta então analisar o consentimento do sujeito passivo sob o enfoque da exclusão da tipicidade e da ilicitude.

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Art. 121. Matar alguém. § 1°. Se o agente comete o crime impelido por relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. 25 BRAVO, Otávio. O consentimento do ofendido na teoria do direito e na teoria da pena. O direito em movimento: Revista do Instituto Capixaba de Estudos. Vitória: ICE, 2000, v. II, p. 208.

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II. NATUREZA JURÍDICA

2.1. Principais teorias

Diversas são as teorias que procuram fundamentar o consentimento do sujeito passivo, estabelecendo sua natureza jurídica.26 Sobre o ponto, acentua Délio Magalhães: inúmeras têm sido as teorias apresentadas sobre o consentimento do interessado. Certo é que só recentemente se procurou estabelecer uma teoria geral a respeito do consentimento do interessado. [...] Entretanto, a mais

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Antes de analisar qual a natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo, necessário verificar o que seria “natureza jurídica”. Para ASCENSÃO, “Natureza é a essência de um ser. A entender-se assim, o estudo da natureza jurídica seria um estudo que caberia à filosofia do direito (v.), que se interrogaria sobre o significado último dos institutos jurídicos”. Cf. ASCENSÃO, José de. Enciclopédia Saraiva do Direito (verbete “natureza jurídica”). São Paulo: Saraiva, 1977, v. LIV, p. 95-96. Entretanto, tal conceituação é extremamente questionável, pois a natureza jurídica não se restringe ao âmbito filosófico, devendo ser tratada sob enfoque dogmático. Segundo De Plácido e Silva, “Na terminologia jurídica, assinala, notadamente, a essência, a substância ou a compleição das coisas. Assim, a natureza se revela pelos requisitos ou atributos essenciais e que devem vir com a própria coisa. Eles se mostram, por isso, a razão de ser, seja do ato, do contrato ou do negócio. A natureza da coisa, pois, põe em evidência sua própria essência ou substância, que dela não se separa, sem que a modifique ou a mostre diferente ou sem os atributos que são de seu caráter. É, portanto, a matéria de que se compõe a própria coisa, ou que lhe é inerente ou congênita”. Vocabulário jurídico. São Paulo: Forense, 1973, v. III, p. 1052. Já NASCIMENTO afirma que “a natureza de certo instituto é aquilo que lhe dá peculiar característica, possibilitando distingui-lo de outro instituto igual, de tal modo que o mantém separado em outra categoria”. Cf. NASCIMENTO, Ricardo Antônio Fonte Boa do. Das penas restritivas pecuniárias. Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Direito da UFMG como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 57. CAVALLO também apresenta seu conceito de “natureza jurídica”: La natura di un essere può dirso quella particolare caratteristica che lo individua e lo distingue dagli altri, e, se è comune ad alcuni di questi, lo fa appartenere ad una o ad altra categoria. Essa si riferisce al suo nascimneto, perciò diviene una qualifica della sua essenza. La natura di un atto o di un fato giuridico, quindi, può dirso quella particolare qualità che lo caratterizza e lo cataloga tra gli altri, ossia la sua qualifica giuridica. Cf. CAVALLO, Vincenzo. L’Esercizio del diritto nella teoria generale del reato. Napoli: Dott. Eugenio Jovene, 1939, p. 216. Optamos pelo conceito elaborado por LISBOA: “A finalidade da averiguação da natureza jurídica de uma instituição é descobrir a ratio essendi da mesma, o porquê que esclarece de uma vez para sempre o instituto. Desse modo, determinada a razão de ser da instituição, o porquê de seu nascimento, e a função que cumpre dentro do ordenamento jurídico, será mais fácil sua compreensão”. Cf. LISBOA, Carolina Cardoso Guimarães. A relação extradicional no direito brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 35-36.

19 antiga é a chamada teoria do negócio jurídico, que foi extraída do Direito Civil e desenvolvida por ZITELMANN.27

A teoria do negócio jurídico fundamenta o consentimento no âmbito do direito privado, o que não se pode admitir. O instituto não é um negócio jurídico na acepção dada pelo direito civil. É inadmissível pensar que o direito penal deveria se socorrer nos arts. 104 e seguintes do Código Civil de 200228, que regula a matéria relativa aos negócios jurídicos no âmbito do direito privado. Segundo PRADO, “o consentimento na área penal tem características diferentes do consentimento no Direito Civil”.29 Mesmo considerando o caráter unitário do ordenamento jurídico,30 a essência do instituto não pode fugir dos limites da ciência do direito penal. Neste sentido é a lição de Nélson Hungria: Foi deplorável a transfusão de sangue que o direito penal recebeu, sem necessidade alguma, do direito civil. [...] Cumpre ter em vista que todo ramo do direito tem exigências próprias, que diferem das dos outros, porque diverso é o setor social a que se referem. Há entre o direito civil e o direito penal um inseparável contraste de concepções éticas, políticas e sociológicas, de modo que não podem ser conjugados ou unificados os seus critérios de estudo. [...] Decididamente, precisamos de voltar ao direito penal na plenitude de sua autonomia, sem cordão umbilical com o direito civil, pois este somente tem servido para apagar-lhe o ‘fogo sagrado’,

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MAGALHÃES, Délio. Causas de exclusão de crime. São Paulo: Saraiva, 1968, p. 108. Sobre a teoria do negócio jurídico, cf. também BRAVO, Otávio. O consentimento do ofendido na teoria do direito e na teoria da pena. O direito em movimento: Revista do Instituto Capixaba de Estudos. Vitória: ICE, 2000, v. II, p. 197; JIMENEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. 3. ed. Buenos Aires: Losada, 1964, v, IV, p. 594; ANTOLISEI, Franceso. Manuale di diritto penale (Parte generale). 14. ed. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1997, p. 282-283; e ainda MAGGIORE, Giuseppe. Diritto penale (Parte generale). 5. ed. Bologna: Nicola Zanichelli, 1951, t. I, v. I, p. 327-328. Diga-se que tal concepção mostra-se ultrapassada, não havendo, há décadas, autores que a defendem. As obras citadas apenas trazem o conceito de consentimento como negócio jurídico, sem entretanto aceitar tal posicionamento. Sobre as críticas acerca de tal teoria, cf. nota 7. 28 Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 29 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro (Parte geral). 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. I, p. 333. 30 Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 190.

20 desvalorizar-lhe as normas centrais ou peculiares, amesquinhar-lhe o conteúdo profundamente humano e estruturalmente sociológico.31

Exatamente por isso, a doutrina dominante rejeita a teoria do negócio jurídico, que se revelou há muito ultrapassada.32 Enfoque diverso é dado pela teoria da ação jurídica. Nesse sentido acentua MEZGER que el consentimiento como causa de justificación produce sus efectos objetivamente sin tener en cuenta el conocer del sujeto activo.33 Complementa PIERANGELI: “Para esta teoria, defendida particularmente por Bierling, os bens são juridicamente tutelados enquanto o seu titular os considera e os trata como bens de valor”.34 Por mais lógica e coerente que seja a teoria da ação jurídica, ela não explica realmente a essência do consentimento do sujeito passivo, por duas razões. Primeiramente,

31

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1949, v. I, p. 584-591. A posição exposta não significa que o Direito Civil deva ser ignorado por completo. Ao contrário, considerando o caráter subsidiário do Direito Penal, bem como a já mencionada unicidade do ordenamento jurídico, alguns institutos de direito privado são de imensa valia para a dogmática jurídico-penal. É o que se verá, por exemplo, ao se tratar dos requisitos do consentimento (cf. Capítulo IV deste estudo). Entretanto, não se pode invocar o Direito Civil como fundamento para a existência de um instituto notadamente de Direito Penal. 32 Criticam a teoria do negócio jurídico: SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal (Parte geral). Rio de Janeiro: José Konfino, 1947, t. I., p. 371-372; MAGALHÃES, Délio. Op. cit., p. 108-109; PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido (Na teoria do delito). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 71-72; MAGALHÃES, Délio. Op. cit., p. 109; ANTOLISEI, Franceso. Op. cit., p. 282-283; FIANDACA, Giovanni, MUSCO, Enzo. Diritto penale (Parte generale). 3. ed. Bologna: Zanichelli, 1995, p. 228; MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale (Parte generale). 4. ed. Padova: Cedam, 2001, p. 262; BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Trad. de Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, v. I, p. 399; MEZGER, Edmundo. Tratado de derecho penal. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, t. I, p. 417; e ainda CUELLO CALÓN, Eugenio. Derecho penal. 8. ed. Barcelona: Bosch, 1952, p. 389-390. Por fim, registre-se a conclusão de MAGGIORE: Anch’io nella prima edizione del presente trattato ho aderito a tale opinione. Me ne sono, tuttavia, sempre più energicamente dilungato, man mano che mi sono convinto essere il negozio giuridico una construzione tra le più inutilizzabili nel campo del diritto penale. Op. cit., p. 327. 33 MEZGER, Edmundo. Tratado de derecho penal. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, t. I, p. 415. Registre-se MEZGER não aceita a teoria da ação jurídica. Entretanto, o penalista alemão conceitua de forma precisa e sucinta tal teoria, razão pela qual transcreveu-se seu ensinamento. 34 Op. cit., p. 72. Cf. SIQUEIRA, Galdino. Op. cit., p. 372; e ainda BRAVO, Otávio. Op. cit., p. 197. Nota-se que a teoria da ação jurídica adota uma concepção ético-valorativa de bem jurídico. Para maiores detalhes, cf. PRADO. Bem jurídico-penal e constituição. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 44.

21 porque ignora por completo qualquer análise do elemento subjetivo por parte do agente, ou seja, se o mesmo tinha ou não consciência da existência do consentimento.35 Ademais, a explicação para a existência do instituto gira em torno da análise da tipicidade ou da ilicitude de determinadas condutas humanas36, e não em uma argumentação essencialmente meta jurídica. Para MANTOVANI, o consentimento possui natureza jurídica de ato jurídico: il consenso [...] è un mero atto giuridico, un ‘permesso’ con cui si conferisce al destinatario un potere di agire, senza ch si crei alcun rapporto di dirittiobblighi, e che ha come unico effetto di escluderne l’illiceità per il semplice ‘abandodo’ del proprio interesse ed ‘accettazione’ del fato.37

Já MEZGER, também visando explicar a natureza jurídica do instituto, invoca a teoria da ausência de interesse, assim se expressando: El consentimiento del ofendido constituye el ejemplo clásico de la exclusión del injusto con arreglo al principio de la ausencia de interés. Pues supone el abandono consciente de los intereses por parte del legítimamente tiene la facultad de disposición sobre el bien jurídico.38

Sobre a teoria, afirma TAVARES: O argumento se funda em que o conteúdo de todo e qualquer injusto representa uma lesão de interesse. Inexistindo interesse, assim como

35

Entendemos que o instituto só será válido para exercer a função de excludente do crime quando o agente tiver consciência do consentimento oriundo do titular do bem-jurídico tutelado. Cf. o Capítulo IV deste trabalho, especialmente seu item 2, denominado “O agente a consciência do consentimento”. 36 Tal fato nos leva a concluir que o consentimento possui, notadamente, natureza jurídica de direito penal. Para mais detalhes, cf. os itens 2 e 3 deste Capítulo. 37 MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale (Parte generale). 4. ed. Padova: Cedam, 2001, p. 262. FIANDACA e MUSCO também defendem tal posição: ...conformemente all’opinione oggi dominante, esso va qualificato come un semplice atto giuridico, cioè un permesso col quale si attribuisce al destinatario un potere di trasferisce alcun dirrito in capo all’agente. Op. cit., p. 228. 38 Op. cit., p. 413-414. Destaques do texto no original. Sobre a teoria de MEZGER, cf. ainda JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. 3. ed. Buenos Aires: Losada, 1964, v. IV, p. 594; BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Trad. de Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, v. I, p. 395; e MAGALHÃES, Délio. Op. cit., p. 111-112 e 118. MANTOVANI, apesar de entender o consentimento como um ato jurídico, faz referência ao abandono do interesse por parte do sujeito passivo. Op. cit., p. 262.

22 apresentado-se um interesse maior um interesse maior, conseqüentemente desaparece o injusto.39

Em vez de ausência de interesse, WELZEL entende o consentimento do sujeito passivo como uma renúncia à tutela jurídica, afirmando: El consentimiento es el acuerdo con el hecho; contiene la renuncia a la protección jurídica. Es más que el mero dejar hacer o la tolerancia pasiva, más bien el acuerdo interior con el acto.40 TAVARES, em consonância com WELZEL, acentua: Toda norma se destina e serve à proteção dos bens jurídicos e também se encontra promulgada para viger em situações normais, não em estados de exceção. Em conseqüência, todos os bens jurídicos merecem o amparo da norma. Essa proteção se faz através de proibições e comandos dirigidos à coletividade e alicerçados em juízos de valor. Entretanto, se por um lado, a norma expressa-se, por motivo de autoridade, em mandatos e termos de valoração absoluta, não pode ser tomada em consideração independentemente do substrato de valores a que deve a sua origem e validez, nem tampouco vigorar em todos os conflitos imagináveis. Há ocasiões em que o bem atacado renuncia à proteção da norma, constituindo uma situação anormal. Essa situação arrasta consigo a norma, fazendo-a retroceder, pois já não interessa a ele proteger o bem, tendo em vista o critério de valor de uma situação normal.41

RAMACCI possui entendimento semelhante ao falar em renúncia à tutela jurídico-penal: La rinuncia al diritto disponibile implica come derivazione logica che la tutela apprestata dalla legge a quel diritto non ha ragion d’essere nel caso particolare; implicitamente, dunque, la rinuncia al diritto è anche rinuncia alla tutela giuridica penale. La scelta del singolo deve essere fatta propria dallo Stato, perché se il diritto è disponibile essa rientra nella sfera dell’autonomia privata e sarebbe inutilmente vessatorio che lo Stato intervenisse nonostante che il privato, titolare del bene, non vi abbia

39

TAVARES, Juarez Estevam Xavier. O consentimento do ofendido no direito penal. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, n. 12, 1969, p. 263. Esclareça-se, contudo, que a posição de TAVARES não se coaduna com a posição de MEZGER. O penalista brasileiro defende a teoria apresentada por WELZEL, a seguir exposta. 40 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman (Parte general). 11. ed. Santiago: Jurídica de Chile, 1976, p. 138. Pelo exposto, não se pode concordar com José Henrique Pierangeli ao afirmar que “segue Welzel a teoria da ação jurídica”. Op. cit., p. 74. 41 TAVARES, op. cit., p. 263.

23 interesse: nulla poena sine necessitate, posto Che la pena deve rappresentare l’extrema ratio.42

Não obstante o rigor técnico e a clareza lógica das posições de MEZGER, WELZEL e RAMACCI, a fundamentação foge ao âmbito das ciências penais. Na verdade, os autores invocam razões de ordem filosófica, que guardam relação com os fins do direito penal. A essência do consentimento do sujeito passivo deve, porém, ser tratada em termos dogmáticos. ROXIN fundamenta a existência do instituto sobre o livre arbítrio ao falar em liberdade de ação de quem consente. Por isso afirma: Si los bienes jurídicos sirven para el libre desarrollo del individuo [...], no puede existir lesión alguna del bien jurídico cuando una acción se basa en una disposición del portador del bien jurídico que nos menoscaba su desarrollo, sino que, por el contrario, constituye su expresión.43

Essas são as principais teorias que buscam explicar a natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo. Entretanto, faz-se necessária uma observação final. Segundo MAGGIORE, L’istituto del consenso dell’avente diritto ha un duplice aspetto: etico-filosofico e giuridico.44 Mesmo sem desconhecer a importância das teses expostas, fácil notar que todas elas giram em torno de razões ético-filosóficas. Em outras palavras, trata-se de colocações meta-jurídicas.

42

RAMACCI, Fabrizio. Corso di dirito penale. 2. ed. Torino: G. Giappichelli, 2001, p. 316. REALE JÚNIOR, mesmo restringindo o âmbito de eficácia do consentimento como excludente de ilicitude, também defende tal concepção: “A finalidade do consentimento é que pode ditar a renúncia do Estado de fazer atuar o seu poderdever de punir”. REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal (Parte geral). 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. I, p. 178. WESSELS é mais um defensor de tal teoria: “... o consentimento justificante é, por sua essência, uma renúncia à proteção jurídica. Seu campo de atuação limita-se aos casos nos quais a ordem jurídica concede ao protegido a possibilidade de fazer uso de sua auto-determinação através do abandono de seus bens”. WESSELS, Johannes. Direito penal (Parte geral). Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Sérgio Ant:nio Fabris, 1976, p. 76.

24 A essência do consentimento do sujeito passivo deve ser buscada dentro da dogmática penal, pois, conforme demonstra MAGGIORE: Non si chiede quale sia il valore morale del consenso dell’offeso, ma quale sia la sua norma e la sua fonte entro l’odinamento giuridico.45 Portanto, resta perquirir a natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo no âmbito da dogmática jurídico-penal, e não na filosofia do direito.

2.2. O consentimento do sujeito passivo e a exclusão da tipicidade

Segundo Jair Leonardo Lopes, “o tipo é um modelo de ação, imaginada e descrita pelo legislador como de provável ocorrência na realidade da vida e idônea a causar uma ofensa ou a expor a perigo um bem ou valor, objeto de proteção jurídico-penal”.46 Portanto, o tipo é uma descrição abstrata de um fato. Assim, caso haja a realização de determinada conduta in concreto, caberá ao operador do direito analisar se a conduta realizada encontra ou não tipicidade no modelo previsto em lei. Conforme expõe José Cirilo de Vargas: “O enquadramento ou ajustamento da ação humana à descrição abstrata feita pela lei é a tipicidade, sem a qual [...] não se pode falar em existência de crime”.47

43

ROXIN, Claus. Derecho penal (parte general – fundamentos. la estructura de la teoria del delito). Madri: Civitas, 1997, t. I, p. 517. 44 MAGGIORE, Giuseppe. Diritto penale (Parte generale). 5. ed. Bolonha: Nicola Zanichelli, 1951, v. I, t. I, p. 326. 45 Op. cit., p. 327. 46 LOPES, Jair Leonardo Lopes. Curso de direito penal (parte geral). 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 111. 47 VARGAS, José Cirilo de. Do tipo penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 28.

25 Em alguns casos, a norma penal incriminadora exige que haja um dissentimento por parte do sujeito passivo. Ou seja, o titular do bem jurídico tutelado deve demonstrar que não concorda com a lesão ou exposição de perigo, ainda que de forma implícita. A título de exemplo, veja-se o estupro. Dispõe o art. 213 do Código Penal: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Para Luiz Regis Prado, constranger significa forçar, compelir.48 Portanto, só haverá tipicidade quando cabalmente demonstrado que a mulher não concorda com a realização da prática sexual. Ou seja, quando não houver consentimento. Existindo o consentimento, não se poderá concluir que o agente forçou ou compeliu a mulher à prática da conjunção carnal. Portanto, o dissentimento por parte do titular do bem jurídico tutelado é elemento constitutivo do tipo penal. Nestes casos, o consentimento terá a função de excluir a tipicidade da conduta. Esclarece MAGALHÃES NORONHA: “O dissenso é, então, elemento típico. Faltando ele, não tem o fato tipicidade”.49 São incontáveis os exemplos. Dispõe, e. g., o art. 150, caput, do Código Penal: “Entrar ou permanecer, clandestinamente ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”.

48

PRADO, Luis Regis. Curso de direito penal brasileiro (Parte especial). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. IV, p. 203. 49 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal (introdução e parte geral). São Paulo: Saraiva, 1979, v. I, p. 213.

26 Ou seja, uma simples leitura da norma penal revela a necessidade de dissentimento, ainda que tácito, para que se caracterize a configuração típica. Existindo o consentimento “por quem de direito”, não há crime. O caso do furto, previsto no art. 155, caput, do Código Penal, também exige o dissentimento do sujeito passivo, ainda que de forma implícita. Dispõe tal norma legal: “Subtrair para si ou para outrem coisa alheia”. A conduta de subtrair implica que seja contra a vontade do sujeito passivo, necessariamente.50 Sendo assim, o consentimento proferido pelo proprietário ou pelo possuidor da coisa móvel acarretará, de forma inequívoca, ausência de tipicidade. Pode-se mencionar alguns outros casos previstos na Parte Especial do Código Penal, como o aborto praticado por terceiro (art. 125); constrangimento ilegal (art. 146); seqüestro e cárcere privado (art. 148); violação de correspondência (art. 151); furto de coisa comum (art. 156); roubo (art. 157); extorsão (art. 158 do CP); extorsão mediante seqüestro (art. 159 do CP); apropriação indébita (art. 168 do CP); violação de direito autoral (art. 184 do CP); atentado contra a liberdade de trabalho (art. 197 do CP); atentado violento ao pudor (art. 214 do CP); dentre vários outros. Diante de tal raciocínio, é possível concluir que o consentimento do sujeito passivo atua como excludente da tipicidade quando o tipo penal exige, ainda que de forma implícita, o dissentimento por parte do sujeito passivo.

50

Para Paulo José da Costa Júnior, “Subtrair é o apoderamento de coisa alheia, mediante apreensão e ulterior remoção”. Comentários ao Código Penal (Parte especial). São Paulo: Saraiva, 1988, v. II, p. 198. Por tal razão, não se pode concordar com PIERANGELI ao afirmar que “no delito de furto o consentimento é válido para excluir a ilicitude da conduta do agente”. O consentimento..., cit., p. 91. Não há necessidade se perquirir acerca da ilicitude, pois o problema se resolve desde logo na análise da tipicidade. Em consonância com nossa conclusão, cf. MAIWALD, Manfred. El consentimiento del lesionado en el derecho y en la dogmática penal alemanes. Cuadernos de doctrina y jurisprudência penal. Buenos Aires: Ad-Hoc SRL, 1999, v. V, p. 338-339.

27 Como afirma WELZEL: El consentimiento puede tener varias significaciones penales: a) Excluye ya el tipo en todos aquellos casos en que el actuar contra la voluntad del afectado forma parte del tipo. [...] En general, tal acto es totalmente atípico.51 A doutrina alemã costuma utilizar os termos “acordo” ou “concordância” para se referir ao consentimento como excludente de tipicidade, deixando a expressão “consentimento” para os casos de exclusão da ilicitude. Assim o faz WESSELS, ao esclarecer que: a concordância do interessado exclui a tipicidade nos casos em que o desvalor da ação se deduz, precisamente, do fato desta ação resultar, segundo a descrição legal da conduta, contra ou sem a vontade do ofendido.52

Neste mesmo sentido é a lição de MAIWALD: En este punto en Alemania se suele partir de una diferenciación [...] que, terminológicamente, distingue entre la “conformidad”, como causa de exclusión de la tipicidad, y el “consentimiento” propriamente dicho, como causa de justificación.53

ROXIN apresenta a mesma distinção: La opinión hoy dominante distingue [...] entre acuerdo y consentimiento. Según esta doctrina, el acuerdo actúa excluyendo la tipicidad. Ello entra en consideración en los tipos en que la acción típica presupone ya 51

Op. cit., p. 137-138. Sobre a natureza jurídica de excludente da tipicidade do consentimento, cf. ainda ANTOLISEI, Franceso. Manuale di diritto penale (Parte generale). 14. ed. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1997, p. 281; FIANDACA, Giovanni, MUSCO. Op. cit., p. 228; MANTOVANI, Ferrando. Op. cit., p. 262; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 119-120; RAMACCI, Fabrizio. Op. cit., p. 315-316; FONTÁN BALESTRA, Carlos. Op. cit., p. 54-56; MEZGER, Edmundo. Op. cit., p. 423; BETTIOL, Giuseppe. Op. cit., p. 396; WESSELS, Johannes. Op. cit., p. 75-76; WELZEL, Hans. Op. cit., p. 137-138; ROXIN, Claus. Op. cit., p. 512; MAIWALD, Manfred. Op. cit., p. 338-339; BARQUERO, Enrique Casas. Op. cit., p. 216; RAMACCI, Fabrizio. Op. cit., p. 316; GALDOS, Julio Armaza. La eximente por consentimiento del titular del bien jurídico. Revista de derecho penal e criminología. Madrid: Facultad de derecho – Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1998, n. 1, p. 111-114; NORONHA, Edgard Magalhães. Op. cit., p. 213; BRAVO, Otávio. Op. cit., p. 200; PRADO, Luiz Regis. Curso..., cit., v. I, p. 333; GRECO, Rogério. Curso de direito penal (Parte geral). 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2002, p. 417-418; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal (Parte geral). 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. I, p. 253; e TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Op. cit., p. 261. 52 WESSELS, op. cit., p. 76. 53 MAIWALD, op. cit., p. 338.

28 conceptualmente un actuar contra o sin la voluntad del lesionado (invito laesio, según la formulación latina). [...] Por el contrario, el consentimiento en sentido estricto, cuando es prestado por el portador del bien jurídico, sólo tendría efecto de justificación, pero no el de excluir la realización del tipo.54

WELZEL também opta pelo termo acordo: El consentimiento excluyente del tipo (= “acuerdo”) es de carácter puramente objetivo, a diferencia del consentimiento justificante de la víctima.55 Na América Latina, ZAFFARONI e PIERANGELI utilizam a palavra “acordo”, que seria “uma forma de aquiescência que configura uma causa de atipicidade”.56 As expressões “concordância” e “acordo” não soam como adequadas, por duas razões. Primeiramente, porque levam a crer que o instituto do consentimento do sujeito passivo não teria aplicação no âmbito da tipicidade, o que não é correto. Já que o instituto tem natureza jurídica de excludente da tipicidade, muito mais adequada a utilização do termo “consentimento do sujeito passivo”.57 Segundo, porque tais termos têm conotação de “vontades convergentes”, ou seja, como se existisse um verdadeiro “acordo de vontades” entre agente e sujeito passivo, o que não é verdade. Conforme registrado por MAGGIORE, il consenso è una manifestazione di volontà anche unilaterale. Non occorre un accordo.58 Ou seja, pode existir o consentimento do sujeito passivo ainda que não haja convergência entre as vontades do agente e do titular do bem jurídico tutelado.

54

Op. cit., p. 512. Op. cit., p. 138. Acerca da doutrina alemã, cf. ainda BRAVO, Otávio. Op. cit., p. 200-201. 56 ZAFFARONI, Eugenio Raul, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 554-556. 55

29 Estas eram as considerações pertinentes acerca do consentimento do sujeito passivo como excludente de tipicidade. Entretanto, tal enfoque dado ao instituto não esgota sua função na dogmática penal. Por tal razão, é necessário estudá-lo sob o enfoque da exclusão da ilicitude.

2.3. O consentimento do sujeito passivo e a exclusão da ilicitude Conforme exposto retro59, há incontáveis figuras delituosas que exigem uma verdadeira atitude de oposição por parte do sujeito passivo. Entretanto, também existem normas incriminadoras que não fazem qualquer menção sobre a vontade do titular do bem jurídico penalmente tutelado. Pode-se mencionar como exemplos retirados da Parte Especial do Código Penal o homicídio60, a lesão corporal61 e o dano.62 Na maioria das vezes, o delito restará caracterizado ainda que haja consentimento do sujeito passivo, como explica CUELLO CALÓN: No es posible proclamar con el carácter de regla general que el consentimiento del sujeto pasivo del delito justifique la conducta del ofensor y que, por ello, pierda el hecho su carácter delictuoso (violenti non fit injuria), pues la función penal en los tiempos presentes no se ejerce en atención a consideraciones particulares (satisfacción del deseo de venganza del ofendido, etc.), sino inspirada en fines públicos e utilidad colectiva.63

57

Não se pode perder de vista que o consentimento também tem natureza jurídica de excludente de ilicitude. Cf. itens 3 e 4 deste Capítulo. 58 Op. cit., p. 330. 59 Cf. item 2 do presente Capítulo. 60 Art. 121 – Matar alguém. 61 Art. 129 – Ofender a integridade física ou a saúde de outrem. 62 Art. 163 – Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia. 63 CUELLO CALÓN, Eugenio. Derecho penal. 8. ed. Barcelona. Barcelona: Bosch, 1952, p. 389. Cf. ainda REALE JÚNIOR, Miguel. Op. cit., p. 179.

30 Porém, em determinadas situações, a vontade do sujeito passivo exerce influência no juízo sobre a configuração do fato-crime, ainda que o tipo penal não realize referência explícita em tal sentido. Continua CUELLO CALÓN: Sin embargo, no obstante este sentido estatal y público del derecho penal, tratándose de determinado delitos, se admite generalmente la eficacia del consentimiento del sujeto pasivo de la infracción.64 Neste instante surge o consentimento do sujeito passivo no âmbito da exclusão da ilicitude. Conforme será mencionado,65 a Parte Geral do Código Penal brasileiro não inclui dentre as causas de exclusão da ilicitude o consentimento do sujeito passivo. Entretanto, não sem razão, afirma BITENCOURT: O ordenamento jurídico brasileiro não faz qualquer referência às causas supralegais de justificação. Mas o caráter dinâmico da realidade social permite a incorporação de novas pautas sociais que passam a integrar o quotidiano dos cidadãos, transformando-se em normas culturais amplamente aceitas. Por isso, condutas outrora proibidas adquirem aceitação social, legitimando-se culturalmente. Como o legislador não pode prever todas as hipóteses em que as transformações produzidas pela evolução ético-social de um povo passam a autorizar ou permitir a realização de determinadas condutas, inicialmente proibidas, deve-se, em princípio, admitir a existência de causas supralegais de exclusão da antijuridicidade... .66

Assim, mesmo considerando a omissão existente na Parte Geral do Código Penal em relação ao consentimento do sujeito passivo, este é amplamente admitido como causa de exclusão da ilicitude não-codificada.

64

Op. cit., p. 389. Ressalta-se que a validade do consentimento dependerá da presença de determinados requisitos. Para mais detalhes, cf. o Capítulo IV deste trabalho. 65 Cf. Capítulo III, especialmente os itens 2.6 (O Código Penal de 1940) e 2.8 (A Reforma Penal de 1984). 66 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal (Parte geral). 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 251-252. Indaga FONTÁN BALESTRA: Cabe ahora preguntarse tiene base jurídica la llamada justificación supralegal? [...]Nos decidimos, sin vacilaciones, por admitir la justificación extensiva, aunque la reservamos únicamente palo los casos en que agotados los recursos para encontrar una valoración expresa en el ordenamiento jurídico, sea necesario recurrir a todas las manifestaciones de ese orden jurídico para decidir cuál es el valor relativo de los bienes en conflicto. Cf. FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de derecho penal (Parte general). Buenos Aires: Glem, 1966, t. II, p. 84. Destaque no original.

31 Nesse sentido é a lição de TOLEDO: É que as causas de justificação, ou normas permissivas, não se restringem, numa estreita concepção positivista do direito, às hipóteses expressas em lei. Precisam igualmente estender-se àquelas hipóteses que, sem limitações legalistas, derivam necessariamente do direito vigente e de suas fontes. [...] Assim, por exemplo, como recusar-se efeito excludente da ilicitude ao consentimento expresso do ofendido, em relação a danos que atingem bens plenamente disponíveis?67

Exemplo clássico encontra-se no já mencionado art. 163, caput, do Código Penal, que tem como rubrica marginal o termo “dano”. Tal norma penal, contida no Título II da Parte Especial do Codex, tutela o patrimônio.68 Imagine-se a seguinte hipótese: após receber o consentimento por parte do proprietário de um veículo, um indivíduo solta o automóvel em um abismo, destruindo-o por completo. Não se pode negar que o agente destruiu coisa alheia, sendo que sua conduta encontra tipicidade no mencionado art. 163. Diga-se ainda que houve lesão ao patrimônio, que é, in casu, o objeto da tutela penal. Pensar de forma distinta significa ignorar por completo todo o estudo acerca da tipicidade, bem como o próprio princípio da legalidade.69 Mesmo reconhecida a tipicidade do fato, pergunta-se: houve crime? Uma resposta positiva significa ir contra qualquer postulado básico do Direito. Como é possível reconhecer a existência de crime, considerando especialmente o princípio da intervenção mínima, que concebe o direito penal como ultima ratio?70 Afirmam FIANDACA

67

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios..., cit., p. 171-172. Cf. ainda, do mesmo autor, Ilicitude..., cit., p. 21. Cf. nota 37. Exemplo retirado de TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude..., cit., p. 20 e 128. 69 Cf. art. 5°, XXXIX, da Constituição da República, e ainda o art. 1° do Código Penal, que positivaram o princípio da legalidade no ordenamento jurídico pátrio. 70 Sobre o princípio da intervenção mínima, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto., op. cit., p. 11-12; e ainda BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 84 e seguintes. 68

32 e MUSCO: Correlativamente, la formula di proscioglimento cui il giudice deve ricorrere sarà quella ‘perché il fatto non costituisce reato’.71 A resposta é singela: não houve crime, pois a conduta realizada pelo agente é perfeitamente lícita. O consentimento proferido pelo proprietário (titular do bem jurídico tutelado) possui o condão de excluir a ilicitude da conduta. Por isso, como já afirmado retro, o consentimento do sujeito passivo, além de excluir a tipicidade de algumas condutas, possui natureza jurídica de excludente de ilicitude. O magistério de TOLEDO deve ser invocado uma vez mais: Se, nesse caso, apesar do desaparecimento do interesse na proteção de um direito patrimonial disponível e do qual efetivamente se dispôs, fosse possível a afirmação da tipicidade e da ilicitude do fato, estar-se-ia, de modo contraditório, afirmando a existência de um injusto formal, talvez puramente legal e com isso ensejando a eventual condenação do agente por fato materialmente irrelevante. O absurdo dessa conclusão põe à mostra que as causa de exclusão da ilicitude, estreitamente vinculadas à própria concepção do injusto, estão subjacentes no sistema, quer sejam ou não exteriorizadas pelo legislador em tipos legais justificadores.72

Não há quaisquer acréscimos a serem feitos nos apontamentos de TOLEDO. Ignorar a natureza jurídica de excludente da ilicitude do consentimento do sujeito passivo significa admitir a existência de um “injusto formal”. Tal constatação, além de ir contra o caráter subsidiário do direito penal, tem conotação anti-garantista.

71

FIANDACA, Giovanni, MUSCO, Enzo. Diritto penale (Parte generale). 3. ed. Bologna: Zanichelli, 1995, p. 228. TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude ..., cit., p. 20. Para COSTA JÚNIOR, “nada impede, porém, o reconhecimento de causas extralegais de exclusão da ilicitude (descriminantes tácitas ou não codificadas). As causas de justificação não são apenas aquelas que o Código enumera, porque a juridicidade ou a antijuridicidade deve ser encarada em face de todo o direito positivo, considerado unitariamente”. Cf. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal (Parte geral). São Paulo: Saraiva, 1991, v. I, p. 109. Segundo FONTÁN BALESTRA: En lo que se refiere a su función justificante, no hay inconveniente en reconocer al consentimiento eficaz el efecto de excluir la antijuridicidad, op. cit., p. 96. Já MAGGIORE expõe: In forma sintetica, possiamo dire che il consenso dell’avente diritto costituisce un istituto a sè stante, di carattere penalistico, mediante cui lo Stato fa dipendere la esclusione dell’antigiuridicità del fatto da una dichiarazione di volontà del titolare del diritto agredito, op. cit., p. 328. No mesmo sentido: PIERANGELI, José Henrique. O consentimento..., cit., p. 76. 72

33 É como se expressa WESSELS: “Onde o atuar contra ou sem vontade do protegido já não pertencer ao tipo em sentido estrito, o consentimento, para bens jurídicos individuais renunciáveis, terá o significado de uma causa de justificação”.73 Reafirma-se, dessa forma, a conclusão já exposta: o consentimento do sujeito passivo, além de excluir a tipicidade de determinados fatos, também possui natureza jurídica de excludente de ilicitude. Entretanto, segundo MAIWALD, En los últimos tiempos esta teoría diferenciadora,74 mayoritaria en la doctrina penal alemana, ha encontrado una considerable resistencia. Es más, se puede afirmar que progresa en la doctrina una opinión según la cual el consentimiento en la lesión de bienes jurídicos disponibles siempre excluye la tipicidad.75

Diante de tal afirmação, nota-se que há autores que contestam a possibilidade de o instituto ter alguma eficácia no âmbito da ilicitude. Alguns deles devem ser mencionados. ZAFFARONI e PIERANGELI não admitem a existência de uma causa de exclusão da ilicitude não-codificada. Afirmam os penalistas: Devido a carências do código penal alemão de 1871, a doutrina alemã entendeu que era necessário construir uma teoria das causas de justificação ‘supralegais’, particularmente no tocante ao estado de necessidade justificante. Hoje, esta teoria já foi abandonada, e, em nosso país, é totalmente desnecessária, pois nosso CP tem as causas de justificação perfeitamente estruturadas, incluindo o exercício regular de direito (art. 23, 73

Op. cit., p. 76. Interessante é o ensinamento de BETTIOL: “Mas de qualquer modo que se apresente à indagação jurídica, não há dúvida de que desempenha [o consentimento] sua eficácia pena como causa de justificação”. BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Trad. de Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, v. I, p. 400. Cf. ainda BARQUERO, Enrique Casas. La importância del consentimiento el la teoria general del delito. Doctrina penal: teoría y práctica en las ciencias penales. Buenos Aires: Depalma, 1988, ns. 41-44, p. 220. 74 A “teoria diferenciadora” distingue o consentimento como excludente de tipicidade e como excludente de ilicitude. Cf. MAIWALD, Manfred. Op. cit., p. 338-339. 75 Op. cit., p. 339. Sobre a resistência em se admitir a natureza jurídica de excludente da ilicitude do consentimento, cf. ainda FONSECA, Gustavo de Carvalho. O consentimento do ofendido no injusto penal. Monografia apresentada ao Colegiado de Graduação da Faculdade de Direito da UFMG como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 22-26. No referido trabalho, negase que o instituto possa desempenhar o papel de causa de justificação.

34 III, que implica uma remissão às disposições permissivas encontráveis em outra parte da ordem jurídica). [...] Como conseqüência do que acabamos de dizer, negamos que a antijuridicidade possa ter outro fundamento além da lei, ainda que para sua determinação nos casos concretos, eventualmente, se deva recorrer a valorações sociais.76

Um dos principais críticos do consentimento do sujeito passivo como excludente da ilicitude é JIMÉNEZ DE ASÚA, ao afirmar que el consentimiento de la parte lesionada no puede constituir una causa justificante. [...] Pero seria absurdo hablar en tales casos de causa de justificación. [...] Lo que está ausente es el tipo.77 Prossegue o penalista: Sentemos, pues, un principio general: el consentimiento de la parte lesionada no puede constituir una causa justificante. […] Si las causas de justificación tienen como importantísimo carácter ser generales a todas las especies de delitos y actúan en la inmensa mayoría de ellos suprimiendo lo injusto, el consentimiento no puede figurar entre ellas, ya que, hasta los partidarios de darle tan descollante papel, confiesan que sólo en casos concretos y muy contados puede invocarse.78

Mesmo reconhecendo a autoridade da tese exposta, esta não possui valor absoluto. O fato de o consentimento ser considerado como causa de excludente de ilicitude apenas em um número restrito de situações não significa que sua eficácia esteja restrita na análise da tipicidade de determinados fatos.

76

Op. cit., p. 569-571. Tais autores defendem que o consentimento atua tão-somente no âmbito da tipicidade, invocando o conceito de “tipicidade conglobante”. Para maiores detalhes, cf. o Manual..., cit., p. 549-563. Entretanto, é de se registrar que ZAFARONI e PIERANGELI, em determinada passagem de seu Manual de direito penal brasileiro, acabam se contradizendo: “O consentimento, por sua vez, é também uma forma de aquiescência, mas que se dá quando um preceito permissivo faz surgir uma causa de justificação que ampara a conduta de um terceiro, na medida em que aja com o consentimento do titular do bem jurídico. Trata-se do limite de uma permissão, que somente pode ser exercido na medida em que haja consentimento”. Op. cit., p. 555. Contrapondo-se ao posicionamento até certo ponto contraditório dos mencionados autores, afirma TOLEDO: “Por outro lado, como os tipos permissivos em exame [os ‘supralegais’], não fundamentam nem agravam a punibilidade, antes operam em sentido oposto, a criação de causas supralegais, não se opõe ao princípio da legalidade nem à função de garantia da lei penal”. Ilicitude..., cit., p. 21. 77 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Libertad de amar y derecho a morir (Ensayo de un criminalista sobre eugenesia e eutanasia). 7. ed. Buenos Aires: Depalma, 1984, p. 426-427. 78 JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. 3. ed. Buenos Aires: Losada, 1964, v. IV, p. 595-596.

35 ROXIN, ao admitir a função do consentimento apenas no âmbito da tipicidade, também sustenta que o instituto vai contra a sistemática das causas de justificação. Expõe o referido autor: Pero no sólo la teoría del tipo habla en favor de la fuerza excluyente del tipo del consentimiento, sino también la circunstancia de que el mismo representaría un cuerpo extraño en el sistema de las causas de justificación. Todas las causas de justificación [...] descansan en los principios de ponderación y de necesidad: en una situación de conflicto inevitable es legítimo el sacrificio de un interés menos valorado por el ordenamiento jurídico cuando dicho sacrificio es necesario en salvaguardia de un interés mayor. Pero en el consentimiento no está en juego ni un conflicto de intereses entre el que actúa y el que consiente ni la necesidad del hecho.79

Parece equívoca a argumentação do penalista, que parte de uma premissa falsa: as excludentes de ilicitude não envolvem necessariamente uma ponderação de interesses, como quer o autor. Conforme tratado infra, o principal crítico da natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo como excludente da ilicitude no Brasil foi Nelson Hungria.80

2.4. Nossa posição

Ora, se o consentimento do sujeito passivo é um instituto de direito penal capaz de, em determinados casos, afastar a tipicidade ou a ilicitude do injusto penal, esta é sua natureza jurídica: atuar como excludente da tipicidade ou da ilicitude, descaracterizando o crime. Por tal razão, Enrique Casas Barquero fala numa “dupla” natureza do consentimento.81

79

Op. cit., p. 521. Esta também é a conclusão de ALAGIA: cuando se intenta fundar el consentimiento en una causa de justificación, que es la opinión dominante, se comete el error de confundir el sentido y la función de la antijuridicidad. Cf. ALAGIA, Alejandro. El consentimiento en la dogmática penal. Nueva doctrina penal. Buenos Aires: Del Puerto, 1999, fascículo A, p. 316. 80 Cf. Capítulo III, item 2.6. 81 BARQUERO, Enrique Casas. La importância del consentimiento el la teoria general del delito. Doctrina penal: teoría y práctica en las ciencias penales. Buenos Aires: Depalma, 1988, ns. 41-44, p. 216.

36 A nosso ver, seria ainda mais pertinente afirmar que o consentimento possui dupla função. Vejamos. Não resta dúvida que o consentimento do sujeito passivo possui natureza jurídica de excludente de tipicidade. Se existem tipos penais que exigem a presença de um dissentimento do sujeito passivo para sua configuração, o consentimento, conseqüentemente, afasta a tipicidade. A polêmica reside em admitir ou não a natureza jurídica de excludente de ilicitude por parte do consentimento. Como dito anteriormente82, há situações em que o juízo de subsunção de determinados fatos ao tipo não consegue explicar a inexistência do injusto penal. Por força do princípio da legalidade (verdadeiro dogma de um direito penal de conotação garantista, característico de um Estado Democrático de Direito83), tais situações levam ao reconhecimento da tipicidade. Pensar de forma distinta seria ignorar por completo a existência do tipo penal. Entretanto, não basta a tipicidade para que se constate a existência de um crime. Analisando a ilicitude como relação de contrariedade entre o fato típico e ordenamento jurídico84, pode-se afirmar com plena convicção: há casos em que determinadas condutas realizadas com o consentimento do respectivo sujeito passivo, apesar de típicas, não são contrárias ao ordenamento jurídico.

82

Cf. itens 2 e 3 do presente Capítulo. Cf. o Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como seu art. 1°, caput. 84 Cf. PRADO, Luis Regis. Curso..., cit., v. I, p. 313. 83

37 Neste sentido é a posição de FIANDACA e MUSCO: Dalla specifica sfera di operatività della causa di giustificazione in esame, esulano le ipotesi nelle quali il consenso costituisce un elemento, la cui presenza fa venir meno lo stesso fatto tipico.85 Portanto, o consentimento do sujeito passivo também tem natureza jurídica de excludente de ilicitude. Eventuais críticas a tal posicionamento86 sempre se apegam a aspectos de somenos importância, sem conseguir abalar a importância que a tipicidade e a ilicitude possuem dentro do conceito analítico de crime.

2.5. O consentimento do sujeito passivo e o direito processual penal

É comum notar-se uma certa confusão por parte dos operadores do direito envolvendo o consentimento do sujeito passivo (enquanto instituto de direito penal) e o direito processual penal.87 Na verdade, confunde-se o consentimento com institutos de direito processual, especialmente a renúncia ao direito de queixa, o perdão aceito e a perempção. Portanto, farse-á uma sucinta distinção, de forma a corroborar a conclusão já extraída: o consentimento do sujeito passivo, atuando como excludente de tipicidade ou de ilicitude, implica a inexistência do crime.

85

Op. cit., p. 228. As principais críticas ao consentimento do sujeito passivo como excludente de ilicitude foram apresentadas no item 3 deste Capítulo. 87 Sendo assim, faz-se necessário um item no presente capítulo para que se demonstre, de uma vez por todas, que o consentimento do sujeito passivo não é um instituto com natureza jurídica de direito processual, mas sim de direito penal. 86

38 2.5.1. O consentimento do sujeito passivo e o não-exercício do direito de queixa

Primeiramente, analisa-se o não-exercício do direito de queixa. De início, é de se registrar que tal instituto encontra previsão no art.107, V, do Código Penal, funcionando como uma causa de extinção da punibilidade, e não como excludente da tipicidade ou da ilicitude. Leciona BITENCOURT acerca da extinção da punibilidade: A pena não é elemento do crime, mas conseqüência deste. A punição é a conseqüência natural da realização da ação típica, ilícita e culpável. Porém, após a prática do fato delituoso podem ocorrer causas que impeçam a aplicação ou a execução da sanção respectiva. No entanto, não é a ação que se extingue, mas o ius puniendi do Estado [...]. De observar-se que o crime, como de fato, isto é, como ilícito penal, permanece gerando todos os efeitos civis e criminais, pois, uma causa posterior não pode apagar o que já se realizou no tempo e no espaço.88

Portanto, antes mesmo de se conceituar direito de queixa e sua renúncia, já é possível concluir: a extinção da punibilidade não implica inexistência do crime, refletindo apenas na ausência de punição, mesmo tendo havido crime. Conforme já mencionado por incontáveis vezes, o consentimento do sujeito passivo válido exercerá o papel de excludente da tipicidade ou da ilicitude, quando do juízo de configuração sobre o fato-crime. Tal distinção, por si só, já é suficiente para demonstrar que consentimento não se confunde com a renúncia ao direito de queixa. Mas ainda é possível prosseguir na diferenciação.

88

Op. cit., p. 704.

39 Nos termos do art. 100 do Código Penal, “a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido”.89 Ou seja, via de regra caberá ao Estado, por intermédio do Ministério Público, promover a ação penal (nos termos do art. 129, I, da Constituição da República). Entretanto, não se pode perder de vista alguns casos em que o legitimado para o exercício do direito de ação não é do Ministério Público, mas sim o ofendido ou quem tenha qualidade para representá-lo.90 A queixa nada mais é do que a petição inicial da ação penal de iniciativa privada. Portanto, é através do exercício do direito de queixa que o particular provoca a jurisdição, exercendo assim seu direito de ação.91 Ocorre que a tal direito pode renunciar o legitimado a propor a ação penal. Neste sentido é a lição de Eugênio Pacelli de Oliveira: “Por renúncia há de se entender a abdicação ou recusa do direito à propositura da ação penal, por meio da manifestação da vontade do não-exercício dela no prazo previsto em lei”.92

89

A ação penal é pública, sempre, pois visa provocar a jurisdição, ou seja, provocar o Estado. Em outras palavras, tem-se a seguinte conclusão de Julio Fabbrini Mirabete: “Sendo o crime um fato que lesa direitos do indivíduo e da sociedade, cabe ao Estado reprimi-lo com o exercício do jus puniendi”. Processo penal. São Paulo: Atlas, 2001. p. 101. Mesmo sendo sempre pública, pode-se falar em ação penal de iniciativa pública e de iniciativa privada, referindo-se à classificação das ações penais segundo o titular do direito de ação. Para maiores detalhes, cf. MIRABETE, op. cit., p, 106 e seguintes; OLIVEIRA, Eugênio Pacceli de Oliveira. Curso de processo penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 86 e seguintes; e ainda, MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980, v. II, p. 85 e seguintes. Entretanto, por força de hábito, costuma-se utilizar as expressões “ação penal pública” e “ação penal privada”, tecnicamente inadequadas. 90 Art. 30 do Código de Processo Penal. 91 “Ação, portanto, é o direito ao exercício da atividade jurisdicional (ou o poder de exigir esse exercício). Mediante o exercício da ação provoca-se a jurisdição, que por sua vez se exerce através daquele complexo de atos que é o processo”. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 247. Negrito no original. 92 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 115. Dispõe o art. 50 do Código de Processo Penal: “A renúncia expressa constará de declaração assinada pelo ofendido, por seu representante legal ou procurador com poderes especiais”. Diga-se ainda que a renúncia poderá ser tácita, nos termos do art. 57 do Código de Processo Penal.

40 Poder-se-ia justificar uma eventual confusão entre o consentimento do sujeito passivo e a renúncia ao direito de queixa no seguinte aspecto: ambas dependem de uma manifestação de vontade, ainda que tácita, do titular do bem-jurídico penalmente tutelado. Ocorre que a semelhança termina aqui. Fácil notar que, enquanto o consentimento repercutirá no âmbito da teoria do crime, a renúncia ao direito de queixa produzirá efeitos meramente processuais. Assim, é possível afirmar, do ponto de vista acadêmico, que o crime continua existindo, mesmo não sendo oferecida a queixa. Ademais, conforme será analisado oportunamente, o consentimento jamais poderá ser considerado quando proferido após a realização da conduta típica.93 Já a renúncia ao direito de queixa ocorrerá, se for o caso, após a caracterização do crime. Conforme expõe REALE JÚNIOR: É preciso destacar que o consentimento não se assemelha à renúncia ao direito de queixa extintiva de punibilidade, pois sucede depois do fato delituoso, repercutindo sobre as conseqüências do crime, enquanto o consentimento deve ser anterior ou concomitante à prática da ação delituosa.94

Délio Magalhães resume bem a questão: “Ora, se o consentimento é uma descriminante, o mesmo não sucede com a falta de apresentação de queixa, que exclui só e tão-somente a punição do delinqüente”.95 2.5.2. O consentimento do sujeito passivo e o perdão aceito

Do mesmo modo, a distinção entre consentimento e o perdão aceito chega a ser patente.

93

Cf. Capítulo IV, item 4, denominado “O momento do consentimento”.

41 Assim como a renúncia ao direito de queixa, o perdão aceito também encontra previsão legal no art. 107, V, do Código Penal. Ou seja, trata-se de uma causa de extinção da punibilidade, o que já é suficiente para distingui-lo do consentimento. O instituto é explicado por Aníbal Bruno: ... o perdão, que sobrevém no curso da ação e impede o seu prosseguimento, se exprimirá em declaração assinada, completando-se pela aceitação expressa ou tácita do querelado, ou ainda por meio de ato praticado pelo querelante, inconciliável com a vontade de levar adiante a ação.96

Uma vez mais, a razão de ser da confusão entre o consentimento e o perdão reside na necessidade de uma declaração de vontade por parte do sujeito passivo (que, via de regra, é o querelante). Entretanto, através do conceito acima transcrito, a distinção se torna evidente. Vejamos. O perdão só ocorrerá depois de iniciada a ação penal de iniciativa privada, o que jamais ocorrerá no caso do consentimento.97 Além disso, o perdão aceito, como o próprio nome diz, é um ato bilateral.98 Já o consentimento depende tão-somente da vontade do titular do bem jurídico tutelado para ser considerado. Não se pode admitir que se utilize o termo consentimento para explicar o perdão, como faz Eugênio Pacelli de Oliveira: “... o perdão, também causa extintiva da punibilidade

94

REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal (Parte geral). Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. I, p. 176. Op. cit., 115. 96 BRUNO, Aníbal. Direito penal (Parte geral). 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, t. III, p. 237. O perdão aceito é tratado nos arts. 51 a 59 do Código de Processo Penal. 97 Diga-se que o perdão é ainda posterior à renúncia ao direito de queixa, que só ocorre antes de iniciada a ação penal. Já o perdão somente existirá após o início do procedimento. 98 Cf. BRUNO, Aníbal., op. cit., p. 237. 95

42 quando aceito pelo réu, ostenta características muito mais próximas de um consentimento posterior que de um eventual desinteresse pela condenação do acusado”.99 A explicação trazida pelo autor se revela correta. Porém, a utilização do termo “consentimento posterior” acaba demonstrando a tendência em se confundir o objeto do presente estudo, que possui natureza jurídica de direito penal, com outros institutos de natureza processual (como o perdão aceito). Deve-se respeitar a autonomia do instituto do consentimento do sujeito passivo. 2.5.3. O consentimento do sujeito passivo e a perempção

Por fim, resta ainda analisar a perempção. Assim se expressa TOURINHO FILHO: Perimir significa matar. Diz-se, então, que perempção é a morte da ação. Como a perempção implica a extinção da punibilidade, ex vi do art. 107, IV, terceira figura, do CP, diz-se ser uma penalidade imposta ao querelante, ou aos seus sucessores, pelo desinteresse, tacitamente manifestado, em prosseguir na ação.100

Portanto, a perempção implica a extinção da punibilidade pela inércia do querelante em dar prosseguimento à ação penal. Tal fato pode ser facilmente comprovado com uma simples leitura do art. 60 do Código de Processo Penal, que arrola taxativamente as quatro hipóteses em que o juiz irá declarar a extinção da punibilidade pela perempção.101

99

Op. cit., p. 121. Itálico no original. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal comentando. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. I, p. 136. Cf. ainda OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de., op. cit., p. 120-121. 101 Art. 60. Nos casos em que somente se procede mediante queixa, considerar-se-á perempta a ação penal: I – quando, iniciada esta, o querelante deixar de promover o andamento do processo durante trinta dias seguidos; II – quando, falecendo o querelante, ou sobrevindo sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no processo, dentro do prazo de sessenta dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo, ressalvado o disposto no art. 36; III – quando o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer ato de processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais; 100

43 O mesmo raciocínio já exposto em duas oportunidades também se revela pertinente: uma causa de extinção da punibilidade (que não interfere no juízo sobre a configuração sobre o fato-crime) não se confunde com uma excludente da tipicidade ou da ilicitude. Além disso, a perempção só irá ocorrer depois de iniciada a ação penal (como ocorre no perdão aceito). Já o consentimento não pode ser considerado quando proferido após a realização do fato-crime. Portanto, só há uma conclusão possível: o consentimento do sujeito passivo não possui natureza jurídica de direito processual.

IV – quando, sendo o querelante pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar sucessor.

44

III. EVOLUÇÃO DO INSTITUTO NO DIREITO PENAL BRASILEIRO E NA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA

3.1. Anotações gerais

Para fundamentar a necessidade da codificação do consentimento do sujeito passivo na Parte Geral do Código Penal brasileiro, nada melhor que analisar o instituto em diversas legislações. Primeiramente, é necessário realizar breve incursão histórica no direito penal brasileiro, para se constatar como o ordenamento jurídico pátrio tratou (e trata) o consentimento no decorrer dos tempos, seja nos textos legais, seja nos projetos de reforma. É imperioso mencionar também alguns códigos penais estrangeiros, que fizeram a opção legislativa de positivar o consentimento. Com tal exposição, procura-se demonstrar que não há o menor sentido em se ignorar tão importante instituto, como faz a Parte Geral do Código Penal brasileiro vigente (reformada pela Lei n. 7.209/84). Com efeito, quando se analisa uma eventual codificação do consentimento do sujeito passivo, refere-se ao instituto como causa de exclusão da ilicitude, e não sob o

45 enfoque da exclusão da tipicidade.102 Não há necessidade de uma norma de caráter geral para dizer que, faltando um elemento constitutivo do tipo legal de crime, o fato praticado é atípico. Neste sentido, a lição de José Cirilo de Vargas: Como se sabe, a tipicidade é uma das características essenciais do fato punível. De modo que, ela faltando, não há falar em crime, ainda que possam estar presentes a antijuridicidade e a culpabilidade. Se a conduta do agente não logra realizar o tipo, nem se encaminha no sentido de realizá-lo (atos de tentativa), tal comportamento escapa ao domínio do Direito Penal. Sempre que tal ocorrer, ou seja, sempre que o fato da vida não se ajustar ao tipo, ou ‘molde legal’, há ausência de tipicidade, ou atipicidade.103

Após examinar o consentimento do sujeito passivo no direito penal brasileiro e na legislação estrangeira, far-se-á uma proposta de lege ferenda, sugerindo a positivação do instituto, com o acréscimo de um quarto inciso no art. 23 do Código Penal, que trata exatamente das causas de exclusão da ilicitude.104

3.2. Direito penal brasileiro

3.2.1. O código criminal do império

O Código Criminal do Império não tratou de forma expressa do consentimento do sujeito passivo.

102

Cf. Capítulo II, no qual se demonstra que o consentimento do sujeito passivo tem natureza jurídica de causa excludente de tipicidade e de ilicitude. Entretanto, falar de positivação implica analisar o instituto apenas sob o prisma da exclusão da ilicitude. 103 VARGAS, José Cirilo de. Do tipo penal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. p. 131. 104 Cf. item 4 deste Capítulo.

46 O Codex de 1830 dedicou o Capítulo II do Título I (Dos Crimes) de sua Parte Geral para tratar “Dos crimes justificáveis”.105 O art. 14 do mencionado diploma arrola seis hipóteses de justificativas, não prevendo, no entanto, o consentimento do sujeito passivo. A simples leitura de tal disposição legal revela que, em momento algum, o instituto em análise foi referido de forma expressa.106 3.2.2. O código penal republicano

A primeira vez em que o consentimento do sujeito passivo foi previsto pelo ordenamento jurídico-penal pátrio ocorreu no Código Penal Republicano. Porém, foi tratado de forma distinta de como é visto e analisado pela moderna doutrina penal. A explicação para tal fato é simples: o “Código Penal dos Estados Unidos do Brasil” (Decreto 847) é datado de 11 de outubro de 1890. Sendo assim, chega a ser desnecessário dizer que o referido diploma não poderia ter acompanhado a evolução científica do Direito Penal ocorrida no século XX. O instituto constou do Título III do Código de 1890, denominado “Da Responsabilidade Criminal; as Causas que Dirimem a Criminalidade e Justificam os Crimes”. Dispunha o art. 26, c: Art. 26. Não dirimem, nem excluem a intenção criminosa:

105

Cf. PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil (Evolução histórica). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 238-239. 106 “Art. 14. Será o crime justificavel, e não terá lugar à punição lugar à punição delle: 1.º Quando fôr feito pelo delinquente para evitar mal maior. [...]. 2.º Quando fôr feito em defesa da própria pessoa ou de seus direitos. 3.º Quando fôr feito em defeza da família do delinquente. [...] 4.º Quando fôr feito em defeza da pessoa de um terceiro [...] 5.º Quando fôr feita em resistencia á execução de ordens illegaes, não se excedendo os meios necessarios para impedil-a. 6.º Quando o mal consistir no castigo moderado, que os pais derem a seus filhos, os senhores a seus escravos e os mestres a seus discipulos; ou desse castigo resultar, uma vez que qualidade delle não seja contraria ás Leis em vigor” (sic).

47 c) o consentimento do offendido, menos nos casos em que a lei só a elle permitte acção criminal.107

Comentando o Código Republicano, leciona Oscar de Macedo Soares: O consentimento do offendido, salvo nos casos exceptuados na letra c, também não dirime, nem exclue a intenção criminosa, porque, como bem pondera o dr. Affonso Claudio, na Rev.de Jurisp. des. 1892, p. 579, ninguém tem o direito de abrir mão de sua incolumidade pessoal. Autorizar um indivíduo a outro para offende-lo impunemente seria o mesmo que consentir alguém por motu próprio que outrem lhe matasse ou ferisse um filho, por melhores que fossem as razões com que procurasse justificar semelhante acto. A ninguém é lícito alienar a existência ou o sangue. Por mais heróico que se considerasse esse sacrifício, ninguém veria no acto a manifestação de uma medida justa.108

Portanto, a doutrina de então restringia o âmbito de eficácia do consentimento. Além disso, percebe-se logo a péssima redação utilizada pelo Decreto 847. Neste sentido é a lição de Galdino Siqueira: “Confundiu, assim, coisas essencialmente diversas – o consentimento, que exclui a possibilidade do crime, e a não apresentação da queixa que exclui apenas a perseguição ou punição do delinqüente”.109 Damásio E. de Jesus apresenta a mesma conclusão ao afirmar que “a disposição tratava do consenso do ofendido manifestado após a prática do crime e a expressão ‘ação criminal’ era empregada no sentido de ‘ação penal’ e não de conduta criminosa”.110 O consentimento do sujeito passivo, objeto do presente estudo, não guarda estrita relação com a norma do Código Penal de 1890. Na verdade, esta tem natureza jurídica de

107

As alíneas a e b dispunham sobre a ignorância da lei penal e do erro sobre a pessoa ou coisa a que se dirigia o crime, respectivamente. Cf. PIERANGELI, op. cit., 275. 108 SOARES, Oscar de Macedo. Código Penal da Republica dos Estados Unidos do Brasil comentado. 2. ed. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1904, p. 33-34. 109 SIQUEIRA, Galdino. Tratado de direito penal (Parte geral). Rio de Janeiro: José Konfino, 1947, t. I., p. 373. 110 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal (Parte Geral). 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1985, v. I., p. 347.

48 ordem processual, o que não ocorre com o consentimento do sujeito passivo, segundo a atual doutrina dominante.111 Para usar uma terminologia de acordo com a legislação vigente, o consentimento do ofendido tratado pelo Código Penal Republicano nada mais é do que o não-exercício do direito de queixa. 3.2.3. O projeto Sá Pereira

Em 1927, o Des. Virgílio de Sá Pereira apresentou ao Governo um projeto de código penal, contendo parte geral e parte especial.112 Segundo Damásio E. de Jesus, o mencionado Projeto, em sua redação original (1927), “conceituava o consentimento do ofendido como causa de isenção de pena ‘quando o objeto do crime for um bem ou um interesse jurídico de que o respectivo titular possa validamente dispor’”.113 Inegável que houve uma evolução em face do Código Penal Republicano, que confundia o instituto com o não-exercício do direito de queixa.114 Somente o fato de separar o consentimento do direito processual já foi bastante significativo. Entretanto, necessárias algumas observações críticas sobre o tratamento dado ao consentimento no Projeto Sá Pereira. Primeiramente, a utilização da expressão “isenção de pena”, segundo a sistemática da Parte Geral do Código Penal brasileiro, em regra refere-se à

111

Cf. Capítulo II (Natureza jurídica), especialmente seu item 5, que associa o consentimento do ofendido com o direito processual penal; e ainda o Capítulo IV, item 4 (o momento do consentimento como requisito para sua validade) 112 PEREIRA, Virgílio de Sá. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Projecto apresentado ao governo). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1928. 113 PEREIRA, op. cit., p. 347. 114 Cf. item 2.2 do presente Capítulo.

49 exclusão da culpabilidade.115 Notadamente, ao consentimento do sujeito passivo jamais foi atribuída tal função. Na verdade, o instituto tem natureza jurídica de excludente de tipicidade ou de ilicitude.116 Assim, não faria o menor sentido um dispositivo na Parte Geral do Código referirse ao consentimento como causa de exclusão da culpabilidade. Portanto, só há uma conclusão possível: a norma proposta se refere ao instituto como causa de exclusão da ilicitude. Seria muito melhor (e mais sistemático) utilizar a expressão “não há crime”, como faz o art. 23 do Código Penal atualmente em vigor. Há ainda outra crítica a se fazer. A expressão “objeto do crime” não é precisa. A necessidade de rigor terminológico torna inadequada tal expressão. Melhor seria falar em “disponibilidade do objeto da tutela penal”. Ainda assim, considerando o instituto no Código Penal de 1890 e ainda o momento histórico vivido em 1927, o Projeto Sá Pereira, de uma forma geral, indicou uma evolução. Por fim, necessário registrar que o Projeto não entrou em vigor. 3.2.4. A consolidação das leis penais

A Consolidação das Leis Penais (Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932) repetiu literalmente a disposição prevista no Código de 1890.117

115

Cf. arts. 21, 26 e 28, § 1º, todos do Código Penal, dentre outros. Sobre a expressão “isento de pena”, cf. SALES, Sheila Jorge Selim de. Dos tipos plurissubjetivos. Belo Horizonte, Del Rey, 1997, p. 170. 116 Cf. Capítulo II, no qual é realizada exposição, com maior profundidade, sobre a natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo. 117 Segundo TOLEDO, após a entrada em vigor do Código Republicano, este foi modificado por uma série de leis supervenientes. Ainda segundo o autor, “em 14 de dezembro de 1932, outro Governo Provisório, considerando que essas modificações constavam de grande número de leis esparsas, algumas das quais profundamente alteradas, o que dificultava não só o conhecimento como a aplicação da lei penal, resolveu

50 O consentimento do sujeito passivo também foi previsto no art. 26, c, com os mesmos dizeres do Código Republicano, já transcrito.118 Portanto, apesar da proposta contida no Projeto Sá Pereira, permaneceu-se com uma redação equívoca: um instituto de direito penal, que deve ser tratado no âmbito da teoria do crime, foi regulado como se fosse objeto do direito processual. Ainda assim, deve-se registrar que o simples fato da expressa menção ao instituto, representou, à época, um grande avanço. Apesar do inadequado tratamento dogmático, a relevância do consentimento implica a necessidade de sua positivação. Além disso, a evolução legislativa, em momento posterior, poderia colaborar na correção das imperfeições mencionadas. 119 3.2.5. O projeto Alcântara Machado

O Projeto Alcântara Machado apresentou uma redação tecnicamente superior ao de Sá Pereira.120 Por isso, lamenta-se que a proposta não tenha entrado em vigor. O referido Projeto dispunha no art. 14, I: “Não será também punível aquele que praticar a ação ou omissão com o consentimento de quem possa validamente dispor do direito ameaçado ou violado”.121 Inicialmente, registre-se que, assim como o Projeto Sá Pereira, o Projeto Alcântara Machado não se ateve à concepção meramente processual do Código Penal adotar, ‘como Consolidação das Leis Penais’, o trabalho de Vicente Piragibe, publicado sob o título ‘Código Penal Brasileiro, completado com as leis modificadoras em vigor’. Essa Consolidação passou a fazer o papel de Código Penal até o advento do Código de 1940”. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 60. 118 Cf. PIERANGELI, op. cit., p. 331. 119 Cf. PIERANGELI, op. cit., p. 331. 120 Tal Projeto de Código Penal foi entregue ao Governo em 1938.

51 Republicano e da Consolidação das Leis Penais. A expressão “não será [...] punível” revelou a natureza jurídica de direito penal do instituto. No entanto, necessário mencionar que a utilização da expressão “não há crime” seria o ideal, conforme afirmado retro.122 Mesmo assim, a redação proposta por Alcântara Machado é bem mais clara e objetiva do 0que aquela constante no Projeto Sá Pereira. 3.2.6. O código penal de 1940

Não prevaleceu, infelizmente, a redação proposta por Alcântara Machado. A matéria relativa à exclusão da ilicitude foi tratada no art. 19 do Decreto-Lei n. 2.848 (Código Penal de 1940123), que possuía como rubrica marginal a expressão “exclusão de criminalidade”. O diploma positivou as seguintes excludentes: estado de necessidade (inc. I), legítima defesa (inc. II), estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito (inc. III).124 Optou-se por ignorar o consentimento do sujeito passivo, principalmente por influência de Nelson Hungria, que chegou a afirmar: “o novo Código não contém um dispositivo geral sôbre o consentimento do ofendido. Nem era preciso”.125

121

JESUS, Damásio E. de. Direito..., cit., p. 348. Cf. BARBOSA, Marcelo Fortes. O consentimento do ofendido. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, v. 718, p. 347; e ainda REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal (Parte geral). 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v. I, p. 175. 122 Cf. item 2.3 deste Capítulo, que trata do Projeto Sá Pereira. 123 A Parte Geral do Código Penal de 1940 foi reformada pela Lei n. 7.209/84 (cf. item 2.8 deste Capítulo). Já a Parte Especial continua em pleno vigor, apenas com alterações específicas que foram ocorrendo nas últimas seis décadas. 124 Cf. PIERANGELI, op. cit., p. 443, e BARBOSA, Marcelo Fortes. Op. cit., p. 347. 125 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1942, v. V, p. 15. Afirma o autor: “Sustentando um crítica que fizéramos ao ante-projeto ALCÂNTARA MACHADO, assim nos externámos: ‘Entre as causas objetivas de exclusão de crime, o ante-projeto, no art. 15, nº 1, inclue o consentimento do ofendido, quando o objeto do crime foi um bem ou interêsse jurídico de que o respectivo titular possa validamente dispor. Critiquei o dispositivo por supérfluo. Raciocinemos. Como é elementar, o direito penal não

52 Não se pode concordar com tal assertiva. Segundo HUNGRIA, o instituto poderia servir tão-somente como causa excludente da tipicidade. Adotando tal posição doutrinária, realmente não faria sentido incluir no texto do Código Penal uma disposição relativa ao consentimento como causa de exclusão da ilicitude. Porém, o penalista, mesmo compreendendo que o consentimento possa operar tão-somente no âmbito da tipicidade, parece contraditório ao explicar a exclusão do crime havendo consentimento no caso do art. 163 do Código Penal (dano)126, já que se refere expressamente ao afastamento da ilicitude: “... o consentimento do ofendido exclui a injuricidade, é certo, mas porque o dano é crime patrimonial, que pressupõe, per definitionem, a vontade contrária do lesado”.127 Portanto, fácil perceber que a ausência de positivação do instituto no Decreto-Lei n. 2.848/40 não foi devidamente justificada.

protege interêsses individuais por si mesmos, senão porque e enquanto coincidentes com o interêsse público ou social; mas, em certos casos, por exceção, condiciona a existência do crime ao dissenso do lesado. Assim, nos crimes patrimoniais e, em geral, naqueles em que o constrangimento, o engano ou o arbítrio por parte do agente entram como condições essenciais. Em tais casos, o não consentimento do ofendido é elemento constitutivo do crime. Ora, se o inciso nº I do art. 1 a êles se refere, sua superfluidade salta aos olhos. É meridianamente claro que não se pode reconhecer a criminalidade de um fato que carece de uma das condições sine quibus da sua qualificação legal como crime. O axioma não precisa ser trazido para o texto da lei. O sr. ALCÂNTARA MACHADO, entretanto, entende que podem apresentar-se outros casos em que o consentimento do ofendido seja excludente do crime. Quais são eles? Por isso mesmo que se trata de uma exceção ao caráter publicístico do direito penal, só se pode falar, do ponto de vista penal, em bem ou interêsse jurídico renunciável, a exclusivo arbítrio de seu titular, nos estritos casos em que a própria lei penal, na sua parte especial, explícita ou implicitamente, o reconheça”. Op. cit., p. 15. 126 Art. 163. Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia. 127 HUNGRIA, Nelson. Comentários... 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. I, t. II, p. 270.

53 3.2.7. O código penal de 1969

O Código Penal de 1969 (Decreto-Lei n. 1.004/69) não chegou a entrar em vigor. Foi publicado no Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1969. Após sucessivas prorrogações de sua vacatio legis, acabou revogado.128 Porém, considerando sua relevância na história do direito penal brasileiro, deve-se mencioná-lo. Tratando-se de causas de exclusão da ilicitude, as alterações foram muito discretas em confronto com o CP de 1940, mantendo-se o esquecimento quanto ao consentimento do sujeito passivo.129 O texto apresentou apenas três pequenas mudanças: o tema passaria do art. 19 para o art. 27; mudaria a rubrica marginal (de “exclusão da criminalidade” para “exclusão do crime”); e o inc. III do CP de 1940 foi desdobrado em dois incisos distintos.130 Portanto, o único aspecto digno de registro é a insistência em não codificar o instituto ora analisado, mesmo considerando que o Decreto-Lei n. 1.004/69 não entrou em vigor.

128

Relata FRAGOSO: “Em 1961, o governo decidiu promover completa reforma na legislação brasileira, inclusive na parte criminal, tendo solicitado a Nelson Hungria, insigne mestre do Direito Penal brasileiro, a elaboração de um anteprojeto de Código Penal. Tal anteprojeto, apresentado em 1963, foi submetido a revisão ministerial e finalmente promulgado, por decreto, em 1969, para entrar em vigor em 1° de janeiro de 1970. O prazo de vacância foi, no entanto, sucessivamente prorrogado, por várias vezes, inclusive após a introdução de numerosas emendas, em 1973. Após longa vacância, de quase dez anos, o CP de 1969 foi finalmente revogado pela Lei n. 6.578, de 11 de novembro de 1978. É evidente que aquele código, elaborado em época bem diversa, não correspondia às exigências atuais de nosso direito penal, e sua revogação merece aplauso”. Op. cit., p. 67. 129 Cf. PIERANGELI, op. cit., p. 511 e ss. 130 “Art. 27. Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal; IV – em exercício regular de direito”.

54 3.2.8. A reforma penal de 1984

Segundo TOLEDO, “Tão logo empossado no cargo, o Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel deu início aos estudos para a reforma penal...”.131 Após inúmeros estudos, congressos e propostas, foi nomeada comissão destinada à revisão dos textos e incorporação do material resultante dos debates. Tal comissão foi formada pelos Professores Francisco de Assis Toledo (Coordenador), Dínio de Santis Garcia, Jair Leonardo Lopes e Miguel Reale Júnior.132 O trabalho da Comissão acabou culminando com a Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, que reformou a Parte Geral do Código Penal. No tocante às causas de exclusão da ilicitude, praticamente não houve alteração no texto do CP de 1940. A matéria simplesmente migrou do art. 19 do texto revogado para o vigente art. 23, substituindo de forma pertinente a rubrica marginal de “exclusão da criminalidade” para “exclusão de ilicitude”. Segundo a mencionada Exposição de Motivos da Parte Geral de 1984, Permanecem as mesmas, e com tratamento que lhes deu o Código vigente, as causas de exclusão da ilicitude. A inovação está contida no art. 23, que estende o excesso punível, antes restrito à legítima defesa, a todas as causas de justificação.133

Portanto, ignorou-se, uma vez mais, o consentimento do sujeito passivo em nosso ius positum.

131

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios..., cit., p. 66. Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal (Lei n. 7.209, de 11-7-1984). Publicada no Diário do Congresso (Seção II), de 29 de março de 1984, item 6. 133 Op. cit., item 21. A questão do excesso punível vem tratada no parágrafo único do citado art. 23. 132

55

3.3. Legislação estrangeira

3.3.1. O código penal italiano

Peculiar interesse assume a análise do art. 50 do Código Penal italiano, que tem como rubrica marginal a expressão Consenso dell’avente diritto. Dispõe a norma legal, in verbis: Non è punibile chi lede o pone in pericolo un diritto, col consenso della persona che può validamente disporne.134 Como mencionado retro135, a norma contida no art. 50 do Código Penal italiano estabelece uma causa de exclusão da ilicitude, sem qualquer relação com o instituto enquanto excludente de tipicidade. Tal conclusão é corroborada por Giuseppe Bettiol, que trata do tema exatamente em capítulo denominado “A exclusão da antijuridicidade”.136 Baseando-se na fórmula de Ulpiano volenti et consentienti non fit unjuria, diz BETTIOL: “Considera-se comumente que o consentimento do titular do direito constitui uma circunstância de justificação, em virtude do princípio de que a antijuridicidade não pode absolutamente surgir quando falta a presença do interesse tutelado”.137 Não obstante tal afirmação, sustenta que o direito penal é tutela de valores sociais, não de valores individuais; assim, reconhecer ao consentimento do ofendido uma eficácia descriminante da antijuridicidade significa transportar todo o direito penal para a plataforma

134

Julio Fabbrini Mirabete traduz o dispositivo da seguinte forma: “Não é punível quem lesa ou põe em perigo um direito, com o consentimento da pessoa que desse direito pode validamente dispor”. Op. cit., p. 184. 135 Cf. item 1 deste Capítulo. 136 BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, v. I. Neste mesmo sentido, cf. RAMACCI, Fabrizio. Op. cit., p. 315-316; e ainda MARINUCCI, Giorgio, DOLCINI, Emilio. Diritto penale (Parte generale). Milão: Giuffrè, 2002, p. 178-179. 137 BETTIOL, op. cit., p. 395.

56 de uma concepção individual-privatística de há muito considerada superada.138

Mesmo reconhecendo a inegável validade lógica da argumentação exposta pelo penalista, não é possível concordar com tal posição. Se, por um lado, não mais se questiona que o direito penal é ramo do direito público139, isto não impede a positivação do consentimento do sujeito passivo como uma causa legal de exclusão da ilicitude. O argumento exposto por BETTIOL poderia, em tese, servir para aqueles que não aceitam a aplicação do consenso no âmbito da ilicitude. MAGGIORE também trata do consentimento do sujeito passivo em item denominado antigiuridicità e giustificazione, juntamente com a legítima defesa, o estado de necessidade, entre outros. Assim, não resta dúvida que o instituto é considerado causa de exclusão da ilicitude pelo referido penalista. 140 MAGGIORE, ao tratar da natureza jurídica do instituto, é preciso: Un’altra causa di giustificazione è il consenso dell’avente diritto.141 Ao analisar o mencionado art. 50, o referido autor enumera os quatro requisitos para que se possa falar do consenso dell’ofeso como causa de justificação: 1) un soggeto consenziente; 2) un atto di consenso; 3) un oggeto del consenso; 4) un effetto del consenso.142

138

BETTIOL, op. cit., p. 396-397. Expõe REALE: “Toda ciência, para ser bem estudada, precisa ser dividida, ter as suas partes claramente discriminadas. A primeira divisão que encontramos na história da Ciência do Direito é feita pelos romanos, entre Direito Público e Privado [...]. O conteúdo de toda relação jurídica é sempre um interesse, tomada a palavra na sua acepção genérica, abrangendo tanto os bens de natureza material como os de ordem espiritual. O que caracteriza uma relação de Direito Público é o fato de atender, de maneira imediata e prevalecente, a um interesse de caráter geral. É o predomínio e a imediatidade do interesse que nos permite caracterizar a ‘publicidade da relação’. Quando uma norma proíbe que alguém se aproprie de um bem alheio, não está cuidando apenas do interesse da vítima, mas, imediata e prevalecentemente, do interesse social. Por esse motivo, o Direito Penal é um Direito Público, uma vez que visa a assegurar bens essenciais à sociedade toda”. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 335-337. Cf. ainda GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Introducción al estudio del derecho. 25. ed. Cidade do México: Porúa, 1975, p. 81-82 e 131-135. 140 MAGGIORE, Giuseppe. Diritto Penale. 5. ed. Bologna: Nicola Zanichelli, 1951, v. I, t. I. 141 MAGGIORE, op. cit., p. 325. 139

57 Como não poderia deixar de ser, um aspecto do terceiro requisito é destacado: a disponibilidade do objeto do consentimento, sustentando que são tradicionalmente indicados como disponíveis direitos de ordem patrimonial. MAGGIORE trata separadamente os direitos reais e os obrigacionais.143 Porém, identificar bens indisponíveis é tarefa das mais árduas. Por tal razão, o jurista elabora alguns critérios, afirmando que são indisponíveis: os direitos tipicamente públicos, os direitos mediatamente públicos (que guardam relação com bens e interesses de natureza coletiva ou social) e os direitos personalíssimos. Por fim, ressalta a indisponibilidade do direito à vida: Indisponibile è in primissimo luogo il diritto alla vita. La legge punisce l’omicidio del consenziente.144 Estas são as principais observações relativas ao art. 50 do Código Penal italiano, consenso dell’avente dirrito. Especialmente com base na legislação penal italiana, propõe-se a positivação do consentimento do sujeito passivo no ordenamento jurídico-penal brasileiro. O Código Penal português, a seguir analisado, também serve como fundamento da posição adotada neste trabalho.145

142

MAGGIORE, op. cit., p. 328-329. MAGGIORE, op. cit., p. 331. 144 MAGGIORE, op. cit., p. 332. 145 Acerca do instituto no direito penal italiano, cf. ainda: ANTOLISEI, Francesco. Manuale di diritto penale (Parte generale). 14. ed. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1997; BATTAGLINI, Giulio. Direito penal. Trad. de Paulo José da Costa Júnior, Armida Bergamini Miotto e Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 1973, t. I; FIANDACA, Giovanni, MUSCO, Enzo. Diritto penale (Parte generale). 3. ed. Bologna: Zanichelli, 1995; MANTOVANI, Ferrando. Diritto penale (Parte generale). 4. ed. Padova: Cedam, 2001; MANZINI, Vincenzo. Trattato de diritto penale italiano. Torino: Unione Tipogrfaico, 1950, v. I; MARINUCCI, Giorgio, DOLCINI, Emilio. Diritto penale (Parte generale). Milão: Giuffrè, 2002; RAMACCI, Fabrizio. Corso di diritto penale. 2. ed. Torino: G. Giappichelli, 2001; e RIZ, Roland. Il consenso dell'avente diritto. Pádua: Cedam, 1979. 143

58 3.3.2. O código penal português

O legislador português também optou por positivar o instituto do consentimento do sujeito passivo na Parte Geral do Código Penal daquele país. Diga-se que a matéria foi tratada com riqueza de detalhes. Não é temerário afirmar que a legislação mais específica e detalhada acerca do consentimento seja a portuguesa. Assim como ocorre no direito penal italiano146, desnecessário dizer que os artigos que tratam do instituto estão inseridos no capítulo relativo à exclusão da ilicitude do Código Penal lusitano. A propósito, a redação dada ao art. 31º não deixa dúvida, a saber: CAPÍTULO III Causas que excluem a ilicitude e a culpa Artigo 31º Exclusão da ilicitude 1 – O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. 2 – Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: [...] d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado.

Resta clara a enunciação do consentimento do sujeito passivo dentre as causas “tradicionais” de exclusão da ilicitude – estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito.

146

Cf. itens 1 e 3.1 deste Capítulo.

59 Por tal razão afirma Manuel Cavaleiro de Ferreira: “O consentimento do ofendido, como causa de exclusão da ilicitude, é regulado em novos moldes nos arts. 38° e 39°”.147 Assim, registre-se ainda os arts. 38º e 39º do CP português, que tratam especificamente da matéria. Nos termos do art. 38º, tem-se que: Artigo 38º Consentimento 1 – Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes. 2 – O consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido, e pode ser livremente revogado até a execução do fato. 3 – O consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 14 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta. 4 – Se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável à tentativa.

Por sua vez, o art. 39º dispõe sobre o “consentimento presumido”. Acentue-se a riqueza de detalhes com que a matéria foi tratada, conforme já mencionado. O legislador daquele país não poupou palavras para conceituar e traçar os limites de aplicação do consentimento. O item 1 do art. 38º tem cunho de definição, assemelhando-se ao já citado art. 50 do Código Penal italiano. Alguns aspectos da norma apresentam especial interesse.

147

FERREIRA, Manuel Cavaleiro de Ferreira. Lições de direito penal (A teoria do crime no Código Penal de 1982). Lisboa: Verbo, 1985. p. 138.

60 A expressão “além dos casos especialmente previstos em lei”, e.g., é absolutamente desnecessária. É evidente que havendo norma específica (especial) sobre a questão, não se aplica o art. 38º. Por outro lado, a referência à aplicação do instituto “quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis” é pertinente. Tratando-se do consentimento como causa de exclusão da ilicitude, a disponibilidade do bem jurídico penalmente tutelado é requisito indispensável.148 Além disso, a fórmula que impõe a exigência do “facto não ofender os bons costumes” é adequada. Ao tratar do instituto no Código Penal italiano, enfatizou-se o caráter publicístico do Direito Penal. Não cabem maiores considerações: basta concluir que o Direito Penal, que tutela os bem jurídicos de maior relevância, não poderá conviver com causas de exclusão da ilicitude que, no caso concreto, afrontem os bons costumes. Sobre o tema, diz a doutrina portuguesa: A restrição assim formulada – ofensa contra os bons costumes – é relativamente indefinida e susceptível de maior ou menor extensão consoante a espécie dos direito lesados. [...] o conteúdo da fórmula ‘bons costumes’ é uma restrição da eficácia do consentimento em função da gravidade do fato ilícito e da culpabilidade, não exclusivamente, mas concomitantemente com a restrição que resulta duma aprovação pela moral ou pela opinião comum [...]. Esta visão multifacetada da ressalva legal também se deduz da ineficácia do consentimento no lenocínio e no tráfico de pessoas... .149

O item 2 do artigo ora tratado diz respeito à manifestação da vontade do consenciente. Como não poderia deixar de ser, exige-se uma “vontade séria, livre e esclarecida”. Caso contrário, constatar-se-ia um vício da vontade, que terminaria invalidando o consentimento.

148 149

Cf. Capítulo IV, item 6. FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Lições..., cit., p. 142.

61 O item 3 visa pôr fim a uma das principais controvérsias quando se cogita da aplicação do instituto: a partir de que idade a manifestação da vontade é válida para excluir a ilicitude pelo consentimento? Inúmeras soluções são apontadas para tal indagação, conforme se expõe infra.150 No momento, é suficiente dizer que a legislação portuguesa optou por um critério geral, fixando a idade em 14 anos, além de exigir discernimento para avaliar o sentido alcance do consentimento. Ressalte-se que os dois requisitos (idade e discernimento) são cumulativos, e não alternativos. A consciência do consentimento por parte do agente é objeto do item 4 do art. 38º. Solução original foi dada pelo Código Português quando prevê a possibilidade de redução da pena no caso de o agente praticar o fato sem a consciência do consentimento. Conforme será analisado no Capítulo IV, item 2, desta dissertação, aquele que realiza sua conduta sem a consciência do consentimento comete crime, a nosso ver.151 Entretanto, é inconteste que o interesse na proteção do bem jurídico é menor, em cotejo com a situação em que não haja consentimento. Isto por uma razão muito simples: o titular do bem tutelado não se preocupa com sua lesão. Portanto, mesmo existindo crime, nada mais justo do que atenuar a sanção penal. Afirma Raul Soares da Veiga sobre o chamado “consentimento desconhecido”: Se o ofendido consentiu na agressão do agente, mas este agiu sem ter conhecimento desse consentimento e portanto sem que a sua acção tivesse tido em conta esse consentimento, a agressão não é lícita e o seu agente deverá ser punido por a ter praticado. Tal punição não será, porém, a 150

Cf. Capítulo IV, item 7. Segundo o entendimento defendido neste trabalho, assiste razão aos defensores da teoria subjetiva. Para mais detalhes, cf. Capítulo IV, item 2. 151

62 prescrita no tipo correspondente, como se não tivesse existido o consentimento. A pena aplicável ser-lhe-á inferior, correspondendo no máximo a dois terços da pena prevista no tipo (pena da tentativa – artigos 23°, n° 2, e 74°). [...] Em face do que dissemos, torna-se agora evidente que toda a tradição penal portuguesa vai no sentido da punibilidade dos casos de consentimento desconhecido.152

Resta ainda analisar o art. 39º do CP Português, que regula o “consentimento presumido”. Segundo PIERANGELI, “não existe um consentimento real do ofendido, mas se pressupõe a sua existência diante das circunstâncias”.153 Dispõe o Codex português: Artigo 39º Consentimento presumido 1 – Ao consentimento efectivo é equiparado o consentimento presumido. 2 – Há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua permitiu razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado.

Para ilustrar a hipótese, a doutrina costuma utilizar basicamente dos mesmos exemplos: a intervenção médica em um paciente que perde a consciência; alguém penetra no domicílio do vizinho ausente para reparar uma rotura nos canos d’água; pessoa que abre uma carta dirigida a um amigo ausente, para não se omitir a uma questão importante; pessoa que mata um cachorro alheio que foi atropelado por um automóvel.154 Não se questiona o efeito justificante que o consentimento presumido pode trazer, já que o agente realiza sua conduta visando resguardar o interesse do titular do bem jurídico penalmente tutelado. A partir do momento em que se consegue concluir que tal pessoa teria

152

VEIGA, Raul Soares da. Sobre o consentimento desconhecido (Elementos de direito português antigo e de direito estrangeiro). Revista portuguesa de ciência criminal. Coimbra: Aequitas, 1991, v. I, p. 327 e 346. 153 PIERANGELI, José Henrique. O consentimento…, cit., p. 148. 154 Cf. PIERANGELI, p. 148 e ss. Sabe-se que tais exemplos podem ser explicados através de outros institutos jurídico-penais.

63 proferido seu consentimento naquela situação concreta, porque é do seu interesse, nada mais lógico (e jurídico) do que afastar a ilicitude da conduta realizada. Por fim, necessário distinguir o consentimento presumido, ora tratado, do putativo. Já foi visto que, no consentimento presumido, não há consentimento do titular do bem jurídico; mas o agente deduz que tal titular teria consentido caso soubesse da situação concreta, configurando a causa justificante. Hipótese absolutamente distinta ocorre no caso do putativo: aqui, o agente incide em erro ao supor que preexistiu um consentimento (na verdade, não ocorrido). O consentimento putativo se enquadra com perfeição no disposto no art. 20, § 1º, do Código Penal brasileiro, ou seja, não passa de uma descriminante putativa. O agente incide em erro quanto às circunstâncias fáticas que o rodeiam, supõe equivocadamente que o titular do bem jurídico penalmente tutelado proferiu seu consentimento, na realidade inexistente. Portanto, pensa que sua conduta está amparada por uma causa excludente de ilicitude, isto é, o consentimento do ofendido. Segundo a solução adotada pelo direito pátrio, quando tal erro é plenamente justificado pelas circunstâncias fáticas, o agente está isento de pena (ausente, portanto, a culpabilidade).

64 Quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo, não há isenção de pena, mas apenas punição a título de culpa, desde que haja previsão expressa em lei em tal sentido, como exige o art. 18, parágrafo único, do Código Penal brasileiro.155 Sendo assim, não assiste razão a José Henrique Pierangeli, ao dizer que o consentimento putativo deve ser tratado como erro de proibição, já que o referido autor adota a teoria extremada da culpabilidade.156 Apesar da autoridade dos argumentos levantados pelo consagrado professor paulista, pensar desta forma significa ignorar por completo o disposto no Código Penal brasileiro. Isto porque, “para a teoria extremada da culpabilidade todo e qualquer erro que recaia sobre uma causa de justificação é erro de proibição”.157 Como vimos e segundo o disposto no art. 20, § 1º, do Código Penal brasileiro, as descriminantes putativas recaem sobre causas de justificação e não recebem o mesmo tratamento do erro de proibição (regulado no art. 21, caput, do nosso Código).158 3.3.3. O código penal alemão

Até 31.01.1994, o Código Penal alemão, em seu § 226a., tratava do consentimento de forma expressa. Com a reforma do texto, tal norma foi suprimida.159

155

A natureza jurídica das descriminantes putativas é tema dos mais controversos no âmbito da ciência do direito penal. A já mencionada Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, em seu item 19, afirma expressamente que se adotou a teoria limitada da culpabilidade, “que distingue o erro incidente sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação do que incide sobre a norma permissiva”. Neste sentido é o magistério de Francisco de Assis Toledo (Princípios..., cit., p. 271 e seguintes). Entretanto, a nosso ver, a norma contida no art. 20, § 1º, do Código Penal brasileiro adotou a teoria da dupla função do dolo (tão-somente com relação ao mencionado dispositivo). Para mais detalhes sobre o tema, cf. GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 164 e seguintes; e ainda SALES, Sheila Jorge Selim de. Dos tipos…, cit., p. 204 e seguintes. Ao tratar da dupla função do dolo, Sheila Jorge Selim de Sales leciona: “A nosso ver esta é a tese que mais se ajusta à nossa legislação” (op. cit., p. 206). 156 PIERANGELI, op. cit., p. 152. 157 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios..., cit., p. 285. 158 Cf. ainda: ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal. Coimbra: Coimbra, 1991. 159 Cf. Il Codice Penale tedesco. A. C. Sergio Vinciguerra. Padova: Cedam, 2003, p. 267.

65 Entretanto, considerando a forma sui generis que o referido Código regulou o instituto, faz-se necessária uma breve análise. O consentimento do sujeito passivo foi positivado na Parte Especial do Código Penal alemão. Afirma WELZEL: Un tratamiento de Derecho Positivo de este consentimiento justificante se encuentra únicamente en el § 226 a) respecto de las lesiones. Los principios ahí contenidos rigen en forma análoga para los demás casos de consentimiento justificante.160

Dispõe a mencionada norma: “Aquele que produz uma lesão corporal com o consentimento do ofendido, só age antijuridicamente, se o fato, apesar do consentimento, atenta contra os bons costumes”.161 Fácil notar que a disposição se encontra em capítulo da Parte Especial do CP alemão destinado a tutelar a integridade física ou fisiopsíquica, equivalente ao Capítulo II – Das lesões corporais – do Título I – Dos crimes contra a pessoa – da Parte Especial do Código Penal brasileiro.162 Portanto, vê-se que tal norma representa uma exceção: enquanto os demais códigos optaram por prever o consentimento do sujeito passivo na sua parte geral, o código ora tratado o fez na parte especial. Sendo assim, não resta dúvida que o Direito Penal alemão reconhecia, ainda que de forma implícita, o efeito justificante do consentimento.163

160

WELZEL, op. cit., p. 138. Tradução proposta por TAVARES, Juarez Estevam Xavier. O consentimento do ofendido no direito penal. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, n. 12, 1969, p. 258. 162 Cf. DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 219. 163 Cf. ainda: MAIWALD, Manfred. El consentimiento del lesionado en el derecho y en la dogmática penal alemanes. Cuadernos de doctrina y jurisprudência penal. Buenos Aires: Ad-Hoc SRL, 1999, v. V; MEZGER, Edmundo. Tratado de derecho penal. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1955, t. I; ROXIN, Claus. Derecho penal (Parte general – Fundamentos. La estructura de la teoria del delito). Madri: Civitas, 1997, t. I; VON LISZT, 161

66 Além disso, deve-se ressaltar o requisito expresso contido no Codex alemão: o consentimento do sujeito passivo não pode ser contrário aos bons costumes. Tal questão deve ser considerada ao se analisar a disponibilidade do bem jurídico penalmente tutelado.164 3.3.4. Outras legislações

Além dos códigos penais mencionados, diversas outras legislações também optaram pela codificação do consentimento do sujeito passivo. Assim, e.g., o art. 32, 2, do Código Penal colombiano: Artículo 32. Ausencia de responsabilidad. No habrá lugar a responsabilidad penal cuando: 2. Se actúe con el consentimiento válidamente emitido por parte del titular del bien jurídico, en los casos en que se puede disponer del mismo.165

Referida norma é muito similar ao já tratado art. 50 do Código Penal italiano166, e também se assemelha com a proposta de lege ferenda que será apresentada no item seguinte. Também a legislação mexicana, no art. 15, III, do Código Penal, trata do instituto de forma detalhada. Assim dispõe o Código Penal mexicano: ARTICULO 15.- El delito se excluye cuando: III.- Se actue com el consentimiento del titular del bien juridico afectado, simpre que se llenem los siguientes requisitos: A) Que el bien juridico sea disponible; B) Que el titular del bien tenga la capacidad juridica para disponer libremente del mismo; Franz. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russel, 2003; WESSELS, Johannes. Direito penal (Parte geral). Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1976. 164 Cf. Capítulo IV, item 6, deste estudo. 165 Capturado do site www.cajpe.org.pe/RIJ/bases/legisla/colombia/col-1.HTM em 03/07/2003. 166 Cf. item 3.1 deste Capítulo.

67 C) Que el consentimiento sea expresso o tacito y sin que medie algun vicio; o bien, que el hecho se realice em circunstancias tales que permitan fundadamente presumir que, de haberse consultado al titular, este hubiese otorgado el mismo.167

Tal norma tem, notadamente, inspiração portuguesa. Além de colocar como requisitos de validade do consentimento a disponibilidade do bem jurídico tutelado e a capacidade para dispor do consenciente, o CP mexicano trata expressamente do consentimento putativo.168 Menciona-se ainda o Código Penal uruguaio, de 1933, que dispõe no art. 44: “Não é punível a lesão causada com o consentimento do paciente, salvo se ela tiver por objeto subtraí-lo ao cumprimento de uma lei ou produzir dano a outrem”.169 Com base na análise histórica do direito penal brasileiro e nas legislações estrangeiras aqui examinadas, fácil concluir que há muito passou o momento de codificar o consentimento do sujeito passivo no Código Penal brasileiro, razão pela qual apresenta-se a seguintes proposta de lege ferenda.

3.4. Anotações finais: proposta de lege ferenda

A exposição feita nas páginas anteriores visava fundamentar uma proposta de lege ferenda, qual seja, a previsão legal do consentimento do sujeito passivo no ordenamento jurídico pátrio.

167

Capturado do site www.info4.juridicas.unam.mx em 05/07/2003. Para mais detalhes sobre o consentimento putativo, cf. item 3. deste Capítulo, que trata do CP português. 169 TAVARES, Juarez Estevam Xavier. Op. cit., p. 258-259. 168

68 A partir do momento em que se admite que o instituto é capaz de excluir a ilicitude de determinadas condutas, em alguns casos concretos170, não há menor razão para que se defenda que o instituto continue sendo visto como causa supralegal (ou nãocodificada) de exclusão da ilicitude. Isto porque uma das principais razões para a existência de um ordenamento jurídico positivado é proporcionar a devida segurança jurídica aos jurisdicionados, ainda mais quando se considera a tradição romano-germânico do nosso Direito. Neste sentido, a lição de René David, em obra clássica: Nas condições do mundo moderno e também por razões de ordem filosófica e política, considera-se hoje, de um modo geral, nos países da família romano-germânica, que a melhor maneira de chegar às soluções de justiça, que o direito impõe, consiste para os juristas em procurar apoio nas disposições da lei. [...] Finalmente, a lei, pelo rigor de redacção que ela comporta, parece ser a melhor técnica para enunciar regras claras, numa época em que a complexidade das relações sociais obriga a conferir primeiro plano, entre os elementos de uma solução justa, às preocupações de precisão e clareza.171

TOLEDO também possui o mesmo entendimento: ... é desejável que o direito legislado, por uma questão de maior segurança jurídica, se esforce por exaurir, tanto quanto possível, o rol dessas causas de exclusão da ilicitude, traçando-lhes com precisão, em tipos legais, o perfil e os limites de incidência.172

Sendo assim, nada mais lógico e coerente que codificar o instituto para que, de uma vez por todas, o consentimento do sujeito passivo seja legalmente previsto como causa excludente da ilicitude.173 Como acentua Galdino Siqueira: “A atualidade do problema e a

170

Cf. Capítulo II, item 3. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo (Direito comparado). 2. ed. Lisboa: Meridiano, 1978, p. 125. 172 TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude..., cit., p. 21-22. Esclareça-se que, ao falar em “tipos legais”, o autor refere-se aos tipos permissivos, expressão por ele adotada. Cf. Ilicitude..., cit., p. 17-18. Preferimos a expressão causas excludentes de ilicitude. 173 Cf. item 2 do presente Capítulo, no qual se expõe a posição do mestre Nelson Hungria, contrária à positivação. 171

69 urgência de resolvê-lo legislativamente são acentuados nas mais diversas manifestações da vida moderna”.174 Pelo exposto, não se pode concordar com a conclusão de Magalhães Noronha que, ao comentar o art. 50 do Código Penal italiano175 e a ausência de tratamento expresso no Codex brasileiro, chega a afirmar: “Tal disposição não é inteiramente despicienda, como se pretende, embora não seja sua omissão de graves conseqüências”.176 Uma vez demonstradas a necessidade e a viabilidade da positivação, apresenta-se a nossa proposta. Oferecemos a seguinte sugestão, de lege ferenda, para que seja incluído um novo inciso no art. 23 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal –, com a nova redação dada pela Lei n. 7.209/84: Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato: IV – quando preexistir o consentimento do titular do bem jurídico tutelado, desde que se trate de bem jurídico disponível e o ato de vontade seja válido e do conhecimento do agente.

Em primeiro lugar, esclareça-se que a sugestão deve encontrar posição sistemática exatamente no art. 23 do Código Penal, que prevê as causas de exclusão da ilicitude, conforme consta de sua rubrica marginal.

174

Op. cit., p. 371. Referindo-se ao Direito penal italiano, mais especificamente a Relazione ministeriale sul progetto del codice penale, continua o autor: “Uma norma diretora era logo indispensável, e o projeto julgou apontá-la, referindo-se à disponibilidade do direito” (op. cit., p. 371). Favorável à positivação, cf. ainda BARBOSA, Marcelo Fortes. Op. cit., p. 348. 175 Cf. item 3.1 deste Capítulo. 176 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal (introdução e parte geral). 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1979, v. I, p. 212.

70 Com a redação proposta, não haveria necessidade de um artigo em separado para conceituar o instituto, como ocorre no caso do estado de necessidade (art. 24) e da legítima defesa (art. 25). Adotar-se-ia o mesmo critério utilizado pelo legislador de 1984177 ao tratar do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular de direito. Tais causas de exclusão da ilicitude constam apenas no art. 23, III, CP. Não há um artigo em separado trazendo as conceituações. As questões relativas à disponibilidade do objeto da tutela penal e da validade do ato de vontade serão analisadas de forma detida no Capítulo IV deste trabalho.

177

Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, que alterou e reformou a Parte Geral do Código Penal.

71

IV. REQUISITOS

4.1. Nota introdutória: a vontade

O consentimento do sujeito passivo exige a presença de determinados requisitos.178 Primeiramente, ressalte-se que o instituto em análise só terá aplicação quando houver uma declaração de vontade por parte do titular do bem jurídico penalmente tutelado. É na vontade que resulta a essência da excludente ora estudada. Segundo ROXIN, no ejercicio de la libertad general de acción.179 Quando se examina a vontade, há uma questão essencial, que não pode ser esquecida: os vícios. Qualquer declaração de vontade viciada implica a invalidade do consentimento. Não importa qual o vício: dolo, coação, etc. A declaração de vontade deve corresponder à vontade real, além de originar-se de uma verdadeira representação da realidade.180

178

Sobre a pertinência dos requisitos na análise da validade do consentimento, cf. TAVARES, Juarez Estevam Xavier. O consentimento do ofendido no direito penal. Revista da Faculdade..., cit., p. 263. 179 ROXIN, Claus. Derecho..., cit., p. 533. 180 Neste sentido, lecionam FIANDACA e MUSCO: Perché esplichi efficacia scriminante, il consenso deve essere libero o spontaneo: esso cioè deve essere imune da violenza, errore o dolo. Op. cit., p. 229. Cf. ainda MANTOVANI, Ferrando. Op. cit., p. 265; TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude..., cit., p. 130; BRUNO, Aníbal. Op. cit., t. II, p. 20; e BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 253.

72 Portanto, é necessário expor algumas questões relativas ao consentimento e à capacidade do agente e do consenciente, para que seja possível chegar a uma conclusão segura a respeito da validade ou não de determinada declaração de vontade.181

4.2. O agente e a consciência do consentimento

A doutrina se divide quando trata da seguinte questão: para que o agente seja absolvido com fundamento no consentimento do sujeito passivo, haveria necessidade da consciência desse consentimento? Duas soluções são apresentadas: a teoria objetiva e a subjetiva. Para a teoria objetiva, não é necessário que o agente realize a conduta sabendo da existência do consentimento. Para a exclusão do crime, basta apenas a existência do consentimento, sem mais considerações acerca do aspecto subjetivo. Assiste razão a PIERANGELI ao relacionar os defensores da teoria causalista da ação com a desnecessidade de consciência do consentimento para que se caracterize a exclusão da ilicitude: “... os defensores da teoria causal da ação expressam-se no sentido de que o consentimento justifica objetivamente o fato, sem reclamar do agente a consciência de que está praticando uma conduta permitida”.182 Neste sentido, posiciona-se Aníbal Bruno: A antijuridicidade tem de ser considerada no seu aspecto objetivo de relação contraditória entre um fato e uma norma. É este o caráter que lhe é geralmente reconhecido e com este caráter objetivo é que ela figura na

181

Diga-se que os requisitos tratados neste Capítulo foram minuciosamente analisados por PIERANGELI, em sua já mencionada obra O consentimento do ofendido (na teoria do delito). Op. cit. Na literatura estrangeira, destacamse os ensinamentos de WESSELS, em seu Direito Penal (Parte Geral). Op. cit; e ainda ROXIN, Claus. Op. cit. 182 PIERANGELI, José Henrique. O consentimento..., cit., p. 120.

73 construção tripartida do conceito de crime, ao lado da tipicidade e da culpabilidade...”.183

Diante de tal fundamento, conclui Aníbal Bruno acerca da validade do consentimento: “... nem é preciso que o agente tenha ciência de que ele [o consentimento] foi concedido”.184 Tese distinta é defendida pelos seguidores da teoria subjetiva, que exige do agente o conhecimento acerca da existência do consentimento. Parece ser esta a posição correta. O Direito Penal brasileiro dá extrema relevância à questão da subjetividade.185 Tal fato pode ser comprovado pela adoção da teoria finalista da ação pela Lei n. 7.209/84 – que reformou a Parte Geral do Código Penal –, que migra o dolo da culpabilidade para o tipo.186 Como salienta TOLEDO, foi uma imensurável evolução, e o tipo enfoca cada vez mais o aspecto subjetivo.187

183

Op. cit., t. I, p. 334. Paulo José da Costa Jr. adota posição intermediária, tendendo para a objetividade, afirmando: “embora se possa sustentar o caráter prevalentemente objetivo da ilicitude, não se podem negar seus aspectos subjetivos” (Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991, v. I, p. 101). 184 Op. cit., t. II, p. 20. 185 Historicamente, o Direito Penal nasceu considerando tão-somente o aspecto objetivo. Nas palavras de Francisco de Assis Toledo, “só interessava o fato exterior danoso” (Princípios..., cit., p. 218). Evoluiu-se até se alcançar o princípio do nullum crimen sine culpa. Ainda segundo TOLEDO, “e assim teve início uma nova era, do ponto de vista penalístico” (op. cit., p. 219). 186 Segundo Luiz Flávio Gomes: “Pergunta-se com freqüência: nosso Código Penal é causalista ou finalista? De modo absoluto não é uma coisa nem outra, suponho. Na matéria ‘erro’, no entanto, transparece certa tendência finalista, que guiou o presente trabalho” (Erro de tipo e erro de proibição. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 15). Já segundo Paulo José da Costa Jr, “o finalismo não introduziu nenhum elemento novo na teoria geral do crime. Mudou de lugar, apenas, os móveis da casa” (op. cit. p. VIII). O insigne penalista, crítico do finalismo, considera-se “um semicausalista, ou um causalista espúrio” (op. cit., p. IX). Entendemos que o Código, após a reforma de 1984, passou a ter orientação notadamente finalista, o que deve ser tido como uma evolução. Cf. ainda LUISI, Luis. O tipo penal, a teoria finalista e a nova legislação penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1987, p. 123 e segs; e SALES, Sheila Jorge Selim. Dos tipos..., cit., p. 153 e ss. 187 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios..., cit., p. 224-233.

74 WELZEL, e.g., adota a teoria subjetiva: Es requisito que el autor tenga conocimiento del consentimiento; la acción típica solo está justificada si el autor la ejecuta en razón del consentimiento otorgado.188 No mesmo sentido leciona WESSELS: “no aspecto subjetivo, o autor deve ter agido no conhecimento e por causa do conhecimento” (destaque no original).189 Por tal razão, Luiz Regis Prado190, ao tratar do consentimento do ofendido ao analisar o tipo penal de seqüestro e cárcere privado (art. 148 do Código Penal), leciona: “... é indispensável que o sujeito ativo conheça sua existência e que esta seja um dos motivos que o impulsionaram a agir”.191 Outra razão para que se aceite a teoria subjetiva vem da própria palavra consentimento.192 Uma de suas acepções, conforme ensina PIERANGELI, é “concordar com a conduta de outrem”.193 Assim, para que a conduta reste justificada, o agente deve realizar a ação (ou omissão) em razão do consentimento outorgado. Não faria o menor sentido que o agente se aproveitasse do consentimento, de que não tem ciência, para justificar o fato praticado.194

188

Op. cit., p. 140. Op. cit., p. 78. 190 Diga-se que o referido e consagrado autor é um dos maiores defensores da teoria finalista no Brasil. Sobre o seu posicionamento, cf. o seu Curso de direito penal brasileiro (parte geral). 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. I, p. 251-253. 191 PRADO, Luiz Regis. Curso..., cit., v. II, p. 292. 192 Cf. Capítulo I, item 2, que trata da noção e dos aspectos terminológicos do consentimento do sujeito passivo. 193 Op. cit., p. 121. 194 Cf., MARQUES, Daniela de Freitas. Elementos subjetivos do injusto. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 109 e seguintes; e ainda BARREALES, María A. Trapero. Los elementos subjetivos en las causas de justificación y de atipicidad penal. Granada: Comares, 2000. 189

75 Por fim, conforme registrado retro, o Direito Penal português trata expressamente desta questão no art. 38, item 4, do CP: “Se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável à tentativa”.195

4.3. A manifestação do consentimento

Ao tratar da forma como o consentimento se manifesta, uma primeira consideração deve ser feita: enquanto este permanecer na mente do titular do bem jurídico tutelado, não se pode cogitar de qualquer conseqüência jurídica. O consentimento deve ir além do campo psíquico para ser considerado – nas palavras de PIERANGELI, “deve ser perceptível”.196 ROXIN afirma: Un consentimiento en sentido jurídico supone que se exteriorice de cualquier forma.197 Porém, resta a indagação: o consentimento deve ser expresso ou basta que seja tácito? A nosso ver, o consentimento tácito também é possível e, conseqüentemente, pode ser tido como válido. O que realmente importa, conforme antes mencionado, é que o ato de vontade seja perceptível, reconhecível, não podendo restar quaisquer dúvidas sobre sua existência e seu conteúdo.

195

Para mais detalhes sobre o consentimento do sujeito passivo no Direito Penal português, cf. Capítulo III, item 3.3. Op. cit., p. 139. 197 Op. cit., p. 532. 196

76 Leciona RAMACCI: Se il consenso è atto di volontà, la sua manifestazione può essere espressa o tacita, la seconda ipotesi essendo costituita da comportamenti inequivocabili.198 Portanto, não há razão para que o consentimento tácito não seja considerado uma forma válida de manifestação. Diga-se que o silêncio pode ser uma forma de consentir. WESSELS afirma: “o consentimento deve ter sido ou expressamente declarado ou concludentemente expressado”.199 Portanto, também admite a forma tácita. Duas as observações complementares. Não se pode negar que o consentimento tácito é de difícil configuração no campo pragmático. Em segundo lugar, imprescindível analisar a questão com a devida cautela, como ensina PIERANGELI: O consentimento, ainda que tácito ou não expresso, deve ser claro, sério, livre e determinado. Uma simples inércia, sem que ocorra uma clara vontade de renunciar à tutela jurídica não é suficiente para o reconhecimento do consentimento. Assim, por exemplo, quando o ladrão ingressa numa residência, e o proprietário o vê apoderar-se da res, mas, por temor permanece inerte, não significa que, ao suportar o prejuízo, tenha consentido no furto, porquanto falta a vontade de renunciar à tutela jurídica. A simples inércia, obviamente, não pode gerar a justificação. A falta de um dissentimento claro não é equivalente a um consentimento tácito ou expresso, e, para o reconhecimento de uma justificativa reclama-se a existência de um consentimento válido.200

Por fim, o consentimento não carece de forma específica ou predeterminada. Gestos, palavras, sinais e até mesmo omissões podem ser suficientes para que o consenciente expresse sua vontade de forma reconhecível, considerando que o comportamento seja inequivocamente dirigido para tanto.201

198

Op. cit., p. 317. Op. cit., p. 78. 200 Op. cit., p. 140. 201 Cf. FIANDACA, Giovanni, MUSCO, Enzo. Op. cit., p. 227. 199

77

4.4. O momento do consentimento

O consentimento não pode ser proferido após a realização do fato típico. A partir do momento em que se opta pela teoria subjetiva no que toca à consciência do agente em relação ao consentimento202, não seria possível pensar de forma distinta. Existem outros institutos de Direito Penal e de Direito Processual Penal que têm relevância após a ação (ou omissão), porém não se confundem com o consentimento do ofendido. Exemplo clássico é o direito de queixa, tratando-se de crimes de ação penal privada, que pode ou não ser exercido. Porém, o fato de a pessoa não exercer seu direito de queixa não significa que ela consentiu, já que o consentimento não é considerado quando prestado após a realização do fato.203 Neste sentido é a lição de Galdino Siqueira: “Deve ser anterior ao fato e subsistir no momento deste. A tolerância da ação realizada só pode traduzir um perdão, que não se confunde com a justificação ora apreciada”.204 O sujeito passivo pode revogar seu consentimento sem qualquer tipo de motivação especial, da mesma forma que não se exige um fundamento determinado quando se renuncia à tutela jurídico-penal. WESSELS registra que “antes do cometimento do fato, o consentimento é livremente revogável”.205 RAMACCI possui o mesmo entendimento: Come atto di volontà libera, il consenso è per sua natura revocabile fino al momento della lesione del diritto. Il

202

Cf. item 2 deste Capítulo. Cf. Capítulo II, item 5, que relaciona o consentimento do ofendido com o direito processual penal. 204 Op. cit., p. 376-377. 205 Op. cit., p. 78. No mesmo sentido, WELZEL, Hans. Op. cit., p. 140. 203

78 consenso prestato dopo la lesione non può invece escludere che il fatto sia illecito, perché il reato è già stato commesso.206 A revogação do consentimento deve ser feita antes de iniciada a execução do crime. A nosso ver, quando a revogação é feita durante a execução, o efeito justificante atinge os atos já praticados. A punição ficará restringida aos atos praticados após a revogação. Quando ocorre a revogação após findos os atos executórios, não houve crime com relação a quem agiu (ou se omitiu), todo o tempo, sob o amparo do consentimento. Assim, só serão considerados ilícitos os atos praticados após a revogação do consentimento. Caso o agente opte por interromper a execução no exato instante da revogação, do mesmo modo, não há ilicitude. Não interessa se a revogação é expressa ou tácita. O que interessa, mais uma vez, é que ela seja perceptível. Acentua PIERANGELI: Pode ocorrer hipóteses em que o titular do bem jurídico, após renunciar expressamente, volta a utilizar o bem, tornando incompatível a renúncia à tutela jurídica com a sua utilização, quando, então, o ato de disposição possui idêntico efeito ao da revogação expressa.207

Trata-se da hipótese de revogação implícita.

206

Op. cit., p. 316. Para ROXIN, el consentimiento debe ser prestado antes del hecho y es libremente revocable […]. Una autorización ulterior (p. ej.: la víctima regala al ladrón lo robado, después del descubrimiento del hecho) carece de influencia sobre la realización del tipo. Pues, de lo contrario, el perjudicado podría decidir sobre la pretensión penal estatal, lo cual va en contra del principio de oficialidad (o principio de intervención de oficio). Op. cit., p. 535. Cf. ainda na doutrina brasileira: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 164; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 200; TOLEDO, Francisco de Assis. Ilicitude..., cit., p. 130; e PRADO, Luiz Regis. Curso..., cit., v. I, p. 335. GRECO também conclui: “O consentimento deverá, ainda, ser anterior ou mesmo simultâneo à conduta do agente. Se for posterior, não afastará a ilicitude da conduta praticada”. GRECO, Rogério. Curso de direito penal (Parte geral). 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2002, p. 420. 207 Op. cit., p. 145.

79

4.5. A pessoa jurídica como consenciente

Uma vez que a pessoa jurídica também é titular de bens jurídicos penalmente tutelados, cumpre examinar se o consentimento poderá ser por ela proferido.208 Sabe-se que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.209 Possuem, inclusive, patrimônios próprios, que também não se confundem com os de seus membros, sócios, fundadores, acionistas... Por tal razão, não há nenhum fundamento jurídico em proibir que a pessoa jurídica possa dispor de seus bens penalmente tutelados, desde que se obedeça aos limites legais, contratuais ou estatutários. Neste ponto reside a grande diferença entre o consentimento proferido pela pessoa natural e pela pessoa jurídica. Como antes mencionado, não se exige da pessoa natural nenhum tipo de motivação especial para consentir. Já no caso da pessoa jurídica, a

208

No presente item, aborda-se apenas a discussão da pessoa jurídica como consenciente, ou seja, que profere o consentimento. Entretanto, outra questão que gera intensa polêmica no âmbito das ciências penais é a possibilidade de a pessoa jurídica vir a cometer crimes, o que não constitui objeto do presente estudo. Porém, são necessárias algumas breves considerações sobre a pessoa jurídica como agente. Assim como a Profa. Dra. Sheila Jorge Selim de Sales – Do sujeito ativo (Na parte especial do Código Penal). Belo Horizonte: Del Rey, 1993 –, entendemos que a pessoa jurídica não comete crime, com base no princípio societas delinquere non potest. Registra, com acerto, a penalista: “uma vez desprovida de inteligência e de vontade natural, o ente coletivo é inteiramente incapaz de realizar qualquer atividade a que se possa atribuir relevância na esfera penalística” (op. cit., p. 33). Tal colocação chega a ser irrefutável, segundo os conceitos de um Direito Penal garantista. Ocorre que, atualmente, há certa tendência em se admitir que pessoa jurídica seja penalmente responsabilizada, com base normativa no art. 225, § 3º, da Constituição Federal (que trata da proteção ao meio-ambiente) e na Lei n. 9.605/98, que tratou de forma expressa de tal responsabilização.Para maiores detalhes, cf. a mencionada obra de Sheila Jorge Selim de Sales e ainda ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 2002. Já com relação à pessoa natural como agente, não há consideração alguma a ser feita: sua responsabilidade penal não é alvo de discussão. Caso um ser humano realize determinada conduta típica, ilícita e culpável, cometerá crime e ficará sujeito, regra geral, a uma sanção penal. Porém, algumas considerações devem ser tecidas quando a pessoa natural profere o consentimento, ou seja, temse o ser humano como consenciente. Dispõe o art. 1º do Código Civil de 2002 que “toda pessoa é capaz de direito e deveres na ordem civil”. Dessa forma, o problema reside no exercício do direito, já que todo ser humano tem personalidade jurídica. Sabemos que são inúmeros os casos em que, apesar de titular de um direito, a pessoa não pode exercê-lo livremente, ou por si só. Assim sendo, neste Capítulo, que trata dos requisitos do consentimento, serão abordadas questões relativas à capacidade do consenciente. 209 Art. 20 do Código Civil de 1916. O novo Código Civil (Lei n. 10.406/2002) não possui disposição expressa no mesmo sentido. Entretanto, é inegável que, do ponto de vista doutrinário, chegar a ser pacífico que a pessoa jurídica tem existência distinta de seus membros, conforme dispunha o texto revogado.

80 observância aos limites legais, contratuais ou estatutários serve para evitar fraudes e abusos na administração de determinada empresa. Assim, a disponibilidade dos bens jurídicos sofre restrições.210 A natureza de determinados bens jurídicos não admite o consentimento da pessoa jurídica. Seria um despropósito imaginar seu consentimento tratando-se de crimes como o estupro, a bigamia, a lesão corporal, dentre vários outros. Porém, com relação aos crimes patrimoniais, são inúmeras as hipóteses possíveis – pode-se mencionar, e.g., o furto de coisa comum211, a supressão ou alteração de marca em animais212 e ainda o dano213, previstos no Título II da Parte Especial do Código Penal, dentre outros.

4.6. A disponibilidade do bem jurídico

Para que o consentimento do ofendido exclua a ilicitude de determinado fato típico, é requisito indispensável que o bem jurídico penalmente tutelado seja disponível. Na lição de TAVARES: A justificativa do consentimento só funciona onde o bem ameaçado se inclua entre os denominados bens disponíveis. Aqui se fixa um dos mais árduos problemas da matéria, que mesmo na atualidade não recebeu solução satisfatória, qual seja, a de estabelecer quais bens seriam considerados disponíveis e em que base se determinaria essa característica.214

210

Para mais detalhes sobre a disponibilidade, cf. item 6. Art. 156. Subtrair o condômino, co-herdeiro ou sócio, para si ou para outrem, a quem legitimamente a detém, a coisa comum. 212 Art. 162. Suprimir ou alterar, indevidamente, em gado ou rebanho alheio, marca ou sinal indicativo de propriedade. 213 Art. 163. Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia. 214 Op. cit., p. 259. 211

81 Como antes exposto, nos casos em que a tipicidade for afastada pelo consentimento, o próprio tipo estará exigindo o dissentimento do sujeito passivo.215 Assim, não interessa analisar a disponibilidade nesses casos, já que o próprio tipo é expresso quanto à possibilidade de se dar a mais plena eficácia ao consentimento, excluindo-se a tipicidade. Portanto, o grande interesse no exame da disponibilidade do bem jurídico está na função de excludente de ilicitude do consentimento do sujeito passivo. Uma das maiores dificuldades, neste ponto, é concluir acerca da disponibilidade de determinado bem jurídico no âmbito do Direito Penal. Acentua com exatidão Jair Leonardo Lopes: salta aos olhos o caráter publicístico do Direito Penal, que regula as relações de interesse público e não, apenas, relações de interesse individual. O seu objetivo maior é assegurar aquelas condições sem as quais torna-se impossível a vida em comum. [...] É certo que a indisponibilidade de tais bens visa reforçar na consciência coletiva a importância que se lhes atribui.216

No entanto, tal assertiva não significa que não existam bens jurídicos penalmente tutelados disponíveis. Como expõe MANTOVANI: Il consenso scriminante non è deroga al carattere pubblicistico-obiettivo [...] della tutela penale, non escudendo l’automatismo della razione sanzionatoria, ma incidendo, prioritariamente, sulla stessa configurazione dell’illecito, in quanto la ‘disponibilità’ è caratteristica del diritto, non impressa dalla norma penale, ma di cui questa prende atto.217

215

Cf. Capítulo II, item 2, deste estudo, que trata especificamente acerca do consentimento do sujeito passivo como excludente da tipicidade. 216 Op. cit., p. 24-25. No mesmo sentido conclui Eugênio Pacelli de Oliveira: “... diante da natureza fragmentária e subsidiária do Direito Penal, não há como aceitar a existência de qualquer norma incriminadora que não tenha por objeto a tutela de bens e valores cuja proteção seja efetivamente exigida pela comunidade, isto é, que não se dirija a condutas socialmente reprováveis ou reprovadas. Assim, somente em razão da existência do tipo penal, já se evidencia o interesse público configurador da reprovabilidade da conduta”. Curso de processo penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 106. 217 Op. cit., p. 262.

82 Entretanto, forçoso reconhecer que a disponibilidade do objeto da tutela penal é exceção no âmbito do direito penal.218 Por isso, tem-se procurado estabelecer critérios sobre a disponibilidade (ou não) de determinados bens jurídicos. Só assim será possível concluir, no caso concreto, se o consentimento do sujeito passivo excluirá a ilicitude do fato. Isso porque o titular de um bem indisponível não pode renunciar à tutela jurídica. Com efeito, é impossível listar todos os bens disponíveis tutelados pelo direito penal. Mesmo nas legislações estrangeiras, não se tem notícia de um rol de bens jurídicos disponíveis que sirva de guia para o intérprete. Leciona MAGGIORE: Che l’odinamento giuridico penale offra un criterio generale discriminativo tra i diritti disponibili e quelli indisponibili, non è da credere.219 Por isso mesmo, não se pode perder de vista a importância que deve ser dada à análise do caso concreto, e mencionar alguns critérios a serem utilizados para que se conclua acerca da disponibilidade (ou não) de determinado bem jurídico. Entretanto, diga-se que os critérios examinados, aplicados de forma isolada, não são suficientes para uma conclusão segura. O ideal seria conjugar dois ou mais critérios para que a análise sobre a disponibilidade do objeto da tutela penal seja feita de forma mais garantista, em conformidade com a estrutura de um Estado Democrático de Direito. O pressuposto de tal análise é identificar o sujeito passivo de determinado delito, ou seja, quem é o titular do bem jurídico penalmente tutelado. Segundo TAVARES:

218

Cf. CUELLO CALLÓN, Eugenio. Op. cit., p. 389; e REALE JÚNIOR, Miguel. Op. cit., p. 179. Op. cit., p. 330. Cf. Capítulo III, item 3.1, que aborda o Código Penal italiano e as opiniões de MAGGIORE acerca dos critérios para distinção entre bens disponíveis e indisponíveis. 219

83 Assim, em primeiro lugar, se faz necessário distinguir-se entre crimes contra bens do indivíduo e contra bens da coletividade. Nestes últimos torna-se impossível o consentimento, porquanto a proteção se exerce sobre valores estatais ou supra-estatais, imprescindíveis à estabilidade social e insuscetíveis de renúncia, tal como ocorre nos casos nos ataques à administração pública, em detrimento à integridade do Estado, à incolumidade de um número indeterminado de pessoas ou nos delitos monetários. Também se inclui nesta categoria uma série de fatos localizados na chamada zona de fronteira, em que, a par da lesão social, se produz lesão individual, bem como que somente se manifestam contra a sociedade através de atentados a bens pessoais, como nos crimes contra a família, a organização do trabalho, a fé pública, os costumes e o sentimento religioso.220

Como pensar em um consentimento válido no caso do crime de impedimento ou perturbação de cerimônia funerária (art. 209 do CP), por exemplo?221 Um dos principais critérios sobre a disponibilidade seria analisar se a ação penal relativa ao crime em exame é de iniciativa pública (incondicionada ou condicionada) ou privada. Assim, tem-se um importante fator para se concluir acerca da disponibilidade do objeto da tutela penal. Já foi mencionado que o instituto não se situa no âmbito do direito processual penal.222 Porém, tal fato não afasta a possibilidade de se verificar a disponibilidade do bem jurídico recorrendo-se à legitimidade para propositura da ação penal. Apesar de sua relevância, esse critério não pode ser utilizado de forma isolada. Como a lei penal muitas vezes opta pela ação de iniciativa pública ou de iniciativa privada de forma equivocada, chega-se à conclusão de que esse critério não deve ser o único a ser seguido. Ademais, em algumas hipóteses, a iniciativa da ação penal reside no strepitus

220

Op. cit., p. 259-260. Para maiores detalhes sobre o tema, cf. recente tese de doutorado defendida ma Universidade de São Paulo: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual (Interesses difusos). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. 221 Art. 209 – Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária. Segundo Paulo José da Costa Júnior, “Sujeitos passivos são familiares e amigos do morto, bem assim a coletividade e m geral, pelo interesse éticosocial lesado. Trata-se, pois, de delito vago, em que os ofendidos são coletividades, desprovidas de personalidade jurídica”. Comentários ao código penal (parte especial). São Paulo: Saraiva, 1989, v. III, p. 90. 222 Cf. Capítulo II, item 5.

84 iudicci, ou seja, no “escândalo causado pela divulgação do fato”.223 Portanto, a iniciativa da ação penal, nesses casos, não guarda a menor relação com a disponibilidade do bem jurídico. A doutrina aponta como indisponíveis os direitos da personalidade, sendo este mais um critério a ser utilizado pelo intérprete. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, a ordem jurídica “admite a existência de um ideal de justiça [...], atinente à própria natureza humana”.224 Os direitos da personalidade tutelam os bens jurídicos que garantem ao homem sua condição de ser humano.225 Para melhor entendimento, devemos nos valer dos exemplos: o direito à vida, à integridade física e ao nome. Esses direitos têm características especiais, e dentre elas destaca-se a indisponibilidade. O autor de um homicídio não poderá livrar-se da sanção penal alegando que sua conduta foi consentida.226 Diga-se que o recente Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), dedicou todo um capítulo aos direitos da personalidade, na forma proposta pelo jurista mineiro Caio Mário da Silva Pereira, autor do projeto que deu origem ao referido Código.227 Em matéria de direitos da personalidade, questão das mais intrigantes é a análise da disponibilidade do bem jurídico integridade física (ou psicofísica), tutelado no art. 129 do Código Penal.228 Registra FRAGOSO: “A nosso ver a integridade corporal também é bem jurídico disponível, mas não é esse o entendimento que prevalece em nossa doutrina”.229

223

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Op. cit., p. 105. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v. I, p. 152. 225 “Atinentes à própria natureza humana, ocupam eles posição supra-estatal...”. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 152. 226 Cf. Capítulo V, que abordará alguns aspectos relativos à eutanásia. 227 Trata-se do Capítulo II do Título I – Das pessoas naturais –, contidos no Livro I da Parte Geral do Código – Das pessoas. 224

85 O referido autor apresenta uma posição por demais genérica, sem distinguir entre a contravenção de vias de fato e o crime de lesão corporal, que pode ser de natureza leve, grave, gravíssima e ainda seguida de morte. A integridade física (ou psicofísica), a nosso ver, só pode ser tida como disponível tratando-se de vias de fato ou de lesão corporal de natureza leve.230 Tal conclusão encontra respaldo no próprio texto do novo Código Civil, que dispõe em seu art. 13: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”.231 Há ainda outras normas que corroboram tal entendimento. A título de exemplo, menciona-se o art. 88 da Lei n. 9.099/95, que exige representação como condição de procedibilidade para as ações penais relativas aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas. Tem-se ainda o art. 122 do Código Penal (induzimento, instigação ou auxílio a suicídio), que exige como condição objetiva de punibilidade a ocorrência de lesão corporal de natureza grave, no mínimo.232

228

Art. 129 – Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. Op. cit., p. 200. Cf. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1942, v. V, p. 14-15, que coloca a “integridade corporal” como bem inalienável, indisponível e irrenunciável. 230 Art. 21 do Decreto-lei n. 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) e art. 129, caput, do Código Penal, respectivamente. 231 Situação excepcional ocorre no caso de transplante de órgãos, como se vê do parágrafo único do mencionado artigo: “O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”. A matéria foi tratada pela Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que inclusive destina um de seus capítulos para prever crimes e cominar penas. Diga-se ainda que o art. 5º do Código Civil italiano não permite a disposição irreversível do próprio corpo. 232 Cf. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro (parte especial). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. II, p. 71. 229

86 Já no caso de lesões corporais de natureza grave, gravíssima ou ainda seguida de morte (art. 129, §§ 1º, 2º e 3º, CP), não há falar em disponibilidade. Portanto, o consentimento do sujeito passivo não exerce a função de excludente de ilicitude, nesses casos. Portanto, a solução aqui apontada encontra suporte textual no ordenamento jurídico vigente.233 Há ainda outros critérios a serem observados. Quando o consentimento viola claramente os princípios e exigências éticas da consciência coletiva, o consentimento não pode ser considerado, mesmo quando o bem, em princípio, é disponível. PIERANGELI cita o exemplo do “consentimento para sevícias sexuais que produzem lesões corporais de natureza grave”.234 Por isso, deve-se dar relevância aos usos e costumes, tratando-se do consentimento do sujeito passivo.235 Neste sentido, tinha-se o § 226 do Código Penal alemão.236 O interesse público (ou ordem pública) é critério dos mais relevantes. PIERANGELI conceitua-o como “complexo de princípios gerais, fundamentais e

233

RAMACCI também coloca a integrità fisica como direito disponível, salvo as lesões irreversívies, com base no art. 5º do Código Civil italiano. Op. cit., p. 317. Esta também parece ser a posição de Aníbal Bruno: “O que se deve assentar é que a lesão não pode ser validamente consentida desde que ponha em perigo a vida ou diminua a capacidade do indivíduo como valor social, sem esquecer a influência que os costumes podem exercer sobre o julgamento da ilicitude do fato”. Op. cit., t. II, p. 22. Em consonância com nossa posição, afirma GRECO: “Entendemos que a integridade física é um bem disponível desde que as lesões sofridas sejam consideradas de natureza leve. Caso as lesões sejam graves ou gravíssimas, o consentimento do ofendido não terá o condão de afastar a ilicitude da conduta levada a efeito pelo agente”. Op. cit., p. 420. Entretanto, é possível encontrar na doutrina o seguinte posicionamento: “De modo geral, prevalece o entendimento de que a integridade física constitui bem indisponível e, portanto, o consentimento do ofendido não traz qualquer conseqüência jurídica na apreciação dos delitos de lesões à saúde e à integridade corporal”. BRAVO, Otávio. Otávio. O consentimento do ofendido na teoria do direito e na teoria da pena. O direito em movimento: Revista do Instituto Capixaba de Estudos. Vitória: ICE, 2000, v. II, p. 205. 234 PIERANGELI, op. cit., p. 115. 235 Tal exemplo também pode ser explicado com base na indisponibilidade da integridade física tratando-se de lesão corporal de natureza grave. 236 Cf. Capítulo III, item 3.3, acerca do Código Penal alemão. Digno de menção é o art. 6º do Código Civil francês, que possui disposição semelhante: On ne peut déroger, par des conventions particulières, aux lois qui intéressent l´ordre public et les bonnes moeurs. Para maiores detalhes, cf. HENRY, Xavier et alii. Code Civil. 100. ed. Paris: Dalloz, 2001, p. 27-28.

87 inderrogáveis estabelecidos pelo ordenamento jurídico estatal que não podem ser submetidos à disposição do particular”.237 Portanto, o intérprete deve pesquisar o ordenamento jurídico como um todo, não se atendo apenas às normas penais, para concluir se há ou não interesse público. Existem bens que escapam da esfera de disposição do particular. Deve-se considerar interesse do Estado punir, por exemplo, o autor de um homicídio, mesmo que a vítima suplique por sua morte, supondo que esta possua um certo “instinto suicida” ou mesmo que não esteja na plenitude de suas faculdades mentais e acabe por proferir seu consentimento à conduta do futuro sujeito ativo. Dessa forma, o consentimento não pode ser considerado, já que razões de ordem pública, de interesse estatal, impedem que a pessoa disponha de sua vida, já que esta é considerada um bem jurídico indisponível.238 Fácil notar que o interesse público, muitas vezes, se confunde com os direitos da personalidade, ratificando a indisponibilidade do bem em determinados casos. Por fim, a lição de TAVARES deve, uma vez mais ser mencionada: Se o interesse privado predomina integralmente, o consentimento exclui a antijuridicidade, em decorrência da qualidade renunciável do bem. Se, de outro modo, os interesses coletivos prevalecem, subsiste a antijuridicidade, apesar do consenso, por se tratar de bem irrenunciável.239

237

PIERANGELI, op. cit., p. 117. Dependendo do caso concreto, existe a possibilidade da aplicação da causa de diminuição de pena presente do § 1º do art. 121 do Código Penal. Porém, continua-se diante de um crime, com pena diminuída. Como já foi dito, o presente estudo trata de analisar o consentimento que exclui a tipicidade ou a ilicitude do fato, e não outras conseqüências diversas que pode acarretar no âmbito do Direito Penal. Menciona-se, uma vez mais, o Capítulo V deste estudo, que irá tecer considerações acerca da eutanásia. 239 Op. cit., p. 260. Leciona Aníbal Bruno sobre o tema: “Na situação atual do problema, o que é decisivo é o interesse que o Estado possa ter na tutela do bem ofendido ou ameaçado. Se há interesse do Estado na proteção do bem, fica inválido o consentimento privado como causa de discriminação. Um bem jurídico recebe a proteção do Direito Penal quando a sua defesa se apresenta como de interesse primordial para o Estado. É com esse caráter de valor para a comunidade que a lei estende sobre ele a cobertura da sanção penal. Mas em muitos 238

88

4.7. A idade

4.7.1. Anotações gerais

Assim como acontece em outros requisitos do consentimento do sujeito passivo, as controvérsias entre os autores fazem-se notar também em relação à idade. Qual seria a idade mínima para que o instituto exclua a tipicidade ou a ilicitude de determinado fato? Registre-se que a discussão escapa, até certo ponto, os limites da ciência jurídica, adentrando outros ramos do conhecimento (como a psicologia), já que o discernimento é essencial para a validade do consentimento. São várias as soluções apresentadas para a questão proposta. No entanto, apresentam-se as correntes mais autorizadas. ANTOLISEI sustenta que não se deve fixar uma idade mínima para a validade do instituto. O intérprete deve valorar a capacidade mental do consenciente, no caso concreto. Após mencionar as soluções possíveis concluiu o jurista peninsular:

desses bens coincide com o interesse público um interesse privado. Em alguns casos mesmo, esse interesse privado é preponderante e o Estado só tem na defesa do bem jurídico um interesse indireto ou mediato. Então o Estado entrega o juízo da conveniência da defesa da situação atual do bem à livre deliberação do seu titular. Se ele consente na sua perda, o Estado não interfere para mantê-lo inatacado. Esta posição do Estado em face do bem se declara mesmo na lei, quando esta põe a ausência de consentimento como condição de incriminação. Mas fora desse casos, há bens jurídicos que o Estado deixa e disposição do titular, pelo menos até certos limites e dentro de determinadas circunstâncias. É isso que explica o poder discriminante do consentimento do ofendido”. Op. cit., p. 18-19. Cf. ainda MAIWALD, Manfred. Op. cit., p. 342; e MARINUCCI, Giorgio, DOLCINI, Emilio. Diritto penale (Parte generale). Milão: Giuffrè, 2002, p. 179-180. RAMACCI tenta resumir todos os critérios: Accanto ai requisiti di validità la legge richiede il requisito della disponibilità del diritto. Disponibili sono i diritti patrimoniali e i diritti personalissimi com esclusione tuttavia della vita (l’esclusione si argomenta dalla previsione dell’art. 579 c.p., Che punisce l’omicidio del consenziente), dell’integrità física (l’art. 5 c.c., vieta gli atti di disposizione irreversibilie del proprio corpo) e della libertà personale in assoluto (l’art. 600 c.p. punisce la riduzione in schiavitù). Indisponibile sono anche i diritti superindididuali, Che costituiscono oggeto di tutela da parte di norme incriminatrici di reati quali, ad esempio, quelli contro l’incolumità pubblica, la moralità pubblica, la fede pubblica (com riserve, pr quest’ultima classe di reati, per i casi di preminenza degli interessi individuali sottostanti, come nel caso di falso consentio in scrittura privata o uso consentito di uma scrittura falsa). Op. cit., p. 317.

89 ... infine, pensano che la questione debba risolversi caso per caso, esaminando se il consenziente aveva il discernimento necessario per rendersi conto della portata del suo atto. Quest’ultima soluzione ci sembra preferibile, perché, mentre la prima porta a riconoscere efficacia anche al consenso di persona sfornita della capacità di intendere e di volere, alla senconda si può obiettare che le norme sull’imputabilità penale non possono essere estese ad altri casi, implicando presunzioni che sono dettate da fini particolari.240

Conforme exposto infra, não assiste razão a ANTOLISEI, que ignora a questão da imputabilidade penal e ainda propõe um critério dotado de alta dose de discricionariedade, gerando conseqüente arbítrio. Uma segunda corrente sustenta que deve prevalecer a idade mínima dos 14 anos.241 Adotando tal entendimento, é possível encontrar algumas normas na Parte Especial do Código Penal brasileiro que condicionam a validade do consentimento à idade mínima de 14 anos por parte do consenciente. A título de exemplo, menciona-se o parágrafo único do art. 126 (ao tratar do crime de aborto) e ainda o art. 224, a (presunção de violência nos crimes contra os costumes). Tais normas se referem ao instituto no âmbito da exclusão da tipicidade, referindo-se a casos específicos. Conseqüentemente, seria ilógico invocá-las com o intuito de fundamentar a seguinte conclusão, de caráter genérico: basta a idade de 14 anos para que o titular do bem jurídico tutelado consinta validamente. A posição mais aceita condiciona o consentimento do sujeito passivo à idade mínima de 18 anos. Os maiores de 18 anos ficam sujeitos à lei penal e podem ser considerados imputáveis, conforme o art. 228 da Constituição da República242 e ainda o art.

240

Op. cit., p. 290. NUCCI possui entendimento semelhante: “Parece-nos razoável partir da idade penal, ou seja, 18 anos para estabelecer um limite. Afinal, aquele que tem capacidade para responder por seus atos, na esfera criminal, sem dúvida pode dispor, validamente, de bens ou interesses seus. Por outro lado, deve haver flexibilidade na análise da capacidade de consentimento, pois um menor, com 17 anos, por exemplo, certamente tem condições de discernir sobre a perda de algum bem”. Op. cit., p. 164. 241 Cf. ANTOLISEI, Francesco. Manuale..., op. cit., p. 290. 242 Art. 228. São penalmente imputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

90 27 do Código Penal243. Analogicamente, diz-se que também é a idade mínima para o consentimento. Afirma BETTIOL que seria ilógico estabelecer outra idade que não a da capacidade penal, opinião esta que serve como fundamento para aqueles que defendem o posicionamento ora apresentado.244 Por fim, uma última corrente considera a capacidade civil, ou seja, são as normas de Direito Civil que irão definir qual a idade mínima para o consentimento do sujeito passivo.245 Argumenta-se que é o Direito Civil que regula a partir de que idade o indivíduo poderá dispor de seus bens da forma que melhor entender (tratando-se, obviamente, de bens disponíveis). Assim, não se perderia de vista o caráter unitário do ordenamento jurídico, já que as normas de todos os ramos do Direito devem ser guardar coerência e sistematização.246

243

Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente imputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. Segundo o art. 26 do Código Penal, os maiores de 18 anos são tidos como imputáveis, salvo os portadores de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado que, ao tempo da ação ou omissão, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 244 Op. cit., p. 399. O referido autor invoca a idade mínima dos 14 anos, já que com tal idade se adquire a maioridade penal pelo ordenamento italiano. Neste sentido, cf. ainda ROCHA, Fernando A. N. Galvão da, GRECO, Rogério. Estrutura..., cit., p. 349-350; PIERANGELI, José Henrique. O consentimento..., cit., p. 126; e JESUS, Damásio E. de. Direito..., cit., p. 351. Este também faz referência ao art. 224, a, do Código Penal, que relaciona a presunção de violência e idade do consenciente tratando-se dos Capítulos I a III do Título VI da Parte Especial do CP (crimes contra os costumes). Tal análise ainda será feita no presente item deste trabalho. 245 O Código Civil atualmente em vigor (Lei n. 10.406/2002) regula em seu art. 5º que “a menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”, exceto as hipóteses previstas no parágrafo único do referido artigo. Porém, não se pode perder de vista que o Código Civil recentemente revogado (Lei n. 3.071/16) dispunha em seu art. 9º que “aos 21 (vinte e um) anos completos acaba a menoridade, ficando habilitado o indivíduo para todos os atos da vida civil”, exceto as hipóteses previstas no mencionado artigo. Ou seja, até janeiro de 2003, o Direito brasileiro previa uma idade para a capacidade civil e outra para a imputabilidade penal. Tais observações se fazem necessárias, já que devemos trabalhar não apenas com normas positivadas (que podem ser alteradas a qualquer momento), mas sim com hipóteses e conceitos de caráter genérico. 246 Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 190.

91 Tal posição só pode ser aceita caso se compreenda o consentimento do sujeito passivo como um negócio jurídico de natureza privada, o que já foi contestado.247 Não que as normas de direito civil devam ser ignoradas, pelo contrário. Entretanto, fundamentar a idade mínima para o consentimento tão-somente no âmbito do Direito Civil significa ignorar a autonomia do Direito Penal, o que seria temerário. Necessário registrar que, a nosso ver, não há como estabelecer um parâmetro genérico com relação à idade mínima para o consentimento, como o fazem grande parte dos autores. Uma vez mais, é necessário tratar do instituto sob dois enfoques distintos: como excludente de tipicidade e como excludente de ilicitude. 4.7.2. Disposições legais expressas

Quando o dissentimento é elemento constitutivo do tipo penal, seja de forma expressa ou tácita, o consentimento torna o fato atípico.248 Antes de fixar uma idade mínima a ser considerada de forma genérica, deve-se verificar o texto da norma legal, analisando se há ou não qualquer menção com relação à idade do consentimento no próprio tipo penal. O parágrafo único do art. 126 e o art. 224, alínea a, ambos do Código Penal, tratam da questão, sendo que a primeira disposição legal mencionada o faz de forma expressa. Os arts. 124, 125 e 126 do Código Penal regulam a matéria relativa ao aborto, consentido ou não. E o consentimento, nestes casos, não é válido “se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos”, nos termos do parágrafo único do art. 126. Portanto, tratando-se de

247

Cf. Capítulo II, item 1 deste estudo, que aborda as principais teorias acerca da natureza jurídica do consentimento do ofendido. 248 Cf. Capítulo II, item 2.

92 aborto, a norma exige a idade mínima de 14 anos. Não cabem aqui quaisquer outras considerações, já que a questão foi tratada de forma direta e expressa.249 O segundo e último caso diz respeito aos Capítulos I a III do Título VI da Parte Especial do Código Penal (crimes contra os costumes), já que lá se encontram as normas que sofrem a incidência do art. 224, alínea a. Para melhor compreensão da matéria, interessantes exemplos são o estupro e o atentado violento ao pudor, previstos nos arts. 213250 e 214251 do Código Penal. A leitura das descrições típicas demonstra que o sujeito passivo deve dissentir, ou seja, discordar e demonstrar contrariedade com relação à prática do fato pelo agente. Caso o sujeito passivo profira seu consentimento, não há falar em estupro, nem em atentando violento ao pudor, por ausência de tipicidade. Dispõe o art. 224, a, do Código Penal: “presume-se a violência se a vítima não é maior de 14 (quatorze) anos”. Sobre a referida norma, lecionam HUNGRIA e LACERDA: Fiel a um tradicional critério jurídico-penal, que remonta a CARPSOVIO, o Código presume ou finge a violência, nos crimes sexuais, quando a vítima, por sua tenra idade ou morbidez mental, é incapaz de consentimento ou, pelo menos, de consentimento válido... .252

249

Já foi dito que o consentimento deve ser proferido pelo sujeito passivo, ou seja, pelo titular do bem jurídico tutelado. Ocorre que o aborto é um caso peculiar, já que o sujeito passivo de tal crime é o ser humano em formação, titular do bem jurídico vida (PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro (parte especial). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. II, p. 95). Registre-se ainda que “no crime de aborto sem o consentimento da gestante [art. 125 do CP], também ela será sujeito passivo” (COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao código penal (parte especial). São Paulo: Saraiva, 1988, v. II, p. 33). 250 Art.213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. 251 Art. 214. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. 252 HUNGRIA, Nélson, LACERDA, Romão Côrtes de. Comentários ao código penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. VIII, p. 235.

93 Presume-se a violência se a vítima não é maior de 14 anos; em outras palavras, presume-se que o consentimento dado por pessoa menor de 14 anos não pode ser considerado. Entretanto, a solução não está claramente definida pela norma, já que se trata de uma presunção (o que não ocorre na hipótese do parágrafo único do art. 126 do Código Penal). Neste ponto reside a grande dúvida. Seria presunção absoluta, sem possibilidade de prova da existência do consentimento – juris et jure; ou relativa, com a possibilidade de se demonstrar o consentimento – juris tantum? Durante décadas a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal orientava-se no sentido de ser absoluta tal presunção.253 Até que surgiu acórdão paradigma, relatado pelo Min. Marco Aurélio, admitindo a presunção relativa, e a conseqüente possibilidade de se provar o consentimento proferido por menor de 14 anos.254 Atualmente, o E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais chegou a editar o enunciado da Súmula Criminal n. 63, que dispõe: “A presunção de violência prevista no art. 224, a, do CP, não é absoluta – unanimidade”. A posição atual de nossos tribunais mostra-se correta. Pensar de forma distinta significa excluir a idéia de que o menor de 14 anos possa ter qualquer tipo de contato sexual. Neste sentido é a lição de Luiz Regis Prado: Não se pode olvidar, ainda, que a realidade social sofreu mutações em todos os níveis, inclusive no que tange ao sexo que, deixando de ser tabu, passou a ser discutido com freqüência em diversos lugares em que a criança e adolescente se encontram inseridos, de modo que não é mais possível afirmar que uma pessoa com menos de quatorze anos seja inconsciente sobre as coisas do sexo. Estabelecer-se um critério para a autodeterminação sexual de uma pessoa afronta a lógica e o bom senso, já que a partir de uma idade

253

A título de exemplo, menciona-se: HC 72575/PE – Rel. Min. Néri da Silveira – julgamento em 04/08/1995, DJ 03/03/2000, p. 60; HC 74286/SC – Rel. Min. Sydney Sanches – julgamento em 22/10/1996, DJ 04/04/1997, p. 10521; dentre vários outros. 254 HC 73662/MG – julgamento em 21/05/1996, DJ 20/09/1996, p. 34535.

94 legalmente fixada esta pode livremente decidir sobre sua vida sexual, mas se encontra proibida de fazê-lo às vésperas de tal fator temporal.255

Portanto, tratando-se de crimes contra os costumes e invocando o art. 224, a, do Código Penal, é possível considerar o consentimento proferido por menor de 14 anos, dependendo da análise do caso concreto. Por fim, conclui-se que o intérprete deve se ater às normas legais e verificar se há alguma disposição que trata da idade do consentimento. Os dois casos em que tal fato ocorre no Código Penal foram citados acima. Nas demais situações, torna-se necessário fixar um parâmetro genérico. 4.7.3. Do instituto como excludente de tipicidade – critério geral

Tratando-se do consentimento como causa de exclusão da tipicidade, a idade mínima para que ele seja considerado deve ser 18 anos. Isso ocorre porque, já que a análise restringe-se ao tipo, que é uma norma penal, deve-se fazer uma analogia com relação à idade da imputabilidade penal.256 Conforme tratado no Capítulo II, ao se analisar a natureza jurídica do instituto, quando se exclui a tipicidade do fato, toda a fundamentação encontra-se no próprio tipo, que é uma norma restrita ao âmbito do Direito Penal. Portanto, não há a menor razão para se optar por uma solução distinta.

255

Op. cit., v. III., p. 270. Já se afirmou que o indivíduo se torna imputável aos 18 anos, em consonância com o art. 228 da Carta Magna e art. 27 do Código Penal, excetuando-se as hipóteses do art. 26, também do CP. 256

95 4.7.4. Do instituto como excludente de ilicitude

No caso de o consentimento excluir a ilicitude, faz-se necessária apresentar outra solução para a controvérsia. FRAGOSO, optando por utilizar o termo antijuridicidade, diz que “antijurídica é a conduta típica contrária ao direito. Antijuridicidade é juízo de desvalor [...] que recai sobre a conduta típica, tendo em vista as exigências do ordenamento jurídico”.257 Ainda com relação ao conceito de ilicitude, afirma Luiz Regis Prado: “O elemento conceitual do delito, ilicitude ou antijuridicidade [...], exprime a relação de contrariedade de um fato com todo o ordenamento jurídico (uno e indivisível), com o Direito Positivo em seu conjunto”.258 No mesmo sentido, leciona Paulo José da Costa Junior: “A ilicitude deve ser entendida como uma relação de contrariedade entre o fato e comando normativo. Não pertence com exclusividade a nenhum ramo do direito, pois impregna todos os seus campos”.259 Por tal razão, o parâmetro a ser utilizado como idade mínima deve ser abrangente, não podendo se restringir à analogia com a imputabilidade penal (18 anos), sob pena de ferir normas de outros ramos do Direito. A ilicitude deve ser considerada com relação a todo o ordenamento jurídico.

257

FRAGOSO. Heleno Cláudio. Lições..., cit., p. 187. COSTA JUNIOR, Paulo José. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991, v. I, p. 101. 259 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao código penal – parte geral (Lei n. 7.209, de 11-7-1984). São Paulo: Saraiva, 1986, v. I., p. 195. TOLEDO apresenta o seguinte conceito: “Ilicitude é, pois, nessa linha de pensamento, a relação de antagonismo que se estabelece entre uma conduta humana voluntária e o ordenamento jurídico, de sorte a causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem jurídico tutelado”. Ilicitude..., cit., p. 8. 258

96 Já foi mencionado que o atual Código Civil coloca a capacidade para os atos da vida civil aos 18 anos (art. 5º). Portanto, atualmente não há problema algum, já que a idade para a capacidade civil coincide com a da imputabilidade penal. Mas não se pode ignorar que, caso o Código Civil de 1916 ainda estivesse em vigor, o consentimento do sujeito passivo (como causa de exclusão da ilicitude) só seria considerado caso o consenciente tivesse mais de 21 anos, conforme previa o art. 9º daquele Codex. Já que com 17 anos (ou 20, caso considerado o Código revogado) não se pode dispor de determinado bem sem assistência, não há como considerar o consentimento. Repita-se: é o Direito Civil que regula a partir de que idade pode-se dispor livremente de bens jurídicos (inclusive penalmente tutelados, caso o tipo penal não exija o dissentimento de seu titular). Necessário dizer que não se está renunciando à autonomia do Direito Penal ao apresentar tal solução. Na verdade, objetiva-se sistematizar todos os ramos do Direito ao optar pelo critério da capacidade civil (mais abrangente, em consonância com o caráter unitário do ordenamento) com relação ao instituto exercendo a função de causa de exclusão da ilicitude.260

4.8. Da representação

Tratando-se de pessoa física menor, a representação se dá pelos detentores do pátrio poder ou pelo tutor e, no caso de doença mental, se dá pelo curador. Caso o incapacitado não tenha como consentir de forma válida, é possível considerar o consentimento do seu representante? 260

Cf. Capítulo II, item 1, que aborda a ligação entre direito penal e civil ao tratar da natureza jurídica do instituto.

97 Não há problema em se admitir o consentimento do representante em nome do representado incapaz. Porém, devem ser feitas algumas considerações. Em primeiro lugar, sabe-se que a lei limita os poderes outorgados ao representante. Obviamente, o consentimento manifestado além desses limites legais não pode ser considerado. Além disso, o representante deve atender aos interesses do representado, que é o sujeito passivo. Trata-se de conditio sine qua non para a consideração do instituto. Não se pode aceitar que, mesmo no caso de um bem disponível, o representante se manifeste em contrariedade com os interesses do representado. É incontestável que o fato de ser o bem disponível não obriga que se renuncie à tutela jurídica; faculta-se ao indivíduo a renúncia a essa tutela ou não. Porém, tratando-se de representação, o consentimento só poderá acontecer se for do interesse do representado. Também não se pode ignorar os casos de representação infiel. Esta ocorre quando os interesses do representante e do representado são contrários e o representante opta por priorizar seus interesses. Para que o consentimento seja considerado, o representante deve optar pelo interesse do titular do bem jurídico, como já exposto.261 Pode-se mencionar, e.g., a situação em que os pais levam o filho a uma cirurgia com fins meramente estéticos. Assim, a doutrina entende, com acerto, que tanto o médico como os próprios pais não cometeram o crime de lesão corporal.262 Entretanto, não se nega que a hipótese de consentimento proferido por representante é de difícil caracterização. Neste sentido é a lição de ANTOLISEI:

261

Cf. PIERANGELI, op. cit., p. 134-137. Cf. Capítulo V, que aborda o efeito do consentimento nos casos de tratamento médico, com e sem finalidade terapêutica. 262

98 Si discute se in tema di consenso sai possible la sostituzione del rappresentante al soggeto titolare del diritto. A noi sembra che in linea generale debba rispondere negativamente, perché la rappresentanza è inconciliabile con il carattere personale degli interessi protetti dal diritto penale. Solo eccezionalmente, quando si tratti di un vantaggio certo, del quale l’incapace per le sue condizioni non è in grado di rendersi conto, può ammettersi la sostituzione del rappresentante (es.: consenso ad 263 un’operazione chirurgica indispensable).

Já os relativamente capazes não são representados, e sim assistidos. Para que o consentimento possa ser considerado, a vontade do assistido (sujeito passivo) deve vir acompanhada da anuência do assistente.264 Com relação à representação da pessoa jurídica, para que o consentimento justifique o crime a representação deve ficar restrita aos limites legais e contratuais (ou estatutários).265 Por fim, resta tratar do contrato de mandato. A nosso ver, o consentimento proferido pelo mandatário pode ser considerado, desde que haja algum poder especial no sentido que este possa dispor dos bens do mandante, como cláusula ad negotia para determinada situação. Caso a procuração tenha como objetivo apenas algum ato específico, que não guarda qualquer relação com uma possível renúncia a algum bem jurídico, o mandatário está impossibilitado de consentir. Neste ponto reside a importância do exame detido do instrumento de mandato, para que seja possível concluir acerca do consentimento. Caso haja alguma cláusula no sentido de ser possível a renúncia, não há razão para invalidar a aplicação do instituto em análise.

263

ANTOLISEI, op. cit., p. 289. Cf. item anterior, que trata da idade. 265 Cf. item 5 deste Capítulo, acerca da pessoa jurídica como consenciente. 264

99

4.9. Da interdição e emancipação

Segundo MIRANDA: “... sofrendo o indivíduo de alienação mental que o inabilite para o exercício da atividade civil, não podendo, assim, reger sua pessoa e bens, deve-lhe ser cassada a livre administração e disposição de seus bens pela interdição.”266 A interdição é declarada pelo Juízo Cível através do instituto da curatela.267 Com isso, torna-se o indivíduo incapaz de gerir sua pessoa e seus bens (absoluta ou relativamente, devendo ser explicitada o grau da incapacidade). Feitas essas considerações, surge o seguinte problema: seria ou não válido o consentimento de pessoa com interdição declarada? O tema é polêmico. Aqueles que – tratando-se da natureza do instituto – aceitam a teoria do negócio jurídico268 afirmam que o consentimento é inválido, uma vez que o Juízo Criminal não poderia discutir acerca da já declarada incapacidade. A nosso ver, tal corrente não se revela a mais pertinente. Segundo a lição de MIRANDA, já transcrita, a interdição inabilita o indivíduo para o exercício da atividade civil. É no âmbito do Direito Civil que os efeitos da interdição irão incidir, e não no Direito Penal. Como regula a legislação processual penal brasileira, deve-se ordenar o incidente de insanidade mental do acusado (e, analogicamente, do sujeito passivo – consenciente) quando houver qualquer dúvida sobre a sua integridade mental.269 Isso deve ocorrer mesmo que já haja interdição declarada. Neste sentido, já decidiu o E. Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais: 266

MIRANDA, Darcy Arruda. Anotações ao código civil brasileiro (parte geral e direito de família). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, v. I, p. 417. 267 Arts. 1767 e seguintes do novo Código Civil. 268 Cf. Capítulo II do presente estudo, que trata da natureza jurídica do instituto, especialmente o item 1. 269 Art. 149 do Código de Processo Penal.

100 A insanidade mental do agente deve ser aferida através de laudo médico para fins criminais exclusivos, produzido em incidente processual próprio, revelando-se imprestável, para demonstração de doença ou desenvolvimento incompleto ou retardado, o exame psiquiátrico que lastreia sentença declaratória de interdição, visto que essa possui efeitos restritos à província do Direito Civil.270

Não se pode olvidar que é possível ter ocorrido um momento de lucidez, e seria ilógico colocar impedimento para realizar essa verificação. Caso o interditado possua lucidez e consciência no momento em que decidiu e declarou o consentimento, este deve ser considerado. Afirma PIERANGELI: Destarte, ao juiz do crime compete realizar uma valoração bem diversa daquela realizada pelo juiz do cível, e, se concluir pela validade do consentimento em face de uma momentânea capacidade natural para tanto, deverá reconhecer a justificativa do consentimento do ofendido.271

Em resumo: nos casos de interdição do sujeito passivo, o juiz criminal deve ordenar o exame médico-legal sobre sua sanidade mental. Caso essa perícia não comprove o instante de lucidez, o consentimento restará viciado. Ao tratar da emancipação, expõe MIRANDA: “Cessa para os menores a incapacidade, igualmente, com a emancipação, que é uma forma prescrita em lei, visando à outorga de capacidade civil ao menor [...] antes da maioridade legal.”272 A emancipação pode ser expressa (art. 5º, inciso I, do novo Código Civil) quando o responsável assim concede, via registro público ou judicial, mas o menor deve ter 16 anos completos. Os demais incisos do referido artigo tratam da emancipação tácita.

270

Revisão Criminal n. 233.320-2, tendo como Relator para o acórdão o Juiz Audebert Delage, com julgamento realizado em 14/09/99 e publicação no Diário Oficial de 06/11/99. 271 PIERANGELI, op. cit., p. 127. 272 MIRANDA, op. cit., p. 13.

101 Tratar da emancipação implica necessariamente examinar, uma vez mais, a questão da idade do consentimento. Considerando o instituto como excludente de tipicidade, será necessário analisar se há ou não norma expressa tratando da idade, como ocorre, por exemplo, no art. 126, parágrafo único, e art. 224, a, ambos do Código Penal. Não havendo expressamente previsão legal de idade mínima no tipo penal, exigese a idade mínima de 18 (dezoito) anos, independente de emancipação. Já foi dito que o tipo é uma norma penal, devendo se fazer uma analogia à idade mínima para a imputabilidade.273 É necessário harmonizarem-se as normas de Direito Civil com as de Direito Penal. O instituto ora tratado constitui parte do objeto da teoria do delito, matéria de Direito Penal. A idade de 18 anos é o patamar da imputabilidade penal. Por isso, a analogia se faz valer para se considerar a mesma idade de 18 anos como mínima para a consideração do consentimento. Portanto, a nosso ver, exige-se 18 anos nesta hipótese, mesmo havendo emancipação anterior. Logo, o consentimento como excludente de tipicidade independe da emancipação; e exceto nos casos em que o tipo dispõe de forma distinta, exige-se os 18 anos, sem outras considerações. Tratando-se do instituto como causa de exclusão da ilicitude, é possível considerá-lo a partir dos 16 anos, havendo a emancipação.

273

Cf. item 7 deste Capítulo.

102 Isto porque, a partir do momento em que se considera a ilicitude como fundamento do instituto em análise, deve-se considerar o ordenamento jurídico como um todo unitário. Portanto, já que é o Direito Civil que determina a idade para que o sujeito passivo disponha livremente de seus bens, é nesse ramo do Direito que se encontra a idade mínima para a validade do instituto. Repita-se: jamais se estaria renunciando à autonomia do Direito Penal com tal posicionamento, mas apenas harmonizando as normas dos vários ramos do Direito, sem jamais perder de vista a unicidade do ordenamento e a autonomia do Direito Penal.

4.10. Da doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado e outras deficiências

Assim como ocorre em matéria de interdição, o presente item deve ser analisado sob o prisma da capacidade do sujeito passivo, ou seja, se ele possuía ou não discernimento e consciência do seu ato e de suas conseqüências.274 A análise do consentimento do sujeito passivo proferido por portador de doença mental, desenvolvimento mental incompleta ou retardado ou outras deficiências deve ser feita sob o enfoque do art. 26 do Código Penal. A referida norma é aplicada quando o agente possui insanidade mental, e não o sujeito passivo. Porém, a analogia a esse dispositivo é essencial para solucionar possíveis indagações, já que existe uma diferença de grau com relação à perturbação mental.

274

Para que se evite maiores polêmicas, optou-se por utilizar a expressão contida no art. 26 do Código Penal: “doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado”.

103 Em primeiro lugar, analisa-se a hipótese de o consenciente ser “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”, conforme é dito no caput do referido artigo. Neste caso, não há como o consentimento justificar o crime. A pessoa não tem consciência de seu ato, é penalmente inimputável, e não se pode considerar seu consentimento.275 Porém, pode ocorrer que, no instante da formação e exteriorização do consentimento, o indivíduo, mesmo portador de alguma deficiência mental, possua plena capacidade volitiva e intelectiva. Está-se referindo, analogicamente, à hipótese do parágrafo único do art. 26, onde, ao contrário do caput, diz: “não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato...”. Menciona-se o parágrafo único para demonstrar que, mesmo um portador de doença mental pode, em algum ou em vários instantes, ter consciência de seus atos. Ao contrário da situação prevista no caput do art. 26 do Código Penal, não se pode afirmar de plano que o consentimento não possa ser considerado. É bem possível que, em determinados casos concretos, a capacidade de determinação e entendimento da pessoa esteja plena, o que leva à consideração do consentimento como excludente. O intérprete deve se basear no incidente de insanidade mental. Caso haja dúvida sobre o estado mental do consenciente, inválido será o consentimento. Não se trata de negar aplicação ao consagrado brocardo in dubio pro reo (que deve ser considerado quando da análise conteúdo fático-probatório), mas sim de priorizar a tutela do bem jurídico, conforme previsão contida na lei penal.

275

Não se pode ignorar a possibilidade de se caracterizar a hipótese prevista no art. 20, § 1º, do Código Penal. Isto porque o agente pensa estar diante de um consentimento válido, “por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”, ou seja, lícita, pela presença do consentimento. Estaria caracterizada a descriminante putativa.

104 Com relação à surdo-mudez, deve-se considerar o art. 3º do Código Civil, especialmente seu inciso III, que dispõe: “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”. Portanto, o próprio texto legal tem a solução: o consentimento poderá ser considerando dependendo da capacidade do surdo-mudo em exprimir sua vontade. Ele só será absolutamente incapaz quando não conseguir exprimi-la. Caso contrário, não será incapaz, já que é possível detectar seu discernimento e sua vontade, o que leva à consideração do consentimento como excludente. Apresentam interesse as situações em que a deficiência psíquica decorre não de doença mental, mas de alguma outra enfermidade, como o traumatismo craniano e a arteriosclerose. PIERANGELI resume bem a questão: “É lógico que, diante de um determinado quadro clínico, a validade do consentimento será considerada com vistas ao limite da deficiência psíquica do consenciente”.276 Como exposto, a consideração do consentimento, caso haja algum problema psíquico do sujeito passivo, irá depender da análise do caso concreto. Conforme já afirmado, o exame do ato de vontade centra-se sobre o seguinte ponto: no instante da formação e exteriorização do consentimento, o indivíduo deve possuir plena capacidade intelectiva e volitiva. Caso contrário, o consentimento não poderá ser considerado. O discernimento serve como verdadeiro fundamento do consentimento do sujeito passivo.

Para mais detalhes sobre o consentimento putativo, cf. Capítulo III, item 3.2, que analisa o consentimento no Código Penal português. 276 PIERANGELI, op. cit., p.132.

105

4.11. Da embriaguez e do uso de substâncias entorpecentes

Em primeiro lugar, registre-se que não há diferença entre o uso de substância alcoólica e de entorpecente no âmbito deste estudo. O que interessa são os efeitos que o uso acarreta na consciência do indivíduo, para saber se houve algum vício em sua vontade. Uma vez mais, a validade do consentimento deve ser baseada na consciência do sujeito passivo. Isso acontece porque, a nosso ver, há necessidade do animus de consentir. Impossível aceitar um consentimento sem que haja uma verdadeira vontade naquele sentido. A subjetividade é essencial.277 Porém, a simples ingestão de uma bebida alcoólica ou de uma substância entorpecente não implica, necessariamente, a invalidade do consentimento. A conclusão deve ser baseada no grau da alteração mental produzido. Portanto, a solução em muito se aproxima das hipóteses de doença mental. É bem possível que, mesmo após a ingestão de uma certa quantidade de bebida alcoólica, o consentimento possa ser considerado. Em caso de dúvida sobre a consciência do sujeito passivo, não será possível afastar a tipicidade ou ilicitude do fato com base no consentimento.

4.12. Da incapacidade superveniente, preexistente e concomitante à declaração de vontade

A hipótese da incapacidade do sujeito passivo ser superveniente ao consentimento não apresenta maiores dificuldades. Indiscutível que o consentimento só poderá ser

106 considerado dependendo da capacidade do sujeito passivo. Se no momento em que o consentimento foi decidido e exteriorizado o consenciente era sujeito capaz, não se questiona a aplicação do instituto. Não importa que, posteriormente, torne-se incapaz, já que no momento da formação e declaração de sua vontade possuía o discernimento e a consciência no sentido de autorizar a conduta do agente, sem quaisquer vícios.278 Quando a incapacidade é preexistente a questão se torna mais complexa. Presume-se (de forma relativa) que o consentimento não poderá excluir a tipicidade ou a ilicitude do fato quando a incapacidade for preexistente. A incapacidade do sujeito de exercer o seu direito vicia a declaração de vontade. Porém, há de ser levantada uma outra questão, conforme já exposto ao se tratar da interdição, da doença mental e demais deficiências. O intérprete deve se ater ao momento exato do consentimento, ao momento da formação e da exteriorização da vontade. Caso fique comprovado que o sujeito passivo tinha capacidade para compreender a situação e as conseqüências do seu ato, não há porque desconsiderar o consentimento.279 É interessante citar o exemplo da epilepsia.280 Quando a pessoa está lúcida, ela tem plena consciência dos seus atos, não podendo ser invalidado seu consentimento. Porém, no momento de uma crise compulsiva, desaparece a capacidade e, via de conseqüência, o discernimento. A doutrina moderna coloca que o indivíduo, neste instante, é incapaz de conduta.281

277

Uma vez mais, não se pode ignorar a possibilidade da caracterização da descriminante putativa – art. 20, § 1º, do Código Penal. O agente, supondo estar diante de um consentimento válido por parte do titular do bem jurídico tutelado, pensa (de forma equivocada, por erro) estar amparado por uma causa excludente de ilicitude. 278 Cf. art. 152 do Código de Processo Penal, que trata da doença mental superveniente (o que implica suspensão do processo). 279 É necessário dizer que se trata de questão probatória. Essa prova será realizada via perícia médica, na forma prevista no Código de Processo Penal. 280 Exemplo citado por PIERANGELI. Op. cit., p. 134. 281 Cf. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios..., cit., p. 102.

107 Por fim, no tocante à incapacidade concomitante, não há como elaborar uma solução de caráter geral de abstrato. Uma vez mais, será necessário verificar, no caso concreto, a existência de capacidade intelectual e volitiva.282

282

Seria praticamente impossível a verificação no plano concreto da ocorrência de tal hipótese. Entretanto, não se pode ignorar, do ponto de vista acadêmico, a possibilidade do consenciente (sujeito passivo) se tornar incapaz no exato momento em que profere sua declaração de vontade.

108

V. OUTRAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONSENTIMENTO DO SUJEITO PASSIVO

5.1. Da atividade médica

Segundo Paulo Antônio de Carvalho Fortes, atividade médica refere-se às intervenções sobre a integridade física ou psíquica do ser humano tendo por objetivo assegurar ou restaurar a saúde, assim como melhorar o aspecto estético da pessoa com o emprego de meios adequados para tais finalidades.283

A partir do momento em que a atividade médica atinge a integridade física ou psíquica do ser humano, resta examinar o fundamento dogmático hábil a excluir o crime. A questão é polêmica, como afirma MAIWALD: ... la valoración de la relevancia jurídica del tratamiento médico es difícilmente superable en sus dificultades dogmáticas, aun cuando los distintos puntos de vista dogmáticos sólo excepcionalmente conducen a resultados opuestos. Hoy en día existe una serie de puntos de vista que pretenden dar solución a la problemática del tratamiento médico.284

Portanto, vários são as soluções apresentadas pela doutrina, seja na análise da tipicidade dos fatos, seja no âmbito da ilicitude. Diga-se ainda que o consentimento do sujeito passivo tem posição de destaque em tal análise, como coloca RAMACCI: Il problema della

283

FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. O consentimento informado na atividade médica e a resposta dos tribunais. Justiça e democracia: Revista semestral de informação e debates. n. 2, p. 185. A maioria dos autores prefere utilizar expressões como “tratamento médico-cirúrgico”, “intervenção cirúrgica”, etc. No presente estudo, optou-se pela “atividade médica”, considerando seu caráter mais abrangemte. 284 MAIWALD, op. cit., p. 344.

109 rilevanza del consenso si pone in maniera delicata nell’ipotesi del trattamento medicochirurgico.285 FRAGOSO fundamenta sua posição com base no princípio da adequação social286: Os casos de intervenção cirúrgica são em geral resolvidos como exercício regular de direito. Todavia, mais correto será reconhecer a inexistência de ilicitude nas intervenções cirúrgicas praticadas segundo as leges artis, por sua evidência adequação social, qualquer que seja o resultado.287

BETTIOL também defende que, em princípio, o fato seria atípico, mas com base na teoria social da ação.288 Já em outras situações, o consentimento do sujeito passivo afastaria a ilicitude do fato. Assim, a operação cirúrgica que obteve êxito feliz (para alguns também aquela com êxito letal ou negativo) não constitui atividade que possa ser subsumida nos limites das lesões pessoais, porque, se o cirurgião provocou também dor ou produziu amputações no organismo do paciente, a conduta empreendida se ajusta perfeitamente às exigências da ordem ético-jurídicosocial em relação à cura dos enfermos. [...] Já acenamos que em muitos casos de intervenção médico-cirúrgica se deve admitir o conceito de ação socialmente adequada, pelo que qualquer importância penal se esvai em relação ao fato a ser tomado em consideração. Mas sempre há situações nas quais o recurso ao critério da ação socialmente adequada não basta porque, dada a situação do caso concreto, dificilmente se pode afirmar que constitui a intervenção uma atividade de todo normal em relação às exigências da vida 285

RAMACCI, op. cit., p. 320. WELZEL é tida como o mentor do princípio da adequação social. Diz o autor: En la función de los tipos de presentar el “modelo” de la conducta prohibida se pone manifiesto que las formas de conducta seleccionadas por ellos tienen, por una parte, un carácter social, es decir, están referidos a la vida social ordenada. En los tipos se hace patente la naturaleza social y al mismo tiempo histórica del Derecho Penal: señala las formas de conducta que se apartan gravemente de los órdenes históricos de la vida social. Esto repercute en la compresión e interpretación de los tipos. Op. cit., p. 83. TOLEDO esclarece seu significado: “Trata-se, segundo Welzel – responsável pela sua introdução no direito penal – de um princípio geral de hermenêutica. Pode ser enunciado em poucas palavras: se o tipo delitivo é um modelo de conduta proibida, não é possível interpretá-lo, em certas situações aparentes, como se estivesse também alcançando condutas lícitas, isto é, socialmente aceitas e adequadas. [...] A ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo, porque se realiza dentro do âmbito de normalidade social, ao passo que a ação amparada por uma causa de justificação só não é crime, apesar de socialmente inadequada, em razão de uma autorização especial para a realização da ação típica”. Princípios..., cit., p. 131-132. 287 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições..., cit., p. 198-199. Ressalte-se que o autor, mesmo invocando o princípio da adequação social, fala em exclusão da ilicitude. 288 Ao tratar da teoria social da ação, TOLEDO afirma que “o mérito dessa teoria consiste em que, ao decidir-se sobre a tipicidade de uma ação, são considerados não só os aspectos causal e finalístico, mas também o aspecto social”. Princípios..., cit., p. 103. 286

110 social. [...] A doutrina hoje é quase unânime em considerar que é necessário o consentimento do paciente para proceder a uma operação... .289

Entretanto, a maior parte dos autores entende que o tratamento médico não afasta a tipicidade, mas tão-somente a ilicitude do fato assim praticado. MAGGIORE entende que a solução para a controvérsia é o consentimento do sujeito passivo. L’operazione chirurgica – a scopo curativo, diagnostico, profilattico – in quanto produce una alterazione funzionale dell’organismo ha tutti i caratteri tipici della lesione personale. Non è esatto dire che essa non implica danno perchè, al contrario, mira alla rimozione di un danno alla salute; e che, comunque, costituisce un atto senza dolo perché il chirurgico, pur avendo i caratteri oggetivi e soggettivi della lesione, è discriminato per il consenso dell’offeso, che è considerato rilevante, in vista del fine umano ed etico.290

Ainda que se possa discutir se realmente o consentimento exclui a ilicitude, a premissa apresentada é correta: a operação cirúrgica, mesmo visando a melhora do paciente, atinge sua integridade física. O fato é, portanto, típico. Retornando ao exame das causas de exclusão da ilicitude, tem-se que a maioria da doutrina invoca o exercício regular de direito, e não o consentimento, para descaracterizar o injusto. Aníbal Bruno resume a questão: É como exercício regular de direito que devem ser solucionadas duas debatidas questões da doutrina penal moderna – a da intervenção médica ou cirúrgica e a das práticas esportivas violentas. [...] O que realmente ocorre para fundamentar a justificativa é que se trata de uma atividade autorizada pelo Estado e praticada para os fins e de acordo com os meios e regras admitidas. Se o Estado reconhece, estimula, organiza e fiscaliza a profissão médica, impondo para o seu exercício especiais condições de preparação técnica e a exigência de habilitação especial, tem de reconhecer por

289

Op. cit., p. 354-355 e 403-404. Sobre o tema, cf. PIERANGELI, José Henrique. O consentimento..., cit., p. 183. MAIWALD também defende a tese da ausência de tipicidade. Op. cit., p. 347. 290 MAGGIORE, op. cit., p. 334.

111 legítimos os atos que a sua prática regularmente comporta, com os riscos a eles inerentes.291

Assim, a partir do momento em que o exercício da medicina é regulamentado, fiscalizado e até mesmo fomentado pelo Estado, pode-se concluir que eventuais danos ocorridos no exercício da medicina são justificados pelo exercício regular de direito. Entretanto, resta indagar: qual a importância do consentimento do sujeito passivo na atividade médica? Há casos em que a intervenção do profissional de saúde visa preservar a vida, que é bem jurídico indisponível.292 Dessa forma, a ausência de consentimento em nada altera a análise do caso concreto em tal hipótese. Da mesma forma, há casos em que, mesmo não existindo risco de morte, pode-se cogitar de seqüelas graves sobre a integridade física do paciente. Conforme analisado retro293, não se pode dispor da integridade física de forma a acarretar lesões corporais de natureza grave ou gravíssima. Nesses casos, o consentimento também não exercerá influência. Expõe RAMACCI: ... il trattamento medico-chirurgico è sempre illecito, quando non sussiste il valido consenso del paziente? È ovvio che questo nodo problematico viene (inevitabilmente) aggirato, perché la ricognizione dei limiti di disponibilità ha già segnalato che il bene individuale della vita e quello dell’integrità fisica sono diritti non disponibili essi non possonoo quindi formare oggeto di consenso, almeno di quello rilevante ai sensi dell’art. 50.294

291

ANÍBAL BRUNO, op. cit., t. II, p. 11-12. No mesmo sentido: LOPES, Jair Leonardo. Op. cit., p. 137-138; e SIQUEIRA, Galdino. Op. cit., p. 383 292 Cf. Capítulo IV, item 6, e ainda o item deste Capítulo, que examina a questão da eutanásia. 293 Cf. Capítulo IV, item 6. 294 RAMACCI, op. cit., p. 322.

112 Mas não é somente nos casos mencionados que a medicina trabalha. Há hipóteses em que o paciente deve ser tratado, apesar de sua patologia não necessariamente implicar risco de morte ou de lesões graves. Também há situações em que a atividade médica não tem finalidade terapêutica, como ocorre, v.g., nas cirurgias plásticas. Aqui, a relevância do consentimento adquire relevo diverso, pois, como expõe FORTES: Consentir sobre fatos ou atos que lhe digam respeito é decorrência do princípio da autonomia do ser humano, que gera obrigação de respeito à pessoa, reconhecendo nela a faculdade de tomar decisões baseadas em pontos de vista e valores pessoais. [...] O consentimento legaliza o ato do profissional de saúde ao manipular ou mesmo ao tocar o corpo de uma pessoa. [...] Na assistência à saúde tal assertiva significa que o indivíduo é quem, de forma ativa, deve autorizar propostas a ele apresentadas e não meramente assentir a um plano de diagnóstico ou de tratamento, através de atitude submissa às ordens autoritárias dos profissionais de saúde.295

Na verdade, o consentimento do sujeito passivo serve para legitimar o exercício regular de direito. Ou seja, não havendo risco de morte ou de lesões graves, o exercício de direito só será regular no caso de preexistir o consentimento do titular do bem jurídico tutelado. Acentua Délio Magalhães: Não se pode dizer que o consentimento do interessado não tenha eficácia, [...] mas, como já ficou observado, o consentimento está regulado no exercício regular de um direito. Assim sendo, a ausência de consentimento tornará a intervenção ilegítima, de vez que o cirurgião não se conduziu regularmente.296

295

FORTES, op. cit., p. 186-187. PIERANGELI também afirma: “... o que torna lícita a conduta do médico é a vontade do paciente em se submeter a um tratamento...”. Op. cit., p. 186. 296 MAGALHÃES, Délio, op. cit., p. 135.

113 Muñoz Conde, resumindo a questão, diz que o fato será lícito em decorrência do “exercício legal de um direito, em que o consentimento é tão-só pressuposto, mas não a própria causa de justificação”.297 No mesmo sentido conclui Aníbal Bruno: O fundamento da descriminação não é o consentimento do paciente. Mas a ausência de consentimento torna a intervenção ilegítima, porque, então, não haveria exercício regular de uma faculdade, mas constrangimento ilícito, que tiraria desse exercício a sua legitimidade... .298

FONTÁN BALESTRA, após fundamentar a exclusão no exercício regular de direito, também afirma: en los casos en que el paciente no está obligado a tratarse, es necesario el consentimiento del interesado. Aquí el consentimiento completa la justificante.299 Assim, tratando-se da intervenção médica, o consentimento do sujeito passivo possui o condão de legitimar a atuação do profissional em exercício regular de direito. Por fim, faz-se necessária uma observação sobre os casos de cirurgias visando a “mudança de sexo”, no caso de transexualismo. Segundo FRAGOSO, “entende-se por transexualismo uma inversão da identidade psico-social, que conduz a uma neurose reacional obsessivo-compulsiva, que se manifesta pelo desejo de reversão sexual integral”.300

297

CONDE, Francisco Muñoz. Teoria geral do delito. Trad. Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 122. 298 ANÍBAL BRUNO, op. cit., t. II, p. 13. 299 FONTÁN BALESTRA, Carlos. Tratado de derecho penal (Parte general). Buenos Aires: Glem, 1966, t. II p. 121. ALAGIA apresenta a mesma posição: Las intervenciones quirúrgicas con fin terapéutico, las ablaciones de órganos, la cirugías extractivas de tejidos, como las lesiones esportivas, sin bien exigen el consentimiento del titular, son lesiones que están gobernadas por reglas eximentes de otra naturalaza, tales como las normas que lo fomentan y rodean de garantías la lesión; por eso no serán tratadas como estrictos problemas de aquiescencia. Op. cit., p. 317. Tem-se ainda E. Magalhães Noronha: “Diga-se o mesmo da intervenção médico-cirúrgica, em que também, ao lado do consentimento do paciente, há a regulamentação da cirurgia, cuja necessidade é irrecusável, incumbindo-se o Estado de regulá-la, fiscalizá-la etc., de tudo isso se o originando o exercício regular de quem a pratica”. Op. cit., p. 214.

114 Em princípio, a cirurgia de mudança de sexo, como implicaria lesão corporal de natureza gravíssima, não estaria no âmbito de disponibilidade do transexual.301 Entretanto, como diz FRAGOSO, há situações em que a própria ciência médica recomenda a realização da cirurgia. A partir do momento que o indivíduo não consegue se conformar com seu sexo, inclusive trazendo graves conseqüências de ordem psíquica, a cirurgia passa a ter finalidade terapêutica. Para o referido autor, havendo os pressupostos do consentimento e da recomendação médica, afasta-se a ilicitude do fato. “O médico não age para causar dano, mas exatamente no sentido oposto; para curar ou minorar um mal”.302 Ressalte-se a importância dos dois pressupostos acima mencionados. Sobre o consentimento, muito já foi dito. Sobre a recomendação do profissional, afirma FRAGOSO: “Os juristas não tem competência para discuti-la e não a podem por em dúvida, particularmente se não há controvérsia”.303 Entretanto, há casos em que, abstraindo-se a discussão acerca do transexual304, a finalidade terapêutica da cirurgia envolvendo os órgãos sexuais é inconteste. Noticia PIERANGELI: Acresce observar que a cirurgia que objetiva corrigir toda e qualquer malformação congênita, inclusive, como é óbvio, as sexuais, servindo de exemplo a correção de hermafroditismo, da hipospadia (malformação congênita do pênis, em que a uretra se abre na parede inferior), hepispadia 300

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Transexualismo – Cirurgia. Lesão corporal. Revista de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, n. 25, p. 27. Segundo PIERANGELI, “a palavra transexualidade indica todas aquelas condições em que existe uma clara e insuperável oposição entre o sexo constante no registro de nascimento e o sexo psicocomportamental”. Op. cit., p. 230. 301 Esta é posição defendida por PIERANGELI. Op. cit., p. 233. 302 FRAGOSO, op. cit., p. 32. 303 FRAGOSO, op. cit., p. 32. 304 Sobre a discussão jurídica envolvendo o transexual, cf., por todos, ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000.

115 (quando a uretra se abre na parede superior do pênis), e até na massa dos testículos (testículos hipoplásticos) etc., em tais hipóteses, e em outras assemelhadas, é de se reconhecer a finalidade terapêutica da intervenção... .305

5.2. Acerca da eutanásia

Em um trabalho sobre o consentimento do titular do objeto da tutela penal, fazemse necessárias algumas considerações acerca da eutanásia.306 Em particular porque a eutanásia discute a validade do consentimento envolvendo um consenciente em estado terminal. Acerca do vocábulo “eutanásia”, esclarece Maria de Fátima Freire de Sá: Deriva do grego eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como ‘boa morte’, ‘morte apropriada’, morte piedosa, morte benéfica, fácil, crime caritativo, ou simplesmente, direito de matar. [...] Nos dias atuais, a nomenclatura eutanásia vem sendo utilizada como ação médica que tem por finalidade abreviar a vida de pessoas. É a morte de pessoa – que se encontra em grave sofrimento decorrente de doença, sem perspectiva de melhora – produzida por médico, com o consentimento daquela. A eutanásia, propriamente dita, é a promoção do óbito. É a conduta, através da ação ou 305

PIERANGELI, op. cit., p. 235-236. A presente dissertação não tem como objetivo esgotar toda a discussão envolvendo a eutanásia, o que escaparia aos limites impostos pelo objeto deste estudo. Para maiores detalhes sobre o tema, cf. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da bioética e do biodireito. biomédica: direito e medicina. Belo Horizonte: Del Rey, 2000; CANÊDO, Carlos Augusto, CHAMON JUNIOR, Lúcio. Eutanásia e dogmática penal: por uma compreensão paradigmaticamente adequada do direito penal através de uma teoria da adequabilidade normativa. Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, n. 36; CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986; FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. O consentimento informado na atividade médica e a resposta dos tribunais. Justiça e democracia: Revista semestral de informação e debates. São Paulo: Associação Juízes Para a Democracia, 1996, n. 2; HUNGRIA, Nelson. Ortotanásia ou eutanásia por omissão. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1953, n. 150; JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Libertad de amar y derecho a morir (Ensayo de un criminalista sobre eugenesia y eutanasia). 7. ed. Buenos Aires: Depalma, 1984; KAUFMANN, Arthur. Relativización de la protección jurídica de la vida? Trad. J. M. Silva Sánches. Cuadernos de Política Criminal, n. 31, 1987; MARREY, Adriano. O problema do consentimento do ofendido e a eutanásia. Justitia. São Paulo, 1963, n. 42; MENEZES, Evandro Corrêa. Direito de matar. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977; MONTANO, Pedro J. Eutanasia y omision de asistencia. 1. ed. Montevideo: Facultad de Derecho Universidad de la Republica, 1994; PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido (Na teoria do delito). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995; RODRIGUES, Paulo Daher. Eutanásia. Belo Horizonte: Del Rey, 1993; ROXIN, Claus. A apreciação jurídicopenal da eutanásia. Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, n. 32; SÁ, Maria de Fátima Freire. Direito de morrer (Eutanásia, suicídio assistido). Belo Horizonte: Del Rey, 2001; SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Transplante de órgãos e eutanásia. São Paulo: Saraiva, 1992. 306

116 omissão do médico, que emprega, ou omite, meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida.307

A eutanásia é tema dos mais polêmicos no âmbito do direito penal, eis que envolve discussões que extrapolam os limites da ciência do direito. Explica ROXIN: ... o consenso sobre o permitido e o proibido na eutanásia é dificultado por não se tratar de seara exclusiva do penalista. Nesta esfera, também médicos, filósofos, teólogos e literatos reclama para si – e com razão – o direito de ingressar no debate, direito esse cujo exercício por um lado enriquece a discussão, ao mesmo tempo em que, por causa das várias premissas extrajurídicas que, na opinião pública, advêm de ideologias ou concepções de mundo entre si contraditórias, dificulta o consenso sobre a apreciação jurídico-penal.308

Entretanto, restringindo a análise no direito penal, impõe-se a indagação sobre a validade do consentimento em situações envolvendo a eutanásia, como afirma MARREY: Quando, porém, o homicídio praticado por sentimento dessa natureza, de misericórdia ante o penar do doente, seja precedido do consentimento ou até mesmo da imploração do ofendido, insere-se no problema a questão de saber-se como, e de que forma influiria aquela anuência na responsabilidade do homicida.309

A relutância em admitir a eutanásia residiria na indisponibilidade do direito à vida. HUNGRIA, talvez o principal defensor no Brasil de tal concepção, expõe de forma enfática: O nosso legislador de 1940 manteve-se fiel ao princípio que o homem é coisa sagrada coisa sagrada para o homem. Homo res homino sacra. A supressão dos momentos de vida que restam ao moribundo é crime de homicídio, pois a vida não deixa de ser respeitável mesmo quando 307

Op. cit., p. 66-67. Sucintamente, conceitua ROXIN: “Por eutanásia entende-se a ajuda que é prestada uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou pelo menos em consideração à sua vontade presumida, no intuito de lhe possibilitar uma morte compatível com a sua concepção da dignidade da pessoa humana”. ROXIN, Claus. A apreciação jurídico-penal da eutanásia. Revista brasileira de ciências criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, n. 32, p. 10. 308 ROXIN, op. cit., p. 11-12. 309 MARREY, Adriano. O problema do consentimento do ofendido e a eutanásia. Justitia. São Paulo, 1963, n. 42, p. 8. No mesmo sentido expõe RODRIGUES: “De acordo com alguns estudiosos, consentimento e piedade são elementos que tornam lícita ou atenuam a conduta do agente; para outros não retiram o caráter delituoso em questão”. RODRIGUES, Paulo Daher. Eutanásia. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 115.

117 convertida num drama pungente e esteja próxima do fim. O ser humano, ainda que irremediavelmente apuado pela dor ou minado por incurável mal físico, não pode ser equiparado à rês pestilenta ou estropiada, que o campeiro abate. Nem mesmo o angustioso sentimento de piedade ante o espetáculo do atrós e irremovível sofrimento alheio, e ainda que preceda a comovente súplica de morte formulada pela própria vítima, pode isentar de pena o homicida eutanásico... .310

No mesmo sentido é a conclusão de MARREY: “Vai daí, que o consentimento do ofendido, no homicídio eutanásico, não pode ter qualquer eficácia, como justificativa penal, para exclusão da responsabilidade do autor do crime”.311 Entretanto, questiona-se: será que, em situações extremas e peculiares, o direito à vida seria mesmo indisponível? MONTANO levanta a dúvida: El médico está obligado a velar por la vida, la integridad física e la salud del sujeto. Pero pude llegar a considerar que hay un conflicto en su conciencia cuando se presentan cuadros dramáticos, en los que se puede sentir llamado – a veces por el propio paciente – a acortarle la vida.312

O fundamento para se conceber efeito justificante à eutanásia se encontra no art. 1°, III, da Constituição, que dispõe que a República Federativa do Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito, e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.

310

HUNGRIA, Nelson. Ortotanásia ou eutanásia por omissão. Revista Forense. Rio de Janeiro, 1953, n. 150, p. 515. Em seus “Comentários”, acrescenta o autor: “A vida é pressuposto da personalidade e é o supremo bem individual. A integridade corporal é condição de plenitude da energia e eficiência do indivíduo como pessoa natural. Tutelando esses bens físicos do indivíduo, a lei penal está servindo ao próprio interesse do Estado, pois este tem como elemento primacial a população, e à sua prosperidade não é indiferente a saúde ou a vitalidade de cada um dos membros do corpo social. E por isso mesmo que correspondem a interesses imediatos ou diretos do Estado, esses bens são inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis por parte do indivíduo. Representam o conteúdo de direitos subjetivos que a lei penal considera inatingíveis, ainda quando preceda, para seu ataque, o consentimento do subjectum juris”. HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1942, v. V, p. 14-15. Portanto, o autor nega a validade do consentimento do sujeito passivo tratando-se de eutanásia. 311 Op. cit., p. 10, negrito no original. Ressalta MARREY, em consonância com a posição de HUNGRIA: “O direito à vida e à integridade física, é indisponível, não só porque considerada divina a centelha vital, advinda de Deus e devendo ser conservada segundo os desígnios do Senhor da vida e da morte, ofendendo pois ao sentimento ético-jurídico a sua disposição ao livre alvedrio do indivíduo...”. Op. cit., p. 10.

118 Portanto, a vida humana não pode ser vista no seu aspecto meramente biológico, como afirmam CANÊDO e CHAMON JUNIOR: ... quando se diz e se refere à vida enquanto objeto de tutela, está-se com isso trazendo toda uma carga de sentido que deverá ser considerada. A vida deve ser entendida sob uma perspectiva atinente aos direitos fundamentais, significando um direito à vida mais que tutela funções biológicas, mas sim interpretada sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana... .313

Este também é o posicionamento de Maria de Fátima Freire de Sá: Como garantir a efetividade do princípio da igualdade entre pessoas sãs e sadias, que têm a vida atrelada à saúde do corpo e da mente, e aquelas que sofrem as conseqüências de doenças várias, tendo a vida, nesses casos, se transformado em dever de sofrimento? A resposta está exatamente na liberdade de escolha para os indivíduos que se encontram na segunda situação mencionada. É inadmissível que o direito à vida, constitucionalmente garantido, se transforme em dever de sofrimento e, por isso, dever de viver. Certo é que a dignidade deve aliar duas dimensões ao seu conceito: a dimensão biológica, como atinente ao aspecto físicocorporal, e a dimensão biográfica, que pertine ao campo dos valores, crenças e opções. O Direito não pode preocupar-se somente com a primeira questão, mas, ao contrário, buscar a unidade do ser humano. A indisponibilidade do direito à vida precisa ceder à autonomia daquela pessoa que se encontra na fase terminal da vida, em meio a agonia, sofrimento e limitações.314

RODRIGUES resume a questão: Não queremos [...] conclamar um direito especial de atentar contra a vida de outrem, mas sim demonstrar que, em casos bem definidos, o princípio de proteção à vida sofre a concorrência de outros interesses superiores que prejudicam a afirmação de uma eficácia absoluta.315

312

MONTANO, Pedro J. Eutanasia y omision de asistencia. 1. ed. Montevideo: Facultad de Derecho Universidad de la Republica, 1994. p. 58. 313 CANÊDO, Carlos Augusto, CHAMON JUNIOR, Lúcio. Eutanásia e dogmática penal: por uma compreensão paradigmaticamente adequada do direito penal através de uma teoria da adequabilidade normativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, n. 36, p. 76. 314 Op. cit., p. 95-96. No mesmo sentido é a lição de ROXIN: “... procrastinar de modo indefinido o inevitável processo da morte através de modernos aparelhos não corresponde à nossa concepção de uma morte condizente com a dignidade da pessoa humana”. Op. cit., p. 22. 315 RODRIGUES, op. cit., p. 76.

119 Diante de tais argumentos, é de se reconhecer que o consentimento do sujeito passivo pode excluir a ilicitude de determinado fato tratando-se de eutanásia, desde que obedecidos uma série de requisitos. Entretanto, faz-se necessário distinguir a eutanásia ativa da eutanásia passiva – conhecida por ortotanásia. Há dois elementos envolvidos na eutanásia, que são a intenção e o efeito da ação. A intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma ação, daí tem-se ‘eutanásia ativa’, ou uma omissão, ou seja, a não-realização de ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância – ‘eutanásia passiva’ ou ortotanásia. Em outras palavras, a eutanásia ativa seria uma proposta de promover a morte mais cedo daquela que se espera, por motivo de compaixão, ante o sofrimento insuportável.316

Com relação à eutanásia ativa, não há como admiti-la. Pensar de forma distinta significaria ignorar por completo à relevância do bem jurídico “vida” no ordenamento jurídico-penal. Assiste razão à RODRIGUES ao concluir: No que diz respeito à forma ativa, a eutanásia continua não sendo aceita pela legislação brasileira. [...] Ainda não alcançamos maturidade suficiente para aceitar a eutanásia ativa, pois parece-nos extremamente difícil demonstrar que, tendo o médico o propósito de libertar o paciente das dores, não há como não aceitar a idéia da morte.317

Situação distinta ocorreria no caso da eutanásia passiva.318 Nesta hipótese, não se está causando, através de uma conduta comissiva, a morte. A ortotanásia apenas evita um prolongamento do sofrimento, em situações excepcionais, através de condutas omissivas, resguardando assim a dignidade da pessoa humana.

316

SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de..., cit., p. 67. Op. cit., p. 135. ROXIN constata que “corresponde à opinião francamente dominante, ainda que não incontroversa, [...] de que a eutanásia ativa, entendida como a morte dada a alguém que está a morrer ou gravemente doente, é proibida e punível segundo o direito vigente”. A apreciação..., cit., p. 28. 318 Para ROXIN, “Fala-se em eutanásia passiva quando uma pessoa de confiança – em regra o médico e seus ajudantes, mas também, por ex., um parente – se omite em prolongar a vida que se próxima de seu fim. É o caso de se renunciar a uma operação ou a um tratamento intensivo, capaz de possibilitar ao paciente uma vida mais longa”. Op. cit., p. 18. 317

120 Neste sentido, parece pertinente a proposta de lege ferenda apresentada pelo anteprojeto da Parte Especial do CP, que teria a seguinte redação em seu art. 121, § 3°: Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.319

Entretanto, a questão não se revela tão simples. Seria necessário ainda concluir pela irreversibilidade da morte, em conclusão firmada por junta médica, a nosso ver. Sobre tal questão, expõe RODRIGUES: ... a ortotanásia é a circunstância de o doente estar incurso já em um processo que, segundo o conhecimento humano e um razoável juízo de prognose médica, conduzirá imediatamente e sem remissão à morte. O controle e tratamento deste processo é assunto médico, e tal maneira que a responsabilidade de saber quais as intervenções impostas ou permitidas durante o decurso de um tal processo deve ser, mesmo do ponto de vista jurídico, deferida por inteiro ao médico. [...] É sabido que o médico só deliberará sobre a prorrogação ou não dos meios artificiais a partir do instante em que formar convicção sobre as reais expectativas de reabilitação do paciente.320

Ressalte-se a excepcionalidade da eutanásia, por duas principais razões. Primeiramente, não se pode ignorar que a regra geral é a indisponibilidade do direito à vida.

319

RODRIGUES, Paulo Daher. Eutanásia, cit., p. 128. A redação proposta poderia sofrer algumas pequenas alterações, de forma a torná-la mais clara. Entretanto, em sua essência, a sugestão de lege ferenda se revela adequada. RODRIGUES menciona ainda que, originalmente, o anteprojeto de reforma da Parte Especial propunha uma outra redação para o art. 121, § 3°: “É isento de pena o médico que, com o consentimento da vítima, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, antecipa morte iminente e inevitável atestada por outro médico”. Op. cit., p. 127-128. Inegável que a segunda proposta revela-se mais pertinente. Conforme exposto retro, as expressões “isento de pena” e “consentimento da vítima” não se revelam adequadas tratando-se do consentimento em matéria de exclusão da ilicitude. 320 RODRIGUES, op. cit., p. 77-78. Diante de tal contexto, não se pode olvidar o art. 146, §3°, I, do Código Penal que, ao tratar do crime de constrangimento ilegal, dispõe: “Não se compreendem nas disposições deste artigo a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”.

121 Além disso, a prática indiscriminada da “boa morte” poderia acarretar, de forma velada, eugenia321 ou ainda a “eliminação de vidas indignas de viver”.322 Resta analisar, ainda que sucintamente, qual o fundamento dogmático capaz de legitimar a ortotanásia. Várias soluções são apresentadas pela doutrina.323 RODRIGUES fala em ausência de tipicidade, considerando que, em situações excepcionais, o médico não estaria na posição de garante: “Não vemos a existência de um dever jurídico do médico em optar pelo encerramento de suas atividades, quando toda a terapêutica disponível tiver sido utilizada, nada mais restando a fazer”.324 Ainda no âmbito da tipicidade, mas com enfoque distinto, afirma ROXIN: “Segundo uma opinião, a eutanásia indireta325 permitida exclui já o tipo dos §§ 212 e 216 do

321

Leciona JIMÉNEZ DE ASÚA: La palabra eugenesia proviene de dos voces griegas: eu,, que significa “bueno”, y genesia, derivada de genes, que ha dado nacimiento al verbo “engendrar”. Eugenesia es, por tanto engendrar bien. Francisco Galton, que la creó, definióla así: “El estudio de los agentes bajo control social que pueden mejorar o empobrecer las cualidades raciales de las futuras generaciones, ya fuere física o mentalmente. JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Libertad de amar y derecho a morir (Ensayo de un criminalista sobre eugenesia y eutanasia). 7. ed. Buenos Aires: Depalma, 1984. p. 4. Ainda acerca da eugenia, deve-se recordar: “Uma dessas políticas que mais marcou o início do século XX, foi aquela baseada no discurso alemão na era nazista, o qual apreciava os preceitos da eugenia tendo como objetivo maior, a seleção natural e a pureza de sangue, tornando possível se chegar à uma sociedade composto de tipos etnicamente iguais. Na Alemanha a partir de 1933, no período da 2ª Guerra Mundial, a eugenia passou do discurso à prática. Essa enquanto política oficial do Estado nazista, afetou diretamente na vida dos judeus e das minorias que não se encaixavam nos moldes do projeto que visava a ‘arianização’ da raça no mundo”. RAGUSA, Helena. A representação do judeu no discurso eugênico brasileiro no início do século XX (1920-40). Revista de História Regional. Ponta Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2001, v. VI, n. 1, p. 164-165. Sobre o tema raça e nacionalismo, cf. JIMÉNEZ DE ASÚA. Op. cit., p. 15-18. 322 “A assim chamada eliminação de vidas indignas de viver está completamente fora de qualquer forma considerável de eutanásia. Trata-se, aqui, de matar, no interesse da coletividade, pessoas capazes e com vontade de viver, mas que sofram doenças mentais incuráveis. [...] Segundo o direito vigente, uma lei que tivesse por finalidade autorizar tais homicídios seria inconstitucional e nula...”. ROXIN, Claus. A apreciação..., cit., p. 37-38. 323 Explica ROXIN: “A fundamentação traz dificuldades, porque a diminuição da vida provocada comissiva e dolosamente (ou seja, ao menos com dolo eventual) em todos os demais casos configura um homicídio (§ 212 do StGB) ou um homicídio a pedido da vítima (§ 216 do StGB). Por que aqui deve ocorrer algo diverso?”. Op. cit., p. 14. 324 RODRIGUES, op. cit., p. 139. 325 “Fala-se em eutanásia indireta quando são praticadas medidas lenitivas sobre o moribundo, apesar de poderem elas antecipar a ocorrência da morte”. ROXIN, cit., p. 13.

122 StGB326 (logo, qualquer caso de homicídio), por ser socialmente adequada e não estar compreendida pelo sentido destes dispositivos”.327 Outros autores entendem que a solução para a controvérsia se encontra na análise das causas de exclusão da ilicitude. ROXIN levanta a tese do estado de necessidade justificante: Se a eutanásia indireta é impunível, trata-se do resultado de uma ponderação determinada pela vontade paciente, em que o dever de estender a vida alheia o máximo de tempo possível cede lugar ao dever de sofrimento alheio. Uma vida pouco mais curta sem graves dores pode ser mais valiosa que uma não muito longa, plena de dores dificilmente suportáveis.328

CANÊDO e CHAMON JUNIOR, criticando ROXIN, defendem que a exclusão da ilicitude na eutanásia se baseia no estrito cumprimento do dever legal: Uma vez determinada a forma de tratamento, ao médico é exigido conduzirse de acordo com esse dever. [...] se o devido tratamento, que em razão dos riscos que lhe são próprios, levar à morte o paciente, não se tratará de estado de necessidade, mais sim de estrito cumprimento do dever legal.329

Maria de Fátima Freire de Sá fala em “legítimo exercício da medicina”330, o que leva à conclusão que se está invocando o exercício regular de direito, nos termos do art. 23, III, do Código Penal.

326

Sobre tais dispositivos do Código Penal alemão, cf. nota 41. ROXIN, op. cit., p. 14. 328 ROXIN, op. cit., p. 15. 329 Op. cit., p. 85. Continuam os autores: “Ora, uma vez estabelecida uma posição de garante uma vez necessário o consentimento do paciente – consentimento este vinculante –, configurado está um dever de agir, e não uma simples faculdade ou possibilidade como é aberta pelo estado de necessidade. É exigível do médico uma atuação cuja não-realização enseja o crime de lesões corporais. O consentimento do paciente levantado por Roxin é relevante, não a uma consideração do estado de necessidade, mas sim enquanto elemento fundamental no exercício de direito próprio e estabelecimento do dever alheio”. Op. cit., p. 85. As assertivas referem-se especificamente à “eutanásia indireta”, mas com raciocínio aplicável também à ortotanásia. Mesmo se reconhecendo os bem lançados argumentos trazidos, parece-nos que os penalistas acabaram por invocar o consentimento do sujeito passivo como causa de exclusão da ilicitude, bem como um suposto exercício regular de direito. 330 Freire de Sá, op. cit., p. 186. 327

123 Tem-se ainda a posição de JIMÉNEZ DE ASÚA. O autor, que em princípio não aceita o caráter justificante da eutanásia, levanta a possibilidade de se admitir o “perdão judicial”:331 Si no le guió al matador un motivo egoísta, si no deseaba recoger la herencia o libertarse de cuidados prolijos y fatigosos, sino que le movían causas verdaderamente piadosas y compasivas, hay, a mi parecer, un procedimiento certero de impunidad, sin dibujar en las leyes el contorna de la eutanasia. Démosle al juez facultades de perdonar. Pero no en forma de perdón legal, especialmente consignado a determinadas infracciones, sino en forma amplia y generalizada, de verdadero perdón judicial.332

Retornando ao âmbito do conceito analítico de crime, mais especificamente às causas de exclusão da ilicitude, entende-se que a justificação da eutanásia está no instituto do consentimento do sujeito passivo. Na verdade, há tipicidade na conduta daquele que se omite no dever de cuidado do paciente, já que tal fato se amolda ao disposto no art. 121 do Código Penal. Entretanto, a manifestação de vontade do sujeito passivo, titular do bem jurídico “vida”, terá o condão de excluir a ilicitude do fato. Quem se omite com base na dignidade da pessoa humana não está indo contra o Direito.

331

Nos termos do art. 107, IX, do Código Penal brasileiro, o perdão judicial, nos casos previstos em lei, é causa de extinção da punibilidade. Segundo BITENCOURT, “Perdão judicial é o instituto através do qual a lei possibilita ao juiz deixar de aplicar a pena diante da existência de determinadas circunstâncias expressamente determinadas...”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado..., cit., p. 710. Conforme exposto retro, as causas de extinção da punibilidade não se referem a nenhum dos elementos do conceito analítico de crime. Portanto, não influem no juízo acerca da ocorrência do fato-crime, mas tão-somente em sua punibilidade. 332 Op. cit., p. 436-437. A conclusão final da obra clássica de JIMÉNEZ DE ASÚA é a seguinte: Yo no niego, al contrario, lo afirmo y lo considero justo, que puesta en manos del magistrado la facultad de perdonar, no habrá juez alguno que, a pesar de tener él la ley punitiva del homicidio consentido, pronuncie una condena contra quien, lleno de piedad por el paciente y reunidos todos los móviles nobles que la más recta conciencia exige, abrevie los padecimientos de un canceroso que clama por su muerte en los últimos días de sus lancinantes angustias o de un atacado de rabia que pide la liberación de los terribles espasmos que le martirizan. No ignoro que la justicia y la piedad tienen áreas distintas; pero tampoco desconozco que la justicia transida de piedad es más justa. Op. cit., p. 438.

124 Ao contrário da atividade médica333, não há falar em exercício regular do direito de causar a morte. Considerando que a ortotanásia só estará justificada em casos onde a enfermidade for realmente grave, muitas vezes o paciente não terá condições de declarar sua vontade. Em tais hipóteses, poder-se-á inovcar o consentimento presumido.334 Neste sentido afirma ROXIN: “Se o paciente não estiver mais em condições de tomar uma decisão responsável, importa sobretudo sua vontade presumida”.335 Portanto, parte-se de uma presunção acerca da vontade do sujeito passivo, legitimando assim a conduta do agente. Ainda segundo ROXIN, Devem ser levadas em consideração anteriores declarações orais ou escritas do doente, bem como suas convicções religiosas e ulteriores opiniões, sua expectativa de vida com relação à idade e também à existência ou não de dor. Na dúvida, deve a proteção à vida prevalecer sobre as convicções pessoais do médico e dos pacientes.336

Por fim, deve-se mencionar a conclusão de Maria de Fátima Freire de Sá, que guarda consonância com a posição defendida neste trabalho: Nossa intenção não foi, de maneira alguma, afirmar, com absoluta convicção, que somos irrestritamente a favor da eutanásia e do suicídio assistido. Não. Se o fizéssemos, acabaríamos por banalizar tema tão denso, sujeito a discussões tão significativas ante sua interdisciplinariedade. Contudo, quisemos mostrar que o direito de morrer precisa ser visto como viável àquelas pessoas que só vêem a vida como dever de sofrimento, sem a mínima perspectiva de melhora de suas dores físicas e/ou psíquicas. Sendo assim, ousamos defender a prática da eutanásia passiva... .337

333

Cf. item 1 deste Capítulo. Sobre o consentimento presumido, cf. Capítulo III, item 3.2, que trata do consentimento do ofendido no direito penal português. 335 ROXIN, op. cit., p. 15. 336 ROXIN, op. cit., p. 24. 337 Op. cit., p. 186. A única ressalva à conclusão da referida autora reside no fundamento dogmático para se admitir a ortotanásia. Maria de Fátima Freire de Sá fala em “legítimo exercício da medicina”, o que leva a crer 334

125

que está invocando o exercício regular de direito para excluir a ilicitude do fato, conforme exposto retro. A nosso ver, a ilicitude estará excluída por força do consentimento do sujeito passivo.

126

VI. CONCLUSÕES

1. Utilizando terminologia técnica mais apurada, parece ser mais adequado denominar o instituto em análise como “consentimento do sujeito passivo”, e não “consentimento do ofendido”, como faz a doutrina tradicional. 2. A natureza jurídica do consentimento do sujeito passivo deve ser analisada no âmbito da dogmática jurídico-penal, e não na filosofia do direito. 3. Em matéria de natureza jurídica, o consentimento do sujeito passivo possui dupla função no âmbito da dogmática penal, a saber: a) quando o dissentimento do sujeito passivo for elemento constitutivo do tipo penal, o consentimento exerce a função de excludente da e tipicidade; b) o consentimento do sujeito passivo, em determinadas hipóteses, exerce função de excludente de ilicitude não-codificada. 4. O consentimento do sujeito passivo não se confunde com institutos de direito processual penal. 5. No Brasil, o Código Penal Republicano (1890) e a Consolidação das Leis Penais (1932) foram os únicos textos legais a prever expressamente o instituto. 6. Legislações estrangeiras optaram por codificar o consentimento do sujeito passivo, como ocorre, e.g., no caso da Itália e de Portugal.

127 7. Propõe-se, de lege ferenda, que seja incluído um quarto inciso no art. 23 do Código Penal, positivando assim o consentimento do sujeito passivo. 8. Qualquer declaração de vontade viciada implica a invalidade do consentimento. A declaração de vontade deve corresponder à vontade real, além de originar-se de uma verdadeira representação da realidade. 9. O consentimento só poderá ser considerado como excludente de tipicidade ou de ilicitude quando o agente tiver conhecimento do ato de vontade proferido pelo titular do objeto da tutela penal. 10. O consentimento deve ser perceptível, reconhecível, não podendo restar quaisquer dúvidas sobre sua existência e seu conteúdo. Assim, também pode ser proferido sob a forma tácita. 11. O consentimento não pode ser proferido após a realização do fato típico. 12. A pessoa jurídica, titular de bens jurídicos penalmente tutelados, pode proferir seu consentimento em determinadas hipóteses. 13. A disponibilidade do bem jurídico penalmente tutelado é requisito indispensável para que o consentimento possa exercer a função de excludente de ilicitude de determinado fato. 14. Não há como fixar um parâmetro genérico que estabeleça uma idade mínima para a validade do consentimento. 15. Mesmo havendo interdição declarada pelo Juízo Cível, necessita-se do incidente de insanidade mental do sujeito passivo para que se conclua se o consentimento foi proferido em um momento de lucidez.

128 16. Sendo o sujeito passivo inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, seu consentimento não poderá ser considerado. 17. Dever-se-á proceder ao incidente de insanidade mental quando o sujeito passivo não for inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 18. O exercício regular de direito exclui a ilicitude das lesões causadas pela atividade médica. Entretanto, não havendo risco de morte nem de lesões corporais graves, o exercício de direito só será regular caso preexista o consentimento do sujeito passivo. 19. Considerando que a Constituição da República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, em algumas hipóteses é possível dispor do direito à vida. Assim, em situações excepcionais, o consentimento do sujeito passivo, ainda que presumido, exercerá a função de excluir a ilicitude no caso da eutanásia passiva.

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VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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