Sobre o destino em Hölderlin [Revista Rapsódia da USP]

July 3, 2017 | Autor: Ulisses Vaccari | Categoria: Friedrich Hölderlin, Estética, história da Filosofia, Hölderlin, Romantismo
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Sobre o destino em Hölderlin Ulisses Razzante Vaccari Doutor em Filosofia pela USP e atualmente professor de filosofia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Numa carta a Neuffer de 20 de outubro de 1793, Hölderlin revela ao amigo ter chegado à concepção de um novo poema:

Na minha cabeça, o inverno chegou mais cedo do que lá fora. O dia é tão curto. E tanto mais longas são as frias noites. Mas eu comecei um poema à ‘companheira dos heróis à brônzea necessidade [die eherne Notwendigkeit]’ (SW III, p. 113)1.

Esse poema a que Hölderlin afirma ter começado aqui, como se pode deduzir, é o hino sobre O destino (Das Schicksal), escrito no inverno de 1793-4 durante uma viagem de

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Salvo indicação contrária, os textos de Hölderlin foram citados a partir da edição Sämtliche Werke und Briefe (indicada pela sigla SW), estabelecida por Jochen Schmidt em 3 volumes, por meio de siglas que se referem aos títulos originais, seguidas do número do volume em que se encontram e do número da página. Com exceção da versão final do Hipérion, que é citado a partir da tradução brasileira, todos os outros textos citados foram traduzidos por mim. O sistema de citação por siglas segue o seguinte roteiro: HEG – Hipérion ou o eremita na Grécia; HJ – Hyperions Jugend (A juventude de Hipérion); VF – Vorletzte Fassung (Penúltima versão de Hipérion); FH – Fragment von Hyperion (Fragmento de Hipérion); PEMF – Prosa-Entwurf zur metrischen Fassung (Projeto em prosa para a versão métrica). A lista completa das referências se encontra ao final do texto.

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Stuttgart a Waltershausen2. Definido pelo próprio Hölderlin numa carta a Schiller como “a relíquia de minha juventude”3 (SW III, p. 129), o hino sai na Nova Thalia, ao lado do Fragmento de Hipérion, uma das primeiras versões de seu romance Hipérion ou o eremita na Grécia. O fato de o hino ter sido elaborado no mesmo período do Fragmento de Hipérion não é simples coincidência. Uma comparação entre o romance e o poema revela que modo este último pode ser considerado uma criação preliminar do Hipérion. Em ambos Hölderlin expõe sua concepção de que a formação do herói se dá numa relação recíproca de suas forças com as forças da natureza. Se, no poema, esse processo de formação do herói não é tão evidente, no romance essa característica fica mais forte. Num certo sentido, pode-se interpretar a formação de Hipérion no romance como um progresso infinito, em que o poeta procura expor uma aproximação infinita dos dois ideais da existência, o da natureza e o da cultura, aquilo que define sua via de formação como uma via carente de centro. Para compreender essa relação e ver como ela se dá, entretanto, é preciso antes de tudo entender o sentido desse anúncio que o poeta faz ao amigo Neuffer de que o hino sobre O destino seria dedicado à “companheira dos heróis, à brônzea necessidade”. O ensejo para a criação do poema é proporcionado pelo inverno, em cuja chegada iminente o poeta vê a expressão da brônzea necessidade da natureza. Isso indica que, para Hölderlin, o destino se manifesta na natureza, e a chegada do inverno é o seu anúncio, tornando o dia “tão curto” e as noites frias “tanto mais longas”. Mas, enquanto para os gregos o destino é visto como um inimigo dos homens4, Hölderlin define essa brônzea necessidade na carta a Neuffer como “companheira dos heróis”. A chave para se compreender essa definição não se encontra no poema propriamente dito, mas em sua epígrafe, um mote do Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, em que se lê: “aqueles que, prostrados, veneram o destino são sábios”5. Antes de ser interpretada como um elogio

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Escreve Hölderlin a Neuffer e a Stäudlin em 30 de dezembro de 1793: “Eu quase terminei o poema O Destino durante a viagem” (SW III, p. 119). Carta de 20 de março de 1794. Cf., por exemplo, Platão, A república, 617 d, trad. 2006, p.413. Em sua epígrafe, Hölderlin modifica levemente o original, em que se lê, nos versos 1167 e seguintes: “Sim, era um sábio, um verdadeiro sábio,/o primeiro dos homens cujo espírito/pensou e cuja língua enunciou/que se consorciar estritamente/de acordo com a sua condição/é realmente o bem maior de todos,/e que jamais se deve ter vontade,/quando se é apenas um artífice...” (trad. p.55).

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ao fatalismo, a epígrafe procura contextualizar o poema no universo do estoicismo6. Com efeito, a epígrafe exprime a antiga concepção de que o virtuoso é aquele que, diante da necessidade e da grandeza das forças da natureza, sabe que a verdadeira liberdade só pode ser alcançada interiormente, por meio de uma conduta moral igualmente “brônzea”, pois, fisicamente, o homem não pode se opor às forças da natureza. De forma similar, essa ideia aparece no início do Prometeu de Ésquilo, na passagem em que o poeta narra a punição do titã por ter ele desobedecido à lei de Zeus, o novo senhor dos céus. Hefesto acorrenta o titã no rochedo e, por mais que Prometeu lamente esse seu destino, ele demonstra essa sabedoria estoica: Temos de suportar com o coração impávido A sorte que nos é imposta e admitir a impossibilidade de fazermos frente à força irresistível da fatalidade7. Numa clara oposição à afirmação de Lessing segundo a qual “todo estoico é nãoteatral” 8, Hölderlin, mostrando até que ponto o ideal de Winckelmann o havia 6

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A filosofia estoica foi assunto de longas conversas entre Hölderlin e Conz, seu antigo companheiro do Instituto de Tübingen que, nesse período, lecionava a filosofia de Sêneca. Cf. para isso Beissner, F. Hölderlins Hymne an das Schicksaal, 1969, p.18-20. Ésquilo. Prometeu acorrentado, versos 135-38, trad. p.21. Lessing, G.E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, 1998, p.86. Essa crítica que Lessing esboça sobretudo ao estoicismo estético de Winckelmann (mas também a Chataubrun), é mais completamente desenvolvida no capítulo IV do seu livro, ao analisar o Filoctetes de Sófocles. Neste capítulo, com efeito, afirma: “Eu confesso que encontro, em geral, pouco gosto na filosofia de Cícero; sobretudo naquela que ele desenterra, no segundo livro das Tusculanae disputationes, acerca da tolerância da dor corporal” (p.110). Evidentemente, essa concepção de Lessing serviria de base para a elaboração de sua teoria da ação como essência da poesia, que se pode ver no capítulo XVI de seu Laocoonte. Se, pelo contrário, Hölderlin defende nesse caso a concepção de Winckelmann acerca da essência da poesia é porque, para ele, a poesia moderna, em contraposição ao Epos grego, não pode mais ser essencialmente ação, mas, antes, o canto lírico de um eu subjetivo em busca da natureza perdida. O próprio Hipérion, nesse sentido, carece completamente de ação nesse sentido grego de tragédia que Lessing via como a essência da poesia.

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influenciado, encontra um promissor núcleo poético no estoicismo de Prometeu: esse culto do interior como forma de resistência à brônzea necessidade exterior. Tendo estudado os gregos a fundo, Hölderlin sabe que o heroísmo daquelas personagens trágicas não provinha de uma luta cega contra as forças da necessidade. A liberdade de que gozavam esses heróis estava ali onde menos se esperava encontrá-la: num longo e doloroso exercício de veneração da necessidade das forças superiores, tal como faz Prometeu diante das ordens de Zeus. Quase cinco anos depois de ter escrito O destino, com efeito, já no Hipérion, Hölderlin notaria, em relação à natureza, que “o sábio a ama por si mesma, a infinita, a que tudo abrange” (HEG, 2003, p. 83). Essa ideia central do estoicismo segundo a qual a virtude nasce da veneração do destino, nesse sentido específico de que o homem forma seu interior ao suportar a necessidade da natureza, constitui um dos principais temas da poesia de Hölderlin. Na versão do romance chamada A juventude de Hipérion, o personagem inicia sua narração dizendo ter se formado na “escola do destino e dos sábios” (HJ, SW II, 217), mostrando a centralidade dessa ideia não apenas no romance, mas em todo o pensamento do poeta ao longo da década de 1790. Tal como no Prometeu, também para Hölderlin o herói se forma “na escola do destino” ou, o que é o mesmo, na necessidade implacável da natureza. Diante dela, esse herói sente, antes de tudo, sua inferioridade, sua fraqueza diante da grandiosidade da natureza. Sua formação, porém, não se dá apenas na escola do destino, e sim também na dos sábios, mostrando a oscilação inerente à sua formação. Durante o seu trajeto, ora ele sentiu a força implacável da natureza, ora procurou derrotá-la com as suas forças; ora ele se viu vítima do destino, ora pensou poder derrotá-lo por meio da cultura, tal como se lê numa outra versão do mesmo romance: “Por vezes somos como se o mundo fosse tudo e nós nada, mas por vezes também como se fôssemos tudo e o mundo nada. Também Hipérion se divide entre esses dois extremos” (VF, SW I, p.256). No Fragmento de Hipérion, Hölderlin afirma que quando o herói transgride os limites designados a ele por seu destino (como nos casos de Prometeu e de Édipo, por exemplo), essa transgressão deve ser corrigida9 pelos golpes da natureza. O herói, portanto – e daí se compreende todo o significado da doutrina estoica –, deve aprender a ver nesses golpes o ensinamento da natureza10. E, se o estoicismo fala da necessidade de se combater 9 10

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Hölderlin (SW I, p. 177) utiliza o termo Zurechtweisung (repreensão) para denominar essa correção necessária provinda do exterior. Essa ideia está em perfeito acordo com aquilo que expressa Hölderlin ao final do fragmento Sobre a lei da liberdade: “Mas a lei da liberdade exige sem nenhuma outra consideração a ajuda da natureza. Que a natureza seja favorável ou não para sua ordenação, a lei o exige. Muito pelo contrário, ela pressupõe uma resistência da parte da natureza, senão ela não exigiria” (SW I, 497).

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o destino (fortunae resistere), para Hölderlin esse combate não é entendido no sentido de um enfrentamento físico, que redundaria pura e simplesmente na morte do herói, mas uma busca pela harmonia entre as forças do herói e as forças da natureza, sabedoria essa expressa na epígrafe da versão final do romance, a sentença de Santo Inácio de Loyola: “Non coerci maximo, contineri minimo, divinum est [“Não ser coagido pelo maior, mas encerrado pelo menor, é divino”]”. Conforme o herói aprende esse movimento harmônico e aprende a encontrar o meio termo entre suas forças e as da natureza, ele se percebe capaz de superar o destino, isto é, passar para um plano (suprassensível) em que a brônzea necessidade (sensível) não pode mais atingi-lo. Nesse momento, o herói deixa para trás sua natureza simplesmente humana e passa a gozar da condição dos deuses, definidos como os sem destino (Schicksallos), como aqueles que não podem ser atingidos pela brônzea necessidade da natureza. O Canto do destino de Hipérion (Hyperions Schicksalslied), ao final do romance, exprime essa ideia de que aquilo que define a mortalidade humana é justamente o fato de o homem não poder escapar à necessidade do destino. Enquanto os deuses andam “na suma claridade” (droben im Licht) e “em suave solo” (weichen Boden) e são sem destino (Schicksaallos), diz o poema: Ai, para nós, porém, jamais foi dada Uma parada em que pousar, Descambam os homens malferidos, E vacilam cegamente, Em horas atrás das horas, Como as águas de cascalhos Despejadas em cascalhos Ano afora, pelo errante abismo do insabível11.

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No original: “Doch uns ist gegeben,/ Auf keiner Stätte zu ruhn, /Es schwinden, es fallen/ Die leidenden Menschen/ Blindlings von einer/ Stunde zur andern,/ Wie Wasser von Klippe/ Zu Klippe geworfen,/ Jahr lang ins Ungewisse hinab” (SW I, p.157-8). A tradução utilizada acima é de Antonio Medina Rodrigues, in: Hölderlin, Canto do destino e outros cantos, 1994, p.117.

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Por isso é possível afirmar que a grande inspiração do poeta para escrever O destino não foi apenas a figura de Prometeu, mas também a lenda de Hércules. Tendo nascido humano e se formado na escola da natureza, o heroísmo de Hércules reside no fato de ele ter aprendido a vencer o cruel destino reservado a ele, o que o levou a ser aceito no Olimpo, ao final de sua vida. Mais expressivo do que Prometeu, que nasce titã, Hércules nasce humano, isto é, designado a morrer. A idealização do humano na figura do divino (como se vê em Winckelmann) não deve, obviamente, ser tomada ao pé da letra, mas como uma imagem do processo de formação do homem regulado pela ideia da divindade. Ao fim e ao cabo, tornar-se divino aqui significa desenvolver ao máximo as qualidades humanas e tornar-se efetivamente homem, sem sucumbir diante das dificuldades do processo. Como diz Hölderlin na Penúltima Versão do Hipérion: “Todos nós percorremos uma via excêntrica e não há outro caminho possível desde a infância até a maturidade” (VF SW I, p.256). Tal como a história de Prometeu, também a de Hércules se passa no momento em que Zeus, com a ajuda dos titãs, destrona seu pai Cronos e institui uma nova ordem no panteão olímpico, inaugurando a chamada era de ferro12. Segundo a hierarquia mitológica, essa era é decadente em relação às anteriores, de ouro e de prata, motivo pelo qual Hölderlin a define, em O destino, como o tempo em que “a magia da era dourada desaparece”. Agora, entra em cena a era do crepúsculo dos deuses. Mas, quanto mais impossível parece ser para Hércules vencer as provações do destino, tanto maiores se tornam as virtudes desse herói, que nasce e cresce nesse momento da máxima expressão da brônzea necessidade. Nas palavras de Hölderlin, foi nessa era terrível que, ainda jovem, Hércules “pulou do berço da mãe/lá encontrou o belo rastro/a difícil vitória da sua virtude/o filho da sagrada natureza”13 (SW II, p.158). Passando agora ao Hipérion, pergunta-se: em que medida O destino é de fato um microcosmo do romance? Assim como o Hércules do poema, também Hipérion se defronta com uma era de decadência: a de uma Grécia moderna decaída e assolada pela invasão

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Cf. Hesíodo, Os trabalhos e os dias, p.109-40 e Ovídio, As metamorfoses, I, p.89-115. O poeta se refere aqui à cena em que Hércules ainda no berço mata uma serpente: “Da sprang er aus der Mutter Wiege,/ Da fand er sie, die schöne Spur/ Zu seiner Tugend schweren Siege,/ Der Sohn der heiligen Natur”. Num outro poema, intitulado A Hércules (An Herkules), Hölderlin escreve ainda que, ao longo do seu caminho de formação, as próprias “ondas do destino” o teriam ensinado, a esse “bravo nadador!”, “superiores forças divinas” (“Wenn für deines Schicksals Wogen/ Hohe Götterkräfte dich, /Kühner Schwimmer! auferzogen,/ Was erzog dem Siege mich?”, SW II, p. 171).

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turco-otomana. É nesse cenário que se inicia sua formação, que, como já havia anunciado o texto de A juventude de Hipérion, é tecida entre “a escola do destino e a dos sábios”. Ao longo dela, o herói sentirá, como que se opondo aos seus projetos, o contraesforço do destino, que, embora lhe apareça como negação pura e simples, revela-se ao final, do ponto de vista do todo, uma ajuda oferecida pela natureza aos negócios da cultura. No Projeto em prosa para a versão métrica, Hipérion revela ter compreendido o verdadeiro significado da expressão de Santo Inácio, ao reconhecer quais foram seus erros do passado:

Eu acreditava que o espírito livre e puro jamais poderia se conciliar com os sentidos e seu mundo e que não havia nenhuma alegria, a não ser aquela da vitória; furioso, eu exigia muitas vezes de volta do destino a liberdade originária de nosso ser, me alegrava muitas vezes com a luta empreendida pela razão contra o irracional, pois para mim tinha mais sentido atingir o sentimento de superioridade na vitória do que comunicar às forças destituídas de leis a bela harmonia que move o peito humano. Eu não prestei atenção à ajuda que a natureza opôs aos grandes negócios da cultura, pois eu queria trabalhar sozinho, não aceitei a prontidão com a qual a natureza estendeu as mãos para a razão, pois eu queria dominá-la (PEMF, SW I, p.205).

Nas muitas vezes em que o destino se expressou em sua brônzea necessidade Hipérion não foi capaz de ver nessa sua expressão “a ajuda que a natureza opôs aos grandes negócios da cultura”. O herói só teria consciência de que aquelas manifestações da natureza consistiam numa ajuda ao final do trajeto de sua formação, quando atinge a consciência de si e percebe que foi justamente o trajeto percorrido nas dificuldades da via excêntrica que o conduziu para esse ponto em que ele se encontra agora. É então nesse exato momento, já ao final do livro, que exclama ao seu amigo Belarmino, reconhecendo a importância que o destino exerceu em sua formação:

Nunca havia experimentado de maneira tão completa aquela antiga e firme palavra do destino, segundo a qual uma nova bemaventurança nasce no coração quando este resiste e suporta a a

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meia-noite do desgosto, e a canção da vida do mundo ressoa divina no sofrimento profundo, como um canto de rouxinol na escuridão. Pois vivo agora entre árvores floridas, como entre gênios, e os riachos claros descem e, com murmúrios semelhantes a vozes divinas, arrancam a aflição do meu peito (HEG, 2003, p.163). Em estreita sintonia com O destino, Hipérion declara nessa passagem ter se tornado divino, isto é, ter passado para o reino da liberdade, por ter enfrentado “aquela antiga e firme palavra do destino”; que foi por ter sentido da maneira mais completa a meianoite do desgosto que a canção da vida do mundo ressoou divina, no sofrimento profundo. Essa semelhança entre o mito de Hércules e o Hipérion mostra que ambos constituem recriações poéticas da via de formação de dois heróis. Isso indica que a poesia desempenha um papel fundamental nesse processo de formação da consciência de si ou do poeta, e Hölderlin deseja chamar a atenção para ele ao situar a narrativa do romance em dois níveis distintos: aquele do Hipérion do final do livro, que narra a partir do reino da liberdade (como poeta) e que exclama: “É nessas alturas que me encontro com frequência, meu Belarmino!” (HEG, 2003, p.14) e aquele do Hipérion que narra a partir do vivido, do momento da alternância entre um extremo e outro, no seio do desespero de se imaginar um mero joguete do destino. Nesse sentido, o romance pode ser compreendido como um exercício (poético) do narrador no sentido de tomar consciência do caminho de sua formação. De modo que a constatação, nos prefácios do Hipérion, de que a via de formação do homem é excêntrica, só é possível por meio da narração poética do seu trajeto, tal como se pode ver na seguinte passagem:

... olhava para o mar e refletia sobre a vida, sua ascensão e sua queda, sua bem-aventurança e sua aflição. E meu passado soavame muitas vezes como uma lira com a qual o mestre perpassa todos os tons, interligando conflito e harmonização, numa ordem oculta” (HEG, 2003, p.51).

A partir desse momento, o passado adquire um sentido e aparece como uma história dotada de fim ou como uma canção entoada por um aedo, na qual os conflitos se dissolvem numa harmonia superior e “numa ordem oculta”. Nesse momento, aquela necessidade atrelada ao destino se transforma em liberdade, como se a recriação poética permitisse

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ao personagem descortinar a ordem que o guiou ao longo do caminho. Enquanto a travessia parecia ser dominada pela necessidade, pelo destino implacável, a recriação poética confere ao poeta a liberdade divina da criação desse destino. E a natureza, que no começo do romance se mostrava uma força cega, portadora da brônzea necessidade, jogando cegamente o herói de um lado para o outro, reaparece como um todo orgânico, do qual Hipérion se vê então como parte genuína.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEISSNER, F. Hölderlin. Reden und Aufsätze von Friedrich Beissner. Köln, Wien: Böhlau Verlag, 1969, p.15-30. ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999 (trad. Mário da Gama Kury). HENRICH, D. Der Grund im Bewuâtsein – Untersuchungen zu Hölderlins Denken (17941795). Stuttgart: Klett-Cotta, 1992. HÖLDERLIN, F. O canto do destino e outros cantos. São Paulo: Iluminuras, 1994 (trad. de Antonio Medina Rodrigues). _____. Hipérion ou o eremita na Grécia. São Paulo: Nova Alexandria, 2003 (trad. Erlon José Paschoal). _____. Sämtliche Werke und Briefe. Hg. von Jochen Schmidt. Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker Verlag, 1992. LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998 (trad. Márcio Seligmann-Silva). PLATÃO. A República. São Paulo: Martins Fontes, 2006 (trad. Anna Lia Amaral de Almeida Prado).

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