Sobre o consentimento: sentimentos partilhados conferem legitimidade em processos de representação política?

May 23, 2017 | Autor: Mateus Fernandes | Categoria: Legitimacy and Authority, David Estlund, Representação Política
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Sobre o consentimento: sentimentos partilhados conferem legitimidade em processos de representação política?

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA – IH/FIL SEMINÁRIO TEMÁTICO ESPECIAL: ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA PROFESSOR: CLÁUDIO ARAUJO REIS

ALUNO: MATEUS BRAGA FERNANDES MATRÍCULA: 09/0015461 CURSO: MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA POLÍTICA SEMESTRE: 1º/2009

INTRODUÇÃO “Somente poderia ser democrática uma sociedade na qual ninguém fosse tão pobre a ponto de ter de vender-se a si mesmo e ninguém tão rico a ponto de poder comprar o outro”1. Rousseau.

Ao propor e investigar um “framework filosófico” para a autoridade democrática, David Estlund se depara com o atual problema da formação e da manutenção da autoridade em ambientes “democráticos”, que podem ir da tirania absoluta ao governo mínimo. Seu projeto de “proceduralismo epistêmico” (epistemic proceduralism) pretende fazer convergir os ganhos obtidos pela aposta na democracia e pela sustentação de algum liberalismo. E, mais ainda, este autor se detém nos possíveis ganhos epistêmicos de tal convergência. Assim, tomando as palavras de Benhabib, poderíamos afirmar que sua proposta também pretende transcender “a oposição inflexível entre teoria liberal e teoria democrática”2. Neste ensaio, pretendo observar “a velha dicotomia entre a ênfase liberal nas liberdades e direitos individuais e a ênfase da teoria democrática na deliberação coletiva e na formação da vontade”3, sob o signo da autorização e do consentimento em processos de representação política. Ao que me parece, esta etapa do jogo democrático precisa ser mais bem esclarecida e compreendida para que se possa, efetivamente, transcender a dicotomia e, mais ainda, sugerir a opção de uma democracia representativa – seja ela deliberativa, comunicativa ou outra – não mais como um “second best”, mas como um caminho que apresenta mais ganhos e menos prejuízos, tanto epistêmicos quanto político-sociais. Assim, parece ser o caso de se confirmar o aspecto positivo – e desejável – da representação à luz da mescla conceitual entre autoridade e liberdade, entre representação e participação, entre o igual direito de consentir4 e o igual poder de decidir.

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Apud BENHABIB, 2007. p. 76. BENHABIB, 2007. p. 64. 3 IDEM, Ibidem. 4 Para Bernard Manin, de quem tomei a expressão, a distinção é, especificamente, entre o “igual direito de consentir” e a “igual chance de exercer funções de governo”. Cf. ARAUJO, 2009. p. 49. 2

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Para Estlund, o “proceduralismo epistêmico” – uma proposta focada em procedimentos democráticos que garantam ganhos epistêmicos nas tomadas de decisão – “é uma resposta sobre, entre outras coisas, o quanto leis produzidas democraticamente podem ser impositivas5 (authoritative) e legítimas”6. O conflito surge exatamente da idéia, liberal, de que “nunca estamos sobre a autoridade de outra pessoa a menos que tenhamos consentido estar”7. Sua proposta para enfrentar essa questão é a de um “consentimento normativo” e, para este ensaio, o desafio será, também, o de buscar respostas à dúvida sobre se sentimentos partilhados podem conferir legitimidade em processos de representação política; ou, em outras palavras, se o consentimento favorece a legitimação da autoridade de um representante. Admitirei, portanto, que ademais da autoridade que alguém possa ter ou conquistar a partir do consentimento, declarado ou não8, ainda teríamos de enfrentar a questão sobre a legitimidade (para a ação) de uma dada representação. Assim, parece ser na busca por legitimidade – e não somente por autoridade – que a representação se faz e se afirma, configurando aquilo que chamaremos9 de “círculo hermenêutico” da legitimação para a representatividade. Inseridos neste círculo, precisaremos saber se a reiterada partilha de sentimentos e a comunicação sobre os entendimentos diversos acerca deles são procedimentos suficientes para o que Estlund chama de “consentimento normativo”, e para a autoridade advinda dele. Em resumo, irei apresentar estas idéias em três partes que, apesar de não se constituírem como passos metodológicos, estão de alguma forma interligadas. Na primeira parte, esboçarei algumas críticas de Estlund sobre a atual teoria do consentimento, que trata de explicar a autoridade. Veremos alguns aspectos positivos, para a representação política, da idéia de consentimento que autoriza o representante e, mais ainda, que cria a própria “representatividade”. A conclusão dessa parte inicial – a 5

Optei traduzir o termo “authoritative” como “impositivas” por julgar sugerir melhor o aspecto controverso de uma lei “vinculante”, que não admite questionamento ou que faz o questionamento ser nulo por sua força. Poderia optar pela palavra “peremptórias” como outra possível tradução, embora esta não carregue em sua etimologia a idéia de “imposição” e sim a de “decisão final”. Compreendo que, por mais que uma decisão seja “impositiva”, ela é sempre “temporária” ou “parcial”. Todas as traduções das citações de Estlund serão livres e feitas por mim. Em alguns casos, como neste, apresentarei alguma justificativa para as escolhas dos termos, que seguirão, entre parêntesis, como no original. 6 ESTLUND, 2008. p. 117. 7 IDEM, Ibidem. 8 Estlund, na verdade, distingue entre consentimento normativo e consentimento real (actual) e, embora não deixe claro, entendo que “oportunizar consentimento” é, com efeito, “criar oportunidade para a declaração de consentimento”. 9 Esta idéia foi proposta por Benhabib em “Situating the self” e brevemente repetida em BENHABIB, 2007. pp. 66-67. É possível encontrar uma de suas origens nos escritos de H.G. Gadamer e, em particular, no “Verdade e Método I”.

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autoridade de um representante tem relação com sua representatividade – nos levará, na segunda parte, a fazer um parêntesis sobre as noções de “razão pública” e de “consentimento como partilha de sentimentos”. A apresentação de algumas breves anotações finais sobre o círculo que se faz entre a autorização, que envolve autoridade e representação, e o reconhecimento, que envolve consentimento e legitimidade, será o conteúdo da terceira parte.

AUTORIDADE E REPRESENTAÇÃO Como dito acima, o ideal liberal de liberdade individual pode apresentar-se como um problema, senão como um constrangimento, ao interesse da teoria democrática em fazer das decisões coletivas (da maioria, por exemplo) imposições morais aos indivíduos. De alguma maneira, este também é o clássico problema da passagem do coletivo ao individual, do geral ao particular. As maneiras de se lidar com este problema, quando na filosofia política, é que se têm mostrado diversas e pouco convergentes – em geral pelo forte caráter idealista ou normativo de suas propostas10. Para compreender melhor o problema, deve-se não só lançar mão de alguma definição de autoridade. Deve-se arriscar em qualificar os limites das liberdades individuais frente ao coletivo; ou, pelos menos, frente aos procedimentos democráticos. Neste sentido, é de se destacar o apelo moral que Estlund faz quando apresenta sua definição de autoridade, tomada em sua forma de Joseph Raz: “Por autoridade eu quero dizer o poder moral de requerer ação”11. Assim, a preocupação de Estlund passa pela necessidade de termos algum escape à obrigação moral quando, por algum motivo, não consentimos com a requisição de ação. Entretanto, admitir e criar condições para este “escape”, por qualquer motivo, pode dar margem à perda completa de autoridade, pela carência de legitimidade – o que é particularmente perigoso no caso de uma autoridade democrática que, por variados motivos, pode se apresentar intencionalmente frágil, embora potencialmente constrangedora. Assim, se o “poder” de recusar o consentimento – que poderíamos inicialmente entender como o poder de veto – não pode ser abusivamente praticado, que critérios adotaríamos para saber quando devemos “anular” um não-

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Poderíamos pensar, nesse sentido, em Hegel e em Kant. ESTLUND, 2008. p. 118. grifo meu.

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Sobre o consentimento: sentimentos partilhados conferem legitimidade em processos de representação política? consentimento, do pronto de vista do procedimento democrático12? Para Estlund, este caso, em que “a nulidade do não-consentimento significa que a situação da autoridade permanece como se o não-consentimento não tivesse ocorrido”13, nos mostra que é possível que mesmo um não-consentimento pode ser encarado, sob certos aspectos, como se um consentimento tivesse sido dado. E tal mecanismo deve ser usado com moderação: apoiado sobre o que Estlund chamará de teoria do “consentimento normativo”. Se parece claro e sem disputa o fato de que, “sob certas condições, consentimento pode estabelecer autoridade”14, o problema neste momento, portanto, é a possibilidade de não existir autoridade sem consentimento. Este seria o problema da idéia moderna de “liberdade natural”; de que nascemos livres e de que, com isso, tanto seria errado permitir que outras pessoas interferissem em determinadas atividades particulares quanto seria insensato admitir que me encontro, por natureza, sob a autoridade de alguém, exceto na circunstância de eu aceitar esta autoridade15. A igualdade advinda de uma “natureza livre” partilhada, embora atraente, traz alguns dilemas para a filosofia política. O igual acesso à liberdade natural precisa admitir que tanto são livres aqueles capazes de governar quanto aqueles que são governados. Se este princípio não consegue se sustentar – por razões que podem ir do impedimento da governabilidade, pelo abuso do veto, ao bloqueio total das liberdades individuais, pelo autoritarismo – têm-se uma diferenciação na idéia (ateniense) de igualdade16. Ou seja, se todos são iguais por princípio, todos devem estar igualmente sujeitos ao governo17 – seja como governadores, seja como governados. A confiança na plena capacidade de exercício do governo (por todos e por 12

Embora Estlund faça a opção por não tratar especificamente, neste capítulo VII, de procedimentos democráticos, preferindo tratar da autoridade política em termos gerais, iremos conduzir a exposição como se tratássemos de um sistema democrático. 13 ESTLUND, 2008. p. 117. 14 ESTLUND, 2008. p. 119. 15 ESTLUND, 2008. pp. 119-120. 16 A questão da igualdade democrática pode ser percebida e definida de diversas maneiras, seja histórica ou analiticamente. Aqui, pelo menos duas são possíveis: i) a igualdade diz respeito à partilha de poder e à equivalente possibilidade de decidir; ii) a igualdade diz respeito à distribuição de oportunidades e à equivalente justiça. Contemporaneamente, a discussão sobre a igualdade (e a diferença), ao mencionar e optar pelo aspecto da justiça, poderia se realizar mais no reconhecimento (da igualdade e da diferença) que na mera redistribuição (de poder). Fraser e Young são duas autoras que traçam estes caminhos. Também pode ser relevante observar a discussão, feita a partir de Estlund, sobre “justiça” (justice) e “justeza” (fairness). Há que se saber, entretanto, se efetivamente ainda restaria alguma conexão entre a distinção (provocada pelo reconhecimento da diferença) e a aristocracia (fundada no governo dos “melhores diferentes”), ao se incluir critérios de justiça (ou “justeza”) nos processos democráticos. Cf. FRASER, 2001. e ESTLUND, 2008. 17 Ao se tratar de dois tipos de democracia diferentes – a democracia direta ateniense e a democracia representativa contemporânea – pode-se fazer alguma confusão com os termos usados. Neste caso, sugerimos que se leia, sem muito prejuízo conceitual, “governo” como “representante” ou como “representação”. A este respeito, cf. também nota 25.

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qualquer um) era condição para o feito ateniense de escolher o sorteio como método privilegiado para a composição dos magistrados e dos colegiados. Dessa maneira, os atenienses conferiam legitimidade ao governo escolhido por sorteio, pois consentiam com a autoridade daqueles que governavam – e, talvez, até mesmo porquanto soubessem que esse momento seria provisório. A discordância18 frente a um determinado governo, ainda que possível, não deveria indicar descrédito em sua autoridade – o que implicaria carência de legitimidade. Um não-consentimento à autoridade de um governo escolhido19 democraticamente (ou seja, por sorteio, no caso ateniense) poderia ser visto como nãorazoável ou desqualificado (para empregar termos atuais de Estlund20). A partir do que foi exposto, pode-se notar que se trabalha com o conceito de autoridade de maneiras muito distintas e, em particular, sem considerar o “tempo” como variável importante. O contexto em que são tomadas decisões – que constrangem ou que ampliam a “liberdade natural” de governantes e de governados – deve levar em conta não somente o procedimento adotado, mas também o “prazo de validade” das decisões tomadas. Afinal, a desconfiança de Estlund de que não exista autoridade sem consentimento – como imaginaram os liberais – se fortalece num ambiente em que autoridades diferentes (sob a forma de governantes, de legisladores, de técnicos) atuam sob variáveis temporais bastante distintas. Ao que parece, precisaríamos compreender diferentes tipos de autoridade política para notarmos que qualidades de consentimentos se fazem necessárias e, mais ainda, que critérios poderíamos adotar para anular ou desqualificar não-consentimentos21.

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É obviamente questionável dizer que em graus absolutos de discordância poderia ainda haver “crédito” na autoridade do governo. Entretanto, não sei dizer ao certo qual é o grau máximo de discordância que ainda sustentaria a legitimidade de sua autoridade e, por não ser este o escopo deste trabalho, não discutirei mais profundamente a questão. Pode-se buscar alguns outros argumentos no texto quando discuto a “base moral comum”, na nota 39. 19 Apesar de não ser o objetivo principal deste trabalho traçar uma leitura das formas democráticas de escolha, indicaremos ao longo do texto nosso entendimento de que “escolha” tem a ver com “autorização (de mandato)” antes da representação, ao passo que queremos ter a opção de poder fazer também uma escolha post factum, que nos parece ter a ver com “reconhecimento” ou “satisfação de interesses (formados coletiva ou individualmente)” e, inicialmente, parece favorecer ainda mais a accountability e o advocacy durante a representação. Deve haver, portanto, outras formas democráticas de escolha para além do sorteio e do voto. 20 ESTLUND, 2008. passim. 21 Embora Estlund não seja claro sobre o real significado de “non-consent”, haveria duas possibilidades para traduzirmos o termo: “não-consentimento” e “ausência de consentimento”. A primeira possibilidade enfatiza a negação – a expressão (declarada ou não) de desacordo. A segunda, por outro lado, indica uma lacuna – e não nos permite saber se houve oportunidade de acordo. Na nota 6, do cap. VII de seu livro, Estlund diz que “you cannot consent without realize it”, o que entendemos ser uma indicação de que a melhor opção é traduzirmos “non-consent” por “não-consentimento”, já que tanto o consentimento quanto o não-

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No momento em que “governar” passa a se aproximar mais das funções de “legislar” e de “administrar” um Estado, o ato de ser um representante tem menos relação com a redistribuição do poder político – fundada em princípios como a “identidade” e a “rotatividade” – e passa a ser uma função específica e técnica, para a qual o sujeito deve ter aptidão ou habilidade. Restará ao ideal de liberdade – transfigurado no ideal liberal – o mero controle, por meio da autorização (p. ex. por meio do voto), da autoridade dos governantes, e não mais o exercício da autonomia, por meio de formação de interesses e de reconhecimento de representantes (p. ex. por meio da criação de, e participação em, movimentos sociais). Restará ao cidadão livre a escolha daqueles mais adequados aos seus interesses – e não necessariamente o reconhecimento22 daqueles que constante e distintamente “provam ser os melhores” representantes. Neste ponto, notamos que tudo aquilo que poderia haver de positivo na idéia de “distinção” do ideal aristocrático23 é convertido negativamente em “adequação”. A eleição, como é feita atualmente, levaria então ao caráter eminentemente pessoal (ou privado) da representação política, como ressalta Novaro24, o que a distanciaria do caráter exemplar (ao modo kantiano) que poderia ter tido na Grécia antiga25. Não parece estranho notar, portanto, que as democracias complexas devam ter, no privilégio do sufrágio universal, somente um de seus pilares. O que pretendo abordar neste texto é justamente o mecanismo que pode – para além da autorização periódica, advinda do voto direto, que favorece de modo um tanto incipiente a prestação de contas e o controle social – fazer surgir outras formas de legitimação da autoridade. consentimento devem ser resultados da compreensão. Ou seja, a mera falta da expressão de consentimento não deveria ser entendida como consentimento. Neste caso, portanto, “calar” não é deveria ser “consentir”. 22 É notável a distinção apresentada por Nancy Fraser para os termos “redistribuição” e “reconhecimento”. Sabendo das dificuldades em adaptar tais termos para o uso que hora se faz, opto por arriscar usá-los como convite à reflexão futura. Cf. FRASER, 2001. 23 A distinção que poderia nos remeter à idéia de aristocracia não é a do tipo que posiciona os diferentes (representantes e representados) em posição de desvantagem de um com relação ao outro. Tal relação acarretaria na diminuição de sua autonomia, fato que não desejamos. Ao contrário, vemos que o reconhecimento desta diferença poderia permitir a identificação da necessidade da presença desta “nova” (reconhecida) perspectiva, muito embora a tensão entre as opções políticas que articulam esse reconhecimento seja mantida e possa permanecer irredutível. Novamente, uma teoria política da diferença poderia nos ajudar a analisar estes aspectos com mais atenção. Cf. FRASER, 2001. 24 ARAUJO, 2009. p. 52. 25 Embora saibamos que pode não fazer sentido falar em “representação política”, tal como utilizada pelos autores citados, na Grécia antiga, pretendemos forçar a comparação entre o aspecto exemplar e o aspecto particular da representação para destacar suas diferenças e distâncias. Araujo, por exemplo, destaca que “é muito discutível que os gregos conhecessem sequer a idéias de soberania”, da qual irá derivar, modernamente, o conceito de representação. Por reconhecermos, com Pitkin, que a representação tem relação direta com a ação e o julgamento – e, portanto, com a participação, mantemos como possível a proposta de comparação da representação moderna com a idéia de uma representação na antiguidade.

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Poderíamos distinguir, inicialmente, duas formas de legitimidade durante processos políticos: a legitimidade do “poder de decidir” do representante e a legitimidade da “representação”26 do representante. A primeira forma diz respeito ao quão razoável e imperativa é a “força da lei” surgida da tomada de decisão. O fato de uma decisão implicar o consentimento dos “representados” sugere que tanto maior for a “força” de uma decisão – seja para o bem, no caso de uma lei que gere benefícios “universais”, seja para o mal, no caso de uma lei que imponha restrições coletivas – mais esforço deverá ser empreendido para “desqualificar” ou “qualificar” o não-consentimento27. A segunda forma distingue a representação, per si, pois se pode encarar a legitimidade de um representante como a escolha feita por alguma maioria de representados ou como o reconhecimento do representante, pelo consentimento “post factum” de potenciais representados. A legitimidade dada pela autorização majoritária é exatamente o caso atual de representantes escolhidos por representados efetivos, por meio, por exemplo, de eleição. O segundo caso, que interessa particularmente neste texto, privilegia outras formas de escolha28, fundadas no reconhecimento29, que não se limitam a “autorizar” o mandato futuro (seja ele do tipo vinculado ou livre), mas sim buscam compreender os atos de decisão de potenciais representantes dentro da satisfação de interesses30 de potenciais representados. Entretanto, vale frisar que partilhamos do pressuposto de Benhabib quando afirma que, apesar de os “representantes potenciais” nos levarem a tratar de maneiras distintas as variadas formas de participação política e de tomada de decisão, feitas a partir do consentimento – entendido como diferente da autorização de mandato – “isso não significa que a conseqüência única, ou mesmo a mais desejável, de tais processos de deliberação pública deva ser a legislação

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Queremos dizer, nesta parte, com a “legitimidade da representação” simplesmente “representatividade”. Embora Estlund afirme que “não-consentimentos qualificados e não-consentimentos desqualificados poderiam produzir condições morais diferentes”, poderíamos considerar ambas as situações, neste ponto, da mesma maneira. Cf. ESTLUND, 2008. p. 123. Por não ser o interesse principal deste texto, não examinaremos mais detidamente esta questão e nem suas conseqüências. 28 Tratei desse tema, de alguma maneira, na nota 19. 29 Poderia tratar com mais cuidado da idéia de que este reconhecimento, para ser efetivamente distinto da autorização majoritária, não deve ser necessariamente qualificado por números absolutos que formam alguma maioria. Talvez, nem mesmo se deva falar em números relativos, já que este reconhecimento é tanto real quanto virtual, é tanto atual como potencial. O reconhecimento de algum representante não precisa ter relação direta com o fato de tal representante representar meus interesses ou minha identidade e, portanto, poderia representar “maiorias minorizadas”. De todo modo, este não é o interesse principal deste trabalho. 30 Na mesma intensidade com que podem ser variáveis os interesses dos potenciais representados, podem ser provisórias as decisões dos representantes. Apesar de esta possibilidade exprimir alguma fragilidade dos processos decisórios fundados neste tipo de representação, nota-se que ela também pode sugerir o fortalecimento da participação e de uma “política do reconhecimento” e, por isso, faço uma apostar nessa idéia ao longo deste texto. 27

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Sobre o consentimento: sentimentos partilhados conferem legitimidade em processos de representação política? geral”31. Assim, poderíamos ilustrar este caso a partir da explicação de Benhabib sobre a tentativa, empreendida por John S. Dryzek, de traduzir a teoria normativa da democracia deliberativa em uma realidade político-institucional: Dryzek define “arranjo discursivo” como “uma instituição social em torno da qual as expectativas de vários atores convergem. Portanto, o arranjo discursivo tem um lugar nas consciências intencionais dos atores como um lugar para a interação comunicativa recorrente entre eles. Os indivíduos devem participar como cidadãos, não como representantes de um estado ou qualquer outra corporação e corpo hierárquico. Nenhum indivíduo interessado deve ser excluído... O foco da deliberação deve incluir as necessidades e interesses individuais ou coletivos dos indivíduos envolvidos, mas não deve ser limitado por eles... No interior do arranjo discursivo não deve haver hierarquia de regras formais, ainda que o debate possa ser governado pelos cânones informais do discurso (...)”.32

O que tento trazer com esta passagem é justamente a dificuldade – mas também a potência – de se pensar a legitimidade de tais decisões e, principalmente, de como elas poderiam ser “representadas” em distintas esferas públicas de deliberação. É notável, portanto, que a mesma fragilidade que se percebe na constituição destes arranjos discursivos – por exemplo, a desconsideração de que tais “cânones informais do discurso” excluem, atualmente, a diferença: são sexistas, racistas, classistas – pode conferir algum vigor às decisões tomadas “fora” dos espaços formais e tradicionais de representação política exercidas por autorização de mandato. O modo como se processa o “consentimento normativo”, em tal caso, nos parece ser o principal aspecto a ser estudado a partir do framework proposto por Estlund, já que “a teoria do consentimento normativo da autoridade se fundamenta grandemente nas razões que fariam ser errado não consentir à autoridade”33. Assim, arriscaria afirmar que esta teoria defendida por Estlund pode ser, de algum modo, a teoria da confiança na autoridade que, por um procedimento que privilegia a partilha de sentimentos e seus conseqüentes ganhos epistêmicos, tal como expus ao longo do texto, invoca como erro moral a possibilidade de não-consentimento à autoridade surgida de atos “recursivos” e “hermenêuticos” de consentimento. A impressão final é que, se há um alto grau de confiança na autoridade, proporcionado pelo proceduralismo epistêmico, então a tendência de privilegiar as decisões coletivas – ou seja, a autoridade legítima e representativa –, embora não impeça o desacordo e o conflito, favorece este “arranjo discursivo” de que fala Dryzek. 31

BENHABIB, 2007. pp. 74-75. DRYZEK, John. Discursive democracy: politics, policy and political science. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 43. Apud BENHABIB, 2007. p. 78. 33 ESTLUND, 2008. p. 123. 32

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Acredito que, a partir de um resumo das idéias principais mencionadas até agora, possa tentar cumprir a promessa feita na introdução, de concluir que a autoridade de um representante tem relação com sua representatividade. E, neste caso, a idéia de representatividade se aproxima em muito do que poderíamos entender a partir de sua legitimidade para agir. Desse modo, a autoridade não seria somente a liderança que tal representante exerce, mas ainda alguma coisa a mais. Antes, porém, de apresentar algumas diferenciações que Estlund faz para enfatizar que a autoridade deve ir além da mera liderança, mesmo em contextos em que se é moralmente exigido a consentir com ela34, devo indicar mais precisamente o que este autor entende por legitimidade: “é a permissibilidade de executar ordens coercitivamente”35. Novamente, o ponto importante é a justificação de tal permissibilidade, e não necessariamente o modo como se executam comandos, já que Estlund não crê que, em realidade, possa haver alguma situação em que não haja algum tipo de autoridade presente – e a autoridade traz consigo a exigência de ação, a possibilidade de coação. Em outras palavras, a legitimidade não poderia se fundar em somente questionar a amplitude da coação exercida, mas, antes, no reconhecimento da justificativa36 de sua ação. Voltemos então ao ponto de resumir o que é a autoridade para Estlund e de como ele a distingue de liderança: Autoridade, pelo que eu entendo como o poder moral de exigir ação, pode, em princípio, ser estabelecida mesmo sem uma justificação aceitável em geral, se o consentimento normativo (o dever moral de consentir à autoridade se houver oportunidade) estiver presente.37

A autoridade, dessa maneira, cria um “dever-obedecer”, ao passo que a liderança mantém-se como um “dever-seguir”. Ou seja, deve-se seguir o líder porquanto se julgue que ele esteja correto, de acordo com nossos juízos ou com o contexto. Para Estlund, a 34

Na última parte do capítulo VII, Estlund apresenta algumas dessas situações sob as alcunhas de “teoria da tarefa urgente” e “teoria da contribuição justa”. Ambas as situações, para ele, estão sob o “guarda-chuva” da teoria do consentimento normativo, embora afirme que alguns dos argumentos estão fundados em exercícios de “liderança” e não de “autoridade”. Como se pode observar nas definições que apresento, a partir de Estlund, uma autoridade tem alguma relação com a justiça e com o reconhecimento, ao passo que a liderança se vincula com o “autoritarismo” ou com um poder provisório dado por alguma situação emergente (como, nos casos citados, uma “tarefa urgente” ou um “arranjo cooperativo” desproporcional). 35 No original: “legitimacy is the permissibility of coercively enforcing commands”. Cf. ESTLUND, 2008. p. 134. Poderia tentar outras traduções melhores, já que a utilização de termos dúbios dificultou bastante a escolha por alguns dos termos, embora julgue que a forma adotada não impede o amplo entendimento. 36 Sobre esta justificativa, Estlund argumenta que “no justification for coercion can succeed if it relies on doctrines that qualified views could reject”. Obviamente ele não trata, em particular, de quais seriam estas visões e de como “qualificá-las”, embora este não seja um ponto tão relevante para a força propositiva do argumento. Cf. ESLUND, 2008. p. 134. 37 ESTLUND, 2008. p. 134.

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autoridade, mesmo sujeita a falhas, é assegurada pelo consentimento (normativo e, possivelmente, real38) proveniente do processo. Assim, a autoridade “sobrevive” tanto a possíveis erros em seus resultados quanto a divergências nos juízos (p. ex. divergências sobre a prioridade de execução de ações), porque se fundamenta também em uma base moral39 – o que se pode entender como “sentimentos partilhados”. E vale lembrar que esta autoridade “não é interferência coercitiva40 nas suas escolhas. É apenas a imposição de deveres”41. Finalmente, o dever (normativo) de consentir à autoridade é tanto maior quanto maior for o “valor epistêmico” desta autoridade – o que assegura que o preceduralismo proposto por Estlund seja efetivamente epistêmico.

RAZÕES PÚBLICAS E SENTIMENTOS PARTILHADOS Tentarei, neste breve parêntesis, elucidar minha escolha pela partilha de sentimento, embora não desconsidere que a comunicação racional de justificações seja parte relevante no processo político-comunicativo da democracia. A primeira intuição é de que são os sentimentos, como expressões inacabadas dos juízos, desejos, histórias e impressões particulares42, as melhores “ferramentas” para notarmos como convergem os interesses e 38

A este respeito, Estlund observa que “actual consent is not required for authority, though it might be sufficient if it were present”. Cf. ESTLUND, 2008. p. 134. 39 Penso que é possível, grosseiramente, compreender aquilo que Estlund chama de base moral como justamente o “encontro de vontades conflitantes”. Poderia argumentar que é somente a partir dessa “base moral” que se pode notar e afirmar a existência do conflito. Sem qualquer base comum, nem mesmo se poderia capturar este conflito. Tais conclusões deveriam parecer pertinentes a partir do que expõe Estlund no seguinte trecho, que copio integralmente por sua clareza e simplicidade: “my freedom from the wills of other people does not, of course, mean that I am free from true moral requirements. Our respect for the freedom of others finds a limit when their will is excised immorally, and normative consent tries to capture this fine line. You are not under another person’s supposed authority so long as you freely and morally decline to accept it. But if your rejection of it is not (or would not be) morally permissible, it is that moral fact that grounds the authority”. Cf. ESTLUND, 2008. p. 131. grifo do autor. 40 A partir dos exemplos apresentados por Estlund podemos tanto compreender melhor de que maneira uma autoridade não interfere diretamente em pessoas ou em propriedades quanto notar quais seriam possíveis critérios para tornar nula uma recusa inapropriada a um consentimento solicitado. A este respeito cf. ESTLUND, 2008. pp. 125-127. 41 ESTLUND, 2008. p. 131. É notável a aproximação que se poderia fazer da razão prática kantiana, embora, no caso de Estlund, estejamos supondo uma “razão” partilhada, justificável e sujeita ao consentimento alheio – o que me leva a aproximar a idéia de “sentimentos partilhados” ao argumento kantiano sobre o “sensus communis”, que é um “sentido extra, e comum” que guia os juízos reflexionantes. Alguns outros comentários que abordam idéias kantianas podem ser lidos nas notas 48 e 49. 42 É importante observar que a idéia de um “sentimento particular” não se refere a um “acesso privilegiado e imediato” aos desejos subjetivos. Enfatizo que este “particular” é construído socialmente e se articula diferentemente dentro de contextos culturais, históricos e sociais. É exemplar o fato de podermos expressar de maneiras diferentes os “mesmos” sentimentos, a depender do tipo de linguagem usada em determinados espaços. Dessa forma, a ênfase no sentimento particular – e não na razão pública – é também uma ênfase na pluralidade de linguagens, embora tenha em boa conta a convergência e conseqüente diminuição dessa

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Sobre o consentimento: sentimentos partilhados conferem legitimidade em processos de representação política?

como atua o reconhecimento dos representantes numa sociedade complexa e com redes difusas de representação política. O lugar da polarização entre “razões públicas” e “sentimentos partilhados” é fundamentalmente conceitual, embora seja ingênuo acreditar que o campo filosófico não influencie, e nem sofra influência de, o campo institucional. Talvez fosse desnecessário acrescentar mais alguns poucos comentários às suspeitas feministas contra o privilégio dado ao debate fundado na razão e no discurso lógico, a partir de iconografias institucionais masculinistas de representação. Entretanto, como bem relembra Iris Young: Não podemos prever tal renovação da vida pública como uma recuperação dos ideais do esclarecimento. Ao contrário, precisamos transformar a distinção entre público e privado, de modo que não se correlacione com a oposição entre razão e afetividade e desejo, ou entre o universal e o particular.43

Embora Estlund não inclua em seu framework nenhuma discussão que satisfaça essa crítica, vejo em algumas passagens elementos que poderiam ser utilizados para escolher a partilha de sentimentos – que entenderei a partir deste ponto como “consentimento” – em detrimento da mera exposição de razões públicas. É certo que Estlund, por diversas vezes, menciona a justificação por meio de “boas razões” e de “bons argumentos”. Entretanto, parece factível supor que, por primar pela generalidade de seu modelo, Estlund garanta abertura para seus conceitos, como se vê na seguinte passagem: “a exigência de aceitabilidade qualificada impõe à autoridade (e ao poder legítimo) a necessidade de justificação em termos aceitáveis a todos os pontos de vista qualificados”44. Apesar da crítica feminista ao ideal de imparcialidade, Benhabib é clara quando afirma que “algum ideal moral de imparcialidade é um princípio regulador que deve governar não somente nossas deliberações em público, mas também a articulação de razões por instituições públicas”45. Embora tratando destes aspectos de forma diferente, parece-me possível articular a proposta de Estlund com a proposta de Young, “segundo a qual os indivíduos prestariam atenção nas diferenças uns dos outros”, já que “cada posição social tem uma perspectiva

pluralidade (no que diz respeito à forma) em função do locus de expressão e de utilização da linguagem. Assim, entendo que um sentimento particular deve poder ser expresso de diferentes modos, inclusive sob a forma de argumentos públicos. 43 Apud BENHABIB, 2007. p. 71. 44 ESTLUND, 2008. p. 120. grifo meu. 45 BENHABIB, 2007. p. 74. grifo da autora.

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Sobre o consentimento: sentimentos partilhados conferem legitimidade em processos de representação política? parcial sobre o público”46. Essa parcialidade, ao contrário de demandar algum processo de re-unificação ou alguma entidade universalmente representativa da vontade, permite justamente deslocar “o papel da vontade em favor do papel do juízo na constituição da soberania”47. O caráter transitório e parcial da vontade, aliado à descrença na unificação, universalização ou reificação de interesses48, dá lugar à formação e à justificação dos juízos: trata-se menos de saber qual é a vontade ou quem a representa do que saber como e por quais razões chegamos à opinião que sustentamos49. É notável que, ao operar com as categorias kantianas do juízo, a representação não possa mais se dar passivamente, pela mera troca de “autorizações” e de assentimentos, senão que por “uma relação ativa entre governantes e governados”50, que compreenderemos como parte do “círculo hermenêutico” do consentimento. Assim, o exercício da faculdade de juízo, transformado e expandido pela representação política como mediação, nessa relação ativa entre representantes e representados, permitira manter um fluxo de idéias – visibilizadas no discurso sobre os sentimentos que constituem a base moral – que tanto são irredutivelmente parciais51 quanto necessariamente “questões de alianças e programas políticos”52. A última idéia que ainda falta apresentar é a conexão entre estes juízos e os critérios de qualificação do consentimento. Estlund chama de “visão moderada” da teoria do 46

BENHABIB, 2007. p. 72. IDEM. Ibidem. 48 Araujo expõe claramente que “o que Urbinati quer criticar em Rousseau (reivindicando Kant) é: 1. o uso do próprio conceito de ‘vontade’ para expressar a forma da lei; e 2. a remissão da vontade a um sujeito coletivo substancializado, ‘reificado’. Tais idéias poderiam facilmente nos remeter às críticas atuais sobre a ficção do “consenso”, do “bem comum”, da “vontade geral”, no que preferem adotar a idéia de “mediação entre diferentes perspectivas”. A esse respeito, ver Fraser (2001). 49 A utilização do verbo na 3ª pessoa do plural não é casuística, pois optamos por enfatizar o aspecto plural – comunitário até – da emissão dos juízos e das opiniões. Tal como nos aponta Kant, esta comunidade se criaria pelo envolvimento dos indivíduos com seus companheiros, durante o exercício da faculdade, partilhada por todos e por cada um, de juízo. Abordagens que resgatam o aspecto de discurso (lexis) e de ação (praxis) na política talvez nos permitam concluir que tanto a faculdade de juízo, se fundada no discurso e na opinião (doxa) pública, quanto a possibilidade (ou necessidade) de agir são efetivamente partilhadas por todos. Esta seria, então, outra forma de notar como se formam estas comunidades (enfatizando seu caráter original político): se formam pelo princípio da igualdade, qual seja, a de emitir livremente seu juízo e a de exercitar a excelência de suas obras, ou seja, de agir. Tais abordagens podem ser encontradas em Arendt e, ao que nos parece, em Urbinati. Considerações ainda deveriam ser feitas sobre a efetividade concreta de tal “liberdade de ação e de discurso”, embora não as façamos aqui. 50 Araujo aponta que Urbinati “pensa a coletividade que constitui a soberania popular como uma rede, a esfera pública, composta de inúmeros pontos unidos por uma linha invisível de comunicação”. (ARAUJO, 2009. p. 57.) A incomensurabilidade da experiência e a opacidade dos discursos (que impediria o pleno acesso aos significados comunicados) poderia dificultar tal abordagem. Por sua vez, tentativas de dinamizar os fluxos entre experiência e discurso e de multiplicar as linhas de comunicação (e as “esferas públicas”) podem diminuir a rejeição a esse tipo de abordagem comunicativa da política. É isso que vimos de positivo na proposta de Dryzek, exposta anteriormente. 51 Araujo nota que são “parciais porque seu ponto de partida, embora não necessariamente o ponto de chegada, é a parte e não o todo social”. ARAUJO, 2009. p. 56. 52 URBINATI apud ARAUJO, 2009. p. 56. 47

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consentimento aquela que admite haver outras condições (externas), para além da expressão genuína da vontade particular e privada, para anular um consentimento. Tal visão se baseia na relevância de certos “direitos inalienáveis”, que poderíamos compreender como “sentimentos públicos”, frente à dubiedade de admitirmos um acesso imediato, genuíno e privado da vontade. Assim, se o conteúdo do discurso sobre direitos inalienáveis “é o juízo acerca das leis e políticas justas ou injustas”, as condições de institucionalização dessa forma de representação terão de percorrer caminhos que apontem, pelo menos, alguns: 1) critérios de mediação de diferentes perspectivas; 2) critérios de aceitabilidade (de uma autoridade) para o consentimento; 3) critérios de justiça (como redistribuição e como reconhecimento).

ANOTAÇÕES FINAIS Para Estlund, como já mencionei, “a teoria do consentimento normativo da autoridade se baseia em grande parte nas razões que fariam ser errado não consentir à autoridade”, por um lado e, por outro, também se preocupa com a idéia de que “se o consentimento é desqualificado, então a condição da autoridade permanece como se houvesse ocorrido um não-consentimento qualificado”53. O primeiro aspecto trata dos problemas que surgem frente à constituição da autoridade, ainda que democrática. O segundo aborda com cuidado a delicada situação em que, sob certas circunstâncias, não se pode efetivamente “qualificar” o consentimento e que, portanto, deve ser compreendida como a expressão de um não-consentimento qualificado, que “desautoriza” a autoridade ou, ao menos, faz retornar o “círculo hermenêutico” ao ponto de qualificação do consentimento. O que pretendo afirmar, a partir das idéias apresentadas e sob forma de rápida conclusão, é que a legitimação é um processo em que algum consentimento real (actual) deve ser dado, ainda que possa ser post factum. A autoridade, de maneira distinta, pode ser estabelecida por consentimento normativo, facilitando a entrada de “novas autoridades” nos espaços de representação54. Estas “novas autoridades”, ainda assim, se comprometem com a criação de oportunidades para o consentimento (normativo e real), já que é 53

ESTLUND, 2008. p. 123. Mencionei alguma coisa, mesmo que “de passagem”, sobre a importância destas “novas autoridades” como perspectivas “novas” (possivelmente invisibilizadas historicamente) na constituição de espaços de representação mais legítimos e epistemicamente mais relevantes na nota 23. 54

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justamente a oportunização, ainda que post factum, o momento propiciador de reconhecimento e incrementador de legitimidade. Não se nega a provável existência de autoridade anterior ao consentimento (real ou mesmo normativo), embora haja uma diferença substantiva, tanto moral quanto pedagógica, na idéia de oportunizar “partilha de sentimentos”, objetivando ganhos epistêmicos e de legitimidade, em processos de representação política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, Cicero. “Representação, soberania e a questão democrática”. In: Revista Brasileira de Ciência Política, nº 1, jan-jun. Brasília, 2009. pp. 47-61. BENHABIB, Seyla. “Sobre um modelo deliberativo de legitimidade democrática”. In: WERLE, Denilson Luis; MELO, Rúrion Soares. A democracia deliberativa. São Paulo: Editora Singular, Esfera Pública, 2007. ESTLUND, David M.. Democratic Authority: a philosophical framework. Princeton: Princeton University Press, 2008. FRASER, Nancy. “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era ‘póssocialista’”. In: SOUZA, Jessé de (org.). Democracia hoje. Brasília: Editora UnB, 2001. pp. 245-282. PITKIN, Hanna F. “Political representation”. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1967. pp. 209-240.

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